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José Arbex Jr.<br />
Uma guerra antissemita<br />
para salvar o capital<br />
“Israel é a nossa primeira linha de defesa<br />
em uma agitada região que está constantemente sob o<br />
risco de cair no caos; uma região que é vital para a segurança<br />
energética mundial devido à nossa dependência<br />
excessiva de petróleo do Oriente Médio; uma região<br />
que forma a linha de frente na luta contra o extremismo.<br />
Se Israel cai, todos nós cairemos.<br />
(...) O Ocidente está atravessando um período de incerteza<br />
com relação ao futuro do mundo. No sentido<br />
amplo, esta incerteza é causada por uma espécie de<br />
dúvida masoquista sobre nossa própria identidade; pela<br />
regra do politicamente correto; por um multiculturalismo<br />
que nos obriga a curva-nos diante dos outros; e<br />
por um secularismo que, cinicamente, nos cega, mesmo<br />
quando somos confrontados por membros do jihad promovendo<br />
a encarnação mais fanática de sua fé. Deixar<br />
Israel à sua própria sorte, neste momento crucial, serviria<br />
apenas para ilustrar o quanto afundamos e como<br />
nosso declínio inexorável agora se torna eminente.<br />
(...) Israel é uma parte fundamental do Ocidente. O<br />
Ocidente é o que é graças às suas raízes judaico-cristãs.<br />
Se o elemento judeu dessas raízes for retirado e perdemos<br />
Israel, também estamos perdidos. Quer queira ou<br />
não, nosso destino está interligado.”<br />
Os trechos acima fazem parte de um texto<br />
de José Maria Aznar, primeiro ministro da Espanha<br />
entre 1996 e 2004, publicado no Times de Londres,<br />
em 17 de junho. O texto tem o mérito da extrema<br />
clareza, equiparável ao seu cinismo colonialista. Aznar<br />
faz um diagnóstico correto da crise mundial: “O<br />
Ocidente está atravessando um período de incerteza<br />
com relação ao futuro.” Nesse contexto, Israel – “parte<br />
fundamental do Ocidente” - joga um papel essencial<br />
no Oriente Médio, “região que é vital para a segurança<br />
energética mundial”. O raciocínio é sintetizado<br />
pela sentença: “Se Israel cai, todos nós cairemos.”<br />
Aznar não é um fulano qualquer, ainda que o sobrenome<br />
reflita sua vocação intelectual. Ele é filho dileto<br />
do franquismo e expressa os sentimentos mais atrasados,<br />
reacionários e conservadores da Europa branca,<br />
católica e chauvinista. Aznar é um cruzado, como<br />
aqueles que propunham o extermínio dos semitas (judeus<br />
e mouros) na Idade Media, especialmente na Espanha<br />
de Isabel de Castela e Fernando de Aragão. Mas,<br />
dado o papel geopolítico de Israel no mundo contemporâneo,<br />
Aznar é obrigado a fazer o elogio dos judeus,<br />
reservando a babação antissemita ao Islã. É um discurso<br />
bizarro, num país que viveu mais de sete séculos sob<br />
influência moura, e de onde foram expulsos pela Inquisição<br />
de Torquemada (ele próprio, um cristão novo)<br />
centenas de milhares de judeus que procuraram abrigo<br />
exatamente nos países islâmicos.<br />
Discurso bizarro, mas coerente com a estratégia<br />
e os sentimentos da Igreja Católica. Não por acaso, o<br />
Vaticano se opõe frontalmente à entrada da Turquia na<br />
União Europeia, apesar de todas as reformas “ocidentalizantes”<br />
feitas pelos turcos desde 1920, quando Kemal<br />
Ataturk assumiu o poder e tratou de liquidar o que ainda<br />
existia do Império Otomano. Em 2004, o então cardeal<br />
Joseph Ratzinger declarou ao Giornale del Popolo,<br />
da diocese de Lugano (Suíça), que a eventual entrada<br />
da Turquia na UE seria um ato anti-histórico. “Histórica<br />
e culturalmente, a Turquia pouco pode partilhar com<br />
a Europa, pelo que, com todo o respeito que tenho para<br />
com esse país, seria um grande erro englobar a Turquia<br />
na UE”, afirmou o então Prefeito da Congregação para a<br />
Doutrina da Fé (a atual Inquisição). Um país muçulmano<br />
não tem lugar numa Europa cristã, ainda que as reformas<br />
“modernizantes” da Turquia tenham permitido, por<br />
exemplo, a participação de mulheres em eleições antes<br />
de Portugal e de vários países europeus (e do Brasil).<br />
Resumo da ópera: os islâmicos, em particular os turcos,<br />
até são bons o suficiente para servirem de bucha<br />
de canhão da Otan, da qual são membros, mas jamais<br />
para conviver em igualdade com os europeus. É também<br />
a convicção do recém-eleito presidente do Conse-<br />
lho Europeu, o belga Herman Van Rompuy, democrata<br />
cristão e católico fundamentalista. Suas posições inflexíveis<br />
sobre o Islã e a Turquia foram fundamentais para<br />
conseguir o apoio do presidente francês Nicolas Sarkozy<br />
e da chanceler alemã Ângela Merkel (também democrata-cristã)<br />
à sua nomeação ao cargo de presidente do<br />
Conselho. Como é a posição do primeiro-ministro italiano<br />
Sílvio Berlusconi, neofascista que chegou a afirmar<br />
publicamente a “superioridade da civilização ocidental”<br />
comparada ao mundo islâmico.<br />
O discurso de Aznar é, ao mesmo tempo, um diagnóstico<br />
correto da profundidade da crise e uma cínica<br />
preparação para uma guerra de grandes proporções. O<br />
capital, como todos estão carecas de saber, resolve suas<br />
crises econômicas e financeiras com atos selvagens de<br />
destruição em massa – como aconteceu nas guerras<br />
mundiais do século passado. Se, para “salvar a Europa”<br />
(especialmente a Espanha, onde 40% dos jovens estão<br />
desempregados) e o capitalismo for necessário armar<br />
uma guerra total ao Islã, que assim seja. Israel está no<br />
Oriente Médio como posto avançado do “Ocidente” e<br />
deverá cumprir sua parte na nova cruzada, ainda que a<br />
pretexto de defender sua própria existência.<br />
Aznar é o porta-voz do “choque de civilizações”,<br />
pseudo “teoria” sem qualquer fundamento na<br />
realidade, mas tão útil aos propósitos do capital quanto,<br />
nos anos 30, o foram as fantasias mirabolantes dos<br />
“protocolos dos sábios do Sião” para um sujeito chamado<br />
Adolf. O povo israelense e os judeus de todo o<br />
mundo não deveriam se iludir com a aparente simpatia<br />
demonstrada pela extrema direita europeia. Ela continua<br />
tão antissemita como sempre: os seus tambores da<br />
guerra oferecem novamente os filhos de Israel em holocausto,<br />
mas agora em nome da defesa dos “valores<br />
ocidentais”. Se depender da vontade de Aznar e similares,<br />
o capital será recomposto sobre os cadáveres de<br />
milhões de judeus e islâmicos. E a região, “vital para a<br />
segurança energética mundial”, será reconstruída pelas<br />
imensas empreiteiras e corporações europeias e estadunidenses,<br />
para ser novamente transformada em um civilizado<br />
protetorado “ocidental”.<br />
Simples assim.<br />
José Arbex Jr. é jornalista.<br />
junho 2010 caros amigos<br />
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Ilustração: carvall<br />
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