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Trabalho ESCRAVO - Anamatra

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CURSINHOS POPULARES<br />

Opção para vestibulandos<br />

POR DENTRO DO PCC<br />

Valores e funcionamento<br />

da organização<br />

AMEAÇA RADIOATIVA<br />

no sul de Minas<br />

RIO DE JANEIRO<br />

Teatro da Maré<br />

renova arte popular<br />

ano XIV<br />

número 160<br />

/<br />

2010<br />

R$ 9,90<br />

Entrevista<br />

Frei Betto<br />

“O Brasil é o<br />

paraíso do capital<br />

especulativo”<br />

<strong>Trabalho</strong><br />

<strong>ESCRAVO</strong><br />

O que impede a erradicação<br />

PARTO HUMANIZADO<br />

sob o controle da<br />

mulher<br />

ANA MIRANDA BÁRBARA MENGARDO CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY<br />

FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS<br />

GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JANAÍNA WAGNER JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS<br />

SANTOS JOELMA COUTO JOSÉ ARBEX JR. JULIANA SADA JÚLIO DELMANTO LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES<br />

MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA TATIANA MERLINO<br />

DIREITOS AUTORAIS<br />

A urgente revisão<br />

da lei<br />

11_CA_160final.pdf 1 12.07.10 14:43:56


CAROS AMIGOS ANO XIV 160 JULHO 2010<br />

Foto de capa<br />

PAULO PEREIRA<br />

EDITORA CASA AMARELA<br />

REVISTAS • LIVROS • SERVIÇOS EDITORIAIS<br />

FUNDADOR: SÉRGIO DE SOUZA (1934-2008)<br />

DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO<br />

Combate ao trabalho escravo<br />

Por mais que se diga que o país está em franco desenvolvimento<br />

e situado entre as maiores potências econômicas do Planeta,<br />

que o triunfo do neoliberalismo aplaca as lutas sociais e<br />

leva os pobres a ingressarem nas classes médias aos milhões,<br />

existe um fato concreto que atrela o Brasil ao seu mais terrível<br />

passado: é a persistência até hoje das condições humilhantes de<br />

trabalho e análogas à da escravidão.<br />

Nem dá para afi rmar que se trata de algo anacrônico, na medida<br />

em que a prática do trabalho escravo tem sido utilizada sistematicamente<br />

pelos setores mais atrasados e mais adiantados<br />

do capitalismo. Está presente na expansão das fronteiras rurais<br />

para a instalação do agronegócio, no desmate da fl oresta para a<br />

pecuária e na lavoura da cana para o etanol. Está, igualmente,<br />

no seio do operariado que trabalha nas confecções de grife para<br />

as grandes redes de lojas dos centros urbanos.<br />

A reportagem da Caros Amigos procura não apenas mostrar<br />

a dimensão do problema, registrar a diversidade do trabalho<br />

escravo na “moderna” economia brasileira, mas principalmente<br />

questionar por que essa situação perdura além de todo o<br />

aparato disponível existente nas instituições da sociedade. Entre<br />

as várias forças que fecham os olhos ou sustentam a exploração<br />

do trabalho escravo está a bancada ruralista no Congresso<br />

Nacional, que há muitos anos impede a aprovação de projeto<br />

de lei que autoriza a desapropriação de terras com a prática de<br />

tal ilegalidade.<br />

Além dessa reportagem, a revista apresenta excelentes matérias,<br />

entre as quais a entrevista exclusiva com Frei Betto, conhecido<br />

por sua história de militância social e política; entrevista<br />

com os antropólogos Karina Biondi e Adalton Marques, sobre<br />

os valores e o funcionamento do Primeiro Comando da Capital<br />

(PCC); reportagem sobre os cursinhos populares que contribuem<br />

para que jovens de baixa renda disputem vagas no ensino superior;<br />

e outras reportagens sobre a ameaça radioativa no sul de<br />

Minas Gerais, a urgente revisão da lei de direitos autorais, as várias<br />

alternativas de partos naturais e a renovação da arte popular<br />

com o grupo de teatro da Maré, no Rio de Janeiro.<br />

Enfi m, uma edição com conteúdo denso, diversifi cado, relevante<br />

e de boa qualidade jornalística. Aproveite!<br />

EDITOR: Hamilton Octavio de Souza EDITORA ADJUNTA: Tatiana Merlino EDITORES ESPECIAIS: José Arbex Jr e Renato Pompeu EDITORA DE ARTE: Lucia Tavares ASSISTENTE DE ARTE: Henrique Koblitz Essinger EDITOR DE FOTOGRAFIA: Walter Firmo<br />

REPÓRTERES: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau CORRESPONDENTES: Marcelo Salles (Rio de Janeiro) e Anelise Sanchez (Roma) SECRETÁRIA DA REDAÇÃO: Simone Alves REVISORA: Luiza Delamare DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann<br />

CIRCULAÇÃO: Pedro Nabuco de Araújo RELAÇÕES INSTITUCIONAIS: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Priscila Nunes CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon SÍTIO: Débora Prado<br />

de Oliveira, Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau ASSESSORIA DE IMPRENSA: Kyra Piscitelli APOIO: Maura Carvalho, Douglas Jerônimo e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Joze de Cassia, Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco<br />

Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9972-0741.<br />

JORNALISTA RESPONSÁVEL: HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA (MTB 11.242)<br />

DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO<br />

CAROS AMIGOS, ano XIV, nº 160, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo.<br />

Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. IMPRESSÃO: Bangraf<br />

REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP<br />

sumário<br />

04 Guto Lacaz<br />

05 Caros Leitores<br />

07 José Arbex Jr. lembra que a direita europeia continua antissemita.<br />

08 Joel Rufi no dos Santos comenta o racismo e o Getúlio Vargas do futebol.<br />

Guilherme Scalzilli defende o direito democrático de não votar.<br />

09 Ferréz presta homenagem ao escritor que escrevia com total liberdade.<br />

Gilberto Felisberto Vasconcellos questiona: quem pode falar em natureza?<br />

10 Marcos Bagno critica o português engessado pelos gramáticos normativos.<br />

Mc Leonardo debate se a ocasião faz o ladrão ou se o ladrão faz a ocasião.<br />

11 Pedro Alexandre Sanches em Paçoca: as compositoras de todos os tempos.<br />

12 Entrevista com Frei Betto: análise crítica do poder e da realidade brasileira.<br />

17 Glauco Mattoso em Porca Miséria: o nazismo fascina os cineastas.<br />

Eduardo Matarazzo Suplicy elogia a moda como fator de inclusão social.<br />

18 Rodrigo Vianna em Tacape: a liderança de Dunga versus Rede Globo.<br />

Fidel Castro alerta sobre o fanatismo terrorista do Estado de Israel.<br />

19 João Pedro Stedile espera que os candidatos debatam os problemas do povo.<br />

Ana Miranda conta a história da diversão improvisada nas beiradas do Brasil.<br />

20 Joelma Couto denuncia a ameaça do lixo nuclear em Poços de Caldas (MG).<br />

23 Frei Betto analisa a mercantilização da água no lugar do direito humano.<br />

Cesar Cardoso lembra a formação do Novo Mundo Europeu pelos tupinambás.<br />

24 Ensaio Fotográfi co de Janaina Wagner: a escola reciclada da Tailândia.<br />

26 Lúcia Rodrigues revela os interesses que sustentam o trabalho escravo.<br />

30 Tatiana Merlino mostra a importância dos cursinhos populares pré-vestibular.<br />

33 Gershon Knispel: Israel é um pequeno império que se condenou à autodestruição.<br />

34 Bárbara Mengardo conta porque as mulheres defendem o parto humanizado.<br />

36 Entrevista com Karina Biondi e Adalton Marques: uma radiografi a do PCC.<br />

40 Marcelo Salles desvenda o bom trabalho artístico do grupo de teatro da Maré.<br />

42 Juliana Sada mostra como está a luta para mudar a lei dos direitos autorais.<br />

44 Renato Pompeu Ideias de Botequim: estudo sobre as capacidades dos candidatos.<br />

45 Emir Sader contesta a tese de que PT e PSDB são iguais.<br />

46 Claudius<br />

ALTERCOM<br />

Associação Brasileira de Empresas e<br />

setembro Empreendedores 2009 caros da Comunicação amigos<br />

-sumário_160.indd 3 02.07.10 17:13:41<br />

3


-guto_160.indd 4 02.07.10 17:29:01


Aniversário<br />

A revista Caros Amigos completou 13 anos<br />

de existência, sob o comando do editor Hamilton<br />

Octávio de Souza e com a contribuição de<br />

José Arbex Jr. e Renato Pompeu, pesos-pesados<br />

do jornalismo nacional. Conta, ainda, com articulistas<br />

de renome. De circulação mensal, mantém<br />

um time de colunistas sem precedente.<br />

A revista alçou ao cenário midiático o espetacular<br />

Ferréz, talentoso cronista da periferia de<br />

São Paulo e dos melhores escritores da nova geração,<br />

e, recentemente, abriu espaço para outras<br />

vozes dos movimentos culturais, como o cantor<br />

e compositor MC Leonardo e o jornalista Pedro<br />

Alexandre Sanches. Toda edição traz, ao menos,<br />

uma entrevista, com as mais diferentes personalidades,<br />

que tem em comum a pertinência do assunto,<br />

a relevância dos pontos de vista e a importância<br />

do entrevistado.<br />

De tiragem limitada, a Caros Amigos é mais<br />

que um veículo de comunicação, é um órgão de<br />

resistência à grande mídia que tem como característica<br />

a independência editorial. Não conta<br />

com patrocínio das corporações capitalistas nacionais<br />

ou multinacionais e nem por isso prescinde<br />

da qualidade, ao contrário, prima pela elegância<br />

na forma e pela consistência no conteúdo.<br />

A assinatura é barata e acessível. Muitos duvidaram<br />

que um projeto tão audacioso e revolucionário<br />

pudesse dar certo. E já se passaram 13 anos e<br />

157 edições. Vida longa à revista Caros Amigos.<br />

Luís José Bassoli, Taquaritinga/SP<br />

Caros leitores<br />

CAros Amigos<br />

Gosto muito da revista. Já fui assinante e<br />

sempre levei a Caros Amigos para a sala de aula<br />

com os meus alunos. Vivo em Lisboa onde, infelizmente,<br />

nunca encontro a revista, e por isso<br />

leio pela internet.<br />

Lilian Moura<br />

Gostaria de sugerir uma entrevista com Marilena<br />

Chauí, filósofa e historiadora de filosofia<br />

brasileira; uma importante figura intelectual.<br />

Aproveito para parabenizar a resista, que promove<br />

uma opção inteligente e verdadeiramente crítica<br />

de jornalismo.<br />

Monique Calvo<br />

Joel rufino e ChiCo XAvier<br />

Nossa intenção aqui não é submeter Mestre<br />

Didi ao crivo dos “critérios de verdade” do “ceticismo<br />

racionalista” defendido por Joel Rufino<br />

dos Santos para lançar Chico Xavier na fogueira<br />

ou “vala comum” em seu artigo publicado em<br />

maio (edição 158). Acredito que o médium Chico<br />

Xavier foi colocado em situação desrespeitosa. A<br />

linha de argumentação se tornou ainda mais infeliz<br />

diante da pergunta seguida de resposta que<br />

o autor apresenta no seguinte tom: “por que a<br />

idade da ciência e da técnica é também a da crença,<br />

do misticismo, da astrologia, da cientologia,<br />

dos gnomos, dos Chico Xavier? Bom, primeiro<br />

porque é um bom negócio”.Mas por que trazer<br />

até nós Mestre Didi, líder espiritual da comunida-<br />

de Nagô no Brasil? Apenas para lembrar ao Joel<br />

Rufino que o ceticismo-racionalista manifestado<br />

por ele foi parcial e preconceituoso e visou atacar<br />

a crença espírita e não outra, talvez por um motivo<br />

pragmático admitido por ele ao reclamar que<br />

“hoje se tornou comum alunos evangélicos e espíritas<br />

confrontarem professores”. Parcial e preconceituoso<br />

porque certamente Joel Rufino não<br />

deixaria de ir a um programa de rádio que abordasse<br />

a vida e a obra de Mestre Didi, com o fez<br />

na ocasião em que o personagem em foco seria<br />

Chico Xavier; ainda mais justificando sua desistência<br />

com o argumento de que seu “ceticismo<br />

sobre a realidade dos espíritos, vida após a morte<br />

etc. acabaria ferindo a susceptibilidade de algum<br />

ouvinte crente”.<br />

Alexandre Ramos de Azevedo, Rio de Janeiro/RJ<br />

ferréz<br />

E aí Ferréz, seus escritos são de tirar o chapéu.<br />

O conhecimento é a principal arma contra<br />

a opressão, suas palavras comprovam isso.<br />

Só gostaria que você incluísse na sua comunidade<br />

as mulheres que foram pioneiras na área<br />

de filosofia, que também sofreram perseguições<br />

e preconceitos. Se queremos eleger mulheres na<br />

política, não podemos deixá-la apenas como a<br />

pilota de um fogão ou cuidando dos filhos. Parabéns,<br />

Ferréz. Espero que você nunca desista<br />

do prazer da escrita que transforma o cotidiano<br />

de sua comunidade.<br />

Maria de Lourdes de Oliveira, Sumarezinho/SP<br />

julho 2010 caros amigos<br />

-Caros leitores_2pags.indd 5 05.07.10 15:44:31<br />

5


6<br />

treze Anos<br />

Prezados Caros Amigos, venho parabenizálos<br />

pelos treze anos de muita luta à frente desse<br />

ideal solidário de fazer notícia com seriedade<br />

e verdade.<br />

José de Alencar Godinho Guimarães<br />

CiDADAniA<br />

Sou leitor ferrenho e assinante da exímia revista<br />

Caros Amigos, a qual considero muito educativa,<br />

tanto por suscitar ações atreladas à cidadania,<br />

quanto por robustecer a consciência acerca<br />

de fatos importantes que ocorrem no Brasil e no<br />

mundo, mas que passam à distância ou com distorções<br />

pela mídia gorda. O perfil de jornalismo<br />

investigativo traçado pelos articulistas/colunistas<br />

tem produzido excelentes matérias, dignas de<br />

suporte para qualquer tipo de discussão em âmbitos<br />

institucionais de toda ordem. Aproveitando,<br />

então, esse veio de comprometimento com<br />

a verdade e com a efetivação do ideal democrático,<br />

eu deixo uma sugestão para uma matéria<br />

importante, que abrange interesse nacional: a<br />

questão do partilhamento dos dividendos da exploração<br />

do petróleo do Pré-Sal, cujo bem pertence<br />

à União.<br />

João P. Guedes<br />

minerADorA vAle<br />

Prezada Tatiana: Li sua matéria na revista Caros<br />

Amigos nº. 158 – sobre as sacanagens da Vale<br />

contra os trabalhadores e o meio ambiente. Gostaria<br />

de parabenizá-la pela brilhante matéria, e<br />

ao mesmo tempo dizer que o maior crime que a<br />

Vale comete é contra os aposentados que ao longo<br />

de muitos anos, ajudaram a construir esta potência<br />

que é hoje a Vale e que foi privatizada pelo<br />

governo FHC a preço de banana.<br />

Antonio Vitor Ramalho, Diretor Presidente da<br />

APECOVALE – Associação dos Aposentados e<br />

Pensionistas da CVRD<br />

mArCo Do PetrÓleo<br />

Estava eu assistindo Bom Dia Brasil, no dia<br />

31 de março, quando me assustei com uma frase<br />

da jornalista Miriam Leitão. Após anunciar<br />

caros amigos julho 2010<br />

Caros leitores<br />

fale conosco<br />

assinatUras<br />

Assine A revistA<br />

sítio: www.carosamigos.com.br<br />

tel.: (11) 2594-0376<br />

(de segunda a sexta-Feira,<br />

das 9 às 18h)<br />

as mudanças propostas pelo Senado brasileiro<br />

para a distribuição dos royalties do petróleo<br />

(que não são nada animadoras), a jornalista<br />

questionou: pra que mudar uma coisa que já<br />

vem dando certo no país há mais de 10 anos?<br />

Gostaria que a revista Caros Amigos me oferecesse<br />

oportunidade de devolver uma pergunta à<br />

jornalista. Deu certo pra quem? Para os grandes<br />

investidores internacionais? Para aqueles<br />

que embolsaram os grandes lucros do petróleo?<br />

Toda vez que sobrevoo de helicóptero a cidade<br />

petrolífera de Macaé-RJ, para embarcar nas<br />

sondas de perfuração, vejo tanta pobreza, tantas<br />

favelas espalhadas pela cidade, fico me perguntando<br />

onde foi parar todo esse lucro do petróleo.<br />

Com certeza não foi nas mãos do povo.<br />

Sugiro que a jornalista Miriam Leitão faça uma<br />

visita à cidade de Macaé e pergunte ao povo<br />

macaense se esse modelo vem dando certo para<br />

eles. Agradeço à Caros Amigos por nos oferecer<br />

essa oportunidade de questionar, e por estar<br />

sempre nos conscientizando a lutar por um país<br />

mais igualitário.<br />

Matheus Rufino Oliveira - Engenheiro de Petróleo<br />

– Petrobras<br />

CinemA PoPulAr<br />

Marcelo Salles, gostei muito da forma como<br />

contou a história dos dois cineastas cariocas (Júlio<br />

Pecly e Paulo Silva)-publicada na edição 158.<br />

A forma como cada um buscou ser profissional<br />

da sétima arte, as dificuldades que tiveram e ainda<br />

tem até hoje fizeram com que lesse com muito<br />

mais atenção o artigo desse grande “manancial”<br />

de ideias chamado Caros Amigos. Ao ler sobre a<br />

história desses dois grandes homens sigo com esperança<br />

de ver o aumento de filmes com identidade<br />

e originalidade tipicamente brasileiras. Afinal,<br />

a revolução pode estar aí também.<br />

Pedro Eugenio Castro Muniz.<br />

Olá, Marcelo, parabéns pela matéria (sobre o<br />

cinema de Júlio e Paulo): objetiva, enxuta, com<br />

conteúdo e que nos faz acreditar que tudo tem<br />

jeito. Muito legal mesmo. Leitura deliciosa.<br />

Marilson Ottoni<br />

serviço de atendimento<br />

ao assinante<br />

Para registrar mudança de endereço; esClareCer dúvidas<br />

sobre os Prazos de reCebimento da revista; reClamações;<br />

venCimento e renovações da assinatura.<br />

emeio: atendimento@Carosamigos.Com.br<br />

novo tel.: (11) 2594-0376<br />

Crime heDionDo<br />

Na edição de fevereiro de 2010, no brilhante<br />

artigo do escritor Frei Betto, houve um erro. Tortura<br />

é crime hediondo, inafiançável e insuscetível<br />

de graça ou anistia como diz a lei 9.455, de<br />

7 de abril de 1997, e não imprescritível como fez<br />

referência o autor. Espero poder colaborar mais<br />

com essa excelente revista e permanecer em contato<br />

apesar de não ser assinante.<br />

Lucas Filho<br />

resPostA De frei Betto<br />

A tortura é um crime hediondo, não é ato político<br />

nem contingência histórica e afeta toda a humanidade,<br />

na medida em que a condição humana<br />

é violentada na pessoa submetida a esse crime.<br />

Quando alguém é torturado, somos todos atingidos<br />

duplamente: em nossa humanidade e em nossa<br />

cidadania. A prática da tortura é inaceitável e<br />

seus executores deverão ser punidos a qualquer<br />

tempo. O Brasil é signatário de tratados internacionais<br />

que o incluem em diversos sistemas de<br />

proteção dos direitos humanos, inclusive se submetendo<br />

ao julgamento de organismos internacionais,<br />

especialmente ao International Criminal<br />

Court (Tribunal Internacional), criado pelo Estatuto<br />

de Roma, que não estabelece prescrição para<br />

os crimes contra a humanidade, entre eles definidos<br />

a tortura e a prática de outros atos desumanos<br />

que causem grande sofrimento, ou sério dano<br />

ao corpo ou à saúde mental e física de um indivíduo.<br />

O Brasil é igualmente signatário da Convenção<br />

Americana de Direitos Humanos (Pacto de<br />

São José da Costa Rica), que o vincula aos conceitos<br />

dessa Convenção, na medida em que tais<br />

conceitos foram assumidos pelo nosso País, em 6<br />

de novembro de 1992, através do Decreto nº 678,<br />

nos termos do seu artigo 2º, para o fim de alterar<br />

a sua legislação interna, visando à defesa e à integridade<br />

física e moral do indivíduo. Os dois tratados<br />

internacionais citados, assinados pelo Brasil,<br />

são suficientes para esclarecer que a República<br />

não compactua com a prática de atos que violem a<br />

dignidade da pessoa humana, por ser este um dos<br />

fundamentos do Estado Democrático de Direito e<br />

um direito inalienável do indivíduo.<br />

redação<br />

Comentários sobre<br />

o Conteúdo editorial, sugestões<br />

e CrítiCas a matérias.<br />

emeio: redaCao@carosamigos.com.br<br />

Fax: (11) 2594-0351<br />

-Caros leitores_2pags.indd 6 02.07.10 17:47:49<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br


José Arbex Jr.<br />

Uma guerra antissemita<br />

para salvar o capital<br />

“Israel é a nossa primeira linha de defesa<br />

em uma agitada região que está constantemente sob o<br />

risco de cair no caos; uma região que é vital para a segurança<br />

energética mundial devido à nossa dependência<br />

excessiva de petróleo do Oriente Médio; uma região<br />

que forma a linha de frente na luta contra o extremismo.<br />

Se Israel cai, todos nós cairemos.<br />

(...) O Ocidente está atravessando um período de incerteza<br />

com relação ao futuro do mundo. No sentido<br />

amplo, esta incerteza é causada por uma espécie de<br />

dúvida masoquista sobre nossa própria identidade; pela<br />

regra do politicamente correto; por um multiculturalismo<br />

que nos obriga a curva-nos diante dos outros; e<br />

por um secularismo que, cinicamente, nos cega, mesmo<br />

quando somos confrontados por membros do jihad promovendo<br />

a encarnação mais fanática de sua fé. Deixar<br />

Israel à sua própria sorte, neste momento crucial, serviria<br />

apenas para ilustrar o quanto afundamos e como<br />

nosso declínio inexorável agora se torna eminente.<br />

(...) Israel é uma parte fundamental do Ocidente. O<br />

Ocidente é o que é graças às suas raízes judaico-cristãs.<br />

Se o elemento judeu dessas raízes for retirado e perdemos<br />

Israel, também estamos perdidos. Quer queira ou<br />

não, nosso destino está interligado.”<br />

Os trechos acima fazem parte de um texto<br />

de José Maria Aznar, primeiro ministro da Espanha<br />

entre 1996 e 2004, publicado no Times de Londres,<br />

em 17 de junho. O texto tem o mérito da extrema<br />

clareza, equiparável ao seu cinismo colonialista. Aznar<br />

faz um diagnóstico correto da crise mundial: “O<br />

Ocidente está atravessando um período de incerteza<br />

com relação ao futuro.” Nesse contexto, Israel – “parte<br />

fundamental do Ocidente” - joga um papel essencial<br />

no Oriente Médio, “região que é vital para a segurança<br />

energética mundial”. O raciocínio é sintetizado<br />

pela sentença: “Se Israel cai, todos nós cairemos.”<br />

Aznar não é um fulano qualquer, ainda que o sobrenome<br />

reflita sua vocação intelectual. Ele é filho dileto<br />

do franquismo e expressa os sentimentos mais atrasados,<br />

reacionários e conservadores da Europa branca,<br />

católica e chauvinista. Aznar é um cruzado, como<br />

aqueles que propunham o extermínio dos semitas (judeus<br />

e mouros) na Idade Media, especialmente na Espanha<br />

de Isabel de Castela e Fernando de Aragão. Mas,<br />

dado o papel geopolítico de Israel no mundo contemporâneo,<br />

Aznar é obrigado a fazer o elogio dos judeus,<br />

reservando a babação antissemita ao Islã. É um discurso<br />

bizarro, num país que viveu mais de sete séculos sob<br />

influência moura, e de onde foram expulsos pela Inquisição<br />

de Torquemada (ele próprio, um cristão novo)<br />

centenas de milhares de judeus que procuraram abrigo<br />

exatamente nos países islâmicos.<br />

Discurso bizarro, mas coerente com a estratégia<br />

e os sentimentos da Igreja Católica. Não por acaso, o<br />

Vaticano se opõe frontalmente à entrada da Turquia na<br />

União Europeia, apesar de todas as reformas “ocidentalizantes”<br />

feitas pelos turcos desde 1920, quando Kemal<br />

Ataturk assumiu o poder e tratou de liquidar o que ainda<br />

existia do Império Otomano. Em 2004, o então cardeal<br />

Joseph Ratzinger declarou ao Giornale del Popolo,<br />

da diocese de Lugano (Suíça), que a eventual entrada<br />

da Turquia na UE seria um ato anti-histórico. “Histórica<br />

e culturalmente, a Turquia pouco pode partilhar com<br />

a Europa, pelo que, com todo o respeito que tenho para<br />

com esse país, seria um grande erro englobar a Turquia<br />

na UE”, afirmou o então Prefeito da Congregação para a<br />

Doutrina da Fé (a atual Inquisição). Um país muçulmano<br />

não tem lugar numa Europa cristã, ainda que as reformas<br />

“modernizantes” da Turquia tenham permitido, por<br />

exemplo, a participação de mulheres em eleições antes<br />

de Portugal e de vários países europeus (e do Brasil).<br />

Resumo da ópera: os islâmicos, em particular os turcos,<br />

até são bons o suficiente para servirem de bucha<br />

de canhão da Otan, da qual são membros, mas jamais<br />

para conviver em igualdade com os europeus. É também<br />

a convicção do recém-eleito presidente do Conse-<br />

lho Europeu, o belga Herman Van Rompuy, democrata<br />

cristão e católico fundamentalista. Suas posições inflexíveis<br />

sobre o Islã e a Turquia foram fundamentais para<br />

conseguir o apoio do presidente francês Nicolas Sarkozy<br />

e da chanceler alemã Ângela Merkel (também democrata-cristã)<br />

à sua nomeação ao cargo de presidente do<br />

Conselho. Como é a posição do primeiro-ministro italiano<br />

Sílvio Berlusconi, neofascista que chegou a afirmar<br />

publicamente a “superioridade da civilização ocidental”<br />

comparada ao mundo islâmico.<br />

O discurso de Aznar é, ao mesmo tempo, um diagnóstico<br />

correto da profundidade da crise e uma cínica<br />

preparação para uma guerra de grandes proporções. O<br />

capital, como todos estão carecas de saber, resolve suas<br />

crises econômicas e financeiras com atos selvagens de<br />

destruição em massa – como aconteceu nas guerras<br />

mundiais do século passado. Se, para “salvar a Europa”<br />

(especialmente a Espanha, onde 40% dos jovens estão<br />

desempregados) e o capitalismo for necessário armar<br />

uma guerra total ao Islã, que assim seja. Israel está no<br />

Oriente Médio como posto avançado do “Ocidente” e<br />

deverá cumprir sua parte na nova cruzada, ainda que a<br />

pretexto de defender sua própria existência.<br />

Aznar é o porta-voz do “choque de civilizações”,<br />

pseudo “teoria” sem qualquer fundamento na<br />

realidade, mas tão útil aos propósitos do capital quanto,<br />

nos anos 30, o foram as fantasias mirabolantes dos<br />

“protocolos dos sábios do Sião” para um sujeito chamado<br />

Adolf. O povo israelense e os judeus de todo o<br />

mundo não deveriam se iludir com a aparente simpatia<br />

demonstrada pela extrema direita europeia. Ela continua<br />

tão antissemita como sempre: os seus tambores da<br />

guerra oferecem novamente os filhos de Israel em holocausto,<br />

mas agora em nome da defesa dos “valores<br />

ocidentais”. Se depender da vontade de Aznar e similares,<br />

o capital será recomposto sobre os cadáveres de<br />

milhões de judeus e islâmicos. E a região, “vital para a<br />

segurança energética mundial”, será reconstruída pelas<br />

imensas empreiteiras e corporações europeias e estadunidenses,<br />

para ser novamente transformada em um civilizado<br />

protetorado “ocidental”.<br />

Simples assim.<br />

José Arbex Jr. é jornalista.<br />

junho 2010 caros amigos<br />

-Arbex_160.indd 7 02.07.10 17:42:41<br />

Ilustração: carvall<br />

7


8<br />

O GETÚLIO<br />

DO FUTEBOL<br />

Às vésperas da Copa do Mundo na África<br />

do Sul as livrarias se encheram de livros<br />

sobre futebol. Como combinei que só trataria<br />

nessa coluna de livros antigos, perderei a<br />

oportunidade de apresentar ao leitor Quem<br />

derrubou João Saldanha, de Carlos Ferreira<br />

Vilarinho, ex-líder sindical e pesquisador de<br />

primeira. Ele destoa da livraiada pela sólida<br />

contextualização histórica.<br />

A função do historiador é nos contar como<br />

uma coisa – qualquer coisa – se transformou<br />

em outra. Tanto que uma forma comum de<br />

ignorância, até de intelectuais e doutores, é<br />

tomar a verdade de um momento como a verdade<br />

de sempre. O senso comum, essa fase<br />

elementar do pensamento, toma a árvore<br />

pela floresta. É preciso, em todos os casos,<br />

que o cientista social, especialmente o historiador,<br />

coloque em nosso campo de visão o<br />

conjunto que a árvore esconde. Esse conjunto,<br />

oculto à primeira visada, é que permite<br />

compreender (mais que explicar) o seu exemplar<br />

isolado. A história é a ciência social encarregada<br />

da duração da floresta.<br />

Dos livros sobre futebol que enchem as livrarias<br />

hoje, a maioria ignora a história. Alguns<br />

são interessantes, bem escritos, mas a<br />

dispensam. Em geral, tratam os fatos – jogos,<br />

jogadores, torneios, copas do mundo etc.<br />

– como o legista trata os órgãos do cadáver:<br />

sem passado ou futuro. Como não há mais<br />

vida – outro nome de duração – podem extraí-los<br />

e dissecá-los fora do corpo.<br />

Alguns desses livros contam casos de racismo<br />

em nosso futebol. Tanto explícitos,<br />

documentados, como disfarçados e “sutis”,<br />

exclusões, xingamentos, preterições. Os autores,<br />

ao relatar esses casos, invariavelmente<br />

demonstram indignação, ressalvando que<br />

não fazem sentido numa democracia racial<br />

como a nossa. Reproduzem uma crença do<br />

nosso senso comum, desgastada nos últimos<br />

tempos, mas ainda assim viva.<br />

O passado e o presente brasileiros estão<br />

repletos de preconceito racial e não apenas,<br />

aliás, contra negros, agredindo índios, mestiços,<br />

nordestinos, judeus, orientais e, em escala<br />

bem menor, mas não desprezível, turcos,<br />

galegos, gringos, polacas, alemães e outros.<br />

Isso é constatado pelo senso comum, é fácil<br />

de ver. A possibilidade de escapar a este<br />

senso comum, de enxergar a floresta, e não<br />

caros amigos julho 2010<br />

amigos de papel<br />

Joel Rufino dos Santos<br />

somente a árvore, é dada pelo conhecimento<br />

histórico.<br />

A história do nosso futebol – ausente de<br />

quase todas as obras que atulham as livrarias<br />

perto da Copa do Mundo – mostraria uma inflexão<br />

correspondente à Revolução de Trinta.<br />

Houve uma revolução também no futebol,<br />

o que levou alguém a chamar Leônidas,<br />

o Diamante Negro, de “o Getúlio Vargas do<br />

futebol”. O jogador negro se tornou hegemônico,<br />

conferindo ao nosso futebol uma maneira<br />

original. Tanto é assim que só então se<br />

diferenciou do argentino, uma outra maneira<br />

original. Essa maneira, logo chamada de<br />

futebol-arte, seduziu o mundo. Desistindo de<br />

imitá-la, os europeus se contentaram em importar<br />

jogadores-artistas. O futebol europeu<br />

tinha, naturalmente, a sua maneira, o futebol-atletismo.<br />

Foi esse, em linhas gerais, o<br />

panorama até os anos 1970.<br />

A globalização que se seguiu criou um padrão<br />

único de jogo: o futebol-força, de resultados,<br />

que aí vemos. O que tem isso a ver com<br />

racismo? Racismo é uma forma social de esquizofrenia:<br />

trocamos a consciência do que<br />

nos caracteriza pelo delírio. Separamos o negro<br />

do Brasil.<br />

Essa é a floresta.<br />

Joel Rufino é historiador e escritor.<br />

Guilherme Scalzilli<br />

O direitO<br />

de não votar<br />

O voto obrigatório ofende os princípios<br />

democráticos. O exercício da cidadania<br />

pressupõe liberdade ampla e soberana de escolha,<br />

inclusive a de abster-se do processo eleitoral.<br />

A autonomia do indivíduo deve ser preservada<br />

com a mediação legal, jamais tolhida por ela.<br />

Impor direitos a quem os desfruta é um absurdo<br />

conceitual.<br />

O fato de o Estado brasileiro ser pródigo nessas<br />

contradições não as torna mais aceitáveis. Os<br />

paralelos distorcidos entre o comparecimento às<br />

seções eleitorais e outros “deveres cívicos” apenas<br />

realça o caráter despótico de rotinas que, se<br />

não foram instituídas por ditaduras, nasceram de<br />

semelhante espírito. O serviço militar, por exemplo,<br />

é um arcaísmo prejudicial que não serve a<br />

comparações positivas.<br />

Não se trata de louvar o abstencionismo,<br />

e sim de aceitá-lo como opção válida, entre<br />

tantas mais ou menos discutíveis. Ao cidadão<br />

já é permitido recusar instrumentos de atuação<br />

política, registrar votos úteis e de protesto ou<br />

até anulá-los. Sua presença física empresta uma<br />

ilusão de legitimidade ao sistema democrático,<br />

mas nem de longe o faz representativo. O sufrágio<br />

desempenhado a contragosto alimenta falsos<br />

consensos e perpetua uma fragilidade institucional<br />

perigosa, pois artificial e oportunista.<br />

A afirmação de que o povo brasileiro não possui<br />

maturidade ou instrução para decidir revela<br />

preconceito elitista e autoritário. O voto facultativo<br />

assusta as facções hegemônicas porque<br />

transformaria a relação entre candidatos, partidos<br />

e eleitores. Para todos os efeitos, seria um<br />

mecanismo de conscientização política: mesmo<br />

a indiferença generalizada constrangeria governantes<br />

e legisladores a recompor os vínculos<br />

perdidos com a sociedade.<br />

O plebiscito é a maneira mais pedagógica<br />

e inquestionável de resolver a questão. Não<br />

surpreende, portanto, que seus adversários o repudiem<br />

duplamente.<br />

Guilherme Scalzilli é historiador e escritor.<br />

Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela).<br />

www.guilhermescalzilli.blogspot.com<br />

-Joel+Scalzilli_160.indd 8 02.07.10 17:27:11<br />

Ilustração: hke...


Gilberto Felisberto Vasconcellos<br />

Capitalismo verde é sujeira:<br />

Marina e Gabeira<br />

Agora todo mundo capitalista deu para ser verde.<br />

A General Eletric prega a “ecoimaginação”, ou este oxímoro insano: “carvão<br />

limpo”. Na propaganda ela põe um elefantão cantando “Singing in the rain”.<br />

O barão da mídia, Murdoch, que está louquinho para derrubar Chávez, declarou:<br />

“sinto orgulho de ser verde”.<br />

É impossível existir capitalismo sem toxina.<br />

A mistificação do capitalismo verde é reproduzida por aqui com Gabeira e<br />

Marina. Como é que alguém a favor do lucro capitalista evangélico pode falar<br />

em natureza? A única coisa verdecoevangélica que existe é a nota verde<br />

do dólar.<br />

Marina é pró-capitalismo, portanto é antiecológica. Seus assessores almofadinhas<br />

e janotas são udenistas e tucanos de corpo e finanças, portanto contra<br />

a minhoca, o arado natural, Eles são entusiastas da Monsanto que inventou<br />

o herbicida round up devastador da natureza e que financia a biotecnologia e<br />

a engenharia genética.<br />

Marina, me dizia Marcelo Guimarães, não moveu uma palha pelo projeto<br />

das micro-destilarias a álcool em pequenas propriedades; agora ela se diz devota<br />

do álcool e óleos vegetais, só que produzidos em economia de escala com<br />

plantation latifundiária para exportação multinacional.<br />

Marina é adversária da reforma agrária radical, portanto joga no<br />

time do ecocídio, Serra batalhou pela aprovação da lei das patentes para felicidade<br />

das grandes corporações multinacionais na Câmara e Senado.<br />

A agricultura capitalista multinacional arruína a terra e envenena as pessoas.<br />

Tudo isso sob o comando dos grãos geneticamente manipulados pela Monsanto,<br />

que é a Rede Globo da agricultura.<br />

A juventude não poderá cair na esparrela agrobiocancerigenotucano. O descalabro<br />

da natureza é causado pelo regime social chamado capitalismo, por<br />

conseguinte crítica ecológica que não seja anticapitalista é conversa de urubu<br />

com bode.<br />

E Gabeira? É a ideologia pós-moderna do Banco Mundial em ação, que<br />

no Rio de Janeiro é a expressão da burguesia comercial e imobiliária, de onde<br />

provêm Carlos Lacerda e César Maia.<br />

Nunca entendi a notoriedade de Gabeira. Chegou da Suécia de tanguinha<br />

de crochê na praia pousando de “candidato jovem” pré-Collor para destruir os<br />

CIEPs de Darcy Ribeiro.<br />

Glauber Rocha tinha a maior bronca dele porque queria tacar fogo<br />

no filme Terra em Transe. Glauber dizia que a ambição de Gabeira era freqüentar<br />

a casa de Caetano Veloso, que convenhamos não é o barraco de Goethe.<br />

Glauber escreveu: “traíram Jango em 1964 e 1974, destruíram o projeto de<br />

nação que ficou no esqueleto do Gabeira”.<br />

Sobre as flores do estilo, pergunto quem foi o gênio linguista que bolou o<br />

mote gerundiano da campanha de Dilma? Refiro-me à palavra de ordem: “Para<br />

o Brasil seguir mudando”. Que coisa feia. É isso que dá colocar campanha política<br />

em agência de publicidade.<br />

Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.<br />

Ferréz<br />

Liberdade<br />

De 1 a ponta a outra do globo viajar voar,<br />

deslizar por uma montanha, escalar um iceberg um<br />

canto do mundo inexplorado um planeta solitário,<br />

uma casa de madeira, abdução alienígena uma<br />

ilha com 2 pessoas você de manhã, e outra você de<br />

tarde sem cercas, cobranças jogando bola descalço<br />

mais feliz que os cheios de $ e logos mais feliz em<br />

plena tarde de domingo não está confinado, nem<br />

no condomínio fechado nem no barraco.<br />

uma visita inesperada, é ela, ela chegou e<br />

trouxe a paz entrar no oculto um pensamento sem<br />

carga uma ideia desbaratinada sem pensar demais<br />

para falar, sem imaginar quem vai ouvir, o que vai<br />

achar não precisar prestar conta ser feliz de ponta<br />

a ponta desapegar, deixar de comprar deixar de<br />

colecionar coisas que só te fazem cansar existência<br />

livre, como era o fator primordial existir sem culpa<br />

como era antes o principal sem precisar usar a palavra<br />

maldita “politicagem”<br />

ser transparente sem precisar montar<br />

movimento pra poder amar, pra poder transar<br />

pra poder beber, pra poder se abstinar sem ter que<br />

provar nada torcer para ninguém viver um dia por<br />

vez sem planos pro futuro, que cansam e na moral<br />

não se realizam sem postura, sem falar a realidade<br />

pura e nua ser chamado de sincericida não falar a<br />

mais porque pode pagar com a vida não falar que<br />

volta depois não dizer que gostou só para ser simpático<br />

é verdade, colar num lugar pela poesia, pela<br />

arte não pela bebida e vaidade num ter elo com<br />

ninguém a não ser quem agente gosta não esperar<br />

virar para falar pelas costas quero isso, e vou perseguir,<br />

mesmo que o público se restrinja mesmo que<br />

não lote mais a mesa de autógrafos mesmo que o<br />

show não seja apoteótico porque no inicio era assim,<br />

o coração batia do inicio ao fim e hoje já tá<br />

tão desgastado, que as vezes bate mas por embalo<br />

a fita é essa e não da mais para prolongar nem<br />

pagar simpatia para o número de toques alcançar<br />

resumindo tudo ao espiritual não a nada de mais<br />

para continuar escrevendo que valha a pena vocês<br />

estarem lendo a não ser para terminar ir até onde<br />

dar, sem ponto para finalizar<br />

Ferréz é datilógrafo e reside em regime semiaberto<br />

na periferia de São Paulo.<br />

julho 2010 caros amigos<br />

-gilberto+ferres_160.indd 9 02.07.10 17:30:27<br />

9


10<br />

caros amigos julho 2010<br />

falar brasileiro<br />

Marcos Bagno<br />

LÍNGUA DIFÍCIL?<br />

Deu na televisão. O reitor de uma universidade<br />

pública, ao apresentar uma avaliação<br />

do sistema de cotas usado pela instituição,<br />

explicou que os alunos cotistas apresentam<br />

dificuldades maiores que os não-cotistas nas<br />

áreas de português e matemática. E concluiu<br />

com a seguinte pérola: “[o português] é uma<br />

lingua muito difícil, em geral. E os brasileiros<br />

ainda a maltratam demasiadamente. Mas<br />

esse é um problema, porque os setores populares<br />

falam um português no cotidiano muito<br />

errado, muito diferente do português douto”.<br />

Transcrevo as palavras do site da emissora.<br />

É impressionante o absoluto descaso que<br />

tantos pesquisadores de outras ciências humanas<br />

dedicam à linguagem. Tomam a linguagem<br />

como um dado, como algo pronto<br />

e acabado, uma entidade monolítica, um<br />

ponto pacífico, quando na verdade a linguagem<br />

é um fato social que tem de ser analisado,<br />

a cada momento, como palco de conflitos,<br />

como arma simbólica na luta pelo poder,<br />

como uma mercadoria cuja posse confere<br />

prestígio a uns, que estigmatizam os demais.<br />

Mais impressionante, para não dizer chocante,<br />

é descobrir, pesquisando sobre o reitor,<br />

que ele é psicólogo social e trabalha com as<br />

noções de representação.<br />

Numa fala tão breve, o magnífico conseguiu<br />

alinhar três dos principais mitos que<br />

configuram o preconceito linguístico: a língua<br />

é “difícil”, os brasileiros “a maltratam” e<br />

que as camadas populares falam “muito errado”.<br />

Meio século de pesquisas importantes da<br />

sociolinguística e da análise do discurso, bem<br />

como de outras disciplinas, desconstruiu esses<br />

mitos, demonstrando que são meras superstições<br />

culturais, decorrentes - precisamente -<br />

daqueles conflitos sociais e políticos que referi<br />

acima. Mas, por alguma razão misteriosa<br />

que vale a pena investigar, os resultados das<br />

pesquisas dos linguistas não conseguem ultrapassar<br />

os meios acadêmicos. Aliás, são barrados<br />

dentro do próprio ambiente universitário,<br />

como evidencia a declaração do reitor.<br />

O português não é uma língua difícil porque<br />

nenhuma língua é difícil para seus falantes<br />

nativos. Difícil é um brasileiro aprender<br />

húngaro, tagalo ou xavante, línguas sem<br />

nenhum parentesco com a nossa. O problema<br />

é que, ao longo da história, o nome “portu-<br />

guês” passou a ser aplicado a uma modalidade<br />

muito específica de língua: a norma-padrão<br />

codificada pelos gramáticos normativos.<br />

Essa norma-padrão, estreitamente vinculada<br />

à língua escrita mais monitorada, sobretudo<br />

a literária, é uma entidade que se pretende<br />

homogênea, uniforme e duradoura. Pelo processo<br />

inevitável da mudança linguística, esse<br />

modelo idealizado de língua “certa”, que já<br />

nasce distanciado da língua viva, real, se torna<br />

ainda mais estranho, anti-intuitivo, quase<br />

uma língua estrangeira. É essa norma-padrão<br />

do português, que não leva em conta a língua<br />

realmente falada pelos brasileiros, inclusive<br />

os chamados cultos, que é difícil, incompreensível<br />

muitas vezes, ilógica quase sempre.<br />

Querer que até hoje se aprenda a conjugação<br />

verbal com o pronome “vós”, negando<br />

ao mesmo tempo a predominância do “você”<br />

e do “a gente”, é um absurdo sem tamanho.<br />

Sugiro ao senhor reitor que consulte os linguistas<br />

de sua própria universidade, um dos<br />

quais recentemente publicou uma excelente<br />

gramática, voltada para a descrição do português<br />

brasileiro. Talvez assim ele possa defender<br />

o sistema de cotas sem chafurdar em<br />

outros preconceitos.<br />

Marcos Bagno é linguista e escritor.<br />

www.marcosbagno.com.br<br />

Mc Leonardo<br />

A ocAsião<br />

faz o ladrão?<br />

Tenho feito essa pergunta a diversas<br />

pessoas, e as respostas têm sido “não” na maioria<br />

das vezes.<br />

Mas esse “não” vem acompanhado de explicações<br />

diferentes como: “Se a pessoa é honesta não<br />

existe ocasião na qual ela possa roubar.”<br />

Ou: “Cansamos de ver casos onde o sujeito tem<br />

oportunidade e necessidade e não rouba.”<br />

Mas foi do meu irmão Lucio que eu ouvi a seguinte<br />

definição: “A ocasião não faz o ladrão, a<br />

ocasião faz o ladrão roubar”.<br />

Bom, se formos nos basear pela definição dele<br />

podemos chegar à conclusão que todos nós somos<br />

ladrões, já que todos nós já roubamos alguma coisa,<br />

por menor que seja o valor.<br />

Eu prefiro ficar com a tese que o ladrão<br />

é aquele que faz a ocasião, busca a oportunidade<br />

de roubar ou almeja uma posição que o levará<br />

ao fato.<br />

Mesmo que os mais variáveis tipos de roubos<br />

do mundo sejam praticados por sujeitos trajados<br />

de terno e gravata, na maioria das vezes temos em<br />

mente a imagem do ladrão como é cantada pelos<br />

manos do grupo de Rap Racionais MCs, na música<br />

Capítulo 4 Versículo 3: “Aquele moleque de<br />

touca que engatilha e enfia o cano dentro da sua<br />

boca...”<br />

E na musica Mágico de Oz eles falam assim:<br />

“Se diz que moleque de rua rouba. No governo,<br />

na política do Brasil quem não rouba? Ele só não<br />

tem diploma pra roubar, ele não se esconde atrás<br />

de uma farda suja...”<br />

Quando nós falamos dos produtos piratas<br />

que usamos por praticidade, comodidade ou<br />

necessidade, tais como as músicas e filmes que baixamos<br />

na internet e mesmo os livros que fazemos<br />

cópias dentro das próprias universidades, nos vemos<br />

na obrigação de mudarmos a legislação ou nos<br />

assumir como criminosos ladrões.<br />

Mas esse é outro assunto que eu prometo falar<br />

mais adiante em alguma outra OCASIÃO, isso é, se<br />

ninguém roubar o espaço que ocupo aqui.<br />

Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e<br />

compositor.<br />

-Bagno+McLeo_160.indd 10 02.07.10 17:48:50<br />

Ilustração: Debora borba/deboraborba@gmail.com


PAÇOCA<br />

Pedro Alexandre Sanches<br />

Brasil, um país de<br />

COmPOsitOrAs<br />

“Boiar no mar é de graça, é de graça,<br />

é de graça/ eu vou fazer uma ciranda pra botar<br />

o disco/ na lei de incentivo à cultura, à cultura,<br />

à cultura/ mas é preciso entrar no gráfico/<br />

no mercado fonográfico/ mas eu não sei negociar/<br />

eu só sei tocar meu tamborzinho e olhe<br />

lá.” Não era de esperar que o labririnto das leis<br />

de incentivo se prestasse a virar tema de música<br />

pop, mas é o que acontece na Ciranda do<br />

Incentivo, uma das 13 faixas de Eu Menti pra<br />

Você, de Karina Buhr.<br />

Nascida na Bahia e criada em Pernambuco,<br />

ela já era conhecida como integrante do grupo<br />

pernambucano Comadre Fulozinha, mas em Eu<br />

Menti pra Você chega à estreia solo e à maioridade<br />

como artista autora da própria obra. A<br />

ironia de Ciranda do Incentivo é leve e bem-humorada,<br />

mas vem fazer companhia a flagrantes<br />

de posicionamento ainda raros na música<br />

jovem brasileira – exemplo recente notável de<br />

engajamento é Reforma Agrária no Ar (2008),<br />

de Wado. “É contra o artista mudo, é contra o<br />

ouvinte surdo, é contra o latifúndio das ondas<br />

do rádio”, vibra a letra cantada pelo catarinense<br />

criado em Alagoas.<br />

Mais sutil, Karina distribui críticas afetuosas<br />

nas quais a leveza é o mote condutor,<br />

como acontece no reggae anti-estresse Plástico<br />

Bolha: “Hoje eu não estou a fim de corre-corre,<br />

confusão/ eu quero passar a tarde estourando<br />

plástico bolha”.<br />

“Vou ficar mais um pouquinho/ para ver<br />

se acontece alguma coisa nessa tarde de domingo/<br />

congelo o tempo pra eu ficar devagarinho/<br />

com as coisas que eu gosto e que eu sei<br />

que são efêmeras.” O pedido de mais calma e<br />

serenidade, por favor, inicia a faixa-título do<br />

primeiro CD de Tulipa Ruiz, que sabe que as<br />

coisas são efêmeras e ela também é, e batiza a<br />

estreia de Efêmera.<br />

Tulipa é paulista de Santos, cresceu<br />

em Minas Gerais, canta com fluência e leveza<br />

e assina (sozinha ou em parceria) dez das onze<br />

canções do disco – a décima-primeira, Às Ve-<br />

zes, foi composta por seu pai, Luiz Chagas, que<br />

foi guitarrista da banda Isca de Polícia, de Itamar<br />

Assumpção. As interligações com a chamada<br />

“vanguarda paulista” afloram em Efêmera, mas<br />

prioritariamente Tulipa gosta de se comunicar e<br />

de, como dizia Gal Costa em 1973, “cantar como<br />

um passarinho”. “A ordem das árvores não altera<br />

o passarinho”, canta (e compõe), como um passarinho,<br />

em A Ordem das Árvores.<br />

Integrante da trupe multivalente conhecida<br />

como Orquestra Imperial, a carioca Nina Becker<br />

estreia solo com dois discos simultâneos,<br />

um chamado Azul e outro, Vermelho. Dona das<br />

rédeas, ela surge discreta, serena, desapressada<br />

e... autora, em baladas como Madrugada Branca.<br />

“No vapor da madrugada/ no sono dos sons/ um<br />

sonho dorme profundo/ e esconde uma verdade/<br />

que não se adivinha/ enquanto escrevo meu<br />

mundo/ que tem bordas invisíveis”, ela tateia seu<br />

próprio mundo.<br />

Plural, Nina se divide entre parcerias<br />

com colegas (rapazes) como Moreno Veloso, Domenico<br />

Lancellotti e Nervoso, interpreta novos<br />

como Romulo Froes (em Flor Vermelha) e reinterpreta<br />

antigas de Jorge Mautner (Samba Jambo<br />

e Lágrimas Negras, esta lançada em 1974 por<br />

Gal Costa). Em todos os campos, sai-se igualmente<br />

bem, e soa igualmente elegante.<br />

O rap é a linguagem-guia de Lurdez da Luz,<br />

integrante do grupo paulistano Mamelo Sound<br />

System e autora-rimadora do CD solo inaugural<br />

Lurdez da Luz. Gal Costa também sobrevoa seu<br />

trabalho, como no sampler que conduz a última<br />

faixa, de Meu Nome É Gal, composta por Roberto<br />

e Erasmo Carlos para a porta-voz tropicalista<br />

cantar, em 1969.<br />

Não seria absurdo afirmar que sua homenagem<br />

é prima-irmã da ironia fina de Karina na<br />

Ciranda do Incentivo. O rap Fim da Egotrip começa<br />

com os acordes iniciais de Meu Nome É Gal, e<br />

a voz de Lurdez ameaça: “Meu nome... Meu nome<br />

é... Meu nome é o de menos agora”. Sim, já temos<br />

um passado grandioso a reverenciar, mas os tempos<br />

de agora são outros, profundamente diferen-<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

tes dos anos heroicos da tal MPB – mas nem por<br />

isso piores ou inferiores, como o pessimismo popular<br />

brasileiro adora martelar.<br />

Fim da Egotrip prossegue e vira um manifesto<br />

de orgulho feminino. “Eu quero é dizer<br />

outros nomes/ peço licença a Quelé, Lady Day, ‘a<br />

Guerreira’, ‘a Pimentinha’”, tratando pelos apelidos<br />

Clementina de Jesus, Billie Holiday, Clara<br />

Nunes e Elis Regina. A letra evolui com citações<br />

à genial violonista Rosinha de Valença, às<br />

míticas “Janaína, Jussara, Jurema, Iara”, à freudiana<br />

Elektra, à dama do lotação... “Se é pra se<br />

perder, que seja na realidade”, afirma, em reação<br />

afetiva (mas nada submissa) aos versos “se eu tiver<br />

que me perder/ seja com você/ ou pensando<br />

em você/ só perdendo o juízo eu acho a cabeça”,<br />

da balada Os Dentes Brancos do Mundo, de Marcos<br />

Valle e Paulo Sérgio Valle, interpretada em<br />

1969 por vozes como as das só-cantoras Evinha<br />

e Claudette Soares.<br />

Os exemplos acima são só exemplos: é impressionante<br />

a quantidade de compositoras que<br />

têm apresentado trabalhos de brilho. Exemplos,<br />

por ordem alfabética? Aline Calixto, Ana Cañas,<br />

Andreia Dias, Céu, Ceumar, Cibelle, Érika Machado,<br />

Gabi Amarantos, Lulina, Marcela Bellas,<br />

Paula Fernandes, Roberta Campos, Tiê, Tita Lima,<br />

Vanessa Bumabgny, (para não falar, já falando,<br />

das mais consolidadas comercialmente Ana Carolina,<br />

Mallu Magalhães, Fernanda Takai, Pitty,<br />

Teresa Cristina, Vanessa da Mata)...<br />

Somos um lugar absurdamente musical<br />

que já gostou de se intitular “país das cantoras”,<br />

em proposição que por décadas escondia<br />

atrás de si um insidioso “recolha-se ao seu lugar”.<br />

Num plantel dominado por clubes machistas<br />

do Bolinha, não foi nada fácil ser Chiquinha<br />

Gonzaga, Dolores Duran, Maysa, Rita Lee, Sueli<br />

Costa, Luli e Lucina, Marina Lima... Pois temos<br />

mudado à beça, e caminhamos resolutamente<br />

para ser um país de compositoras.<br />

Pedro Alexandre Sanches é jornalista.<br />

julho 2010 caros amigos<br />

-Pedro Alexandre_160.indd 11 02.07.10 17:16:50<br />

foto: jesus carlos. ilustração: lux tavares.<br />

11


12<br />

caros amigos julho 2010<br />

entrevista FREI BETTO<br />

Participaram: Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues e Tatiana Merlino. Fotos Paulo Pereira<br />

“O Brasil<br />

se tornou<br />

o paraíso<br />

do capital<br />

especulativo”<br />

Frei Betto fala sobre a chegada do PT ao poder, rumos da esquerda e governo Lula.<br />

frade dominicano, jornalista, escritor, autor de<br />

52 livros, Carlos Alberto Libânio Christo, mais<br />

conhecido como Frei Betto, foi militante contra<br />

a ditadura civil-militar, ajudou na fundação<br />

da CUT e do PT. Foi assessor da Presidência da<br />

República para assuntos sociais, onde coordenou<br />

o programa Fome Zero. Nesta entrevista, Betto<br />

fala sobre o período em que trabalhou como jornalista,<br />

a chegada do PT ao poder, os rumos da<br />

esquerda do país e sobre o governo Lula. Para ele,<br />

embora o governo atual seja “o melhor da história<br />

republicana do Brasil”, o PT e um grupo hegemônico<br />

que o comanda “trocaram um projeto<br />

de Brasil por um projeto de poder”. Entre as lições<br />

que aprendeu no período em que esteve no Planalto,<br />

uma delas é que “o governo é que nem feijão,<br />

só funciona na panela de pressão”.<br />

Hamilton Octavio de Souza - Fale sobre você,<br />

onde nasceu, onde estudou, como começou a<br />

ter militância?<br />

Frei Betto - Sou mineiro, e como diz o Drummond,<br />

a gente sai de Minas, mas Minas não sai<br />

da gente. Meu pai era advogado e terminou a sua<br />

vida profissional como juiz. Era homem de extrema<br />

direita e terminou de extrema esquerda. A<br />

única vez que saiu do Brasil foi para ir a Cuba. A<br />

minha mãe é uma especialista em culinária, tem<br />

oito livros de culinária, entre eles o “Fogão de Lenha,<br />

trezentos anos de cozinha mineira”. É considerada<br />

a maior especialista nesse tema no Brasil.<br />

Éramos oito irmãos; um já faleceu, o mais novo.<br />

Hamilton Octavio de Souza - De que cidade<br />

de Minas?<br />

Todos de Belo Horizonte. É um caso raro em uma<br />

cidade que tem pouco mais de 100 anos. Meus pais<br />

também nasceram em Belo Horizonte. Mais raro<br />

ainda: os dois e os oito filhos estudaram no mesmo<br />

grupo escolar Barão do Rio Branco, que há pouco<br />

fez 90 anos. Tive uma infância extremamente feliz,<br />

de moleque de rua, não havia a psicose televisiva.<br />

Brincava-se muito na rua, havia muita leitura,<br />

porque meu pai tinha duas manias: padaria e<br />

livraria. E ele comprava muito mais livros do que<br />

tinha tempo para ler, e não havia cômodo na casa<br />

para servir exclusivamente de biblioteca. Todos os<br />

cômodos, menos o banheiro e a cozinha por razões<br />

óbvias, tinham livros. Creio que minha vocação literária<br />

tenha a ver com isso. Meus pais escreviam,<br />

minha mãe na culinária e ele cronista dos principais<br />

jornais de Belo Horizonte durante mais de<br />

quarenta anos. Bem, depois, com treze anos, entrei<br />

na militância estudantil através da Juventude<br />

Estudantil Católica, a JEC.<br />

Tatiana Merlino - Em que ano foi isso?<br />

Em 1959. Na mesma época entrou o Henriquinho,<br />

que o Brasil conhece como Henfil. Nós dois éramos<br />

considerados muito crianças para pertencer<br />

à JEC. E esse desafio nos levou a nos firmar como<br />

-Frei Betto_160.indd 12 02.07.10 17:33:14


militantes. Claro que o Henfil entrou por influência<br />

do Betinho, um dos fundadores da JEC de Belo<br />

Horizonte e depois foi para a Juventude Universitária<br />

Católica (JUC). E através da JEC é que eu<br />

comecei precocemente a ler muito filosofia, teologia<br />

e literatura. A primeira vez que eu enfrentei<br />

a repressão foi no dia 25 de agosto de 61, quando<br />

o Jânio Quadros renunciou à presidência. Depois,<br />

com 17 anos, fui indicado para a presidência da<br />

JEC. Então, me mudei para o Rio, onde fiquei de<br />

62 a 64 numa república de estudantes, onde moravam<br />

doze rapazes e recebíamos mais uns 20 por<br />

mês que vinham de outros Estados para a UNE,<br />

entre eles o Betinho e o Zé Serra. Nesses três anos<br />

eu percorri o Brasil todo duas vezes, articulando<br />

o movimento. Em 64 entrei na faculdade de jornalismo.<br />

Vocês vão morrer de inveja: meus professores<br />

eram o Tristão de Ataíde, Hermes Lima,<br />

Barbosa Lima Sobrinho, Danton Jobim.<br />

Hamilton Octavio de Souza - Qual a<br />

faculdade?<br />

Chamava Universidade do Brasil, depois acabou.<br />

Tinha grandes figuras da história do jornalismo<br />

brasileiro. Para contrabalançar, tinha o Hélio Viana,<br />

de extrema direita e cunhado do general Castelo<br />

Branco. Em junho de 64 eu estava na faculdade<br />

lá no Rio e fui preso pela primeira vez quando<br />

houve o arrastão da Ação Popular. Fiquei 15 dias<br />

preso, confundido com o Betinho, por conta dessa<br />

coisa de Beto, de JEC e JUC de Belo Horizonte.<br />

Eles estavam atrás do Betinho, que foi o grande<br />

fundador, a grande figura da Ação Popular, que<br />

depois conseguiu sair do país. Daí surgiu aquela<br />

dúvida: será que Deus quer que eu seja religioso?<br />

Crise vocacional forte. E convencido de que eu não<br />

tinha vocação, decidi entrar nos dominicanos em<br />

65, porque não queria chegar aos 40 anos, olhar<br />

para trás e falar: “Ih! Acho que eu errei de caminho”...<br />

Mas eu queria tirar a limpo, ver no que vai<br />

dar. Entrei e isso já são quarenta e cinco anos.<br />

Hamilton Octavio de Souza - Era um<br />

seminário?<br />

Não, porque eu já tinha vinte anos. Os dominicanos<br />

no Brasil não têm seminário. Só aceitam<br />

quem terminou o ensino médio completo ou está<br />

na universidade. Que é melhor porque a pessoa é<br />

mais lúcida, essa ideia de seminário eu acho muito<br />

antipedagógico, é até desumano você colocar<br />

uma criança de 13, 14 anos no seminário. Eu acho<br />

que é por isso que tem tanto problema de pedofilia,<br />

de violência sexual. O cara vive naquela redoma<br />

patriarcal, machista e onde a sexualidade<br />

é sempre considerada pecado, enfim... Mas aí entrei<br />

nos dominicanos em Belo Horizonte. Em 66,<br />

eu vim para São Paulo para fazer filosofia, fiquei<br />

aqui de 66 a 69, aí aconteceram muitas coisas.<br />

Hamilton Octavio de Souza - Você trabalhou<br />

na Folha, não é?<br />

Trabalhei primeiro na revista Realidade. De lá,<br />

fui para a Folha da Tarde, que foi refundada com<br />

Jorge de Miranda Jordão. E lá fiz de tudo, desde<br />

geral até editoria de polícia. Cobri muito movimento<br />

estudantil e depois fui chefe de reporta-<br />

gem, e fui assistente do Zé Celso na montagem<br />

do Rei da Vela. Fui colega do Merlino, na Folha<br />

da Tarde. Além disso, eu estudava Filosofia de<br />

manhã e à noite fazia o curso de antropologia na<br />

Maria Antonia. Em 69 houve o AI-5, eu já estava<br />

bastante pressionado pela repressão. No início de<br />

69, eu decido ir para o Rio Grande do Sul, porque<br />

o cerco estava se fechando, meu projeto era passar<br />

um tempo fora do Brasil, iria para a Alemanha<br />

estudar teologia. Fui para São Leopoldo, onde tinha<br />

um seminário de jesuítas, muito bom, e aí o<br />

Marighella me pediu para montar um esquema de<br />

fazer sair gente pela fronteira Sul com a Argentina<br />

e Uruguai. Um mês antes de eu ir para a Alemanha,<br />

os dominicanos, aqui em São Paulo são<br />

presos. Afinal, sou cercado no Rio Grande do Sul,<br />

consigo fugir uma semana, fui preso, caí numa<br />

cilada. Fiquei quatro anos preso, em São Paulo,<br />

só fiquei um mês preso em Porto Alegre, depois<br />

vim para cá. Foram dois anos como preso político<br />

e dois anos como preso comum, caso raro.<br />

Hamilton Octavio de Souza - Foi na<br />

Tiradentes?<br />

Foram oito prisões diferentes, a Tiradentes foi<br />

uma. Descrevo em detalhes num livro lançado no<br />

ano passado, que ficou quarenta anos guardado,<br />

chama Diário de Fernando, da Rocco. É um diário<br />

que foi do Fernando, um amigo meu, e a gente<br />

levou quarenta anos para publicar.<br />

Lúcia Rodrigues - Por que levou todo esse<br />

tempo?<br />

Primeiro, o Fernando não é jornalista nem historiador,<br />

mas teve o cuidado de anotar em papel<br />

celofane que saía dentro de canetas na visita.<br />

O frade levava uma caneta exatamente igual<br />

à que ele tinha e no meio da conversa trocava a<br />

caneta. Dentro vinha um celofane, depois se desmontava.<br />

Então, nos papéis, tinha coisas assim:<br />

“Paulinho foi para o Doi-Codi”. Ora, que Paulinho?<br />

Que data? Que aconteceu? O Fernando queria<br />

fazer o diário, mas não era do ramo, nem historiador<br />

e nem jornalista; depois de muitos anos<br />

ele falou: “Não Betto, você faz”. Aí teve toda uma<br />

pesquisa para decifrar cada papelzinho daquele,<br />

foi tudo computadorizado, teve até que ler com<br />

lente, porque ele mesmo às vezes não entendia,<br />

não lembrava a anotação. Nos últimos anos, de<br />

2006 a 2009 me dediquei quase que exclusivamente<br />

a esse livro. Ele descreve os que a gente<br />

ficou como, primeiro, preso político, depois comum.<br />

Fomos condenados a quatro anos, e o recurso<br />

nosso no Supremo Tribunal Federal foi julgado,<br />

e reduziram a nossa pena de quatro para<br />

dois anos quando nós completávamos os quatro<br />

anos. Eu brinco que a gente tem um crédito com<br />

a liberdade de dois anos.<br />

Tatiana Merlino - O senhor pediu indenização<br />

para o Estado brasileiro?<br />

Respeito muito quem pediu, mas nunca pedi. Primeiro<br />

porque não quero transformar uma questão<br />

política em uma questão financeira. Acho que<br />

não há dinheiro que pague o que sofri. Depois,<br />

porque embora tenha muita gente que eu respei-<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

te e por quem até lutei para que merecessem a indenização,<br />

acho que tem muita gente que foi com<br />

sede no pote de ouro, gente que recebeu indenizações<br />

milionárias e foi interrogado, esteve uma<br />

semana preso, enfim. Acho que virou uma certa<br />

farra esse negócio, então preferi não pedir. Em<br />

terceiro, porque eu não preciso do dinheiro do<br />

governo, eu consigo sobreviver do meu trabalho.<br />

Isso é dinheiro público, se fosse do bolso dos generais<br />

eu até aceitaria, iria reivindicar, mas não é,<br />

e não quero usar em benefício pessoal.<br />

Tatiana Merlino - Essa não foi uma maneira<br />

do Estado brasileiro reconhecer que essas<br />

pessoas foram realmente presas e torturadas?<br />

Haveria outras maneiras. Por exemplo, o Estado<br />

até hoje não pediu perdão à nação pelo erro<br />

que ele cometeu. Essa é uma das dívidas, inclusive<br />

do governo Lula, que devia pedir perdão, em<br />

nome do Estado, assim como o papa pediu perdão<br />

à humanidade pela condenação de Galileu e<br />

agora de Copérnico.<br />

Lúcia Rodrigues - Mas no governo Lula,<br />

nesse caso recente do STF e da OAB,<br />

mais uma vez manteve a impunidade aos<br />

torturadores.<br />

Eu gostaria inclusive que abrissem os arquivos das<br />

Forças Armadas, continuo lutando por isso. Fiquei<br />

perplexo e horrorizado com a decisão do STF, porque<br />

não só é uma forma de absolvição legal de<br />

crimes hediondos, de lesa-humanidade, imprescritíveis,<br />

inclusive pela legislação dos tratados internacionais<br />

firmados pelo Brasil. Também é uma<br />

forma de abonar a tortura que continua nas delegacias<br />

praticada pelos policiais civis e militares<br />

Brasil afora. Enquanto eu viver lutarei para reverter<br />

essa situação. Tenho dedicado minha obra literária<br />

à memória desses anos de chumbo. São vários<br />

livros, o Cartas da Prisão, Batismo de Sangue,<br />

Dia de Anjo, Canto na Fogueira, que fiz com Frei<br />

Fernando e Frei Ivo, e agora o Diário de Fernando.<br />

Esqueci algum? Acho que não. As Catapuntas,<br />

que é o Cartas na Prisão, enfim. Assim como<br />

60 anos depois a memória do sofrimento dos judeus<br />

por causa do nazismo continua viva, daqui<br />

a duzentos anos a memória do sofrimento das vítimas<br />

da ditadura militar também estará. Quer dizer,<br />

é um equívoco do STF, do governo, dos militares<br />

pensar que essa memória se apaga.<br />

Hamilton Octavio de Souza - Quando você<br />

saiu da prisão, o que fez?<br />

Saí no fim de 73.<br />

Tatiana Merlino - Poderia falar sobre o<br />

período que ficou em São Paulo militando e<br />

trabalhando como jornalista?<br />

Congresso da UNE é um bom exemplo. Quem<br />

conseguiu o local do Congresso foi o Frei Tito, lá<br />

em Ibiúna, um sítio, por isso que ele foi tão barbarizado<br />

na tortura a ponto de ser levado à morte.<br />

Eu conhecia o local e armei um esquema com<br />

o pessoal da ALN e com o Frei Tito de que qualquer<br />

sinal que a repressão tivesse notícia do local<br />

do Congresso, esse sinal viria através dos se-<br />

julho 2010 caros amigos<br />

-Frei Betto_160.indd 13 02.07.10 17:33:15<br />

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14<br />

toristas do jornal. Naquela época nós já tínhamos<br />

os setoristas no Dops, no exército e etc. Eu daria<br />

um aviso para que eles pudessem se safar. E,<br />

de fato, o setorista do Dops chegou na redação e<br />

disse: “tão falando lá no Dops que tem um pessoal<br />

que estaria reunido lá pelo lado de Ibiúna e<br />

tão querendo investigar e tal.” Aí eu chamei o repórter<br />

Rogério e disse: “Você vai agora avisar a<br />

direção que a polícia está indo para lá”. O Rogério<br />

foi, mas cometi um grande equívoco. Não me<br />

passou pela cabeça que o carro da Folha, com a<br />

sua logomarca na lataria, iria ser hostilizado pela<br />

segurança do Congresso. Resultado: o Zé Dirceu<br />

me disse depois que a notícia chegou à direção<br />

do Congresso, que eles podiam ter se safado, mas<br />

surgiu um problema de consciência: “e esses mil<br />

companheiros e companheiras que estão aqui?”<br />

Aí decidiram esperar, e deu no que deu, foram<br />

todos presos. Muitas vezes eu sabia de ações revolucionárias<br />

antecipadamente e armava o jornal<br />

para isso, por isso que a Folha da Tarde era<br />

quem melhor cobria a esquerda na época. Bem,<br />

voltando ao período da saída da prisão, no fim de<br />

73, e com muita pressão da família, da Igreja e<br />

da repressão para ir para fora do Brasil, me veio<br />

uma questão de consciência: “quando vou voltar?<br />

Quero lutar no Brasil, não se muda um país<br />

estando fora dele”. Por outro lado, “esses caras já<br />

me fizeram ficar preso o dobro do que eu merecia<br />

segundo eles. Não vou embora não, vou ficar<br />

aqui”. Então decidi ir para Vitória, que naquela<br />

época era uma cidade politicamente mais calma.<br />

Fui morar na favela de Santa Maria. Comprei um<br />

barraco lá, que está tombado, física e emocionalmente<br />

tombado. Lá mora uma amiga, a quem eu<br />

“vendi” por 50 reais com o acerto de que o dia<br />

que ela sair de lá eu tenho que ser a primeira pessoa<br />

a quem ela vai oferecer o barraco.<br />

Gabriela Moncau - E você desenvolveu o quê<br />

em Vitória?<br />

Fiquei cinco anos nessa favela fazendo trabalho<br />

de comunidades eclesiais de base em Vitória e<br />

assessorando a disseminação de CEBs em todo o<br />

país. Em 78 comecei a vir muito para São Paulo.<br />

Estava começando o processo de abertura, movimento<br />

sindical, movimento popular explodindo,<br />

me liguei a uma equipe de educação popular aqui<br />

de São Paulo, que existe até hoje, chamada Cepis,<br />

Centro de Educação Popular do Instituto Sedes<br />

Sapientiae. Trabalhei quinze anos no Cepis. A<br />

gente viajava todo o país, articulando movimentos<br />

populares, assessorando. Vim para São Paulo<br />

em 79 e fui para o ABC. Dom Cláudio era o bispo<br />

e me nomeou como o responsável pela Pastoral<br />

Operária. Fiquei vinte e dois anos na Pastoral<br />

Operária do ABC. Há duas coisas que todo mundo<br />

pensa que eu sou e nunca fui: militante do PT<br />

e padre. Nunca fui. Por que estou dizendo isso?<br />

Porque muita gente estranha. Como é que eu me<br />

tornei amigo do Lula e de outros? Por causa da<br />

Pastoral Operária, não por causa de partido, embora<br />

eu tenha ajudado muito a construção do PT.<br />

E todo balanço dessa experiência eu escrevi no livro<br />

A Mosca Azul - Refexão sobre o Poder. Logo<br />

que saí do governo fiz dois livros: um é um balan-<br />

caros amigos julho 2010<br />

ço desse processo todo de quarenta anos de construção<br />

do movimento social no Brasil; e um outro<br />

é um diário dos dois anos que eu trabalhei no<br />

Planalto, chamado Calendário do Poder.<br />

Hamilton Octavio de Souza - Você<br />

acompanhou o nascimento do PT e da CUT.<br />

Como vê esse processo?<br />

O meu primeiro encontro com o Lula se deu em janeiro<br />

de 1980. E a fundação do PT estava marcada<br />

para um mês depois. Chamei a atenção do Lula:<br />

“Olha, fundando o partido, vocês correm o risco de<br />

atropelar todo o movimento social”. E o Lula disse:<br />

“olha, você tem razão, e o que a gente faz?” Eu<br />

disse: “temos que fundar uma articulação de movimentos<br />

sociais e sindicais que garanta essa distância,<br />

preservando a autonomia e independência dos<br />

movimentos sindicais e populares diante do PT”.<br />

Ele concordou e no início de fevereiro, antes da<br />

fundação do PT, fizemos outro encontro de onde<br />

saiu a famosa carta de João Molevade, que até hoje<br />

o Lula cita, porque foi muito bem feita no sentido<br />

de colocar as bases da relação partido, sindicato,<br />

movimento popular e Igreja muito claramente colocando<br />

que são segmentos social e politicamente<br />

complementares. E aí, a Anampos foi fundada,<br />

Articulação Nacional de Movimentos Populares e<br />

Sindicais. Depois, com a fundação da CUT em 83,<br />

o “s” de sindicais passou a ser só o plural do Populares.<br />

Em 90, fundamos a central de movimentos<br />

populares, que não se firmou como a CUT, mas,<br />

enfim, foi fundada. Hoje, vejo que foram duas ferramentas,<br />

junto com o MST, com vários movimentos<br />

populares, movimentos de mulheres, enfim,<br />

toda essa riqueza, que levaram o Lula à presidência.<br />

Não foi a Carta aos Brasileiros, foi a articulação<br />

de brasileiros pobres, dos meios populares dos<br />

anos 70, 80 e 90. Foram trinta anos de um trabalho<br />

muito sério de base, que o PT contribuiu muito.<br />

Hoje, lamento que, uma vez chegando ao governo<br />

federal, não tenha se mantido todo aquele discernimento<br />

elaborado nos documentos da Anampos.<br />

Em outras palavras, o governo federal cooptou uma<br />

parcela importante do movimento social brasileiro,<br />

entre eles, a CUT. Ao meu ver a CUT hoje representa<br />

muito mais o governo junto ao trabalhador do que<br />

os trabalhadores junto ao governo. E, por sua vez,<br />

o PT e um grupo hegemônico que o comanda trocou<br />

um projeto de Brasil por um projeto de poder.<br />

E isso eu analiso detalhadamente no livro A Mosca<br />

Azul. A ponto de ao invés de se apoiar, apoiar a<br />

sua governabilidade, como fez o Evo Morales, nos<br />

movimentos sociais no primeiro mandato do Lula<br />

esse apoio foi descartado e se buscou o tradicional<br />

apoio do Congresso. Como o Congresso é dominado<br />

por forças políticas tradicionalmente conservadoras,<br />

contrárias a tudo aquilo que inspirou a<br />

criação e afirmação do PT, ele acabou refém dessas<br />

forças conservadoras e isso é simbolizado hoje<br />

pela importância que o PMDB tem no processo de<br />

sucessão do Lula.<br />

Lúcia Rodrigues - E por que o governo Lula<br />

optou por essa saída?<br />

Porque o governo Lula não percebeu a força social<br />

que tinha em mãos para implementar as reformas<br />

de estrutura do País. Devo dizer com toda a clareza,<br />

considero o governo Lula o melhor da história republicana<br />

do Brasil. Segundo, Brasil, América Latina<br />

e mundo são melhores com o Lula do que sem o<br />

Lula, essa é a minha posição. E terceiro, quero que<br />

essa política implementada pelo governo Lula prossiga,<br />

com todas as críticas que eu tenho, com todas<br />

as reservas que eu faço, principalmente no âmbito<br />

internacional e no que diz respeito às políticas sociais,<br />

embora lamente que Fome Zero criado pelo<br />

governo tenha sido assassinado pelo próprio governo.<br />

E no lugar de um programa que tinha um<br />

caráter emancipatório, se introduziu um programa<br />

de caráter compensatório que é o Bolsa Família. É<br />

bom? É bom, o Fome Zero era ótimo.<br />

Tatiana Merlino - Por conta dessa opção o<br />

governo teve que fazer muitas concessões?<br />

Na minha opinião, a maior concessão que o governo<br />

fez é na parte econômica. Se a gente considerar<br />

que o governo joga através dos títulos da<br />

dívida pública quase trezentos bilhões de reais<br />

para fomentar a especulação no mercado financeiro<br />

e apenas 44 bilhões na saúde, um pouco<br />

menos na educação. Então, é uma desproporção<br />

muito grande. Depois essa política de juros altos.<br />

Tem hoje uma dívida interna de 2 bilhões de reais,<br />

dívida externa tende a crescer. O Brasil se tornou<br />

o paraíso do capital especulativo. Louva-se, como<br />

se fosse um grande mérito, o fato do capital estrangeiro<br />

vir ter esse afluxo para o Brasil, como se<br />

isso não tivesse um ônus sério a longo prazo, para<br />

este país. E, por outro lado, a principal crítica que<br />

eu tenho é que serão oito anos sem nenhuma reforma<br />

estrutural, nem agrária, nem a tributária,<br />

nem a política, nem a da saúde, da educação. E,<br />

apesar disso, continuo achando que foi o melhor<br />

governo que tivemos, mas eu esperava mais.<br />

Tatiana Merlino - E como é que o senhor<br />

avalia a situação das forças de esquerda hoje<br />

no País?<br />

Com muita preocupação. Primeiro, porque a queda<br />

do muro de Berlim abalou e desmobilizou o que eu<br />

chamo de esquerda ideológica, retoricamente ideológica.<br />

Aquela que conhecia toda a obra de Marx,<br />

de Engels, de Lenin, de Trotski, de Mao Tse-Tung,<br />

de Guevara, mas não conhecia o povo. Foi um alívio<br />

o muro de Berlim cair para essa gente, porque<br />

hoje eles se tornaram burgueses sem culpa. E há<br />

uma esquerda que vinha tendo como referência da<br />

sua postura pró-socialista favorecer a libertação<br />

dos pobres da pobreza, principalmente a esquerda<br />

de tradição cristã, a esquerda que fazia trabalho de<br />

base, que ia para a periferia, o pessoal das comunidades<br />

eclesiais de base das pastorais populares.<br />

Por exemplo, de onde resultou o MST, a Comissão<br />

Pastoral da Terra, o Cimi, essa esquerda continua<br />

e é o que restou da esquerda. E hoje, antigos companheiros<br />

da esquerda, fico indignado na maneira<br />

como eles professam em público com tanta convicção<br />

de que o capitalismo é humanizável, reformável.<br />

Ou seja, só há uma explicação para isso: é<br />

quando você troca o projeto de um povo, de emancipação<br />

de uma nação, por um projeto pessoal ou<br />

coletivo de poder. Aí faz uma série de concessões<br />

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que ferem os princípios que eram anteriormente<br />

defendidos. E, ao mesmo tempo, não contempla o<br />

que é mais importante, que é a drástica redução da<br />

desigualdade social deste país.<br />

Hamilton Octavio de Souza - Você acha que<br />

o PT ainda tem energia transformadora?<br />

Acho que sim, existem muitas pessoas sérias e íntegras,<br />

ideologicamente consistentes dentro do PT.<br />

Mesmo alguns grupos organizados dentro do PT,<br />

que não são lamentavelmente os grupos hegemônicos,<br />

mas com condições, ao meu ver, de a médio<br />

prazo ganhar a luta interna. Então, até porque eu<br />

não sou favorável a essa multiplicidade de partidos<br />

de esquerda, isso acaba criando uma grande fragmentação<br />

e só favorece o fortalecimento da direita.<br />

Assim como eu vivo numa Igreja que é estruturalmente,<br />

histórica e tradicionalmente conservadora,<br />

às vezes repressora, mas é porque eu acredito que<br />

só dentro, só estando dentro de uma instituição é<br />

que a gente pode mudá-la. Eu também acho que o<br />

PT é vulnerável sim a uma mudança, e tomara que<br />

“A principal crítica que eu tenho (ao governo Lula) é que serão<br />

oito anos sem nenhuma reforma estrutural, nem agrária, nem<br />

a tributária, nem a política, nem a da saúde e da educação”.<br />

ela venha, para que ele volte a ser o partido que representa<br />

os setores mais oprimidos da nação e volte<br />

a ser o partido que se caracteriza pela sua ética<br />

e atividade política.<br />

Hamilton Octavio de Souza - Recentemente<br />

teve o Congresso da CPT, e a Assembleia<br />

Popular. O que se percebe nesse conjunto de<br />

forças é uma desconfiança cada vez maior ao<br />

PT e uma efervescência na construção de um<br />

outro instrumento.<br />

Sim, agora, já foram criados outros instrumentos,<br />

como é o caso do Psol. E temo, como uma síndrome<br />

da ingenuidade esquerdista, temo o antipetismo.<br />

Creio que o PT, com todas as suas falhas, é<br />

um aliado de um projeto emancipatório do Brasil<br />

e, portanto, embora hoje eu tenha muita simpatia<br />

pelo PSol, como tenho por setores do PCdoB e do<br />

PSB e até do PSTU... não posso generalizar e dizer<br />

que todo o PT foi responsável pelo mensalão, todo<br />

o PT está compactuado com as forças retrógradas<br />

do PMDB. Veja a crise de Minas. A crise de Minas<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

e a crise do Maranhão são sintomáticas, são duas<br />

crises que eu conheço a fundo. Então, isso mostra<br />

que ainda há luz no fim do túnel do PT.<br />

Gabriela Moncau - Você acredita numa<br />

transformação social concreta por meio<br />

do aparelho estatal?<br />

Não, acredito numa transformação por meio da<br />

mobilização popular que, por sua vez, pressiona o<br />

aparelho estatal. Aprendi no governo duas grandes<br />

lições: governo é que nem feijão, só funciona<br />

na panela de pressão. Só que quem mais pressiona<br />

o poder público são as elites através dos lobbies<br />

muito bem pagos e organizados. Nós, movimentos<br />

sociais, precisamos fazer a mesma coisa.<br />

E, depois que saí do governo, hoje sou um feliz<br />

ING, Indivíduo Não-Governamental. Tenho me<br />

dedicado, além de escrever, a assessorar movimentos<br />

sociais, só faço isso. E a segunda, é que o<br />

governo não muda ninguém, o poder faz as pessoas<br />

se revelarem.<br />

Tatiana Merlino - Não corrompe, revela?<br />

Há um ditado espanhol que é fantástico: “Se queres<br />

saber quem é Juanito, dê-lhe um carguito”.<br />

Então, isso é verdade, mas acho que a transformação<br />

social, a mudança social vem por essa<br />

pressão da mobilização popular, como tem ocorrido<br />

na América Latina. Hoje olho e dou graças<br />

a Deus, olho com muito otimismo para o ascenso<br />

social na América Latina, chamo de primavera<br />

democrática. Tivemos nesses últimos cinquenta<br />

anos, primeiro um ciclo de ditaduras militares,<br />

depois um ciclo de presidentes messiânicos neoliberais.<br />

Todos fracassaram. E agora nós estamos<br />

no terceiro ciclo que é absolutamente uma enorme<br />

novidade na história. Os eleitores dentro dessa<br />

democracia burguesa estão elegendo políticos<br />

que não vêm das oligarquias tradicionais e que<br />

pelo menos retoricamente têm um compromisso<br />

com mudanças sociais. Isso é absolutamente fantástico,<br />

por isso considero que essa política externa<br />

do Lula tem que ser preservada e prosseguir.<br />

Porque o Brasil joga um peso inestimável nessa<br />

nova geopolítica latinoamericana e caribenha.<br />

Inclusive com o apoio que dá a Cuba.<br />

Lúcia Rodrigues - Eu queria retomar<br />

quando o senhor colocou a questão da Carta<br />

aos Brasileiros que não foi que fez o Lula<br />

ganhar o governo. Mas, em 89, o PT com o<br />

Lula tinham sua recepção na massa e não<br />

ganharam.<br />

Eu não diria que o Lula não ganhou em 89, eu diria<br />

que o Lula quase ganhou em 89. Ou seja, apesar<br />

de todo o seu discurso ideologicamente mais<br />

radicalizado na época, ele quase ganhou. Ele mesmo<br />

não esperava chegar ao segundo turno, estava<br />

julho 2010 caros amigos<br />

-Frei Betto_160.indd 15 02.07.10 17:33:16<br />

15


16<br />

convencido que era o Brizola que ia passar para o<br />

segundo turno. Lula se surpreendeu quando se viu<br />

no segundo turno. E ele não perdeu pelo discurso<br />

que fazia, ele perdeu pelas falhas da própria campanha,<br />

como o debate final e também por algumas<br />

manipulações televisivas que favoreceram. Estou<br />

convencido que mesmo sem a Carta aos Brasileiros<br />

o Lula ganharia em 2002 por causa do acúmulo<br />

desse processo social que começou lá nos anos<br />

70. Evidente que não sou totalmente contra a Carta<br />

aos Brasileiros. Acho que um candidato a presidente<br />

tem que dialogar com todas as forças vivas<br />

do País. Mas atribuir a ela a vitória do Lula é<br />

menosprezar o acúmulo dos movimentos sociais<br />

em todos esses anos, toda a mobilização ocorrida<br />

no País, e isso de maneira alguma eu posso aceitar.<br />

Embora hoje a gente saiba, sempre a mídia tem<br />

um papel muito importante em processo eleitoral<br />

e, por sua vez, o dinheiro para ter acesso a essa mídia<br />

é determinante.<br />

Tatiana Merlino - Por que de 2002 para cá a<br />

força desses movimentos sociais que levaram<br />

o Lula a chegar ao governo federal não<br />

serviu de suporte para que o próprio governo<br />

avançasse mais nas reformas?<br />

Um dia o Fidel me disse que um dos erros da revolução<br />

é que nós prometemos tanto para o povo<br />

que quando chegamos ao poder, aquele povo que<br />

havia se mobilizado para respaldar a revolução<br />

caiu na inércia, e descobrimos que ele olhava para<br />

a revolução como quem olha uma grande vaca<br />

que tem que ter uma teta para cada boca. De cer-<br />

caros amigos julho 2010<br />

ta maneira, isso aconteceu no Brasil com a eleição<br />

do Lula. Os movimentos sociais, ao invés de<br />

se manterem mobilizados, ficaram celebrando que<br />

o Lula com a varinha de condão faria todo o milagre<br />

das nossas reivindicações e anseios, que seriam<br />

todos atendidos. Então, houve sim uma desmobilização<br />

dos movimentos sociais por um lado. E eu<br />

fui convocado para trabalhar exatamente na mobilização<br />

social, como eu descrevo com detalhes<br />

no livro Calendário do Poder, e não tive suficiente<br />

apoio do governo. A duras penas consegui montar<br />

dentro do governo uma rede de educação popular<br />

que é atuante até hoje, que permanece, que<br />

deve ser a primeira vez na história do Brasil que a<br />

partir da estrutura do poder público federal existe<br />

uma grande equipe de profissionais e voluntários<br />

fazendo o trabalho de base no Brasil através dessa<br />

rede de educação popular a duras penas. Mas não<br />

tive o respaldo que esperava ter, uma das razões<br />

pelas quais deixei o governo.<br />

Tatiana Merlino - O senhor saiu indisposto<br />

com o governo?<br />

Indisposto? Não. Primeiro eu saí do governo por<br />

duas razões mais fortes: pelo governo ter criado e<br />

matado o Fome Zero, e eu discordei dessa mudança.<br />

Fome Zero era um trabalho de mobilização social<br />

importante, todo baseado nos comitês gestores<br />

eleitos naquela época, no fim de 2004 em mais<br />

de dois mil municípios brasileiros sem nenhuma<br />

interferência dos prefeitos. E, de repente, a Casa<br />

Civil decidiu erradicar todos os comitês gestores<br />

e passar o cadastro do Fome Zero, aí foi introdu-<br />

zido o Bolsa Família, sob controle dos prefeitos.<br />

Enfim, evidentemente trazem dividendos chamados<br />

votos. Porque os prefeitos ameaçavam não<br />

respaldar o governo federal se eles não tivessem<br />

esse trunfo na mão. E a segunda razão, é porque<br />

minha vocação é escrever e trabalhar com movimento<br />

social, então, eu saí do governo aliviado.<br />

Saí bem, descrevo lá no Calendário as conversas<br />

com o Lula, cartas e bilhetes que trocamos, tudo<br />

isso, mas jamais voltarei a trabalhar em poder público<br />

ou em iniciativa privada.<br />

Hamilton Octavio de Souza - Quantos livros<br />

você escreveu.. Você tem uma obsessão<br />

fantástica pela escrita...<br />

Eu tenho disciplina. Na verdade, as duas coisas<br />

que eu mais gosto nessa vida é orar e escrever. E<br />

há muitos anos, desde 1986, eu reservo 120 dias<br />

no ano só para fazer essas duas coisas, eu me isolo.<br />

E aí são os milhares dos meus pensamentos.<br />

Hamilton Octavio de Souza - Quantos livros<br />

são?<br />

São 52 só de autoria própria, tem outros de coautoria.<br />

Meu pai brincava: “Você já leu todos os livros<br />

que você escreveu?” Muitos foram superados<br />

pelo tempo, pelo tema, pela ocasião e etc.. Agora,<br />

eu não posso passar mais de 48 horas sem escrever,<br />

senão me falta ar. É compulsivo. Não é só<br />

disciplina, é uma coisa lá dentro muito forte.<br />

Hamilton Octavio de Souza - Nesse quadro<br />

hoje, quais as perspectivas, que tipo de lutas<br />

você vê que deve se levar, o que você está<br />

fazendo, no que você está acreditando? Qual<br />

é o futuro imediato nosso?<br />

O meu maior medo hoje é o que chamo de elitização<br />

da política. Ou seja, quando eu recebo a notícia<br />

de que cada candidato a presidente gastará<br />

em média 200 milhões de reais em campanha,<br />

eu digo virtualmente: “isso não é democracia”.<br />

Porque a democracia supõe uma certa isonomia.<br />

Uma certa, uma partilha do direito de pessoas,<br />

independente do poder financeiro. Eu considero<br />

a tarefa mais importante hoje reforçar os movimentos<br />

sociais, criar uma sociedade civil fortalecida,<br />

mobilizada, consciente e capaz de propor<br />

um novo projeto para o Brasil, os outros mundos<br />

possíveis, não só o outro, os outros. Porque<br />

eu creio que temos que pensar num futuro plural,<br />

embora eu considere no conjunto, esse plural,<br />

eu continuo chamando de socialista, porque não<br />

vejo futuro para a humanidade sem a partilha dos<br />

bens da terra e dos frutos do trabalho humano.<br />

Gabriela Moncau - Qual é a sua avaliação<br />

em relação ao processo eleitoral deste ano e<br />

como fica o cenário político do Brasil daqui<br />

para frente, depois das eleições?<br />

Sou amigo dos quatro candidatos, da Dilma, da<br />

Marina, do Serra e do Plínio.<br />

Lúcia Rodrigues - Com mais tendência para<br />

qual lado?<br />

Quero muito que haja continuidade do governo<br />

Lula, essa é a minha posição.<br />

-Frei Betto_160.indd 16 02.07.10 17:33:18


porca miséria!<br />

Glauco Mattoso<br />

MENGELICA<br />

CONNEXÃO<br />

[SONETO 3286]<br />

Terror ou scientifica ficção?<br />

Ha filmes que p’ra manga panno dão.<br />

Agora, no circuito americano<br />

(Será que tambem chega ao brasileiro?),<br />

um classico me intriga, e aqui o explano:<br />

De medico e de monstro ha nelle um mix,<br />

pois liga um scientista a bocca ao anus<br />

num bicho transformando trez humanos:<br />

“The human centipede”, de Tom Six.<br />

No chão come o primeiro e, pelo cano<br />

anal come o segundo. No terceiro<br />

a merda é recagada. Insano plano!<br />

É, para a “centopéa”, a digestão<br />

peor na engattinhante posição.<br />

O phantasma do nazismo continua fascinando<br />

os cineastas, a julgar pelo filme<br />

que, ainda ignorado pela nossa midia, ja<br />

circula virtualmente e provoca o maior buchicho<br />

no publico internauta: “The human<br />

centipede”, do hollandez Tom Six. No portal<br />

cronopios.com.br commentei mais detalhadamente<br />

esse longa de horror, no qual<br />

trez cobayas humanas (um homem e duas<br />

mulheres) são cirurgicamente interligadas<br />

num unico apparelho digestivo (pela connexão<br />

anal-buccal) nas mãos dum medico<br />

allemão, resultando essa “siamezação”<br />

numa especie de centopéa. Sem entrar nas<br />

implicações sadomasochistas daquillo que<br />

eu chamo de “bacchanal buccoanal” ou<br />

de “suruba cubuccal”, quero aqui levantar<br />

uma questão ethica. De passagem, rejeito<br />

a nomenclatura “systema digestorio”<br />

como rejeito a orthographia phonetica. Mas<br />

a dictadura da medicina, questiono, não se<br />

restringe às monstruosas experiencias nazistas<br />

que celebrizaram o doutor Joseph<br />

Mengele e inspiraram personagens como o<br />

villão deste filme. Sob o pretexto de pre-<br />

servar a vida a qualquer custo (E bota custo<br />

nisso, em termos de hospital e remedio!),<br />

parece que os medicos se “esqueceram” de<br />

que não adeanta prolongar uma sobrevida<br />

si não houver bem estar. Um paciente terminal<br />

interminavelmente entubado numa UTI<br />

é o mesmo que um prisioneiro num campo<br />

de concentração, submettido à tortura<br />

“scientifica”. Outrora, ou se vivia minimamente<br />

com saude, ou se morria com mais<br />

rapidez e menos soffrimento artificial.<br />

Será que estamos todos, subtil e machiavellicamente,<br />

virando cobayas dum immenso<br />

nazismo medicinal? E a quem serviria tal<br />

nazismo disfarsado? Ao cerebro psychotico<br />

dalgum scientista genocida ou dalgum dictador<br />

racista? Nada disso! Serviria a uma lucrativa<br />

industria pharmaceutica, a um lucrativo<br />

commercio hospitalar e a um lucrativo<br />

mercado segurador. Ou não? O que eu ja gastei<br />

em operações e remedios contra o glaucoma!<br />

E fiquei cego mesmo assim, só que pagando<br />

mais e soffrendo ainda mais...<br />

Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.<br />

Eduardo Matarazzo Suplicy<br />

A modA como fator<br />

de inclusão social<br />

A moda, que já foi fator de exclusão, é hoje fator<br />

de inclusão, na avaliação de Glorinha Kalil, uma das<br />

pessoas que mais acompanham o que acontece com<br />

a moda. Se analisarmos as repercussões da São Paulo<br />

Fashion Week – SPFW, vamos nos deparar com números<br />

e dados muito significativos.<br />

Esse evento se tornou um marco na história da<br />

moda no Brasil e no mundo. Ele contribuiu para a economia,<br />

gera empregos, valoriza a cultura brasileira,<br />

a beleza e a arte. Em cada versão, se aprimora mais<br />

e mais.<br />

Paulo Borges, idealizador da SPFW, veio de<br />

São José do Rio Preto para a Capital, nos anos 70, para<br />

estudar computação e comércio exterior. A moda foi<br />

um acaso em sua vida. Acaso que deu certo! Ele disse<br />

que tinha como objetivo criar uma cultura de moda<br />

no Brasil. Em 1996, na Morumbi Fashion Week, surgiram<br />

os nomes das modelos de sucesso, como Gisele<br />

Bündchen, Ana Cláudia Michells, Isabelli Fontana,<br />

bem como grandes nomes do mundo da moda brasileira,<br />

inclusive masculina, como Ricardo Almeida, Ronaldo<br />

Fraga e Reinaldo Lourenço, para citar alguns exemplos.<br />

Em 1993, havia apenas quatro escolas de moda;<br />

agora, segundo Paulo Borges, há 150.<br />

Hoje a SPFW envolve uma cadeia imensa de profissionais<br />

e gera mais de cinco mil empregos diretos.<br />

Atualmente, há no mercado da moda 30 mil empresas<br />

que movimentam cerca de R$ 50 bilhões ao ano e empregam<br />

1,7 milhão de brasileiros. O setor é responsável<br />

por 17% do nosso Produto Interno Bruto. A SPFW, encerrada<br />

no dia 14 de junho, recebeu cerca de R$ 11 milhões<br />

de reais em investimentos, tornando-se o evento<br />

de moda mais famoso da América Latina.<br />

É importante ressaltar que a SPFW tem<br />

patrocinado, através do projeto Ofício Moda, o treinamento<br />

de costureiras, modelos, modelistas e piloteiras<br />

nos bairros mais carentes – como Heliópolis, Paraisópolis<br />

e outros – a também realizarem ações de moda.<br />

Em Heliópolis, uma cooperativa de costureiras realiza<br />

desfiles com suas criações.<br />

No ano que vem, a edição de junho da SPFW será<br />

ampliada e ocupará outros espaços com desfiles e exposições<br />

de 100 designers brasileiros, além de debates<br />

que envolverão um número maior de pessoas de forma<br />

a consolidar esse setor de maneira mais consciente e<br />

consistente. O que é bom tem que ficar e ser cada vez<br />

melhor, pois a geração de emprego e renda proporcionados<br />

pela moda é visível fator de inclusão social.<br />

Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.<br />

julho 2010 caros amigos<br />

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Ilustração: bruno paes<br />

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18<br />

caros amigos junho 2010<br />

tacape<br />

Rodrigo Vianna<br />

Dunga X globo:<br />

o fim Dos privilégios<br />

Quando essa revista estiver em<br />

suas mãos, caro leitor, a velha imprensa brasileira<br />

já terá decidido se Dunga é “um técnico limitado<br />

e teimoso, que conduziu o Brasil ao fracasso”, ou<br />

“um treinador obstinado, que contra tudo e contra<br />

todos comandou o Brasil rumo à vitória”.<br />

Na imprensa esportiva, as análises são - quase<br />

sempre - feitas assim: ao vencedor, as batatas!<br />

A única exceção talvez seja a seleção<br />

de 82. Apesar de não ter vencido, pouca gente<br />

tem coragem de negar que aquele time dirigido<br />

por Telê Santana - e conduzido dentro de campo<br />

por Falcão, Sócrates e Zico - foi uma das mais talentosas<br />

esquadras já montadas pelo Brasil.<br />

Mas voltemos a Dunga. O caso dele é mais dramático.<br />

Dunga não foi um grande jogador, e não é<br />

um grande técnico. Isso é fato. Dunga era um volante<br />

brucutu, que jogava o adversário no alambrado,<br />

e é um técnico inexperiente. Ponto. Mas<br />

Dunga é, sim, um líder.<br />

Impossível negar a capacidade de liderança<br />

que ele exerceu como capitão na Copa de<br />

94. Inegável também a habilidade de Dunga para<br />

“fechar o grupo”, agora como técnico. Vejam a<br />

balbúrdia que acometeu França e Inglaterra na<br />

Copa da África do Sul. “Excesso de estrelas”, diz<br />

a imprensa européia. Os técnicos Capello e Domenech<br />

não conseguiram controlar um bando de<br />

jogadores estelares, novos-ricos da bola, milionários<br />

que gostam de desfilar com namoradasmodelos<br />

e de exibir o seu poder.<br />

Dunga conseguiu. Montou um grupo. Fez escolhas.<br />

Desagradou muitos. É um líder.<br />

Há várias maneiras de ser líder, dirão alguns.<br />

É verdade. O líder pode ser alguém que articula,<br />

soma, reduz as zonas de conflito. Mais ou menos<br />

como Lula faz no Brasil – para irritação de muitos<br />

(entre eles, esse humilde escrevinhador) que gostariam<br />

de vê-lo comprando algumas brigas. E há o líder<br />

que luta, briga e confronta. Como faz Chávez na<br />

Venezuela. Ou como fazia o velho Brizola no Brasil.<br />

Dunga está mais para Brizola. A diferença é<br />

que o ex-governador – apesar de combativo –<br />

era homem afável no trato pessoal. Dunga, não.<br />

É desagradável, irritadiço, sofre com mania de<br />

perseguição. Mas ainda assim é um líder. E, justo<br />

durante a Copa, ousou desafiar o maior poder<br />

estabelecido no Brasil: a TV Globo. Transformou-<br />

se numa espécie de Brizola da bola!<br />

Dunga acabou com as “salinhas” exclusivas<br />

da Globo. Em outras Copas era assim: a Globo<br />

pagava pelos direitos de transmissão, e achava<br />

que tinha comprado – junto – o direito de exclusividade<br />

para falar com jogadores. Tudo sob os auspícios<br />

da CBF. Dunga acabou com essa bagunça.<br />

A Globo, que em outros tempos tramaria a derrubada<br />

do técnico nos bastidores, mostrou-se inabilidosa,<br />

e resolveu apelar: fez um editorial contra<br />

o técnico. Ficou tudo exposto, didaticamente,<br />

para o grande público.<br />

As enquetes na internet também mostraram<br />

que o tiro da Globo saiu pela culatra. Entre<br />

Dunga e a Globo, o público ficou com o primeiro<br />

– numa proporção de 8 a 2. Isso não faz dele uma<br />

pessoa especial. Nem acho que Dunga fez bem ao<br />

atacar publicamente, com palavrões, um comentarista<br />

da emissora do Jardim Botânico.<br />

Mas Dunga teve o mérito de expor para o Brasil<br />

os bastidores de um esporte que move multidões,<br />

mas é (ou era) controlado por dois ou três diretores<br />

da TV Globo.<br />

Blogueiros, uni-vos<br />

Escrevo essa coluna de Johannesburgo, onde<br />

vim trabalhar na Copa do Mundo, como jornalista<br />

da TV Record. Pouco antes de embarcar, participei<br />

de uma reunião para organizar o “Encontro<br />

Nacional de Blogueiros Progressistas”.<br />

A idéia partiu do jornalista Luiz Carlos Azenha.<br />

Ele, aliás, já anunciou que tudo foi tramado na<br />

mesa de um bar em São Paulo. Quase uma “conspiração”,<br />

diz o Azenha. Além dele, Altamiro Borges,<br />

Eduardo Guimarães, Conceição Lemes e esse<br />

escrevinhador estiveram presentes. Paulo Henrique<br />

Amorim também se juntou ao grupo.<br />

Trata-se de uma “conspiração” anunciada<br />

publicamente. O Encontro dos Blogueiros já<br />

tem data marcada e local: Brasília, nos dias 20, 21<br />

e 22 de agosto. A organização deve ficar por conta<br />

do “Centro de Estudos Barão de Itararé”.<br />

Não se imagina criar uma entidade, nem um<br />

Portal de blogueiros. O consenso é que o melhor é<br />

funcionar em rede, mas com o respeito à autonomia<br />

de cada um.<br />

Rodrigo Vianna é jornalista.<br />

Fidel Castro<br />

O gOlpe<br />

astucioso à espreita<br />

Nada de estranho seria que tanto Israel<br />

quanto os Estados Unidos e seus estreitos aliados<br />

com direito ao veto no Conselho de Segurança, França<br />

e Grã-Bretanha, quisessem aproveitar o enorme interesse<br />

que desperta o Mundial de Futebol para tranquilizar<br />

a opinião internacional, indignada pela criminosa<br />

conduta das tropas elites israelenses na Faixa de Gaza.<br />

É, portanto, muito provável que o próximo golpe<br />

contra o Irã, depois da resolução do Conselho de<br />

Segurança impondo mais sanções ao país, se atrase<br />

algumas semanas, e inclusive, seja esquecido pela<br />

maioria das pessoas nos dias mais calorosos do verão<br />

boreal. Haveria que observar o cinismo com que<br />

os líderes israelenses responderão às entrevistas coletivas<br />

nos próximos dias, onde serão bombardeados<br />

com perguntas. Oportunamente, eles irão elevando<br />

o rigor de suas exigências antes de apertar<br />

o gatilho. Anseiam repetir a história de Mossadegh<br />

em 1953, ou levar o Irã à idade de pedra, uma ameaça<br />

da qual gosta o poderoso império em seus tratos<br />

com o Paquistão.<br />

O ódio do Estado de Israel contra os palestinos<br />

é tal, que não hesitaria em enviar o milhão e meio<br />

de homens, mulheres e crianças desse país aos crematórios<br />

em que foram exterminados pelos nazistas<br />

milhões de judeus de todas as idades.<br />

A suástica pareceria ser hoje a bandeira de Israel.<br />

Esta opinião não nasce do ódio, mas sim do sentimento<br />

dum país que prestou albergue aos judeus<br />

da Segunda Guerra Mundial.<br />

Uma etapa nova e tenebrosa abre-se para o mundo.<br />

O próprio Obama admitiu em seu discurso<br />

na universidade islâmica de Al-Azhar, no Cairo, que “em<br />

meio à Guerra Fria, os Estados Unidos desempenharam<br />

um papel na derrubada dum governo iraniano eleito<br />

democraticamente”, apesar de que não disse quando<br />

nem com que propósitos. É possível que nem sequer se<br />

lembrasse como o levaram a cabo contra Mossadegh<br />

em 1953, para instalar no governo a dinastia de Reza<br />

Pahlevi, o xá do Irã, ao qual armaram até os dentes.<br />

Naquela época o Estado de Israel não possuía<br />

uma só arma nuclear. O império tinha um enorme e<br />

incontrastável poder nuclear. Então, os Estados Unidos<br />

pensaram na arriscada ideia de criar em Israel<br />

um gendarme no Oriente Médio, que hoje ameaça<br />

uma parte considerável da população mundial.<br />

Fidel Castro Ruz é ex-presidente de Cuba.<br />

-Rodrigo+fidel_160.indd 18 02.07.10 17:16:09


João Pedro Stedile<br />

O BRASIL,<br />

mais além do futebol...<br />

A sociedade brasileira é uma das de maior desigualdade social entre<br />

todos os 186 paises do mundo! Isso choca ainda mais, por termos recursos naturais,<br />

fontes de energia, minérios, matérias-primas...<br />

Entre 1930-1980, crescemos a 7,6% ao ano em média, a cada dez anos dobramos<br />

a riqueza produzida. Somos a oitava economia mundial em volume de riquezas.<br />

O Brasil é o maior exportador de soja, açúcar, carne de boi, mas, se não fosse a<br />

bolsa família, 11 milhões de famílias, ou seja 44 milhões de brasileiros, continuariam<br />

passando fome.<br />

Temos 16 milhões de brasileiros adultos, que produzem riquezas, mas<br />

que não tiveram o direito a conhecer as letras!<br />

Apenas 10% da juventude frequentam uma universidade. E pior, a ampla maioria<br />

deles paga faculdades particulares, enquanto os filhos da burguesia se acomodam<br />

nas universidades públicas. E tem gente que reclama das quotas aos jovens<br />

pobres e de origem afrodescendente.<br />

Sabemos os volumes de recursos que as filiais de transnacionais enviam<br />

para as matrizes, para manter os elevados padrões de consumo de seus acionistas<br />

com o suor brasileiro.<br />

Temos uma reserva enorme de dólares, do governo, depositados em bancos norte-americanos<br />

recebendo taxas de 2% ao ano, enquanto o próprio governo paga por<br />

uma mal explicada divida interna 10,25% ao ano aos bancos daqui.<br />

E nem a universidade, nem os intelectuais e muito menos a imprensa<br />

e os políticos se preocupam em analisar por que então seguimos sendo uma sociedade<br />

tão desigual?<br />

O máximo que chegam é às nossas raízes históricas de quatro séculos de escravidão,<br />

que estão na base da formação socioeconômica brasileira. O que é verdadeiro,<br />

mas insuficiente.<br />

As causas de nossas mazelas estão claramente identificadas na situação<br />

estrutural da economia:<br />

- Apenas 1% dos proprietários controla a metade de todas as terras.<br />

- A concentração da propriedade das fábricas, comércio, nas cidades.<br />

- A concentração da riqueza ao longo de décadas, produzida pelo trabalho de milhões<br />

de brasileiros, mas apropriada por uma minoria de 10%. O capital ficou com<br />

ao redor de 60% de todos os bens, enquanto quem trabalha fica com 40%.<br />

- A concentração do direito à escola.<br />

- A concentração da indústria, seja em algumas empresas, seja<br />

em termos geográficos.<br />

- Não mais de dez bancos controlam toda a movimentação financeira do país.<br />

- Jornais, revistas, rádios e televisões de poucos donos se tornaram mecanismos<br />

de ganância e reprodução do pensamento da classe dominante.<br />

- A nossos melhores hospitais e atendimento medico só têm acesso os ricos, e a classe<br />

media se resigna em pagar pesadas mensalidades de planos de saúde particulares.<br />

- A cidade de São Paulo tem 420 mil imóveis vazios, enquanto milhares de famílias<br />

vivem em barracos e condições desumanas.<br />

Esperamos que agora na campanha eleitoral os candidatos e os partidos<br />

criem vergonha na cara e tenham coragem de debater os verdadeiros problemas da<br />

sociedade com o povo brasileiro.<br />

João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via<br />

Campesina Brasil.<br />

Ana Miranda<br />

Parque de<br />

dIveRSõeS II<br />

A chuva desabou desde o pôr do sol e<br />

noite adentro alagou ruas, deixando a cidade quase<br />

deserta, aqui e ali vultos abrigados em marquises,<br />

ou um pedestre apressado, debaixo de uma sombrinha.<br />

Os carros passavam com suas luzes assombrosas,<br />

e na avenida inundada desenvolviam a velocidade<br />

levantando a água empoçada, formando como<br />

que fontes luminosas que irrigavam o canteiro entre<br />

as pistas. Estava na hora.<br />

O pai contou umas moedas, fez sinal aos<br />

dois filhos adolescentes, vestiram calções velhos e<br />

camisas fora do uso de tão velhas e rasgadas, tiraram<br />

as chinelas. Desceram as escadas do pequeno e<br />

humilde apartamento na periferia da avenida, percorreram<br />

a rua com os pés chafurdando nos lamaçais,<br />

no mesmo sentido da enxurrada, ladeira abaixo.<br />

No caminho encontravam outros que seguiam<br />

na mesma direção e se cumprimentavam com gritos<br />

ou acenos. Pararam num bar, tomaram um copo<br />

de cana, uma só dose dividida entre os três, que<br />

os aqueceu por dentro. Seguiram com mais ímpeto,<br />

num sentimento de alforria que os transportava<br />

a outros mundos, esquecidos das vazantes de uma<br />

vida petrificada e reversa, até que afinal chegaram<br />

à margem da rodovia. Esperaram que o sinal perto<br />

dali se fechasse e atravessaram a primeira pista.<br />

No canteiro central já estavam alguns homens e<br />

crianças em pé, bem perto do meio-fio, aguardando<br />

em silêncio, concentrados. O pai e os dois filhos<br />

se puseram ao longo da grande poça que se formara<br />

numa depressão, saudaram os companheiros, e também<br />

esperaram. Quando o sinal abriu, os carros saíram<br />

rugindo, vinham como um trem fantasma, sem<br />

rosto, aumentavam a velocidade à medida que se<br />

aproximavam, diminuíam diante do alagamento da<br />

pista, tomavam marcha reduzida e atravessavam as<br />

águas, levantando altas ondas douradas pelos faróis,<br />

avermelhadas pelas luzes traseiras, azuladas pela luz<br />

dos postes ou dos relâmpagos. Os caminhões eram<br />

os mais aplaudidos, pois formavam verdadeiras torrentes.<br />

Pai e filhos recebiam as ondas sobre o corpo,<br />

fazendo algazarra, numa folia de criança diante daquele<br />

mar improvisado. Assim foi até quase de madrugada,<br />

quando cessou o movimento de carros. Voltaram<br />

para casa fatigados, mas refeitos com aquela<br />

fantasia que sabiam farrear.<br />

Ana Miranda é escritora.<br />

julho 2010 caros amigos<br />

-Stedile+anaMiranda_160.indd 19 02.07.10 17:14:25<br />

19


20<br />

caros amigos julho 2010<br />

Joelma Couto<br />

lixo radioativo<br />

ameaça região de Poços de Caldas<br />

Vereadores da cidade querem que os materiais<br />

radioativos mesotório e torta ll, estocados<br />

nas instalações do Complexo Industrial de Urânio<br />

de Caldas (MG), sejam retirados de lá.<br />

quem nasceu na região do planalto de Poços<br />

de Caldas, Minas Gerais, após 1977,<br />

cresceu ouvindo muitas histórias sobre<br />

a mina de urânio Osamu Utsumi, localizada no<br />

município de Caldas. Uns contam que na infância<br />

ouviam dizer que lá se fabricava a bomba<br />

atômica, outros ouviam boatos que ligavam o<br />

Cachoeira das Antas, em Poços de Caldas, no rio que pode ter sido contaminado por dejetos de depósito radioativo.<br />

urânio ao ex-ditador iraquiano Saddam Hussein,<br />

confirmados no livro “Saddam, O Amigo do Brasil”,<br />

do jornalista Leonardo Attuch. Segundo narra<br />

Attuch, “Entre os anos de 1976 e 1990, Brasil<br />

e Iraque foram grandes parceiros comerciais.<br />

Uma das mais sigilosas operações entre os governos<br />

do general João Batista Figueiredo e de Sa-<br />

ddam Hussein aconteceu no dia 14 de janeiro de<br />

1981. Foi quando dois aviões iraquianos decolaram<br />

das pistas do Centro Tecnológico Aeroespacial,<br />

em São José dos Campos, e voaram em direção<br />

a Bagdá, carregados com o urânio que vinha<br />

das minas de Poços de Caldas”.<br />

Em 1982, deu-se início à operação comercial<br />

para produção de concentrado de urânio, que durou<br />

até 1995. Não se sabe exatamente quantas<br />

toneladas de urânio foram extraídas da mina,<br />

que fica em um local conhecido como Campo do<br />

Cercado. Sabe-se que a produção foi muito pequena,<br />

algo em torno de 4.500 toneladas, segundo<br />

o site oficial da INB, e 1.200 toneladas segundo<br />

folder sobre a produção da mina.<br />

-Joelma_160.indd 20 02.07.10 17:25:28<br />

foto Joelma do Couto


Após a paralisação total das atividades de lavra,<br />

iniciou-se outra polêmica na região. Em São<br />

Paulo, a Usina de Santo Amaro (Usam), também<br />

conhecida por Nuclemon, entrou em processo de<br />

descomissionamento, processo de desativação de<br />

uma instalação nuclear ao final de sua vida útil,<br />

observando-se todos os cuidados para proteger a<br />

saúde e a segurança dos trabalhadores, das pessoas<br />

em geral e também do meio ambiente.<br />

No entanto, para se descomissionar é necessário<br />

desmontar todas as construções envolvidas,<br />

retirar até mesmo a terra que se tornou radioativa<br />

e depositá-los em um local seguro. Como<br />

no Brasil não existem depósitos definitivos, assim<br />

como no resto do mundo, a solução foi enviar<br />

para a área da antiga mina de urânio de Caldas.<br />

A população da região se revoltou. Milhares<br />

de toneladas dos materiais radioativos torta ll e<br />

mesotório produzidos pela Usam já estavam estocados<br />

no local, e os moradores da região ainda<br />

teriam que mais uma vez aceitar estes vizinhos<br />

indesejáveis?<br />

Maria Augusta Barbosa, moradora de Caldas,<br />

conta: “Ficamos revoltados, não fomos nós que<br />

produzimos este lixo, por que devemos aceitálo<br />

aqui?” Depois de muito barulho da população,<br />

apoiada pelo Greenpeace, e da intervenção<br />

de autoridades, como o ex-juiz da comarca da<br />

Caldas, Ronaldo Tovani, e do ex-secretário de<br />

Meio Ambiente do Estado de Minas Gerais, Tilden<br />

Santiago, o então governador Itamar Franco<br />

proibiu a entrada no Estado de Minas de lixo radioativo<br />

oriundo de outros Estados. O pouco que<br />

restou em São Paulo ficou no depósito da Usina<br />

de Interlagos, ao lado do terreno que abrigará o<br />

futuro templo do Padre Marcelo Rossi.<br />

Vereadores preocupados<br />

No último dia 6 de abril, o gerente de descomissionamento<br />

da Indústrias Nucleares do Brasil<br />

- Caldas, Luiz Augusto de Carvalho Bresser Dores,<br />

compareceu à sessão da Câmara Municipal<br />

de Poços de Caldas, a convite do vereador Tiago<br />

Cavelagna (DEM). Bresser afirmou que mais<br />

de 12 mil toneladas de torta ll estão estocadas<br />

na unidade de Caldas, mas não trazem nenhum<br />

tipo de risco para a população. Os números são<br />

altos: 7.588.726 toneladas de rejeitos radioativos,<br />

2.302 toneladas de mesotório em silos aterrados<br />

e 1500 toneladas estocadas na barragem<br />

de rejeitos, além de 10.159 toneladas de torta ll<br />

em bombonas e o restante em silos de concreto<br />

aterrados.<br />

Outra preocupação é o chamado bota-fora:<br />

milhões de toneladas do que sobrou da lavra de<br />

urânio e que contêm minerais ricos em enxofre<br />

(sulfetos). Estes minerais sofrem um processo<br />

de oxidação natural e em contato com a água<br />

da chuva produzem ácido sulfúrico. O ácido dilui<br />

na água e solubiliza os metais pesados, como<br />

por exemplo o urânio. Mesmo que em quantidades<br />

pequenas, quando a água é drenada estes metais<br />

também são transportados para a barragem<br />

de drenagem ácida.<br />

Esta mistura de metais pesados e ácidos tem<br />

caráter nocivo e pode alcançar os mananciais<br />

ou mesmo o lençol freático da região, comprometendo<br />

o meio ambiente. Quando chove forte,<br />

existe a possibilidade da barragem transbordar<br />

e esta água ácida cair no Ribeirão Soberbo,<br />

que faz parte da Bacia Hidrográfica do Rio Verde,<br />

que flui para o município de Caldas, com prejuízo<br />

para a fauna e flora da região. Também está<br />

dentro dos limites da mina a Bacia Hidrográfica<br />

das Antas, que flui para Poços de Caldas.<br />

A vereadora e médica Regina Cioffi (PPS) entregou<br />

ao Ministério Público de Poços de Caldas,<br />

no dia 18 de junho, um dossiê com denúncias<br />

contra a INB-Caldas. Ela afirmou que “a INB<br />

é uma estatal, está sob jurisdição federal, por isso<br />

pedi ao MP de Poços de Caldas que encaminhe as<br />

denúncias ao Ministério Público Federal”.<br />

Já a vereadora Maria Cecília Opípari (PSB) quer<br />

que a torta ll e o mesotório depositados em Caldas<br />

voltem para São Paulo. “Tenho medo que a INB-<br />

Caldas se torne um depósito de lixo radioativo<br />

proveniente de todo o país”, afirma a vereadora.<br />

Maria Cecília levará as denúncias contra a<br />

INB para Brasília, onde participará da Conferência<br />

Nacional das Cidades, como delegada do Estado<br />

de Minas Gerais e da cidade de Poços de<br />

Caldas. Segundo Maria Cecília, existem indícios<br />

de que no dia 28 de maio houve um rompimento<br />

em uma barragem que fica dentro do complexo<br />

da INB-Caldas e cujas águas são despejadas<br />

no Ribeirão das Antas. “Não quero alarmar a população,<br />

mas temos que tentar buscar esclarecimentos”,<br />

afirma a vereadora.<br />

Estudos feitos em vários países comprovam o<br />

aumento da incidência de câncer em crianças que<br />

moram perto de instalações nucleares. Dados estatísticos<br />

de órgãos públicos da saúde atestam altos<br />

índices de câncer nos municípios de Santa Rita de<br />

Caldas, Ibitiura de Minas, Caldas, Andradas e Poços<br />

de Caldas, todos na região onde se localizam<br />

os depósitos de lixo radioativo. Segundo Regina<br />

Cioffi nunca se produziu torta ll e mesotório na<br />

unidade da INB-Caldas. Para ela, “quem produziu<br />

o lixo, que arque com as consequências”.<br />

A Câmara Municipal de Poços de Caldas formou<br />

uma comissão composta por cinco vereadores,<br />

que deverão visitar as instalações da INB-<br />

Vereadora Maria Cecília Figueiredo Opípari.<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

Caldas, pois existem indícios de que o material<br />

radioativo não está acondicionado com segurança.<br />

A reportagem teve acesso a fotos que seriam<br />

dos depósitos da INB-Caldas, que mostram o comprometimento<br />

na armazenagem de grande parte<br />

do material, com latões enferrujados e amassados,<br />

pallets de sustentação comprometidos.<br />

rejeito ou estoque?<br />

Uma das questões que se levanta sobre o material<br />

depositado no complexo é se mesotório e a torta<br />

ll são rejeitos ou estoque estratégico de urânio.<br />

Em 2002 foi assinado um termo de compromisso<br />

com o IBAMA. Este termo se referia ao licenciamento<br />

ambiental das instalações do complexo<br />

industrial. Participaram das negociações o Município<br />

de Caldas, a CNEN – Comissão Nacional de<br />

Energia Nuclear – e a FEAM – Fundação Estadual<br />

do Meio Ambiente, com o objetivo de viabilizar<br />

os testes de processamento da monazita, e estabelecer<br />

as diretrizes para o licenciamento ambiental<br />

e o processamento contínuo destas.<br />

O termo de compromisso criou para a INB-<br />

Caldas, dentre outras obrigações, a de definir medidas<br />

efetivas para recuperar as áreas degradadas<br />

existentes na Unidade de Tratamento de Minérios<br />

– UTM de Caldas, decorrentes das atividades<br />

anteriores às atualmente pretendidas pela empresa<br />

(produção de concentrados de terras raras).<br />

Mas retirar o urânio da torta ll mostrouse<br />

economicamente inviável. Para que seja dado<br />

um destino final a este material, é preciso definir<br />

se é rejeito e – assim sendo, ele deve ser levado<br />

para um depósito próprio e definitivo para lixo<br />

radioativo – ou, se é material passível de reaproveitamento<br />

no futuro, deverá ser acondicionado<br />

da forma mais segura possível.<br />

Outra questão normalmente levantada pela<br />

população da região diz respeito às prioridades<br />

do governo: é mais importante para o Brasil definir<br />

o que vai fazer com o lixo radioativo e como,<br />

ou investir bilhões em novas usinas nucleares?<br />

Não sabemos sequer o que fazer com a torta ll<br />

existente no país há pelo menos 50 anos? E o<br />

mais grave, qual será o destino do combustível<br />

dos reatores de Angra?<br />

Não menos importante é saber que destino<br />

a INB dará à unidade de Caldas. Segundo relatório<br />

anual da empresa em 2006, “as atividades<br />

da Unidade de Tratamento de Minério (UTM)<br />

da INB, situada em Caldas (MG), foram interrompidas,<br />

ficando operacionais somente as atividades<br />

de controle e monitoração do meio ambiente,<br />

tratamento de águas marginais, efluentes,<br />

controle da barragem de rejeitos e aquelas relacionadas<br />

com manutenção. A unidade de Caldas<br />

será submetida ao processo de descomissionamento<br />

que inclui o Plano de Recuperação das<br />

Áreas Degradadas – PRAD. O processo licitatório<br />

prevê a apresentação de propostas para fevereiro<br />

de 2007”.<br />

Já o relatório anual 2008 diz que “a INB tomou<br />

a decisão de transformar esta unidade num<br />

centro de excelência laboratorial para análise de<br />

conteúdos radioativos de materiais de toda empresa,<br />

os laboratórios já estão sendo moderni-<br />

julho 2010 caros amigos<br />

-Joelma_160.indd 21 02.07.10 17:25:29<br />

foto divulgação<br />

21


22<br />

zados e o quadro de material especializado está<br />

sendo ampliado”. Mais uma vez, a empresa não<br />

deixa claro quanto tempo levará para finalizar o<br />

descomissionamento da mina do Cercado. A unidade<br />

será um depósito definitivo?<br />

depósito defiNitiVo<br />

No Brasil, apenas em Abadia de Goiás existe<br />

um depósito definitivo para rejeitos radioativos.<br />

O depósito foi criado para acondicionar o lixo radioativo<br />

produzido pelas cerca de 19 gramas de<br />

césio 137 encontradas por um catador de materiais<br />

recicláveis em Goiânia. O acidente de Goiânia<br />

foi o maior em área urbana do mundo e é estudado<br />

por cientistas norte-americanos, como o<br />

cenário de um possível atentado nuclear terrorista.<br />

Apenas 19 gramas foram suficientes para<br />

contaminar diretamente 6.500 pessoas.<br />

Odesson Alves Ferreira, presidente da Associação<br />

das Vítimas do Césio 137 e do Conselho<br />

Estadual de Saúde, participou da Oficina Anti-nuclear<br />

do Nordeste, realizada em abril deste<br />

ano, onde relatou sua história e de outros atingidos<br />

pelo césio 137. Odesson falou do preconceito<br />

de que é vitima até os dias de hoje. Além de<br />

perder a sobrinha, a casa, tudo que lembrava sua<br />

história, fotos, documentos, tudo que pertencia a<br />

ele foi para o depósito.<br />

Odesson conta que perdeu familiares, amigos,<br />

emprego. Quando foi autorizado a voltar ao trabalho,<br />

foi vítima do medo que todos tinham dele.<br />

Ninguém se aproximava, nem mesmo o médico<br />

trabalhista, que o aconselhou a aposentadoria.<br />

“Quando fui comprar uma nova casa, tive<br />

uma surpresa que não esperava: a vizinha fez um<br />

abaixo assinado exigindo que eu e minha família<br />

não pudéssemos morar naquela rua, orientada<br />

por seu médico particular, afirmava que a radiação<br />

emitida pela família poderia agravar seu<br />

estado de saúde. Reconstruir a vida, recomeçar<br />

não é fácil”, afirma Odesson.<br />

É consenso entre especialistas da área e ambientalistas<br />

que se crie no País um órgão regulador<br />

autônomo e independente para a fiscalização<br />

das áreas de radioproteção e segurança nuclear.<br />

Rogério dos Santos Gomes, físico e doutor<br />

em Engenharia Nuclear, explica que “na área de<br />

rejeitos o Brasil possui uma legislação caótica<br />

sobre a seleção de locais e construção dos depósitos<br />

que dispõe que cabe à Comissão Nacional<br />

de Energia Nuclear (CNEN), projetar, licenciar,<br />

construir, operar e fiscalizar os depósitos,<br />

enquanto a Convenção Internacional sobre a segurança<br />

do combustível usado e segurança de<br />

rejeitos, aprovada pela Agência Internacional de<br />

Energia Atômica, assinada pelo Brasil, aprovada<br />

pela Câmara e pelo Senado e sancionada pelo<br />

Presidente da República, dispõe que cada país<br />

deverá assegurar a efetiva separação entre os órgãos<br />

que licenciam e fiscalizam e os que constroem<br />

e operam locais de rejeitos.”<br />

Que garantia podemos ter se o mesmo órgão<br />

que executa é o que fiscaliza? Além do Brasil, apenas<br />

Paquistão e Irã mantêm esta estrutura. Ainda<br />

segundo Rogério Gomes “em julho de 2008 foi<br />

criado pelo presidente da República o Comitê de<br />

caros amigos julho 2010<br />

Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro<br />

(CDPNB), sob coordenação da ministra-chefe<br />

da Casa Civil e compreendendo 11 outros ministros<br />

de Estado, tendo sido consenso entre todos a<br />

necessária criação de uma agência reguladora nuclear,<br />

promovida através da separação da CNEN.<br />

Hoje, passados quase dois anos, nada de prático<br />

foi alcançado, com a coordenação do CDPNB tendo<br />

passado para a Secretaria de Assuntos Estratégicos<br />

da Presidência da República, que no seu documento<br />

sobre os rumos do Brasil até 2022, não<br />

contempla a necessária criação de um órgão regulador<br />

independente. Ao que parece, o discurso de<br />

aumento do programa nuclear brasileiro não estará<br />

associado à criação de estruturas para garantir<br />

que toda a atividade nuclear se desenvolva evitando<br />

riscos à população e ao meio ambiente”.<br />

se sabe quais foram as reais consequências para as<br />

futuras gerações Acredita-se que os estudos foram<br />

dificultados e até mesmo impedidos para que não<br />

se soubesse os reais danos causados pelos Estados<br />

Unidos ao Japão, mesmo estando a guerra praticamente<br />

acabada e o país destruído.<br />

questões éticas<br />

Ex-trabalhadores da Nuclemon afirmam que a<br />

torta ll e o mesotório produzidos na Usam eram<br />

estocados no terreno de Interlagos e depois carretas<br />

levavam os produtos até Poços de Caldas, onde<br />

eram jogados na ribanceira. Um dos entrevistados<br />

mostra a cicatriz na barriga, perdeu um rim e tem<br />

muitos problemas de saúde. Mas enche os olhos<br />

de lágrimas quando conta que ia a Poços de Caldas<br />

para ganhar um “extra”, sem saber o alto preço<br />

que pagaria. Diz que o pior foi quando ficou<br />

sabendo que tipo de trabalho fazia, e que tipo de<br />

material jogou na ribanceira. “é triste pensar que<br />

posso ter prejudicado muita gente”. Este trabalhador<br />

é mais uma vítima do descaso com que o Projeto<br />

Nuclear Brasileiro é conduzido.<br />

Heitor Scalambrini, doutor em Energética da<br />

Université d’Aix-Marseille III e professor da Universidade<br />

Federal de Pernambuco, questiona se é<br />

ético deixar para as futuras gerações resolverem<br />

os problemas do lixo radioativo que nós produzimos.<br />

Ainda segundo Scalambrini, “o PNB nasceu<br />

na ditadura e até hoje depende de demandas<br />

de alguns setores das forças armadas, fascinados<br />

pelo poder que a energia nuclear lhes traz. Outros<br />

grupos de interesse que fazem “lobby” são os<br />

setores industriais “preocupados” com o risco de<br />

um apagão, grupos de cientistas, pelo prestígio e<br />

oportunidades de novas pesquisas e pelo comando<br />

do processo, os fornecedores de equipamentos<br />

e as empreiteiras, por motivos óbvios”.<br />

O professor Scalambrini acredita que uma matriz<br />

energética diversificada seria a solução para<br />

o País, inclusive para aproveitar todo o potencial<br />

de fontes alternativas que existem por aqui. Para<br />

ele, a energia nuclear talvez seja o futuro, mas<br />

ainda há muito o que estudar.<br />

Não se pode subestimar os riscos com segurança.<br />

Rogério Gomes acredita que o Programa Nuclear<br />

Brasileiro não está maduro, que corremos o risco<br />

de um acidente como o de Alcântara, próximo<br />

a usinas nucleares. Um estudo feito pela pesquisadora<br />

Geórgia Reis Prado concluiu que a população<br />

de Caetité, na Bahia, está 100 vezes mais exposta à<br />

contaminação por urânio que a média mundial.<br />

A lavra de urânio está associada a metais pesados.<br />

Segundo o pesquisador Lamego, um estudo<br />

realizado na área de mineração de urânio de<br />

Poços de Caldas indica que a “emissão de manganês<br />

era muito mais significativa, do ponto de<br />

vista da saúde humana, do que aquelas relativas<br />

aos elementos radioativos, que sofriam (e ainda<br />

sofrem) um rígido controle pela Comissão Nacional<br />

de Energia Nuclear”.<br />

O debate aberto e democrático deveria ser prérequisito<br />

para se decidir qual o tipo de energia queremos,<br />

e que sociedade queremos construir.<br />

custos muito altos<br />

Vendo a energia nuclear pela lógica do aquecimento<br />

global, ela parece perfeita, mas, quando<br />

colocamos na ponta do lápis toda a contabilidade<br />

e os impactos ambientais causados por ela desde<br />

a mineração até a destinação final de seus rejeitos,<br />

será que realmente estamos prontos para investir<br />

no nuclear?<br />

Nos Estados Unidos, a grande polêmica da<br />

construção do depósito definitivo no Estado de<br />

Nevada ainda não terminou. O governo dos Estados<br />

Unidos gastou, só com estudos prévios para<br />

definir qual seria o melhor local para o depósito,<br />

7 bilhões de dólares. Os custos da construção<br />

estão estimados em 58 bilhões, com vida útil de<br />

pelo menos 10 mil anos. Críticos ao projeto temem<br />

que o material possa escoar pelos campos<br />

ao redor da montanha e contaminar o meio ambiente,<br />

além do risco de se transportar o material<br />

altamente radioativo por longas distâncias. Caso<br />

o depósito da Montanha de Yucca não se concretize,<br />

os norte-americanos voltam à estaca zero:<br />

onde depositar seu lixo radioativo?<br />

Vazamentos estão por toda parte, até mesmo<br />

em um depósito no deserto do Estado de Washington.<br />

Colocar num ônibus espacial e enviar para<br />

outro planeta? Quais seriam as consequências se<br />

acontecesse um acidente com um ônibus espacial<br />

carregado de lixo radioativo? A NASA já teve dois<br />

sérios acidentes envolvendo ônibus espaciais.<br />

O tsunami que atingiu a Indonésia em 2004 removeu<br />

do fundo do mar da Somália, contêineres de<br />

lixo radioativo jogados ilegalmente em sua costa. A<br />

população da Somália sofreu com hemorragias em<br />

vários órgãos, sangramentos na boca, queimaduras<br />

de pele, além da contaminação das águas e do solo.<br />

Ainda existe a possibilidade que estas pessoas contaminadas<br />

possam desenvolver câncer e anomalias<br />

genéticas nas próximas décadas.<br />

De acordo com a médica Maria Vera de Oliveira,<br />

do Centro de Referência do Trabalhador-Santo<br />

Amaro, em São Paulo, “não existem níveis seguros<br />

de contato com a radiação”. Por estarem sempre<br />

ligados a militares, estes estudos são dificultados.<br />

Por mais que se diga que a energia nuclear<br />

deva ser usada para fins pacíficos, ela sempre estará<br />

muito próxima daqueles que fazem as guerras.<br />

No caso de Nagasaki e Hiroshima até hoje não Joelma Couto é jornalista.<br />

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Frei Betto<br />

ÁGUA COMO<br />

MERCADORIA<br />

O capitalismo mercantiliza os bens da natureza, os frutos do trabalho<br />

humano, todos os aspectos de nossa vida. Aprendemos na escola: 71% de nosso<br />

corpo são água, a mesma proporção existente em nosso planeta.<br />

Bebemos litros de água no decorrer do dia. Do velho e bom filtro? Não. Em geral,<br />

de garrafas pet vendidas em supermercados. Quem garante que a água engarrafada<br />

é mais potável que a filtrada em casa? A propaganda; ela faz nossa cabeça<br />

e direciona nossos hábitos.<br />

De olho no faturamento, empresas transnacionais procuram incutir na opinião<br />

pública a ideia da água como mercadoria de grande valor econômico, capaz<br />

de tornar-se uma fonte de renda para um país como o Brasil. Retira-se da água<br />

sua dimensão de direito humano, seu caráter vital, sua dimensão sagrada. Quem<br />

se opõe a esta ideologia é rotulado como “contrário ao progresso”. Porém, é na<br />

defesa da água como direito e bem comum que reside a possibilidade de salvarmos<br />

o planeta Terra – “Planeta-Água” – da desolação, e assegurarmos a vida das<br />

gerações futuras.<br />

O raciocínio da mercantilização da água é simples: tendo que pagar, a sua<br />

utilização será mais racional e cuidadosa. Ora, isso não implica incluir a água na<br />

categoria de mercadoria regida pelas leis do mercado.<br />

Este argumento tem sua parte de verdade – cuida-se melhor daquilo<br />

que é mais caro. As consequências, porém, podem ser graves se a água for regida<br />

pela lei da oferta e da procura. A cobrança pelo uso da água pode ser um mecanismo<br />

de gerenciamento desde que se estabeleçam preços diferenciados conforme<br />

a concessão de uso. Uma fábrica de cerveja retira do poço artesiano toda<br />

água que necessita, sem pagar nada por ela. Depois descarrega parte dessa água,<br />

agora poluída por detergentes e dejetos, no rio mais próximo. O lucro com a venda<br />

da cerveja é todo dela; a perda no lençol subterrâneo e a poluição do rio são<br />

da comunidade local.<br />

Uma boa gestão cobraria preço baixo pela água usada como insumo<br />

e alto sobre o esgoto industrial, de modo a obrigar a indústria a filtrar dejetos<br />

antes de lançá-los de volta ao rio. Também é preciso estabelecer preços diferenciados<br />

conforme o uso da água (consumo humano, esgoto, energia elétrica,<br />

produção industrial, agricultura irrigada, lazer etc.).<br />

Nas zonas urbanas já pagamos pelos serviços de captação, tratamento<br />

e distribuição da água, não pela água em si. A novidade é que, além dos<br />

serviços, deveremos pagar também pelo metro cúbico de água utilizada. Se este<br />

preço adicional vier a excluir alguém do acesso à água, tal medida será eticamente<br />

inaceitável.<br />

O princípio que obriga a quem usa, pagar, não pode ser aceito ao contrário:<br />

“quem não paga, não usa.” Não sendo a água uma mercadoria, mas bem<br />

de domínio público, o princípio só se aplica como norma reguladora de uso, seja<br />

quantitativa (quem usa mais água, paga mais), seja qualitativamente (quem usa<br />

para fins lucrativos paga mais do que quem usa para consumo pessoal). Se assim<br />

não for, a água deixará de ser direito de todos os seres vivos, criando-se um impasse<br />

ético e uma tragédia: a dos excluídos da água.<br />

Frei Betto é escritor, autor de Calendário do Poder (Rocco), entre outros livros.<br />

Cesar Cardoso<br />

Os<br />

tupInAMbás<br />

e a f o r m a ç å o d o n o v o<br />

m u n d o europeu<br />

Não foi por acaso que, em 1500, os Tupinambás<br />

saíram do porto do Rio de Janeiro e navegaram<br />

até as terras do Novo Mundo, batizando-as<br />

de Europa. Eles sabiam muito bem o que iam fazer<br />

por lá: levar o primeiro processo de globalização<br />

ao continente desconhecido.<br />

É verdade que de início se limitaram à<br />

retirada do Pau-Europa, mas com o ciclo da beterraba<br />

iniciaram a produção de açúcar, que exportaram<br />

para todo o Velho Mundo, desde a Argentina<br />

até o Canadá. Junto com o lucro vieram<br />

os conflitos com os índios europeus – franceses,<br />

ingleses, portugueses, espanhóis e os temidos<br />

holandeses, que se aliaram aos Xavantes quando<br />

estes invadiram o Nordeste da Europa em 1630,<br />

liderados por Juruna de Nassau e sua Companhia<br />

Xavante das índias Ocidentais.<br />

Nos anos 1700, para explorar o ouro descoberto<br />

no interior da Europa, os Tupinambás são<br />

obrigados a importar mão de obra estrangeira, já<br />

que a indolência do europeu o torna incapaz de<br />

trabalhar nas minas. É criado assim o tráfico negreiro<br />

para a Europa, que dura até 1888, quando<br />

os Tupinambás promulgam a Lei Áurea e dão<br />

liberdade a todos os escravos.<br />

No século XX, chegam as guerras de<br />

independência, com Churchill, De Gaulle, Stalin<br />

e outros líderes terroristas sacudindo uma Europa<br />

até então pacífica. E se no século XXI já não<br />

há mais colônias, há os populistas como Sarkozy<br />

e Berlusconi oferecendo milagres à população.<br />

Mas a dura realidade histórica é<br />

que nada disso altera o quadro do subdesenvolvimento<br />

europeu. Afinal, seria ele resultado de<br />

séculos de imperialismo tupinambá ou do inóspito<br />

clima frio do continente somado à preguiça<br />

natural dos índios, sejam eles ingleses, portugueses,<br />

franceses ou alemães?<br />

Cesar Cardoso é historiador e leciona na University<br />

of Tchucarramãe.<br />

abril 2010 caros amigos<br />

-freibeto+cesar_160.indd 23 12.07.10 14:47:35<br />

23


ensaio Janaina Wagner<br />

Chiang Dao. Interior norte da Tailândia, 750 km da<br />

capital do país, Bangcoc.<br />

Em meio a tantos templos, mulheres “girafas”, orquidários e turistas,<br />

a paisagem interiorana acaba se parecendo com alguma<br />

outra qualquer região de Terceiro Mundo: pobre, muito pobre.<br />

A escola aqui fotografada atende aos pequenos dos vilarejos de<br />

seu entorno. São crianças que só poderão frequentar uma verdadeira<br />

escola tailandesa após terem aprendido a ler e a escrever<br />

na língua oficial de seu país. A escola não tem energia elétrica,<br />

água canalizada e dispõe de escasso material escolar. As crianças<br />

fazem o que sabem melhor: brincam. Pneus, bambus, troncos<br />

de árvores, latões de lixo e restos de construção formam o parquinho<br />

dos sonhos. Sorriem, fazem graça, dizem que são felizes.<br />

Brincadeira de criança? Brincadeira de gente grande.<br />

-Ensaio_160.indd 24 02.07.10 17:36:13


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26<br />

Trabalhador resgatado da<br />

escravidão em fazenda de<br />

Eldorado dos Carajás, Pará.<br />

caros amigos julho 2010<br />

Lúcia Rodrigues<br />

Agronegócio escrAvizA<br />

milhares de trabalhadores no<br />

campo<br />

As culturas da cana, soja e algodão, a pecuária, as<br />

carvoarias e o desmatamento da Floresta Amazônica<br />

são as atividades preferidas dos exploradores do<br />

trabalho escravo. Fotos Leonardo Sakamoto/Repórter Brasil<br />

-Escravidao_160.indd 26 02.07.10 18:21:03


a impressão que se tem é a de que se está<br />

entrando no túnel do tempo e retornando<br />

alguns séculos no calendário gregoriano.<br />

Aos olhos dos mais desavisados, pode parecer<br />

estranho e até mesmo irreal que ainda hoje<br />

existam pessoas sendo submetidas à escravidão<br />

em nosso país. Mas infelizmente essa gravíssima<br />

violação aos direitos humanos é uma dura realidade<br />

no Brasil do século 21.<br />

Milhares de pessoas ainda são submetidas a<br />

trabalho forçado e a condições degradantes no<br />

campo e na cidade. Relatório da Organização Internacional<br />

do <strong>Trabalho</strong> (OIT), de 2005, estimava<br />

em 25 mil o número de trabalhadores mantidos<br />

em condições análogas a de escravos no<br />

país. Destes, 80% atuavam na agricultura e 17%,<br />

na pecuária.<br />

Os números do organismo internacional, no<br />

entanto, parecem estar subdimensionados se levarmos<br />

em conta o total de trabalhadores libertados<br />

pelos agentes do governo federal na gestão<br />

do presidente Lula. De 2003 a maio de 2010,<br />

foram retirados da condição de escravos 31.297<br />

pessoas, segundo dados do Ministério do <strong>Trabalho</strong><br />

e Emprego.<br />

A prática criminosa não está restrita apenas ao<br />

Brasil e se espalha pelos continentes. A OIT detectou<br />

no mesmo ano, que mais de 12 milhões de trabalhadores<br />

eram vítimas da sanha de latifundiários<br />

e empresários inescrupulosos pelo mundo.<br />

O fenômeno da globalização nos anos 90 foi<br />

decisivo para abrir as fronteiras dos países ao capitalismo<br />

em escala mundial. As transações comerciais<br />

e financeiras disseminaram ainda mais<br />

a busca pelo lucro rápido e exponencial. A maneira<br />

encontrada por esses patrões, para reduzir<br />

o preço final de seus produtos, se deu pela drástica<br />

redução do custo-trabalho.<br />

Os escravagistas do século 21 não prendem<br />

mais seus trabalhadores ao tronco e nem infligem<br />

chibatadas. A escravidão contemporânea<br />

tem suas particularidades, mas nem por isso esses<br />

patrões deixam de ser considerados escravocratas.<br />

O artigo 149 do Código Penal brasileiro<br />

é absolutamente claro na definição do que seja<br />

praticar escravidão nos dias de hoje.<br />

“Reduzir alguém a condição análoga à de escravo,<br />

quer submetendo-o a trabalhos forçados<br />

ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições<br />

degradantes de trabalho, quer restringindo,<br />

por qualquer meio, sua locomoção em razão<br />

de dívida contraída com o empregador ou preposto”,<br />

afirma o texto penal.<br />

Apesar de soar extemporânea, a prática escravista<br />

está arraigada no cotidiano brasileiro mais<br />

do que se pode imaginar. “É uma mentalidade da<br />

elite econômica e política do país”, afirma o se-<br />

nador José Nery (PSOL-PA), que preside a Frente<br />

Parlamentar Mista pela Erradicação do <strong>Trabalho</strong><br />

Escravo no Brasil.<br />

Segundo o senador, a bancada ruralista no<br />

Congresso Nacional impede há 15 anos a aprovação<br />

de uma Proposta de Emenda à Constituição<br />

(PEC) para coibir a prática criminosa. Neste momento,<br />

tramita na Câmara dos Deputados a PEC<br />

438 em defesa da erradicação do trabalho escravo<br />

no país. A PEC 438 já foi aprovada em primeira<br />

e segunda votação no Senado e em primeira,<br />

na Câmara, e aguarda a ida ao plenário para a<br />

segunda votação. O dispositivo é necessário para<br />

que a matéria possa se transformar em lei.<br />

O sucesso de sua aprovação ainda este ano está<br />

ameaçado. “Apresentamos 280 mil assinaturas ao<br />

presidente da Câmara dos Deputados (Michel Temer)<br />

e a todos os lideres partidários pedindo a urgência<br />

na votação da PEC. Mas as lideranças do<br />

governo estão criando várias dificuldades. Dizem<br />

que não querem discutir e votar matérias polêmicas<br />

no período pré-eleitoral. Ora é nossa obrigação<br />

aprovar toda e qualquer matéria que diga respeito<br />

à dignidade e ao bem-estar das pessoas. Não<br />

concordo com esse tipo de atitude que impede a<br />

legislação de avançar no combate ao trabalho escravo<br />

no Brasil”, ressalta Nery.<br />

O parlamentar quer pelo menos incluir a matéria<br />

na pauta de votação da Câmara logo após o<br />

término do segundo turno das eleições. “Estamos<br />

tentando arrancar do presidente da Câmara e dos<br />

líderes partidários esse compromisso.”<br />

O secretário de políticas sociais da Central<br />

Única dos Trabalhadores (CUT), Expedito Solaney,<br />

é menos otimista que Nery. O sindicalista<br />

considera que a PEC só será votada na próxima<br />

legislatura. “Entre por na pauta e não aprovar é<br />

melhor jogar para a frente. É melhor recuar taticamente.<br />

O Congresso é muito conservador, a<br />

maioria é ruralista”, afirma.<br />

Pelo texto da PEC 438, as propriedades rurais<br />

e urbanas que forem flagradas com trabalhadores<br />

escravos serão expropriadas para efeito<br />

de reforma agrária no campo e destinadas a<br />

programas sociais de moradia popular em áreas<br />

urbanas.<br />

O arco de alianças eleitoral e da base de sustentação<br />

do governo, além de interesses econômicos<br />

dos parlamentares, impede que a maté-<br />

Para Dom Tomás Balduino, o trabalho escravo ainda não<br />

foi erradicado do Brasil porque mexe com os interesses<br />

dos aliados políticos do governo Lula.<br />

A bancada ruralista no Congresso Nacional impede<br />

há 15 anos a aprovação de uma Proposta de Emenda<br />

à Constituição para coibir a prática da escravidão.<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

ria avance com celeridade em Brasília. Apesar de<br />

ninguém defender publicamente o trabalho escravo,<br />

na prática ele é tolerado.<br />

O ex-presidente da Câmara, deputado Inocêncio<br />

de Oliveira (PR-PE), que teve propriedades<br />

flagradas por auditores fiscais do trabalho com<br />

a prática da escravidão, não sofreu nenhum tipo<br />

de punição até hoje. Oliveira chegou a ocupar algumas<br />

vezes o cargo de presidente da República<br />

durante o mandato de Itamar Franco.<br />

Mais recentemente o senador João Ribeiro<br />

(PR-TO) também foi acusado de se utilizar de trabalho<br />

escravo dentro de sua propriedade. O Ministério<br />

do <strong>Trabalho</strong> e Emprego não divulga mais<br />

detalhes sobre o andamento do caso, apenas afirma<br />

que informações sobre pessoas físicas e jurídicas<br />

só podem ser divulgadas após o término do<br />

processo administrativo.<br />

O Ministério também mantém uma lista com<br />

o nome de quem usa o trabalho escravo no País.<br />

A lista suja, como é conhecida a relação de escravagistas,<br />

é atualizada semestralmente e pode<br />

ser consultada em http://www.mte.gov.br/trab_<br />

escravo/lista_suja.pdf<br />

CPT X laTifúNdio<br />

Para o bispo emérito de Goiás e membro da<br />

Comissão Pastoral da Terra (CPT), Dom Tomás<br />

Balduino, o trabalho escravo ainda não foi erradicado<br />

do Brasil porque mexe com os interesses<br />

dos aliados políticos do governo Lula. O mesmo<br />

argumento é utilizado para explicar a não realização<br />

da reforma agrária no país.<br />

“Por que não há reforma agrária? Porque<br />

mexe na terra dos aliados do governo. É uma lógica<br />

fácil de entender. O trabalho escravo cresce<br />

com o agronegócio, que é a menina dos olhos<br />

da política governamental. Apesar de ter apresentado<br />

um plano de erradicação para o trabalho<br />

escravo, o governo continua elogiando os<br />

usineiros, chamando-os de heróis. A concentração<br />

do capital em poucas mãos com o apoio governamental<br />

está criando uma desigualdade social<br />

brutal. O Brasil é o segundo país do mundo<br />

em concentração de terra, em latifúndio. Só perde<br />

para o Paraguai”, critica o religioso.<br />

Dom Tomás cita o caso da Cosan, holding do setor<br />

sucroalcooleiro, que utiliza trabalho escravo em<br />

suas usinas, para demonstrar a falta de compromisso<br />

do agronegócio com a dignidade humana.<br />

A Cosan é a maior empresa produtora de açúcar<br />

e álcool do mundo. É proprietária das marcas<br />

do açúcar União e Da Barra. Em dezembro de<br />

2008, a companhia também passou a controlar a<br />

operação de ativos da distribuição de combustíveis<br />

da Esso. E assumiu o controle da produção<br />

e distribuição dos lubrificantes Mobil. Além dos<br />

setores de alimento e combustíveis, a Cosan tam-<br />

julho 2010 caros amigos<br />

-Escravidao_160.indd 27 02.07.10 18:21:03<br />

27


28<br />

bém atua na área de produção de energia elétrica<br />

a partir do bagaço da cana de açúcar.<br />

O exemplo de pujança que a empresa tenta<br />

demonstrar mascara uma realidade nada agradável.<br />

A Cosan engrossa a lista suja de empresas<br />

que utilizam trabalho escravo em suas unidades,<br />

divulgada pelo Ministério do <strong>Trabalho</strong> e Emprego.<br />

A companhia ingressou no ranking escravista<br />

no final do ano passado. Seus advogados se<br />

apressaram e obtiveram liminar na Justiça para<br />

retirá-la da lista suja. O Ministério tenta agora<br />

cassar a liminar expedida, para inseri-la novamente<br />

na lista dos escravagistas.<br />

Ícone do desrespeito às normas mais elementares<br />

da dignidade humana, a Cosan é responsável,<br />

em parceria com a ExxonMobil, pelo patrocínio<br />

do principal prêmio do jornalismo brasileiro:<br />

o Prêmio Esso.<br />

A empresa que pratica escravidão em suas<br />

propriedades também tem em seu Conselho de<br />

Administração um ex-ministro da Fazenda. Maílson<br />

da Nóbrega integra seu conselho administrativo<br />

desde dezembro de 2007.<br />

RePRessão<br />

Os auditores fiscais do trabalho sentem na<br />

pele o peso da repressão dos latifundiários escravistas<br />

enfurecidos com aqueles que atravessam<br />

seus caminhos. A presidente do Sindicato<br />

Nacional dos Auditores Fiscais do <strong>Trabalho</strong> (Sinait),<br />

Rosangela Silva Rassy, relembra a chacina<br />

de Unaí, município mineiro, onde quatro funcionários<br />

do Ministério <strong>Trabalho</strong> foram assassinados,<br />

a mando do prefeito da cidade, Antério Mânica<br />

(PSDB), quando inspecionavam terras de<br />

sua propriedade, em 28 de janeiro de 2004.<br />

Até o momento ninguém foi julgado. “É um<br />

negócio difícil de a gente entender. Ninguém foi<br />

punido. Foram nove indiciados, mas só dois estão<br />

presos (os acusados de serem os executores).<br />

Os mandantes foram os primeiros a serem soltos,<br />

dois empresários: o prefeito e seu irmão. Com<br />

certeza, se valeu do cargo. Inclusive o processo<br />

dele corre apartado dos demais, porque se beneficia<br />

da imunidade parlamentar”, revela Rosangela.<br />

Logo após os crimes de Unaí, as fiscalizações<br />

foram suspensas naquela área por medida de segurança.<br />

“Ninguém ia lá. Isso é tudo o que o mau<br />

empresário quer. Há uma certeza de impunidade”,<br />

enfatiza a sindicalista.<br />

Depois desses assassinatos, o Congresso aprovou<br />

o porte de arma para os auditores fiscais do<br />

caros amigos julho 2010<br />

Francisco, 74 anos, libertado durante fiscalização em fazenda em Marabá (PA).<br />

trabalho. Mas para que a lei entre em vigor, precisa<br />

ser regulamentada pelo Poder Executivo. “É uma lei<br />

inócua, porque até hoje não foi regulamentada.”<br />

Para o delegado da Polícia Federal e chefe da<br />

Divisão de Direitos Humanos do órgão, Delano<br />

Cerqueira Bunn, os assassinatos praticados em<br />

Unaí demonstram que o crime organizado está<br />

enraizado no trabalho escravo.<br />

“Estamos mapeando as rotas dessas organizações<br />

criminosas que praticam crimes financeiros,<br />

lavagem de dinheiro, formação de quadrilha. A<br />

realidade do trabalho escravo está presente em<br />

todas as regiões do país, tanto urbano quanto rural.<br />

É rentável para o grande empresário e inversamente<br />

proporcional a imagem do Brasil no cenário<br />

internacional.”<br />

O delegado Delano destaca a força política exercida<br />

pelos fazendeiros nessas regiões. “São pessoas<br />

influentes que têm poder de mando na política lo-<br />

“O combate à escravidão depende de se acabar com<br />

a extrema pobreza, qualificar as pessoas, dar educação<br />

e reforçar a punição aos empresários”.<br />

cal e nas estruturas de segurança pública.”<br />

Rosangela também critica o número reduzido<br />

de auditores do trabalho para a fiscalização<br />

de todo o país: 2.899. O sindicato da categoria<br />

defende a realização de concursos públicos<br />

para resolver o problema. “Hoje existem 750 cargos<br />

vagos, porque as pessoas morrem, se aposentam.<br />

No mínimo o concurso deveria preencher<br />

essas vagas.” O Estado do Pará, que é recordista<br />

em trabalho escravo, possui apenas 105 auditores<br />

fiscais.<br />

Para o secretário executivo da Comissão Nacional<br />

Para a Erradicação do <strong>Trabalho</strong> Escravo<br />

(Conatrae), vinculada à Secretaria Especial de<br />

Direitos Humanos da Presidência da República,<br />

José Guerra, a pobreza faz com que o trabalhador<br />

aceite qualquer coisa e se torne presa fácil de<br />

aliciadores. “Esses trabalhadores derrubam matas<br />

para fazer pasto, para fazer carvão, cortam<br />

de cana, lidam com o gado, arrancam tocos, fazem<br />

o trabalho sem qualificação”, diz.<br />

Ele considera que o combate a essa prática depende<br />

de “se acabar com a extrema pobreza, qualificar<br />

as pessoas, dar educação e reforçar a punição<br />

aos empresários – para que não acreditem<br />

que vale a pena explorar o trabalho escravo.”<br />

nÃo coMPre ProDUTos FeiTos Por T<br />

-Escravidao_160.indd 28 02.07.10 18:21:04


capital paulista abriga escravidão<br />

Prática criminosa cresce no coração do capitalismo<br />

com utilização de mão de obra sulamericana na<br />

indústria de confecção.<br />

Se engana quem pensa que o trabalho escravo<br />

é uma característica apenas dos rincões mais<br />

afastados das áreas urbanas. Apesar de um maior<br />

número de trabalhadores escravizados se encontrarem<br />

na zona rural, a prática criminosa se propaga<br />

também na principal cidade do país.<br />

A indústria da confecção desponta como a<br />

principal área de absorção da mão de obra escrava<br />

na cidade. A Associação Brasileira da Indústria<br />

Têxtil calcula que a demanda por roupa<br />

cresce 3% ao ano. Mas assim como no campo,<br />

não há estatísticas oficiais que projetem com segurança<br />

o número de pessoas nessas condições,<br />

embora se saiba que não são poucas.<br />

A quase totalidade desses trabalhadores vem<br />

de regiões empobrecidas da Bolívia e do Paraguai,<br />

castigadas no passado recente por décadas<br />

de ditadura feroz. “Todos os dias chegam ao Brasil<br />

de três a cinco ônibus lotados de pessoas para<br />

trabalharem nessas oficinas”, afirma a Defensora<br />

Pública Federal, Daniela Muscari Scacchetti.<br />

A precariedade das condições de vida em seus<br />

países de origem e a falta de instrução escolar as<br />

torna presas fáceis nas mãos de capitalistas escravagistas.<br />

Apesar de os atravessadores serem<br />

as figuras mais visíveis aos olhos do trabalhador<br />

são os grandes magazines os responsáveis pela<br />

prática criminosa.<br />

A rede de lojas Marisa, por exemplo, já levou 49<br />

autos de infração dos auditores fiscais do trabalho<br />

e foi autuada em R$ 600 mil. “Mas a gente acredita<br />

que a imensa maioria da produção têxtil paulista, o<br />

que costuma ser comercializado por C&A, Renner,<br />

Riachuelo, Pernambucanas, griffes como a Collins,<br />

é resultado de mão de obra escrava de trabalhadores<br />

sulamericanos”, conta o chefe da Seção da Fiscalização<br />

do <strong>Trabalho</strong> da Superintendência Regional<br />

de São Paulo, Renato Bignami.<br />

Além de jornadas extenuantes de trabalho,<br />

precarização das condições de trabalho e do cerceamento<br />

à liberdade, com ameaças a vida do<br />

trabalhador e de seus familiares no país de origem,<br />

o valor pago ao trabalhador é irrisório. Para<br />

fazer uma camiseta, recebe em torno de R$ 0,40 a<br />

R$ 0,50. Um casaco mais elaborado que leva até<br />

três horas para ficar pronto pode render no máximo<br />

R$ 1,50. A mesma peça é vendida na loja<br />

de departamento por R$ 300.<br />

A expropriação da mais valia do trabalhador é<br />

avassaladora. Quando flagradas praticando a escravização,<br />

essas empresas alegam que não têm<br />

controle sobre o fluxo de produção. Afirmam que<br />

o trabalho é terceirizado e que desconhecem as<br />

condições em que ocorre. “Nossa tese é de que no<br />

mínimo (a empresa) é solidária, quando não diretamente<br />

responsável. Mas essa é uma discussão<br />

jurídica quase eterna e nova. A legislação não é<br />

absolutamente clara, nos casos de terceirização<br />

e subcontratação a lei é quase ausente”, enfatiza<br />

Renato.<br />

A precariedade das instalações de trabalho<br />

dessas oficinas remonta ao início do século passado.<br />

Há ambientes improvisados onde funciona<br />

a oficina e existe o espaço da cama. O risco<br />

de acidentes é iminente. As condições de segurança<br />

e saúde são péssimas. As oficinas de costura<br />

têm o risco adicional de sofrer um incêndio,<br />

por causa de muita fiação exposta e pouca ventilação.<br />

Descumprem completamente as normas<br />

do Ministério do <strong>Trabalho</strong>. O mais recente incêndio<br />

ocorreu, em fevereiro deste ano, em Bangladesh.<br />

Os 21 trabalhadores mortos produziam<br />

para a sueca H&M.<br />

As crianças também sofrem muito nessas condições<br />

de precariedade total. Geralmente ficam<br />

presas dentro de quartos sem lazer e educação,<br />

enquanto os pais trabalham nas máquinas. Quando<br />

conseguem escapar, se arriscam por entre as<br />

polias das máquinas. Se fazem alguma travessura<br />

são punidas muitas vezes pelo dono da oficina.<br />

“No caso das lojas Marisa tinha uma mãe com<br />

um bebê no colo costurando e dando de mamar<br />

ao mesmo tempo. Outro caso envolvendo o magazine<br />

era o de uma menininha com cabelo comprido<br />

perto da polia (da máquina) que poderia<br />

puxá-lo (causando um grave acidente)”, relata o<br />

chefe da fiscalização da Superintendência Regional<br />

do <strong>Trabalho</strong> de São Paulo.<br />

A denúncia que resultou na autuação da Marisa<br />

partiu do Sindicato das Costureiras. A fiscalização<br />

foi até ao local e encontrou a produção<br />

destinada para a loja de departamentos com as<br />

etiquetas. “A sociedade precisa saber disso”, destaca<br />

a defensora Daniela ao se referir a publicização<br />

dos nomes das empresas que se valem do<br />

trabalho escravo.<br />

TrABALHo escrAvo<br />

ToRNeiRa feChada<br />

Para o coordenador da Repórter Brasil, ONG de<br />

defesa dos direitos humanos, Leonardo Sakamoto,<br />

uma forma eficaz de combate ao trabalho escravo<br />

é informar o consumidor sobre a origem do produto.<br />

“O governo tem de garantir a rastreabilidade do<br />

produto. Sem a rastreabilidade da cadeia produtiva<br />

a campanha é útil, mas pouco eficaz”, diz.<br />

A lista suja do Ministério do <strong>Trabalho</strong> com<br />

o nome das empresas envolvidas em trabalho<br />

escravo é hoje uma das principais medidas de<br />

combate à prática, porque traz desconforto e<br />

preocupação aos maus patrões. Eles perdem financiamento<br />

e contratos.<br />

Os cerca de 200 signatários do pacto pela erradicação<br />

do trabalho escravo no país, assinado<br />

em 2005, cortam a compra dos produtos dessas<br />

empresas escravistas.<br />

Exemplo disso foi a atitude dos hipermercados<br />

ao cancelaram a compra de açúcar União e<br />

Da Barra, da Cosan, no início do ano porque a<br />

empresa utiliza trabalho escravo em suas plantas.<br />

Leonardo destaca que desde 2004 os bancos<br />

públicos federais não financiam empresas que<br />

usam trabalho escravo.<br />

Mas nem todas as empresas estão dispostas<br />

a aderir ao pacto da civilidade. “A Teka, Karsten,<br />

Hering, Marisol, que têm trabalho escravo<br />

em sua cadeia produtiva, não assinaram (o documento).”<br />

A Gerdau e todas as montadoras também<br />

não assinaram o pacto. “Há trabalho escravo<br />

na cadeia do aço”, enfatiza o coordenador da<br />

Repórter Brasil.<br />

O chefe da Seção de Fiscalização do <strong>Trabalho</strong><br />

destaca que na área de construção civil também<br />

vem sendo detectada a presença de trabalhadores<br />

em regime análogo ao escravo. “Já ouvi colegas<br />

comentando que empreiteiras que estavam trabalhando<br />

no PAC tinham trabalho escravo.”<br />

A sociedade também precisa fazer a sua parte<br />

para eliminar essa chaga. Parcela de responsabilidade<br />

pela perpetuação dessa prática também pode<br />

ser debitada na conta dos consumidores. Muitas<br />

vezes a própria demanda da população acaba por<br />

conduzir a esse tipo de situação. Renato explica<br />

que a moda exibida nas novelas acaba pressionando<br />

por uma produção rápida e barata.<br />

“Sai na novela uma roupa indiana, no dia<br />

seguinte a consumidora ou o consumidor quer<br />

uma, igual. A demanda por esse tipo de roupa faz<br />

com que o empresário corra para produzir o mais<br />

rápido possível. E produção rápida só é conseguida<br />

com precarização da mão de obra. Não tem<br />

outro modelo por enquanto”, conclui.<br />

O problema é falta uma ação coordenada<br />

das autoridades, serviços públicos e sociedade<br />

civil para erradicar essa brutal violação dos direitos<br />

humanos.<br />

Lúcia Rodrigues é jornalista<br />

luciarodrigues@carosamigos.com.br<br />

julho 2010 caros amigos<br />

-Escravidao_160.indd 29 02.07.10 18:21:04<br />

29


30<br />

caros amigos julho 2010<br />

Tatiana Merlino<br />

Fechando o fosso entre<br />

a pobreza e a<br />

universidade<br />

Cursinhos<br />

populares<br />

proporcionam<br />

o acesso à<br />

educação<br />

superior no Brasil<br />

para estudantes<br />

de baixa renda<br />

imagine uma sala de cursinho pré-vestibular.<br />

Imagine o perfil dos alunos que estudam ali.<br />

Provavelmente, a maioria das pessoas pensaria<br />

em jovens brancos, de classe média. Esse seria<br />

o cenário dos cursos preparatórios para o ensino<br />

superior não fosse a existência de cursinhos<br />

pré-vestibular populares.<br />

Surgidos a partir da década de 1990 com o<br />

objetivo de auxiliar na democratização do acesso<br />

à universidade, tais cursinhos ajudam jovens<br />

(e não tão jovens) de baixa renda a conquistarem<br />

o sonho do diploma de uma universidade.<br />

De acordo com Henrique Nagao Hamada, coordenador<br />

do Cursinho da Psico, ligado à Faculdade<br />

de Psicologia da Universidade de São Paulo<br />

(USP), “os cursinhos populares realizam um<br />

trabalho de inserção de jovens e adultos de baixa<br />

renda em universidades públicas, partindo do<br />

princípio do direito à educação. Eles ajudam a diminuir<br />

o abismo existente entre essas pessoas e<br />

as universidades públicas. Também auxiliam na<br />

democratização do acesso à universidade como<br />

medida paliativa para uma transformação maior<br />

na educação brasileira”.<br />

-Tatiana_160.indd 30 02.07.10 17:09:49


Hamada explica que essas instituições foram<br />

criadas num contexto histórico marcado pelo “sucateamento<br />

do ensino público e mercantilização<br />

da educação privada”. O vestibular, por sua vez,<br />

“tem se tornado cada vez mais uma barreira de seletividade<br />

econômica, que desconsidera as condições<br />

sociais concretas de jovens populares”.<br />

Para ele, há uma suposta objetividade oferecida<br />

pelos exames de admissão, assumidos como<br />

um instrumento igual para todos aqueles aptos<br />

a prestá-los. “Como fruto desse processo, observamos<br />

a naturalização de desigualdades social e<br />

historicamente produzidas”.<br />

Processo seletivo<br />

Em muitos casos, os cursinhos populares são<br />

fundados por iniciativa de professores, grêmios<br />

ou centros acadêmicos das próprias universidades,<br />

a exemplo do Cursinho da Poli, de iniciativa<br />

da Escola Politécnica da USP, e o Cursinho<br />

Popular da UFSC (Universidade Federal de Santa<br />

Catarina). Há, também, os oferecidos por movimentos<br />

sociais, como a Educafro (Educação e<br />

Cidadania de Afro-descendentes e Carentes) e a<br />

Uneafro (União de Núcleos da Educação Popular<br />

para Negros e Classe Trabalhadora).<br />

Porém, nem todos são absolutamente gratuitos,<br />

a exemplo dos que não possuem instituições<br />

responsáveis por sua manutenção. Nesses casos,<br />

suas estruturas são garantidas por meio de pagamento<br />

de taxas simbólicas. Em alguns, os professores<br />

são estudantes voluntários, em outros,<br />

recebem uma “ajuda de custo” pelo trabalho realizado.<br />

Para assegurar que os inscritos sejam pessoas<br />

de baixa renda, a admissão é feita após um<br />

processo seletivo em que se avalia a condição socioeconômica<br />

do candidato.<br />

O perfil dos alunos atendidos pela Uneafro é<br />

semelhante ao de Anderson Lima da Silva, de<br />

21 anos. Morador do bairro Pedreira, na zona<br />

sul de São Paulo, o jovem estuda no cursinho da<br />

entidade há oito meses. Entre suas opções para<br />

o vestibular, estão geografia, ciências sociais ou<br />

serviço social.<br />

Filho de pernambucanos que vieram tentar<br />

a vida em São Paulo, o rapaz, além de aluno,<br />

é voluntário na secretaria do cursinho. “No começo,<br />

meus pais não aceitavam, porque diziam<br />

que eu tinha que dar preferência para trabalho<br />

remunerado, que isso não ia encher barriga”, relata.<br />

Filho de mãe faxineira e pai pedreiro, Anderson<br />

acredita que o cursinho ajuda “na inclusão<br />

das pessoas que vêm da base”. Segundo ele,<br />

o foco da instituição é preparar os alunos para<br />

as universidades públicas federais e estaduais<br />

“que não foram feitas para nós, negros, trabalhadores<br />

e toda essa massa das bases”.<br />

Bairros Periféricos<br />

O cursinho da Uneafro é organizado em núcleos.<br />

Cada um deles é responsável por uma unidade<br />

do curso. São 42 espalhados pelo Estado de<br />

São Paulo, em cidades como Atibaia, Bragança<br />

Paulista, Campinas, Ribeirão Preto, Jundiaí e Piracicaba.<br />

Na capital paulista, há cursos organizados<br />

em bairros periféricos como Parque São Rafael,<br />

Jardim São Francisco e Penha.<br />

Na região central, está o núcleo que Anderson<br />

frequenta, localizado na rua da Abolição. A maioria<br />

dos cursos da Uneafro é realizada aos fins de<br />

semana, com poucas exceções, entre elas, o frequentado<br />

por Anderson, que funciona de segunda<br />

a sexta-feira, das 19h às 22h45. Os demais são aos<br />

sábados, das 8h às 17h. “Cada núcleo pode cobrar<br />

no máximo R$ 20 dos alunos, variando de acordo<br />

com as necessidades”, explica Vanessa Cristina do<br />

Nascimento, coordenadora da Uneafro.<br />

Como os professores são voluntários, o valor<br />

cobrado dos alunos é revertido para o lanche oferecido<br />

no intervalo das aulas, para a condução<br />

dos professores e para a manutenção do núcleo,<br />

formado por quatro ou cinco coordenadores.<br />

Segundo Vanessa, a proposta do cursinho é<br />

oferecer, além do conteúdo cobrado no Enem<br />

(Exame Nacional do Ensino Médio) e no vestibular,<br />

formação política. “Discutimos temas que<br />

estão na mídia. A gente dá a versão diferente do<br />

que a Globo divulga. Estamos formando alunos<br />

críticos”. Tais aulas, explica, têm a mesma carga<br />

horária que as disciplinas tradicionais, “pois não<br />

adianta o aluno ser craque em matemática se ele<br />

não é politizado”. Porém, ela garante que são cobradas<br />

todas as matérias.<br />

formação Política<br />

O incentivo à formação político-cultural está<br />

presente em muitos cursinhos populares, e é uma<br />

das características que os diferem dos cursinhos comerciais.<br />

“A diferença entre o popular e o comercial<br />

está basicamente no valor e nos objetivos de cada<br />

um: o comercial tende a ter suas atividades voltadas<br />

quase exclusivamente para os vestibulares, enquanto<br />

os populares tendem a oferecer, além da<br />

preparação para os vestibulares, um olhar voltado<br />

para a formação cidadã”, explica Gilberto Alvarez<br />

Giusepone Jr., diretor-geral do Cursinho da Poli.<br />

“Os cursinhos populares ajudam a diminuir<br />

o abismo existente entre estudantes de baixa<br />

renda e as universidades públicas”.<br />

“Os pré-vestibulares populares não funcionam apenas<br />

como formadores de candidatos aptos a passar no<br />

vestibular, mas também como questionadores do modelo<br />

excludente de educação do País”.<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

Esse aspecto foi preponderante para João Victor<br />

Pavesi de Oliveira na hora da escolha do curso<br />

pré vestibular. “Comecei a fazer o cursinho<br />

da Acepusp [Associação Cultural de Educadores<br />

e Pesquisadores da USP, criado por um grupo de<br />

ex-alunos da Universidade] por uma questão política.<br />

O lado financeiro também pesou, mas não<br />

foi o decisivo”.<br />

Ao final do ano, João foi aprovado no vestibular<br />

da USP, no curso de Geografia. Meses depois,<br />

passou a trabalhar como professor plantonista<br />

do cursinho e, depois, como professor. O<br />

jovem também lecionou nos cursinhos pré vestibulares<br />

da Poli e Psico, e acredita que a existência<br />

de cursinhos populares é muito relevante,<br />

por questionarem o problema do acesso à educação<br />

pública. “Mas, para que ele seja efetivo, tem<br />

que ter como plano estratégico o seu fim, que é<br />

o acesso universal à educação”.<br />

Assim, os cursinhos populares não funcionam<br />

apenas como formadores de candidatos aptos a<br />

passar no vestibular, mas também como questionadores<br />

do modelo excludente de educação do<br />

País. “A gente pressiona por políticas públicas”,<br />

afirma Vanessa, da Uneafro. “Um dos desafios é<br />

buscar participação popular ativa na reformulação<br />

e no desenvolvimento de vias alternativas de<br />

acesso à universidade”, elucida Hamada.<br />

Por conta dessas concepções, parte dos cursinhos<br />

se autodenomina pré-universitário, ao invés<br />

de pré-vestibular. “Nossa proposta não é apenas<br />

preparar os alunos para as provas seletivas<br />

das universidades, mas levar os jovens a terem<br />

consciência de sua importância na formação da<br />

sociedade”, explica Giusepone Jr. Para Hamada,<br />

“essa distinção permite assumirmos o vestibular<br />

não como um fim em si (foco exclusivo de nossos<br />

esforços), mas como um meio (se não obstáculo)<br />

para algo maior: a inserção e relação dos<br />

estudantes com a universidade”.<br />

Para manter o debate político, a Uneafro realiza<br />

encontros de formação. Uma vez ao mês,<br />

prepara uma aula pública. “Pegamos lousa e carteira<br />

e vamos para lugares como a Praça da Sé<br />

para fazermos uma aula ao ar livre. É uma maneira<br />

de debater o modelo de educação”. O Cursinho<br />

da Psico mantém um espaço chamado de<br />

Arena, onde, periodicamente, ocorrem rodas de<br />

debate, que servem como exercício de argumentação<br />

e articulação entre os alunos.<br />

UNiversidade PúBlica<br />

Os cursinhos populares incentivam os alunos<br />

a ingressarem em universidades públicas. No entanto,<br />

“como a gente sabe que eles vêm do ensino<br />

público, que é muito defasado, e, pela realidade<br />

de estudarem apenas aos sábados, não dá<br />

julho 2010 caros amigos<br />

-Tatiana_160.indd 31 02.07.10 17:09:51<br />

31


32<br />

para comparar com o aluno que está estudando<br />

regularmente”, diz Vanessa. Entre os estudantes,<br />

há os recém-egressos do ensino médio e também<br />

aqueles que terminaram a escola há mais de<br />

10 anos. “Então, não há limite de faixa etária”.<br />

Para os mais velhos e “com mais pressa de entrar<br />

na faculdade”, a Uneafro tem convênio com faculdades<br />

particulares que oferecem bolsa de estudos,<br />

conta a coordenadora do cursinho. “Para<br />

esse perfi l de aluno, temos ações afi rmativas”.<br />

Segundo Vanessa, entre os que frequentam<br />

o cursinho, a maioria é proveniente de famílias<br />

cujos membros não possuem ensino superior. “E<br />

os coordenadores são pessoas que foram alunos<br />

há alguns anos e que, como contrapartida à ajuda<br />

que tiveram, abrem um núcleo ou ajudam na<br />

coordenação de um já existente”.<br />

Entre as histórias de alunos, a coordenadora<br />

gosta de uma em especial. A de uma empregada<br />

doméstica de Bragança Paulista, “mãe de família<br />

que tinha terminado o ensino médio há muito<br />

tempo”. Depois de um ano de cursinho, ela conseguiu<br />

entrar na faculdade, por meio de uma bolsa,<br />

no curso de engenharia mecânica. “É uma satisfação<br />

para a gente”. A ex-aluna está cursando<br />

o primeiro semestre da faculdade e continua trabalhando<br />

como doméstica.<br />

A Uneafro oferece, também, cursos preparatórios<br />

para concursos públicos e seleção de bolsas<br />

de estudo. Dá, ainda, cursos e ofi cinas de<br />

teatro e capoeira. A organização também mantém<br />

relações com movimentos sociais, como o<br />

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra<br />

(MST), por exemplo, com quem realiza atos e<br />

atividades em conjunto.<br />

PreseNça em sala de aUla<br />

No cursinho popular da UFSC, o critério para<br />

ingresso também é o aluno ser de baixa renda e<br />

cursinhos populares<br />

CURSINHO DA POLI<br />

Unidades Lapa, Zona Leste, Santo Amaro/SP<br />

Informações: (11) 2145-7654<br />

Site: www.cursinhodapoli.org.br<br />

CURSINHO DA PSICO<br />

Instituto de Psicologia-Cidade Universitária/SP<br />

Informações: (11) 3532-1992<br />

Site: www.cursinhodapsico.org<br />

CURSO PRÉ-VESTIBULAR ACEPUSP<br />

(Associação Cultural de Educadores<br />

e Pesquisadores da USP)<br />

Endereço: Rua da Consolação, 1909/SP<br />

Informações: (11) 3258-1436<br />

Site: www.acepusp.org.br<br />

CURSINHO DA EDUCAFRO<br />

Unidades nos Estados de São Paulo,<br />

Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo<br />

Informações: (11) 3119-0341<br />

Site: www.educafro.org.br<br />

caros amigos julho 2010<br />

oriundo de escola pública. “Temos casos de alunos<br />

que fi caram 30 anos sem estudar. Aqui, a faixa<br />

etária vai de 16 a 80 anos”, conta o professor<br />

Otavio Auler, coordenador e idealizador do projeto,<br />

criado em 2003. “Eu sempre estudei em escola<br />

pública e, quando me formei, senti a necessidade<br />

de criar projetos que dessem mais oportunidade<br />

para os alunos entrarem na universidade pública,<br />

oportunidade que eu não tive e que me rendeu o<br />

dobro de trabalho para entrar na faculdade”, relata.<br />

O professor afi rma defender “que pré-vestibulares<br />

populares façam a diferença e garantam a<br />

chance de se disputar uma vaga em pé de igualdade<br />

com os alunos de setor privado”.<br />

Organizado pela pró-reitoria de graduação da<br />

UFSC, com apoio do governo do Estado e da Secretaria<br />

Estadual de Educação, o cursinho está<br />

presente em 30 cidades de Santa Catarina, onde<br />

há aulas regulares de segunda a sexta. Por estarem<br />

localizados em bairros de baixa renda e próximos<br />

a terminais urbanos, o acesso dos alunos<br />

torna-se mais fácil. Segundo Auler, o grande diferencial<br />

do cursinho é que ele é absolutamente<br />

gratuito, todos os professores são contratados<br />

e não há voluntariado. “O nosso modelo de gestão<br />

é cobrar do aluno a sua presença em sala de<br />

aula. Caso ele falte quatro vezes sem justifi cativa,<br />

é excluído do projeto”, explica o coordenador,<br />

que conta que há uma fi la de espera de seis<br />

meses para estudar na instituição da UFSC.<br />

O professor mostra preocupação em “defi nir<br />

o que são cursinhos populares. Considero aqueles<br />

que cobram como não populares. Popular é<br />

aquele que é 100% gratuito. Defendo termos cuidado<br />

em diferenciar o que é pré-vestibular popular<br />

de projetos feitos com objetivo de ganhar dinheiro<br />

com esse público”.<br />

A seleção dos alunos é feita por meio de uma<br />

avaliação da renda familiar e do rendimento es-<br />

CURSINHO DA UNEAFRO<br />

Unidades em todo o Estado de São Paulo<br />

Endereço (sede) Rua Abolição, 167,<br />

Bela Vista/SP<br />

Informações: (11) 3105-2516<br />

Site: www.uneafrobrasil.org/contato.asp<br />

CURSINHO DA UNIVERSIDADE<br />

FEDERAL DE SANTA CATARINA (UFSC)<br />

Unidades distribuídas em 20 municípios<br />

do Estado de Santa Catarina<br />

Endereço: Campus UFSC, Reitoria, Sala 8,<br />

Florianópolis<br />

Informações: (48) 3721-8319<br />

Site: www.prevestibular.ufsc.br<br />

CURSINHO POPULAR DA<br />

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO<br />

GRANDE DO NORTE (UFRN)<br />

Endereço: Campus da UFRN, em Natal<br />

Informações: (84) 3215-3325<br />

Site: www.dce.ufrn.com.br<br />

colar do ensino médio do candidato. “Assim, entra<br />

o aluno que mais precisa e que mais estudou”,<br />

explica. Além das aulas regulares, o cursinho da<br />

UFSC realiza palestras sobre HIV, antitabagismo<br />

e prevenção de drogas.<br />

Mesmo que o foco de atuação do cursinho sejam<br />

as universidades estaduais e federais, “com as<br />

transformações no ensino público brasileiro, começamos<br />

a incentivá-los a fazer o novo Enem para<br />

conseguir bolsas no ProUni [Programa Universidade<br />

para Todos] a partir de 2011”, explica. Embora<br />

o peso que os estudantes de cursinho popular<br />

nas porcentagens de ingressantes nas universidades<br />

seja pequeno, sua qualidade refl ete nos índices<br />

de aprovação dos alunos no ensino superior, relata<br />

o professor. Segundo ele, “44% dos nossos alunos<br />

entram em universidades públicas”, orgulha-se.<br />

Processo de eXPaNsão<br />

Nos cursinhos populares que cobram mensalidades<br />

inferiores a dos comerciais, como o da<br />

Psico, coordenado pelos estudantes de Psicologia<br />

da USP, há a possibilidade de negociação de<br />

uma bolsa de estudos. “Nossa mensalidade é de<br />

R$ 95, incluindo material didático e curso regular<br />

de segunda a sexta, com atividades aos sábados”,<br />

conta o coordenador do curso Henrique<br />

Nagao Hamada.<br />

O Cursinho da Poli, criado em 1987 a partir<br />

da iniciativa de um grupo de estudantes da Escola<br />

Politécnica da USP, é coordenado pelo grêmio<br />

dos estudantes da faculdade. Inicialmente, só cobrava<br />

dos estudantes os custos com material didático,<br />

mas, em 1996, deixou o campus universitário<br />

e iniciou um processo de expansão, passando, assim,<br />

a cobrar mensalidades. Mesmo assim, comparado<br />

a outros cursinhos tradicionais, tem as mensalidades<br />

mais baixas e oferece bolsas de estudo.<br />

O valor de um curso de fi m de semana para a<br />

próxima turma de agosto é de R$ 140 por mês, de<br />

acordo com dados da página do cursinho na internet.<br />

Já para os cursos matutino e noturno, de segunda<br />

a sexta, o valor é de R$ 191. De acordo com<br />

o diretor do cursinho, “as matrículas estão abertas<br />

a todos os públicos. O Cursinho da Poli oferece,<br />

porém, bolsas de estudos a alunos em situação de<br />

vulnerabilidade social: os alunos interessados em<br />

participar do processo de concessão de bolsas passam<br />

por uma avaliação socioeconômica, realizada<br />

por uma equipe de assistentes sociais, na qual são<br />

analisadas sua situação de emprego e renda, sua<br />

condição de moradia, de saúde e educação familiar.<br />

Além disso, mantemos parcerias com diversas<br />

instituições que atuam com grupos historicamente<br />

excluídos, como a Fundação Casa, a Funap<br />

e entidades que atendem mulheres em situação de<br />

violência doméstica, por exemplo”.<br />

Para Raphael Rodrigues de Freitas, de 19 anos,<br />

aluno do Cursinho da Poli que pretende prestar<br />

vestibular para Publicidade, o principal motivo<br />

da escolha por esse pré-universitário foi o valor<br />

da mensalidade inferior ao dos outros cursinhos<br />

comerciais. “É mais acessível para mim”.<br />

Tatiana Merlino é jornalista<br />

tatianamerlino@carosamigos.com.br<br />

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no fim de julho de 1967, algumas semanas<br />

depois de baixar a poeira das dunas<br />

do deserto da Guerra dos Seis Dias, fui<br />

levado como oficial da reserva de Israel, na tarefa<br />

de repórter de guerra, a um grupo de comandantes<br />

dos batalhões dos paraquedistas, para fazer<br />

uma expedição e tirar conclusões sobre os<br />

combates no deserto do Sinai. Mas a verdadeira<br />

razão para eu ser convidado para isso foi escolher<br />

um lugar determinado e ali criar um monumento<br />

de comemoração em homenagem aos paraquedistas<br />

da divisão que nós havíamos perdido<br />

nos duros e sangrentos combates com os soldados<br />

egípcios, em Um El Catef.<br />

Quando terminamos a patrulha de reconhecimento<br />

inicial, meu amigo de infância, comandante<br />

da divisão, Chezi Shelach, um dos mais competentes<br />

comandantes de Israel, sugeriu que continuássemos<br />

a patrulha bem mais para o sul, com destino<br />

ao famoso Mosteiro de Santa Catarina, conhecido<br />

mundialmente. Quando o comboio de carros<br />

de combate encalhou nas dunas traiçoeiras, fomos<br />

obrigados a pedir ajuda a um grupo de beduínos<br />

bem folgados, abrigados na pouca sombra que havia<br />

restado de uma árvore sem folhas e que nos<br />

olhavam sem interesse. Perguntamos quanto tempo<br />

levava para ir a pé até esse mosteiro tão famoso.<br />

Um deles, em câmara lenta, como é típico para<br />

os beduínos, apontou o indicador para leste e afirmou:<br />

“Comecem a andar”. Por quê, perguntamos.<br />

“Para ver o tempo que vocês levam para andar. E<br />

daí poderemos dar a resposta”.<br />

O mais velho do grupo chegou para ajudar e<br />

gaguejou: “Uma distância de 22 cigarros”. Se esclareceu<br />

que o modo deles de medir o tempo era<br />

o número de cigarros que são fumados durante a<br />

caminhada, levando em conta que, para economizar<br />

fósforos, eles acendem cada cigarro na bituca<br />

do fumado imediatamente antes. Antes que<br />

Gershon Knispel<br />

Será um império?!<br />

“Deixe os outros falarem dos males deles, Eu vou falar<br />

dos meus” (Bertolt Brecht, no prefácio das Poesias no exílio)<br />

nos despedíssemos, quisemos saber como eles se<br />

sentiam com o fim do regime egípcio no Sinai.<br />

Com uma risada desbragada, que mostrou a boca<br />

sem nenhum dente, o velho respondeu, apoiado<br />

no cajado; “Com os cruzados, nós os exterminamos,<br />

porque não sabiam lidar com os traidores<br />

que deviam ser mortos. Os otomanos deixaram<br />

o país para os britânicos, os britânicos desapareceram<br />

sem deixar vestígios. E vocês chegaram, e<br />

o destino de vocês não vai ser diferente.” Meditando<br />

sobre isso, continuamos rastejando pelas<br />

areias ferventes...<br />

E é verdade; também os destinos dos grandes<br />

e pequenos impérios nunca foi diferente. Enquanto<br />

nós, de um modo obsessivo, tentamos nos<br />

transformar num império e as miragens do Grande<br />

Israel fizeram enlouquecer o mais alto nível da<br />

nossa liderança, essa liderança ficou faminta de<br />

ocupações e com sede de expansão. Quanto mais<br />

ela se expandiu pelos territórios alheios, apertando<br />

o cerco e impondo torturas e humilhações aos<br />

vizinhos sob a ocupação, as dúvidas e as inquietações,<br />

mais a desesperança, vêm atingindo mais<br />

e mais a população.<br />

O povo começou a agir como a avestruz que,<br />

impotente diante do perigo, enfia a cabeça na<br />

areia, e internalizou todas as frustrações, enquanto<br />

a catástrofe da corrupção no topo da liderança<br />

se avolumou. O Estado de Israel desencadeou<br />

o cerco a Gaza e esqueceu de olhar para trás, demorando<br />

para perceber que eles mesmos estão<br />

cercados e isolados por todas as nações do mundo.<br />

Nunca esse “império” se achou tão ameaçado.<br />

Fomos obrigados a proibir a liderança governamental<br />

e a liderança militar de saírem do país,<br />

por causa do medo de que sejam capturados e levados<br />

ao banco dos réus dos tribunais de crimes<br />

de genocídio. A companhia aérea estatal El Al se<br />

viu obrigada a proibir os pilotos e os comissários<br />

O quadro acima é do artista israelense<br />

David Reeb, que dedicou a maior parte<br />

de suas obras para denunciar a ocupação<br />

dos territórios palestinos pelo<br />

Estado de Israel. Ele e outros artistas<br />

plásticos – israelenses e palestinos –<br />

concordaram em ilustrar os artigos de<br />

Gershon Knispel na Caros Amigos.<br />

de saírem às ruas, no mundo inteiro, com o uniforme<br />

da companhia. Governos que nos apoiaram<br />

até ontem viraram as costas para nós.<br />

Impérios ruíram, e seus soldados desmoralizados<br />

voltaram combalidos para casa. Assim foi<br />

o destino dos impérios antigos, até os maiores<br />

dos nossos tempos, como os otomanos, liquidados<br />

pelos britânicos. E os britânicos, não voltaram<br />

envergonhados para o Reino Unido? Os rostos<br />

agoniados da “raça inferior” foram retratados<br />

da maneira mais real e documentada no filme<br />

A queda, que foi feito pelos próprios alemães, e<br />

isso não é surpresa; eles mesmos sentiram isso<br />

na pele. Os comboios da Wehrmacht, abalados,<br />

com esqueletos vivos dentro dos uniformes que<br />

no passado deram tanto orgulho para eles, voltaram<br />

para a pátria completamente destruídos, lembrando<br />

as próprias vítimas deles nos campos de<br />

concentração. Até as armas mais sofisticadas que<br />

eles empunhavam não podiam mudar esse destino.<br />

E os americanos no Vietnã, e a humilhação<br />

que sofrem se chafurdando na lama do Iraque e<br />

do Afeganistão, de onde até a nossa grande esperança,<br />

Barack Obama, não consegue retirá-los.<br />

Mas também, como já aconteceu no Vietnã, o dia<br />

da retirada vai chegar, com os soldados humilhados<br />

voltando juntamente com os caixões cobertos<br />

pela bandeira americana. Esse dia vai chegar<br />

com certeza.<br />

Vai também chegar a hora do nosso “império”.<br />

Para onde vamos voltar? Alguém pensou nisso...<br />

Em 1935, em carta enviada do exílio na Suíça,<br />

Brecht escreveu a seu grande amigo, o pensador<br />

judeu Walter Benjamin, que estava na França:<br />

“Ouvi rumores de que os judeus pretendem<br />

criar um Estado. Judeus nacionalistas, você acredita<br />

que isso exista?”<br />

Gershon Knispel é artista plástico.<br />

julho 2010 caros amigos<br />

-gershon_160.indd 33 02.07.10 17:31:06<br />

33


34<br />

o número<br />

de cesarianas realizadas hoje no<br />

Brasil é altíssimo. Por medo da dor, pressão<br />

do obstetra, desinformação sobre as<br />

possibilidades de realização de partos ou pela comodidade<br />

de agendar o momento de parir, são<br />

muitas as mulheres que escolhem ter seus filhos<br />

por meio de uma cirurgia. Até o ministro da Saúde,<br />

José Gomes Temporão, admitiu que precisamos<br />

combater a atual “epidemia de cesarianas”.<br />

O Brasil é o campeão mundial em partos cesarianos<br />

realizados na rede particular de saúde. A<br />

Organização Mundial de Saúde (OMS) considera<br />

15% a taxa máxima aceitável destas cirurgias<br />

em qualquer região do globo. Porém, no Brasil,<br />

essa indicação parece ser ignorada. No Sistema<br />

Único de Saúde (SUS), 30% dos partos realizados<br />

são cesarianas, e o número é ainda maior no sistema<br />

privado, com um índice de 80% do procedimento.<br />

Os dados são do site da campanha Parto<br />

Normal Está no Meu Plano, promovida, entre<br />

outros, pela Agência Nacional de Saúde Suplementar<br />

(ANS) e pelo Ministério da Saúde.<br />

Além do emprego descontrolado das cesarianas,<br />

hoje existe uma série de procedimentos-padrão<br />

nas maternidades que deixam o bem-estar<br />

da mãe em segundo plano para acelerar o processo<br />

de nascimento. O objetivo dos hospitais é ter<br />

seus leitos livres mais rapidamente e evitar que<br />

médicos demorem muito tempo em cada parto.<br />

No entanto, na contramão desta tendência, é<br />

crescente o número de profissionais da área da<br />

saúde que afirmam que não há motivo para se<br />

orgulhar do Brasil ter altos índices de cesarianas.<br />

É cada vez maior também o número de mulheres<br />

que optam pelo parto humanizado, que, segundo<br />

defensoras da prática, devolve à mulher a liberdade,<br />

autonomia e possibilita uma postura ativa<br />

durante o momento do parto.<br />

caros amigos julho 2010<br />

Bárbara Mengardo<br />

Mulheres defendem<br />

parto sob controle<br />

É cada vez maior o<br />

número de mulheres<br />

que optam pelo parto<br />

humanizado, que<br />

devolve autonomia<br />

à elas e possibilita<br />

uma postura ativa no<br />

momento de dar a<br />

luz. Foto Karina de Oliveira<br />

DanDo as cartas<br />

“O parto humanizado não comporta pressa<br />

nem agenda” define a obstretiz paulista Ana<br />

Cristina Duarte, que há 10 anos segue a linha humanizada<br />

em seu trabalho. Para ela, um dos pontos<br />

fundamentais do parto humanizado é seguir<br />

o ritmo do bebê e da mãe, esperando o tempo necessário<br />

até o momento do nascimento, sem utilizar<br />

procedimentos que artificialmente levarão a<br />

um parto mais rápido.<br />

Diferentemente da prática normalmente empregada<br />

em hospitais, o parto humanizado coloca<br />

a mulher, e não os médicos, como a figura<br />

central durante o nascimento do bebê. “A mulher<br />

deve ser a protagonista de seu parto para que ela<br />

possa exercer o seu parir da forma mais completa<br />

que escolher” afirma a psicóloga carioca Gabriela<br />

Prado, integrante da Equipe Parto Ecológico.<br />

Segundo ela, cabe à mulher dizer qual é a maneira<br />

mais confortável e que lhe dá menos dor du-<br />

Grávida que optou pelo parto humanizado fotografada por Karina Oliveira.<br />

rante o trabalho de parto, e por isso é fundamental<br />

que a futura mãe tenha a possibilidade de andar,<br />

deitar, ficar de cócoras, entrar na água ou ficar<br />

dentro da banheira ou piscina durante seu parir.<br />

No parto humanizado é a mulher quem dá as<br />

cartas, e cabe aos profissionais que estão acompanhando<br />

o parto dar apoio e indicar como o processo<br />

acontecer mais tranquilamente. “O parto humanizado<br />

tenta devolver para a mulher aquilo que<br />

nós, médicos, tiramos dela, que é o protagonismo<br />

do parto. Eu não faço parto, assisto partos”, afirmou<br />

o ginecologista obstetra Jorge Kunh.<br />

Para garantir que a mulher tenha mobilidade,<br />

as equipes podem levar ao local do parto pequenas<br />

piscinas para serem cheias de água quente,<br />

que diminuem as dores, banquetas próprias para<br />

o parto de cócoras.<br />

O mais importante, explicam, é que a mulher<br />

sinta confiança na equipe, fique confortável no<br />

ambiente onde o parto está sendo realizado e te-<br />

-Parto_160.indd 34 02.07.10 17:19:51


nha direito a buscar maneiras que facilitem a ela<br />

passar por este momento da maneira mais prazerosa<br />

e tranquila possível.<br />

PlaNejameNto<br />

Jorge Kunh afirma que é importante que toda<br />

mulher, independente se escolheu uma equipe<br />

humanizada ou não, escreva um plano de parto,<br />

que deve ser discutido juntamente com o<br />

seu obstetra.<br />

Este plano de parto indicará para o médico<br />

quais condutas a mãe gostaria que fossem seguidas<br />

durante o nascimento de seu filho. Cabe<br />

ao profissional dizer se os itens podem ou não<br />

ser seguidos “Toda gestante deve fazer um plano<br />

de parto pensando que o processo pode ter várias<br />

nuances e problemas. Caso o plano não possa<br />

ser seguido, a gestante tem o direito de saber<br />

por quê”, afirma Khun. O procedimento auxiliará<br />

também a mulher a perceber se aquele profissional<br />

é adequado o ela, por isso a importância de<br />

escrever o plano logo no começo da gravidez.<br />

O plano de parto deve conter temas como se a<br />

mulher deseja realizar um parto vaginal ou cesariana,<br />

onde gostaria de dar à luz, se quer segurar o<br />

bebê logo após o nascimento, se deseja que o bebê<br />

se alimente somente de leite materno no período<br />

que passar na maternidade, se o acompanhante<br />

dela deseja dar o primeiro banho, quem ela quer<br />

que esteja na sala durante o parto, se quer ouvir<br />

música, se ela não quer que seja feita a episiotomia<br />

(corte cirúrgico feito no períneo- região muscular<br />

que fica entre a vagina e o ânus).<br />

Além do médico já poder dizer antecipadamente<br />

se será possível ou não obedecer a todos os pontos,<br />

o plano de parto possibilita que a mulher seja<br />

consultada caso tenha de ser realizado algum procedimento<br />

que foge ao que ela gostaria. “O plano de<br />

parto é uma carta de intenções que o médico vai ler<br />

e ver se é possível realizar” resume Ana Cristina.<br />

ambieNte hosPitalar<br />

Hoje, existem muitas possibilidades de locais<br />

onde a mulher pode dar à luz. Se a equipe estiver<br />

ciente dos desejos da gestante, é possível ter o parto<br />

da maneira que mais agrada à mulher, no hospital,<br />

em casas de parto ou mesmo em domicílio.<br />

São poucos, mas existem hoje hospitais que<br />

realizam o parto humanizado. Outros possibilitam<br />

que a equipe traga equipamentos para realizá-lo,<br />

como bolas de pilates, piscinas infláveis ou<br />

banquetas para realizar partos de cócoras.<br />

Em hospitais, no entanto, alguns procedimentos<br />

são utilizados rotineiramente, e é necessário<br />

que a mulher decida e discuta com a equipe se ela<br />

deseja que estes sejam utilizados. Um destes procedimentos<br />

é o uso da ocitocina, um hormônio<br />

que a mulher produz naturalmente, e que causa<br />

as contrações uterinas. Essa substância é colocada<br />

junto ao soro, fazendo com que o número de<br />

contrações aumente repentinamente.<br />

Muitos profissionais da área da saúde criticam<br />

o uso indiscriminado desta substância. “Aproximadamente<br />

95% a 98% dos partos normais a utilizam<br />

para que o processo seja mais rápido, porque<br />

ela provoca mais contrações, então o bebê<br />

nasce mais rápido. Para a mulher, isso é péssimo,<br />

porque provoca mais dor. Para o bebê é perigoso<br />

porque pode provocar mais contrações do<br />

que ele pode aguentar. Inclusive a bula da ocitocina<br />

cita que um dos efeitos colaterais é morte<br />

fetal” afirma Ana Cristina.<br />

Outro procedimento utilizado em quase todos<br />

os partos naturais hospitalares é a episiotomia,<br />

como vimos, um corte feito no final da vagina<br />

com o objetivo de facilitar a passagem do bebê e<br />

proteger a musculatura da pélvis da mulher, evitando<br />

uma laceração maior. A utilização como<br />

rotina, no entanto, é questionada pela OMS, por<br />

trazer muitas consequências à mulher.<br />

Após o procedimento, explica Gabriela Prado,<br />

muitas mulheres costumam sentir muita dor na<br />

região dos pontos, tendo dificuldade de sentar e<br />

achar posição para amamentar. Além disso, podem<br />

acontecer inflamações, e às vezes há perda<br />

da sensibilidade no local da cicatriz ou dor durante<br />

relações sexuais. “Ela deve ser utilizada em<br />

casos extremos, mesmo porque quando o bebê<br />

nasce em um parto tranquilo o nível de lacerações<br />

é quase zero” afirma.<br />

Roberta Marcinkowski, integrante da rede virtual<br />

Parto do Princípio, também critica essa intervenção:<br />

“Ela é geralmente feita sem o consentimento<br />

da parturiente, o que por si só é antiético.<br />

A necessidade de sua utilização deve ser avaliada<br />

durante o período expulsivo (nunca durante<br />

o pré-natal nem durante o trabalho de parto), de<br />

acordo com a evolução do parto, da posição do<br />

bebê e da musculatura vaginal. Quando aplicada<br />

com critério, as taxas de episiotomia não ultrapassam<br />

15% do total de partos de um médico<br />

e/ou instituição. Qualquer número maior que<br />

isso indica que o procedimento está sendo usado<br />

como rotina, sem que cada caso seja avaliado<br />

em suas peculiaridades”.<br />

Casas de Parto<br />

Outra opção para as gestantes é procurar uma<br />

casa de parto, onde o procedimento será realizado<br />

com enfermeiras obstetras. Porém, tais locais estão<br />

cada vez mais escassos, pois sofrem boicotes<br />

constantes. Os médicos não costumam informar<br />

às pacientes que existe a opção de realizar o parto<br />

fora de um hospital, ou fazem campanha contra<br />

estas instituições. “Eles acham que um parto não<br />

pode acontecer sem eles”, afirma Ana Cristina.<br />

Nas casas de parto, a mulher vai encontrar<br />

um ambiente muito diferente dos hospitais, mais<br />

descontraído, aconchegante e com profissionais<br />

treinados para realizarem massagens para diminuir<br />

a dor do parto natural. Outra característica<br />

destes locais é integrar o acompanhante ao<br />

processo do parto. É garantido e desejável que<br />

a mulher esteja junto do pai da criança ou outro<br />

conhecido durante o momento de dar à luz e<br />

também nos pré-natais.<br />

Uma terceira possibilidade cada vez mais utilizada<br />

pelas mulheres é a realização do parto em<br />

casa, que deve ser feito apenas em casos de gravidez<br />

de baixo risco, quando as saúdes da mãe e<br />

do bebê estão perfeitas. Para tanto, é necessário<br />

que a mãe entre em contato no começo da gesta-<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

ção com uma equipe que realize esse tipo de parto,<br />

para fazer um pré-natal detalhado.<br />

Os defensores do parto domiciliar apontam<br />

que sua principal vantagem é, além de ter a possibilidade<br />

de mobilidade e poder utilizar os recursos<br />

de que o parto humanizado dispõe, a mulher<br />

ainda está em um ambiente familiar e aconchegante,<br />

que lhe trará segurança durante o parir.<br />

Gabriela Prado acredita que em casa as mulheres<br />

aguentam mais facilmente as dores do<br />

parto por conta da segurança de estar em seu<br />

domicílio: “Existe um coquetel de hormônios que<br />

circulam no trabalho de parto que são os mesmos<br />

que ocorrem durante uma relação sexual ou<br />

a amamentação. Podemos dizer em um linguajar<br />

comum que esses hormônios são ‘tímidos’, facilmente<br />

inibíveis. Então é necessário que a mulher<br />

esteja em uma situação de segurança e conforto<br />

para que eles sejam liberados. Em domicilio você<br />

está no seu ambiente, propiciando uma sensação<br />

de privacidade e segurança maior”.<br />

Thais Medeiros, professora de ginástica que<br />

trabalha com gestantes há 32 anos, já assistiu<br />

partos humanizados em hospitais, casas de parto<br />

e em domicílios, mas prefere o último: “Em casa<br />

a mulher não sofre intervenções, tem o seu momento<br />

de protagonismo respeitado, e desta forma<br />

pode focar sua atenção no parto. O parto em casa<br />

é como deve ser: um evento íntimo e familiar”.<br />

Possibilidades da Cesárea<br />

Mesmo quando uma cesariana é necessária ou<br />

inevitável, há atitudes que a mulher pode cobrar<br />

do médico. Primeiramente, ela tem o direito de<br />

ser informada sobre os riscos que essa intervenção<br />

pode gerar. “A cesariana é uma cirurgia de<br />

porte considerável, o risco de infecção é dez vezes<br />

maior. Muitas mulheres sentem dor na cicatriz<br />

por muitos anos, a mortalidade materna é maior e<br />

a recuperação é mais lenta. Muitas mães ainda se<br />

sentem frustradas por não poderem participar do<br />

nascimento”, explica a carioca Lia Haikal, médica<br />

que está atualmente passando por cursos preparatórios<br />

para ser parteira tradicional na Paraíba.<br />

Gabriela concorda: “A cesariana salva vidas.<br />

Antes dela, as mulheres morriam de parto, os bebês<br />

morriam na barriga da mãe, mas só deveria<br />

ser feita apenas em situações extremas”. A mulher<br />

pode também exigir o direito de segurar o bebê<br />

assim que ele nascer, escolher o seu acompanhante<br />

e que o pano possa ser abaixado quando o bebê<br />

sair, para que possa vê-lo nascendo.<br />

A paranaense Patricia Merlin, professora do<br />

fundamental, teve um filho por meio de uma cesariana<br />

desnecessária e uma filha em parto domiciliar.<br />

A segunda experiência foi muito importante:<br />

“Poder me movimentar, comer, gritar, tomar<br />

banho, rir, chorar, escolher a posição para parir,<br />

fazer força quando tivesse vontade fez a experiência<br />

do parto ter a minha cara. Foi do jeito que<br />

eu quis e em nenhum momento eu ou a minha filha<br />

estivemos em perigo. Meu parto me deu a certeza<br />

de que o corpo é perfeito e que mulheres precisam<br />

de paz e segurança para parir”.<br />

Bárbara Mengardo é estudante de Jornalismo.<br />

julho 2010 caros amigos<br />

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36<br />

caros amigos julho 2010<br />

Gabriela Moncau e Júlio Delmanto<br />

Por dentro do PCC<br />

karina Biondi e Adalton Marques se conheceram<br />

na época em que ambos terminavam<br />

seus cursos de graduação, e logo<br />

identificaram grande afinidade entre suas pesquisas<br />

antropológicas, voltadas para a compreensão<br />

da prisão através dos discursos dos presos<br />

e não das administrações penitenciárias. A partir<br />

daí tornaram-se amigos e parceiros intelectuais.<br />

Karina, autora do livro recém-lançado Junto e<br />

misturado: uma etnografia do PCC (Editora Terceiro<br />

Nome), estudava sem pretensões de seguir<br />

carreira acadêmica quando seu marido foi preso.<br />

Durante as visitas, decidiu estudar a unidade<br />

prisional onde ele estava, mas acabou percebendo<br />

que nada poderia ser compreendido sem<br />

um olhar mais atento para o Primeiro Comando<br />

da Capital (PCC).<br />

Adalton inicialmente estudava a conversão<br />

religiosa dentro das prisões. Mas percebeu que as<br />

relações entre os presos giravam sempre em torno<br />

de ter ou não ter “proceder” e decidiu descrever<br />

esse conceito a partir dos relatos dos maiores<br />

especialistas na questão: os próprios presos.<br />

Consolidou tal abordagem em sua dissertação de<br />

mestrado: Crime, proceder, convívio-seguro: um<br />

experimento antropológico a partir de relações<br />

entre ladrões.<br />

Em suas pesquisas, Karina e Adalton valorizam<br />

as “verdades” produzidas por seus objetos de pesquisa.<br />

Como explica Marques, a tensão de forças<br />

existente entre os discursos dos presos e da administração<br />

penitenciária não dá ao intelectual o direito<br />

de se colocar acima, na condição de julgar o<br />

que é ou não correto. Biondi reforça, apontando as<br />

implicações políticas dessas escolhas, que levam o<br />

texto a ser escrito quase na mesma linguagem dos<br />

presidiários: “É não tratar aquilo como contradição<br />

ou como algo que encobre um inconsciente<br />

que está por trás, uma verdade que só o pesquisa-<br />

Os antropólogos<br />

KArinA BiOndi<br />

e AdAltOn<br />

MArques discutem<br />

a organização e os<br />

valores do Primeiro<br />

Comando da Capital.<br />

dor que está de fora possa revelar a eles mesmos.<br />

Isso pra gente é inconcebível”.<br />

A Caros Amigos conversou com os dois antropólogos<br />

sobre os princípios e a organização do<br />

PCC, essa facção criminosa tão grande quanto<br />

pouco compreendida pela população do Estado<br />

com a maior população carcerária do Brasil.<br />

Caros Amigos – Como os presos reagiam ao<br />

saber que vocês estavam trabalhando numa<br />

pesquisa acadêmica?<br />

Karina Biondi - Quando saiu uma coletânea<br />

com o resultado da premiação da graduação eu<br />

coloquei o livro lá dentro e pedi para eles darem<br />

uma olhada e dizerem o que achavam. E eles<br />

disseram “olha só, a mina entende mais que a<br />

gente, vamos afixar isso nas celas que aí a gente<br />

não tem mais que explicar nada pra ninguém<br />

que chega, [presos novatos]”. Pensei, ‘poxa, que<br />

legal que eles curtiram, viram que não era meu<br />

objetivo fazer uma denúncia, escrever algo que<br />

pudesse ser usado contra eles’. Agora, com a publicação<br />

desse livro eu gostaria que algum preso<br />

conhecesse a obra. Mas uma coisa que me deixou<br />

muito chocada nesses dias é que a esposa de um<br />

preso queria colocar o livro dentro da prisão, mas<br />

como há censura do que entra, provavelmente a<br />

entrada desse livro vai acarretar um aumento de<br />

prisão de seis meses para quem receber.<br />

Sob qual critério eles censuraram a entrada<br />

do livro?<br />

Adalton Marques – Na verdade não é nem<br />

o critério, é a falta de critério que existe nas prisões.<br />

Isso configura a prisão como uma máquina<br />

de surdez. E quando você se coloca na condição<br />

de pesquisar um objeto sobre o qual não se<br />

pode falar e que ninguém pode ouvir dele, por<br />

causa da posição jurídica e até moral em que ele<br />

está posto, tem uma série de inconvenientes desse<br />

tipo. Tecnicamente, qual é o problema de um<br />

cara ter acesso à literatura?<br />

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fotos: sxc.hu


Karina Biondi – Até jornal é proibido! Qual<br />

o critério não sei... Televisão, rádio, pode.. Mas a<br />

proibição de certas literaturas parece obedecer a<br />

algum critério mais institucionalizado: não conheço<br />

nenhuma prisão que permita a entrada de<br />

revistas e jornais.<br />

Vocês podiam voltar à formação do PCC?<br />

Karina Biondi – Quando eu comecei a pesquisa<br />

de campo, cada um falava uma versão: surgiu<br />

da facção Serpentes Negras ou de outra, Armas<br />

e Rosas. Falavam que nasceu em 1988 no<br />

Carandiru, ou em outra data. De repente todas<br />

essas versões sumiram e uma predominou, a que<br />

é contada no livro Cobras e Lagartos [de Josmar<br />

Jozino].<br />

E como é a versão?<br />

Karina Biondi – Ela diz que o PCC nasceu em<br />

1993, no anexo de Taubaté, a partir de um jogo<br />

de futebol entre o Primeiro Comando Caipira e o<br />

Primeiro Comando da Capital. Tinha um acerto<br />

de contas, um cara do Comando Caipira morreu<br />

e os da capital se reuniram para tomar um conjunto<br />

de medidas para se defenderem das sanções<br />

que essa morte causaria.<br />

Adalton Marques – Eles estavam no anexo<br />

que na época era conhecido como “piranhão”,<br />

como inferno. Era a cadeia mais dura, o mesmo<br />

diretor do Pavilhão 9 do Carandiru na época do<br />

massacre.<br />

Karina Biondi – E o Carandiru teve um reflexo<br />

nisso também, na linha de “olha, se a gente<br />

não se unir isso pode voltar a acontecer, todos<br />

os abusos e torturas podem acontecer de novo”.<br />

E daí teria sido fundado o PCC, que começa a se<br />

espalhar após transferências que levam essa ideia<br />

a outras unidades – não sem derramamento de<br />

sangue nesse primeiro período. A ideia era sedutora,<br />

estabelecer uma relação de não opressão<br />

entre os presos e de união contra a administração<br />

penitenciária, só que existiam resistências, foi a<br />

época das grandes guerras, que eles falam.<br />

Adalton Marques – Surgiram outros comandos<br />

nesse processo. Surgiu o Comando Democrático<br />

da Liberdade (CDL), o Comando Revolucionário<br />

Brasileiro do Crime (CRBC), a Seita<br />

Satânica já era consolidada. Começa uma guerra<br />

de disputa de território, e o que está atravessando<br />

toda essa questão é quem é certo.<br />

E essa guerra foi vencida pelo PCC?<br />

Karina Biondi – Ele conseguiu se expandir<br />

a ponto de tomar conta de territórios e conduzir<br />

outros grupos para territórios apartados, e mesmo<br />

acabar com alguns bandos.<br />

Adalton Marques – Esse processo é muito<br />

interessante, pois algumas perspectivas normativistas<br />

sempre tentam mostrar de que modo<br />

as políticas penitenciárias podem ter sucesso na<br />

ressocialização do preso. É sempre a linha de<br />

mostrar os sucessos e as falhas desse vetor administrativo.<br />

Quando seu interlocutor é o preso,<br />

você começa a perceber também de que modo<br />

que as lutas entre os presos incitam processos<br />

de modificação no corpus prisional. De 1993 até<br />

1998, mais ou menos, era impensável se falar,<br />

por exemplo, de cadeia de um comando. A administração<br />

comanda o ingresso dos presos, os<br />

trata como reeducandos e pronto. Havia “convívio”<br />

e “seguro”. Se um cara deu uma mancada<br />

ele vai para o “seguro”, mas é o espaço dos presos,<br />

não é um espaço do PCC, ou de qualquer outro.<br />

A partir dessas lutas começa a se produzir a<br />

possibilidade de distribuir esses homens de acordo<br />

com seus pertencimentos e de suas relações<br />

com os comandos.<br />

Karina Biondi – Em 10 anos aconteceu esse<br />

processo...<br />

Adalton Marques – Aí mostra uma coisa<br />

interessante: não só como os corpos dos presos<br />

são produzidos pelo corpus penitenciário, mas<br />

como os corpos dos presos produzem esse corpus<br />

penitenciário. O Estado não passa incólume<br />

nessa relação. Hoje eu diria que a maioria das cadeias,<br />

para não dar um número preciso, são cadeias<br />

do Comando, tal como definido por eles e<br />

definido pelos inimigos deles também. O segundo<br />

maior comando hoje, pelo que a gente sente<br />

em campo, é o CRBC, que tem pouquíssimas cadeias.<br />

E tem essas cadeias que tem um pavilhão<br />

de um e um pavilhão do outro. Existe também<br />

o Terceiro Comando da Capital, que tem uma ou<br />

duas unidades. O CDL, a Seita e o Armas e Rosas<br />

praticamente se extinguiram.<br />

De que maneira vocês inserem esse<br />

crescimento e fortalecimento do PCC com o<br />

crescimento do índice de encarceramento,<br />

especialmente em São Paulo?<br />

Adalton Marques – No começo da década<br />

de 1990 somam-se processos externos e processos<br />

internos, que estão acontecendo no Brasil,<br />

que vão incitar esse encarceramento em massa:<br />

1) há uma série de reações conservadoras às<br />

demandas expressivas por “humanização” dos<br />

presídios; 2) começam a repercutir as políticas<br />

de tolerância zero de Nova York, do ex-prefeito<br />

Rudolph Giuliani e tal, analisadas pelo Wacquant;<br />

3) tem um acontecimento fundamental:<br />

o Massacre do Carandiru; e posteriormente<br />

o surgimento dos comandos. Nesse processo, o<br />

PCC, por força ou por convencimento, depende<br />

de quem fala disso, ele apresenta uma proposta<br />

muito interessante pros presos. Ela é no mínimo<br />

interessante. Por que como um coletivo político<br />

consegue arregimentar tanto apoio, tantas<br />

relações e tantas atualizações de sua política se<br />

não pelo fato de que apresenta uma questão relevante?<br />

Então, tentar pensar uma causalidade<br />

unívoca entre o PCC e a expansão da população<br />

carcerária, e vice-versa, acho que empobrece<br />

o processo. Tem milhares de processos acontecendo<br />

aí. Por outro lado, parece mais absurdo<br />

ainda dizer que não tem relação.<br />

Karina Biondi – Acho que talvez não tenha<br />

a ver com a hegemonia do PCC, mas com o crescimento<br />

está vinculado.<br />

Adalton Marques – A gente triplicou a população<br />

carcerária né?<br />

Karina Biondi– E também expandindo, porque<br />

essas pessoas não ficam presas pra sempre.<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

Adalton Marques – É aquela coisa, até<br />

1998, 2000, a gente não ouvia falar de vila do<br />

Comando. Hoje é difícil uma quebrada que você<br />

vá e não se veja o Comando, e todo mundo sabe<br />

disso, a polícia sabe disso. Esses processos estão<br />

muito ligados, inclusive com a questão da queda<br />

de homicídios.<br />

Karina Biondi – Um exemplo, quando a gente<br />

vai pra campo na periferia e pergunta “por<br />

que não se mata mais aqui?”, ninguém fala “porque<br />

a gente tem medo de ir preso”. Nunca nenhum<br />

pesquisador ouviu uma coisa dessa, sempre<br />

se fala “agora que o comando tá aqui não<br />

pode mais matar”.<br />

Falem sobre a organização do PCC, da<br />

disputa de concepção que se dá depois do<br />

Marcola.<br />

Karina Biondi– Quando eu comecei a fazer<br />

pesquisa, via uma hierarquia bem forte na relação<br />

entre os presos. Não é uma coisa que acontece<br />

num estalar de dedos, mas depois de algum<br />

tempo começou a se falar de igualdade, o que começa<br />

a ser esticado pra tudo quanto é lado. E isso<br />

implica em muita coisa, você não poder ter uma<br />

palavra de comando num comando... Não que<br />

não existiam debates antes, mas a necessidade de<br />

se debater as coisas parece que vai crescendo e a<br />

decisão nunca pode ser isolada, porque uma pessoa<br />

que decide está querendo ser mais do que as<br />

outras. Então a igualdade é atribuída ao lema, e<br />

não só ao lema, a todas as práticas. E diz-se que<br />

isso foi feito pelo Marcola.<br />

Adalton Marques – Como estava saindo de<br />

um processo marcado por personificações, é quase<br />

como se, por continuidade, se tivesse personificado<br />

a virada no nome dele.<br />

Em que época foi isso?<br />

Adalton Marques – 2002 pra 2003.<br />

Karina Biondi – Ele chega a falar isso num<br />

depoimento, “eu distribuí o poder”. Acredito que<br />

o que ele está querendo dizer é torná-lo solúvel,<br />

pulverizar o poder. Hoje você não vê uma hierarquia<br />

colada a uma pessoa, algo como “essa pessoa<br />

é piloto ou general”. Ela vai transitando, não<br />

adquire um status que leve consigo.<br />

Queria que vocês explicassem esses “cargos”<br />

dentro do Comando: primo, irmão, piloto,<br />

torre...<br />

Adalton Marques – Sempre se espera uma<br />

repetição de alguns processos burocráticos que<br />

acontecem no Estado, e a coisa não é exatamente<br />

desse modo. Por exemplo, quando o cara tem<br />

uma posição de funcionamento dentro do Comando,<br />

isso não significa exatamente que tem<br />

um estatuto colocado dizendo que ele tem uma<br />

palavra maior, qual função ele tem. Digamos<br />

que ele é uma espécie de ponto em que as atualizações<br />

dos valores do Comando estão melhor<br />

representados, ele é um ponto de exemplo.<br />

Não sei se é uma mediação e nem um fiscal, é<br />

uma atualização carnal de um valor do comando.<br />

Essa virada de 2002 pra 2003 incita uma<br />

permanente despersonificação das posições de<br />

julho 2010 caros amigos<br />

-PCC_160.indd 37 02.07.10 17:19:04<br />

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38<br />

comando (o que não significa dizer que as posições<br />

foram, definitivamente, despersonificadas),<br />

colocando em destaque uma única coisa, o<br />

comando. Me parece que é essa coisa que deve<br />

ser compreendida.<br />

Karina Biondi – Mas isso também não quer<br />

dizer que não existam esses caras. Existe o piloto,<br />

o irmão, o primo. O que a gente está falando<br />

aqui é que não dá pra dispô-los numa estrutura<br />

hierárquica. Mas explicando: o primo é<br />

o cara que corre com o comando, nos termos<br />

deles. Não quer dizer pertencer nem quer dizer<br />

não pertencer. É o cara que está em cadeia do<br />

PCC, portanto que vive de acordo com a ética<br />

do PCC, mas ele não é batizado no PCC. O irmão<br />

é batizado. E aí tem algumas variações...O<br />

irmão excluído, que não é nem primo nem irmão,<br />

as cunhadas que são as mulheres dos irmãos.<br />

Faxina é uma coisa que já existia antes<br />

do PCC, é o nome de uma cela na verdade. Cela<br />

da faxina e tem o homem da faxina, tem a faxina<br />

e o faxina.<br />

Adalton Marques – Quase sempre quando se<br />

fala dessas coisas, a gente replica questões estatais.<br />

Como se esses caras estivessem numa posição<br />

de subjugar e manipular a população carcerária,<br />

a massa. E é de algum modo tratar o resto como<br />

massa, sem consciência, apenas alvos de políticas.<br />

Esse é o modelo, a propósito, que usamos para julgar<br />

aqueles que votam num ano na Heloísa Helena<br />

e noutro no Collor: “Não sabe de política; não<br />

tem consciência política; é manipulado”. A gente<br />

tem esse ranço de achar que na verdade a política<br />

só acontece quando está norteada por algum<br />

princípio que a gente acha correto. E temos a mania<br />

de replicar isso pra prisão: “ah, é a massa, que<br />

diante de uns caras um pouco mais fortes ou um<br />

pouco mais inteligentes, não pensa, não faz porra<br />

nenhuma”. Liderança não é simplesmente mandar<br />

no outro, porque dentro desse processo de constituição<br />

desses homens, ser mandado por outro<br />

é se tornar o que eles designam de lagarto. E lagarto<br />

é a pior coisa do mundo. Ladrão é cabuloso,<br />

troca tiro com a polícia, ladrão tem um ethos<br />

guerreiro, sei lá, ladrão é ladrão. E ser mandado<br />

por outro ladrão é a pior coisa que tem no mundo,<br />

é ser esquema do outro, é ser lagarto. Esses caras<br />

falam assim: você tem que ficar atento porque<br />

todo mundo que foi líder do PCC, que foi fundador,<br />

general, que atribuiu posições de chefia pra<br />

si mesmo, o que aconteceu com esses caras? Ou<br />

morreram ou foram expulsos. Então o que é mandar<br />

dentro desse comando? Talvez mandar dentro<br />

desse comando seja se colocar na posição do próximo<br />

a ser morto.<br />

E o que são os salves?<br />

Karina Biondi – Muita gente fala que o salve<br />

é uma ordem, mas não é.<br />

Adalton Marques – É uma ideia.<br />

Karina Biondi – O PCC está fora do regime jurídico,<br />

então as coisas não funcionam na base da<br />

lei, do quem cumpre e quem não cumpre, quem<br />

manda e quem não manda. O salve eu diria que<br />

são mais orientações, recomendações, já que ninguém<br />

é obrigado a nada.<br />

caros amigos julho 2010<br />

E eles partem de onde?<br />

Karina Biondi – Existem salves gerais, que<br />

vêm das torres e se espalham para as quebradas.<br />

As torres são posições políticas da onde partiriam<br />

esses salves.<br />

Adalton Marques – Onde que está a torre?<br />

Ela está numa cela exclusiva dentro de uma cadeia?<br />

Não, ela está tirando cadeia nas mesmas<br />

celas com outros homens, sai pro pátio com outros<br />

homens, escuta ideias de outros homens...<br />

Karina Biondi – Ou às vezes a torre é designada<br />

uma cadeia inteira, essa cadeia é torre.<br />

O que não implica que todos os presos de lá<br />

sejam torres.<br />

Adalton Marques – Pensar que a ideia<br />

parte da cabeça do torre é muito jurídico. Como<br />

é que se constitui um salve? Ele pode se constituir,<br />

imagino eu, a partir de um acontecimento<br />

específico que exige uma reflexão para a qual<br />

talvez as situações passadas não dão conta de<br />

resolver.<br />

Karina Biondi – Como o exemplo de quem<br />

dorme ou não na cama. Antes era o preso que<br />

cumpriu mais tempo de pena que dormia na<br />

cama, e os outros dormiam no chão, porque são<br />

40 presos por cela e 12 camas só, como se decide?<br />

Dizem que antes era pela força, ou vendiam-se<br />

as camas, isso é uma coisa que dizem<br />

que foi abolida pelo PCC. Só que aí acontece um<br />

caso em que um cara cumpriu 20 anos, foi pra<br />

rua e voltou uma semana depois. “O cara foi pra<br />

rua, se não ficou por lá a culpa é dele, eu já subi<br />

pra cama e estou há 12 anos aqui, ininterruptos”.<br />

Antes o critério era o tempo total de cadeia,<br />

e isso foi para debate. E aí se decidiu que<br />

o que vale é o tempo ininterrupto, se saiu nem<br />

que foi meio dia na rua, você desce pra dormir<br />

no chão. Então são situações que aparecem. Alguns<br />

salves são lidos. São passados por telefone,<br />

transcritos sabe-se lá como. E são lidos no<br />

pátio da cadeia, na presença dos funcionários.<br />

E outros só importam aos que estão na faxina,<br />

aos que são pilotos...<br />

Adalton Marques – Tem uma política colocada<br />

pra esses caras que é manter a paz entre<br />

os ladrões e bater de frente com a polícia. Daria<br />

pra gente dizer, forçando um pouco a barra,<br />

que são salves permanentes. Orientações permanentes.<br />

Onde que surgiram essas orientações?<br />

Elas surgiram em 93 num jogo de futebol? Não.<br />

Surgiram depois num processo depois de pensar<br />

num estatuto? Não necessariamente. Eu tenho<br />

dados de 74, 76, 78, em que essa questão de parar<br />

de se matar, e de bater de frente com agente<br />

e com polícia já era colocada. Então isso não<br />

é um enunciado que apareceu, essa coisa estava<br />

colocada. O PCC coloca isso num patamar diferente<br />

de considerações, mas as coisas não saem<br />

do nada, saem de relações. Têm que ser procuradas<br />

nas relações.<br />

Nesse sentido de não hierarquia, como isso<br />

contrasta ou não com o enquadramento de<br />

crime organizado? O PCC é uma organização<br />

criminosa? Tem fins econômicos puramente,<br />

tem um caixa?<br />

Adalton Marques – A noção de crime organizado<br />

é uma figura que não possui definição jurídica<br />

constante em nossa legislação, ainda não<br />

saiu do campo doutrinário. Está totalmente imbricada<br />

com as noções de bando e de quadrilha,<br />

oriundas do artigo 288 do Código Penal. Tem<br />

também a definição da Convenção de Palermo,<br />

da qual somos signatários. A questão é que crime<br />

organizado não tem definição, ou pelo menos<br />

têm várias. Algumas quantificam o número<br />

de pessoas associadas ao crime, outras elencam<br />

características estruturantes do tipo disposição<br />

empresarial, hierarquia, divisão de funções, motivação<br />

financeira, etc. Seja como for, a noção<br />

de crime organizado não parece funcionar bem<br />

conceitualmente. E, ao que me parece, mais difícil<br />

do que conceituar precisamente o que é crime<br />

organizado, é a tarefa de dizer o que é o PCC<br />

e outros comandos. Apesar disso, a noção de crime<br />

organizado está funcionando a pleno vapor,<br />

enquadrando presos no Regime Disciplinar Diferenciado<br />

– a despeito de uma série de posições<br />

que apontam a inconstitucionalidade desse dispositivo<br />

penitenciário.<br />

Isso seria um instrumento da repressão para<br />

rotular o inimigo mais facilmente e poder<br />

-PCC_160.indd 38 02.07.10 17:19:05


incidir militarmente sobre ele como crime<br />

organizado? Na Região Sudeste se verifica<br />

uma dificuldade de se obter maconha cada<br />

vez maior. O discurso da polícia é que o<br />

PCC teria optado pelo crack e pela cocaína,<br />

que seria mais rentável e teria deixado a<br />

maconha de lado. O PCC teria capacidade de<br />

tomar decisões empresariais como essa?<br />

Karina Biondi – Quando alguém fala “o PCC<br />

fez isso”, eu fico imaginando: quem? Porque se<br />

você chega pra qualquer irmão e pergunta “quem<br />

é o PCC?”, “a gente aqui né, tá tudo junto e misturado”.<br />

Não existe um PCC ou alguém que fale<br />

pelo PCC, não existe representatividade.<br />

Não poderia ser um salve, por exemplo?<br />

Karina Biondi – Nunca fiquei sabendo de<br />

salve no sentido empresarial, é mais sobre conduta,<br />

sobre ética.<br />

Adalton Marques – É difícil um salve recomendar<br />

os negócios particulares de um ladrão. É<br />

a correria do cara. O PCC é um emaranhado de redes<br />

de alianças que parecem um rizoma; os pontos<br />

não estão necessariamente todos interligados.<br />

O que confere sentido pra eles é essa coisa que é<br />

conhecida por todos, que não é uma pessoa, são<br />

os valores, a disciplina do comando como eles di-<br />

zem. O termo PCC é tão forte que ele se atualiza<br />

quando um moleque está jogando bola na quebrada<br />

dele, agora os meninos não mandam o outro<br />

tomar no cu e quando acontece alguma coisa eles<br />

falam “vamo debater essa fita”. Por efeitos diversos,<br />

de algum modo isso está atualizando o jeito<br />

de ser do PCC, é uma coisa muito louca. E homogeneizar<br />

esse processo passa a impressão que milhares<br />

de presos das 147 unidades prisionais, entre<br />

150 mil pessoas, estão conectados e todos funcionam<br />

do mesmo jeito. Tipo todos decidiram não<br />

vender mais maconha, todos decidiram tal coisa,<br />

é muito complicado.<br />

Uma pergunta sobre maio de 2006. Lendo<br />

trechos do depoimento do Marcola na época,<br />

ele dizia que não teve uma fonte específica<br />

que deu uma ordem, seria uma revolta<br />

generalizada. Dizem que inclusive fugiu do<br />

controle. Vocês têm dados para explicar<br />

então por que tudo parou ao mesmo tempo?<br />

Karina Biondi – De todas as versões que eu<br />

ouvi, a versão do Marcola me parece a mais consistente.<br />

Sobre o jeito desordenado de funcionamento<br />

do PCC. Eu ficaria muito mais perplexa<br />

que deu tudo tão certo por meio da ordem de<br />

um cara. Não existe um controle tão grande. Por<br />

isso acho que faz muito mais sentido em termos<br />

de revolta generalizada e lealdade, e que assim<br />

como todos foram se comunicando e essa revolta<br />

foi pipocando em vários lugares, todos foram<br />

se falando pra parar.<br />

E quanto à versão de um acordo com um<br />

governo pra encerrar a revolta?<br />

Adalton Marques – O Marcola diz que houve<br />

a tentativa clara de fazer uma negociação e<br />

argumenta que ele nem sabia que aquilo estava<br />

em curso. Um dado forte que torna a versão<br />

deles plausível é a seguinte indagação: se o Estado,<br />

através da sua inteligência e investigação,<br />

decidiu isolar setecentos e poucos presos considerados<br />

lideranças em uma cadeia de segurança<br />

máxima, Venceslau II, esses homens que representam<br />

esse topo da hierarquia tinham condições<br />

materiais de dar o comando?<br />

Karina Biondi – Se isolaram os supostos “cabeças”<br />

e tiraram eles de qualquer comunicação,<br />

será que essa própria história não comprova a<br />

não hierarquia do comando?<br />

Como se dá o comportamento dos presos<br />

e dos integrantes do PCC em relação às<br />

mulheres? Existe um respeito a elas, ou é um<br />

respeito em relação ao homem que é visto<br />

como dono da mulher?<br />

Karina Biondi – A postura que se tem em<br />

relação à mulher é uma questão fortíssima. Não<br />

se dirige a palavra, existe a postura corporal<br />

mesmo, de estar de lado, quase de costas para<br />

a mulher, e o que está em jogo é a relação entre<br />

os homens, os presos. Implica a honra dos<br />

homens. Particularmente parece que você é invisível.<br />

Às vezes, mesmo quando queriam falar<br />

comigo, falavam para o meu marido, mas para<br />

que eu ouvisse. Eu poderia pensar isso como um<br />

desrespeito, mas talvez seja um excesso de zelo<br />

e de respeito a ele.<br />

O Adalton coloca em sua tese que o<br />

projeto de prisão é a sua reforma, que não<br />

se busca outros modos, o máximo é uma<br />

melhoria do que está aí. Você acredita<br />

que mesmo a esquerda está dentro dessa<br />

lógica, de punição?<br />

Adalton Marques – O que eu diria é que<br />

a questão da segurança, pelo menos no último<br />

pleito eleitoral à presidência, norteou um pouco<br />

discussões da esquerda e da direita. Mas pelo<br />

menos entre aqueles que se pretendem elegíveis,<br />

é difícil que alguém vire e fale “acho que a tática<br />

pra hoje não é reprimir mais, mas abrir um diálogo”,<br />

acho quase impossível.<br />

E na esquerda que não se pretende elegível?<br />

Adalton Marques – Pensando um pouco no<br />

[Gilles] Deleuze, eu diria que não tem uma máquina<br />

abstrata alternativa à disciplina e ao controle<br />

pra pensar nos presos. O preso é sempre<br />

aquele que precisa ser ressocializado. Aí quando<br />

você parte de uma colocação desse tipo, está<br />

sempre implicado um modo de fazer incidir sobre<br />

ele uma ortopedia social específica. E eu não<br />

tenho uma alternativa pra isso. Essa coisa de tornar<br />

o indivíduo próprio para o trabalho, para o<br />

lugar certo na família, o “socializado”. Como alternativa<br />

à disciplina, a gente passa a ter muito<br />

mais aquilo que eu chamaria de contenção. Não<br />

incide na totalidade dos presos, incide naqueles<br />

que são elegíveis por decisões penitenciárias,<br />

para ficarem reclusos, 365 dias por ano, 23 horas<br />

por dia, sem direito a educação, a banho de<br />

sol, a trabalho, com visitas controladas e filmadas...<br />

A gente tem que se perguntar se o resultado<br />

de um poder disciplinar, como disse [Michel]<br />

Foucault, é a produção de delinqüentes, ou seja,<br />

se a derivação da disciplina produz crime, o que<br />

vai derivar desse outro poder? E aí temos que levar<br />

a sério até o nome desse tipo de cadeia: Regime<br />

Disciplinar Diferenciado, RDD. Não é mais<br />

a disciplina, é a diferença da disciplina, é a contenção<br />

até a última ponta. E o que vai sair daí a<br />

gente não tem bagagem histórica pra falar.<br />

Karina Biondi – O raciocínio é como se o<br />

problema sempre fosse a falta de Estado. Então<br />

a solução é colocar mais Estado. E não é só que<br />

a prisão seja vista como o remédio, mas é a potencialização<br />

da prisão dentro da própria prisão.<br />

Sobre os movimentos sociais, de esquerda, faz<br />

anos já que eu vi enunciados de presos dizendo<br />

que “na época dos presos políticos o pessoal<br />

se mobilizava e olhava aqui pra dentro, agora<br />

não tem ninguém deles preso aqui, então a gente<br />

foi esquecido”. Acho que isso é forte para os<br />

movimentos pensarem também: os presos porque<br />

eram políticos valiam uma mobilização, e<br />

agora eles são menos políticos? Ou estão fazendo<br />

outra política? O que se entende por política,<br />

ou por resistência?<br />

Gabriela Moncau é estudante de Jornalismo.<br />

Julio Delmanto é jornalista.<br />

julho 2010 caros amigos<br />

-PCC_160.indd 39 02.07.10 17:19:05<br />

39


40<br />

caros amigos julho 2010<br />

Marcelo Salles<br />

teatro da Maré<br />

A Cia Marginal de<br />

Teatro, grupo formado<br />

por atores-moradores<br />

da Maré, maior bairro<br />

popular do Rio de<br />

Janeiro, realiza ações<br />

para democratizar o seu<br />

método de trabalho.<br />

tudo escuro. Silêncio absoluto. Uma ponta<br />

de cigarro acesa dança, em movimentos cadenciados.<br />

Aos poucos, a luz se abre. E rufam<br />

os tambores! No centro do palco, surge, vagarosamente,<br />

uma pomba-gira. Sentada com seu<br />

enorme vestido branco, caprichosamente deitado<br />

em círculo, ela balança a cabeça de lado a lado,<br />

enquanto fuma e bebe. Ela bate duas palmas e<br />

duas ajudantes entram em cena. Mais duas palmas<br />

e elas enchem seu copo. De repente, uma<br />

pastora evangélica, dessas bem escandalosas, entra<br />

no palco. Sua pregação coincide com a saída<br />

de cena, lenta e gradual, da pomba-gira. Com os<br />

olhos esbugalhados, a pastora grita: “Aceite Jesus<br />

no seu coração!” e outras palavras de ordem.<br />

A transição se completa. A pomba-gira e suas<br />

ajudantes saem completamente de cena, e a pastora<br />

conquista, definitivamente, o palco.<br />

O trecho acima está em cartaz com o espetáculo<br />

Qual é a nossa cara?, da Cia Marginal de Teatro.<br />

Trata-se de uma das muitas histórias de Nova<br />

Holanda, uma das dezesseis favelas do Complexo<br />

da Maré, conjunto habitacional às margens<br />

da Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, que reúne<br />

mais de 130 mil pessoas. A passagem conta, com<br />

beleza e rigor histórico, a substituição das religiões<br />

de matriz africana pelas neopentecostais no<br />

Rio de Janeiro – processo que muitas vezes expulsou<br />

das favelas, com violência, os praticantes<br />

de umbanda e candomblé.<br />

A peça conta diversas histórias de Nova Holanda,<br />

entrecortadas por depoimentos pessoais<br />

dos atores, que são também moradores da Maré.<br />

O processo de criação que deu origem ao espetáculo<br />

teve como ponto de partida uma pesquisa<br />

de campo realizada nesta favela. Durante dois<br />

ou três meses os atores entrevistaram alguns dos<br />

moradores mais antigos da comunidade até se<br />

mostra a força da favela<br />

Grupo de teatro emociona o público com texto vigoroso e apresentação de alto nível profissional.<br />

chegar à formatação das histórias. “Depois, fizemos<br />

um processo de seleção e reflexão em cima<br />

desse material”, explica a diretora do grupo, Isabel<br />

Penoni. “E juntamos histórias de 20, 30 anos<br />

atrás, mas que são atualizadas pelos depoimentos<br />

dos atores”.<br />

Um deles, o da brilhante atriz Priscilla Andrade,<br />

de 24 anos, mostra que esse grupo de teatro<br />

não é mais um desses que se proliferam nas fa-<br />

velas pelas mãos de ONGs comprometidas apenas<br />

consigo mesmas. Priscilla fala de seu primeiro<br />

Fórum Social Mundial, narra a evolução do<br />

engajado bloco carnavalesco Se Benze que Dá e<br />

lembra de quando moradores fecharam a Avenida<br />

Brasil após o assassinato do menino Renan,<br />

3 anos, durante operação policial em 2006. “A<br />

gente também faz protesto!”, afirma.<br />

Uma segunda passagem do espetáculo conta<br />

-Salles_160.indd 40 02.07.10 17:15:24<br />

foto: Q NaldiNho loureN


um pouco da história do traficante varejista Jorge<br />

Negão, que durante muito tempo reinou absoluto<br />

na favela. O ator caminha lentamente. Três<br />

mulheres o acompanham, com gritinhos de Jorge,<br />

Jorge. Quando ele vira o boné pra trás, todas<br />

se calam e deitam, imóveis. Apavoradas, procuram<br />

esconder o rosto. O bandido desvira o boné<br />

e volta a caminhar. Gritinhos, boné pra trás, mulheres<br />

no chão. Tragicômico: os moradores mais<br />

antigos contam que quando Jorge Negão saía de<br />

sua casa com o boné virado pra trás era porque<br />

estava indo matar alguém.<br />

Uma outra cena que retrata a violência diz respeito<br />

a uma trégua do Jorge Negão e dos Irmãos<br />

Metralha, grupos rivais que durante anos dominaram<br />

a região. Era dia de votação para a Associação<br />

de Moradores – este o motivo da bandeira<br />

branca. De repente estoura o funk Rio Chumbo<br />

Quente, dos MCs Júnior e Leonardo, adaptação<br />

da música “Chumbo Quente”, da dupla sertaneja<br />

Léo Canhoto e Robertinho, que surgiu em 1969,<br />

em Goiânia. Ao contínuo, os atores entram com<br />

máscaras de Bush, Saddam Hussein, Bin Laden,<br />

Minie e Carlitos. Seguram foices, armas de fogo,<br />

munições. E dançam, percorrem todo o palco.<br />

CeNa aNtológiCa<br />

A diretora Isabel Penoni explica que tentou<br />

conjugar as celebridades do terrorismo internacional<br />

com a banalização da violência entre<br />

crianças (Minie), enquanto a figura do Carlitos,<br />

única a não portar nenhuma arma, pula de um<br />

lado para outro tentando escapar com vida. “O<br />

importante é que o uso das máscaras de Bush,<br />

Saddam e Bin Laden nessa cena amplia a reflexão<br />

sobre a guerra que se vive hoje nas favelas<br />

cariocas, conectando ou associando-a aos grandes<br />

conflitos internacionais”, diz Isabel.<br />

O espetáculo aproveita as histórias dos moradores<br />

da Nova Holanda para problematizar<br />

questões tabus, como a homossexualidade, abuso<br />

sexual e os diversos preconceitos ainda enraizados<br />

no país. No total, são 13 cenas, entre<br />

as representações das histórias contadas pelos<br />

moradores mais antigos e os depoimentos pessoais<br />

dos atores.<br />

O momento em que a plateia mais riu foi diante<br />

da interpretação da história das palafitas duplex.<br />

Muitas pegaram fogo, os donos perderam<br />

tudo, uma desgraça sem fim. Mas a pose estava<br />

mantida. “Mas era duplex”, repetia, orgulhoso,<br />

entre uma e outra tragada no cigarro.<br />

Uma outra cena que diz muito pela atualidade<br />

da reflexão proposta é a que mostra o papelão<br />

prestado por muitas ONGs que atuam em comunidades.<br />

Pegam os favelados mais fudidos e os<br />

inscrevem num projeto social qualquer. Depois,<br />

os que aprendem a batucar qualquer coisa são<br />

atirados à mídia e pressionados a defender muros,<br />

caveirões e UPPs. É a nova rolagem da máquina<br />

de moer gente, diria Darcy Ribeiro.<br />

Gizele Martins, moradora da Maré, assistiu à<br />

peça pela quarta vez e se emocionou mesmo assim.<br />

“Eu me vejo representada em cada situação<br />

representada. A peça é essencial para o resgate<br />

da nossa história”, disse.<br />

A atriz Priscilla Andrade conta que a Cia Marginal<br />

é um projeto de vida. “Foi por ela que eu<br />

parei de resistir em tentar ser atriz. No Brasil há<br />

uma ideia de não-valorização da cultura, mas o<br />

teatro foi mais forte, foi me puxando e não teve<br />

jeito”, diz ela, para quem a arte tem um importante<br />

papel político. “Eu acredito na arte. E primeiro<br />

de tudo tem que ter um papel político. A<br />

arte questiona, problematiza as questões envolvidas<br />

na história. Ela toca na ferida. Se não toca<br />

na ferida, não é arte, é só entretenimento”.<br />

Wallace Lino, ator que interpreta a pomba-gira<br />

da cena inicial, se encontrou no teatro, mais<br />

especificamente nesse grupo. “A Cia Marginal é<br />

minha vida”, diz. “Foi o único espaço em que<br />

consegui construir um vínculo que não consigo<br />

e nem quero me desligar”. Em sua opinião, encenar<br />

uma peça sobre a Maré é um privilégio,<br />

pois “as pessoas que construíram esse lugar são<br />

exemplos de resistência. Não só na Maré, mas na<br />

maioria das favelas”, diz. Wallace critica a forma<br />

como o poder público age nesses espaços, e<br />

pergunta: “Por que aqui ele atua totalmente diferente<br />

da Zona Sul?”.<br />

HistóriCo<br />

A Cia Marginal é um grupo formado por atores-moradores<br />

da Maré, maior bairro popular do<br />

Rio de Janeiro. Nesse espaço, o grupo desenvolve,<br />

desde 2005, atividades em parceria com a or-<br />

Atores contam histórias e fazem depoimentos pessoais.<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

ganização Redes de Desenvolvimento da Maré.<br />

Seu nome reflete a prática a que se propõe, que<br />

aponta para a liberdade que se encontra às margens<br />

dos sistemas e padrões dominantes. A Cia<br />

realiza ações voltadas para a democratização do<br />

seu método de trabalho, como oficinas teatrais<br />

oferecidas para jovens da favela. Em 2006, o<br />

grupo foi contemplado com o Prêmio de Teatro<br />

Myriam Muniz, da Funarte, que permitiu a<br />

montagem do espetáculo Qual é a nossa cara?.<br />

Em 2009 foi agraciada com patrocínio da Secretaria<br />

de Cultura do Estado do Rio de Janeiro<br />

para a manutenção de suas atividades.<br />

Para a temporada 2010/2011, a Cia Marginal<br />

pretende trabalhar o projeto Do outro lado, que<br />

vai tratar do universo dos presos em regime fechado.<br />

“Me interessa saber como eles passam o<br />

tempo, como constroem a privacidade num lugar<br />

onde a premissa é a subtração da privacidade,<br />

como dão sentido à passagem do tempo”,<br />

explica a diretora Isabel Penoni. O objetivo é<br />

mostrar ao público um pouco da subjetividade<br />

de quem está preso, sobre quem é a pessoa que<br />

está ali, geralmente tida como um número, uma<br />

massa homogênea de criminosos. “Também me<br />

interessa ver como vai se dar a interação com<br />

os atores durante o processo de pesquisa, pois<br />

na favela também há uma série de limitações,<br />

como muros, fronteiras impostas pelo tráfico,<br />

entre outras”, diz Isabel, que trabalha há dez<br />

anos na Maré.<br />

A missão da Cia Marginal é realizar projetos<br />

de pesquisa, criação, produção e democratização<br />

da prática teatral, através de uma gestão coletiva.<br />

O grupo atua em diferentes espaços e está<br />

voltado para um público diversificado, contribuindo<br />

para a descentralização da difusão artística<br />

da cidade do rio de Janeiro, através de um<br />

teatro autoral, contemporâneo e feito com qualidade,<br />

comprometido com a formação de um<br />

pensamento crítico e reflexivo.<br />

A direção da Cia está a cargo de Isabel Penoni.<br />

Em seu elenco estão Priscilla Andrade, Geandra<br />

Nobre, Jaqueline Andrade, Wallace Lino,<br />

Diogo Vitor e Rodrigo Souza. A ficha técnica<br />

do espetáculo Qual é a nossa cara? é a seguinte:<br />

Concepção e Direção: Isabel Penoni; Pesquisa<br />

e Criação: Cia Marginal; Supervisão de Dramaturgia:<br />

Rosyane Trotta; Direção de Arte: Rui<br />

Cortez; Direção Musical: Isadora Medella; Iluminação:<br />

Daniela Sanchez e Rogério Emerson<br />

Magalhães; Programação Visual: João Penoni;<br />

Foto e Vídeo: Davi Marcos; Produção Executiva:<br />

Cia Marginal e Bianca Fero.<br />

O público que esteve presente na noite de<br />

19 de junho, um sábado, no Centro de Artes da<br />

Maré, assistiu a tudo com uma atenção exemplar.<br />

E riu e chorou. E quando a apresentação<br />

terminou, todos aplaudiram de pé por intermináveis<br />

minutos. Não à toa. Os atores estiveram<br />

impecáveis, a iluminação precisa, o figurino estupendo.<br />

Esse espetáculo, esse grupo, poderia<br />

estar em qualquer teatro do mundo.<br />

Marcelo Salles é jornalista.<br />

Colaborou Eduardo Sá, estudante de Jornalismo.<br />

julho 2010 caros amigos<br />

-Salles_160.indd 41 02.07.10 17:15:26<br />

João PeNoNi<br />

41


42<br />

em meados de junho deste ano, o Ministério<br />

da Cultura (MinC) apresentou o anteprojeto<br />

de reforma da lei de direitos<br />

autorais. Se aprovadas, as modificações propostas<br />

colocarão na legalidade uma série de práticas<br />

cotidianas, além de corrigir alguns graves, e óbvios,<br />

problemas da lei. Professores poderão usar<br />

filmes e músicas em sala de aula sem estar cometendo<br />

nenhum crime; cinematecas, museus e bibliotecas<br />

poderão fazer reprodução de seus acervos<br />

para fins de conservação; peças teatrais de<br />

fim de ano poderão tocar música sem ter que pagar<br />

direito autoral; quem comprar um CD poderá<br />

passá-lo para um MP3 player; e as festas poderão<br />

tocar “Parabéns a você” sem correr o risco de ser<br />

importunadas pelos fiscais do direito autoral.<br />

O processo de reformulação da legislação teve<br />

início em 2007, quando foi realizado o Fórum Nacional<br />

de Direito Autoral, promovido pelo MinC.<br />

A partir da constatação da necessidade de mudança<br />

na lei, o órgão se dedicou a debater com os<br />

diversos setores “levantando suas demandas e os<br />

problemas que eles viam no tocante ao direito autoral<br />

e passamos a estudar e debater possíveis soluções”,<br />

conta Marcos Souza, diretor de Direitos<br />

Intelectuais do MinC. Com o material em mãos, o<br />

Ministério formulou a proposta de lei. Até o final<br />

de julho, o órgão recolherá contribuições da sociedade<br />

civil para formatar um projeto de lei que<br />

será encaminhado aos parlamentares.<br />

A reforma da lei atual de direitos autorais, em<br />

vigor desde 1998, é uma demanda de diversos grupos<br />

que a consideram muito rígida em alguns pontos<br />

e desatualizada, devido à expansão da internet.<br />

A lei brasileira é considerada muito restritiva pelas<br />

poucas exceções permitidas, ou seja, situações em<br />

que não é necessário o pagamento de direito autoral<br />

ou de autorização de seus detentores, como no<br />

caso de um professor exibir uma obra em sala de<br />

caros amigos julho 2010<br />

Juliana Sada<br />

Direitos autorais,<br />

a luta pelo acesso ao conhecimento<br />

A reforma da lei atual<br />

de direitos autorais,<br />

em vigor desde 1998,<br />

é uma demanda de<br />

diversos grupos que a<br />

consideram muito rígida<br />

em alguns pontos<br />

e desatualizada.<br />

aula ou da reprodução de uma obra esgotada, também<br />

no âmbito escolar. Outro problema apontado<br />

é que a lei priorizaria os interesses dos intermediários,<br />

sendo estes os que mais lucram sem que os autores<br />

recebam remuneração. Um estudo feito pelo<br />

Gpopai (Grupo de Pesquisas em Políticas Públicas<br />

para o Acesso à Informação) aponta que, no caso<br />

das editoras, de três partes recebidas, duas ficam<br />

para o intermediário e uma para o autor.<br />

Neste ano, a organização “Consumers International”<br />

realizou uma pesquisa em 34 países sobre<br />

o impacto do direito autoral sobre o acesso ao<br />

conhecimento. O Brasil ficou em 28º lugar. Para<br />

Pablo Ortellado, professor da USP e membro do<br />

Gpopai, o direito autoral é um monopólio de exploração<br />

de uma determinada obra, e por isso<br />

deve ser “altamente regulamentado. O impacto<br />

de haver um monopólio sobre um bem tão importante<br />

para a educação, para a cultura, é enorme”.<br />

A regulamentação viria pela criação de exceções<br />

e limitações do direito autoral, de modo a<br />

garantir o acesso da população às obras. Ortellado<br />

cita um estudo feito pelo Gpopai que revelou<br />

que 30% da bibliografia básica dos cursos universitários<br />

está esgotada, a única maneira legal<br />

do estudante ter acesso a estes conteúdos é pelas<br />

bibliotecas, que em geral não tem um acervo capaz<br />

de atender a demanda.<br />

-Direitos_autorais_160.indd 42 02.07.10 17:38:53<br />

imagem de domínio público


Especialistas da área jurídica alertam para a necessidade<br />

de equilibrar o direito autoral com outros<br />

direitos do cidadão. Guilherme Varella, advogado<br />

do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec)<br />

explica que além de proteger os direitos do autor,<br />

de modo que ele continue produzindo, “existe<br />

uma outra função da lei que é a esfera pública e de<br />

atendimento do interesse público e consagração<br />

de alguns direitos que são fundamentais, que são<br />

os direitos à educação, à cultura e o acesso ao conhecimento”.<br />

Esta visão é compartilhada por Marcio<br />

Schusterschitz, promotor do Ministério Público<br />

Federal, para quem o direito autoral não é um<br />

“direito isolado” e sim “transversal” funcionando<br />

como o “porteiro que vai deixar ou não as pessoas<br />

terem acesso à informação e ao conhecimento”.<br />

Nova lei em coNstrução<br />

Diante da constatação destes problemas, o MinC<br />

criou a proposta de lei que agora está em consulta<br />

pública para receber sugestões da sociedade civil,<br />

que posteriormente poderão ser incorporadas<br />

ao projeto. Algumas das mudanças propostas resolvem<br />

questões praticamente consensuais como<br />

a cópia de livros esgotados; execução de músicas<br />

e filmes em igrejas, escolas, cineclubes e no âmbito<br />

doméstico; e a cópia privada (de um livro ou<br />

CD adquirido). Entrariam na legalidade também<br />

a revenda de obras, praticada pelos sebos, e o próprio<br />

empréstimo de livros por bibliotecas, que teoricamente<br />

só pode ser feito mediante autorização<br />

do detentor dos direitos autorais.<br />

Inovações importantes trazidas pelo anteprojeto<br />

são a proibição do jabá (pagamento para execução<br />

de uma música nas rádios); a numeração<br />

de cópias, de modo que o autor possa saber quantas<br />

foram produzidas e evitar fraudes por parte<br />

das gravadoras e editoras; e a criação da licença<br />

compulsória – mecanismo que outorga ao presidente<br />

o poder de autorizar, quando requisitado, o<br />

licenciamento de uma obra se estiver esgotada; se<br />

os detentores dos direitos criarem empecilhos não<br />

razoáveis à exploração de uma obra e se não for<br />

possível determinar o autor de uma obra.<br />

De todas as propostas de modificação apresentadas,<br />

duas já se mostram polêmicas: a permissão<br />

de xerox nas faculdades e a fiscalização<br />

das organizações de gestão coletiva. Essas mudanças<br />

mexem diretamente com os interesses da<br />

ABDR (Associação Brasileira de Direitos Reprográficos),<br />

que reúne editoras, e o Ecad (Escritório<br />

Central de Arrecadação e Distribuição), responsável<br />

por recolher os direitos autorais decorrentes<br />

da execução de músicas.<br />

A primeira modificação tornaria regular uma<br />

prática cotidiana e fundamental no ensino superior.<br />

No entanto, prevê o pagamento de direitos<br />

autorais e estabelece que os detentores de direito<br />

têm que autorizar a reprodução da obra.<br />

Para Ortellado, esse modelo trará uma oneração<br />

muito grande aos estudantes, já que um aumento<br />

de dois ou três centavos por cópia representaria<br />

oitenta reais anuais a mais. Além disso, o<br />

pesquisador acredita que a ABDR não irá autorizar<br />

a reprodução das obras. Esta seria uma situação<br />

que poderia ser corrigida pelo licenciamento<br />

compulsório, entretanto, Ortellado crê que o governo<br />

não tem força política para fazer isso em<br />

massa. Marcos Souza, do MinC, discorda e contra<br />

argumenta que a simples existência do mecanismo<br />

resolve este potencial problema.“Não é<br />

a aplicação constante do mecanismo que vai garantir<br />

a sua observância”, defende.<br />

Já a fiscalização das organizações de gestão<br />

coletiva está incomodando especialmente o Ecad,<br />

entidade responsável por recolher direito autoral<br />

de estabelecimentos que tocam música como rádios,<br />

igrejas e festas. Além de arrecadar o dinheiro,<br />

o Ecad é responsável por distribuí-lo aos autores.<br />

Entretanto, o pagamento não é proporcional<br />

à quantidade de vezes que cada artista foi tocado.<br />

Nem todos que tiveram sua obra executada recebem<br />

os dividendos, apenas os que tiveram maior<br />

destaque. No entanto, este processo e seus critérios<br />

não são considerados suficientemente transparentes<br />

e por isso se tornaram alvos de intensas<br />

críticas. Como a feita pelo deputado federal<br />

Paulo Teixeira (PT/SP): “o Ecad é uma instituição<br />

sem controle da sociedade e nem do seu segmento<br />

específico que é o autor, que não tem nenhuma<br />

garantia que será remunerado devidamente”.<br />

Para resolver esta questão, explica Marcos Souza,<br />

o anteprojeto de lei pretende “dotar o sistema<br />

de arrecadação e distribuição de transparência, de<br />

modo que seja possível o seu controle social por<br />

parte dos principais interessados que são os autores<br />

e artistas”. Entretanto, para o parlamentar, a<br />

melhor solução seria “extinguí-lo e promover um<br />

órgão transparente no qual os autores participem<br />

para fiscalizar seus ganhos”.<br />

DemaNDa Da iNDústria<br />

O pano de fundo da disputa pelos direitos autorais<br />

é muito mais amplo que a alegada defesa<br />

do criador. Diversos acordos internacionais estabelecem<br />

normas para a área e o Consenso de<br />

Washington, que definiu as diretrizes do neoliberalismo,<br />

estabelece como uma de suas dez regras<br />

básicas o direito à propriedade intelectual.<br />

Uma das maneiras de ingerência externa nesta<br />

questão são os acordos bilaterais feitos pelos Estados<br />

Unidos, que exigem como contrapartida<br />

uma elevada proteção ao direito intelectual. No<br />

entanto a medida mais abrangente vem da Organização<br />

Mundial do Comércio (OMC), já para<br />

ser membro desta é necessário aderir ao “Acordo<br />

sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual<br />

Relacionados ao Comércio”, conhecido<br />

como Trips, que forçou a criação de leis de proteção<br />

à marcas e patentes em diversos países.<br />

Essas restrições e exigências internacionais<br />

são frutos de investidas das indústrias do campo<br />

do direito autoral (fonográfica, audiovisual, editorial,<br />

games e softwares), a partir da década de<br />

80. Pablo Ortellado conta que a indústria do direito<br />

autoral se associou com a indústria de patentes<br />

(sobretudo de fármacos) e “começaram a<br />

imaginar o mundo que elas queriam daqui a 30<br />

anos”. Gradualmente foram introduzindo restrições<br />

de direito autoral aos países com os quais os<br />

Estados Unidos mantinham relações bilaterais.<br />

O segundo passo foi incorporar a exigência de<br />

Novo sítio: www.carosamigos.com.br<br />

respeito aos direitos autorais no dispositivo 301,<br />

que é um mecanismo que dá benefícios tarifários<br />

para países em desenvolvimento para exportar aos<br />

EUA. A cada ano é feito um relatório que analisa<br />

a legislação de direitos autorais de cada país e seu<br />

cumprimento e apresenta um julgamento - o Brasil<br />

já foi criticado pela questão dos medicamentos<br />

genéricos e pela cópia de livros. Finalmente, a indústria<br />

introduziu na OMC o dispositivo Trips que<br />

“em um golpe só obrigou todos os países a cumprir<br />

prazos muito altos de proteção de patentes e<br />

direito autoral”, explica Ortellado.<br />

Atualmente, há duas iniciativas de endurecimento<br />

de legislação de direitos autorais no mundo.<br />

A primeira é a chamada “resposta gradual”<br />

com o intuito de combater a pirataria na internet,<br />

que prevê advertências a usuários de internet<br />

que fizerem downloads ilegais e, se houver<br />

reincidências, a conexão de internet seria cortada.<br />

Esse tipo de regulamentação foi debatida em<br />

diversos países europeus, sempre acompanhada<br />

de protestos e controvérsias.<br />

Projeto em DisPuta<br />

Diante deste quadro de ofensiva da indústria e<br />

enrijecimento da proteção ao direito autoral mundialmente,<br />

o anteprojeto brasileiro se apresenta<br />

como um avanço progressista. Para Marcos Souza,<br />

do MinC, é possível apontar três áreas de avanço<br />

na proposta: maior proteção aos autores, como<br />

por exemplo pela “possibilidade explícita de autores<br />

reverem contratos de cessão [de direitos] em<br />

determinados casos”; melhor harmonização entre<br />

“os direitos conferidos aos autores e os do cidadão<br />

de ter acesso a cultura e ao conhecimento”; e, por<br />

fim, mais segurança aos investidores da cultura,<br />

por dar clareza a alguns dispositivos da lei.<br />

Na mesma linha, Pablo Ortellado acredita que<br />

a grande inovação da lei é estar na contramão do<br />

movimento mundial e aponta como melhorias o<br />

aumento de proteção dada ao autor frente aos intermediários<br />

e o maior acesso que o público terá ao<br />

conhecimento. Ainda assim, faz críticas a determinados<br />

pontos e, sobretudo, a um assunto que não<br />

foi discutido: o compartilhamento de arquivos entre<br />

internautas, o chamado P2P, prática extremamente<br />

disseminada, mas que segue na ilegalidade.<br />

Entretanto, muitas modificações poderão ser<br />

feitas, tendo em vista que o anteprojeto receberá<br />

contribuições da sociedade até o fim de julho para<br />

então tramitar no parlamento. Este modelo de consulta<br />

pública já foi utilizado no debate do marco civil<br />

da internet e muito elogiado, pela sua possibilidade<br />

de participação e transparência.<br />

Após a sistematização da consulta pública e<br />

formulação de um novo projeto, a proposta será<br />

encaminha à Câmara dos Deputados, provavelmente<br />

ainda neste ano. O deputado federal Paulo<br />

Teixeira (PT/SP) acredita que a iniciativa é a<br />

favor da sociedade e do acesso ao conhecimento,<br />

mas reconhece que há “uma pressão dos produtores<br />

no sentido de restringir, inclusive deixando<br />

de entender que a indústria pode ganhar muito<br />

com a difusão cultural na internet”.<br />

Juliana Sada é jornalista.<br />

julho 2010 caros amigos<br />

-Direitos_autorais_160.indd 43 02.07.10 17:38:53<br />

43


44<br />

IDEIAS DE BOTEQUIM<br />

Renato Pompeu<br />

As capacidades dos<br />

CANDIDATOS<br />

Senac publica livro de psiquiatra que exige controle da<br />

democracia, como o exame biológico dos candidatos.<br />

A Editora Senac São<br />

Paulo acaba de lançar o livro Cérebro<br />

e poder, em que o psiquiatra<br />

forense catalão Adolf Tobeña,<br />

catedrático da Universidade Autônoma<br />

de Barcelona, demonstra,<br />

segundo a apresentação do<br />

próprio Senac, que “a biologia<br />

humana impõe que, para liderar<br />

ou governar, devem prevalecer<br />

capacidades como a astúcia, a<br />

persuasão, a audácia, a manipulação,<br />

a falsidade, a crueldade...<br />

a fi m de que se possa aproveitar<br />

da necessidade que os indivíduos<br />

sentem de ser conduzidos e de<br />

sonhar com ilusões de um grande<br />

futuro. Sempre foi assim, e as atitudes<br />

que assumimos ao interagir<br />

socialmente dependem de nossos<br />

circuitos neurais e das modifi cações dos estímulos hormonais de que todos<br />

somos portadores – atributos esses que têm uma infl uência decisiva<br />

nas competições entre os humanos”.<br />

O próprio Tobeña afi rma, na conclusão: “Entre os políticos de renome,<br />

e também entre os de segundo e terceiro escalão, há uma proporção descomedida<br />

de delinquentes e de paradelinquentes. (....) É assim e continuará<br />

sendo. Todo mundo sabe, Deus e o mundo estão perfeitamente conscientes<br />

disso”. E deduz: “Por isso é tão importante ir criando mecanismos na democracia,<br />

que atenuem a tendência ‘natural’ para a absorção do governo<br />

por parte dos aproveitadores de diferentes laias e dos seus comparsas”.<br />

Conclui Tobeña que “a diversifi cação de poderes institucionais<br />

que tendem a compensar e a autovigiar-se é imprescindível”, sendo ainda<br />

melhor “a limitação temporal do período de governo das administrações”.<br />

Finalmente, diz: “Mas essa engenharia institucional terá de ir se sofi sticando<br />

e refi nando-se sem cessar, além de ir pondo em prática detectores<br />

– procedimentos diagnósticos, em resumo –, de quem se associa incondicionalmente<br />

a bandidagens. Porque, para domar a biologia parasitária, requerem-se<br />

esforços sistemáticos. Esforços que começam, é claro, por não<br />

negá-la em assuntos de poder e domínio”.<br />

UM ROMANCE DO TIMOR LESTE,<br />

Bolsa Família, Walter Benjamin, prostitutas...<br />

O escritor e militante timorense do leste Luís Cardoso já teve<br />

livros traduzidos para o alemão, francês, holandês, inglês e sueco. Mas<br />

só agora chega ao Brasil, apesar de falarmos a mesma língua em que ele<br />

escreve. Seu romance Requiem para o navegador solitário acaba de ser<br />

caros amigos julho 2010<br />

lançado pela Língua Geral. Tratase<br />

de uma jovem que, enquanto<br />

luta para recuperar as terras que<br />

sua família perdeu sob o domínio<br />

indonésio, sonha em receber<br />

no porto um navegador solitário<br />

francês, cuja viagem conhece por leituras e que acha que vai mudar sua<br />

vida. O Timor Leste da época é apresentado como “ilha-prisão”<br />

Já a Editora Perseu Abrano, ligada ao PT, publicou a segunda<br />

edição, revista e atualizada, do livro Bolsa Família – Avanços, limites<br />

e possibilidades do programa que está transformando a vida de milhões<br />

de famílias no Brasil, do pesquisador Marco Aurélio Weissheimer. A conclusão<br />

é que, embora tenhamos chegado ao “ponto mais alto”, na história<br />

do País, da luta contra à pobreza, esta não pode ser reduzida de fato sem<br />

a reforma agrária.<br />

Um seminário na Universidade Federal Fluminense sobre o famoso ensaísta<br />

marxista heterodoxo Walter Benjamin, judeu alemão que se suicidou<br />

diante da iminência de ser capturado por tropas nazistas na fronteira<br />

da França com a Espanha, está na origem dos artigos publicados no volume<br />

Walter Benjamin: arte e experiência, organizado por Luiz Sérgio de Oliveira<br />

e Martha D’Angelo, lançado pela Editora da UFF e Nau Editora. Diz a apresentação,<br />

sobre Benjamin: “Foi a partir da avaliação sobre a impossibilidade<br />

da experiência humana se realizar por meios naturais na modernidade<br />

que a experiência do artista tornou-se fundamental para ele”.<br />

Também da Editora da UFF é o livro Vila Mimosa – etnografi<br />

a da cidade cenográfi ca da prostituição carioca, da pesquisadora Soraya<br />

Silveira Simões. A obra retraça a<br />

trajetória dos habitantes e freqüentadores<br />

dessa vila da famosa “zona do<br />

Mangue”, no centro do Rio, que diante<br />

da demolição do lugar se organizaram<br />

em um novo empreendimento<br />

junto à antiga estação de trem da Leopoldina.<br />

Trata-se de “prostitutas, rufi<br />

ões, cafetinas, birosqueiros e malandros”<br />

e de “habitués, frequentadores<br />

eventuais, clientes apaixonados, onanistas<br />

e voyeurs”.<br />

Renato Pompeu é jornalista e escritor,<br />

autor do romance-ensaio O Mundo<br />

como Obra de Arte Criada pelo<br />

Brasil, Editora Casa Amarela, e editorespecial<br />

de Caros Amigos. Envio de livros<br />

para a revista, rua Paris, 856, cep<br />

01257-040, São Paulo-SP.<br />

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C<br />

C<br />

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M<br />

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Y<br />

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CM<br />

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MY<br />

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CY<br />

CY<br />

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CMY<br />

CMY<br />

CMY<br />

K<br />

K<br />

K<br />

Há uma tese que corre em setores políticos distintos,<br />

mas que convergem em torno dela e, pelos equívocos que contém<br />

e pelas consequências desastrosas que gera, deve ser analisada.<br />

É a tese de que o PT e o PSDB são a mesma coisa, assim<br />

como os governos do FHC e do Lula.<br />

A tese leva a uma espécie de “terceirismo”, de candidaturas<br />

que definem equidistância em relação às candidaturas da Dilma<br />

e do Serra e que já teve posições de voto branco ou nulo no<br />

segundo turno entre Lula e Alckmin.<br />

Se os governos de FHC e Lula fossem iguais, a<br />

desigualdade teria diminuído e não aumentado durante o governo<br />

de FHC. Se fossem iguais, a reação do Brasil durante a<br />

crise econômica internacional recente teria sido a mesma de<br />

FHC: aumentar a taxa de juros a 48%, pedir novo empréstimo<br />

ao FMI e assinar a correspondente Carta de Intenções (deles),<br />

cortando recursos das políticas sociais, aumentando a recessão<br />

e o desemprego, levando o Brasil a uma profunda e prolongada<br />

recessão, que só foi superada no governo Lula.<br />

Se fossem iguais, não teria tido sentido a luta contra a<br />

ALCA – Área de Livre Comércio das Américas -, que FHC propugnava<br />

e que o governo Lula inviabilizou, para fortalecer<br />

os processos de integração regional. Dizer que são governos<br />

iguais ou similares é dizer que tanto faz privilegiar alianças<br />

subordinadas com as grandes potências do centro do capitalismo<br />

ou aliar-se prioritariamente com os países do Sul do<br />

mundo, os Brics entre eles.<br />

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Emir Sader<br />

SE TUDO FOSSE IGUAL<br />

Se fossem iguais os governos FHC e Lula, o Estado<br />

mínimo a que tinha sido reduzido o Estado brasileiro seria o<br />

mesmo que o Estado indutor do crescimento e garantia da extensão<br />

dos direitos sociais da maioria pobre da população. O<br />

desenvolvimento, anulado do discurso de FHC, foi resgatado<br />

como objetivo estratégico pelo governo Lula, articulado intrinsecamente<br />

a políticas sociais e a distribuição de renda.<br />

É grave quem não consiga ver essas diferenças. Perde a capacidade<br />

de identificar onde está a direita – o inimigo fundamental<br />

do campo popular – correndo o grave risco de fazer o<br />

jogo dela, em detrimento da unidade da esquerda.<br />

SUGEStõES dE LEItUrA<br />

DIANTE DA CRISE GLOBAL:<br />

HORIZONTES DO PÓS-NEOLIBERALISMO<br />

Ulrich Brand e Nicola Sekler (orgs.)<br />

Eduerj<br />

COMBATENDO A DESIGUALDADE SOCIAL: O MST E A REFORMA<br />

AGRÁRIA NO BRASIL<br />

Miguel Cartes<br />

Edunesp<br />

OS CANGACEIROS – Ensaio de interpretação histórica<br />

Bernardo Pericás<br />

Boitempo Editorial<br />

Emir Sader é cientista político.<br />

setembro 2009 caros amigos<br />

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