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CRÔNICAS DE UM "AMIGO DA ONÇA" - XIV Encontro Regional de ...

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Resumo<br />

<strong>CRÔNICAS</strong> <strong>DE</strong> <strong>UM</strong> "<strong>AMIGO</strong> <strong>DA</strong> ONÇA"<br />

Eric Allen Bueno* 1<br />

O que é o Brasil e o que é o brasileiro são questões que percorreram o século XX, inquietando<br />

políticos, escritores, intelectuais e tantos outros que se preocuparam em dar uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

para a nação. Este contexto criou uma série <strong>de</strong> estereótipos <strong>de</strong> tipos populares, <strong>de</strong>ntre estes, a<br />

figura do “malandro” percorre um vasto caminho, vindo a se consolidar no imaginário<br />

popular. Mas, não há um típico malando e sim uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> “malandros”. Nesta<br />

perspectiva, analisamos neste trabalho o personagem Amigo da Onça sob o traço do<br />

caricaturista Carlos Estêvão na revista O Cruzeiro entre 1960 a 1972, enfocando como as<br />

“malandragens” do Onça reproduziram, através do humor, “crônicas” <strong>de</strong> um quotidiano<br />

ligado às transformações nacionais e culturais. A metodologia empregada se baseia na Cultura<br />

Visual.<br />

Palavras-chave: Revista O Cruzeiro; Caricatura; I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> Nacional.<br />

Abstract<br />

What is Brazil and what is the Brazilian are issues that went through the twentieth century,<br />

and disquieted politicians, writers, intellectuals and many others who were concerned to give<br />

the nation an i<strong>de</strong>ntity. This context has created a series of stereotypes of popular characters,<br />

among them the figure of the "malandro" covers a wi<strong>de</strong> path, coming to consolidate in the<br />

popular imagination. However, there isn’t a typical malandro, but a variety of "malandros."<br />

From this perspective, this study analyzes the character “Amigo da Onça”, by the cartoonist<br />

Carlos Estêvão, in the magazine “O Cruzeiro” between 1960 and 1972, focusing on how the<br />

actions of “Amigo da Onça” reproduced, through humor, "chronicles" of daily life linked to<br />

the national and cultural transformations. The methodology is based on Visual Culture.<br />

Keywords: “O Cruzeiro” magazine, Caricature, National I<strong>de</strong>ntity.<br />

1 * Mestrando em História do Tempo Presente pela U<strong>DE</strong>SC. Bolsista da CAPES. E-mail:<br />

erichistoria@gmail.com


Des<strong>de</strong> que o Brasil virou uma república fe<strong>de</strong>rativa, dar um rosto e uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> à<br />

nação foi uma preocupação constante para se legitimar o novo governo e consolidar o projeto<br />

burguês no país. Processo que faz parte da consolidação dos estados nacionais mundo a fora.<br />

Na literatura como na <strong>de</strong> Oswaldo <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, na Arte <strong>de</strong> Tarsila<br />

Amaral e tantos outros do Movimento Pau-Brasil e Movimento Antropofágico, seja por<br />

gran<strong>de</strong>s projetos políticos como o Estado Novo <strong>de</strong> Vargas ou da Ditadura civil-militar <strong>de</strong><br />

1964 ou ainda pela produção dos gran<strong>de</strong>s interpretes nacionais como Gilberto Freyre e Sergio<br />

Buarque <strong>de</strong> Holanda, são incontáveis os autores e instituições que se <strong>de</strong>dicaram a dar um<br />

“rosto” à nação. Constituindo um processo <strong>de</strong> “invenção” e legitimação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

nacional, tema que percorreu todo o século XX 2 .<br />

Neste contexto, a imprensa brasileira teve um papel fundamental na difusão <strong>de</strong> imagens<br />

e imaginários. No “país da piada pronta” (SALIBA, 2002: 32-36), nada melhor do que o<br />

humor para compreen<strong>de</strong>rmos quais estereótipos foram criados para representar nossa<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. E em se tratando <strong>de</strong> imagens estereotipadas, a caricatura funcionou (e ainda<br />

funciona) como uma das melhores formas <strong>de</strong> se sintetizar idéias e transmiti-las rapidamente<br />

para o público, algo extremamente relevante consi<strong>de</strong>rando nosso passado <strong>de</strong> analfabetismo<br />

em massa. Neste trabalho 3 , fazemos um rápido percurso sobre o personagem Amigo da Onça<br />

e o paradigma da malandragem, buscando nessa fonte uma melhor compreensão do nosso<br />

passado cultural. Para a análise das imagens, seguimos o percurso da Cultura Visual, não nos<br />

preocupando em fazer extensas <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> imagens, mas sim buscando a compreensão <strong>de</strong><br />

quais idéias elas evocam (BERGER, 1999).<br />

O Amigo da Onça, juntamente com Zé Povo, Juca Pato, Jeca Tatu e Zé Carioca, foi um<br />

dos personagens mais conhecidos no Brasil do século XX. Criado em 1943 por Péricles<br />

Maranhão na revista O Cruzeiro, sendo que após o suicídio <strong>de</strong> Péricles em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1961,<br />

o seu colega <strong>de</strong> revista, Carlos Estêvão da continuida<strong>de</strong> as histórias do Onça até o seu<br />

falecimento em 1972. Depois <strong>de</strong>ste período <strong>de</strong> quase 30 anos, o personagem vai parar na mão<br />

da nova geração <strong>de</strong> caricaturistas <strong>de</strong> O Cruzeiro, mas já não atinge o sucesso <strong>de</strong> outrora.<br />

Contudo, ele possuí uma vitalida<strong>de</strong> própria por representar aquele tipo <strong>de</strong> indivíduo que<br />

2<br />

A questão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional não é nenhuma novida<strong>de</strong> para a historiografia (ver LEITE, 2002; ORTIZ,<br />

1994), contudo, <strong>de</strong>vido aos movimentos contínuos <strong>de</strong> imigração e as <strong>de</strong>correntes tensões e conflitos sociais que<br />

isso acarreta no mundo globalizado (CANCLINI, 1998 e 2003) o tema está longe <strong>de</strong> ser esgotado. Sendo as<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s culturais um dos principais focos da atualida<strong>de</strong> (FALCÃO, 2007: 198-208).<br />

3<br />

Este artigo faz parte <strong>de</strong> uma pesquisa em andamento sobre as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s nacionais através História da<br />

Caricatura no Brasil e sobre o humor na revista O Cruzeiro.<br />

2


sempre tira proveito próprio <strong>de</strong> qualquer situação e não se importa com os outros. Atualmente<br />

(2010), mesmo não sendo publicado por nenhum artista em especial, vários chargistas o<br />

<strong>de</strong>senham uma vez ou outra, como por exemplo o cartunista Amarildo na Fig. 01 que o<br />

retrata <strong>de</strong> forma similar ao traço <strong>de</strong> Péricles, com o mesmo terno do anos 1950. Na imagem o<br />

Amigo da Onça aconselha: “Vai por mim! Melhor você disputar o senado!” já que 2010 é ano<br />

eleitoral, porem, seguir seus conselhos sempre acarreta em <strong>de</strong>sgraça e Amarildo brincou com<br />

esse sentido próprio do personagem. É <strong>de</strong> se ressaltar ainda a criação <strong>de</strong> pequenas historinhas<br />

em 3D com o personagem 4 , o que <strong>de</strong>monstra sua vitalida<strong>de</strong> e ressignificação no início do<br />

século XXI.<br />

Já tendo 67 anos, o personagem passou por várias fases, segundo seus produtores e o<br />

contexto histórico. A primeira fase é a do seu criador original (1943-1961), a segunda é da<br />

“Equipe O Cruzeiro” (1962-1965) e a terceira a do caricaturista Carlos Estêvão (1962-1972).<br />

Aqui, nos focamos na segunda e principalmente na terceira fase. Após a morte <strong>de</strong> Péricles,<br />

todos os ilustradores (Carlos Estêvão, Borjalo, Appe, Millôr Fernan<strong>de</strong>s) passaram a colaborar<br />

na sessão do Amigo da Onça. Sendo que Estêvão acabou “herdando” o personagem já que ele<br />

sempre fazia a sessão quando Péricles a atrasava (WIENKOSKI, 2002: 137).<br />

Na primeira fase, Péricles traçou o perfil básico do personagem: O Amigo da Onça é um<br />

sujeito baixo, com uma gran<strong>de</strong> cabeça, um olhar sínico e <strong>de</strong> corpo atlético. Po<strong>de</strong> ser qualquer<br />

indivíduo, do milionário ao mendigo, da criança ao velho, ser um anjo ou um <strong>de</strong>mônio etc.<br />

Sendo que sua principal característica é <strong>de</strong> tirar proveito <strong>de</strong> qualquer situação e causar o dano<br />

alheio. Para Marcos Silva (1989), o Amigo da Onça <strong>de</strong>ve ser entendido em uma relação <strong>de</strong><br />

prazer e po<strong>de</strong>r para com o seu outro (sua vítima):<br />

Fig. 01: Amarildo. A Gazeta. 04 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong><br />

2010. Também disponível em:<br />

<br />

Acesso em: 07 <strong>de</strong> mai. 2010.<br />

4<br />

Animações disponíveis em : e<br />

Acesso em: 12 jan. 2010.<br />

3


Definir o outro do Amigo da Onça, portanto, passa por uma relação fortemente<br />

contida em regras, como que num jogo – que também é beco sem saída –, cujo<br />

<strong>de</strong>sfecho é previamente estabelecido: o personagem vencerá. A tensão se renova, o<br />

sofrimento, o susto e a dor do outro são atualizados, assim como o prazer do leitor<br />

– que não se veja como aquele outro! – e do Amigo da Onça. Apesar disso, a<br />

necessida<strong>de</strong> da vantagem sobre o outro e a certeza <strong>de</strong> que ela será atingida mantêm<br />

a permanente potência do personagem e do leitor para enfrentarem novas situações<br />

que prefiguram a relação <strong>de</strong> sua superiorida<strong>de</strong> sobre o resto do mundo. (SILVA,<br />

1989: 50)<br />

Já Alberto Gawryszewski (2009: 65-85) relaciona as caricaturas do Amigo da Onça à<br />

construção do preconceito e sua contestação. Ou seja, nas cenas em que o personagem<br />

satirizava pessoas excluídas socialmente (como mendigos, “feios”, <strong>de</strong>ficientes, negros, etc) o<br />

quê os autores (Péricles e Carlos Estêvão) faziam, como homens <strong>de</strong> seu tempo, era trazer a<br />

tona as questões latentes daquele contexto. E, principalmente, mostram que não há<br />

passivida<strong>de</strong> dos excluídos e sim resistência perante a opressão: “Nestas imagens, o humor se<br />

apresenta como <strong>de</strong>nunciador da opressão, e <strong>de</strong>smascara as formas <strong>de</strong> relacionamento humano<br />

<strong>de</strong>gradantes e humilhantes em que um igual é tratado como <strong>de</strong>sigual” (GAWRYSZEWSKI,<br />

2009: 85).<br />

Nas fases seguintes, inicialmente há uma continuida<strong>de</strong> no estilo <strong>de</strong> se <strong>de</strong>senhar o Onça e<br />

suas histórias. Mas progressivamente, o personagem se fun<strong>de</strong> por completo ao estilo <strong>de</strong><br />

Estêvão. Mas nos voltemos para a questão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional e a fase da “Equipe ‘O<br />

Cruzeiro’”. Na década <strong>de</strong> 1960, período em que o país passou por uma situação conturbada<br />

política e economicamente, e principalmente após o golpe <strong>de</strong> 01 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1964, instaurou-se<br />

um clima <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança e caça aos “comunistas”. Ainda mais em uma revista como O<br />

Cruzeiro que representava a visão conservadora da elite e da burguesia nacional. E que apoiou<br />

o golpe (FIGUEIREDO, 1998; SILVA, 2004).<br />

Mas o clima <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança pós-golpe não passou <strong>de</strong>spercebida pelo humor. Na fig. 02<br />

temos o Amigo da Onça atrás <strong>de</strong> um balcão em um “Setor <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação”. Ele fala para o<br />

homem <strong>de</strong> terno azul na sua frente “Ah!... está sem documentos? Então somos obrigados a<br />

mandar prendê-lo!!!”. Ao redor <strong>de</strong>les, todos ouvem a frase do Onça. No primeiro plano um<br />

homem com roupas escuras se contraí em um gesto <strong>de</strong> medo embora sua expressão seja <strong>de</strong><br />

apreensão diante do fato. Ao fundo, um guarda armado exibe um sorriso estando diante da<br />

porta <strong>de</strong> um elevador, tornando difícil uma provável fuga. Ainda no fundo, um homem <strong>de</strong><br />

4


igo<strong>de</strong> e gravata tem uma expressão que sugere que o individuo <strong>de</strong> terno azul está<br />

encrencado. Este por sua vez, fica amarelo e treme diante das palavras do Amigo da Onça.<br />

Aqui, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> tem um papel vital já que o governo andava caçando agentes<br />

infiltrados da URSS (comunistas) 5 . Na caricatura, as roupas indicam a qual grupo social os<br />

indivíduos pertencem e qual <strong>de</strong>veria ser sua forma <strong>de</strong> se comportar diante da socieda<strong>de</strong>. No<br />

caso acima, embora o terno fosse uma roupa formal para a época, é <strong>de</strong> se salientar que a<br />

repressão teve seu principal foco nas camadas médias e que tinham uma maior participação<br />

nos jogos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Por isso, pessoas menos favorecidas não aparecem sendo questionadas<br />

sobre sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />

Fig. 02: Equipe <strong>de</strong> “O Cruzeiro”. O Amigo da Onça. O Cruzeiro.<br />

16/05/1964.<br />

Fonte: Biblioteca do Estado <strong>de</strong> Santa Catarina,<br />

Florianópolis –SC.<br />

Pelo contrario, os grupos mais populares é que recebem o maior enfoque e afirmação <strong>de</strong><br />

uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> comum. Para isto, é em tempos <strong>de</strong> carnaval e da Copa do Mundo que a idéia<br />

<strong>de</strong> nação ganha força. No Carnaval <strong>de</strong> 1967, Estêvão mostra o Amigo da Onça encaminhando<br />

um senhor <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> que carrega uma caixa <strong>de</strong> livros e um guarda-chuva, para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um<br />

prédio e lhe diz: “Pronto Coronel, nesta pensão o senhor ficará inteiramente sossegado nos<br />

quatro dias <strong>de</strong> carnaval!”. O gran<strong>de</strong> sorriso do senhor indica a felicida<strong>de</strong> por encontrar um<br />

local tranqüilo. Mas na parte superior do prédio vemos que o local na verda<strong>de</strong> se trata do “O<br />

Mulato Inzonêro Clube Recreativo e Dançante” 6 e no primeiro andar tem uma gran<strong>de</strong> faixa<br />

5<br />

Provavelmente, a principal característica da fase da “Equipe ‘O Cruzeiro’” foi <strong>de</strong> ter um caráter mais politizado<br />

e produzir uma quantida<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> cenas que faziam alguma referência ao regime militar. Depois <strong>de</strong><br />

1965, elas se tornam raras.<br />

6<br />

Encontramos outras duas caricaturas que fazem referência ao “Mulato Inzonêro Clube Recreativo”. A primeira<br />

datada <strong>de</strong> 06/071964 e a segunda <strong>de</strong> 30/10/1965. Em ambas, o “Clube” tem uma conotação negativa <strong>de</strong>vido a<br />

5


que anuncia: “4 bailes <strong>de</strong> arromba no carnaval! Noite e dia na folia * orquestras variadas”. Na<br />

janela po<strong>de</strong>mos ver que o ambiente está sendo preparado, uma mulher e um rapaz arrumam a<br />

<strong>de</strong>coração, um outro traz na cabeça uma caixa <strong>de</strong> bebidas, em uma das pare<strong>de</strong>s um homem<br />

coloca um gran<strong>de</strong> pôster <strong>de</strong> Rômulo Paes (um compositor <strong>de</strong> marchinhas carnavalescas). No<br />

lado esquerdo um homem com um vilão canta “Eu compro, compro... eu compro esta<br />

mulher!”. O ambiente já começa a encher <strong>de</strong> gente, explicitando que tudo o que o “Coronel”<br />

não vai ter é sossego durante o carnaval.<br />

Na cena seguinte, justamente no ano da Copa do Mundo <strong>de</strong> 1970 em que o Brasil foi<br />

campeão, Estêvão produziu esta caricatura, Fig. 04:<br />

Fig. 03: Carlos Estêvão. O Amigo da Onça. O Cruzeiro.<br />

04 /02/1967.<br />

Fonte: Biblioteca do Estado <strong>de</strong> Santa Catarina,<br />

Florianópolis –SC.<br />

Fig. 04: Carlos Estêvão. O Amigo da Onça. O Cruzeiro.<br />

30/06/1970.<br />

Fonte: Biblioteca do Estado <strong>de</strong> Santa Catarina,<br />

Florianópolis –SC.<br />

fatores como “classe” e “etnia”. No momento, essas são questões em que não há espaço aqui para serem<br />

discutidas.<br />

6


Nela, vemos no primeiro plano o Amigo da Onça <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um fusca (um “Wolks”<br />

como chamavam no período) da cor laranja. Sua placa vem com a inscrição “Belo Horizonte<br />

57656”. Nesse período, Estêvão tinha se mudado para lá e juto com ele, o Onça saiu do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro indo parar em Minas Gerais. As marcas <strong>de</strong> pneu na rua indicam que o Amigo da Onça<br />

mudou propositalmente <strong>de</strong> pista e “atropelou” a bola <strong>de</strong> futebol que tinha ido parar na<br />

calçada. No pequeno campinho <strong>de</strong> futebol os jogadores correm <strong>de</strong>solados atrás da bola<br />

perdida. Como os uniformes são diferentes, a cerca é feita <strong>de</strong> arame farpado e até uma galinha<br />

anda ciscando no meio do campo, tem-se um ambiente informal e simples, uma típica<br />

“pelada”. Uma placa ao lado do gol explicita qual é a partida: “Torneio Zé Gomes. Fábrica<br />

FC 4. Arara FC 9. Taça: 12 Garr. <strong>de</strong> aguar<strong>de</strong>nte tatuzinho”. A cena toda, da rua quase vazia,<br />

do campinho <strong>de</strong> futebol e da pequena casa com o varal cheio <strong>de</strong> roupas ao fundo, revelam um<br />

clima interiorano <strong>de</strong> paz e tranqüilida<strong>de</strong>, só rompida pela passagem brusca e perturbadora do<br />

Amigo da Onça. Embora o futebol tenha sido utilizado muitas vezes <strong>de</strong> forma i<strong>de</strong>ológica pelo<br />

Estado, como no caso da Copa <strong>de</strong> 1970, também temos que ter em mente que o futebol era (e<br />

ainda é) uma prática corrente na socieda<strong>de</strong> e que não há dominação tirana e sim uma<br />

constante interação entre indivíduos e grupos e que é nessa interação que as práticas se<br />

estabelecem.<br />

Ao compara as três cenas aqui analisadas rapidamente (Fig.02, 03, 04) po<strong>de</strong>mos<br />

perceber que o Amigo da Onça é uma espécime <strong>de</strong> malandro. Do tipo mais nocivo que<br />

po<strong>de</strong>ria existir:<br />

O campo do malandro vai, numa gradação, da malandragem socialmente aprovada<br />

e vista por nós como esperteza e vivacida<strong>de</strong>, ao ponto mais pesado do gesto<br />

francamente <strong>de</strong>sonesto. É quando o malandro corre o risco <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> viver do<br />

jeito e do expediente para viver dos golpes, virando então um autêntico marginal ou<br />

bandido. (Da MATTA, 1997: 269).<br />

O personagem assumiu por várias vezes a forma <strong>de</strong> ladrão, presidiário ou similares, sem<br />

no entanto per<strong>de</strong>r sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e provocar ao próximo, com por exemplo em uma caricatura<br />

em que temos três ladrões que acabaram <strong>de</strong> arrobam um gran<strong>de</strong> cofre, mas ele está vazio<br />

tendo apenas um papel com a inscrição “Vale 18, 000,00 (Dezoito mil cruzeiros novos)” e<br />

assinado pelo Amigo da Onça 7 . A flexibilida<strong>de</strong> com que o Onça se move por grupos sociais<br />

do mais variados <strong>de</strong>monstra que sua essência resi<strong>de</strong> em uma típica personalida<strong>de</strong>. Aquela que<br />

7 CARLOS ESTÊVÃO. O Amigo da Onça. O Cruzeiro. 11/05/1968<br />

7


conhecemos alguma vez na vida quando no <strong>de</strong>paramos com um “amigo” não tão amigo<br />

quanto parece, ou mesmo quando nós mesmos compactuamos com a <strong>de</strong>sgraça alheia.<br />

Assim, o Amigo da Onça é a malandragem cruel e irônica. Havendo outros tipos <strong>de</strong><br />

malandros como o Dr. Macarra 8 , criado por Carlos Estêvão, que não mentia necessariamente,<br />

mas distorcia a realida<strong>de</strong> em benefício próprio. Ou ainda dos truques e armações do Zé<br />

Carioca que vive sem trabalhar, mas, quando comparamos as revistas dos anos 1960 e as<br />

atuais, percebemos que ele saiu da favela e agora mora em uma espécime <strong>de</strong> “conjunto<br />

habitacional”.<br />

O popular Malandro que circulou nas ruas do Rio <strong>de</strong> Janeiro, inspirando sambas<br />

(MATOS, 1982) e historias <strong>de</strong> boêmia, <strong>de</strong> brigas e que eternizaram figuras como a <strong>de</strong><br />

Madame Satã, viu no próprio samba a constatação <strong>de</strong> que “tal malandragem não existe mais” 9<br />

como diria Chico Buarque. Mas, pelo menos na caricatura, os malandros continuam a existir,<br />

adaptados aos novos tempos é claro.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

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Janeiro: Elsevier, 2006.<br />

BERGER, John. Modos <strong>de</strong> ver. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Racco, 1997.<br />

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(1960 a 1970). Trabalho <strong>de</strong> Conclusão <strong>de</strong> Curso em História. Guarapuava: UNICENTRO,<br />

2009.<br />

<strong>DA</strong>MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema<br />

brasileiro. 6. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Racco, 1997.<br />

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CANCLINI, Néstor Garía. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003.<br />

8<br />

A revista em quadrinhos Dr. Macarra teve 10 números publicados no período <strong>de</strong> abril a <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1962<br />

(WIENKOSKI, 2002: 30). Em 1981 foi lançada uma edição que reunia algumas histórias do personagem:<br />

CARLOS ESTÊVÃO. Dr. Macarra um playboy na FEB e outras Histórias. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 1981. Na<br />

revista O Cruzeiro, o personagem aparecia <strong>de</strong> forma bem esparsa, para citar alguns exemplos: CARLOS<br />

ESTÊVÃO. Dr. Macarra. O Cruzeiro. 04 /02/1967; CARLOS ESTÊVÃO. Dr. Macarra. O Cruzeiro.<br />

11/03/1967; CARLOS ESTÊVÃO. Dr. Macarra. O Cruzeiro. 09/12/1967.<br />

9<br />

Trecho da música: Homenagem ao Malandro, <strong>de</strong> Chico Buarque.<br />

8


_______. Culturas híbridas. São Paulo: Ed. da USP, 1998.<br />

FALCÃO, Luiz Felipe. Entre raízes e laços: i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural italiana e educação em Santa<br />

Catarina no final do século 20. In: PORTÔ JR, Gilson (org). História do tempo presente.<br />

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1963. (4 volumes).<br />

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Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1982.<br />

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Manchete durante os governos Juscelino Kubitschek e João Goulart. Dissertação (Mestrado<br />

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Janeiro – UFRJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2002.<br />

9


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Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Londrina/LEDI, 2009. (Coleção História na Comunida<strong>de</strong>, v.1).<br />

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