Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
CURSINHOS POPULARES<br />
Opção para vestibulandos<br />
POR DENTRO DO PCC<br />
Valores e funcionamento<br />
da organização<br />
AMEAÇA RADIOATIVA<br />
no sul de Minas<br />
RIO DE JANEIRO<br />
Teatro da Maré<br />
renova arte popular<br />
ano XIV<br />
número 160<br />
/<br />
2010<br />
R$ 9,90<br />
Entrevista<br />
Frei Betto<br />
“O Brasil é o<br />
paraíso do capital<br />
especulativo”<br />
<strong>Trabalho</strong><br />
<strong>ESCRAVO</strong><br />
O que impede a erradicação<br />
PARTO HUMANIZADO<br />
sob o controle da<br />
mulher<br />
ANA MIRANDA BÁRBARA MENGARDO CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY<br />
FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS<br />
GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JANAÍNA WAGNER JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS<br />
SANTOS JOELMA COUTO JOSÉ ARBEX JR. JULIANA SADA JÚLIO DELMANTO LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES<br />
MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA TATIANA MERLINO<br />
DIREITOS AUTORAIS<br />
A urgente revisão<br />
da lei<br />
11_CA_160final.pdf 1 12.07.10 14:43:56
CAROS AMIGOS ANO XIV 160 JULHO 2010<br />
Foto de capa<br />
PAULO PEREIRA<br />
EDITORA CASA AMARELA<br />
REVISTAS • LIVROS • SERVIÇOS EDITORIAIS<br />
FUNDADOR: SÉRGIO DE SOUZA (1934-2008)<br />
DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO<br />
Combate ao trabalho escravo<br />
Por mais que se diga que o país está em franco desenvolvimento<br />
e situado entre as maiores potências econômicas do Planeta,<br />
que o triunfo do neoliberalismo aplaca as lutas sociais e<br />
leva os pobres a ingressarem nas classes médias aos milhões,<br />
existe um fato concreto que atrela o Brasil ao seu mais terrível<br />
passado: é a persistência até hoje das condições humilhantes de<br />
trabalho e análogas à da escravidão.<br />
Nem dá para afi rmar que se trata de algo anacrônico, na medida<br />
em que a prática do trabalho escravo tem sido utilizada sistematicamente<br />
pelos setores mais atrasados e mais adiantados<br />
do capitalismo. Está presente na expansão das fronteiras rurais<br />
para a instalação do agronegócio, no desmate da fl oresta para a<br />
pecuária e na lavoura da cana para o etanol. Está, igualmente,<br />
no seio do operariado que trabalha nas confecções de grife para<br />
as grandes redes de lojas dos centros urbanos.<br />
A reportagem da Caros Amigos procura não apenas mostrar<br />
a dimensão do problema, registrar a diversidade do trabalho<br />
escravo na “moderna” economia brasileira, mas principalmente<br />
questionar por que essa situação perdura além de todo o<br />
aparato disponível existente nas instituições da sociedade. Entre<br />
as várias forças que fecham os olhos ou sustentam a exploração<br />
do trabalho escravo está a bancada ruralista no Congresso<br />
Nacional, que há muitos anos impede a aprovação de projeto<br />
de lei que autoriza a desapropriação de terras com a prática de<br />
tal ilegalidade.<br />
Além dessa reportagem, a revista apresenta excelentes matérias,<br />
entre as quais a entrevista exclusiva com Frei Betto, conhecido<br />
por sua história de militância social e política; entrevista<br />
com os antropólogos Karina Biondi e Adalton Marques, sobre<br />
os valores e o funcionamento do Primeiro Comando da Capital<br />
(PCC); reportagem sobre os cursinhos populares que contribuem<br />
para que jovens de baixa renda disputem vagas no ensino superior;<br />
e outras reportagens sobre a ameaça radioativa no sul de<br />
Minas Gerais, a urgente revisão da lei de direitos autorais, as várias<br />
alternativas de partos naturais e a renovação da arte popular<br />
com o grupo de teatro da Maré, no Rio de Janeiro.<br />
Enfi m, uma edição com conteúdo denso, diversifi cado, relevante<br />
e de boa qualidade jornalística. Aproveite!<br />
EDITOR: Hamilton Octavio de Souza EDITORA ADJUNTA: Tatiana Merlino EDITORES ESPECIAIS: José Arbex Jr e Renato Pompeu EDITORA DE ARTE: Lucia Tavares ASSISTENTE DE ARTE: Henrique Koblitz Essinger EDITOR DE FOTOGRAFIA: Walter Firmo<br />
REPÓRTERES: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau CORRESPONDENTES: Marcelo Salles (Rio de Janeiro) e Anelise Sanchez (Roma) SECRETÁRIA DA REDAÇÃO: Simone Alves REVISORA: Luiza Delamare DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann<br />
CIRCULAÇÃO: Pedro Nabuco de Araújo RELAÇÕES INSTITUCIONAIS: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Priscila Nunes CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon SÍTIO: Débora Prado<br />
de Oliveira, Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau ASSESSORIA DE IMPRENSA: Kyra Piscitelli APOIO: Maura Carvalho, Douglas Jerônimo e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Joze de Cassia, Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco<br />
Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9972-0741.<br />
JORNALISTA RESPONSÁVEL: HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA (MTB 11.242)<br />
DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO<br />
CAROS AMIGOS, ano XIV, nº 160, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo.<br />
Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. IMPRESSÃO: Bangraf<br />
REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP<br />
sumário<br />
04 Guto Lacaz<br />
05 Caros Leitores<br />
07 José Arbex Jr. lembra que a direita europeia continua antissemita.<br />
08 Joel Rufi no dos Santos comenta o racismo e o Getúlio Vargas do futebol.<br />
Guilherme Scalzilli defende o direito democrático de não votar.<br />
09 Ferréz presta homenagem ao escritor que escrevia com total liberdade.<br />
Gilberto Felisberto Vasconcellos questiona: quem pode falar em natureza?<br />
10 Marcos Bagno critica o português engessado pelos gramáticos normativos.<br />
Mc Leonardo debate se a ocasião faz o ladrão ou se o ladrão faz a ocasião.<br />
11 Pedro Alexandre Sanches em Paçoca: as compositoras de todos os tempos.<br />
12 Entrevista com Frei Betto: análise crítica do poder e da realidade brasileira.<br />
17 Glauco Mattoso em Porca Miséria: o nazismo fascina os cineastas.<br />
Eduardo Matarazzo Suplicy elogia a moda como fator de inclusão social.<br />
18 Rodrigo Vianna em Tacape: a liderança de Dunga versus Rede Globo.<br />
Fidel Castro alerta sobre o fanatismo terrorista do Estado de Israel.<br />
19 João Pedro Stedile espera que os candidatos debatam os problemas do povo.<br />
Ana Miranda conta a história da diversão improvisada nas beiradas do Brasil.<br />
20 Joelma Couto denuncia a ameaça do lixo nuclear em Poços de Caldas (MG).<br />
23 Frei Betto analisa a mercantilização da água no lugar do direito humano.<br />
Cesar Cardoso lembra a formação do Novo Mundo Europeu pelos tupinambás.<br />
24 Ensaio Fotográfi co de Janaina Wagner: a escola reciclada da Tailândia.<br />
26 Lúcia Rodrigues revela os interesses que sustentam o trabalho escravo.<br />
30 Tatiana Merlino mostra a importância dos cursinhos populares pré-vestibular.<br />
33 Gershon Knispel: Israel é um pequeno império que se condenou à autodestruição.<br />
34 Bárbara Mengardo conta porque as mulheres defendem o parto humanizado.<br />
36 Entrevista com Karina Biondi e Adalton Marques: uma radiografi a do PCC.<br />
40 Marcelo Salles desvenda o bom trabalho artístico do grupo de teatro da Maré.<br />
42 Juliana Sada mostra como está a luta para mudar a lei dos direitos autorais.<br />
44 Renato Pompeu Ideias de Botequim: estudo sobre as capacidades dos candidatos.<br />
45 Emir Sader contesta a tese de que PT e PSDB são iguais.<br />
46 Claudius<br />
ALTERCOM<br />
Associação Brasileira de Empresas e<br />
setembro Empreendedores 2009 caros da Comunicação amigos<br />
-sumário_160.indd 3 02.07.10 17:13:41<br />
3
-guto_160.indd 4 02.07.10 17:29:01
Aniversário<br />
A revista Caros Amigos completou 13 anos<br />
de existência, sob o comando do editor Hamilton<br />
Octávio de Souza e com a contribuição de<br />
José Arbex Jr. e Renato Pompeu, pesos-pesados<br />
do jornalismo nacional. Conta, ainda, com articulistas<br />
de renome. De circulação mensal, mantém<br />
um time de colunistas sem precedente.<br />
A revista alçou ao cenário midiático o espetacular<br />
Ferréz, talentoso cronista da periferia de<br />
São Paulo e dos melhores escritores da nova geração,<br />
e, recentemente, abriu espaço para outras<br />
vozes dos movimentos culturais, como o cantor<br />
e compositor MC Leonardo e o jornalista Pedro<br />
Alexandre Sanches. Toda edição traz, ao menos,<br />
uma entrevista, com as mais diferentes personalidades,<br />
que tem em comum a pertinência do assunto,<br />
a relevância dos pontos de vista e a importância<br />
do entrevistado.<br />
De tiragem limitada, a Caros Amigos é mais<br />
que um veículo de comunicação, é um órgão de<br />
resistência à grande mídia que tem como característica<br />
a independência editorial. Não conta<br />
com patrocínio das corporações capitalistas nacionais<br />
ou multinacionais e nem por isso prescinde<br />
da qualidade, ao contrário, prima pela elegância<br />
na forma e pela consistência no conteúdo.<br />
A assinatura é barata e acessível. Muitos duvidaram<br />
que um projeto tão audacioso e revolucionário<br />
pudesse dar certo. E já se passaram 13 anos e<br />
157 edições. Vida longa à revista Caros Amigos.<br />
Luís José Bassoli, Taquaritinga/SP<br />
Caros leitores<br />
CAros Amigos<br />
Gosto muito da revista. Já fui assinante e<br />
sempre levei a Caros Amigos para a sala de aula<br />
com os meus alunos. Vivo em Lisboa onde, infelizmente,<br />
nunca encontro a revista, e por isso<br />
leio pela internet.<br />
Lilian Moura<br />
Gostaria de sugerir uma entrevista com Marilena<br />
Chauí, filósofa e historiadora de filosofia<br />
brasileira; uma importante figura intelectual.<br />
Aproveito para parabenizar a resista, que promove<br />
uma opção inteligente e verdadeiramente crítica<br />
de jornalismo.<br />
Monique Calvo<br />
Joel rufino e ChiCo XAvier<br />
Nossa intenção aqui não é submeter Mestre<br />
Didi ao crivo dos “critérios de verdade” do “ceticismo<br />
racionalista” defendido por Joel Rufino<br />
dos Santos para lançar Chico Xavier na fogueira<br />
ou “vala comum” em seu artigo publicado em<br />
maio (edição 158). Acredito que o médium Chico<br />
Xavier foi colocado em situação desrespeitosa. A<br />
linha de argumentação se tornou ainda mais infeliz<br />
diante da pergunta seguida de resposta que<br />
o autor apresenta no seguinte tom: “por que a<br />
idade da ciência e da técnica é também a da crença,<br />
do misticismo, da astrologia, da cientologia,<br />
dos gnomos, dos Chico Xavier? Bom, primeiro<br />
porque é um bom negócio”.Mas por que trazer<br />
até nós Mestre Didi, líder espiritual da comunida-<br />
de Nagô no Brasil? Apenas para lembrar ao Joel<br />
Rufino que o ceticismo-racionalista manifestado<br />
por ele foi parcial e preconceituoso e visou atacar<br />
a crença espírita e não outra, talvez por um motivo<br />
pragmático admitido por ele ao reclamar que<br />
“hoje se tornou comum alunos evangélicos e espíritas<br />
confrontarem professores”. Parcial e preconceituoso<br />
porque certamente Joel Rufino não<br />
deixaria de ir a um programa de rádio que abordasse<br />
a vida e a obra de Mestre Didi, com o fez<br />
na ocasião em que o personagem em foco seria<br />
Chico Xavier; ainda mais justificando sua desistência<br />
com o argumento de que seu “ceticismo<br />
sobre a realidade dos espíritos, vida após a morte<br />
etc. acabaria ferindo a susceptibilidade de algum<br />
ouvinte crente”.<br />
Alexandre Ramos de Azevedo, Rio de Janeiro/RJ<br />
ferréz<br />
E aí Ferréz, seus escritos são de tirar o chapéu.<br />
O conhecimento é a principal arma contra<br />
a opressão, suas palavras comprovam isso.<br />
Só gostaria que você incluísse na sua comunidade<br />
as mulheres que foram pioneiras na área<br />
de filosofia, que também sofreram perseguições<br />
e preconceitos. Se queremos eleger mulheres na<br />
política, não podemos deixá-la apenas como a<br />
pilota de um fogão ou cuidando dos filhos. Parabéns,<br />
Ferréz. Espero que você nunca desista<br />
do prazer da escrita que transforma o cotidiano<br />
de sua comunidade.<br />
Maria de Lourdes de Oliveira, Sumarezinho/SP<br />
julho 2010 caros amigos<br />
-Caros leitores_2pags.indd 5 05.07.10 15:44:31<br />
5
6<br />
treze Anos<br />
Prezados Caros Amigos, venho parabenizálos<br />
pelos treze anos de muita luta à frente desse<br />
ideal solidário de fazer notícia com seriedade<br />
e verdade.<br />
José de Alencar Godinho Guimarães<br />
CiDADAniA<br />
Sou leitor ferrenho e assinante da exímia revista<br />
Caros Amigos, a qual considero muito educativa,<br />
tanto por suscitar ações atreladas à cidadania,<br />
quanto por robustecer a consciência acerca<br />
de fatos importantes que ocorrem no Brasil e no<br />
mundo, mas que passam à distância ou com distorções<br />
pela mídia gorda. O perfil de jornalismo<br />
investigativo traçado pelos articulistas/colunistas<br />
tem produzido excelentes matérias, dignas de<br />
suporte para qualquer tipo de discussão em âmbitos<br />
institucionais de toda ordem. Aproveitando,<br />
então, esse veio de comprometimento com<br />
a verdade e com a efetivação do ideal democrático,<br />
eu deixo uma sugestão para uma matéria<br />
importante, que abrange interesse nacional: a<br />
questão do partilhamento dos dividendos da exploração<br />
do petróleo do Pré-Sal, cujo bem pertence<br />
à União.<br />
João P. Guedes<br />
minerADorA vAle<br />
Prezada Tatiana: Li sua matéria na revista Caros<br />
Amigos nº. 158 – sobre as sacanagens da Vale<br />
contra os trabalhadores e o meio ambiente. Gostaria<br />
de parabenizá-la pela brilhante matéria, e<br />
ao mesmo tempo dizer que o maior crime que a<br />
Vale comete é contra os aposentados que ao longo<br />
de muitos anos, ajudaram a construir esta potência<br />
que é hoje a Vale e que foi privatizada pelo<br />
governo FHC a preço de banana.<br />
Antonio Vitor Ramalho, Diretor Presidente da<br />
APECOVALE – Associação dos Aposentados e<br />
Pensionistas da CVRD<br />
mArCo Do PetrÓleo<br />
Estava eu assistindo Bom Dia Brasil, no dia<br />
31 de março, quando me assustei com uma frase<br />
da jornalista Miriam Leitão. Após anunciar<br />
caros amigos julho 2010<br />
Caros leitores<br />
fale conosco<br />
assinatUras<br />
Assine A revistA<br />
sítio: www.carosamigos.com.br<br />
tel.: (11) 2594-0376<br />
(de segunda a sexta-Feira,<br />
das 9 às 18h)<br />
as mudanças propostas pelo Senado brasileiro<br />
para a distribuição dos royalties do petróleo<br />
(que não são nada animadoras), a jornalista<br />
questionou: pra que mudar uma coisa que já<br />
vem dando certo no país há mais de 10 anos?<br />
Gostaria que a revista Caros Amigos me oferecesse<br />
oportunidade de devolver uma pergunta à<br />
jornalista. Deu certo pra quem? Para os grandes<br />
investidores internacionais? Para aqueles<br />
que embolsaram os grandes lucros do petróleo?<br />
Toda vez que sobrevoo de helicóptero a cidade<br />
petrolífera de Macaé-RJ, para embarcar nas<br />
sondas de perfuração, vejo tanta pobreza, tantas<br />
favelas espalhadas pela cidade, fico me perguntando<br />
onde foi parar todo esse lucro do petróleo.<br />
Com certeza não foi nas mãos do povo.<br />
Sugiro que a jornalista Miriam Leitão faça uma<br />
visita à cidade de Macaé e pergunte ao povo<br />
macaense se esse modelo vem dando certo para<br />
eles. Agradeço à Caros Amigos por nos oferecer<br />
essa oportunidade de questionar, e por estar<br />
sempre nos conscientizando a lutar por um país<br />
mais igualitário.<br />
Matheus Rufino Oliveira - Engenheiro de Petróleo<br />
– Petrobras<br />
CinemA PoPulAr<br />
Marcelo Salles, gostei muito da forma como<br />
contou a história dos dois cineastas cariocas (Júlio<br />
Pecly e Paulo Silva)-publicada na edição 158.<br />
A forma como cada um buscou ser profissional<br />
da sétima arte, as dificuldades que tiveram e ainda<br />
tem até hoje fizeram com que lesse com muito<br />
mais atenção o artigo desse grande “manancial”<br />
de ideias chamado Caros Amigos. Ao ler sobre a<br />
história desses dois grandes homens sigo com esperança<br />
de ver o aumento de filmes com identidade<br />
e originalidade tipicamente brasileiras. Afinal,<br />
a revolução pode estar aí também.<br />
Pedro Eugenio Castro Muniz.<br />
Olá, Marcelo, parabéns pela matéria (sobre o<br />
cinema de Júlio e Paulo): objetiva, enxuta, com<br />
conteúdo e que nos faz acreditar que tudo tem<br />
jeito. Muito legal mesmo. Leitura deliciosa.<br />
Marilson Ottoni<br />
serviço de atendimento<br />
ao assinante<br />
Para registrar mudança de endereço; esClareCer dúvidas<br />
sobre os Prazos de reCebimento da revista; reClamações;<br />
venCimento e renovações da assinatura.<br />
emeio: atendimento@Carosamigos.Com.br<br />
novo tel.: (11) 2594-0376<br />
Crime heDionDo<br />
Na edição de fevereiro de 2010, no brilhante<br />
artigo do escritor Frei Betto, houve um erro. Tortura<br />
é crime hediondo, inafiançável e insuscetível<br />
de graça ou anistia como diz a lei 9.455, de<br />
7 de abril de 1997, e não imprescritível como fez<br />
referência o autor. Espero poder colaborar mais<br />
com essa excelente revista e permanecer em contato<br />
apesar de não ser assinante.<br />
Lucas Filho<br />
resPostA De frei Betto<br />
A tortura é um crime hediondo, não é ato político<br />
nem contingência histórica e afeta toda a humanidade,<br />
na medida em que a condição humana<br />
é violentada na pessoa submetida a esse crime.<br />
Quando alguém é torturado, somos todos atingidos<br />
duplamente: em nossa humanidade e em nossa<br />
cidadania. A prática da tortura é inaceitável e<br />
seus executores deverão ser punidos a qualquer<br />
tempo. O Brasil é signatário de tratados internacionais<br />
que o incluem em diversos sistemas de<br />
proteção dos direitos humanos, inclusive se submetendo<br />
ao julgamento de organismos internacionais,<br />
especialmente ao International Criminal<br />
Court (Tribunal Internacional), criado pelo Estatuto<br />
de Roma, que não estabelece prescrição para<br />
os crimes contra a humanidade, entre eles definidos<br />
a tortura e a prática de outros atos desumanos<br />
que causem grande sofrimento, ou sério dano<br />
ao corpo ou à saúde mental e física de um indivíduo.<br />
O Brasil é igualmente signatário da Convenção<br />
Americana de Direitos Humanos (Pacto de<br />
São José da Costa Rica), que o vincula aos conceitos<br />
dessa Convenção, na medida em que tais<br />
conceitos foram assumidos pelo nosso País, em 6<br />
de novembro de 1992, através do Decreto nº 678,<br />
nos termos do seu artigo 2º, para o fim de alterar<br />
a sua legislação interna, visando à defesa e à integridade<br />
física e moral do indivíduo. Os dois tratados<br />
internacionais citados, assinados pelo Brasil,<br />
são suficientes para esclarecer que a República<br />
não compactua com a prática de atos que violem a<br />
dignidade da pessoa humana, por ser este um dos<br />
fundamentos do Estado Democrático de Direito e<br />
um direito inalienável do indivíduo.<br />
redação<br />
Comentários sobre<br />
o Conteúdo editorial, sugestões<br />
e CrítiCas a matérias.<br />
emeio: redaCao@carosamigos.com.br<br />
Fax: (11) 2594-0351<br />
-Caros leitores_2pags.indd 6 02.07.10 17:47:49<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br
José Arbex Jr.<br />
Uma guerra antissemita<br />
para salvar o capital<br />
“Israel é a nossa primeira linha de defesa<br />
em uma agitada região que está constantemente sob o<br />
risco de cair no caos; uma região que é vital para a segurança<br />
energética mundial devido à nossa dependência<br />
excessiva de petróleo do Oriente Médio; uma região<br />
que forma a linha de frente na luta contra o extremismo.<br />
Se Israel cai, todos nós cairemos.<br />
(...) O Ocidente está atravessando um período de incerteza<br />
com relação ao futuro do mundo. No sentido<br />
amplo, esta incerteza é causada por uma espécie de<br />
dúvida masoquista sobre nossa própria identidade; pela<br />
regra do politicamente correto; por um multiculturalismo<br />
que nos obriga a curva-nos diante dos outros; e<br />
por um secularismo que, cinicamente, nos cega, mesmo<br />
quando somos confrontados por membros do jihad promovendo<br />
a encarnação mais fanática de sua fé. Deixar<br />
Israel à sua própria sorte, neste momento crucial, serviria<br />
apenas para ilustrar o quanto afundamos e como<br />
nosso declínio inexorável agora se torna eminente.<br />
(...) Israel é uma parte fundamental do Ocidente. O<br />
Ocidente é o que é graças às suas raízes judaico-cristãs.<br />
Se o elemento judeu dessas raízes for retirado e perdemos<br />
Israel, também estamos perdidos. Quer queira ou<br />
não, nosso destino está interligado.”<br />
Os trechos acima fazem parte de um texto<br />
de José Maria Aznar, primeiro ministro da Espanha<br />
entre 1996 e 2004, publicado no Times de Londres,<br />
em 17 de junho. O texto tem o mérito da extrema<br />
clareza, equiparável ao seu cinismo colonialista. Aznar<br />
faz um diagnóstico correto da crise mundial: “O<br />
Ocidente está atravessando um período de incerteza<br />
com relação ao futuro.” Nesse contexto, Israel – “parte<br />
fundamental do Ocidente” - joga um papel essencial<br />
no Oriente Médio, “região que é vital para a segurança<br />
energética mundial”. O raciocínio é sintetizado<br />
pela sentença: “Se Israel cai, todos nós cairemos.”<br />
Aznar não é um fulano qualquer, ainda que o sobrenome<br />
reflita sua vocação intelectual. Ele é filho dileto<br />
do franquismo e expressa os sentimentos mais atrasados,<br />
reacionários e conservadores da Europa branca,<br />
católica e chauvinista. Aznar é um cruzado, como<br />
aqueles que propunham o extermínio dos semitas (judeus<br />
e mouros) na Idade Media, especialmente na Espanha<br />
de Isabel de Castela e Fernando de Aragão. Mas,<br />
dado o papel geopolítico de Israel no mundo contemporâneo,<br />
Aznar é obrigado a fazer o elogio dos judeus,<br />
reservando a babação antissemita ao Islã. É um discurso<br />
bizarro, num país que viveu mais de sete séculos sob<br />
influência moura, e de onde foram expulsos pela Inquisição<br />
de Torquemada (ele próprio, um cristão novo)<br />
centenas de milhares de judeus que procuraram abrigo<br />
exatamente nos países islâmicos.<br />
Discurso bizarro, mas coerente com a estratégia<br />
e os sentimentos da Igreja Católica. Não por acaso, o<br />
Vaticano se opõe frontalmente à entrada da Turquia na<br />
União Europeia, apesar de todas as reformas “ocidentalizantes”<br />
feitas pelos turcos desde 1920, quando Kemal<br />
Ataturk assumiu o poder e tratou de liquidar o que ainda<br />
existia do Império Otomano. Em 2004, o então cardeal<br />
Joseph Ratzinger declarou ao Giornale del Popolo,<br />
da diocese de Lugano (Suíça), que a eventual entrada<br />
da Turquia na UE seria um ato anti-histórico. “Histórica<br />
e culturalmente, a Turquia pouco pode partilhar com<br />
a Europa, pelo que, com todo o respeito que tenho para<br />
com esse país, seria um grande erro englobar a Turquia<br />
na UE”, afirmou o então Prefeito da Congregação para a<br />
Doutrina da Fé (a atual Inquisição). Um país muçulmano<br />
não tem lugar numa Europa cristã, ainda que as reformas<br />
“modernizantes” da Turquia tenham permitido, por<br />
exemplo, a participação de mulheres em eleições antes<br />
de Portugal e de vários países europeus (e do Brasil).<br />
Resumo da ópera: os islâmicos, em particular os turcos,<br />
até são bons o suficiente para servirem de bucha<br />
de canhão da Otan, da qual são membros, mas jamais<br />
para conviver em igualdade com os europeus. É também<br />
a convicção do recém-eleito presidente do Conse-<br />
lho Europeu, o belga Herman Van Rompuy, democrata<br />
cristão e católico fundamentalista. Suas posições inflexíveis<br />
sobre o Islã e a Turquia foram fundamentais para<br />
conseguir o apoio do presidente francês Nicolas Sarkozy<br />
e da chanceler alemã Ângela Merkel (também democrata-cristã)<br />
à sua nomeação ao cargo de presidente do<br />
Conselho. Como é a posição do primeiro-ministro italiano<br />
Sílvio Berlusconi, neofascista que chegou a afirmar<br />
publicamente a “superioridade da civilização ocidental”<br />
comparada ao mundo islâmico.<br />
O discurso de Aznar é, ao mesmo tempo, um diagnóstico<br />
correto da profundidade da crise e uma cínica<br />
preparação para uma guerra de grandes proporções. O<br />
capital, como todos estão carecas de saber, resolve suas<br />
crises econômicas e financeiras com atos selvagens de<br />
destruição em massa – como aconteceu nas guerras<br />
mundiais do século passado. Se, para “salvar a Europa”<br />
(especialmente a Espanha, onde 40% dos jovens estão<br />
desempregados) e o capitalismo for necessário armar<br />
uma guerra total ao Islã, que assim seja. Israel está no<br />
Oriente Médio como posto avançado do “Ocidente” e<br />
deverá cumprir sua parte na nova cruzada, ainda que a<br />
pretexto de defender sua própria existência.<br />
Aznar é o porta-voz do “choque de civilizações”,<br />
pseudo “teoria” sem qualquer fundamento na<br />
realidade, mas tão útil aos propósitos do capital quanto,<br />
nos anos 30, o foram as fantasias mirabolantes dos<br />
“protocolos dos sábios do Sião” para um sujeito chamado<br />
Adolf. O povo israelense e os judeus de todo o<br />
mundo não deveriam se iludir com a aparente simpatia<br />
demonstrada pela extrema direita europeia. Ela continua<br />
tão antissemita como sempre: os seus tambores da<br />
guerra oferecem novamente os filhos de Israel em holocausto,<br />
mas agora em nome da defesa dos “valores<br />
ocidentais”. Se depender da vontade de Aznar e similares,<br />
o capital será recomposto sobre os cadáveres de<br />
milhões de judeus e islâmicos. E a região, “vital para a<br />
segurança energética mundial”, será reconstruída pelas<br />
imensas empreiteiras e corporações europeias e estadunidenses,<br />
para ser novamente transformada em um civilizado<br />
protetorado “ocidental”.<br />
Simples assim.<br />
José Arbex Jr. é jornalista.<br />
junho 2010 caros amigos<br />
-Arbex_160.indd 7 02.07.10 17:42:41<br />
Ilustração: carvall<br />
7
8<br />
O GETÚLIO<br />
DO FUTEBOL<br />
Às vésperas da Copa do Mundo na África<br />
do Sul as livrarias se encheram de livros<br />
sobre futebol. Como combinei que só trataria<br />
nessa coluna de livros antigos, perderei a<br />
oportunidade de apresentar ao leitor Quem<br />
derrubou João Saldanha, de Carlos Ferreira<br />
Vilarinho, ex-líder sindical e pesquisador de<br />
primeira. Ele destoa da livraiada pela sólida<br />
contextualização histórica.<br />
A função do historiador é nos contar como<br />
uma coisa – qualquer coisa – se transformou<br />
em outra. Tanto que uma forma comum de<br />
ignorância, até de intelectuais e doutores, é<br />
tomar a verdade de um momento como a verdade<br />
de sempre. O senso comum, essa fase<br />
elementar do pensamento, toma a árvore<br />
pela floresta. É preciso, em todos os casos,<br />
que o cientista social, especialmente o historiador,<br />
coloque em nosso campo de visão o<br />
conjunto que a árvore esconde. Esse conjunto,<br />
oculto à primeira visada, é que permite<br />
compreender (mais que explicar) o seu exemplar<br />
isolado. A história é a ciência social encarregada<br />
da duração da floresta.<br />
Dos livros sobre futebol que enchem as livrarias<br />
hoje, a maioria ignora a história. Alguns<br />
são interessantes, bem escritos, mas a<br />
dispensam. Em geral, tratam os fatos – jogos,<br />
jogadores, torneios, copas do mundo etc.<br />
– como o legista trata os órgãos do cadáver:<br />
sem passado ou futuro. Como não há mais<br />
vida – outro nome de duração – podem extraí-los<br />
e dissecá-los fora do corpo.<br />
Alguns desses livros contam casos de racismo<br />
em nosso futebol. Tanto explícitos,<br />
documentados, como disfarçados e “sutis”,<br />
exclusões, xingamentos, preterições. Os autores,<br />
ao relatar esses casos, invariavelmente<br />
demonstram indignação, ressalvando que<br />
não fazem sentido numa democracia racial<br />
como a nossa. Reproduzem uma crença do<br />
nosso senso comum, desgastada nos últimos<br />
tempos, mas ainda assim viva.<br />
O passado e o presente brasileiros estão<br />
repletos de preconceito racial e não apenas,<br />
aliás, contra negros, agredindo índios, mestiços,<br />
nordestinos, judeus, orientais e, em escala<br />
bem menor, mas não desprezível, turcos,<br />
galegos, gringos, polacas, alemães e outros.<br />
Isso é constatado pelo senso comum, é fácil<br />
de ver. A possibilidade de escapar a este<br />
senso comum, de enxergar a floresta, e não<br />
caros amigos julho 2010<br />
amigos de papel<br />
Joel Rufino dos Santos<br />
somente a árvore, é dada pelo conhecimento<br />
histórico.<br />
A história do nosso futebol – ausente de<br />
quase todas as obras que atulham as livrarias<br />
perto da Copa do Mundo – mostraria uma inflexão<br />
correspondente à Revolução de Trinta.<br />
Houve uma revolução também no futebol,<br />
o que levou alguém a chamar Leônidas,<br />
o Diamante Negro, de “o Getúlio Vargas do<br />
futebol”. O jogador negro se tornou hegemônico,<br />
conferindo ao nosso futebol uma maneira<br />
original. Tanto é assim que só então se<br />
diferenciou do argentino, uma outra maneira<br />
original. Essa maneira, logo chamada de<br />
futebol-arte, seduziu o mundo. Desistindo de<br />
imitá-la, os europeus se contentaram em importar<br />
jogadores-artistas. O futebol europeu<br />
tinha, naturalmente, a sua maneira, o futebol-atletismo.<br />
Foi esse, em linhas gerais, o<br />
panorama até os anos 1970.<br />
A globalização que se seguiu criou um padrão<br />
único de jogo: o futebol-força, de resultados,<br />
que aí vemos. O que tem isso a ver com<br />
racismo? Racismo é uma forma social de esquizofrenia:<br />
trocamos a consciência do que<br />
nos caracteriza pelo delírio. Separamos o negro<br />
do Brasil.<br />
Essa é a floresta.<br />
Joel Rufino é historiador e escritor.<br />
Guilherme Scalzilli<br />
O direitO<br />
de não votar<br />
O voto obrigatório ofende os princípios<br />
democráticos. O exercício da cidadania<br />
pressupõe liberdade ampla e soberana de escolha,<br />
inclusive a de abster-se do processo eleitoral.<br />
A autonomia do indivíduo deve ser preservada<br />
com a mediação legal, jamais tolhida por ela.<br />
Impor direitos a quem os desfruta é um absurdo<br />
conceitual.<br />
O fato de o Estado brasileiro ser pródigo nessas<br />
contradições não as torna mais aceitáveis. Os<br />
paralelos distorcidos entre o comparecimento às<br />
seções eleitorais e outros “deveres cívicos” apenas<br />
realça o caráter despótico de rotinas que, se<br />
não foram instituídas por ditaduras, nasceram de<br />
semelhante espírito. O serviço militar, por exemplo,<br />
é um arcaísmo prejudicial que não serve a<br />
comparações positivas.<br />
Não se trata de louvar o abstencionismo,<br />
e sim de aceitá-lo como opção válida, entre<br />
tantas mais ou menos discutíveis. Ao cidadão<br />
já é permitido recusar instrumentos de atuação<br />
política, registrar votos úteis e de protesto ou<br />
até anulá-los. Sua presença física empresta uma<br />
ilusão de legitimidade ao sistema democrático,<br />
mas nem de longe o faz representativo. O sufrágio<br />
desempenhado a contragosto alimenta falsos<br />
consensos e perpetua uma fragilidade institucional<br />
perigosa, pois artificial e oportunista.<br />
A afirmação de que o povo brasileiro não possui<br />
maturidade ou instrução para decidir revela<br />
preconceito elitista e autoritário. O voto facultativo<br />
assusta as facções hegemônicas porque<br />
transformaria a relação entre candidatos, partidos<br />
e eleitores. Para todos os efeitos, seria um<br />
mecanismo de conscientização política: mesmo<br />
a indiferença generalizada constrangeria governantes<br />
e legisladores a recompor os vínculos<br />
perdidos com a sociedade.<br />
O plebiscito é a maneira mais pedagógica<br />
e inquestionável de resolver a questão. Não<br />
surpreende, portanto, que seus adversários o repudiem<br />
duplamente.<br />
Guilherme Scalzilli é historiador e escritor.<br />
Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela).<br />
www.guilhermescalzilli.blogspot.com<br />
-Joel+Scalzilli_160.indd 8 02.07.10 17:27:11<br />
Ilustração: hke...
Gilberto Felisberto Vasconcellos<br />
Capitalismo verde é sujeira:<br />
Marina e Gabeira<br />
Agora todo mundo capitalista deu para ser verde.<br />
A General Eletric prega a “ecoimaginação”, ou este oxímoro insano: “carvão<br />
limpo”. Na propaganda ela põe um elefantão cantando “Singing in the rain”.<br />
O barão da mídia, Murdoch, que está louquinho para derrubar Chávez, declarou:<br />
“sinto orgulho de ser verde”.<br />
É impossível existir capitalismo sem toxina.<br />
A mistificação do capitalismo verde é reproduzida por aqui com Gabeira e<br />
Marina. Como é que alguém a favor do lucro capitalista evangélico pode falar<br />
em natureza? A única coisa verdecoevangélica que existe é a nota verde<br />
do dólar.<br />
Marina é pró-capitalismo, portanto é antiecológica. Seus assessores almofadinhas<br />
e janotas são udenistas e tucanos de corpo e finanças, portanto contra<br />
a minhoca, o arado natural, Eles são entusiastas da Monsanto que inventou<br />
o herbicida round up devastador da natureza e que financia a biotecnologia e<br />
a engenharia genética.<br />
Marina, me dizia Marcelo Guimarães, não moveu uma palha pelo projeto<br />
das micro-destilarias a álcool em pequenas propriedades; agora ela se diz devota<br />
do álcool e óleos vegetais, só que produzidos em economia de escala com<br />
plantation latifundiária para exportação multinacional.<br />
Marina é adversária da reforma agrária radical, portanto joga no<br />
time do ecocídio, Serra batalhou pela aprovação da lei das patentes para felicidade<br />
das grandes corporações multinacionais na Câmara e Senado.<br />
A agricultura capitalista multinacional arruína a terra e envenena as pessoas.<br />
Tudo isso sob o comando dos grãos geneticamente manipulados pela Monsanto,<br />
que é a Rede Globo da agricultura.<br />
A juventude não poderá cair na esparrela agrobiocancerigenotucano. O descalabro<br />
da natureza é causado pelo regime social chamado capitalismo, por<br />
conseguinte crítica ecológica que não seja anticapitalista é conversa de urubu<br />
com bode.<br />
E Gabeira? É a ideologia pós-moderna do Banco Mundial em ação, que<br />
no Rio de Janeiro é a expressão da burguesia comercial e imobiliária, de onde<br />
provêm Carlos Lacerda e César Maia.<br />
Nunca entendi a notoriedade de Gabeira. Chegou da Suécia de tanguinha<br />
de crochê na praia pousando de “candidato jovem” pré-Collor para destruir os<br />
CIEPs de Darcy Ribeiro.<br />
Glauber Rocha tinha a maior bronca dele porque queria tacar fogo<br />
no filme Terra em Transe. Glauber dizia que a ambição de Gabeira era freqüentar<br />
a casa de Caetano Veloso, que convenhamos não é o barraco de Goethe.<br />
Glauber escreveu: “traíram Jango em 1964 e 1974, destruíram o projeto de<br />
nação que ficou no esqueleto do Gabeira”.<br />
Sobre as flores do estilo, pergunto quem foi o gênio linguista que bolou o<br />
mote gerundiano da campanha de Dilma? Refiro-me à palavra de ordem: “Para<br />
o Brasil seguir mudando”. Que coisa feia. É isso que dá colocar campanha política<br />
em agência de publicidade.<br />
Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.<br />
Ferréz<br />
Liberdade<br />
De 1 a ponta a outra do globo viajar voar,<br />
deslizar por uma montanha, escalar um iceberg um<br />
canto do mundo inexplorado um planeta solitário,<br />
uma casa de madeira, abdução alienígena uma<br />
ilha com 2 pessoas você de manhã, e outra você de<br />
tarde sem cercas, cobranças jogando bola descalço<br />
mais feliz que os cheios de $ e logos mais feliz em<br />
plena tarde de domingo não está confinado, nem<br />
no condomínio fechado nem no barraco.<br />
uma visita inesperada, é ela, ela chegou e<br />
trouxe a paz entrar no oculto um pensamento sem<br />
carga uma ideia desbaratinada sem pensar demais<br />
para falar, sem imaginar quem vai ouvir, o que vai<br />
achar não precisar prestar conta ser feliz de ponta<br />
a ponta desapegar, deixar de comprar deixar de<br />
colecionar coisas que só te fazem cansar existência<br />
livre, como era o fator primordial existir sem culpa<br />
como era antes o principal sem precisar usar a palavra<br />
maldita “politicagem”<br />
ser transparente sem precisar montar<br />
movimento pra poder amar, pra poder transar<br />
pra poder beber, pra poder se abstinar sem ter que<br />
provar nada torcer para ninguém viver um dia por<br />
vez sem planos pro futuro, que cansam e na moral<br />
não se realizam sem postura, sem falar a realidade<br />
pura e nua ser chamado de sincericida não falar a<br />
mais porque pode pagar com a vida não falar que<br />
volta depois não dizer que gostou só para ser simpático<br />
é verdade, colar num lugar pela poesia, pela<br />
arte não pela bebida e vaidade num ter elo com<br />
ninguém a não ser quem agente gosta não esperar<br />
virar para falar pelas costas quero isso, e vou perseguir,<br />
mesmo que o público se restrinja mesmo que<br />
não lote mais a mesa de autógrafos mesmo que o<br />
show não seja apoteótico porque no inicio era assim,<br />
o coração batia do inicio ao fim e hoje já tá<br />
tão desgastado, que as vezes bate mas por embalo<br />
a fita é essa e não da mais para prolongar nem<br />
pagar simpatia para o número de toques alcançar<br />
resumindo tudo ao espiritual não a nada de mais<br />
para continuar escrevendo que valha a pena vocês<br />
estarem lendo a não ser para terminar ir até onde<br />
dar, sem ponto para finalizar<br />
Ferréz é datilógrafo e reside em regime semiaberto<br />
na periferia de São Paulo.<br />
julho 2010 caros amigos<br />
-gilberto+ferres_160.indd 9 02.07.10 17:30:27<br />
9
10<br />
caros amigos julho 2010<br />
falar brasileiro<br />
Marcos Bagno<br />
LÍNGUA DIFÍCIL?<br />
Deu na televisão. O reitor de uma universidade<br />
pública, ao apresentar uma avaliação<br />
do sistema de cotas usado pela instituição,<br />
explicou que os alunos cotistas apresentam<br />
dificuldades maiores que os não-cotistas nas<br />
áreas de português e matemática. E concluiu<br />
com a seguinte pérola: “[o português] é uma<br />
lingua muito difícil, em geral. E os brasileiros<br />
ainda a maltratam demasiadamente. Mas<br />
esse é um problema, porque os setores populares<br />
falam um português no cotidiano muito<br />
errado, muito diferente do português douto”.<br />
Transcrevo as palavras do site da emissora.<br />
É impressionante o absoluto descaso que<br />
tantos pesquisadores de outras ciências humanas<br />
dedicam à linguagem. Tomam a linguagem<br />
como um dado, como algo pronto<br />
e acabado, uma entidade monolítica, um<br />
ponto pacífico, quando na verdade a linguagem<br />
é um fato social que tem de ser analisado,<br />
a cada momento, como palco de conflitos,<br />
como arma simbólica na luta pelo poder,<br />
como uma mercadoria cuja posse confere<br />
prestígio a uns, que estigmatizam os demais.<br />
Mais impressionante, para não dizer chocante,<br />
é descobrir, pesquisando sobre o reitor,<br />
que ele é psicólogo social e trabalha com as<br />
noções de representação.<br />
Numa fala tão breve, o magnífico conseguiu<br />
alinhar três dos principais mitos que<br />
configuram o preconceito linguístico: a língua<br />
é “difícil”, os brasileiros “a maltratam” e<br />
que as camadas populares falam “muito errado”.<br />
Meio século de pesquisas importantes da<br />
sociolinguística e da análise do discurso, bem<br />
como de outras disciplinas, desconstruiu esses<br />
mitos, demonstrando que são meras superstições<br />
culturais, decorrentes - precisamente -<br />
daqueles conflitos sociais e políticos que referi<br />
acima. Mas, por alguma razão misteriosa<br />
que vale a pena investigar, os resultados das<br />
pesquisas dos linguistas não conseguem ultrapassar<br />
os meios acadêmicos. Aliás, são barrados<br />
dentro do próprio ambiente universitário,<br />
como evidencia a declaração do reitor.<br />
O português não é uma língua difícil porque<br />
nenhuma língua é difícil para seus falantes<br />
nativos. Difícil é um brasileiro aprender<br />
húngaro, tagalo ou xavante, línguas sem<br />
nenhum parentesco com a nossa. O problema<br />
é que, ao longo da história, o nome “portu-<br />
guês” passou a ser aplicado a uma modalidade<br />
muito específica de língua: a norma-padrão<br />
codificada pelos gramáticos normativos.<br />
Essa norma-padrão, estreitamente vinculada<br />
à língua escrita mais monitorada, sobretudo<br />
a literária, é uma entidade que se pretende<br />
homogênea, uniforme e duradoura. Pelo processo<br />
inevitável da mudança linguística, esse<br />
modelo idealizado de língua “certa”, que já<br />
nasce distanciado da língua viva, real, se torna<br />
ainda mais estranho, anti-intuitivo, quase<br />
uma língua estrangeira. É essa norma-padrão<br />
do português, que não leva em conta a língua<br />
realmente falada pelos brasileiros, inclusive<br />
os chamados cultos, que é difícil, incompreensível<br />
muitas vezes, ilógica quase sempre.<br />
Querer que até hoje se aprenda a conjugação<br />
verbal com o pronome “vós”, negando<br />
ao mesmo tempo a predominância do “você”<br />
e do “a gente”, é um absurdo sem tamanho.<br />
Sugiro ao senhor reitor que consulte os linguistas<br />
de sua própria universidade, um dos<br />
quais recentemente publicou uma excelente<br />
gramática, voltada para a descrição do português<br />
brasileiro. Talvez assim ele possa defender<br />
o sistema de cotas sem chafurdar em<br />
outros preconceitos.<br />
Marcos Bagno é linguista e escritor.<br />
www.marcosbagno.com.br<br />
Mc Leonardo<br />
A ocAsião<br />
faz o ladrão?<br />
Tenho feito essa pergunta a diversas<br />
pessoas, e as respostas têm sido “não” na maioria<br />
das vezes.<br />
Mas esse “não” vem acompanhado de explicações<br />
diferentes como: “Se a pessoa é honesta não<br />
existe ocasião na qual ela possa roubar.”<br />
Ou: “Cansamos de ver casos onde o sujeito tem<br />
oportunidade e necessidade e não rouba.”<br />
Mas foi do meu irmão Lucio que eu ouvi a seguinte<br />
definição: “A ocasião não faz o ladrão, a<br />
ocasião faz o ladrão roubar”.<br />
Bom, se formos nos basear pela definição dele<br />
podemos chegar à conclusão que todos nós somos<br />
ladrões, já que todos nós já roubamos alguma coisa,<br />
por menor que seja o valor.<br />
Eu prefiro ficar com a tese que o ladrão<br />
é aquele que faz a ocasião, busca a oportunidade<br />
de roubar ou almeja uma posição que o levará<br />
ao fato.<br />
Mesmo que os mais variáveis tipos de roubos<br />
do mundo sejam praticados por sujeitos trajados<br />
de terno e gravata, na maioria das vezes temos em<br />
mente a imagem do ladrão como é cantada pelos<br />
manos do grupo de Rap Racionais MCs, na música<br />
Capítulo 4 Versículo 3: “Aquele moleque de<br />
touca que engatilha e enfia o cano dentro da sua<br />
boca...”<br />
E na musica Mágico de Oz eles falam assim:<br />
“Se diz que moleque de rua rouba. No governo,<br />
na política do Brasil quem não rouba? Ele só não<br />
tem diploma pra roubar, ele não se esconde atrás<br />
de uma farda suja...”<br />
Quando nós falamos dos produtos piratas<br />
que usamos por praticidade, comodidade ou<br />
necessidade, tais como as músicas e filmes que baixamos<br />
na internet e mesmo os livros que fazemos<br />
cópias dentro das próprias universidades, nos vemos<br />
na obrigação de mudarmos a legislação ou nos<br />
assumir como criminosos ladrões.<br />
Mas esse é outro assunto que eu prometo falar<br />
mais adiante em alguma outra OCASIÃO, isso é, se<br />
ninguém roubar o espaço que ocupo aqui.<br />
Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e<br />
compositor.<br />
-Bagno+McLeo_160.indd 10 02.07.10 17:48:50<br />
Ilustração: Debora borba/deboraborba@gmail.com
PAÇOCA<br />
Pedro Alexandre Sanches<br />
Brasil, um país de<br />
COmPOsitOrAs<br />
“Boiar no mar é de graça, é de graça,<br />
é de graça/ eu vou fazer uma ciranda pra botar<br />
o disco/ na lei de incentivo à cultura, à cultura,<br />
à cultura/ mas é preciso entrar no gráfico/<br />
no mercado fonográfico/ mas eu não sei negociar/<br />
eu só sei tocar meu tamborzinho e olhe<br />
lá.” Não era de esperar que o labririnto das leis<br />
de incentivo se prestasse a virar tema de música<br />
pop, mas é o que acontece na Ciranda do<br />
Incentivo, uma das 13 faixas de Eu Menti pra<br />
Você, de Karina Buhr.<br />
Nascida na Bahia e criada em Pernambuco,<br />
ela já era conhecida como integrante do grupo<br />
pernambucano Comadre Fulozinha, mas em Eu<br />
Menti pra Você chega à estreia solo e à maioridade<br />
como artista autora da própria obra. A<br />
ironia de Ciranda do Incentivo é leve e bem-humorada,<br />
mas vem fazer companhia a flagrantes<br />
de posicionamento ainda raros na música<br />
jovem brasileira – exemplo recente notável de<br />
engajamento é Reforma Agrária no Ar (2008),<br />
de Wado. “É contra o artista mudo, é contra o<br />
ouvinte surdo, é contra o latifúndio das ondas<br />
do rádio”, vibra a letra cantada pelo catarinense<br />
criado em Alagoas.<br />
Mais sutil, Karina distribui críticas afetuosas<br />
nas quais a leveza é o mote condutor,<br />
como acontece no reggae anti-estresse Plástico<br />
Bolha: “Hoje eu não estou a fim de corre-corre,<br />
confusão/ eu quero passar a tarde estourando<br />
plástico bolha”.<br />
“Vou ficar mais um pouquinho/ para ver<br />
se acontece alguma coisa nessa tarde de domingo/<br />
congelo o tempo pra eu ficar devagarinho/<br />
com as coisas que eu gosto e que eu sei<br />
que são efêmeras.” O pedido de mais calma e<br />
serenidade, por favor, inicia a faixa-título do<br />
primeiro CD de Tulipa Ruiz, que sabe que as<br />
coisas são efêmeras e ela também é, e batiza a<br />
estreia de Efêmera.<br />
Tulipa é paulista de Santos, cresceu<br />
em Minas Gerais, canta com fluência e leveza<br />
e assina (sozinha ou em parceria) dez das onze<br />
canções do disco – a décima-primeira, Às Ve-<br />
zes, foi composta por seu pai, Luiz Chagas, que<br />
foi guitarrista da banda Isca de Polícia, de Itamar<br />
Assumpção. As interligações com a chamada<br />
“vanguarda paulista” afloram em Efêmera, mas<br />
prioritariamente Tulipa gosta de se comunicar e<br />
de, como dizia Gal Costa em 1973, “cantar como<br />
um passarinho”. “A ordem das árvores não altera<br />
o passarinho”, canta (e compõe), como um passarinho,<br />
em A Ordem das Árvores.<br />
Integrante da trupe multivalente conhecida<br />
como Orquestra Imperial, a carioca Nina Becker<br />
estreia solo com dois discos simultâneos,<br />
um chamado Azul e outro, Vermelho. Dona das<br />
rédeas, ela surge discreta, serena, desapressada<br />
e... autora, em baladas como Madrugada Branca.<br />
“No vapor da madrugada/ no sono dos sons/ um<br />
sonho dorme profundo/ e esconde uma verdade/<br />
que não se adivinha/ enquanto escrevo meu<br />
mundo/ que tem bordas invisíveis”, ela tateia seu<br />
próprio mundo.<br />
Plural, Nina se divide entre parcerias<br />
com colegas (rapazes) como Moreno Veloso, Domenico<br />
Lancellotti e Nervoso, interpreta novos<br />
como Romulo Froes (em Flor Vermelha) e reinterpreta<br />
antigas de Jorge Mautner (Samba Jambo<br />
e Lágrimas Negras, esta lançada em 1974 por<br />
Gal Costa). Em todos os campos, sai-se igualmente<br />
bem, e soa igualmente elegante.<br />
O rap é a linguagem-guia de Lurdez da Luz,<br />
integrante do grupo paulistano Mamelo Sound<br />
System e autora-rimadora do CD solo inaugural<br />
Lurdez da Luz. Gal Costa também sobrevoa seu<br />
trabalho, como no sampler que conduz a última<br />
faixa, de Meu Nome É Gal, composta por Roberto<br />
e Erasmo Carlos para a porta-voz tropicalista<br />
cantar, em 1969.<br />
Não seria absurdo afirmar que sua homenagem<br />
é prima-irmã da ironia fina de Karina na<br />
Ciranda do Incentivo. O rap Fim da Egotrip começa<br />
com os acordes iniciais de Meu Nome É Gal, e<br />
a voz de Lurdez ameaça: “Meu nome... Meu nome<br />
é... Meu nome é o de menos agora”. Sim, já temos<br />
um passado grandioso a reverenciar, mas os tempos<br />
de agora são outros, profundamente diferen-<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
tes dos anos heroicos da tal MPB – mas nem por<br />
isso piores ou inferiores, como o pessimismo popular<br />
brasileiro adora martelar.<br />
Fim da Egotrip prossegue e vira um manifesto<br />
de orgulho feminino. “Eu quero é dizer<br />
outros nomes/ peço licença a Quelé, Lady Day, ‘a<br />
Guerreira’, ‘a Pimentinha’”, tratando pelos apelidos<br />
Clementina de Jesus, Billie Holiday, Clara<br />
Nunes e Elis Regina. A letra evolui com citações<br />
à genial violonista Rosinha de Valença, às<br />
míticas “Janaína, Jussara, Jurema, Iara”, à freudiana<br />
Elektra, à dama do lotação... “Se é pra se<br />
perder, que seja na realidade”, afirma, em reação<br />
afetiva (mas nada submissa) aos versos “se eu tiver<br />
que me perder/ seja com você/ ou pensando<br />
em você/ só perdendo o juízo eu acho a cabeça”,<br />
da balada Os Dentes Brancos do Mundo, de Marcos<br />
Valle e Paulo Sérgio Valle, interpretada em<br />
1969 por vozes como as das só-cantoras Evinha<br />
e Claudette Soares.<br />
Os exemplos acima são só exemplos: é impressionante<br />
a quantidade de compositoras que<br />
têm apresentado trabalhos de brilho. Exemplos,<br />
por ordem alfabética? Aline Calixto, Ana Cañas,<br />
Andreia Dias, Céu, Ceumar, Cibelle, Érika Machado,<br />
Gabi Amarantos, Lulina, Marcela Bellas,<br />
Paula Fernandes, Roberta Campos, Tiê, Tita Lima,<br />
Vanessa Bumabgny, (para não falar, já falando,<br />
das mais consolidadas comercialmente Ana Carolina,<br />
Mallu Magalhães, Fernanda Takai, Pitty,<br />
Teresa Cristina, Vanessa da Mata)...<br />
Somos um lugar absurdamente musical<br />
que já gostou de se intitular “país das cantoras”,<br />
em proposição que por décadas escondia<br />
atrás de si um insidioso “recolha-se ao seu lugar”.<br />
Num plantel dominado por clubes machistas<br />
do Bolinha, não foi nada fácil ser Chiquinha<br />
Gonzaga, Dolores Duran, Maysa, Rita Lee, Sueli<br />
Costa, Luli e Lucina, Marina Lima... Pois temos<br />
mudado à beça, e caminhamos resolutamente<br />
para ser um país de compositoras.<br />
Pedro Alexandre Sanches é jornalista.<br />
julho 2010 caros amigos<br />
-Pedro Alexandre_160.indd 11 02.07.10 17:16:50<br />
foto: jesus carlos. ilustração: lux tavares.<br />
11
12<br />
caros amigos julho 2010<br />
entrevista FREI BETTO<br />
Participaram: Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues e Tatiana Merlino. Fotos Paulo Pereira<br />
“O Brasil<br />
se tornou<br />
o paraíso<br />
do capital<br />
especulativo”<br />
Frei Betto fala sobre a chegada do PT ao poder, rumos da esquerda e governo Lula.<br />
frade dominicano, jornalista, escritor, autor de<br />
52 livros, Carlos Alberto Libânio Christo, mais<br />
conhecido como Frei Betto, foi militante contra<br />
a ditadura civil-militar, ajudou na fundação<br />
da CUT e do PT. Foi assessor da Presidência da<br />
República para assuntos sociais, onde coordenou<br />
o programa Fome Zero. Nesta entrevista, Betto<br />
fala sobre o período em que trabalhou como jornalista,<br />
a chegada do PT ao poder, os rumos da<br />
esquerda do país e sobre o governo Lula. Para ele,<br />
embora o governo atual seja “o melhor da história<br />
republicana do Brasil”, o PT e um grupo hegemônico<br />
que o comanda “trocaram um projeto<br />
de Brasil por um projeto de poder”. Entre as lições<br />
que aprendeu no período em que esteve no Planalto,<br />
uma delas é que “o governo é que nem feijão,<br />
só funciona na panela de pressão”.<br />
Hamilton Octavio de Souza - Fale sobre você,<br />
onde nasceu, onde estudou, como começou a<br />
ter militância?<br />
Frei Betto - Sou mineiro, e como diz o Drummond,<br />
a gente sai de Minas, mas Minas não sai<br />
da gente. Meu pai era advogado e terminou a sua<br />
vida profissional como juiz. Era homem de extrema<br />
direita e terminou de extrema esquerda. A<br />
única vez que saiu do Brasil foi para ir a Cuba. A<br />
minha mãe é uma especialista em culinária, tem<br />
oito livros de culinária, entre eles o “Fogão de Lenha,<br />
trezentos anos de cozinha mineira”. É considerada<br />
a maior especialista nesse tema no Brasil.<br />
Éramos oito irmãos; um já faleceu, o mais novo.<br />
Hamilton Octavio de Souza - De que cidade<br />
de Minas?<br />
Todos de Belo Horizonte. É um caso raro em uma<br />
cidade que tem pouco mais de 100 anos. Meus pais<br />
também nasceram em Belo Horizonte. Mais raro<br />
ainda: os dois e os oito filhos estudaram no mesmo<br />
grupo escolar Barão do Rio Branco, que há pouco<br />
fez 90 anos. Tive uma infância extremamente feliz,<br />
de moleque de rua, não havia a psicose televisiva.<br />
Brincava-se muito na rua, havia muita leitura,<br />
porque meu pai tinha duas manias: padaria e<br />
livraria. E ele comprava muito mais livros do que<br />
tinha tempo para ler, e não havia cômodo na casa<br />
para servir exclusivamente de biblioteca. Todos os<br />
cômodos, menos o banheiro e a cozinha por razões<br />
óbvias, tinham livros. Creio que minha vocação literária<br />
tenha a ver com isso. Meus pais escreviam,<br />
minha mãe na culinária e ele cronista dos principais<br />
jornais de Belo Horizonte durante mais de<br />
quarenta anos. Bem, depois, com treze anos, entrei<br />
na militância estudantil através da Juventude<br />
Estudantil Católica, a JEC.<br />
Tatiana Merlino - Em que ano foi isso?<br />
Em 1959. Na mesma época entrou o Henriquinho,<br />
que o Brasil conhece como Henfil. Nós dois éramos<br />
considerados muito crianças para pertencer<br />
à JEC. E esse desafio nos levou a nos firmar como<br />
-Frei Betto_160.indd 12 02.07.10 17:33:14
militantes. Claro que o Henfil entrou por influência<br />
do Betinho, um dos fundadores da JEC de Belo<br />
Horizonte e depois foi para a Juventude Universitária<br />
Católica (JUC). E através da JEC é que eu<br />
comecei precocemente a ler muito filosofia, teologia<br />
e literatura. A primeira vez que eu enfrentei<br />
a repressão foi no dia 25 de agosto de 61, quando<br />
o Jânio Quadros renunciou à presidência. Depois,<br />
com 17 anos, fui indicado para a presidência da<br />
JEC. Então, me mudei para o Rio, onde fiquei de<br />
62 a 64 numa república de estudantes, onde moravam<br />
doze rapazes e recebíamos mais uns 20 por<br />
mês que vinham de outros Estados para a UNE,<br />
entre eles o Betinho e o Zé Serra. Nesses três anos<br />
eu percorri o Brasil todo duas vezes, articulando<br />
o movimento. Em 64 entrei na faculdade de jornalismo.<br />
Vocês vão morrer de inveja: meus professores<br />
eram o Tristão de Ataíde, Hermes Lima,<br />
Barbosa Lima Sobrinho, Danton Jobim.<br />
Hamilton Octavio de Souza - Qual a<br />
faculdade?<br />
Chamava Universidade do Brasil, depois acabou.<br />
Tinha grandes figuras da história do jornalismo<br />
brasileiro. Para contrabalançar, tinha o Hélio Viana,<br />
de extrema direita e cunhado do general Castelo<br />
Branco. Em junho de 64 eu estava na faculdade<br />
lá no Rio e fui preso pela primeira vez quando<br />
houve o arrastão da Ação Popular. Fiquei 15 dias<br />
preso, confundido com o Betinho, por conta dessa<br />
coisa de Beto, de JEC e JUC de Belo Horizonte.<br />
Eles estavam atrás do Betinho, que foi o grande<br />
fundador, a grande figura da Ação Popular, que<br />
depois conseguiu sair do país. Daí surgiu aquela<br />
dúvida: será que Deus quer que eu seja religioso?<br />
Crise vocacional forte. E convencido de que eu não<br />
tinha vocação, decidi entrar nos dominicanos em<br />
65, porque não queria chegar aos 40 anos, olhar<br />
para trás e falar: “Ih! Acho que eu errei de caminho”...<br />
Mas eu queria tirar a limpo, ver no que vai<br />
dar. Entrei e isso já são quarenta e cinco anos.<br />
Hamilton Octavio de Souza - Era um<br />
seminário?<br />
Não, porque eu já tinha vinte anos. Os dominicanos<br />
no Brasil não têm seminário. Só aceitam<br />
quem terminou o ensino médio completo ou está<br />
na universidade. Que é melhor porque a pessoa é<br />
mais lúcida, essa ideia de seminário eu acho muito<br />
antipedagógico, é até desumano você colocar<br />
uma criança de 13, 14 anos no seminário. Eu acho<br />
que é por isso que tem tanto problema de pedofilia,<br />
de violência sexual. O cara vive naquela redoma<br />
patriarcal, machista e onde a sexualidade<br />
é sempre considerada pecado, enfim... Mas aí entrei<br />
nos dominicanos em Belo Horizonte. Em 66,<br />
eu vim para São Paulo para fazer filosofia, fiquei<br />
aqui de 66 a 69, aí aconteceram muitas coisas.<br />
Hamilton Octavio de Souza - Você trabalhou<br />
na Folha, não é?<br />
Trabalhei primeiro na revista Realidade. De lá,<br />
fui para a Folha da Tarde, que foi refundada com<br />
Jorge de Miranda Jordão. E lá fiz de tudo, desde<br />
geral até editoria de polícia. Cobri muito movimento<br />
estudantil e depois fui chefe de reporta-<br />
gem, e fui assistente do Zé Celso na montagem<br />
do Rei da Vela. Fui colega do Merlino, na Folha<br />
da Tarde. Além disso, eu estudava Filosofia de<br />
manhã e à noite fazia o curso de antropologia na<br />
Maria Antonia. Em 69 houve o AI-5, eu já estava<br />
bastante pressionado pela repressão. No início de<br />
69, eu decido ir para o Rio Grande do Sul, porque<br />
o cerco estava se fechando, meu projeto era passar<br />
um tempo fora do Brasil, iria para a Alemanha<br />
estudar teologia. Fui para São Leopoldo, onde tinha<br />
um seminário de jesuítas, muito bom, e aí o<br />
Marighella me pediu para montar um esquema de<br />
fazer sair gente pela fronteira Sul com a Argentina<br />
e Uruguai. Um mês antes de eu ir para a Alemanha,<br />
os dominicanos, aqui em São Paulo são<br />
presos. Afinal, sou cercado no Rio Grande do Sul,<br />
consigo fugir uma semana, fui preso, caí numa<br />
cilada. Fiquei quatro anos preso, em São Paulo,<br />
só fiquei um mês preso em Porto Alegre, depois<br />
vim para cá. Foram dois anos como preso político<br />
e dois anos como preso comum, caso raro.<br />
Hamilton Octavio de Souza - Foi na<br />
Tiradentes?<br />
Foram oito prisões diferentes, a Tiradentes foi<br />
uma. Descrevo em detalhes num livro lançado no<br />
ano passado, que ficou quarenta anos guardado,<br />
chama Diário de Fernando, da Rocco. É um diário<br />
que foi do Fernando, um amigo meu, e a gente<br />
levou quarenta anos para publicar.<br />
Lúcia Rodrigues - Por que levou todo esse<br />
tempo?<br />
Primeiro, o Fernando não é jornalista nem historiador,<br />
mas teve o cuidado de anotar em papel<br />
celofane que saía dentro de canetas na visita.<br />
O frade levava uma caneta exatamente igual<br />
à que ele tinha e no meio da conversa trocava a<br />
caneta. Dentro vinha um celofane, depois se desmontava.<br />
Então, nos papéis, tinha coisas assim:<br />
“Paulinho foi para o Doi-Codi”. Ora, que Paulinho?<br />
Que data? Que aconteceu? O Fernando queria<br />
fazer o diário, mas não era do ramo, nem historiador<br />
e nem jornalista; depois de muitos anos<br />
ele falou: “Não Betto, você faz”. Aí teve toda uma<br />
pesquisa para decifrar cada papelzinho daquele,<br />
foi tudo computadorizado, teve até que ler com<br />
lente, porque ele mesmo às vezes não entendia,<br />
não lembrava a anotação. Nos últimos anos, de<br />
2006 a 2009 me dediquei quase que exclusivamente<br />
a esse livro. Ele descreve os que a gente<br />
ficou como, primeiro, preso político, depois comum.<br />
Fomos condenados a quatro anos, e o recurso<br />
nosso no Supremo Tribunal Federal foi julgado,<br />
e reduziram a nossa pena de quatro para<br />
dois anos quando nós completávamos os quatro<br />
anos. Eu brinco que a gente tem um crédito com<br />
a liberdade de dois anos.<br />
Tatiana Merlino - O senhor pediu indenização<br />
para o Estado brasileiro?<br />
Respeito muito quem pediu, mas nunca pedi. Primeiro<br />
porque não quero transformar uma questão<br />
política em uma questão financeira. Acho que<br />
não há dinheiro que pague o que sofri. Depois,<br />
porque embora tenha muita gente que eu respei-<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
te e por quem até lutei para que merecessem a indenização,<br />
acho que tem muita gente que foi com<br />
sede no pote de ouro, gente que recebeu indenizações<br />
milionárias e foi interrogado, esteve uma<br />
semana preso, enfim. Acho que virou uma certa<br />
farra esse negócio, então preferi não pedir. Em<br />
terceiro, porque eu não preciso do dinheiro do<br />
governo, eu consigo sobreviver do meu trabalho.<br />
Isso é dinheiro público, se fosse do bolso dos generais<br />
eu até aceitaria, iria reivindicar, mas não é,<br />
e não quero usar em benefício pessoal.<br />
Tatiana Merlino - Essa não foi uma maneira<br />
do Estado brasileiro reconhecer que essas<br />
pessoas foram realmente presas e torturadas?<br />
Haveria outras maneiras. Por exemplo, o Estado<br />
até hoje não pediu perdão à nação pelo erro<br />
que ele cometeu. Essa é uma das dívidas, inclusive<br />
do governo Lula, que devia pedir perdão, em<br />
nome do Estado, assim como o papa pediu perdão<br />
à humanidade pela condenação de Galileu e<br />
agora de Copérnico.<br />
Lúcia Rodrigues - Mas no governo Lula,<br />
nesse caso recente do STF e da OAB,<br />
mais uma vez manteve a impunidade aos<br />
torturadores.<br />
Eu gostaria inclusive que abrissem os arquivos das<br />
Forças Armadas, continuo lutando por isso. Fiquei<br />
perplexo e horrorizado com a decisão do STF, porque<br />
não só é uma forma de absolvição legal de<br />
crimes hediondos, de lesa-humanidade, imprescritíveis,<br />
inclusive pela legislação dos tratados internacionais<br />
firmados pelo Brasil. Também é uma<br />
forma de abonar a tortura que continua nas delegacias<br />
praticada pelos policiais civis e militares<br />
Brasil afora. Enquanto eu viver lutarei para reverter<br />
essa situação. Tenho dedicado minha obra literária<br />
à memória desses anos de chumbo. São vários<br />
livros, o Cartas da Prisão, Batismo de Sangue,<br />
Dia de Anjo, Canto na Fogueira, que fiz com Frei<br />
Fernando e Frei Ivo, e agora o Diário de Fernando.<br />
Esqueci algum? Acho que não. As Catapuntas,<br />
que é o Cartas na Prisão, enfim. Assim como<br />
60 anos depois a memória do sofrimento dos judeus<br />
por causa do nazismo continua viva, daqui<br />
a duzentos anos a memória do sofrimento das vítimas<br />
da ditadura militar também estará. Quer dizer,<br />
é um equívoco do STF, do governo, dos militares<br />
pensar que essa memória se apaga.<br />
Hamilton Octavio de Souza - Quando você<br />
saiu da prisão, o que fez?<br />
Saí no fim de 73.<br />
Tatiana Merlino - Poderia falar sobre o<br />
período que ficou em São Paulo militando e<br />
trabalhando como jornalista?<br />
Congresso da UNE é um bom exemplo. Quem<br />
conseguiu o local do Congresso foi o Frei Tito, lá<br />
em Ibiúna, um sítio, por isso que ele foi tão barbarizado<br />
na tortura a ponto de ser levado à morte.<br />
Eu conhecia o local e armei um esquema com<br />
o pessoal da ALN e com o Frei Tito de que qualquer<br />
sinal que a repressão tivesse notícia do local<br />
do Congresso, esse sinal viria através dos se-<br />
julho 2010 caros amigos<br />
-Frei Betto_160.indd 13 02.07.10 17:33:15<br />
13
14<br />
toristas do jornal. Naquela época nós já tínhamos<br />
os setoristas no Dops, no exército e etc. Eu daria<br />
um aviso para que eles pudessem se safar. E,<br />
de fato, o setorista do Dops chegou na redação e<br />
disse: “tão falando lá no Dops que tem um pessoal<br />
que estaria reunido lá pelo lado de Ibiúna e<br />
tão querendo investigar e tal.” Aí eu chamei o repórter<br />
Rogério e disse: “Você vai agora avisar a<br />
direção que a polícia está indo para lá”. O Rogério<br />
foi, mas cometi um grande equívoco. Não me<br />
passou pela cabeça que o carro da Folha, com a<br />
sua logomarca na lataria, iria ser hostilizado pela<br />
segurança do Congresso. Resultado: o Zé Dirceu<br />
me disse depois que a notícia chegou à direção<br />
do Congresso, que eles podiam ter se safado, mas<br />
surgiu um problema de consciência: “e esses mil<br />
companheiros e companheiras que estão aqui?”<br />
Aí decidiram esperar, e deu no que deu, foram<br />
todos presos. Muitas vezes eu sabia de ações revolucionárias<br />
antecipadamente e armava o jornal<br />
para isso, por isso que a Folha da Tarde era<br />
quem melhor cobria a esquerda na época. Bem,<br />
voltando ao período da saída da prisão, no fim de<br />
73, e com muita pressão da família, da Igreja e<br />
da repressão para ir para fora do Brasil, me veio<br />
uma questão de consciência: “quando vou voltar?<br />
Quero lutar no Brasil, não se muda um país<br />
estando fora dele”. Por outro lado, “esses caras já<br />
me fizeram ficar preso o dobro do que eu merecia<br />
segundo eles. Não vou embora não, vou ficar<br />
aqui”. Então decidi ir para Vitória, que naquela<br />
época era uma cidade politicamente mais calma.<br />
Fui morar na favela de Santa Maria. Comprei um<br />
barraco lá, que está tombado, física e emocionalmente<br />
tombado. Lá mora uma amiga, a quem eu<br />
“vendi” por 50 reais com o acerto de que o dia<br />
que ela sair de lá eu tenho que ser a primeira pessoa<br />
a quem ela vai oferecer o barraco.<br />
Gabriela Moncau - E você desenvolveu o quê<br />
em Vitória?<br />
Fiquei cinco anos nessa favela fazendo trabalho<br />
de comunidades eclesiais de base em Vitória e<br />
assessorando a disseminação de CEBs em todo o<br />
país. Em 78 comecei a vir muito para São Paulo.<br />
Estava começando o processo de abertura, movimento<br />
sindical, movimento popular explodindo,<br />
me liguei a uma equipe de educação popular aqui<br />
de São Paulo, que existe até hoje, chamada Cepis,<br />
Centro de Educação Popular do Instituto Sedes<br />
Sapientiae. Trabalhei quinze anos no Cepis. A<br />
gente viajava todo o país, articulando movimentos<br />
populares, assessorando. Vim para São Paulo<br />
em 79 e fui para o ABC. Dom Cláudio era o bispo<br />
e me nomeou como o responsável pela Pastoral<br />
Operária. Fiquei vinte e dois anos na Pastoral<br />
Operária do ABC. Há duas coisas que todo mundo<br />
pensa que eu sou e nunca fui: militante do PT<br />
e padre. Nunca fui. Por que estou dizendo isso?<br />
Porque muita gente estranha. Como é que eu me<br />
tornei amigo do Lula e de outros? Por causa da<br />
Pastoral Operária, não por causa de partido, embora<br />
eu tenha ajudado muito a construção do PT.<br />
E todo balanço dessa experiência eu escrevi no livro<br />
A Mosca Azul - Refexão sobre o Poder. Logo<br />
que saí do governo fiz dois livros: um é um balan-<br />
caros amigos julho 2010<br />
ço desse processo todo de quarenta anos de construção<br />
do movimento social no Brasil; e um outro<br />
é um diário dos dois anos que eu trabalhei no<br />
Planalto, chamado Calendário do Poder.<br />
Hamilton Octavio de Souza - Você<br />
acompanhou o nascimento do PT e da CUT.<br />
Como vê esse processo?<br />
O meu primeiro encontro com o Lula se deu em janeiro<br />
de 1980. E a fundação do PT estava marcada<br />
para um mês depois. Chamei a atenção do Lula:<br />
“Olha, fundando o partido, vocês correm o risco de<br />
atropelar todo o movimento social”. E o Lula disse:<br />
“olha, você tem razão, e o que a gente faz?” Eu<br />
disse: “temos que fundar uma articulação de movimentos<br />
sociais e sindicais que garanta essa distância,<br />
preservando a autonomia e independência dos<br />
movimentos sindicais e populares diante do PT”.<br />
Ele concordou e no início de fevereiro, antes da<br />
fundação do PT, fizemos outro encontro de onde<br />
saiu a famosa carta de João Molevade, que até hoje<br />
o Lula cita, porque foi muito bem feita no sentido<br />
de colocar as bases da relação partido, sindicato,<br />
movimento popular e Igreja muito claramente colocando<br />
que são segmentos social e politicamente<br />
complementares. E aí, a Anampos foi fundada,<br />
Articulação Nacional de Movimentos Populares e<br />
Sindicais. Depois, com a fundação da CUT em 83,<br />
o “s” de sindicais passou a ser só o plural do Populares.<br />
Em 90, fundamos a central de movimentos<br />
populares, que não se firmou como a CUT, mas,<br />
enfim, foi fundada. Hoje, vejo que foram duas ferramentas,<br />
junto com o MST, com vários movimentos<br />
populares, movimentos de mulheres, enfim,<br />
toda essa riqueza, que levaram o Lula à presidência.<br />
Não foi a Carta aos Brasileiros, foi a articulação<br />
de brasileiros pobres, dos meios populares dos<br />
anos 70, 80 e 90. Foram trinta anos de um trabalho<br />
muito sério de base, que o PT contribuiu muito.<br />
Hoje, lamento que, uma vez chegando ao governo<br />
federal, não tenha se mantido todo aquele discernimento<br />
elaborado nos documentos da Anampos.<br />
Em outras palavras, o governo federal cooptou uma<br />
parcela importante do movimento social brasileiro,<br />
entre eles, a CUT. Ao meu ver a CUT hoje representa<br />
muito mais o governo junto ao trabalhador do que<br />
os trabalhadores junto ao governo. E, por sua vez,<br />
o PT e um grupo hegemônico que o comanda trocou<br />
um projeto de Brasil por um projeto de poder.<br />
E isso eu analiso detalhadamente no livro A Mosca<br />
Azul. A ponto de ao invés de se apoiar, apoiar a<br />
sua governabilidade, como fez o Evo Morales, nos<br />
movimentos sociais no primeiro mandato do Lula<br />
esse apoio foi descartado e se buscou o tradicional<br />
apoio do Congresso. Como o Congresso é dominado<br />
por forças políticas tradicionalmente conservadoras,<br />
contrárias a tudo aquilo que inspirou a<br />
criação e afirmação do PT, ele acabou refém dessas<br />
forças conservadoras e isso é simbolizado hoje<br />
pela importância que o PMDB tem no processo de<br />
sucessão do Lula.<br />
Lúcia Rodrigues - E por que o governo Lula<br />
optou por essa saída?<br />
Porque o governo Lula não percebeu a força social<br />
que tinha em mãos para implementar as reformas<br />
de estrutura do País. Devo dizer com toda a clareza,<br />
considero o governo Lula o melhor da história republicana<br />
do Brasil. Segundo, Brasil, América Latina<br />
e mundo são melhores com o Lula do que sem o<br />
Lula, essa é a minha posição. E terceiro, quero que<br />
essa política implementada pelo governo Lula prossiga,<br />
com todas as críticas que eu tenho, com todas<br />
as reservas que eu faço, principalmente no âmbito<br />
internacional e no que diz respeito às políticas sociais,<br />
embora lamente que Fome Zero criado pelo<br />
governo tenha sido assassinado pelo próprio governo.<br />
E no lugar de um programa que tinha um<br />
caráter emancipatório, se introduziu um programa<br />
de caráter compensatório que é o Bolsa Família. É<br />
bom? É bom, o Fome Zero era ótimo.<br />
Tatiana Merlino - Por conta dessa opção o<br />
governo teve que fazer muitas concessões?<br />
Na minha opinião, a maior concessão que o governo<br />
fez é na parte econômica. Se a gente considerar<br />
que o governo joga através dos títulos da<br />
dívida pública quase trezentos bilhões de reais<br />
para fomentar a especulação no mercado financeiro<br />
e apenas 44 bilhões na saúde, um pouco<br />
menos na educação. Então, é uma desproporção<br />
muito grande. Depois essa política de juros altos.<br />
Tem hoje uma dívida interna de 2 bilhões de reais,<br />
dívida externa tende a crescer. O Brasil se tornou<br />
o paraíso do capital especulativo. Louva-se, como<br />
se fosse um grande mérito, o fato do capital estrangeiro<br />
vir ter esse afluxo para o Brasil, como se<br />
isso não tivesse um ônus sério a longo prazo, para<br />
este país. E, por outro lado, a principal crítica que<br />
eu tenho é que serão oito anos sem nenhuma reforma<br />
estrutural, nem agrária, nem a tributária,<br />
nem a política, nem a da saúde, da educação. E,<br />
apesar disso, continuo achando que foi o melhor<br />
governo que tivemos, mas eu esperava mais.<br />
Tatiana Merlino - E como é que o senhor<br />
avalia a situação das forças de esquerda hoje<br />
no País?<br />
Com muita preocupação. Primeiro, porque a queda<br />
do muro de Berlim abalou e desmobilizou o que eu<br />
chamo de esquerda ideológica, retoricamente ideológica.<br />
Aquela que conhecia toda a obra de Marx,<br />
de Engels, de Lenin, de Trotski, de Mao Tse-Tung,<br />
de Guevara, mas não conhecia o povo. Foi um alívio<br />
o muro de Berlim cair para essa gente, porque<br />
hoje eles se tornaram burgueses sem culpa. E há<br />
uma esquerda que vinha tendo como referência da<br />
sua postura pró-socialista favorecer a libertação<br />
dos pobres da pobreza, principalmente a esquerda<br />
de tradição cristã, a esquerda que fazia trabalho de<br />
base, que ia para a periferia, o pessoal das comunidades<br />
eclesiais de base das pastorais populares.<br />
Por exemplo, de onde resultou o MST, a Comissão<br />
Pastoral da Terra, o Cimi, essa esquerda continua<br />
e é o que restou da esquerda. E hoje, antigos companheiros<br />
da esquerda, fico indignado na maneira<br />
como eles professam em público com tanta convicção<br />
de que o capitalismo é humanizável, reformável.<br />
Ou seja, só há uma explicação para isso: é<br />
quando você troca o projeto de um povo, de emancipação<br />
de uma nação, por um projeto pessoal ou<br />
coletivo de poder. Aí faz uma série de concessões<br />
-Frei Betto_160.indd 14 02.07.10 17:33:15
que ferem os princípios que eram anteriormente<br />
defendidos. E, ao mesmo tempo, não contempla o<br />
que é mais importante, que é a drástica redução da<br />
desigualdade social deste país.<br />
Hamilton Octavio de Souza - Você acha que<br />
o PT ainda tem energia transformadora?<br />
Acho que sim, existem muitas pessoas sérias e íntegras,<br />
ideologicamente consistentes dentro do PT.<br />
Mesmo alguns grupos organizados dentro do PT,<br />
que não são lamentavelmente os grupos hegemônicos,<br />
mas com condições, ao meu ver, de a médio<br />
prazo ganhar a luta interna. Então, até porque eu<br />
não sou favorável a essa multiplicidade de partidos<br />
de esquerda, isso acaba criando uma grande fragmentação<br />
e só favorece o fortalecimento da direita.<br />
Assim como eu vivo numa Igreja que é estruturalmente,<br />
histórica e tradicionalmente conservadora,<br />
às vezes repressora, mas é porque eu acredito que<br />
só dentro, só estando dentro de uma instituição é<br />
que a gente pode mudá-la. Eu também acho que o<br />
PT é vulnerável sim a uma mudança, e tomara que<br />
“A principal crítica que eu tenho (ao governo Lula) é que serão<br />
oito anos sem nenhuma reforma estrutural, nem agrária, nem<br />
a tributária, nem a política, nem a da saúde e da educação”.<br />
ela venha, para que ele volte a ser o partido que representa<br />
os setores mais oprimidos da nação e volte<br />
a ser o partido que se caracteriza pela sua ética<br />
e atividade política.<br />
Hamilton Octavio de Souza - Recentemente<br />
teve o Congresso da CPT, e a Assembleia<br />
Popular. O que se percebe nesse conjunto de<br />
forças é uma desconfiança cada vez maior ao<br />
PT e uma efervescência na construção de um<br />
outro instrumento.<br />
Sim, agora, já foram criados outros instrumentos,<br />
como é o caso do Psol. E temo, como uma síndrome<br />
da ingenuidade esquerdista, temo o antipetismo.<br />
Creio que o PT, com todas as suas falhas, é<br />
um aliado de um projeto emancipatório do Brasil<br />
e, portanto, embora hoje eu tenha muita simpatia<br />
pelo PSol, como tenho por setores do PCdoB e do<br />
PSB e até do PSTU... não posso generalizar e dizer<br />
que todo o PT foi responsável pelo mensalão, todo<br />
o PT está compactuado com as forças retrógradas<br />
do PMDB. Veja a crise de Minas. A crise de Minas<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
e a crise do Maranhão são sintomáticas, são duas<br />
crises que eu conheço a fundo. Então, isso mostra<br />
que ainda há luz no fim do túnel do PT.<br />
Gabriela Moncau - Você acredita numa<br />
transformação social concreta por meio<br />
do aparelho estatal?<br />
Não, acredito numa transformação por meio da<br />
mobilização popular que, por sua vez, pressiona o<br />
aparelho estatal. Aprendi no governo duas grandes<br />
lições: governo é que nem feijão, só funciona<br />
na panela de pressão. Só que quem mais pressiona<br />
o poder público são as elites através dos lobbies<br />
muito bem pagos e organizados. Nós, movimentos<br />
sociais, precisamos fazer a mesma coisa.<br />
E, depois que saí do governo, hoje sou um feliz<br />
ING, Indivíduo Não-Governamental. Tenho me<br />
dedicado, além de escrever, a assessorar movimentos<br />
sociais, só faço isso. E a segunda, é que o<br />
governo não muda ninguém, o poder faz as pessoas<br />
se revelarem.<br />
Tatiana Merlino - Não corrompe, revela?<br />
Há um ditado espanhol que é fantástico: “Se queres<br />
saber quem é Juanito, dê-lhe um carguito”.<br />
Então, isso é verdade, mas acho que a transformação<br />
social, a mudança social vem por essa<br />
pressão da mobilização popular, como tem ocorrido<br />
na América Latina. Hoje olho e dou graças<br />
a Deus, olho com muito otimismo para o ascenso<br />
social na América Latina, chamo de primavera<br />
democrática. Tivemos nesses últimos cinquenta<br />
anos, primeiro um ciclo de ditaduras militares,<br />
depois um ciclo de presidentes messiânicos neoliberais.<br />
Todos fracassaram. E agora nós estamos<br />
no terceiro ciclo que é absolutamente uma enorme<br />
novidade na história. Os eleitores dentro dessa<br />
democracia burguesa estão elegendo políticos<br />
que não vêm das oligarquias tradicionais e que<br />
pelo menos retoricamente têm um compromisso<br />
com mudanças sociais. Isso é absolutamente fantástico,<br />
por isso considero que essa política externa<br />
do Lula tem que ser preservada e prosseguir.<br />
Porque o Brasil joga um peso inestimável nessa<br />
nova geopolítica latinoamericana e caribenha.<br />
Inclusive com o apoio que dá a Cuba.<br />
Lúcia Rodrigues - Eu queria retomar<br />
quando o senhor colocou a questão da Carta<br />
aos Brasileiros que não foi que fez o Lula<br />
ganhar o governo. Mas, em 89, o PT com o<br />
Lula tinham sua recepção na massa e não<br />
ganharam.<br />
Eu não diria que o Lula não ganhou em 89, eu diria<br />
que o Lula quase ganhou em 89. Ou seja, apesar<br />
de todo o seu discurso ideologicamente mais<br />
radicalizado na época, ele quase ganhou. Ele mesmo<br />
não esperava chegar ao segundo turno, estava<br />
julho 2010 caros amigos<br />
-Frei Betto_160.indd 15 02.07.10 17:33:16<br />
15
16<br />
convencido que era o Brizola que ia passar para o<br />
segundo turno. Lula se surpreendeu quando se viu<br />
no segundo turno. E ele não perdeu pelo discurso<br />
que fazia, ele perdeu pelas falhas da própria campanha,<br />
como o debate final e também por algumas<br />
manipulações televisivas que favoreceram. Estou<br />
convencido que mesmo sem a Carta aos Brasileiros<br />
o Lula ganharia em 2002 por causa do acúmulo<br />
desse processo social que começou lá nos anos<br />
70. Evidente que não sou totalmente contra a Carta<br />
aos Brasileiros. Acho que um candidato a presidente<br />
tem que dialogar com todas as forças vivas<br />
do País. Mas atribuir a ela a vitória do Lula é<br />
menosprezar o acúmulo dos movimentos sociais<br />
em todos esses anos, toda a mobilização ocorrida<br />
no País, e isso de maneira alguma eu posso aceitar.<br />
Embora hoje a gente saiba, sempre a mídia tem<br />
um papel muito importante em processo eleitoral<br />
e, por sua vez, o dinheiro para ter acesso a essa mídia<br />
é determinante.<br />
Tatiana Merlino - Por que de 2002 para cá a<br />
força desses movimentos sociais que levaram<br />
o Lula a chegar ao governo federal não<br />
serviu de suporte para que o próprio governo<br />
avançasse mais nas reformas?<br />
Um dia o Fidel me disse que um dos erros da revolução<br />
é que nós prometemos tanto para o povo<br />
que quando chegamos ao poder, aquele povo que<br />
havia se mobilizado para respaldar a revolução<br />
caiu na inércia, e descobrimos que ele olhava para<br />
a revolução como quem olha uma grande vaca<br />
que tem que ter uma teta para cada boca. De cer-<br />
caros amigos julho 2010<br />
ta maneira, isso aconteceu no Brasil com a eleição<br />
do Lula. Os movimentos sociais, ao invés de<br />
se manterem mobilizados, ficaram celebrando que<br />
o Lula com a varinha de condão faria todo o milagre<br />
das nossas reivindicações e anseios, que seriam<br />
todos atendidos. Então, houve sim uma desmobilização<br />
dos movimentos sociais por um lado. E eu<br />
fui convocado para trabalhar exatamente na mobilização<br />
social, como eu descrevo com detalhes<br />
no livro Calendário do Poder, e não tive suficiente<br />
apoio do governo. A duras penas consegui montar<br />
dentro do governo uma rede de educação popular<br />
que é atuante até hoje, que permanece, que<br />
deve ser a primeira vez na história do Brasil que a<br />
partir da estrutura do poder público federal existe<br />
uma grande equipe de profissionais e voluntários<br />
fazendo o trabalho de base no Brasil através dessa<br />
rede de educação popular a duras penas. Mas não<br />
tive o respaldo que esperava ter, uma das razões<br />
pelas quais deixei o governo.<br />
Tatiana Merlino - O senhor saiu indisposto<br />
com o governo?<br />
Indisposto? Não. Primeiro eu saí do governo por<br />
duas razões mais fortes: pelo governo ter criado e<br />
matado o Fome Zero, e eu discordei dessa mudança.<br />
Fome Zero era um trabalho de mobilização social<br />
importante, todo baseado nos comitês gestores<br />
eleitos naquela época, no fim de 2004 em mais<br />
de dois mil municípios brasileiros sem nenhuma<br />
interferência dos prefeitos. E, de repente, a Casa<br />
Civil decidiu erradicar todos os comitês gestores<br />
e passar o cadastro do Fome Zero, aí foi introdu-<br />
zido o Bolsa Família, sob controle dos prefeitos.<br />
Enfim, evidentemente trazem dividendos chamados<br />
votos. Porque os prefeitos ameaçavam não<br />
respaldar o governo federal se eles não tivessem<br />
esse trunfo na mão. E a segunda razão, é porque<br />
minha vocação é escrever e trabalhar com movimento<br />
social, então, eu saí do governo aliviado.<br />
Saí bem, descrevo lá no Calendário as conversas<br />
com o Lula, cartas e bilhetes que trocamos, tudo<br />
isso, mas jamais voltarei a trabalhar em poder público<br />
ou em iniciativa privada.<br />
Hamilton Octavio de Souza - Quantos livros<br />
você escreveu.. Você tem uma obsessão<br />
fantástica pela escrita...<br />
Eu tenho disciplina. Na verdade, as duas coisas<br />
que eu mais gosto nessa vida é orar e escrever. E<br />
há muitos anos, desde 1986, eu reservo 120 dias<br />
no ano só para fazer essas duas coisas, eu me isolo.<br />
E aí são os milhares dos meus pensamentos.<br />
Hamilton Octavio de Souza - Quantos livros<br />
são?<br />
São 52 só de autoria própria, tem outros de coautoria.<br />
Meu pai brincava: “Você já leu todos os livros<br />
que você escreveu?” Muitos foram superados<br />
pelo tempo, pelo tema, pela ocasião e etc.. Agora,<br />
eu não posso passar mais de 48 horas sem escrever,<br />
senão me falta ar. É compulsivo. Não é só<br />
disciplina, é uma coisa lá dentro muito forte.<br />
Hamilton Octavio de Souza - Nesse quadro<br />
hoje, quais as perspectivas, que tipo de lutas<br />
você vê que deve se levar, o que você está<br />
fazendo, no que você está acreditando? Qual<br />
é o futuro imediato nosso?<br />
O meu maior medo hoje é o que chamo de elitização<br />
da política. Ou seja, quando eu recebo a notícia<br />
de que cada candidato a presidente gastará<br />
em média 200 milhões de reais em campanha,<br />
eu digo virtualmente: “isso não é democracia”.<br />
Porque a democracia supõe uma certa isonomia.<br />
Uma certa, uma partilha do direito de pessoas,<br />
independente do poder financeiro. Eu considero<br />
a tarefa mais importante hoje reforçar os movimentos<br />
sociais, criar uma sociedade civil fortalecida,<br />
mobilizada, consciente e capaz de propor<br />
um novo projeto para o Brasil, os outros mundos<br />
possíveis, não só o outro, os outros. Porque<br />
eu creio que temos que pensar num futuro plural,<br />
embora eu considere no conjunto, esse plural,<br />
eu continuo chamando de socialista, porque não<br />
vejo futuro para a humanidade sem a partilha dos<br />
bens da terra e dos frutos do trabalho humano.<br />
Gabriela Moncau - Qual é a sua avaliação<br />
em relação ao processo eleitoral deste ano e<br />
como fica o cenário político do Brasil daqui<br />
para frente, depois das eleições?<br />
Sou amigo dos quatro candidatos, da Dilma, da<br />
Marina, do Serra e do Plínio.<br />
Lúcia Rodrigues - Com mais tendência para<br />
qual lado?<br />
Quero muito que haja continuidade do governo<br />
Lula, essa é a minha posição.<br />
-Frei Betto_160.indd 16 02.07.10 17:33:18
porca miséria!<br />
Glauco Mattoso<br />
MENGELICA<br />
CONNEXÃO<br />
[SONETO 3286]<br />
Terror ou scientifica ficção?<br />
Ha filmes que p’ra manga panno dão.<br />
Agora, no circuito americano<br />
(Será que tambem chega ao brasileiro?),<br />
um classico me intriga, e aqui o explano:<br />
De medico e de monstro ha nelle um mix,<br />
pois liga um scientista a bocca ao anus<br />
num bicho transformando trez humanos:<br />
“The human centipede”, de Tom Six.<br />
No chão come o primeiro e, pelo cano<br />
anal come o segundo. No terceiro<br />
a merda é recagada. Insano plano!<br />
É, para a “centopéa”, a digestão<br />
peor na engattinhante posição.<br />
O phantasma do nazismo continua fascinando<br />
os cineastas, a julgar pelo filme<br />
que, ainda ignorado pela nossa midia, ja<br />
circula virtualmente e provoca o maior buchicho<br />
no publico internauta: “The human<br />
centipede”, do hollandez Tom Six. No portal<br />
cronopios.com.br commentei mais detalhadamente<br />
esse longa de horror, no qual<br />
trez cobayas humanas (um homem e duas<br />
mulheres) são cirurgicamente interligadas<br />
num unico apparelho digestivo (pela connexão<br />
anal-buccal) nas mãos dum medico<br />
allemão, resultando essa “siamezação”<br />
numa especie de centopéa. Sem entrar nas<br />
implicações sadomasochistas daquillo que<br />
eu chamo de “bacchanal buccoanal” ou<br />
de “suruba cubuccal”, quero aqui levantar<br />
uma questão ethica. De passagem, rejeito<br />
a nomenclatura “systema digestorio”<br />
como rejeito a orthographia phonetica. Mas<br />
a dictadura da medicina, questiono, não se<br />
restringe às monstruosas experiencias nazistas<br />
que celebrizaram o doutor Joseph<br />
Mengele e inspiraram personagens como o<br />
villão deste filme. Sob o pretexto de pre-<br />
servar a vida a qualquer custo (E bota custo<br />
nisso, em termos de hospital e remedio!),<br />
parece que os medicos se “esqueceram” de<br />
que não adeanta prolongar uma sobrevida<br />
si não houver bem estar. Um paciente terminal<br />
interminavelmente entubado numa UTI<br />
é o mesmo que um prisioneiro num campo<br />
de concentração, submettido à tortura<br />
“scientifica”. Outrora, ou se vivia minimamente<br />
com saude, ou se morria com mais<br />
rapidez e menos soffrimento artificial.<br />
Será que estamos todos, subtil e machiavellicamente,<br />
virando cobayas dum immenso<br />
nazismo medicinal? E a quem serviria tal<br />
nazismo disfarsado? Ao cerebro psychotico<br />
dalgum scientista genocida ou dalgum dictador<br />
racista? Nada disso! Serviria a uma lucrativa<br />
industria pharmaceutica, a um lucrativo<br />
commercio hospitalar e a um lucrativo<br />
mercado segurador. Ou não? O que eu ja gastei<br />
em operações e remedios contra o glaucoma!<br />
E fiquei cego mesmo assim, só que pagando<br />
mais e soffrendo ainda mais...<br />
Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.<br />
Eduardo Matarazzo Suplicy<br />
A modA como fator<br />
de inclusão social<br />
A moda, que já foi fator de exclusão, é hoje fator<br />
de inclusão, na avaliação de Glorinha Kalil, uma das<br />
pessoas que mais acompanham o que acontece com<br />
a moda. Se analisarmos as repercussões da São Paulo<br />
Fashion Week – SPFW, vamos nos deparar com números<br />
e dados muito significativos.<br />
Esse evento se tornou um marco na história da<br />
moda no Brasil e no mundo. Ele contribuiu para a economia,<br />
gera empregos, valoriza a cultura brasileira,<br />
a beleza e a arte. Em cada versão, se aprimora mais<br />
e mais.<br />
Paulo Borges, idealizador da SPFW, veio de<br />
São José do Rio Preto para a Capital, nos anos 70, para<br />
estudar computação e comércio exterior. A moda foi<br />
um acaso em sua vida. Acaso que deu certo! Ele disse<br />
que tinha como objetivo criar uma cultura de moda<br />
no Brasil. Em 1996, na Morumbi Fashion Week, surgiram<br />
os nomes das modelos de sucesso, como Gisele<br />
Bündchen, Ana Cláudia Michells, Isabelli Fontana,<br />
bem como grandes nomes do mundo da moda brasileira,<br />
inclusive masculina, como Ricardo Almeida, Ronaldo<br />
Fraga e Reinaldo Lourenço, para citar alguns exemplos.<br />
Em 1993, havia apenas quatro escolas de moda;<br />
agora, segundo Paulo Borges, há 150.<br />
Hoje a SPFW envolve uma cadeia imensa de profissionais<br />
e gera mais de cinco mil empregos diretos.<br />
Atualmente, há no mercado da moda 30 mil empresas<br />
que movimentam cerca de R$ 50 bilhões ao ano e empregam<br />
1,7 milhão de brasileiros. O setor é responsável<br />
por 17% do nosso Produto Interno Bruto. A SPFW, encerrada<br />
no dia 14 de junho, recebeu cerca de R$ 11 milhões<br />
de reais em investimentos, tornando-se o evento<br />
de moda mais famoso da América Latina.<br />
É importante ressaltar que a SPFW tem<br />
patrocinado, através do projeto Ofício Moda, o treinamento<br />
de costureiras, modelos, modelistas e piloteiras<br />
nos bairros mais carentes – como Heliópolis, Paraisópolis<br />
e outros – a também realizarem ações de moda.<br />
Em Heliópolis, uma cooperativa de costureiras realiza<br />
desfiles com suas criações.<br />
No ano que vem, a edição de junho da SPFW será<br />
ampliada e ocupará outros espaços com desfiles e exposições<br />
de 100 designers brasileiros, além de debates<br />
que envolverão um número maior de pessoas de forma<br />
a consolidar esse setor de maneira mais consciente e<br />
consistente. O que é bom tem que ficar e ser cada vez<br />
melhor, pois a geração de emprego e renda proporcionados<br />
pela moda é visível fator de inclusão social.<br />
Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.<br />
julho 2010 caros amigos<br />
-Glauco+supla_160.indd 17 02.07.10 17:29:56<br />
Ilustração: bruno paes<br />
17
18<br />
caros amigos junho 2010<br />
tacape<br />
Rodrigo Vianna<br />
Dunga X globo:<br />
o fim Dos privilégios<br />
Quando essa revista estiver em<br />
suas mãos, caro leitor, a velha imprensa brasileira<br />
já terá decidido se Dunga é “um técnico limitado<br />
e teimoso, que conduziu o Brasil ao fracasso”, ou<br />
“um treinador obstinado, que contra tudo e contra<br />
todos comandou o Brasil rumo à vitória”.<br />
Na imprensa esportiva, as análises são - quase<br />
sempre - feitas assim: ao vencedor, as batatas!<br />
A única exceção talvez seja a seleção<br />
de 82. Apesar de não ter vencido, pouca gente<br />
tem coragem de negar que aquele time dirigido<br />
por Telê Santana - e conduzido dentro de campo<br />
por Falcão, Sócrates e Zico - foi uma das mais talentosas<br />
esquadras já montadas pelo Brasil.<br />
Mas voltemos a Dunga. O caso dele é mais dramático.<br />
Dunga não foi um grande jogador, e não é<br />
um grande técnico. Isso é fato. Dunga era um volante<br />
brucutu, que jogava o adversário no alambrado,<br />
e é um técnico inexperiente. Ponto. Mas<br />
Dunga é, sim, um líder.<br />
Impossível negar a capacidade de liderança<br />
que ele exerceu como capitão na Copa de<br />
94. Inegável também a habilidade de Dunga para<br />
“fechar o grupo”, agora como técnico. Vejam a<br />
balbúrdia que acometeu França e Inglaterra na<br />
Copa da África do Sul. “Excesso de estrelas”, diz<br />
a imprensa européia. Os técnicos Capello e Domenech<br />
não conseguiram controlar um bando de<br />
jogadores estelares, novos-ricos da bola, milionários<br />
que gostam de desfilar com namoradasmodelos<br />
e de exibir o seu poder.<br />
Dunga conseguiu. Montou um grupo. Fez escolhas.<br />
Desagradou muitos. É um líder.<br />
Há várias maneiras de ser líder, dirão alguns.<br />
É verdade. O líder pode ser alguém que articula,<br />
soma, reduz as zonas de conflito. Mais ou menos<br />
como Lula faz no Brasil – para irritação de muitos<br />
(entre eles, esse humilde escrevinhador) que gostariam<br />
de vê-lo comprando algumas brigas. E há o líder<br />
que luta, briga e confronta. Como faz Chávez na<br />
Venezuela. Ou como fazia o velho Brizola no Brasil.<br />
Dunga está mais para Brizola. A diferença é<br />
que o ex-governador – apesar de combativo –<br />
era homem afável no trato pessoal. Dunga, não.<br />
É desagradável, irritadiço, sofre com mania de<br />
perseguição. Mas ainda assim é um líder. E, justo<br />
durante a Copa, ousou desafiar o maior poder<br />
estabelecido no Brasil: a TV Globo. Transformou-<br />
se numa espécie de Brizola da bola!<br />
Dunga acabou com as “salinhas” exclusivas<br />
da Globo. Em outras Copas era assim: a Globo<br />
pagava pelos direitos de transmissão, e achava<br />
que tinha comprado – junto – o direito de exclusividade<br />
para falar com jogadores. Tudo sob os auspícios<br />
da CBF. Dunga acabou com essa bagunça.<br />
A Globo, que em outros tempos tramaria a derrubada<br />
do técnico nos bastidores, mostrou-se inabilidosa,<br />
e resolveu apelar: fez um editorial contra<br />
o técnico. Ficou tudo exposto, didaticamente,<br />
para o grande público.<br />
As enquetes na internet também mostraram<br />
que o tiro da Globo saiu pela culatra. Entre<br />
Dunga e a Globo, o público ficou com o primeiro<br />
– numa proporção de 8 a 2. Isso não faz dele uma<br />
pessoa especial. Nem acho que Dunga fez bem ao<br />
atacar publicamente, com palavrões, um comentarista<br />
da emissora do Jardim Botânico.<br />
Mas Dunga teve o mérito de expor para o Brasil<br />
os bastidores de um esporte que move multidões,<br />
mas é (ou era) controlado por dois ou três diretores<br />
da TV Globo.<br />
Blogueiros, uni-vos<br />
Escrevo essa coluna de Johannesburgo, onde<br />
vim trabalhar na Copa do Mundo, como jornalista<br />
da TV Record. Pouco antes de embarcar, participei<br />
de uma reunião para organizar o “Encontro<br />
Nacional de Blogueiros Progressistas”.<br />
A idéia partiu do jornalista Luiz Carlos Azenha.<br />
Ele, aliás, já anunciou que tudo foi tramado na<br />
mesa de um bar em São Paulo. Quase uma “conspiração”,<br />
diz o Azenha. Além dele, Altamiro Borges,<br />
Eduardo Guimarães, Conceição Lemes e esse<br />
escrevinhador estiveram presentes. Paulo Henrique<br />
Amorim também se juntou ao grupo.<br />
Trata-se de uma “conspiração” anunciada<br />
publicamente. O Encontro dos Blogueiros já<br />
tem data marcada e local: Brasília, nos dias 20, 21<br />
e 22 de agosto. A organização deve ficar por conta<br />
do “Centro de Estudos Barão de Itararé”.<br />
Não se imagina criar uma entidade, nem um<br />
Portal de blogueiros. O consenso é que o melhor é<br />
funcionar em rede, mas com o respeito à autonomia<br />
de cada um.<br />
Rodrigo Vianna é jornalista.<br />
Fidel Castro<br />
O gOlpe<br />
astucioso à espreita<br />
Nada de estranho seria que tanto Israel<br />
quanto os Estados Unidos e seus estreitos aliados<br />
com direito ao veto no Conselho de Segurança, França<br />
e Grã-Bretanha, quisessem aproveitar o enorme interesse<br />
que desperta o Mundial de Futebol para tranquilizar<br />
a opinião internacional, indignada pela criminosa<br />
conduta das tropas elites israelenses na Faixa de Gaza.<br />
É, portanto, muito provável que o próximo golpe<br />
contra o Irã, depois da resolução do Conselho de<br />
Segurança impondo mais sanções ao país, se atrase<br />
algumas semanas, e inclusive, seja esquecido pela<br />
maioria das pessoas nos dias mais calorosos do verão<br />
boreal. Haveria que observar o cinismo com que<br />
os líderes israelenses responderão às entrevistas coletivas<br />
nos próximos dias, onde serão bombardeados<br />
com perguntas. Oportunamente, eles irão elevando<br />
o rigor de suas exigências antes de apertar<br />
o gatilho. Anseiam repetir a história de Mossadegh<br />
em 1953, ou levar o Irã à idade de pedra, uma ameaça<br />
da qual gosta o poderoso império em seus tratos<br />
com o Paquistão.<br />
O ódio do Estado de Israel contra os palestinos<br />
é tal, que não hesitaria em enviar o milhão e meio<br />
de homens, mulheres e crianças desse país aos crematórios<br />
em que foram exterminados pelos nazistas<br />
milhões de judeus de todas as idades.<br />
A suástica pareceria ser hoje a bandeira de Israel.<br />
Esta opinião não nasce do ódio, mas sim do sentimento<br />
dum país que prestou albergue aos judeus<br />
da Segunda Guerra Mundial.<br />
Uma etapa nova e tenebrosa abre-se para o mundo.<br />
O próprio Obama admitiu em seu discurso<br />
na universidade islâmica de Al-Azhar, no Cairo, que “em<br />
meio à Guerra Fria, os Estados Unidos desempenharam<br />
um papel na derrubada dum governo iraniano eleito<br />
democraticamente”, apesar de que não disse quando<br />
nem com que propósitos. É possível que nem sequer se<br />
lembrasse como o levaram a cabo contra Mossadegh<br />
em 1953, para instalar no governo a dinastia de Reza<br />
Pahlevi, o xá do Irã, ao qual armaram até os dentes.<br />
Naquela época o Estado de Israel não possuía<br />
uma só arma nuclear. O império tinha um enorme e<br />
incontrastável poder nuclear. Então, os Estados Unidos<br />
pensaram na arriscada ideia de criar em Israel<br />
um gendarme no Oriente Médio, que hoje ameaça<br />
uma parte considerável da população mundial.<br />
Fidel Castro Ruz é ex-presidente de Cuba.<br />
-Rodrigo+fidel_160.indd 18 02.07.10 17:16:09
João Pedro Stedile<br />
O BRASIL,<br />
mais além do futebol...<br />
A sociedade brasileira é uma das de maior desigualdade social entre<br />
todos os 186 paises do mundo! Isso choca ainda mais, por termos recursos naturais,<br />
fontes de energia, minérios, matérias-primas...<br />
Entre 1930-1980, crescemos a 7,6% ao ano em média, a cada dez anos dobramos<br />
a riqueza produzida. Somos a oitava economia mundial em volume de riquezas.<br />
O Brasil é o maior exportador de soja, açúcar, carne de boi, mas, se não fosse a<br />
bolsa família, 11 milhões de famílias, ou seja 44 milhões de brasileiros, continuariam<br />
passando fome.<br />
Temos 16 milhões de brasileiros adultos, que produzem riquezas, mas<br />
que não tiveram o direito a conhecer as letras!<br />
Apenas 10% da juventude frequentam uma universidade. E pior, a ampla maioria<br />
deles paga faculdades particulares, enquanto os filhos da burguesia se acomodam<br />
nas universidades públicas. E tem gente que reclama das quotas aos jovens<br />
pobres e de origem afrodescendente.<br />
Sabemos os volumes de recursos que as filiais de transnacionais enviam<br />
para as matrizes, para manter os elevados padrões de consumo de seus acionistas<br />
com o suor brasileiro.<br />
Temos uma reserva enorme de dólares, do governo, depositados em bancos norte-americanos<br />
recebendo taxas de 2% ao ano, enquanto o próprio governo paga por<br />
uma mal explicada divida interna 10,25% ao ano aos bancos daqui.<br />
E nem a universidade, nem os intelectuais e muito menos a imprensa<br />
e os políticos se preocupam em analisar por que então seguimos sendo uma sociedade<br />
tão desigual?<br />
O máximo que chegam é às nossas raízes históricas de quatro séculos de escravidão,<br />
que estão na base da formação socioeconômica brasileira. O que é verdadeiro,<br />
mas insuficiente.<br />
As causas de nossas mazelas estão claramente identificadas na situação<br />
estrutural da economia:<br />
- Apenas 1% dos proprietários controla a metade de todas as terras.<br />
- A concentração da propriedade das fábricas, comércio, nas cidades.<br />
- A concentração da riqueza ao longo de décadas, produzida pelo trabalho de milhões<br />
de brasileiros, mas apropriada por uma minoria de 10%. O capital ficou com<br />
ao redor de 60% de todos os bens, enquanto quem trabalha fica com 40%.<br />
- A concentração do direito à escola.<br />
- A concentração da indústria, seja em algumas empresas, seja<br />
em termos geográficos.<br />
- Não mais de dez bancos controlam toda a movimentação financeira do país.<br />
- Jornais, revistas, rádios e televisões de poucos donos se tornaram mecanismos<br />
de ganância e reprodução do pensamento da classe dominante.<br />
- A nossos melhores hospitais e atendimento medico só têm acesso os ricos, e a classe<br />
media se resigna em pagar pesadas mensalidades de planos de saúde particulares.<br />
- A cidade de São Paulo tem 420 mil imóveis vazios, enquanto milhares de famílias<br />
vivem em barracos e condições desumanas.<br />
Esperamos que agora na campanha eleitoral os candidatos e os partidos<br />
criem vergonha na cara e tenham coragem de debater os verdadeiros problemas da<br />
sociedade com o povo brasileiro.<br />
João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via<br />
Campesina Brasil.<br />
Ana Miranda<br />
Parque de<br />
dIveRSõeS II<br />
A chuva desabou desde o pôr do sol e<br />
noite adentro alagou ruas, deixando a cidade quase<br />
deserta, aqui e ali vultos abrigados em marquises,<br />
ou um pedestre apressado, debaixo de uma sombrinha.<br />
Os carros passavam com suas luzes assombrosas,<br />
e na avenida inundada desenvolviam a velocidade<br />
levantando a água empoçada, formando como<br />
que fontes luminosas que irrigavam o canteiro entre<br />
as pistas. Estava na hora.<br />
O pai contou umas moedas, fez sinal aos<br />
dois filhos adolescentes, vestiram calções velhos e<br />
camisas fora do uso de tão velhas e rasgadas, tiraram<br />
as chinelas. Desceram as escadas do pequeno e<br />
humilde apartamento na periferia da avenida, percorreram<br />
a rua com os pés chafurdando nos lamaçais,<br />
no mesmo sentido da enxurrada, ladeira abaixo.<br />
No caminho encontravam outros que seguiam<br />
na mesma direção e se cumprimentavam com gritos<br />
ou acenos. Pararam num bar, tomaram um copo<br />
de cana, uma só dose dividida entre os três, que<br />
os aqueceu por dentro. Seguiram com mais ímpeto,<br />
num sentimento de alforria que os transportava<br />
a outros mundos, esquecidos das vazantes de uma<br />
vida petrificada e reversa, até que afinal chegaram<br />
à margem da rodovia. Esperaram que o sinal perto<br />
dali se fechasse e atravessaram a primeira pista.<br />
No canteiro central já estavam alguns homens e<br />
crianças em pé, bem perto do meio-fio, aguardando<br />
em silêncio, concentrados. O pai e os dois filhos<br />
se puseram ao longo da grande poça que se formara<br />
numa depressão, saudaram os companheiros, e também<br />
esperaram. Quando o sinal abriu, os carros saíram<br />
rugindo, vinham como um trem fantasma, sem<br />
rosto, aumentavam a velocidade à medida que se<br />
aproximavam, diminuíam diante do alagamento da<br />
pista, tomavam marcha reduzida e atravessavam as<br />
águas, levantando altas ondas douradas pelos faróis,<br />
avermelhadas pelas luzes traseiras, azuladas pela luz<br />
dos postes ou dos relâmpagos. Os caminhões eram<br />
os mais aplaudidos, pois formavam verdadeiras torrentes.<br />
Pai e filhos recebiam as ondas sobre o corpo,<br />
fazendo algazarra, numa folia de criança diante daquele<br />
mar improvisado. Assim foi até quase de madrugada,<br />
quando cessou o movimento de carros. Voltaram<br />
para casa fatigados, mas refeitos com aquela<br />
fantasia que sabiam farrear.<br />
Ana Miranda é escritora.<br />
julho 2010 caros amigos<br />
-Stedile+anaMiranda_160.indd 19 02.07.10 17:14:25<br />
19
20<br />
caros amigos julho 2010<br />
Joelma Couto<br />
lixo radioativo<br />
ameaça região de Poços de Caldas<br />
Vereadores da cidade querem que os materiais<br />
radioativos mesotório e torta ll, estocados<br />
nas instalações do Complexo Industrial de Urânio<br />
de Caldas (MG), sejam retirados de lá.<br />
quem nasceu na região do planalto de Poços<br />
de Caldas, Minas Gerais, após 1977,<br />
cresceu ouvindo muitas histórias sobre<br />
a mina de urânio Osamu Utsumi, localizada no<br />
município de Caldas. Uns contam que na infância<br />
ouviam dizer que lá se fabricava a bomba<br />
atômica, outros ouviam boatos que ligavam o<br />
Cachoeira das Antas, em Poços de Caldas, no rio que pode ter sido contaminado por dejetos de depósito radioativo.<br />
urânio ao ex-ditador iraquiano Saddam Hussein,<br />
confirmados no livro “Saddam, O Amigo do Brasil”,<br />
do jornalista Leonardo Attuch. Segundo narra<br />
Attuch, “Entre os anos de 1976 e 1990, Brasil<br />
e Iraque foram grandes parceiros comerciais.<br />
Uma das mais sigilosas operações entre os governos<br />
do general João Batista Figueiredo e de Sa-<br />
ddam Hussein aconteceu no dia 14 de janeiro de<br />
1981. Foi quando dois aviões iraquianos decolaram<br />
das pistas do Centro Tecnológico Aeroespacial,<br />
em São José dos Campos, e voaram em direção<br />
a Bagdá, carregados com o urânio que vinha<br />
das minas de Poços de Caldas”.<br />
Em 1982, deu-se início à operação comercial<br />
para produção de concentrado de urânio, que durou<br />
até 1995. Não se sabe exatamente quantas<br />
toneladas de urânio foram extraídas da mina,<br />
que fica em um local conhecido como Campo do<br />
Cercado. Sabe-se que a produção foi muito pequena,<br />
algo em torno de 4.500 toneladas, segundo<br />
o site oficial da INB, e 1.200 toneladas segundo<br />
folder sobre a produção da mina.<br />
-Joelma_160.indd 20 02.07.10 17:25:28<br />
foto Joelma do Couto
Após a paralisação total das atividades de lavra,<br />
iniciou-se outra polêmica na região. Em São<br />
Paulo, a Usina de Santo Amaro (Usam), também<br />
conhecida por Nuclemon, entrou em processo de<br />
descomissionamento, processo de desativação de<br />
uma instalação nuclear ao final de sua vida útil,<br />
observando-se todos os cuidados para proteger a<br />
saúde e a segurança dos trabalhadores, das pessoas<br />
em geral e também do meio ambiente.<br />
No entanto, para se descomissionar é necessário<br />
desmontar todas as construções envolvidas,<br />
retirar até mesmo a terra que se tornou radioativa<br />
e depositá-los em um local seguro. Como<br />
no Brasil não existem depósitos definitivos, assim<br />
como no resto do mundo, a solução foi enviar<br />
para a área da antiga mina de urânio de Caldas.<br />
A população da região se revoltou. Milhares<br />
de toneladas dos materiais radioativos torta ll e<br />
mesotório produzidos pela Usam já estavam estocados<br />
no local, e os moradores da região ainda<br />
teriam que mais uma vez aceitar estes vizinhos<br />
indesejáveis?<br />
Maria Augusta Barbosa, moradora de Caldas,<br />
conta: “Ficamos revoltados, não fomos nós que<br />
produzimos este lixo, por que devemos aceitálo<br />
aqui?” Depois de muito barulho da população,<br />
apoiada pelo Greenpeace, e da intervenção<br />
de autoridades, como o ex-juiz da comarca da<br />
Caldas, Ronaldo Tovani, e do ex-secretário de<br />
Meio Ambiente do Estado de Minas Gerais, Tilden<br />
Santiago, o então governador Itamar Franco<br />
proibiu a entrada no Estado de Minas de lixo radioativo<br />
oriundo de outros Estados. O pouco que<br />
restou em São Paulo ficou no depósito da Usina<br />
de Interlagos, ao lado do terreno que abrigará o<br />
futuro templo do Padre Marcelo Rossi.<br />
Vereadores preocupados<br />
No último dia 6 de abril, o gerente de descomissionamento<br />
da Indústrias Nucleares do Brasil<br />
- Caldas, Luiz Augusto de Carvalho Bresser Dores,<br />
compareceu à sessão da Câmara Municipal<br />
de Poços de Caldas, a convite do vereador Tiago<br />
Cavelagna (DEM). Bresser afirmou que mais<br />
de 12 mil toneladas de torta ll estão estocadas<br />
na unidade de Caldas, mas não trazem nenhum<br />
tipo de risco para a população. Os números são<br />
altos: 7.588.726 toneladas de rejeitos radioativos,<br />
2.302 toneladas de mesotório em silos aterrados<br />
e 1500 toneladas estocadas na barragem<br />
de rejeitos, além de 10.159 toneladas de torta ll<br />
em bombonas e o restante em silos de concreto<br />
aterrados.<br />
Outra preocupação é o chamado bota-fora:<br />
milhões de toneladas do que sobrou da lavra de<br />
urânio e que contêm minerais ricos em enxofre<br />
(sulfetos). Estes minerais sofrem um processo<br />
de oxidação natural e em contato com a água<br />
da chuva produzem ácido sulfúrico. O ácido dilui<br />
na água e solubiliza os metais pesados, como<br />
por exemplo o urânio. Mesmo que em quantidades<br />
pequenas, quando a água é drenada estes metais<br />
também são transportados para a barragem<br />
de drenagem ácida.<br />
Esta mistura de metais pesados e ácidos tem<br />
caráter nocivo e pode alcançar os mananciais<br />
ou mesmo o lençol freático da região, comprometendo<br />
o meio ambiente. Quando chove forte,<br />
existe a possibilidade da barragem transbordar<br />
e esta água ácida cair no Ribeirão Soberbo,<br />
que faz parte da Bacia Hidrográfica do Rio Verde,<br />
que flui para o município de Caldas, com prejuízo<br />
para a fauna e flora da região. Também está<br />
dentro dos limites da mina a Bacia Hidrográfica<br />
das Antas, que flui para Poços de Caldas.<br />
A vereadora e médica Regina Cioffi (PPS) entregou<br />
ao Ministério Público de Poços de Caldas,<br />
no dia 18 de junho, um dossiê com denúncias<br />
contra a INB-Caldas. Ela afirmou que “a INB<br />
é uma estatal, está sob jurisdição federal, por isso<br />
pedi ao MP de Poços de Caldas que encaminhe as<br />
denúncias ao Ministério Público Federal”.<br />
Já a vereadora Maria Cecília Opípari (PSB) quer<br />
que a torta ll e o mesotório depositados em Caldas<br />
voltem para São Paulo. “Tenho medo que a INB-<br />
Caldas se torne um depósito de lixo radioativo<br />
proveniente de todo o país”, afirma a vereadora.<br />
Maria Cecília levará as denúncias contra a<br />
INB para Brasília, onde participará da Conferência<br />
Nacional das Cidades, como delegada do Estado<br />
de Minas Gerais e da cidade de Poços de<br />
Caldas. Segundo Maria Cecília, existem indícios<br />
de que no dia 28 de maio houve um rompimento<br />
em uma barragem que fica dentro do complexo<br />
da INB-Caldas e cujas águas são despejadas<br />
no Ribeirão das Antas. “Não quero alarmar a população,<br />
mas temos que tentar buscar esclarecimentos”,<br />
afirma a vereadora.<br />
Estudos feitos em vários países comprovam o<br />
aumento da incidência de câncer em crianças que<br />
moram perto de instalações nucleares. Dados estatísticos<br />
de órgãos públicos da saúde atestam altos<br />
índices de câncer nos municípios de Santa Rita de<br />
Caldas, Ibitiura de Minas, Caldas, Andradas e Poços<br />
de Caldas, todos na região onde se localizam<br />
os depósitos de lixo radioativo. Segundo Regina<br />
Cioffi nunca se produziu torta ll e mesotório na<br />
unidade da INB-Caldas. Para ela, “quem produziu<br />
o lixo, que arque com as consequências”.<br />
A Câmara Municipal de Poços de Caldas formou<br />
uma comissão composta por cinco vereadores,<br />
que deverão visitar as instalações da INB-<br />
Vereadora Maria Cecília Figueiredo Opípari.<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
Caldas, pois existem indícios de que o material<br />
radioativo não está acondicionado com segurança.<br />
A reportagem teve acesso a fotos que seriam<br />
dos depósitos da INB-Caldas, que mostram o comprometimento<br />
na armazenagem de grande parte<br />
do material, com latões enferrujados e amassados,<br />
pallets de sustentação comprometidos.<br />
rejeito ou estoque?<br />
Uma das questões que se levanta sobre o material<br />
depositado no complexo é se mesotório e a torta<br />
ll são rejeitos ou estoque estratégico de urânio.<br />
Em 2002 foi assinado um termo de compromisso<br />
com o IBAMA. Este termo se referia ao licenciamento<br />
ambiental das instalações do complexo<br />
industrial. Participaram das negociações o Município<br />
de Caldas, a CNEN – Comissão Nacional de<br />
Energia Nuclear – e a FEAM – Fundação Estadual<br />
do Meio Ambiente, com o objetivo de viabilizar<br />
os testes de processamento da monazita, e estabelecer<br />
as diretrizes para o licenciamento ambiental<br />
e o processamento contínuo destas.<br />
O termo de compromisso criou para a INB-<br />
Caldas, dentre outras obrigações, a de definir medidas<br />
efetivas para recuperar as áreas degradadas<br />
existentes na Unidade de Tratamento de Minérios<br />
– UTM de Caldas, decorrentes das atividades<br />
anteriores às atualmente pretendidas pela empresa<br />
(produção de concentrados de terras raras).<br />
Mas retirar o urânio da torta ll mostrouse<br />
economicamente inviável. Para que seja dado<br />
um destino final a este material, é preciso definir<br />
se é rejeito e – assim sendo, ele deve ser levado<br />
para um depósito próprio e definitivo para lixo<br />
radioativo – ou, se é material passível de reaproveitamento<br />
no futuro, deverá ser acondicionado<br />
da forma mais segura possível.<br />
Outra questão normalmente levantada pela<br />
população da região diz respeito às prioridades<br />
do governo: é mais importante para o Brasil definir<br />
o que vai fazer com o lixo radioativo e como,<br />
ou investir bilhões em novas usinas nucleares?<br />
Não sabemos sequer o que fazer com a torta ll<br />
existente no país há pelo menos 50 anos? E o<br />
mais grave, qual será o destino do combustível<br />
dos reatores de Angra?<br />
Não menos importante é saber que destino<br />
a INB dará à unidade de Caldas. Segundo relatório<br />
anual da empresa em 2006, “as atividades<br />
da Unidade de Tratamento de Minério (UTM)<br />
da INB, situada em Caldas (MG), foram interrompidas,<br />
ficando operacionais somente as atividades<br />
de controle e monitoração do meio ambiente,<br />
tratamento de águas marginais, efluentes,<br />
controle da barragem de rejeitos e aquelas relacionadas<br />
com manutenção. A unidade de Caldas<br />
será submetida ao processo de descomissionamento<br />
que inclui o Plano de Recuperação das<br />
Áreas Degradadas – PRAD. O processo licitatório<br />
prevê a apresentação de propostas para fevereiro<br />
de 2007”.<br />
Já o relatório anual 2008 diz que “a INB tomou<br />
a decisão de transformar esta unidade num<br />
centro de excelência laboratorial para análise de<br />
conteúdos radioativos de materiais de toda empresa,<br />
os laboratórios já estão sendo moderni-<br />
julho 2010 caros amigos<br />
-Joelma_160.indd 21 02.07.10 17:25:29<br />
foto divulgação<br />
21
22<br />
zados e o quadro de material especializado está<br />
sendo ampliado”. Mais uma vez, a empresa não<br />
deixa claro quanto tempo levará para finalizar o<br />
descomissionamento da mina do Cercado. A unidade<br />
será um depósito definitivo?<br />
depósito defiNitiVo<br />
No Brasil, apenas em Abadia de Goiás existe<br />
um depósito definitivo para rejeitos radioativos.<br />
O depósito foi criado para acondicionar o lixo radioativo<br />
produzido pelas cerca de 19 gramas de<br />
césio 137 encontradas por um catador de materiais<br />
recicláveis em Goiânia. O acidente de Goiânia<br />
foi o maior em área urbana do mundo e é estudado<br />
por cientistas norte-americanos, como o<br />
cenário de um possível atentado nuclear terrorista.<br />
Apenas 19 gramas foram suficientes para<br />
contaminar diretamente 6.500 pessoas.<br />
Odesson Alves Ferreira, presidente da Associação<br />
das Vítimas do Césio 137 e do Conselho<br />
Estadual de Saúde, participou da Oficina Anti-nuclear<br />
do Nordeste, realizada em abril deste<br />
ano, onde relatou sua história e de outros atingidos<br />
pelo césio 137. Odesson falou do preconceito<br />
de que é vitima até os dias de hoje. Além de<br />
perder a sobrinha, a casa, tudo que lembrava sua<br />
história, fotos, documentos, tudo que pertencia a<br />
ele foi para o depósito.<br />
Odesson conta que perdeu familiares, amigos,<br />
emprego. Quando foi autorizado a voltar ao trabalho,<br />
foi vítima do medo que todos tinham dele.<br />
Ninguém se aproximava, nem mesmo o médico<br />
trabalhista, que o aconselhou a aposentadoria.<br />
“Quando fui comprar uma nova casa, tive<br />
uma surpresa que não esperava: a vizinha fez um<br />
abaixo assinado exigindo que eu e minha família<br />
não pudéssemos morar naquela rua, orientada<br />
por seu médico particular, afirmava que a radiação<br />
emitida pela família poderia agravar seu<br />
estado de saúde. Reconstruir a vida, recomeçar<br />
não é fácil”, afirma Odesson.<br />
É consenso entre especialistas da área e ambientalistas<br />
que se crie no País um órgão regulador<br />
autônomo e independente para a fiscalização<br />
das áreas de radioproteção e segurança nuclear.<br />
Rogério dos Santos Gomes, físico e doutor<br />
em Engenharia Nuclear, explica que “na área de<br />
rejeitos o Brasil possui uma legislação caótica<br />
sobre a seleção de locais e construção dos depósitos<br />
que dispõe que cabe à Comissão Nacional<br />
de Energia Nuclear (CNEN), projetar, licenciar,<br />
construir, operar e fiscalizar os depósitos,<br />
enquanto a Convenção Internacional sobre a segurança<br />
do combustível usado e segurança de<br />
rejeitos, aprovada pela Agência Internacional de<br />
Energia Atômica, assinada pelo Brasil, aprovada<br />
pela Câmara e pelo Senado e sancionada pelo<br />
Presidente da República, dispõe que cada país<br />
deverá assegurar a efetiva separação entre os órgãos<br />
que licenciam e fiscalizam e os que constroem<br />
e operam locais de rejeitos.”<br />
Que garantia podemos ter se o mesmo órgão<br />
que executa é o que fiscaliza? Além do Brasil, apenas<br />
Paquistão e Irã mantêm esta estrutura. Ainda<br />
segundo Rogério Gomes “em julho de 2008 foi<br />
criado pelo presidente da República o Comitê de<br />
caros amigos julho 2010<br />
Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro<br />
(CDPNB), sob coordenação da ministra-chefe<br />
da Casa Civil e compreendendo 11 outros ministros<br />
de Estado, tendo sido consenso entre todos a<br />
necessária criação de uma agência reguladora nuclear,<br />
promovida através da separação da CNEN.<br />
Hoje, passados quase dois anos, nada de prático<br />
foi alcançado, com a coordenação do CDPNB tendo<br />
passado para a Secretaria de Assuntos Estratégicos<br />
da Presidência da República, que no seu documento<br />
sobre os rumos do Brasil até 2022, não<br />
contempla a necessária criação de um órgão regulador<br />
independente. Ao que parece, o discurso de<br />
aumento do programa nuclear brasileiro não estará<br />
associado à criação de estruturas para garantir<br />
que toda a atividade nuclear se desenvolva evitando<br />
riscos à população e ao meio ambiente”.<br />
se sabe quais foram as reais consequências para as<br />
futuras gerações Acredita-se que os estudos foram<br />
dificultados e até mesmo impedidos para que não<br />
se soubesse os reais danos causados pelos Estados<br />
Unidos ao Japão, mesmo estando a guerra praticamente<br />
acabada e o país destruído.<br />
questões éticas<br />
Ex-trabalhadores da Nuclemon afirmam que a<br />
torta ll e o mesotório produzidos na Usam eram<br />
estocados no terreno de Interlagos e depois carretas<br />
levavam os produtos até Poços de Caldas, onde<br />
eram jogados na ribanceira. Um dos entrevistados<br />
mostra a cicatriz na barriga, perdeu um rim e tem<br />
muitos problemas de saúde. Mas enche os olhos<br />
de lágrimas quando conta que ia a Poços de Caldas<br />
para ganhar um “extra”, sem saber o alto preço<br />
que pagaria. Diz que o pior foi quando ficou<br />
sabendo que tipo de trabalho fazia, e que tipo de<br />
material jogou na ribanceira. “é triste pensar que<br />
posso ter prejudicado muita gente”. Este trabalhador<br />
é mais uma vítima do descaso com que o Projeto<br />
Nuclear Brasileiro é conduzido.<br />
Heitor Scalambrini, doutor em Energética da<br />
Université d’Aix-Marseille III e professor da Universidade<br />
Federal de Pernambuco, questiona se é<br />
ético deixar para as futuras gerações resolverem<br />
os problemas do lixo radioativo que nós produzimos.<br />
Ainda segundo Scalambrini, “o PNB nasceu<br />
na ditadura e até hoje depende de demandas<br />
de alguns setores das forças armadas, fascinados<br />
pelo poder que a energia nuclear lhes traz. Outros<br />
grupos de interesse que fazem “lobby” são os<br />
setores industriais “preocupados” com o risco de<br />
um apagão, grupos de cientistas, pelo prestígio e<br />
oportunidades de novas pesquisas e pelo comando<br />
do processo, os fornecedores de equipamentos<br />
e as empreiteiras, por motivos óbvios”.<br />
O professor Scalambrini acredita que uma matriz<br />
energética diversificada seria a solução para<br />
o País, inclusive para aproveitar todo o potencial<br />
de fontes alternativas que existem por aqui. Para<br />
ele, a energia nuclear talvez seja o futuro, mas<br />
ainda há muito o que estudar.<br />
Não se pode subestimar os riscos com segurança.<br />
Rogério Gomes acredita que o Programa Nuclear<br />
Brasileiro não está maduro, que corremos o risco<br />
de um acidente como o de Alcântara, próximo<br />
a usinas nucleares. Um estudo feito pela pesquisadora<br />
Geórgia Reis Prado concluiu que a população<br />
de Caetité, na Bahia, está 100 vezes mais exposta à<br />
contaminação por urânio que a média mundial.<br />
A lavra de urânio está associada a metais pesados.<br />
Segundo o pesquisador Lamego, um estudo<br />
realizado na área de mineração de urânio de<br />
Poços de Caldas indica que a “emissão de manganês<br />
era muito mais significativa, do ponto de<br />
vista da saúde humana, do que aquelas relativas<br />
aos elementos radioativos, que sofriam (e ainda<br />
sofrem) um rígido controle pela Comissão Nacional<br />
de Energia Nuclear”.<br />
O debate aberto e democrático deveria ser prérequisito<br />
para se decidir qual o tipo de energia queremos,<br />
e que sociedade queremos construir.<br />
custos muito altos<br />
Vendo a energia nuclear pela lógica do aquecimento<br />
global, ela parece perfeita, mas, quando<br />
colocamos na ponta do lápis toda a contabilidade<br />
e os impactos ambientais causados por ela desde<br />
a mineração até a destinação final de seus rejeitos,<br />
será que realmente estamos prontos para investir<br />
no nuclear?<br />
Nos Estados Unidos, a grande polêmica da<br />
construção do depósito definitivo no Estado de<br />
Nevada ainda não terminou. O governo dos Estados<br />
Unidos gastou, só com estudos prévios para<br />
definir qual seria o melhor local para o depósito,<br />
7 bilhões de dólares. Os custos da construção<br />
estão estimados em 58 bilhões, com vida útil de<br />
pelo menos 10 mil anos. Críticos ao projeto temem<br />
que o material possa escoar pelos campos<br />
ao redor da montanha e contaminar o meio ambiente,<br />
além do risco de se transportar o material<br />
altamente radioativo por longas distâncias. Caso<br />
o depósito da Montanha de Yucca não se concretize,<br />
os norte-americanos voltam à estaca zero:<br />
onde depositar seu lixo radioativo?<br />
Vazamentos estão por toda parte, até mesmo<br />
em um depósito no deserto do Estado de Washington.<br />
Colocar num ônibus espacial e enviar para<br />
outro planeta? Quais seriam as consequências se<br />
acontecesse um acidente com um ônibus espacial<br />
carregado de lixo radioativo? A NASA já teve dois<br />
sérios acidentes envolvendo ônibus espaciais.<br />
O tsunami que atingiu a Indonésia em 2004 removeu<br />
do fundo do mar da Somália, contêineres de<br />
lixo radioativo jogados ilegalmente em sua costa. A<br />
população da Somália sofreu com hemorragias em<br />
vários órgãos, sangramentos na boca, queimaduras<br />
de pele, além da contaminação das águas e do solo.<br />
Ainda existe a possibilidade que estas pessoas contaminadas<br />
possam desenvolver câncer e anomalias<br />
genéticas nas próximas décadas.<br />
De acordo com a médica Maria Vera de Oliveira,<br />
do Centro de Referência do Trabalhador-Santo<br />
Amaro, em São Paulo, “não existem níveis seguros<br />
de contato com a radiação”. Por estarem sempre<br />
ligados a militares, estes estudos são dificultados.<br />
Por mais que se diga que a energia nuclear<br />
deva ser usada para fins pacíficos, ela sempre estará<br />
muito próxima daqueles que fazem as guerras.<br />
No caso de Nagasaki e Hiroshima até hoje não Joelma Couto é jornalista.<br />
-Joelma_160.indd 22 02.07.10 17:25:29
Frei Betto<br />
ÁGUA COMO<br />
MERCADORIA<br />
O capitalismo mercantiliza os bens da natureza, os frutos do trabalho<br />
humano, todos os aspectos de nossa vida. Aprendemos na escola: 71% de nosso<br />
corpo são água, a mesma proporção existente em nosso planeta.<br />
Bebemos litros de água no decorrer do dia. Do velho e bom filtro? Não. Em geral,<br />
de garrafas pet vendidas em supermercados. Quem garante que a água engarrafada<br />
é mais potável que a filtrada em casa? A propaganda; ela faz nossa cabeça<br />
e direciona nossos hábitos.<br />
De olho no faturamento, empresas transnacionais procuram incutir na opinião<br />
pública a ideia da água como mercadoria de grande valor econômico, capaz<br />
de tornar-se uma fonte de renda para um país como o Brasil. Retira-se da água<br />
sua dimensão de direito humano, seu caráter vital, sua dimensão sagrada. Quem<br />
se opõe a esta ideologia é rotulado como “contrário ao progresso”. Porém, é na<br />
defesa da água como direito e bem comum que reside a possibilidade de salvarmos<br />
o planeta Terra – “Planeta-Água” – da desolação, e assegurarmos a vida das<br />
gerações futuras.<br />
O raciocínio da mercantilização da água é simples: tendo que pagar, a sua<br />
utilização será mais racional e cuidadosa. Ora, isso não implica incluir a água na<br />
categoria de mercadoria regida pelas leis do mercado.<br />
Este argumento tem sua parte de verdade – cuida-se melhor daquilo<br />
que é mais caro. As consequências, porém, podem ser graves se a água for regida<br />
pela lei da oferta e da procura. A cobrança pelo uso da água pode ser um mecanismo<br />
de gerenciamento desde que se estabeleçam preços diferenciados conforme<br />
a concessão de uso. Uma fábrica de cerveja retira do poço artesiano toda<br />
água que necessita, sem pagar nada por ela. Depois descarrega parte dessa água,<br />
agora poluída por detergentes e dejetos, no rio mais próximo. O lucro com a venda<br />
da cerveja é todo dela; a perda no lençol subterrâneo e a poluição do rio são<br />
da comunidade local.<br />
Uma boa gestão cobraria preço baixo pela água usada como insumo<br />
e alto sobre o esgoto industrial, de modo a obrigar a indústria a filtrar dejetos<br />
antes de lançá-los de volta ao rio. Também é preciso estabelecer preços diferenciados<br />
conforme o uso da água (consumo humano, esgoto, energia elétrica,<br />
produção industrial, agricultura irrigada, lazer etc.).<br />
Nas zonas urbanas já pagamos pelos serviços de captação, tratamento<br />
e distribuição da água, não pela água em si. A novidade é que, além dos<br />
serviços, deveremos pagar também pelo metro cúbico de água utilizada. Se este<br />
preço adicional vier a excluir alguém do acesso à água, tal medida será eticamente<br />
inaceitável.<br />
O princípio que obriga a quem usa, pagar, não pode ser aceito ao contrário:<br />
“quem não paga, não usa.” Não sendo a água uma mercadoria, mas bem<br />
de domínio público, o princípio só se aplica como norma reguladora de uso, seja<br />
quantitativa (quem usa mais água, paga mais), seja qualitativamente (quem usa<br />
para fins lucrativos paga mais do que quem usa para consumo pessoal). Se assim<br />
não for, a água deixará de ser direito de todos os seres vivos, criando-se um impasse<br />
ético e uma tragédia: a dos excluídos da água.<br />
Frei Betto é escritor, autor de Calendário do Poder (Rocco), entre outros livros.<br />
Cesar Cardoso<br />
Os<br />
tupInAMbás<br />
e a f o r m a ç å o d o n o v o<br />
m u n d o europeu<br />
Não foi por acaso que, em 1500, os Tupinambás<br />
saíram do porto do Rio de Janeiro e navegaram<br />
até as terras do Novo Mundo, batizando-as<br />
de Europa. Eles sabiam muito bem o que iam fazer<br />
por lá: levar o primeiro processo de globalização<br />
ao continente desconhecido.<br />
É verdade que de início se limitaram à<br />
retirada do Pau-Europa, mas com o ciclo da beterraba<br />
iniciaram a produção de açúcar, que exportaram<br />
para todo o Velho Mundo, desde a Argentina<br />
até o Canadá. Junto com o lucro vieram<br />
os conflitos com os índios europeus – franceses,<br />
ingleses, portugueses, espanhóis e os temidos<br />
holandeses, que se aliaram aos Xavantes quando<br />
estes invadiram o Nordeste da Europa em 1630,<br />
liderados por Juruna de Nassau e sua Companhia<br />
Xavante das índias Ocidentais.<br />
Nos anos 1700, para explorar o ouro descoberto<br />
no interior da Europa, os Tupinambás são<br />
obrigados a importar mão de obra estrangeira, já<br />
que a indolência do europeu o torna incapaz de<br />
trabalhar nas minas. É criado assim o tráfico negreiro<br />
para a Europa, que dura até 1888, quando<br />
os Tupinambás promulgam a Lei Áurea e dão<br />
liberdade a todos os escravos.<br />
No século XX, chegam as guerras de<br />
independência, com Churchill, De Gaulle, Stalin<br />
e outros líderes terroristas sacudindo uma Europa<br />
até então pacífica. E se no século XXI já não<br />
há mais colônias, há os populistas como Sarkozy<br />
e Berlusconi oferecendo milagres à população.<br />
Mas a dura realidade histórica é<br />
que nada disso altera o quadro do subdesenvolvimento<br />
europeu. Afinal, seria ele resultado de<br />
séculos de imperialismo tupinambá ou do inóspito<br />
clima frio do continente somado à preguiça<br />
natural dos índios, sejam eles ingleses, portugueses,<br />
franceses ou alemães?<br />
Cesar Cardoso é historiador e leciona na University<br />
of Tchucarramãe.<br />
abril 2010 caros amigos<br />
-freibeto+cesar_160.indd 23 12.07.10 14:47:35<br />
23
ensaio Janaina Wagner<br />
Chiang Dao. Interior norte da Tailândia, 750 km da<br />
capital do país, Bangcoc.<br />
Em meio a tantos templos, mulheres “girafas”, orquidários e turistas,<br />
a paisagem interiorana acaba se parecendo com alguma<br />
outra qualquer região de Terceiro Mundo: pobre, muito pobre.<br />
A escola aqui fotografada atende aos pequenos dos vilarejos de<br />
seu entorno. São crianças que só poderão frequentar uma verdadeira<br />
escola tailandesa após terem aprendido a ler e a escrever<br />
na língua oficial de seu país. A escola não tem energia elétrica,<br />
água canalizada e dispõe de escasso material escolar. As crianças<br />
fazem o que sabem melhor: brincam. Pneus, bambus, troncos<br />
de árvores, latões de lixo e restos de construção formam o parquinho<br />
dos sonhos. Sorriem, fazem graça, dizem que são felizes.<br />
Brincadeira de criança? Brincadeira de gente grande.<br />
-Ensaio_160.indd 24 02.07.10 17:36:13
-Ensaio_160.indd 25 02.07.10 17:36:21
26<br />
Trabalhador resgatado da<br />
escravidão em fazenda de<br />
Eldorado dos Carajás, Pará.<br />
caros amigos julho 2010<br />
Lúcia Rodrigues<br />
Agronegócio escrAvizA<br />
milhares de trabalhadores no<br />
campo<br />
As culturas da cana, soja e algodão, a pecuária, as<br />
carvoarias e o desmatamento da Floresta Amazônica<br />
são as atividades preferidas dos exploradores do<br />
trabalho escravo. Fotos Leonardo Sakamoto/Repórter Brasil<br />
-Escravidao_160.indd 26 02.07.10 18:21:03
a impressão que se tem é a de que se está<br />
entrando no túnel do tempo e retornando<br />
alguns séculos no calendário gregoriano.<br />
Aos olhos dos mais desavisados, pode parecer<br />
estranho e até mesmo irreal que ainda hoje<br />
existam pessoas sendo submetidas à escravidão<br />
em nosso país. Mas infelizmente essa gravíssima<br />
violação aos direitos humanos é uma dura realidade<br />
no Brasil do século 21.<br />
Milhares de pessoas ainda são submetidas a<br />
trabalho forçado e a condições degradantes no<br />
campo e na cidade. Relatório da Organização Internacional<br />
do <strong>Trabalho</strong> (OIT), de 2005, estimava<br />
em 25 mil o número de trabalhadores mantidos<br />
em condições análogas a de escravos no<br />
país. Destes, 80% atuavam na agricultura e 17%,<br />
na pecuária.<br />
Os números do organismo internacional, no<br />
entanto, parecem estar subdimensionados se levarmos<br />
em conta o total de trabalhadores libertados<br />
pelos agentes do governo federal na gestão<br />
do presidente Lula. De 2003 a maio de 2010,<br />
foram retirados da condição de escravos 31.297<br />
pessoas, segundo dados do Ministério do <strong>Trabalho</strong><br />
e Emprego.<br />
A prática criminosa não está restrita apenas ao<br />
Brasil e se espalha pelos continentes. A OIT detectou<br />
no mesmo ano, que mais de 12 milhões de trabalhadores<br />
eram vítimas da sanha de latifundiários<br />
e empresários inescrupulosos pelo mundo.<br />
O fenômeno da globalização nos anos 90 foi<br />
decisivo para abrir as fronteiras dos países ao capitalismo<br />
em escala mundial. As transações comerciais<br />
e financeiras disseminaram ainda mais<br />
a busca pelo lucro rápido e exponencial. A maneira<br />
encontrada por esses patrões, para reduzir<br />
o preço final de seus produtos, se deu pela drástica<br />
redução do custo-trabalho.<br />
Os escravagistas do século 21 não prendem<br />
mais seus trabalhadores ao tronco e nem infligem<br />
chibatadas. A escravidão contemporânea<br />
tem suas particularidades, mas nem por isso esses<br />
patrões deixam de ser considerados escravocratas.<br />
O artigo 149 do Código Penal brasileiro<br />
é absolutamente claro na definição do que seja<br />
praticar escravidão nos dias de hoje.<br />
“Reduzir alguém a condição análoga à de escravo,<br />
quer submetendo-o a trabalhos forçados<br />
ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições<br />
degradantes de trabalho, quer restringindo,<br />
por qualquer meio, sua locomoção em razão<br />
de dívida contraída com o empregador ou preposto”,<br />
afirma o texto penal.<br />
Apesar de soar extemporânea, a prática escravista<br />
está arraigada no cotidiano brasileiro mais<br />
do que se pode imaginar. “É uma mentalidade da<br />
elite econômica e política do país”, afirma o se-<br />
nador José Nery (PSOL-PA), que preside a Frente<br />
Parlamentar Mista pela Erradicação do <strong>Trabalho</strong><br />
Escravo no Brasil.<br />
Segundo o senador, a bancada ruralista no<br />
Congresso Nacional impede há 15 anos a aprovação<br />
de uma Proposta de Emenda à Constituição<br />
(PEC) para coibir a prática criminosa. Neste momento,<br />
tramita na Câmara dos Deputados a PEC<br />
438 em defesa da erradicação do trabalho escravo<br />
no país. A PEC 438 já foi aprovada em primeira<br />
e segunda votação no Senado e em primeira,<br />
na Câmara, e aguarda a ida ao plenário para a<br />
segunda votação. O dispositivo é necessário para<br />
que a matéria possa se transformar em lei.<br />
O sucesso de sua aprovação ainda este ano está<br />
ameaçado. “Apresentamos 280 mil assinaturas ao<br />
presidente da Câmara dos Deputados (Michel Temer)<br />
e a todos os lideres partidários pedindo a urgência<br />
na votação da PEC. Mas as lideranças do<br />
governo estão criando várias dificuldades. Dizem<br />
que não querem discutir e votar matérias polêmicas<br />
no período pré-eleitoral. Ora é nossa obrigação<br />
aprovar toda e qualquer matéria que diga respeito<br />
à dignidade e ao bem-estar das pessoas. Não<br />
concordo com esse tipo de atitude que impede a<br />
legislação de avançar no combate ao trabalho escravo<br />
no Brasil”, ressalta Nery.<br />
O parlamentar quer pelo menos incluir a matéria<br />
na pauta de votação da Câmara logo após o<br />
término do segundo turno das eleições. “Estamos<br />
tentando arrancar do presidente da Câmara e dos<br />
líderes partidários esse compromisso.”<br />
O secretário de políticas sociais da Central<br />
Única dos Trabalhadores (CUT), Expedito Solaney,<br />
é menos otimista que Nery. O sindicalista<br />
considera que a PEC só será votada na próxima<br />
legislatura. “Entre por na pauta e não aprovar é<br />
melhor jogar para a frente. É melhor recuar taticamente.<br />
O Congresso é muito conservador, a<br />
maioria é ruralista”, afirma.<br />
Pelo texto da PEC 438, as propriedades rurais<br />
e urbanas que forem flagradas com trabalhadores<br />
escravos serão expropriadas para efeito<br />
de reforma agrária no campo e destinadas a<br />
programas sociais de moradia popular em áreas<br />
urbanas.<br />
O arco de alianças eleitoral e da base de sustentação<br />
do governo, além de interesses econômicos<br />
dos parlamentares, impede que a maté-<br />
Para Dom Tomás Balduino, o trabalho escravo ainda não<br />
foi erradicado do Brasil porque mexe com os interesses<br />
dos aliados políticos do governo Lula.<br />
A bancada ruralista no Congresso Nacional impede<br />
há 15 anos a aprovação de uma Proposta de Emenda<br />
à Constituição para coibir a prática da escravidão.<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
ria avance com celeridade em Brasília. Apesar de<br />
ninguém defender publicamente o trabalho escravo,<br />
na prática ele é tolerado.<br />
O ex-presidente da Câmara, deputado Inocêncio<br />
de Oliveira (PR-PE), que teve propriedades<br />
flagradas por auditores fiscais do trabalho com<br />
a prática da escravidão, não sofreu nenhum tipo<br />
de punição até hoje. Oliveira chegou a ocupar algumas<br />
vezes o cargo de presidente da República<br />
durante o mandato de Itamar Franco.<br />
Mais recentemente o senador João Ribeiro<br />
(PR-TO) também foi acusado de se utilizar de trabalho<br />
escravo dentro de sua propriedade. O Ministério<br />
do <strong>Trabalho</strong> e Emprego não divulga mais<br />
detalhes sobre o andamento do caso, apenas afirma<br />
que informações sobre pessoas físicas e jurídicas<br />
só podem ser divulgadas após o término do<br />
processo administrativo.<br />
O Ministério também mantém uma lista com<br />
o nome de quem usa o trabalho escravo no País.<br />
A lista suja, como é conhecida a relação de escravagistas,<br />
é atualizada semestralmente e pode<br />
ser consultada em http://www.mte.gov.br/trab_<br />
escravo/lista_suja.pdf<br />
CPT X laTifúNdio<br />
Para o bispo emérito de Goiás e membro da<br />
Comissão Pastoral da Terra (CPT), Dom Tomás<br />
Balduino, o trabalho escravo ainda não foi erradicado<br />
do Brasil porque mexe com os interesses<br />
dos aliados políticos do governo Lula. O mesmo<br />
argumento é utilizado para explicar a não realização<br />
da reforma agrária no país.<br />
“Por que não há reforma agrária? Porque<br />
mexe na terra dos aliados do governo. É uma lógica<br />
fácil de entender. O trabalho escravo cresce<br />
com o agronegócio, que é a menina dos olhos<br />
da política governamental. Apesar de ter apresentado<br />
um plano de erradicação para o trabalho<br />
escravo, o governo continua elogiando os<br />
usineiros, chamando-os de heróis. A concentração<br />
do capital em poucas mãos com o apoio governamental<br />
está criando uma desigualdade social<br />
brutal. O Brasil é o segundo país do mundo<br />
em concentração de terra, em latifúndio. Só perde<br />
para o Paraguai”, critica o religioso.<br />
Dom Tomás cita o caso da Cosan, holding do setor<br />
sucroalcooleiro, que utiliza trabalho escravo em<br />
suas usinas, para demonstrar a falta de compromisso<br />
do agronegócio com a dignidade humana.<br />
A Cosan é a maior empresa produtora de açúcar<br />
e álcool do mundo. É proprietária das marcas<br />
do açúcar União e Da Barra. Em dezembro de<br />
2008, a companhia também passou a controlar a<br />
operação de ativos da distribuição de combustíveis<br />
da Esso. E assumiu o controle da produção<br />
e distribuição dos lubrificantes Mobil. Além dos<br />
setores de alimento e combustíveis, a Cosan tam-<br />
julho 2010 caros amigos<br />
-Escravidao_160.indd 27 02.07.10 18:21:03<br />
27
28<br />
bém atua na área de produção de energia elétrica<br />
a partir do bagaço da cana de açúcar.<br />
O exemplo de pujança que a empresa tenta<br />
demonstrar mascara uma realidade nada agradável.<br />
A Cosan engrossa a lista suja de empresas<br />
que utilizam trabalho escravo em suas unidades,<br />
divulgada pelo Ministério do <strong>Trabalho</strong> e Emprego.<br />
A companhia ingressou no ranking escravista<br />
no final do ano passado. Seus advogados se<br />
apressaram e obtiveram liminar na Justiça para<br />
retirá-la da lista suja. O Ministério tenta agora<br />
cassar a liminar expedida, para inseri-la novamente<br />
na lista dos escravagistas.<br />
Ícone do desrespeito às normas mais elementares<br />
da dignidade humana, a Cosan é responsável,<br />
em parceria com a ExxonMobil, pelo patrocínio<br />
do principal prêmio do jornalismo brasileiro:<br />
o Prêmio Esso.<br />
A empresa que pratica escravidão em suas<br />
propriedades também tem em seu Conselho de<br />
Administração um ex-ministro da Fazenda. Maílson<br />
da Nóbrega integra seu conselho administrativo<br />
desde dezembro de 2007.<br />
RePRessão<br />
Os auditores fiscais do trabalho sentem na<br />
pele o peso da repressão dos latifundiários escravistas<br />
enfurecidos com aqueles que atravessam<br />
seus caminhos. A presidente do Sindicato<br />
Nacional dos Auditores Fiscais do <strong>Trabalho</strong> (Sinait),<br />
Rosangela Silva Rassy, relembra a chacina<br />
de Unaí, município mineiro, onde quatro funcionários<br />
do Ministério <strong>Trabalho</strong> foram assassinados,<br />
a mando do prefeito da cidade, Antério Mânica<br />
(PSDB), quando inspecionavam terras de<br />
sua propriedade, em 28 de janeiro de 2004.<br />
Até o momento ninguém foi julgado. “É um<br />
negócio difícil de a gente entender. Ninguém foi<br />
punido. Foram nove indiciados, mas só dois estão<br />
presos (os acusados de serem os executores).<br />
Os mandantes foram os primeiros a serem soltos,<br />
dois empresários: o prefeito e seu irmão. Com<br />
certeza, se valeu do cargo. Inclusive o processo<br />
dele corre apartado dos demais, porque se beneficia<br />
da imunidade parlamentar”, revela Rosangela.<br />
Logo após os crimes de Unaí, as fiscalizações<br />
foram suspensas naquela área por medida de segurança.<br />
“Ninguém ia lá. Isso é tudo o que o mau<br />
empresário quer. Há uma certeza de impunidade”,<br />
enfatiza a sindicalista.<br />
Depois desses assassinatos, o Congresso aprovou<br />
o porte de arma para os auditores fiscais do<br />
caros amigos julho 2010<br />
Francisco, 74 anos, libertado durante fiscalização em fazenda em Marabá (PA).<br />
trabalho. Mas para que a lei entre em vigor, precisa<br />
ser regulamentada pelo Poder Executivo. “É uma lei<br />
inócua, porque até hoje não foi regulamentada.”<br />
Para o delegado da Polícia Federal e chefe da<br />
Divisão de Direitos Humanos do órgão, Delano<br />
Cerqueira Bunn, os assassinatos praticados em<br />
Unaí demonstram que o crime organizado está<br />
enraizado no trabalho escravo.<br />
“Estamos mapeando as rotas dessas organizações<br />
criminosas que praticam crimes financeiros,<br />
lavagem de dinheiro, formação de quadrilha. A<br />
realidade do trabalho escravo está presente em<br />
todas as regiões do país, tanto urbano quanto rural.<br />
É rentável para o grande empresário e inversamente<br />
proporcional a imagem do Brasil no cenário<br />
internacional.”<br />
O delegado Delano destaca a força política exercida<br />
pelos fazendeiros nessas regiões. “São pessoas<br />
influentes que têm poder de mando na política lo-<br />
“O combate à escravidão depende de se acabar com<br />
a extrema pobreza, qualificar as pessoas, dar educação<br />
e reforçar a punição aos empresários”.<br />
cal e nas estruturas de segurança pública.”<br />
Rosangela também critica o número reduzido<br />
de auditores do trabalho para a fiscalização<br />
de todo o país: 2.899. O sindicato da categoria<br />
defende a realização de concursos públicos<br />
para resolver o problema. “Hoje existem 750 cargos<br />
vagos, porque as pessoas morrem, se aposentam.<br />
No mínimo o concurso deveria preencher<br />
essas vagas.” O Estado do Pará, que é recordista<br />
em trabalho escravo, possui apenas 105 auditores<br />
fiscais.<br />
Para o secretário executivo da Comissão Nacional<br />
Para a Erradicação do <strong>Trabalho</strong> Escravo<br />
(Conatrae), vinculada à Secretaria Especial de<br />
Direitos Humanos da Presidência da República,<br />
José Guerra, a pobreza faz com que o trabalhador<br />
aceite qualquer coisa e se torne presa fácil de<br />
aliciadores. “Esses trabalhadores derrubam matas<br />
para fazer pasto, para fazer carvão, cortam<br />
de cana, lidam com o gado, arrancam tocos, fazem<br />
o trabalho sem qualificação”, diz.<br />
Ele considera que o combate a essa prática depende<br />
de “se acabar com a extrema pobreza, qualificar<br />
as pessoas, dar educação e reforçar a punição<br />
aos empresários – para que não acreditem<br />
que vale a pena explorar o trabalho escravo.”<br />
nÃo coMPre ProDUTos FeiTos Por T<br />
-Escravidao_160.indd 28 02.07.10 18:21:04
capital paulista abriga escravidão<br />
Prática criminosa cresce no coração do capitalismo<br />
com utilização de mão de obra sulamericana na<br />
indústria de confecção.<br />
Se engana quem pensa que o trabalho escravo<br />
é uma característica apenas dos rincões mais<br />
afastados das áreas urbanas. Apesar de um maior<br />
número de trabalhadores escravizados se encontrarem<br />
na zona rural, a prática criminosa se propaga<br />
também na principal cidade do país.<br />
A indústria da confecção desponta como a<br />
principal área de absorção da mão de obra escrava<br />
na cidade. A Associação Brasileira da Indústria<br />
Têxtil calcula que a demanda por roupa<br />
cresce 3% ao ano. Mas assim como no campo,<br />
não há estatísticas oficiais que projetem com segurança<br />
o número de pessoas nessas condições,<br />
embora se saiba que não são poucas.<br />
A quase totalidade desses trabalhadores vem<br />
de regiões empobrecidas da Bolívia e do Paraguai,<br />
castigadas no passado recente por décadas<br />
de ditadura feroz. “Todos os dias chegam ao Brasil<br />
de três a cinco ônibus lotados de pessoas para<br />
trabalharem nessas oficinas”, afirma a Defensora<br />
Pública Federal, Daniela Muscari Scacchetti.<br />
A precariedade das condições de vida em seus<br />
países de origem e a falta de instrução escolar as<br />
torna presas fáceis nas mãos de capitalistas escravagistas.<br />
Apesar de os atravessadores serem<br />
as figuras mais visíveis aos olhos do trabalhador<br />
são os grandes magazines os responsáveis pela<br />
prática criminosa.<br />
A rede de lojas Marisa, por exemplo, já levou 49<br />
autos de infração dos auditores fiscais do trabalho<br />
e foi autuada em R$ 600 mil. “Mas a gente acredita<br />
que a imensa maioria da produção têxtil paulista, o<br />
que costuma ser comercializado por C&A, Renner,<br />
Riachuelo, Pernambucanas, griffes como a Collins,<br />
é resultado de mão de obra escrava de trabalhadores<br />
sulamericanos”, conta o chefe da Seção da Fiscalização<br />
do <strong>Trabalho</strong> da Superintendência Regional<br />
de São Paulo, Renato Bignami.<br />
Além de jornadas extenuantes de trabalho,<br />
precarização das condições de trabalho e do cerceamento<br />
à liberdade, com ameaças a vida do<br />
trabalhador e de seus familiares no país de origem,<br />
o valor pago ao trabalhador é irrisório. Para<br />
fazer uma camiseta, recebe em torno de R$ 0,40 a<br />
R$ 0,50. Um casaco mais elaborado que leva até<br />
três horas para ficar pronto pode render no máximo<br />
R$ 1,50. A mesma peça é vendida na loja<br />
de departamento por R$ 300.<br />
A expropriação da mais valia do trabalhador é<br />
avassaladora. Quando flagradas praticando a escravização,<br />
essas empresas alegam que não têm<br />
controle sobre o fluxo de produção. Afirmam que<br />
o trabalho é terceirizado e que desconhecem as<br />
condições em que ocorre. “Nossa tese é de que no<br />
mínimo (a empresa) é solidária, quando não diretamente<br />
responsável. Mas essa é uma discussão<br />
jurídica quase eterna e nova. A legislação não é<br />
absolutamente clara, nos casos de terceirização<br />
e subcontratação a lei é quase ausente”, enfatiza<br />
Renato.<br />
A precariedade das instalações de trabalho<br />
dessas oficinas remonta ao início do século passado.<br />
Há ambientes improvisados onde funciona<br />
a oficina e existe o espaço da cama. O risco<br />
de acidentes é iminente. As condições de segurança<br />
e saúde são péssimas. As oficinas de costura<br />
têm o risco adicional de sofrer um incêndio,<br />
por causa de muita fiação exposta e pouca ventilação.<br />
Descumprem completamente as normas<br />
do Ministério do <strong>Trabalho</strong>. O mais recente incêndio<br />
ocorreu, em fevereiro deste ano, em Bangladesh.<br />
Os 21 trabalhadores mortos produziam<br />
para a sueca H&M.<br />
As crianças também sofrem muito nessas condições<br />
de precariedade total. Geralmente ficam<br />
presas dentro de quartos sem lazer e educação,<br />
enquanto os pais trabalham nas máquinas. Quando<br />
conseguem escapar, se arriscam por entre as<br />
polias das máquinas. Se fazem alguma travessura<br />
são punidas muitas vezes pelo dono da oficina.<br />
“No caso das lojas Marisa tinha uma mãe com<br />
um bebê no colo costurando e dando de mamar<br />
ao mesmo tempo. Outro caso envolvendo o magazine<br />
era o de uma menininha com cabelo comprido<br />
perto da polia (da máquina) que poderia<br />
puxá-lo (causando um grave acidente)”, relata o<br />
chefe da fiscalização da Superintendência Regional<br />
do <strong>Trabalho</strong> de São Paulo.<br />
A denúncia que resultou na autuação da Marisa<br />
partiu do Sindicato das Costureiras. A fiscalização<br />
foi até ao local e encontrou a produção<br />
destinada para a loja de departamentos com as<br />
etiquetas. “A sociedade precisa saber disso”, destaca<br />
a defensora Daniela ao se referir a publicização<br />
dos nomes das empresas que se valem do<br />
trabalho escravo.<br />
TrABALHo escrAvo<br />
ToRNeiRa feChada<br />
Para o coordenador da Repórter Brasil, ONG de<br />
defesa dos direitos humanos, Leonardo Sakamoto,<br />
uma forma eficaz de combate ao trabalho escravo<br />
é informar o consumidor sobre a origem do produto.<br />
“O governo tem de garantir a rastreabilidade do<br />
produto. Sem a rastreabilidade da cadeia produtiva<br />
a campanha é útil, mas pouco eficaz”, diz.<br />
A lista suja do Ministério do <strong>Trabalho</strong> com<br />
o nome das empresas envolvidas em trabalho<br />
escravo é hoje uma das principais medidas de<br />
combate à prática, porque traz desconforto e<br />
preocupação aos maus patrões. Eles perdem financiamento<br />
e contratos.<br />
Os cerca de 200 signatários do pacto pela erradicação<br />
do trabalho escravo no país, assinado<br />
em 2005, cortam a compra dos produtos dessas<br />
empresas escravistas.<br />
Exemplo disso foi a atitude dos hipermercados<br />
ao cancelaram a compra de açúcar União e<br />
Da Barra, da Cosan, no início do ano porque a<br />
empresa utiliza trabalho escravo em suas plantas.<br />
Leonardo destaca que desde 2004 os bancos<br />
públicos federais não financiam empresas que<br />
usam trabalho escravo.<br />
Mas nem todas as empresas estão dispostas<br />
a aderir ao pacto da civilidade. “A Teka, Karsten,<br />
Hering, Marisol, que têm trabalho escravo<br />
em sua cadeia produtiva, não assinaram (o documento).”<br />
A Gerdau e todas as montadoras também<br />
não assinaram o pacto. “Há trabalho escravo<br />
na cadeia do aço”, enfatiza o coordenador da<br />
Repórter Brasil.<br />
O chefe da Seção de Fiscalização do <strong>Trabalho</strong><br />
destaca que na área de construção civil também<br />
vem sendo detectada a presença de trabalhadores<br />
em regime análogo ao escravo. “Já ouvi colegas<br />
comentando que empreiteiras que estavam trabalhando<br />
no PAC tinham trabalho escravo.”<br />
A sociedade também precisa fazer a sua parte<br />
para eliminar essa chaga. Parcela de responsabilidade<br />
pela perpetuação dessa prática também pode<br />
ser debitada na conta dos consumidores. Muitas<br />
vezes a própria demanda da população acaba por<br />
conduzir a esse tipo de situação. Renato explica<br />
que a moda exibida nas novelas acaba pressionando<br />
por uma produção rápida e barata.<br />
“Sai na novela uma roupa indiana, no dia<br />
seguinte a consumidora ou o consumidor quer<br />
uma, igual. A demanda por esse tipo de roupa faz<br />
com que o empresário corra para produzir o mais<br />
rápido possível. E produção rápida só é conseguida<br />
com precarização da mão de obra. Não tem<br />
outro modelo por enquanto”, conclui.<br />
O problema é falta uma ação coordenada<br />
das autoridades, serviços públicos e sociedade<br />
civil para erradicar essa brutal violação dos direitos<br />
humanos.<br />
Lúcia Rodrigues é jornalista<br />
luciarodrigues@carosamigos.com.br<br />
julho 2010 caros amigos<br />
-Escravidao_160.indd 29 02.07.10 18:21:04<br />
29
30<br />
caros amigos julho 2010<br />
Tatiana Merlino<br />
Fechando o fosso entre<br />
a pobreza e a<br />
universidade<br />
Cursinhos<br />
populares<br />
proporcionam<br />
o acesso à<br />
educação<br />
superior no Brasil<br />
para estudantes<br />
de baixa renda<br />
imagine uma sala de cursinho pré-vestibular.<br />
Imagine o perfil dos alunos que estudam ali.<br />
Provavelmente, a maioria das pessoas pensaria<br />
em jovens brancos, de classe média. Esse seria<br />
o cenário dos cursos preparatórios para o ensino<br />
superior não fosse a existência de cursinhos<br />
pré-vestibular populares.<br />
Surgidos a partir da década de 1990 com o<br />
objetivo de auxiliar na democratização do acesso<br />
à universidade, tais cursinhos ajudam jovens<br />
(e não tão jovens) de baixa renda a conquistarem<br />
o sonho do diploma de uma universidade.<br />
De acordo com Henrique Nagao Hamada, coordenador<br />
do Cursinho da Psico, ligado à Faculdade<br />
de Psicologia da Universidade de São Paulo<br />
(USP), “os cursinhos populares realizam um<br />
trabalho de inserção de jovens e adultos de baixa<br />
renda em universidades públicas, partindo do<br />
princípio do direito à educação. Eles ajudam a diminuir<br />
o abismo existente entre essas pessoas e<br />
as universidades públicas. Também auxiliam na<br />
democratização do acesso à universidade como<br />
medida paliativa para uma transformação maior<br />
na educação brasileira”.<br />
-Tatiana_160.indd 30 02.07.10 17:09:49
Hamada explica que essas instituições foram<br />
criadas num contexto histórico marcado pelo “sucateamento<br />
do ensino público e mercantilização<br />
da educação privada”. O vestibular, por sua vez,<br />
“tem se tornado cada vez mais uma barreira de seletividade<br />
econômica, que desconsidera as condições<br />
sociais concretas de jovens populares”.<br />
Para ele, há uma suposta objetividade oferecida<br />
pelos exames de admissão, assumidos como<br />
um instrumento igual para todos aqueles aptos<br />
a prestá-los. “Como fruto desse processo, observamos<br />
a naturalização de desigualdades social e<br />
historicamente produzidas”.<br />
Processo seletivo<br />
Em muitos casos, os cursinhos populares são<br />
fundados por iniciativa de professores, grêmios<br />
ou centros acadêmicos das próprias universidades,<br />
a exemplo do Cursinho da Poli, de iniciativa<br />
da Escola Politécnica da USP, e o Cursinho<br />
Popular da UFSC (Universidade Federal de Santa<br />
Catarina). Há, também, os oferecidos por movimentos<br />
sociais, como a Educafro (Educação e<br />
Cidadania de Afro-descendentes e Carentes) e a<br />
Uneafro (União de Núcleos da Educação Popular<br />
para Negros e Classe Trabalhadora).<br />
Porém, nem todos são absolutamente gratuitos,<br />
a exemplo dos que não possuem instituições<br />
responsáveis por sua manutenção. Nesses casos,<br />
suas estruturas são garantidas por meio de pagamento<br />
de taxas simbólicas. Em alguns, os professores<br />
são estudantes voluntários, em outros,<br />
recebem uma “ajuda de custo” pelo trabalho realizado.<br />
Para assegurar que os inscritos sejam pessoas<br />
de baixa renda, a admissão é feita após um<br />
processo seletivo em que se avalia a condição socioeconômica<br />
do candidato.<br />
O perfil dos alunos atendidos pela Uneafro é<br />
semelhante ao de Anderson Lima da Silva, de<br />
21 anos. Morador do bairro Pedreira, na zona<br />
sul de São Paulo, o jovem estuda no cursinho da<br />
entidade há oito meses. Entre suas opções para<br />
o vestibular, estão geografia, ciências sociais ou<br />
serviço social.<br />
Filho de pernambucanos que vieram tentar<br />
a vida em São Paulo, o rapaz, além de aluno,<br />
é voluntário na secretaria do cursinho. “No começo,<br />
meus pais não aceitavam, porque diziam<br />
que eu tinha que dar preferência para trabalho<br />
remunerado, que isso não ia encher barriga”, relata.<br />
Filho de mãe faxineira e pai pedreiro, Anderson<br />
acredita que o cursinho ajuda “na inclusão<br />
das pessoas que vêm da base”. Segundo ele,<br />
o foco da instituição é preparar os alunos para<br />
as universidades públicas federais e estaduais<br />
“que não foram feitas para nós, negros, trabalhadores<br />
e toda essa massa das bases”.<br />
Bairros Periféricos<br />
O cursinho da Uneafro é organizado em núcleos.<br />
Cada um deles é responsável por uma unidade<br />
do curso. São 42 espalhados pelo Estado de<br />
São Paulo, em cidades como Atibaia, Bragança<br />
Paulista, Campinas, Ribeirão Preto, Jundiaí e Piracicaba.<br />
Na capital paulista, há cursos organizados<br />
em bairros periféricos como Parque São Rafael,<br />
Jardim São Francisco e Penha.<br />
Na região central, está o núcleo que Anderson<br />
frequenta, localizado na rua da Abolição. A maioria<br />
dos cursos da Uneafro é realizada aos fins de<br />
semana, com poucas exceções, entre elas, o frequentado<br />
por Anderson, que funciona de segunda<br />
a sexta-feira, das 19h às 22h45. Os demais são aos<br />
sábados, das 8h às 17h. “Cada núcleo pode cobrar<br />
no máximo R$ 20 dos alunos, variando de acordo<br />
com as necessidades”, explica Vanessa Cristina do<br />
Nascimento, coordenadora da Uneafro.<br />
Como os professores são voluntários, o valor<br />
cobrado dos alunos é revertido para o lanche oferecido<br />
no intervalo das aulas, para a condução<br />
dos professores e para a manutenção do núcleo,<br />
formado por quatro ou cinco coordenadores.<br />
Segundo Vanessa, a proposta do cursinho é<br />
oferecer, além do conteúdo cobrado no Enem<br />
(Exame Nacional do Ensino Médio) e no vestibular,<br />
formação política. “Discutimos temas que<br />
estão na mídia. A gente dá a versão diferente do<br />
que a Globo divulga. Estamos formando alunos<br />
críticos”. Tais aulas, explica, têm a mesma carga<br />
horária que as disciplinas tradicionais, “pois não<br />
adianta o aluno ser craque em matemática se ele<br />
não é politizado”. Porém, ela garante que são cobradas<br />
todas as matérias.<br />
formação Política<br />
O incentivo à formação político-cultural está<br />
presente em muitos cursinhos populares, e é uma<br />
das características que os diferem dos cursinhos comerciais.<br />
“A diferença entre o popular e o comercial<br />
está basicamente no valor e nos objetivos de cada<br />
um: o comercial tende a ter suas atividades voltadas<br />
quase exclusivamente para os vestibulares, enquanto<br />
os populares tendem a oferecer, além da<br />
preparação para os vestibulares, um olhar voltado<br />
para a formação cidadã”, explica Gilberto Alvarez<br />
Giusepone Jr., diretor-geral do Cursinho da Poli.<br />
“Os cursinhos populares ajudam a diminuir<br />
o abismo existente entre estudantes de baixa<br />
renda e as universidades públicas”.<br />
“Os pré-vestibulares populares não funcionam apenas<br />
como formadores de candidatos aptos a passar no<br />
vestibular, mas também como questionadores do modelo<br />
excludente de educação do País”.<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
Esse aspecto foi preponderante para João Victor<br />
Pavesi de Oliveira na hora da escolha do curso<br />
pré vestibular. “Comecei a fazer o cursinho<br />
da Acepusp [Associação Cultural de Educadores<br />
e Pesquisadores da USP, criado por um grupo de<br />
ex-alunos da Universidade] por uma questão política.<br />
O lado financeiro também pesou, mas não<br />
foi o decisivo”.<br />
Ao final do ano, João foi aprovado no vestibular<br />
da USP, no curso de Geografia. Meses depois,<br />
passou a trabalhar como professor plantonista<br />
do cursinho e, depois, como professor. O<br />
jovem também lecionou nos cursinhos pré vestibulares<br />
da Poli e Psico, e acredita que a existência<br />
de cursinhos populares é muito relevante,<br />
por questionarem o problema do acesso à educação<br />
pública. “Mas, para que ele seja efetivo, tem<br />
que ter como plano estratégico o seu fim, que é<br />
o acesso universal à educação”.<br />
Assim, os cursinhos populares não funcionam<br />
apenas como formadores de candidatos aptos a<br />
passar no vestibular, mas também como questionadores<br />
do modelo excludente de educação do<br />
País. “A gente pressiona por políticas públicas”,<br />
afirma Vanessa, da Uneafro. “Um dos desafios é<br />
buscar participação popular ativa na reformulação<br />
e no desenvolvimento de vias alternativas de<br />
acesso à universidade”, elucida Hamada.<br />
Por conta dessas concepções, parte dos cursinhos<br />
se autodenomina pré-universitário, ao invés<br />
de pré-vestibular. “Nossa proposta não é apenas<br />
preparar os alunos para as provas seletivas<br />
das universidades, mas levar os jovens a terem<br />
consciência de sua importância na formação da<br />
sociedade”, explica Giusepone Jr. Para Hamada,<br />
“essa distinção permite assumirmos o vestibular<br />
não como um fim em si (foco exclusivo de nossos<br />
esforços), mas como um meio (se não obstáculo)<br />
para algo maior: a inserção e relação dos<br />
estudantes com a universidade”.<br />
Para manter o debate político, a Uneafro realiza<br />
encontros de formação. Uma vez ao mês,<br />
prepara uma aula pública. “Pegamos lousa e carteira<br />
e vamos para lugares como a Praça da Sé<br />
para fazermos uma aula ao ar livre. É uma maneira<br />
de debater o modelo de educação”. O Cursinho<br />
da Psico mantém um espaço chamado de<br />
Arena, onde, periodicamente, ocorrem rodas de<br />
debate, que servem como exercício de argumentação<br />
e articulação entre os alunos.<br />
UNiversidade PúBlica<br />
Os cursinhos populares incentivam os alunos<br />
a ingressarem em universidades públicas. No entanto,<br />
“como a gente sabe que eles vêm do ensino<br />
público, que é muito defasado, e, pela realidade<br />
de estudarem apenas aos sábados, não dá<br />
julho 2010 caros amigos<br />
-Tatiana_160.indd 31 02.07.10 17:09:51<br />
31
32<br />
para comparar com o aluno que está estudando<br />
regularmente”, diz Vanessa. Entre os estudantes,<br />
há os recém-egressos do ensino médio e também<br />
aqueles que terminaram a escola há mais de<br />
10 anos. “Então, não há limite de faixa etária”.<br />
Para os mais velhos e “com mais pressa de entrar<br />
na faculdade”, a Uneafro tem convênio com faculdades<br />
particulares que oferecem bolsa de estudos,<br />
conta a coordenadora do cursinho. “Para<br />
esse perfi l de aluno, temos ações afi rmativas”.<br />
Segundo Vanessa, entre os que frequentam<br />
o cursinho, a maioria é proveniente de famílias<br />
cujos membros não possuem ensino superior. “E<br />
os coordenadores são pessoas que foram alunos<br />
há alguns anos e que, como contrapartida à ajuda<br />
que tiveram, abrem um núcleo ou ajudam na<br />
coordenação de um já existente”.<br />
Entre as histórias de alunos, a coordenadora<br />
gosta de uma em especial. A de uma empregada<br />
doméstica de Bragança Paulista, “mãe de família<br />
que tinha terminado o ensino médio há muito<br />
tempo”. Depois de um ano de cursinho, ela conseguiu<br />
entrar na faculdade, por meio de uma bolsa,<br />
no curso de engenharia mecânica. “É uma satisfação<br />
para a gente”. A ex-aluna está cursando<br />
o primeiro semestre da faculdade e continua trabalhando<br />
como doméstica.<br />
A Uneafro oferece, também, cursos preparatórios<br />
para concursos públicos e seleção de bolsas<br />
de estudo. Dá, ainda, cursos e ofi cinas de<br />
teatro e capoeira. A organização também mantém<br />
relações com movimentos sociais, como o<br />
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra<br />
(MST), por exemplo, com quem realiza atos e<br />
atividades em conjunto.<br />
PreseNça em sala de aUla<br />
No cursinho popular da UFSC, o critério para<br />
ingresso também é o aluno ser de baixa renda e<br />
cursinhos populares<br />
CURSINHO DA POLI<br />
Unidades Lapa, Zona Leste, Santo Amaro/SP<br />
Informações: (11) 2145-7654<br />
Site: www.cursinhodapoli.org.br<br />
CURSINHO DA PSICO<br />
Instituto de Psicologia-Cidade Universitária/SP<br />
Informações: (11) 3532-1992<br />
Site: www.cursinhodapsico.org<br />
CURSO PRÉ-VESTIBULAR ACEPUSP<br />
(Associação Cultural de Educadores<br />
e Pesquisadores da USP)<br />
Endereço: Rua da Consolação, 1909/SP<br />
Informações: (11) 3258-1436<br />
Site: www.acepusp.org.br<br />
CURSINHO DA EDUCAFRO<br />
Unidades nos Estados de São Paulo,<br />
Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo<br />
Informações: (11) 3119-0341<br />
Site: www.educafro.org.br<br />
caros amigos julho 2010<br />
oriundo de escola pública. “Temos casos de alunos<br />
que fi caram 30 anos sem estudar. Aqui, a faixa<br />
etária vai de 16 a 80 anos”, conta o professor<br />
Otavio Auler, coordenador e idealizador do projeto,<br />
criado em 2003. “Eu sempre estudei em escola<br />
pública e, quando me formei, senti a necessidade<br />
de criar projetos que dessem mais oportunidade<br />
para os alunos entrarem na universidade pública,<br />
oportunidade que eu não tive e que me rendeu o<br />
dobro de trabalho para entrar na faculdade”, relata.<br />
O professor afi rma defender “que pré-vestibulares<br />
populares façam a diferença e garantam a<br />
chance de se disputar uma vaga em pé de igualdade<br />
com os alunos de setor privado”.<br />
Organizado pela pró-reitoria de graduação da<br />
UFSC, com apoio do governo do Estado e da Secretaria<br />
Estadual de Educação, o cursinho está<br />
presente em 30 cidades de Santa Catarina, onde<br />
há aulas regulares de segunda a sexta. Por estarem<br />
localizados em bairros de baixa renda e próximos<br />
a terminais urbanos, o acesso dos alunos<br />
torna-se mais fácil. Segundo Auler, o grande diferencial<br />
do cursinho é que ele é absolutamente<br />
gratuito, todos os professores são contratados<br />
e não há voluntariado. “O nosso modelo de gestão<br />
é cobrar do aluno a sua presença em sala de<br />
aula. Caso ele falte quatro vezes sem justifi cativa,<br />
é excluído do projeto”, explica o coordenador,<br />
que conta que há uma fi la de espera de seis<br />
meses para estudar na instituição da UFSC.<br />
O professor mostra preocupação em “defi nir<br />
o que são cursinhos populares. Considero aqueles<br />
que cobram como não populares. Popular é<br />
aquele que é 100% gratuito. Defendo termos cuidado<br />
em diferenciar o que é pré-vestibular popular<br />
de projetos feitos com objetivo de ganhar dinheiro<br />
com esse público”.<br />
A seleção dos alunos é feita por meio de uma<br />
avaliação da renda familiar e do rendimento es-<br />
CURSINHO DA UNEAFRO<br />
Unidades em todo o Estado de São Paulo<br />
Endereço (sede) Rua Abolição, 167,<br />
Bela Vista/SP<br />
Informações: (11) 3105-2516<br />
Site: www.uneafrobrasil.org/contato.asp<br />
CURSINHO DA UNIVERSIDADE<br />
FEDERAL DE SANTA CATARINA (UFSC)<br />
Unidades distribuídas em 20 municípios<br />
do Estado de Santa Catarina<br />
Endereço: Campus UFSC, Reitoria, Sala 8,<br />
Florianópolis<br />
Informações: (48) 3721-8319<br />
Site: www.prevestibular.ufsc.br<br />
CURSINHO POPULAR DA<br />
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO<br />
GRANDE DO NORTE (UFRN)<br />
Endereço: Campus da UFRN, em Natal<br />
Informações: (84) 3215-3325<br />
Site: www.dce.ufrn.com.br<br />
colar do ensino médio do candidato. “Assim, entra<br />
o aluno que mais precisa e que mais estudou”,<br />
explica. Além das aulas regulares, o cursinho da<br />
UFSC realiza palestras sobre HIV, antitabagismo<br />
e prevenção de drogas.<br />
Mesmo que o foco de atuação do cursinho sejam<br />
as universidades estaduais e federais, “com as<br />
transformações no ensino público brasileiro, começamos<br />
a incentivá-los a fazer o novo Enem para<br />
conseguir bolsas no ProUni [Programa Universidade<br />
para Todos] a partir de 2011”, explica. Embora<br />
o peso que os estudantes de cursinho popular<br />
nas porcentagens de ingressantes nas universidades<br />
seja pequeno, sua qualidade refl ete nos índices<br />
de aprovação dos alunos no ensino superior, relata<br />
o professor. Segundo ele, “44% dos nossos alunos<br />
entram em universidades públicas”, orgulha-se.<br />
Processo de eXPaNsão<br />
Nos cursinhos populares que cobram mensalidades<br />
inferiores a dos comerciais, como o da<br />
Psico, coordenado pelos estudantes de Psicologia<br />
da USP, há a possibilidade de negociação de<br />
uma bolsa de estudos. “Nossa mensalidade é de<br />
R$ 95, incluindo material didático e curso regular<br />
de segunda a sexta, com atividades aos sábados”,<br />
conta o coordenador do curso Henrique<br />
Nagao Hamada.<br />
O Cursinho da Poli, criado em 1987 a partir<br />
da iniciativa de um grupo de estudantes da Escola<br />
Politécnica da USP, é coordenado pelo grêmio<br />
dos estudantes da faculdade. Inicialmente, só cobrava<br />
dos estudantes os custos com material didático,<br />
mas, em 1996, deixou o campus universitário<br />
e iniciou um processo de expansão, passando, assim,<br />
a cobrar mensalidades. Mesmo assim, comparado<br />
a outros cursinhos tradicionais, tem as mensalidades<br />
mais baixas e oferece bolsas de estudo.<br />
O valor de um curso de fi m de semana para a<br />
próxima turma de agosto é de R$ 140 por mês, de<br />
acordo com dados da página do cursinho na internet.<br />
Já para os cursos matutino e noturno, de segunda<br />
a sexta, o valor é de R$ 191. De acordo com<br />
o diretor do cursinho, “as matrículas estão abertas<br />
a todos os públicos. O Cursinho da Poli oferece,<br />
porém, bolsas de estudos a alunos em situação de<br />
vulnerabilidade social: os alunos interessados em<br />
participar do processo de concessão de bolsas passam<br />
por uma avaliação socioeconômica, realizada<br />
por uma equipe de assistentes sociais, na qual são<br />
analisadas sua situação de emprego e renda, sua<br />
condição de moradia, de saúde e educação familiar.<br />
Além disso, mantemos parcerias com diversas<br />
instituições que atuam com grupos historicamente<br />
excluídos, como a Fundação Casa, a Funap<br />
e entidades que atendem mulheres em situação de<br />
violência doméstica, por exemplo”.<br />
Para Raphael Rodrigues de Freitas, de 19 anos,<br />
aluno do Cursinho da Poli que pretende prestar<br />
vestibular para Publicidade, o principal motivo<br />
da escolha por esse pré-universitário foi o valor<br />
da mensalidade inferior ao dos outros cursinhos<br />
comerciais. “É mais acessível para mim”.<br />
Tatiana Merlino é jornalista<br />
tatianamerlino@carosamigos.com.br<br />
-Tatiana_160.indd 32 02.07.10 17:09:52
no fim de julho de 1967, algumas semanas<br />
depois de baixar a poeira das dunas<br />
do deserto da Guerra dos Seis Dias, fui<br />
levado como oficial da reserva de Israel, na tarefa<br />
de repórter de guerra, a um grupo de comandantes<br />
dos batalhões dos paraquedistas, para fazer<br />
uma expedição e tirar conclusões sobre os<br />
combates no deserto do Sinai. Mas a verdadeira<br />
razão para eu ser convidado para isso foi escolher<br />
um lugar determinado e ali criar um monumento<br />
de comemoração em homenagem aos paraquedistas<br />
da divisão que nós havíamos perdido<br />
nos duros e sangrentos combates com os soldados<br />
egípcios, em Um El Catef.<br />
Quando terminamos a patrulha de reconhecimento<br />
inicial, meu amigo de infância, comandante<br />
da divisão, Chezi Shelach, um dos mais competentes<br />
comandantes de Israel, sugeriu que continuássemos<br />
a patrulha bem mais para o sul, com destino<br />
ao famoso Mosteiro de Santa Catarina, conhecido<br />
mundialmente. Quando o comboio de carros<br />
de combate encalhou nas dunas traiçoeiras, fomos<br />
obrigados a pedir ajuda a um grupo de beduínos<br />
bem folgados, abrigados na pouca sombra que havia<br />
restado de uma árvore sem folhas e que nos<br />
olhavam sem interesse. Perguntamos quanto tempo<br />
levava para ir a pé até esse mosteiro tão famoso.<br />
Um deles, em câmara lenta, como é típico para<br />
os beduínos, apontou o indicador para leste e afirmou:<br />
“Comecem a andar”. Por quê, perguntamos.<br />
“Para ver o tempo que vocês levam para andar. E<br />
daí poderemos dar a resposta”.<br />
O mais velho do grupo chegou para ajudar e<br />
gaguejou: “Uma distância de 22 cigarros”. Se esclareceu<br />
que o modo deles de medir o tempo era<br />
o número de cigarros que são fumados durante a<br />
caminhada, levando em conta que, para economizar<br />
fósforos, eles acendem cada cigarro na bituca<br />
do fumado imediatamente antes. Antes que<br />
Gershon Knispel<br />
Será um império?!<br />
“Deixe os outros falarem dos males deles, Eu vou falar<br />
dos meus” (Bertolt Brecht, no prefácio das Poesias no exílio)<br />
nos despedíssemos, quisemos saber como eles se<br />
sentiam com o fim do regime egípcio no Sinai.<br />
Com uma risada desbragada, que mostrou a boca<br />
sem nenhum dente, o velho respondeu, apoiado<br />
no cajado; “Com os cruzados, nós os exterminamos,<br />
porque não sabiam lidar com os traidores<br />
que deviam ser mortos. Os otomanos deixaram<br />
o país para os britânicos, os britânicos desapareceram<br />
sem deixar vestígios. E vocês chegaram, e<br />
o destino de vocês não vai ser diferente.” Meditando<br />
sobre isso, continuamos rastejando pelas<br />
areias ferventes...<br />
E é verdade; também os destinos dos grandes<br />
e pequenos impérios nunca foi diferente. Enquanto<br />
nós, de um modo obsessivo, tentamos nos<br />
transformar num império e as miragens do Grande<br />
Israel fizeram enlouquecer o mais alto nível da<br />
nossa liderança, essa liderança ficou faminta de<br />
ocupações e com sede de expansão. Quanto mais<br />
ela se expandiu pelos territórios alheios, apertando<br />
o cerco e impondo torturas e humilhações aos<br />
vizinhos sob a ocupação, as dúvidas e as inquietações,<br />
mais a desesperança, vêm atingindo mais<br />
e mais a população.<br />
O povo começou a agir como a avestruz que,<br />
impotente diante do perigo, enfia a cabeça na<br />
areia, e internalizou todas as frustrações, enquanto<br />
a catástrofe da corrupção no topo da liderança<br />
se avolumou. O Estado de Israel desencadeou<br />
o cerco a Gaza e esqueceu de olhar para trás, demorando<br />
para perceber que eles mesmos estão<br />
cercados e isolados por todas as nações do mundo.<br />
Nunca esse “império” se achou tão ameaçado.<br />
Fomos obrigados a proibir a liderança governamental<br />
e a liderança militar de saírem do país,<br />
por causa do medo de que sejam capturados e levados<br />
ao banco dos réus dos tribunais de crimes<br />
de genocídio. A companhia aérea estatal El Al se<br />
viu obrigada a proibir os pilotos e os comissários<br />
O quadro acima é do artista israelense<br />
David Reeb, que dedicou a maior parte<br />
de suas obras para denunciar a ocupação<br />
dos territórios palestinos pelo<br />
Estado de Israel. Ele e outros artistas<br />
plásticos – israelenses e palestinos –<br />
concordaram em ilustrar os artigos de<br />
Gershon Knispel na Caros Amigos.<br />
de saírem às ruas, no mundo inteiro, com o uniforme<br />
da companhia. Governos que nos apoiaram<br />
até ontem viraram as costas para nós.<br />
Impérios ruíram, e seus soldados desmoralizados<br />
voltaram combalidos para casa. Assim foi<br />
o destino dos impérios antigos, até os maiores<br />
dos nossos tempos, como os otomanos, liquidados<br />
pelos britânicos. E os britânicos, não voltaram<br />
envergonhados para o Reino Unido? Os rostos<br />
agoniados da “raça inferior” foram retratados<br />
da maneira mais real e documentada no filme<br />
A queda, que foi feito pelos próprios alemães, e<br />
isso não é surpresa; eles mesmos sentiram isso<br />
na pele. Os comboios da Wehrmacht, abalados,<br />
com esqueletos vivos dentro dos uniformes que<br />
no passado deram tanto orgulho para eles, voltaram<br />
para a pátria completamente destruídos, lembrando<br />
as próprias vítimas deles nos campos de<br />
concentração. Até as armas mais sofisticadas que<br />
eles empunhavam não podiam mudar esse destino.<br />
E os americanos no Vietnã, e a humilhação<br />
que sofrem se chafurdando na lama do Iraque e<br />
do Afeganistão, de onde até a nossa grande esperança,<br />
Barack Obama, não consegue retirá-los.<br />
Mas também, como já aconteceu no Vietnã, o dia<br />
da retirada vai chegar, com os soldados humilhados<br />
voltando juntamente com os caixões cobertos<br />
pela bandeira americana. Esse dia vai chegar<br />
com certeza.<br />
Vai também chegar a hora do nosso “império”.<br />
Para onde vamos voltar? Alguém pensou nisso...<br />
Em 1935, em carta enviada do exílio na Suíça,<br />
Brecht escreveu a seu grande amigo, o pensador<br />
judeu Walter Benjamin, que estava na França:<br />
“Ouvi rumores de que os judeus pretendem<br />
criar um Estado. Judeus nacionalistas, você acredita<br />
que isso exista?”<br />
Gershon Knispel é artista plástico.<br />
julho 2010 caros amigos<br />
-gershon_160.indd 33 02.07.10 17:31:06<br />
33
34<br />
o número<br />
de cesarianas realizadas hoje no<br />
Brasil é altíssimo. Por medo da dor, pressão<br />
do obstetra, desinformação sobre as<br />
possibilidades de realização de partos ou pela comodidade<br />
de agendar o momento de parir, são<br />
muitas as mulheres que escolhem ter seus filhos<br />
por meio de uma cirurgia. Até o ministro da Saúde,<br />
José Gomes Temporão, admitiu que precisamos<br />
combater a atual “epidemia de cesarianas”.<br />
O Brasil é o campeão mundial em partos cesarianos<br />
realizados na rede particular de saúde. A<br />
Organização Mundial de Saúde (OMS) considera<br />
15% a taxa máxima aceitável destas cirurgias<br />
em qualquer região do globo. Porém, no Brasil,<br />
essa indicação parece ser ignorada. No Sistema<br />
Único de Saúde (SUS), 30% dos partos realizados<br />
são cesarianas, e o número é ainda maior no sistema<br />
privado, com um índice de 80% do procedimento.<br />
Os dados são do site da campanha Parto<br />
Normal Está no Meu Plano, promovida, entre<br />
outros, pela Agência Nacional de Saúde Suplementar<br />
(ANS) e pelo Ministério da Saúde.<br />
Além do emprego descontrolado das cesarianas,<br />
hoje existe uma série de procedimentos-padrão<br />
nas maternidades que deixam o bem-estar<br />
da mãe em segundo plano para acelerar o processo<br />
de nascimento. O objetivo dos hospitais é ter<br />
seus leitos livres mais rapidamente e evitar que<br />
médicos demorem muito tempo em cada parto.<br />
No entanto, na contramão desta tendência, é<br />
crescente o número de profissionais da área da<br />
saúde que afirmam que não há motivo para se<br />
orgulhar do Brasil ter altos índices de cesarianas.<br />
É cada vez maior também o número de mulheres<br />
que optam pelo parto humanizado, que, segundo<br />
defensoras da prática, devolve à mulher a liberdade,<br />
autonomia e possibilita uma postura ativa<br />
durante o momento do parto.<br />
caros amigos julho 2010<br />
Bárbara Mengardo<br />
Mulheres defendem<br />
parto sob controle<br />
É cada vez maior o<br />
número de mulheres<br />
que optam pelo parto<br />
humanizado, que<br />
devolve autonomia<br />
à elas e possibilita<br />
uma postura ativa no<br />
momento de dar a<br />
luz. Foto Karina de Oliveira<br />
DanDo as cartas<br />
“O parto humanizado não comporta pressa<br />
nem agenda” define a obstretiz paulista Ana<br />
Cristina Duarte, que há 10 anos segue a linha humanizada<br />
em seu trabalho. Para ela, um dos pontos<br />
fundamentais do parto humanizado é seguir<br />
o ritmo do bebê e da mãe, esperando o tempo necessário<br />
até o momento do nascimento, sem utilizar<br />
procedimentos que artificialmente levarão a<br />
um parto mais rápido.<br />
Diferentemente da prática normalmente empregada<br />
em hospitais, o parto humanizado coloca<br />
a mulher, e não os médicos, como a figura<br />
central durante o nascimento do bebê. “A mulher<br />
deve ser a protagonista de seu parto para que ela<br />
possa exercer o seu parir da forma mais completa<br />
que escolher” afirma a psicóloga carioca Gabriela<br />
Prado, integrante da Equipe Parto Ecológico.<br />
Segundo ela, cabe à mulher dizer qual é a maneira<br />
mais confortável e que lhe dá menos dor du-<br />
Grávida que optou pelo parto humanizado fotografada por Karina Oliveira.<br />
rante o trabalho de parto, e por isso é fundamental<br />
que a futura mãe tenha a possibilidade de andar,<br />
deitar, ficar de cócoras, entrar na água ou ficar<br />
dentro da banheira ou piscina durante seu parir.<br />
No parto humanizado é a mulher quem dá as<br />
cartas, e cabe aos profissionais que estão acompanhando<br />
o parto dar apoio e indicar como o processo<br />
acontecer mais tranquilamente. “O parto humanizado<br />
tenta devolver para a mulher aquilo que<br />
nós, médicos, tiramos dela, que é o protagonismo<br />
do parto. Eu não faço parto, assisto partos”, afirmou<br />
o ginecologista obstetra Jorge Kunh.<br />
Para garantir que a mulher tenha mobilidade,<br />
as equipes podem levar ao local do parto pequenas<br />
piscinas para serem cheias de água quente,<br />
que diminuem as dores, banquetas próprias para<br />
o parto de cócoras.<br />
O mais importante, explicam, é que a mulher<br />
sinta confiança na equipe, fique confortável no<br />
ambiente onde o parto está sendo realizado e te-<br />
-Parto_160.indd 34 02.07.10 17:19:51
nha direito a buscar maneiras que facilitem a ela<br />
passar por este momento da maneira mais prazerosa<br />
e tranquila possível.<br />
PlaNejameNto<br />
Jorge Kunh afirma que é importante que toda<br />
mulher, independente se escolheu uma equipe<br />
humanizada ou não, escreva um plano de parto,<br />
que deve ser discutido juntamente com o<br />
seu obstetra.<br />
Este plano de parto indicará para o médico<br />
quais condutas a mãe gostaria que fossem seguidas<br />
durante o nascimento de seu filho. Cabe<br />
ao profissional dizer se os itens podem ou não<br />
ser seguidos “Toda gestante deve fazer um plano<br />
de parto pensando que o processo pode ter várias<br />
nuances e problemas. Caso o plano não possa<br />
ser seguido, a gestante tem o direito de saber<br />
por quê”, afirma Khun. O procedimento auxiliará<br />
também a mulher a perceber se aquele profissional<br />
é adequado o ela, por isso a importância de<br />
escrever o plano logo no começo da gravidez.<br />
O plano de parto deve conter temas como se a<br />
mulher deseja realizar um parto vaginal ou cesariana,<br />
onde gostaria de dar à luz, se quer segurar o<br />
bebê logo após o nascimento, se deseja que o bebê<br />
se alimente somente de leite materno no período<br />
que passar na maternidade, se o acompanhante<br />
dela deseja dar o primeiro banho, quem ela quer<br />
que esteja na sala durante o parto, se quer ouvir<br />
música, se ela não quer que seja feita a episiotomia<br />
(corte cirúrgico feito no períneo- região muscular<br />
que fica entre a vagina e o ânus).<br />
Além do médico já poder dizer antecipadamente<br />
se será possível ou não obedecer a todos os pontos,<br />
o plano de parto possibilita que a mulher seja<br />
consultada caso tenha de ser realizado algum procedimento<br />
que foge ao que ela gostaria. “O plano de<br />
parto é uma carta de intenções que o médico vai ler<br />
e ver se é possível realizar” resume Ana Cristina.<br />
ambieNte hosPitalar<br />
Hoje, existem muitas possibilidades de locais<br />
onde a mulher pode dar à luz. Se a equipe estiver<br />
ciente dos desejos da gestante, é possível ter o parto<br />
da maneira que mais agrada à mulher, no hospital,<br />
em casas de parto ou mesmo em domicílio.<br />
São poucos, mas existem hoje hospitais que<br />
realizam o parto humanizado. Outros possibilitam<br />
que a equipe traga equipamentos para realizá-lo,<br />
como bolas de pilates, piscinas infláveis ou<br />
banquetas para realizar partos de cócoras.<br />
Em hospitais, no entanto, alguns procedimentos<br />
são utilizados rotineiramente, e é necessário<br />
que a mulher decida e discuta com a equipe se ela<br />
deseja que estes sejam utilizados. Um destes procedimentos<br />
é o uso da ocitocina, um hormônio<br />
que a mulher produz naturalmente, e que causa<br />
as contrações uterinas. Essa substância é colocada<br />
junto ao soro, fazendo com que o número de<br />
contrações aumente repentinamente.<br />
Muitos profissionais da área da saúde criticam<br />
o uso indiscriminado desta substância. “Aproximadamente<br />
95% a 98% dos partos normais a utilizam<br />
para que o processo seja mais rápido, porque<br />
ela provoca mais contrações, então o bebê<br />
nasce mais rápido. Para a mulher, isso é péssimo,<br />
porque provoca mais dor. Para o bebê é perigoso<br />
porque pode provocar mais contrações do<br />
que ele pode aguentar. Inclusive a bula da ocitocina<br />
cita que um dos efeitos colaterais é morte<br />
fetal” afirma Ana Cristina.<br />
Outro procedimento utilizado em quase todos<br />
os partos naturais hospitalares é a episiotomia,<br />
como vimos, um corte feito no final da vagina<br />
com o objetivo de facilitar a passagem do bebê e<br />
proteger a musculatura da pélvis da mulher, evitando<br />
uma laceração maior. A utilização como<br />
rotina, no entanto, é questionada pela OMS, por<br />
trazer muitas consequências à mulher.<br />
Após o procedimento, explica Gabriela Prado,<br />
muitas mulheres costumam sentir muita dor na<br />
região dos pontos, tendo dificuldade de sentar e<br />
achar posição para amamentar. Além disso, podem<br />
acontecer inflamações, e às vezes há perda<br />
da sensibilidade no local da cicatriz ou dor durante<br />
relações sexuais. “Ela deve ser utilizada em<br />
casos extremos, mesmo porque quando o bebê<br />
nasce em um parto tranquilo o nível de lacerações<br />
é quase zero” afirma.<br />
Roberta Marcinkowski, integrante da rede virtual<br />
Parto do Princípio, também critica essa intervenção:<br />
“Ela é geralmente feita sem o consentimento<br />
da parturiente, o que por si só é antiético.<br />
A necessidade de sua utilização deve ser avaliada<br />
durante o período expulsivo (nunca durante<br />
o pré-natal nem durante o trabalho de parto), de<br />
acordo com a evolução do parto, da posição do<br />
bebê e da musculatura vaginal. Quando aplicada<br />
com critério, as taxas de episiotomia não ultrapassam<br />
15% do total de partos de um médico<br />
e/ou instituição. Qualquer número maior que<br />
isso indica que o procedimento está sendo usado<br />
como rotina, sem que cada caso seja avaliado<br />
em suas peculiaridades”.<br />
Casas de Parto<br />
Outra opção para as gestantes é procurar uma<br />
casa de parto, onde o procedimento será realizado<br />
com enfermeiras obstetras. Porém, tais locais estão<br />
cada vez mais escassos, pois sofrem boicotes<br />
constantes. Os médicos não costumam informar<br />
às pacientes que existe a opção de realizar o parto<br />
fora de um hospital, ou fazem campanha contra<br />
estas instituições. “Eles acham que um parto não<br />
pode acontecer sem eles”, afirma Ana Cristina.<br />
Nas casas de parto, a mulher vai encontrar<br />
um ambiente muito diferente dos hospitais, mais<br />
descontraído, aconchegante e com profissionais<br />
treinados para realizarem massagens para diminuir<br />
a dor do parto natural. Outra característica<br />
destes locais é integrar o acompanhante ao<br />
processo do parto. É garantido e desejável que<br />
a mulher esteja junto do pai da criança ou outro<br />
conhecido durante o momento de dar à luz e<br />
também nos pré-natais.<br />
Uma terceira possibilidade cada vez mais utilizada<br />
pelas mulheres é a realização do parto em<br />
casa, que deve ser feito apenas em casos de gravidez<br />
de baixo risco, quando as saúdes da mãe e<br />
do bebê estão perfeitas. Para tanto, é necessário<br />
que a mãe entre em contato no começo da gesta-<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
ção com uma equipe que realize esse tipo de parto,<br />
para fazer um pré-natal detalhado.<br />
Os defensores do parto domiciliar apontam<br />
que sua principal vantagem é, além de ter a possibilidade<br />
de mobilidade e poder utilizar os recursos<br />
de que o parto humanizado dispõe, a mulher<br />
ainda está em um ambiente familiar e aconchegante,<br />
que lhe trará segurança durante o parir.<br />
Gabriela Prado acredita que em casa as mulheres<br />
aguentam mais facilmente as dores do<br />
parto por conta da segurança de estar em seu<br />
domicílio: “Existe um coquetel de hormônios que<br />
circulam no trabalho de parto que são os mesmos<br />
que ocorrem durante uma relação sexual ou<br />
a amamentação. Podemos dizer em um linguajar<br />
comum que esses hormônios são ‘tímidos’, facilmente<br />
inibíveis. Então é necessário que a mulher<br />
esteja em uma situação de segurança e conforto<br />
para que eles sejam liberados. Em domicilio você<br />
está no seu ambiente, propiciando uma sensação<br />
de privacidade e segurança maior”.<br />
Thais Medeiros, professora de ginástica que<br />
trabalha com gestantes há 32 anos, já assistiu<br />
partos humanizados em hospitais, casas de parto<br />
e em domicílios, mas prefere o último: “Em casa<br />
a mulher não sofre intervenções, tem o seu momento<br />
de protagonismo respeitado, e desta forma<br />
pode focar sua atenção no parto. O parto em casa<br />
é como deve ser: um evento íntimo e familiar”.<br />
Possibilidades da Cesárea<br />
Mesmo quando uma cesariana é necessária ou<br />
inevitável, há atitudes que a mulher pode cobrar<br />
do médico. Primeiramente, ela tem o direito de<br />
ser informada sobre os riscos que essa intervenção<br />
pode gerar. “A cesariana é uma cirurgia de<br />
porte considerável, o risco de infecção é dez vezes<br />
maior. Muitas mulheres sentem dor na cicatriz<br />
por muitos anos, a mortalidade materna é maior e<br />
a recuperação é mais lenta. Muitas mães ainda se<br />
sentem frustradas por não poderem participar do<br />
nascimento”, explica a carioca Lia Haikal, médica<br />
que está atualmente passando por cursos preparatórios<br />
para ser parteira tradicional na Paraíba.<br />
Gabriela concorda: “A cesariana salva vidas.<br />
Antes dela, as mulheres morriam de parto, os bebês<br />
morriam na barriga da mãe, mas só deveria<br />
ser feita apenas em situações extremas”. A mulher<br />
pode também exigir o direito de segurar o bebê<br />
assim que ele nascer, escolher o seu acompanhante<br />
e que o pano possa ser abaixado quando o bebê<br />
sair, para que possa vê-lo nascendo.<br />
A paranaense Patricia Merlin, professora do<br />
fundamental, teve um filho por meio de uma cesariana<br />
desnecessária e uma filha em parto domiciliar.<br />
A segunda experiência foi muito importante:<br />
“Poder me movimentar, comer, gritar, tomar<br />
banho, rir, chorar, escolher a posição para parir,<br />
fazer força quando tivesse vontade fez a experiência<br />
do parto ter a minha cara. Foi do jeito que<br />
eu quis e em nenhum momento eu ou a minha filha<br />
estivemos em perigo. Meu parto me deu a certeza<br />
de que o corpo é perfeito e que mulheres precisam<br />
de paz e segurança para parir”.<br />
Bárbara Mengardo é estudante de Jornalismo.<br />
julho 2010 caros amigos<br />
-Parto_160.indd 35 12.07.10 15:33:53<br />
35
36<br />
caros amigos julho 2010<br />
Gabriela Moncau e Júlio Delmanto<br />
Por dentro do PCC<br />
karina Biondi e Adalton Marques se conheceram<br />
na época em que ambos terminavam<br />
seus cursos de graduação, e logo<br />
identificaram grande afinidade entre suas pesquisas<br />
antropológicas, voltadas para a compreensão<br />
da prisão através dos discursos dos presos<br />
e não das administrações penitenciárias. A partir<br />
daí tornaram-se amigos e parceiros intelectuais.<br />
Karina, autora do livro recém-lançado Junto e<br />
misturado: uma etnografia do PCC (Editora Terceiro<br />
Nome), estudava sem pretensões de seguir<br />
carreira acadêmica quando seu marido foi preso.<br />
Durante as visitas, decidiu estudar a unidade<br />
prisional onde ele estava, mas acabou percebendo<br />
que nada poderia ser compreendido sem<br />
um olhar mais atento para o Primeiro Comando<br />
da Capital (PCC).<br />
Adalton inicialmente estudava a conversão<br />
religiosa dentro das prisões. Mas percebeu que as<br />
relações entre os presos giravam sempre em torno<br />
de ter ou não ter “proceder” e decidiu descrever<br />
esse conceito a partir dos relatos dos maiores<br />
especialistas na questão: os próprios presos.<br />
Consolidou tal abordagem em sua dissertação de<br />
mestrado: Crime, proceder, convívio-seguro: um<br />
experimento antropológico a partir de relações<br />
entre ladrões.<br />
Em suas pesquisas, Karina e Adalton valorizam<br />
as “verdades” produzidas por seus objetos de pesquisa.<br />
Como explica Marques, a tensão de forças<br />
existente entre os discursos dos presos e da administração<br />
penitenciária não dá ao intelectual o direito<br />
de se colocar acima, na condição de julgar o<br />
que é ou não correto. Biondi reforça, apontando as<br />
implicações políticas dessas escolhas, que levam o<br />
texto a ser escrito quase na mesma linguagem dos<br />
presidiários: “É não tratar aquilo como contradição<br />
ou como algo que encobre um inconsciente<br />
que está por trás, uma verdade que só o pesquisa-<br />
Os antropólogos<br />
KArinA BiOndi<br />
e AdAltOn<br />
MArques discutem<br />
a organização e os<br />
valores do Primeiro<br />
Comando da Capital.<br />
dor que está de fora possa revelar a eles mesmos.<br />
Isso pra gente é inconcebível”.<br />
A Caros Amigos conversou com os dois antropólogos<br />
sobre os princípios e a organização do<br />
PCC, essa facção criminosa tão grande quanto<br />
pouco compreendida pela população do Estado<br />
com a maior população carcerária do Brasil.<br />
Caros Amigos – Como os presos reagiam ao<br />
saber que vocês estavam trabalhando numa<br />
pesquisa acadêmica?<br />
Karina Biondi - Quando saiu uma coletânea<br />
com o resultado da premiação da graduação eu<br />
coloquei o livro lá dentro e pedi para eles darem<br />
uma olhada e dizerem o que achavam. E eles<br />
disseram “olha só, a mina entende mais que a<br />
gente, vamos afixar isso nas celas que aí a gente<br />
não tem mais que explicar nada pra ninguém<br />
que chega, [presos novatos]”. Pensei, ‘poxa, que<br />
legal que eles curtiram, viram que não era meu<br />
objetivo fazer uma denúncia, escrever algo que<br />
pudesse ser usado contra eles’. Agora, com a publicação<br />
desse livro eu gostaria que algum preso<br />
conhecesse a obra. Mas uma coisa que me deixou<br />
muito chocada nesses dias é que a esposa de um<br />
preso queria colocar o livro dentro da prisão, mas<br />
como há censura do que entra, provavelmente a<br />
entrada desse livro vai acarretar um aumento de<br />
prisão de seis meses para quem receber.<br />
Sob qual critério eles censuraram a entrada<br />
do livro?<br />
Adalton Marques – Na verdade não é nem<br />
o critério, é a falta de critério que existe nas prisões.<br />
Isso configura a prisão como uma máquina<br />
de surdez. E quando você se coloca na condição<br />
de pesquisar um objeto sobre o qual não se<br />
pode falar e que ninguém pode ouvir dele, por<br />
causa da posição jurídica e até moral em que ele<br />
está posto, tem uma série de inconvenientes desse<br />
tipo. Tecnicamente, qual é o problema de um<br />
cara ter acesso à literatura?<br />
-PCC_160.indd 36 02.07.10 17:19:04<br />
fotos: sxc.hu
Karina Biondi – Até jornal é proibido! Qual<br />
o critério não sei... Televisão, rádio, pode.. Mas a<br />
proibição de certas literaturas parece obedecer a<br />
algum critério mais institucionalizado: não conheço<br />
nenhuma prisão que permita a entrada de<br />
revistas e jornais.<br />
Vocês podiam voltar à formação do PCC?<br />
Karina Biondi – Quando eu comecei a pesquisa<br />
de campo, cada um falava uma versão: surgiu<br />
da facção Serpentes Negras ou de outra, Armas<br />
e Rosas. Falavam que nasceu em 1988 no<br />
Carandiru, ou em outra data. De repente todas<br />
essas versões sumiram e uma predominou, a que<br />
é contada no livro Cobras e Lagartos [de Josmar<br />
Jozino].<br />
E como é a versão?<br />
Karina Biondi – Ela diz que o PCC nasceu em<br />
1993, no anexo de Taubaté, a partir de um jogo<br />
de futebol entre o Primeiro Comando Caipira e o<br />
Primeiro Comando da Capital. Tinha um acerto<br />
de contas, um cara do Comando Caipira morreu<br />
e os da capital se reuniram para tomar um conjunto<br />
de medidas para se defenderem das sanções<br />
que essa morte causaria.<br />
Adalton Marques – Eles estavam no anexo<br />
que na época era conhecido como “piranhão”,<br />
como inferno. Era a cadeia mais dura, o mesmo<br />
diretor do Pavilhão 9 do Carandiru na época do<br />
massacre.<br />
Karina Biondi – E o Carandiru teve um reflexo<br />
nisso também, na linha de “olha, se a gente<br />
não se unir isso pode voltar a acontecer, todos<br />
os abusos e torturas podem acontecer de novo”.<br />
E daí teria sido fundado o PCC, que começa a se<br />
espalhar após transferências que levam essa ideia<br />
a outras unidades – não sem derramamento de<br />
sangue nesse primeiro período. A ideia era sedutora,<br />
estabelecer uma relação de não opressão<br />
entre os presos e de união contra a administração<br />
penitenciária, só que existiam resistências, foi a<br />
época das grandes guerras, que eles falam.<br />
Adalton Marques – Surgiram outros comandos<br />
nesse processo. Surgiu o Comando Democrático<br />
da Liberdade (CDL), o Comando Revolucionário<br />
Brasileiro do Crime (CRBC), a Seita<br />
Satânica já era consolidada. Começa uma guerra<br />
de disputa de território, e o que está atravessando<br />
toda essa questão é quem é certo.<br />
E essa guerra foi vencida pelo PCC?<br />
Karina Biondi – Ele conseguiu se expandir<br />
a ponto de tomar conta de territórios e conduzir<br />
outros grupos para territórios apartados, e mesmo<br />
acabar com alguns bandos.<br />
Adalton Marques – Esse processo é muito<br />
interessante, pois algumas perspectivas normativistas<br />
sempre tentam mostrar de que modo<br />
as políticas penitenciárias podem ter sucesso na<br />
ressocialização do preso. É sempre a linha de<br />
mostrar os sucessos e as falhas desse vetor administrativo.<br />
Quando seu interlocutor é o preso,<br />
você começa a perceber também de que modo<br />
que as lutas entre os presos incitam processos<br />
de modificação no corpus prisional. De 1993 até<br />
1998, mais ou menos, era impensável se falar,<br />
por exemplo, de cadeia de um comando. A administração<br />
comanda o ingresso dos presos, os<br />
trata como reeducandos e pronto. Havia “convívio”<br />
e “seguro”. Se um cara deu uma mancada<br />
ele vai para o “seguro”, mas é o espaço dos presos,<br />
não é um espaço do PCC, ou de qualquer outro.<br />
A partir dessas lutas começa a se produzir a<br />
possibilidade de distribuir esses homens de acordo<br />
com seus pertencimentos e de suas relações<br />
com os comandos.<br />
Karina Biondi – Em 10 anos aconteceu esse<br />
processo...<br />
Adalton Marques – Aí mostra uma coisa<br />
interessante: não só como os corpos dos presos<br />
são produzidos pelo corpus penitenciário, mas<br />
como os corpos dos presos produzem esse corpus<br />
penitenciário. O Estado não passa incólume<br />
nessa relação. Hoje eu diria que a maioria das cadeias,<br />
para não dar um número preciso, são cadeias<br />
do Comando, tal como definido por eles e<br />
definido pelos inimigos deles também. O segundo<br />
maior comando hoje, pelo que a gente sente<br />
em campo, é o CRBC, que tem pouquíssimas cadeias.<br />
E tem essas cadeias que tem um pavilhão<br />
de um e um pavilhão do outro. Existe também<br />
o Terceiro Comando da Capital, que tem uma ou<br />
duas unidades. O CDL, a Seita e o Armas e Rosas<br />
praticamente se extinguiram.<br />
De que maneira vocês inserem esse<br />
crescimento e fortalecimento do PCC com o<br />
crescimento do índice de encarceramento,<br />
especialmente em São Paulo?<br />
Adalton Marques – No começo da década<br />
de 1990 somam-se processos externos e processos<br />
internos, que estão acontecendo no Brasil,<br />
que vão incitar esse encarceramento em massa:<br />
1) há uma série de reações conservadoras às<br />
demandas expressivas por “humanização” dos<br />
presídios; 2) começam a repercutir as políticas<br />
de tolerância zero de Nova York, do ex-prefeito<br />
Rudolph Giuliani e tal, analisadas pelo Wacquant;<br />
3) tem um acontecimento fundamental:<br />
o Massacre do Carandiru; e posteriormente<br />
o surgimento dos comandos. Nesse processo, o<br />
PCC, por força ou por convencimento, depende<br />
de quem fala disso, ele apresenta uma proposta<br />
muito interessante pros presos. Ela é no mínimo<br />
interessante. Por que como um coletivo político<br />
consegue arregimentar tanto apoio, tantas<br />
relações e tantas atualizações de sua política se<br />
não pelo fato de que apresenta uma questão relevante?<br />
Então, tentar pensar uma causalidade<br />
unívoca entre o PCC e a expansão da população<br />
carcerária, e vice-versa, acho que empobrece<br />
o processo. Tem milhares de processos acontecendo<br />
aí. Por outro lado, parece mais absurdo<br />
ainda dizer que não tem relação.<br />
Karina Biondi – Acho que talvez não tenha<br />
a ver com a hegemonia do PCC, mas com o crescimento<br />
está vinculado.<br />
Adalton Marques – A gente triplicou a população<br />
carcerária né?<br />
Karina Biondi– E também expandindo, porque<br />
essas pessoas não ficam presas pra sempre.<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
Adalton Marques – É aquela coisa, até<br />
1998, 2000, a gente não ouvia falar de vila do<br />
Comando. Hoje é difícil uma quebrada que você<br />
vá e não se veja o Comando, e todo mundo sabe<br />
disso, a polícia sabe disso. Esses processos estão<br />
muito ligados, inclusive com a questão da queda<br />
de homicídios.<br />
Karina Biondi – Um exemplo, quando a gente<br />
vai pra campo na periferia e pergunta “por<br />
que não se mata mais aqui?”, ninguém fala “porque<br />
a gente tem medo de ir preso”. Nunca nenhum<br />
pesquisador ouviu uma coisa dessa, sempre<br />
se fala “agora que o comando tá aqui não<br />
pode mais matar”.<br />
Falem sobre a organização do PCC, da<br />
disputa de concepção que se dá depois do<br />
Marcola.<br />
Karina Biondi– Quando eu comecei a fazer<br />
pesquisa, via uma hierarquia bem forte na relação<br />
entre os presos. Não é uma coisa que acontece<br />
num estalar de dedos, mas depois de algum<br />
tempo começou a se falar de igualdade, o que começa<br />
a ser esticado pra tudo quanto é lado. E isso<br />
implica em muita coisa, você não poder ter uma<br />
palavra de comando num comando... Não que<br />
não existiam debates antes, mas a necessidade de<br />
se debater as coisas parece que vai crescendo e a<br />
decisão nunca pode ser isolada, porque uma pessoa<br />
que decide está querendo ser mais do que as<br />
outras. Então a igualdade é atribuída ao lema, e<br />
não só ao lema, a todas as práticas. E diz-se que<br />
isso foi feito pelo Marcola.<br />
Adalton Marques – Como estava saindo de<br />
um processo marcado por personificações, é quase<br />
como se, por continuidade, se tivesse personificado<br />
a virada no nome dele.<br />
Em que época foi isso?<br />
Adalton Marques – 2002 pra 2003.<br />
Karina Biondi – Ele chega a falar isso num<br />
depoimento, “eu distribuí o poder”. Acredito que<br />
o que ele está querendo dizer é torná-lo solúvel,<br />
pulverizar o poder. Hoje você não vê uma hierarquia<br />
colada a uma pessoa, algo como “essa pessoa<br />
é piloto ou general”. Ela vai transitando, não<br />
adquire um status que leve consigo.<br />
Queria que vocês explicassem esses “cargos”<br />
dentro do Comando: primo, irmão, piloto,<br />
torre...<br />
Adalton Marques – Sempre se espera uma<br />
repetição de alguns processos burocráticos que<br />
acontecem no Estado, e a coisa não é exatamente<br />
desse modo. Por exemplo, quando o cara tem<br />
uma posição de funcionamento dentro do Comando,<br />
isso não significa exatamente que tem<br />
um estatuto colocado dizendo que ele tem uma<br />
palavra maior, qual função ele tem. Digamos<br />
que ele é uma espécie de ponto em que as atualizações<br />
dos valores do Comando estão melhor<br />
representados, ele é um ponto de exemplo.<br />
Não sei se é uma mediação e nem um fiscal, é<br />
uma atualização carnal de um valor do comando.<br />
Essa virada de 2002 pra 2003 incita uma<br />
permanente despersonificação das posições de<br />
julho 2010 caros amigos<br />
-PCC_160.indd 37 02.07.10 17:19:04<br />
37
38<br />
comando (o que não significa dizer que as posições<br />
foram, definitivamente, despersonificadas),<br />
colocando em destaque uma única coisa, o<br />
comando. Me parece que é essa coisa que deve<br />
ser compreendida.<br />
Karina Biondi – Mas isso também não quer<br />
dizer que não existam esses caras. Existe o piloto,<br />
o irmão, o primo. O que a gente está falando<br />
aqui é que não dá pra dispô-los numa estrutura<br />
hierárquica. Mas explicando: o primo é<br />
o cara que corre com o comando, nos termos<br />
deles. Não quer dizer pertencer nem quer dizer<br />
não pertencer. É o cara que está em cadeia do<br />
PCC, portanto que vive de acordo com a ética<br />
do PCC, mas ele não é batizado no PCC. O irmão<br />
é batizado. E aí tem algumas variações...O<br />
irmão excluído, que não é nem primo nem irmão,<br />
as cunhadas que são as mulheres dos irmãos.<br />
Faxina é uma coisa que já existia antes<br />
do PCC, é o nome de uma cela na verdade. Cela<br />
da faxina e tem o homem da faxina, tem a faxina<br />
e o faxina.<br />
Adalton Marques – Quase sempre quando se<br />
fala dessas coisas, a gente replica questões estatais.<br />
Como se esses caras estivessem numa posição<br />
de subjugar e manipular a população carcerária,<br />
a massa. E é de algum modo tratar o resto como<br />
massa, sem consciência, apenas alvos de políticas.<br />
Esse é o modelo, a propósito, que usamos para julgar<br />
aqueles que votam num ano na Heloísa Helena<br />
e noutro no Collor: “Não sabe de política; não<br />
tem consciência política; é manipulado”. A gente<br />
tem esse ranço de achar que na verdade a política<br />
só acontece quando está norteada por algum<br />
princípio que a gente acha correto. E temos a mania<br />
de replicar isso pra prisão: “ah, é a massa, que<br />
diante de uns caras um pouco mais fortes ou um<br />
pouco mais inteligentes, não pensa, não faz porra<br />
nenhuma”. Liderança não é simplesmente mandar<br />
no outro, porque dentro desse processo de constituição<br />
desses homens, ser mandado por outro<br />
é se tornar o que eles designam de lagarto. E lagarto<br />
é a pior coisa do mundo. Ladrão é cabuloso,<br />
troca tiro com a polícia, ladrão tem um ethos<br />
guerreiro, sei lá, ladrão é ladrão. E ser mandado<br />
por outro ladrão é a pior coisa que tem no mundo,<br />
é ser esquema do outro, é ser lagarto. Esses caras<br />
falam assim: você tem que ficar atento porque<br />
todo mundo que foi líder do PCC, que foi fundador,<br />
general, que atribuiu posições de chefia pra<br />
si mesmo, o que aconteceu com esses caras? Ou<br />
morreram ou foram expulsos. Então o que é mandar<br />
dentro desse comando? Talvez mandar dentro<br />
desse comando seja se colocar na posição do próximo<br />
a ser morto.<br />
E o que são os salves?<br />
Karina Biondi – Muita gente fala que o salve<br />
é uma ordem, mas não é.<br />
Adalton Marques – É uma ideia.<br />
Karina Biondi – O PCC está fora do regime jurídico,<br />
então as coisas não funcionam na base da<br />
lei, do quem cumpre e quem não cumpre, quem<br />
manda e quem não manda. O salve eu diria que<br />
são mais orientações, recomendações, já que ninguém<br />
é obrigado a nada.<br />
caros amigos julho 2010<br />
E eles partem de onde?<br />
Karina Biondi – Existem salves gerais, que<br />
vêm das torres e se espalham para as quebradas.<br />
As torres são posições políticas da onde partiriam<br />
esses salves.<br />
Adalton Marques – Onde que está a torre?<br />
Ela está numa cela exclusiva dentro de uma cadeia?<br />
Não, ela está tirando cadeia nas mesmas<br />
celas com outros homens, sai pro pátio com outros<br />
homens, escuta ideias de outros homens...<br />
Karina Biondi – Ou às vezes a torre é designada<br />
uma cadeia inteira, essa cadeia é torre.<br />
O que não implica que todos os presos de lá<br />
sejam torres.<br />
Adalton Marques – Pensar que a ideia<br />
parte da cabeça do torre é muito jurídico. Como<br />
é que se constitui um salve? Ele pode se constituir,<br />
imagino eu, a partir de um acontecimento<br />
específico que exige uma reflexão para a qual<br />
talvez as situações passadas não dão conta de<br />
resolver.<br />
Karina Biondi – Como o exemplo de quem<br />
dorme ou não na cama. Antes era o preso que<br />
cumpriu mais tempo de pena que dormia na<br />
cama, e os outros dormiam no chão, porque são<br />
40 presos por cela e 12 camas só, como se decide?<br />
Dizem que antes era pela força, ou vendiam-se<br />
as camas, isso é uma coisa que dizem<br />
que foi abolida pelo PCC. Só que aí acontece um<br />
caso em que um cara cumpriu 20 anos, foi pra<br />
rua e voltou uma semana depois. “O cara foi pra<br />
rua, se não ficou por lá a culpa é dele, eu já subi<br />
pra cama e estou há 12 anos aqui, ininterruptos”.<br />
Antes o critério era o tempo total de cadeia,<br />
e isso foi para debate. E aí se decidiu que<br />
o que vale é o tempo ininterrupto, se saiu nem<br />
que foi meio dia na rua, você desce pra dormir<br />
no chão. Então são situações que aparecem. Alguns<br />
salves são lidos. São passados por telefone,<br />
transcritos sabe-se lá como. E são lidos no<br />
pátio da cadeia, na presença dos funcionários.<br />
E outros só importam aos que estão na faxina,<br />
aos que são pilotos...<br />
Adalton Marques – Tem uma política colocada<br />
pra esses caras que é manter a paz entre<br />
os ladrões e bater de frente com a polícia. Daria<br />
pra gente dizer, forçando um pouco a barra,<br />
que são salves permanentes. Orientações permanentes.<br />
Onde que surgiram essas orientações?<br />
Elas surgiram em 93 num jogo de futebol? Não.<br />
Surgiram depois num processo depois de pensar<br />
num estatuto? Não necessariamente. Eu tenho<br />
dados de 74, 76, 78, em que essa questão de parar<br />
de se matar, e de bater de frente com agente<br />
e com polícia já era colocada. Então isso não<br />
é um enunciado que apareceu, essa coisa estava<br />
colocada. O PCC coloca isso num patamar diferente<br />
de considerações, mas as coisas não saem<br />
do nada, saem de relações. Têm que ser procuradas<br />
nas relações.<br />
Nesse sentido de não hierarquia, como isso<br />
contrasta ou não com o enquadramento de<br />
crime organizado? O PCC é uma organização<br />
criminosa? Tem fins econômicos puramente,<br />
tem um caixa?<br />
Adalton Marques – A noção de crime organizado<br />
é uma figura que não possui definição jurídica<br />
constante em nossa legislação, ainda não<br />
saiu do campo doutrinário. Está totalmente imbricada<br />
com as noções de bando e de quadrilha,<br />
oriundas do artigo 288 do Código Penal. Tem<br />
também a definição da Convenção de Palermo,<br />
da qual somos signatários. A questão é que crime<br />
organizado não tem definição, ou pelo menos<br />
têm várias. Algumas quantificam o número<br />
de pessoas associadas ao crime, outras elencam<br />
características estruturantes do tipo disposição<br />
empresarial, hierarquia, divisão de funções, motivação<br />
financeira, etc. Seja como for, a noção<br />
de crime organizado não parece funcionar bem<br />
conceitualmente. E, ao que me parece, mais difícil<br />
do que conceituar precisamente o que é crime<br />
organizado, é a tarefa de dizer o que é o PCC<br />
e outros comandos. Apesar disso, a noção de crime<br />
organizado está funcionando a pleno vapor,<br />
enquadrando presos no Regime Disciplinar Diferenciado<br />
– a despeito de uma série de posições<br />
que apontam a inconstitucionalidade desse dispositivo<br />
penitenciário.<br />
Isso seria um instrumento da repressão para<br />
rotular o inimigo mais facilmente e poder<br />
-PCC_160.indd 38 02.07.10 17:19:05
incidir militarmente sobre ele como crime<br />
organizado? Na Região Sudeste se verifica<br />
uma dificuldade de se obter maconha cada<br />
vez maior. O discurso da polícia é que o<br />
PCC teria optado pelo crack e pela cocaína,<br />
que seria mais rentável e teria deixado a<br />
maconha de lado. O PCC teria capacidade de<br />
tomar decisões empresariais como essa?<br />
Karina Biondi – Quando alguém fala “o PCC<br />
fez isso”, eu fico imaginando: quem? Porque se<br />
você chega pra qualquer irmão e pergunta “quem<br />
é o PCC?”, “a gente aqui né, tá tudo junto e misturado”.<br />
Não existe um PCC ou alguém que fale<br />
pelo PCC, não existe representatividade.<br />
Não poderia ser um salve, por exemplo?<br />
Karina Biondi – Nunca fiquei sabendo de<br />
salve no sentido empresarial, é mais sobre conduta,<br />
sobre ética.<br />
Adalton Marques – É difícil um salve recomendar<br />
os negócios particulares de um ladrão. É<br />
a correria do cara. O PCC é um emaranhado de redes<br />
de alianças que parecem um rizoma; os pontos<br />
não estão necessariamente todos interligados.<br />
O que confere sentido pra eles é essa coisa que é<br />
conhecida por todos, que não é uma pessoa, são<br />
os valores, a disciplina do comando como eles di-<br />
zem. O termo PCC é tão forte que ele se atualiza<br />
quando um moleque está jogando bola na quebrada<br />
dele, agora os meninos não mandam o outro<br />
tomar no cu e quando acontece alguma coisa eles<br />
falam “vamo debater essa fita”. Por efeitos diversos,<br />
de algum modo isso está atualizando o jeito<br />
de ser do PCC, é uma coisa muito louca. E homogeneizar<br />
esse processo passa a impressão que milhares<br />
de presos das 147 unidades prisionais, entre<br />
150 mil pessoas, estão conectados e todos funcionam<br />
do mesmo jeito. Tipo todos decidiram não<br />
vender mais maconha, todos decidiram tal coisa,<br />
é muito complicado.<br />
Uma pergunta sobre maio de 2006. Lendo<br />
trechos do depoimento do Marcola na época,<br />
ele dizia que não teve uma fonte específica<br />
que deu uma ordem, seria uma revolta<br />
generalizada. Dizem que inclusive fugiu do<br />
controle. Vocês têm dados para explicar<br />
então por que tudo parou ao mesmo tempo?<br />
Karina Biondi – De todas as versões que eu<br />
ouvi, a versão do Marcola me parece a mais consistente.<br />
Sobre o jeito desordenado de funcionamento<br />
do PCC. Eu ficaria muito mais perplexa<br />
que deu tudo tão certo por meio da ordem de<br />
um cara. Não existe um controle tão grande. Por<br />
isso acho que faz muito mais sentido em termos<br />
de revolta generalizada e lealdade, e que assim<br />
como todos foram se comunicando e essa revolta<br />
foi pipocando em vários lugares, todos foram<br />
se falando pra parar.<br />
E quanto à versão de um acordo com um<br />
governo pra encerrar a revolta?<br />
Adalton Marques – O Marcola diz que houve<br />
a tentativa clara de fazer uma negociação e<br />
argumenta que ele nem sabia que aquilo estava<br />
em curso. Um dado forte que torna a versão<br />
deles plausível é a seguinte indagação: se o Estado,<br />
através da sua inteligência e investigação,<br />
decidiu isolar setecentos e poucos presos considerados<br />
lideranças em uma cadeia de segurança<br />
máxima, Venceslau II, esses homens que representam<br />
esse topo da hierarquia tinham condições<br />
materiais de dar o comando?<br />
Karina Biondi – Se isolaram os supostos “cabeças”<br />
e tiraram eles de qualquer comunicação,<br />
será que essa própria história não comprova a<br />
não hierarquia do comando?<br />
Como se dá o comportamento dos presos<br />
e dos integrantes do PCC em relação às<br />
mulheres? Existe um respeito a elas, ou é um<br />
respeito em relação ao homem que é visto<br />
como dono da mulher?<br />
Karina Biondi – A postura que se tem em<br />
relação à mulher é uma questão fortíssima. Não<br />
se dirige a palavra, existe a postura corporal<br />
mesmo, de estar de lado, quase de costas para<br />
a mulher, e o que está em jogo é a relação entre<br />
os homens, os presos. Implica a honra dos<br />
homens. Particularmente parece que você é invisível.<br />
Às vezes, mesmo quando queriam falar<br />
comigo, falavam para o meu marido, mas para<br />
que eu ouvisse. Eu poderia pensar isso como um<br />
desrespeito, mas talvez seja um excesso de zelo<br />
e de respeito a ele.<br />
O Adalton coloca em sua tese que o<br />
projeto de prisão é a sua reforma, que não<br />
se busca outros modos, o máximo é uma<br />
melhoria do que está aí. Você acredita<br />
que mesmo a esquerda está dentro dessa<br />
lógica, de punição?<br />
Adalton Marques – O que eu diria é que<br />
a questão da segurança, pelo menos no último<br />
pleito eleitoral à presidência, norteou um pouco<br />
discussões da esquerda e da direita. Mas pelo<br />
menos entre aqueles que se pretendem elegíveis,<br />
é difícil que alguém vire e fale “acho que a tática<br />
pra hoje não é reprimir mais, mas abrir um diálogo”,<br />
acho quase impossível.<br />
E na esquerda que não se pretende elegível?<br />
Adalton Marques – Pensando um pouco no<br />
[Gilles] Deleuze, eu diria que não tem uma máquina<br />
abstrata alternativa à disciplina e ao controle<br />
pra pensar nos presos. O preso é sempre<br />
aquele que precisa ser ressocializado. Aí quando<br />
você parte de uma colocação desse tipo, está<br />
sempre implicado um modo de fazer incidir sobre<br />
ele uma ortopedia social específica. E eu não<br />
tenho uma alternativa pra isso. Essa coisa de tornar<br />
o indivíduo próprio para o trabalho, para o<br />
lugar certo na família, o “socializado”. Como alternativa<br />
à disciplina, a gente passa a ter muito<br />
mais aquilo que eu chamaria de contenção. Não<br />
incide na totalidade dos presos, incide naqueles<br />
que são elegíveis por decisões penitenciárias,<br />
para ficarem reclusos, 365 dias por ano, 23 horas<br />
por dia, sem direito a educação, a banho de<br />
sol, a trabalho, com visitas controladas e filmadas...<br />
A gente tem que se perguntar se o resultado<br />
de um poder disciplinar, como disse [Michel]<br />
Foucault, é a produção de delinqüentes, ou seja,<br />
se a derivação da disciplina produz crime, o que<br />
vai derivar desse outro poder? E aí temos que levar<br />
a sério até o nome desse tipo de cadeia: Regime<br />
Disciplinar Diferenciado, RDD. Não é mais<br />
a disciplina, é a diferença da disciplina, é a contenção<br />
até a última ponta. E o que vai sair daí a<br />
gente não tem bagagem histórica pra falar.<br />
Karina Biondi – O raciocínio é como se o<br />
problema sempre fosse a falta de Estado. Então<br />
a solução é colocar mais Estado. E não é só que<br />
a prisão seja vista como o remédio, mas é a potencialização<br />
da prisão dentro da própria prisão.<br />
Sobre os movimentos sociais, de esquerda, faz<br />
anos já que eu vi enunciados de presos dizendo<br />
que “na época dos presos políticos o pessoal<br />
se mobilizava e olhava aqui pra dentro, agora<br />
não tem ninguém deles preso aqui, então a gente<br />
foi esquecido”. Acho que isso é forte para os<br />
movimentos pensarem também: os presos porque<br />
eram políticos valiam uma mobilização, e<br />
agora eles são menos políticos? Ou estão fazendo<br />
outra política? O que se entende por política,<br />
ou por resistência?<br />
Gabriela Moncau é estudante de Jornalismo.<br />
Julio Delmanto é jornalista.<br />
julho 2010 caros amigos<br />
-PCC_160.indd 39 02.07.10 17:19:05<br />
39
40<br />
caros amigos julho 2010<br />
Marcelo Salles<br />
teatro da Maré<br />
A Cia Marginal de<br />
Teatro, grupo formado<br />
por atores-moradores<br />
da Maré, maior bairro<br />
popular do Rio de<br />
Janeiro, realiza ações<br />
para democratizar o seu<br />
método de trabalho.<br />
tudo escuro. Silêncio absoluto. Uma ponta<br />
de cigarro acesa dança, em movimentos cadenciados.<br />
Aos poucos, a luz se abre. E rufam<br />
os tambores! No centro do palco, surge, vagarosamente,<br />
uma pomba-gira. Sentada com seu<br />
enorme vestido branco, caprichosamente deitado<br />
em círculo, ela balança a cabeça de lado a lado,<br />
enquanto fuma e bebe. Ela bate duas palmas e<br />
duas ajudantes entram em cena. Mais duas palmas<br />
e elas enchem seu copo. De repente, uma<br />
pastora evangélica, dessas bem escandalosas, entra<br />
no palco. Sua pregação coincide com a saída<br />
de cena, lenta e gradual, da pomba-gira. Com os<br />
olhos esbugalhados, a pastora grita: “Aceite Jesus<br />
no seu coração!” e outras palavras de ordem.<br />
A transição se completa. A pomba-gira e suas<br />
ajudantes saem completamente de cena, e a pastora<br />
conquista, definitivamente, o palco.<br />
O trecho acima está em cartaz com o espetáculo<br />
Qual é a nossa cara?, da Cia Marginal de Teatro.<br />
Trata-se de uma das muitas histórias de Nova<br />
Holanda, uma das dezesseis favelas do Complexo<br />
da Maré, conjunto habitacional às margens<br />
da Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, que reúne<br />
mais de 130 mil pessoas. A passagem conta, com<br />
beleza e rigor histórico, a substituição das religiões<br />
de matriz africana pelas neopentecostais no<br />
Rio de Janeiro – processo que muitas vezes expulsou<br />
das favelas, com violência, os praticantes<br />
de umbanda e candomblé.<br />
A peça conta diversas histórias de Nova Holanda,<br />
entrecortadas por depoimentos pessoais<br />
dos atores, que são também moradores da Maré.<br />
O processo de criação que deu origem ao espetáculo<br />
teve como ponto de partida uma pesquisa<br />
de campo realizada nesta favela. Durante dois<br />
ou três meses os atores entrevistaram alguns dos<br />
moradores mais antigos da comunidade até se<br />
mostra a força da favela<br />
Grupo de teatro emociona o público com texto vigoroso e apresentação de alto nível profissional.<br />
chegar à formatação das histórias. “Depois, fizemos<br />
um processo de seleção e reflexão em cima<br />
desse material”, explica a diretora do grupo, Isabel<br />
Penoni. “E juntamos histórias de 20, 30 anos<br />
atrás, mas que são atualizadas pelos depoimentos<br />
dos atores”.<br />
Um deles, o da brilhante atriz Priscilla Andrade,<br />
de 24 anos, mostra que esse grupo de teatro<br />
não é mais um desses que se proliferam nas fa-<br />
velas pelas mãos de ONGs comprometidas apenas<br />
consigo mesmas. Priscilla fala de seu primeiro<br />
Fórum Social Mundial, narra a evolução do<br />
engajado bloco carnavalesco Se Benze que Dá e<br />
lembra de quando moradores fecharam a Avenida<br />
Brasil após o assassinato do menino Renan,<br />
3 anos, durante operação policial em 2006. “A<br />
gente também faz protesto!”, afirma.<br />
Uma segunda passagem do espetáculo conta<br />
-Salles_160.indd 40 02.07.10 17:15:24<br />
foto: Q NaldiNho loureN
um pouco da história do traficante varejista Jorge<br />
Negão, que durante muito tempo reinou absoluto<br />
na favela. O ator caminha lentamente. Três<br />
mulheres o acompanham, com gritinhos de Jorge,<br />
Jorge. Quando ele vira o boné pra trás, todas<br />
se calam e deitam, imóveis. Apavoradas, procuram<br />
esconder o rosto. O bandido desvira o boné<br />
e volta a caminhar. Gritinhos, boné pra trás, mulheres<br />
no chão. Tragicômico: os moradores mais<br />
antigos contam que quando Jorge Negão saía de<br />
sua casa com o boné virado pra trás era porque<br />
estava indo matar alguém.<br />
Uma outra cena que retrata a violência diz respeito<br />
a uma trégua do Jorge Negão e dos Irmãos<br />
Metralha, grupos rivais que durante anos dominaram<br />
a região. Era dia de votação para a Associação<br />
de Moradores – este o motivo da bandeira<br />
branca. De repente estoura o funk Rio Chumbo<br />
Quente, dos MCs Júnior e Leonardo, adaptação<br />
da música “Chumbo Quente”, da dupla sertaneja<br />
Léo Canhoto e Robertinho, que surgiu em 1969,<br />
em Goiânia. Ao contínuo, os atores entram com<br />
máscaras de Bush, Saddam Hussein, Bin Laden,<br />
Minie e Carlitos. Seguram foices, armas de fogo,<br />
munições. E dançam, percorrem todo o palco.<br />
CeNa aNtológiCa<br />
A diretora Isabel Penoni explica que tentou<br />
conjugar as celebridades do terrorismo internacional<br />
com a banalização da violência entre<br />
crianças (Minie), enquanto a figura do Carlitos,<br />
única a não portar nenhuma arma, pula de um<br />
lado para outro tentando escapar com vida. “O<br />
importante é que o uso das máscaras de Bush,<br />
Saddam e Bin Laden nessa cena amplia a reflexão<br />
sobre a guerra que se vive hoje nas favelas<br />
cariocas, conectando ou associando-a aos grandes<br />
conflitos internacionais”, diz Isabel.<br />
O espetáculo aproveita as histórias dos moradores<br />
da Nova Holanda para problematizar<br />
questões tabus, como a homossexualidade, abuso<br />
sexual e os diversos preconceitos ainda enraizados<br />
no país. No total, são 13 cenas, entre<br />
as representações das histórias contadas pelos<br />
moradores mais antigos e os depoimentos pessoais<br />
dos atores.<br />
O momento em que a plateia mais riu foi diante<br />
da interpretação da história das palafitas duplex.<br />
Muitas pegaram fogo, os donos perderam<br />
tudo, uma desgraça sem fim. Mas a pose estava<br />
mantida. “Mas era duplex”, repetia, orgulhoso,<br />
entre uma e outra tragada no cigarro.<br />
Uma outra cena que diz muito pela atualidade<br />
da reflexão proposta é a que mostra o papelão<br />
prestado por muitas ONGs que atuam em comunidades.<br />
Pegam os favelados mais fudidos e os<br />
inscrevem num projeto social qualquer. Depois,<br />
os que aprendem a batucar qualquer coisa são<br />
atirados à mídia e pressionados a defender muros,<br />
caveirões e UPPs. É a nova rolagem da máquina<br />
de moer gente, diria Darcy Ribeiro.<br />
Gizele Martins, moradora da Maré, assistiu à<br />
peça pela quarta vez e se emocionou mesmo assim.<br />
“Eu me vejo representada em cada situação<br />
representada. A peça é essencial para o resgate<br />
da nossa história”, disse.<br />
A atriz Priscilla Andrade conta que a Cia Marginal<br />
é um projeto de vida. “Foi por ela que eu<br />
parei de resistir em tentar ser atriz. No Brasil há<br />
uma ideia de não-valorização da cultura, mas o<br />
teatro foi mais forte, foi me puxando e não teve<br />
jeito”, diz ela, para quem a arte tem um importante<br />
papel político. “Eu acredito na arte. E primeiro<br />
de tudo tem que ter um papel político. A<br />
arte questiona, problematiza as questões envolvidas<br />
na história. Ela toca na ferida. Se não toca<br />
na ferida, não é arte, é só entretenimento”.<br />
Wallace Lino, ator que interpreta a pomba-gira<br />
da cena inicial, se encontrou no teatro, mais<br />
especificamente nesse grupo. “A Cia Marginal é<br />
minha vida”, diz. “Foi o único espaço em que<br />
consegui construir um vínculo que não consigo<br />
e nem quero me desligar”. Em sua opinião, encenar<br />
uma peça sobre a Maré é um privilégio,<br />
pois “as pessoas que construíram esse lugar são<br />
exemplos de resistência. Não só na Maré, mas na<br />
maioria das favelas”, diz. Wallace critica a forma<br />
como o poder público age nesses espaços, e<br />
pergunta: “Por que aqui ele atua totalmente diferente<br />
da Zona Sul?”.<br />
HistóriCo<br />
A Cia Marginal é um grupo formado por atores-moradores<br />
da Maré, maior bairro popular do<br />
Rio de Janeiro. Nesse espaço, o grupo desenvolve,<br />
desde 2005, atividades em parceria com a or-<br />
Atores contam histórias e fazem depoimentos pessoais.<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
ganização Redes de Desenvolvimento da Maré.<br />
Seu nome reflete a prática a que se propõe, que<br />
aponta para a liberdade que se encontra às margens<br />
dos sistemas e padrões dominantes. A Cia<br />
realiza ações voltadas para a democratização do<br />
seu método de trabalho, como oficinas teatrais<br />
oferecidas para jovens da favela. Em 2006, o<br />
grupo foi contemplado com o Prêmio de Teatro<br />
Myriam Muniz, da Funarte, que permitiu a<br />
montagem do espetáculo Qual é a nossa cara?.<br />
Em 2009 foi agraciada com patrocínio da Secretaria<br />
de Cultura do Estado do Rio de Janeiro<br />
para a manutenção de suas atividades.<br />
Para a temporada 2010/2011, a Cia Marginal<br />
pretende trabalhar o projeto Do outro lado, que<br />
vai tratar do universo dos presos em regime fechado.<br />
“Me interessa saber como eles passam o<br />
tempo, como constroem a privacidade num lugar<br />
onde a premissa é a subtração da privacidade,<br />
como dão sentido à passagem do tempo”,<br />
explica a diretora Isabel Penoni. O objetivo é<br />
mostrar ao público um pouco da subjetividade<br />
de quem está preso, sobre quem é a pessoa que<br />
está ali, geralmente tida como um número, uma<br />
massa homogênea de criminosos. “Também me<br />
interessa ver como vai se dar a interação com<br />
os atores durante o processo de pesquisa, pois<br />
na favela também há uma série de limitações,<br />
como muros, fronteiras impostas pelo tráfico,<br />
entre outras”, diz Isabel, que trabalha há dez<br />
anos na Maré.<br />
A missão da Cia Marginal é realizar projetos<br />
de pesquisa, criação, produção e democratização<br />
da prática teatral, através de uma gestão coletiva.<br />
O grupo atua em diferentes espaços e está<br />
voltado para um público diversificado, contribuindo<br />
para a descentralização da difusão artística<br />
da cidade do rio de Janeiro, através de um<br />
teatro autoral, contemporâneo e feito com qualidade,<br />
comprometido com a formação de um<br />
pensamento crítico e reflexivo.<br />
A direção da Cia está a cargo de Isabel Penoni.<br />
Em seu elenco estão Priscilla Andrade, Geandra<br />
Nobre, Jaqueline Andrade, Wallace Lino,<br />
Diogo Vitor e Rodrigo Souza. A ficha técnica<br />
do espetáculo Qual é a nossa cara? é a seguinte:<br />
Concepção e Direção: Isabel Penoni; Pesquisa<br />
e Criação: Cia Marginal; Supervisão de Dramaturgia:<br />
Rosyane Trotta; Direção de Arte: Rui<br />
Cortez; Direção Musical: Isadora Medella; Iluminação:<br />
Daniela Sanchez e Rogério Emerson<br />
Magalhães; Programação Visual: João Penoni;<br />
Foto e Vídeo: Davi Marcos; Produção Executiva:<br />
Cia Marginal e Bianca Fero.<br />
O público que esteve presente na noite de<br />
19 de junho, um sábado, no Centro de Artes da<br />
Maré, assistiu a tudo com uma atenção exemplar.<br />
E riu e chorou. E quando a apresentação<br />
terminou, todos aplaudiram de pé por intermináveis<br />
minutos. Não à toa. Os atores estiveram<br />
impecáveis, a iluminação precisa, o figurino estupendo.<br />
Esse espetáculo, esse grupo, poderia<br />
estar em qualquer teatro do mundo.<br />
Marcelo Salles é jornalista.<br />
Colaborou Eduardo Sá, estudante de Jornalismo.<br />
julho 2010 caros amigos<br />
-Salles_160.indd 41 02.07.10 17:15:26<br />
João PeNoNi<br />
41
42<br />
em meados de junho deste ano, o Ministério<br />
da Cultura (MinC) apresentou o anteprojeto<br />
de reforma da lei de direitos<br />
autorais. Se aprovadas, as modificações propostas<br />
colocarão na legalidade uma série de práticas<br />
cotidianas, além de corrigir alguns graves, e óbvios,<br />
problemas da lei. Professores poderão usar<br />
filmes e músicas em sala de aula sem estar cometendo<br />
nenhum crime; cinematecas, museus e bibliotecas<br />
poderão fazer reprodução de seus acervos<br />
para fins de conservação; peças teatrais de<br />
fim de ano poderão tocar música sem ter que pagar<br />
direito autoral; quem comprar um CD poderá<br />
passá-lo para um MP3 player; e as festas poderão<br />
tocar “Parabéns a você” sem correr o risco de ser<br />
importunadas pelos fiscais do direito autoral.<br />
O processo de reformulação da legislação teve<br />
início em 2007, quando foi realizado o Fórum Nacional<br />
de Direito Autoral, promovido pelo MinC.<br />
A partir da constatação da necessidade de mudança<br />
na lei, o órgão se dedicou a debater com os<br />
diversos setores “levantando suas demandas e os<br />
problemas que eles viam no tocante ao direito autoral<br />
e passamos a estudar e debater possíveis soluções”,<br />
conta Marcos Souza, diretor de Direitos<br />
Intelectuais do MinC. Com o material em mãos, o<br />
Ministério formulou a proposta de lei. Até o final<br />
de julho, o órgão recolherá contribuições da sociedade<br />
civil para formatar um projeto de lei que<br />
será encaminhado aos parlamentares.<br />
A reforma da lei atual de direitos autorais, em<br />
vigor desde 1998, é uma demanda de diversos grupos<br />
que a consideram muito rígida em alguns pontos<br />
e desatualizada, devido à expansão da internet.<br />
A lei brasileira é considerada muito restritiva pelas<br />
poucas exceções permitidas, ou seja, situações em<br />
que não é necessário o pagamento de direito autoral<br />
ou de autorização de seus detentores, como no<br />
caso de um professor exibir uma obra em sala de<br />
caros amigos julho 2010<br />
Juliana Sada<br />
Direitos autorais,<br />
a luta pelo acesso ao conhecimento<br />
A reforma da lei atual<br />
de direitos autorais,<br />
em vigor desde 1998,<br />
é uma demanda de<br />
diversos grupos que a<br />
consideram muito rígida<br />
em alguns pontos<br />
e desatualizada.<br />
aula ou da reprodução de uma obra esgotada, também<br />
no âmbito escolar. Outro problema apontado<br />
é que a lei priorizaria os interesses dos intermediários,<br />
sendo estes os que mais lucram sem que os autores<br />
recebam remuneração. Um estudo feito pelo<br />
Gpopai (Grupo de Pesquisas em Políticas Públicas<br />
para o Acesso à Informação) aponta que, no caso<br />
das editoras, de três partes recebidas, duas ficam<br />
para o intermediário e uma para o autor.<br />
Neste ano, a organização “Consumers International”<br />
realizou uma pesquisa em 34 países sobre<br />
o impacto do direito autoral sobre o acesso ao<br />
conhecimento. O Brasil ficou em 28º lugar. Para<br />
Pablo Ortellado, professor da USP e membro do<br />
Gpopai, o direito autoral é um monopólio de exploração<br />
de uma determinada obra, e por isso<br />
deve ser “altamente regulamentado. O impacto<br />
de haver um monopólio sobre um bem tão importante<br />
para a educação, para a cultura, é enorme”.<br />
A regulamentação viria pela criação de exceções<br />
e limitações do direito autoral, de modo a<br />
garantir o acesso da população às obras. Ortellado<br />
cita um estudo feito pelo Gpopai que revelou<br />
que 30% da bibliografia básica dos cursos universitários<br />
está esgotada, a única maneira legal<br />
do estudante ter acesso a estes conteúdos é pelas<br />
bibliotecas, que em geral não tem um acervo capaz<br />
de atender a demanda.<br />
-Direitos_autorais_160.indd 42 02.07.10 17:38:53<br />
imagem de domínio público
Especialistas da área jurídica alertam para a necessidade<br />
de equilibrar o direito autoral com outros<br />
direitos do cidadão. Guilherme Varella, advogado<br />
do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec)<br />
explica que além de proteger os direitos do autor,<br />
de modo que ele continue produzindo, “existe<br />
uma outra função da lei que é a esfera pública e de<br />
atendimento do interesse público e consagração<br />
de alguns direitos que são fundamentais, que são<br />
os direitos à educação, à cultura e o acesso ao conhecimento”.<br />
Esta visão é compartilhada por Marcio<br />
Schusterschitz, promotor do Ministério Público<br />
Federal, para quem o direito autoral não é um<br />
“direito isolado” e sim “transversal” funcionando<br />
como o “porteiro que vai deixar ou não as pessoas<br />
terem acesso à informação e ao conhecimento”.<br />
Nova lei em coNstrução<br />
Diante da constatação destes problemas, o MinC<br />
criou a proposta de lei que agora está em consulta<br />
pública para receber sugestões da sociedade civil,<br />
que posteriormente poderão ser incorporadas<br />
ao projeto. Algumas das mudanças propostas resolvem<br />
questões praticamente consensuais como<br />
a cópia de livros esgotados; execução de músicas<br />
e filmes em igrejas, escolas, cineclubes e no âmbito<br />
doméstico; e a cópia privada (de um livro ou<br />
CD adquirido). Entrariam na legalidade também<br />
a revenda de obras, praticada pelos sebos, e o próprio<br />
empréstimo de livros por bibliotecas, que teoricamente<br />
só pode ser feito mediante autorização<br />
do detentor dos direitos autorais.<br />
Inovações importantes trazidas pelo anteprojeto<br />
são a proibição do jabá (pagamento para execução<br />
de uma música nas rádios); a numeração<br />
de cópias, de modo que o autor possa saber quantas<br />
foram produzidas e evitar fraudes por parte<br />
das gravadoras e editoras; e a criação da licença<br />
compulsória – mecanismo que outorga ao presidente<br />
o poder de autorizar, quando requisitado, o<br />
licenciamento de uma obra se estiver esgotada; se<br />
os detentores dos direitos criarem empecilhos não<br />
razoáveis à exploração de uma obra e se não for<br />
possível determinar o autor de uma obra.<br />
De todas as propostas de modificação apresentadas,<br />
duas já se mostram polêmicas: a permissão<br />
de xerox nas faculdades e a fiscalização<br />
das organizações de gestão coletiva. Essas mudanças<br />
mexem diretamente com os interesses da<br />
ABDR (Associação Brasileira de Direitos Reprográficos),<br />
que reúne editoras, e o Ecad (Escritório<br />
Central de Arrecadação e Distribuição), responsável<br />
por recolher os direitos autorais decorrentes<br />
da execução de músicas.<br />
A primeira modificação tornaria regular uma<br />
prática cotidiana e fundamental no ensino superior.<br />
No entanto, prevê o pagamento de direitos<br />
autorais e estabelece que os detentores de direito<br />
têm que autorizar a reprodução da obra.<br />
Para Ortellado, esse modelo trará uma oneração<br />
muito grande aos estudantes, já que um aumento<br />
de dois ou três centavos por cópia representaria<br />
oitenta reais anuais a mais. Além disso, o<br />
pesquisador acredita que a ABDR não irá autorizar<br />
a reprodução das obras. Esta seria uma situação<br />
que poderia ser corrigida pelo licenciamento<br />
compulsório, entretanto, Ortellado crê que o governo<br />
não tem força política para fazer isso em<br />
massa. Marcos Souza, do MinC, discorda e contra<br />
argumenta que a simples existência do mecanismo<br />
resolve este potencial problema.“Não é<br />
a aplicação constante do mecanismo que vai garantir<br />
a sua observância”, defende.<br />
Já a fiscalização das organizações de gestão<br />
coletiva está incomodando especialmente o Ecad,<br />
entidade responsável por recolher direito autoral<br />
de estabelecimentos que tocam música como rádios,<br />
igrejas e festas. Além de arrecadar o dinheiro,<br />
o Ecad é responsável por distribuí-lo aos autores.<br />
Entretanto, o pagamento não é proporcional<br />
à quantidade de vezes que cada artista foi tocado.<br />
Nem todos que tiveram sua obra executada recebem<br />
os dividendos, apenas os que tiveram maior<br />
destaque. No entanto, este processo e seus critérios<br />
não são considerados suficientemente transparentes<br />
e por isso se tornaram alvos de intensas<br />
críticas. Como a feita pelo deputado federal<br />
Paulo Teixeira (PT/SP): “o Ecad é uma instituição<br />
sem controle da sociedade e nem do seu segmento<br />
específico que é o autor, que não tem nenhuma<br />
garantia que será remunerado devidamente”.<br />
Para resolver esta questão, explica Marcos Souza,<br />
o anteprojeto de lei pretende “dotar o sistema<br />
de arrecadação e distribuição de transparência, de<br />
modo que seja possível o seu controle social por<br />
parte dos principais interessados que são os autores<br />
e artistas”. Entretanto, para o parlamentar, a<br />
melhor solução seria “extinguí-lo e promover um<br />
órgão transparente no qual os autores participem<br />
para fiscalizar seus ganhos”.<br />
DemaNDa Da iNDústria<br />
O pano de fundo da disputa pelos direitos autorais<br />
é muito mais amplo que a alegada defesa<br />
do criador. Diversos acordos internacionais estabelecem<br />
normas para a área e o Consenso de<br />
Washington, que definiu as diretrizes do neoliberalismo,<br />
estabelece como uma de suas dez regras<br />
básicas o direito à propriedade intelectual.<br />
Uma das maneiras de ingerência externa nesta<br />
questão são os acordos bilaterais feitos pelos Estados<br />
Unidos, que exigem como contrapartida<br />
uma elevada proteção ao direito intelectual. No<br />
entanto a medida mais abrangente vem da Organização<br />
Mundial do Comércio (OMC), já para<br />
ser membro desta é necessário aderir ao “Acordo<br />
sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual<br />
Relacionados ao Comércio”, conhecido<br />
como Trips, que forçou a criação de leis de proteção<br />
à marcas e patentes em diversos países.<br />
Essas restrições e exigências internacionais<br />
são frutos de investidas das indústrias do campo<br />
do direito autoral (fonográfica, audiovisual, editorial,<br />
games e softwares), a partir da década de<br />
80. Pablo Ortellado conta que a indústria do direito<br />
autoral se associou com a indústria de patentes<br />
(sobretudo de fármacos) e “começaram a<br />
imaginar o mundo que elas queriam daqui a 30<br />
anos”. Gradualmente foram introduzindo restrições<br />
de direito autoral aos países com os quais os<br />
Estados Unidos mantinham relações bilaterais.<br />
O segundo passo foi incorporar a exigência de<br />
Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />
respeito aos direitos autorais no dispositivo 301,<br />
que é um mecanismo que dá benefícios tarifários<br />
para países em desenvolvimento para exportar aos<br />
EUA. A cada ano é feito um relatório que analisa<br />
a legislação de direitos autorais de cada país e seu<br />
cumprimento e apresenta um julgamento - o Brasil<br />
já foi criticado pela questão dos medicamentos<br />
genéricos e pela cópia de livros. Finalmente, a indústria<br />
introduziu na OMC o dispositivo Trips que<br />
“em um golpe só obrigou todos os países a cumprir<br />
prazos muito altos de proteção de patentes e<br />
direito autoral”, explica Ortellado.<br />
Atualmente, há duas iniciativas de endurecimento<br />
de legislação de direitos autorais no mundo.<br />
A primeira é a chamada “resposta gradual”<br />
com o intuito de combater a pirataria na internet,<br />
que prevê advertências a usuários de internet<br />
que fizerem downloads ilegais e, se houver<br />
reincidências, a conexão de internet seria cortada.<br />
Esse tipo de regulamentação foi debatida em<br />
diversos países europeus, sempre acompanhada<br />
de protestos e controvérsias.<br />
Projeto em DisPuta<br />
Diante deste quadro de ofensiva da indústria e<br />
enrijecimento da proteção ao direito autoral mundialmente,<br />
o anteprojeto brasileiro se apresenta<br />
como um avanço progressista. Para Marcos Souza,<br />
do MinC, é possível apontar três áreas de avanço<br />
na proposta: maior proteção aos autores, como<br />
por exemplo pela “possibilidade explícita de autores<br />
reverem contratos de cessão [de direitos] em<br />
determinados casos”; melhor harmonização entre<br />
“os direitos conferidos aos autores e os do cidadão<br />
de ter acesso a cultura e ao conhecimento”; e, por<br />
fim, mais segurança aos investidores da cultura,<br />
por dar clareza a alguns dispositivos da lei.<br />
Na mesma linha, Pablo Ortellado acredita que<br />
a grande inovação da lei é estar na contramão do<br />
movimento mundial e aponta como melhorias o<br />
aumento de proteção dada ao autor frente aos intermediários<br />
e o maior acesso que o público terá ao<br />
conhecimento. Ainda assim, faz críticas a determinados<br />
pontos e, sobretudo, a um assunto que não<br />
foi discutido: o compartilhamento de arquivos entre<br />
internautas, o chamado P2P, prática extremamente<br />
disseminada, mas que segue na ilegalidade.<br />
Entretanto, muitas modificações poderão ser<br />
feitas, tendo em vista que o anteprojeto receberá<br />
contribuições da sociedade até o fim de julho para<br />
então tramitar no parlamento. Este modelo de consulta<br />
pública já foi utilizado no debate do marco civil<br />
da internet e muito elogiado, pela sua possibilidade<br />
de participação e transparência.<br />
Após a sistematização da consulta pública e<br />
formulação de um novo projeto, a proposta será<br />
encaminha à Câmara dos Deputados, provavelmente<br />
ainda neste ano. O deputado federal Paulo<br />
Teixeira (PT/SP) acredita que a iniciativa é a<br />
favor da sociedade e do acesso ao conhecimento,<br />
mas reconhece que há “uma pressão dos produtores<br />
no sentido de restringir, inclusive deixando<br />
de entender que a indústria pode ganhar muito<br />
com a difusão cultural na internet”.<br />
Juliana Sada é jornalista.<br />
julho 2010 caros amigos<br />
-Direitos_autorais_160.indd 43 02.07.10 17:38:53<br />
43
44<br />
IDEIAS DE BOTEQUIM<br />
Renato Pompeu<br />
As capacidades dos<br />
CANDIDATOS<br />
Senac publica livro de psiquiatra que exige controle da<br />
democracia, como o exame biológico dos candidatos.<br />
A Editora Senac São<br />
Paulo acaba de lançar o livro Cérebro<br />
e poder, em que o psiquiatra<br />
forense catalão Adolf Tobeña,<br />
catedrático da Universidade Autônoma<br />
de Barcelona, demonstra,<br />
segundo a apresentação do<br />
próprio Senac, que “a biologia<br />
humana impõe que, para liderar<br />
ou governar, devem prevalecer<br />
capacidades como a astúcia, a<br />
persuasão, a audácia, a manipulação,<br />
a falsidade, a crueldade...<br />
a fi m de que se possa aproveitar<br />
da necessidade que os indivíduos<br />
sentem de ser conduzidos e de<br />
sonhar com ilusões de um grande<br />
futuro. Sempre foi assim, e as atitudes<br />
que assumimos ao interagir<br />
socialmente dependem de nossos<br />
circuitos neurais e das modifi cações dos estímulos hormonais de que todos<br />
somos portadores – atributos esses que têm uma infl uência decisiva<br />
nas competições entre os humanos”.<br />
O próprio Tobeña afi rma, na conclusão: “Entre os políticos de renome,<br />
e também entre os de segundo e terceiro escalão, há uma proporção descomedida<br />
de delinquentes e de paradelinquentes. (....) É assim e continuará<br />
sendo. Todo mundo sabe, Deus e o mundo estão perfeitamente conscientes<br />
disso”. E deduz: “Por isso é tão importante ir criando mecanismos na democracia,<br />
que atenuem a tendência ‘natural’ para a absorção do governo<br />
por parte dos aproveitadores de diferentes laias e dos seus comparsas”.<br />
Conclui Tobeña que “a diversifi cação de poderes institucionais<br />
que tendem a compensar e a autovigiar-se é imprescindível”, sendo ainda<br />
melhor “a limitação temporal do período de governo das administrações”.<br />
Finalmente, diz: “Mas essa engenharia institucional terá de ir se sofi sticando<br />
e refi nando-se sem cessar, além de ir pondo em prática detectores<br />
– procedimentos diagnósticos, em resumo –, de quem se associa incondicionalmente<br />
a bandidagens. Porque, para domar a biologia parasitária, requerem-se<br />
esforços sistemáticos. Esforços que começam, é claro, por não<br />
negá-la em assuntos de poder e domínio”.<br />
UM ROMANCE DO TIMOR LESTE,<br />
Bolsa Família, Walter Benjamin, prostitutas...<br />
O escritor e militante timorense do leste Luís Cardoso já teve<br />
livros traduzidos para o alemão, francês, holandês, inglês e sueco. Mas<br />
só agora chega ao Brasil, apesar de falarmos a mesma língua em que ele<br />
escreve. Seu romance Requiem para o navegador solitário acaba de ser<br />
caros amigos julho 2010<br />
lançado pela Língua Geral. Tratase<br />
de uma jovem que, enquanto<br />
luta para recuperar as terras que<br />
sua família perdeu sob o domínio<br />
indonésio, sonha em receber<br />
no porto um navegador solitário<br />
francês, cuja viagem conhece por leituras e que acha que vai mudar sua<br />
vida. O Timor Leste da época é apresentado como “ilha-prisão”<br />
Já a Editora Perseu Abrano, ligada ao PT, publicou a segunda<br />
edição, revista e atualizada, do livro Bolsa Família – Avanços, limites<br />
e possibilidades do programa que está transformando a vida de milhões<br />
de famílias no Brasil, do pesquisador Marco Aurélio Weissheimer. A conclusão<br />
é que, embora tenhamos chegado ao “ponto mais alto”, na história<br />
do País, da luta contra à pobreza, esta não pode ser reduzida de fato sem<br />
a reforma agrária.<br />
Um seminário na Universidade Federal Fluminense sobre o famoso ensaísta<br />
marxista heterodoxo Walter Benjamin, judeu alemão que se suicidou<br />
diante da iminência de ser capturado por tropas nazistas na fronteira<br />
da França com a Espanha, está na origem dos artigos publicados no volume<br />
Walter Benjamin: arte e experiência, organizado por Luiz Sérgio de Oliveira<br />
e Martha D’Angelo, lançado pela Editora da UFF e Nau Editora. Diz a apresentação,<br />
sobre Benjamin: “Foi a partir da avaliação sobre a impossibilidade<br />
da experiência humana se realizar por meios naturais na modernidade<br />
que a experiência do artista tornou-se fundamental para ele”.<br />
Também da Editora da UFF é o livro Vila Mimosa – etnografi<br />
a da cidade cenográfi ca da prostituição carioca, da pesquisadora Soraya<br />
Silveira Simões. A obra retraça a<br />
trajetória dos habitantes e freqüentadores<br />
dessa vila da famosa “zona do<br />
Mangue”, no centro do Rio, que diante<br />
da demolição do lugar se organizaram<br />
em um novo empreendimento<br />
junto à antiga estação de trem da Leopoldina.<br />
Trata-se de “prostitutas, rufi<br />
ões, cafetinas, birosqueiros e malandros”<br />
e de “habitués, frequentadores<br />
eventuais, clientes apaixonados, onanistas<br />
e voyeurs”.<br />
Renato Pompeu é jornalista e escritor,<br />
autor do romance-ensaio O Mundo<br />
como Obra de Arte Criada pelo<br />
Brasil, Editora Casa Amarela, e editorespecial<br />
de Caros Amigos. Envio de livros<br />
para a revista, rua Paris, 856, cep<br />
01257-040, São Paulo-SP.<br />
-Ideias_botequim_160.indd 44 02.07.10 17:28:03
C<br />
C<br />
C<br />
M<br />
M<br />
M<br />
Y<br />
Y<br />
Y<br />
CM<br />
CM<br />
CM<br />
MY<br />
MY<br />
MY<br />
CY<br />
CY<br />
CY<br />
CMY<br />
CMY<br />
CMY<br />
K<br />
K<br />
K<br />
Há uma tese que corre em setores políticos distintos,<br />
mas que convergem em torno dela e, pelos equívocos que contém<br />
e pelas consequências desastrosas que gera, deve ser analisada.<br />
É a tese de que o PT e o PSDB são a mesma coisa, assim<br />
como os governos do FHC e do Lula.<br />
A tese leva a uma espécie de “terceirismo”, de candidaturas<br />
que definem equidistância em relação às candidaturas da Dilma<br />
e do Serra e que já teve posições de voto branco ou nulo no<br />
segundo turno entre Lula e Alckmin.<br />
Se os governos de FHC e Lula fossem iguais, a<br />
desigualdade teria diminuído e não aumentado durante o governo<br />
de FHC. Se fossem iguais, a reação do Brasil durante a<br />
crise econômica internacional recente teria sido a mesma de<br />
FHC: aumentar a taxa de juros a 48%, pedir novo empréstimo<br />
ao FMI e assinar a correspondente Carta de Intenções (deles),<br />
cortando recursos das políticas sociais, aumentando a recessão<br />
e o desemprego, levando o Brasil a uma profunda e prolongada<br />
recessão, que só foi superada no governo Lula.<br />
Se fossem iguais, não teria tido sentido a luta contra a<br />
ALCA – Área de Livre Comércio das Américas -, que FHC propugnava<br />
e que o governo Lula inviabilizou, para fortalecer<br />
os processos de integração regional. Dizer que são governos<br />
iguais ou similares é dizer que tanto faz privilegiar alianças<br />
subordinadas com as grandes potências do centro do capitalismo<br />
ou aliar-se prioritariamente com os países do Sul do<br />
mundo, os Brics entre eles.<br />
548-10 ANUNCIO REVISTA CAROSAMIGOS.pdf 1 6/25/10 10:05 AM<br />
548-10 ANUNCIO REVISTA CAROSAMIGOS.pdf 1 6/25/10 10:05 AM<br />
548-10 ANUNCIO REVISTA CAROSAMIGOS.pdf 1 6/25/10 10:05 AM<br />
Emir Sader<br />
SE TUDO FOSSE IGUAL<br />
Se fossem iguais os governos FHC e Lula, o Estado<br />
mínimo a que tinha sido reduzido o Estado brasileiro seria o<br />
mesmo que o Estado indutor do crescimento e garantia da extensão<br />
dos direitos sociais da maioria pobre da população. O<br />
desenvolvimento, anulado do discurso de FHC, foi resgatado<br />
como objetivo estratégico pelo governo Lula, articulado intrinsecamente<br />
a políticas sociais e a distribuição de renda.<br />
É grave quem não consiga ver essas diferenças. Perde a capacidade<br />
de identificar onde está a direita – o inimigo fundamental<br />
do campo popular – correndo o grave risco de fazer o<br />
jogo dela, em detrimento da unidade da esquerda.<br />
SUGEStõES dE LEItUrA<br />
DIANTE DA CRISE GLOBAL:<br />
HORIZONTES DO PÓS-NEOLIBERALISMO<br />
Ulrich Brand e Nicola Sekler (orgs.)<br />
Eduerj<br />
COMBATENDO A DESIGUALDADE SOCIAL: O MST E A REFORMA<br />
AGRÁRIA NO BRASIL<br />
Miguel Cartes<br />
Edunesp<br />
OS CANGACEIROS – Ensaio de interpretação histórica<br />
Bernardo Pericás<br />
Boitempo Editorial<br />
Emir Sader é cientista político.<br />
setembro 2009 caros amigos<br />
-Emir_160.indd 45 02.07.10 17:37:57<br />
45
-claudius_160.indd 44 02.07.10 17:41:23
-pag47_160.indd 47 02.07.10 17:21:49
-pag48_160.indd 47 02.07.10 17:21:06