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comando (o que não significa dizer que as posições<br />
foram, definitivamente, despersonificadas),<br />
colocando em destaque uma única coisa, o<br />
comando. Me parece que é essa coisa que deve<br />
ser compreendida.<br />
Karina Biondi – Mas isso também não quer<br />
dizer que não existam esses caras. Existe o piloto,<br />
o irmão, o primo. O que a gente está falando<br />
aqui é que não dá pra dispô-los numa estrutura<br />
hierárquica. Mas explicando: o primo é<br />
o cara que corre com o comando, nos termos<br />
deles. Não quer dizer pertencer nem quer dizer<br />
não pertencer. É o cara que está em cadeia do<br />
PCC, portanto que vive de acordo com a ética<br />
do PCC, mas ele não é batizado no PCC. O irmão<br />
é batizado. E aí tem algumas variações...O<br />
irmão excluído, que não é nem primo nem irmão,<br />
as cunhadas que são as mulheres dos irmãos.<br />
Faxina é uma coisa que já existia antes<br />
do PCC, é o nome de uma cela na verdade. Cela<br />
da faxina e tem o homem da faxina, tem a faxina<br />
e o faxina.<br />
Adalton Marques – Quase sempre quando se<br />
fala dessas coisas, a gente replica questões estatais.<br />
Como se esses caras estivessem numa posição<br />
de subjugar e manipular a população carcerária,<br />
a massa. E é de algum modo tratar o resto como<br />
massa, sem consciência, apenas alvos de políticas.<br />
Esse é o modelo, a propósito, que usamos para julgar<br />
aqueles que votam num ano na Heloísa Helena<br />
e noutro no Collor: “Não sabe de política; não<br />
tem consciência política; é manipulado”. A gente<br />
tem esse ranço de achar que na verdade a política<br />
só acontece quando está norteada por algum<br />
princípio que a gente acha correto. E temos a mania<br />
de replicar isso pra prisão: “ah, é a massa, que<br />
diante de uns caras um pouco mais fortes ou um<br />
pouco mais inteligentes, não pensa, não faz porra<br />
nenhuma”. Liderança não é simplesmente mandar<br />
no outro, porque dentro desse processo de constituição<br />
desses homens, ser mandado por outro<br />
é se tornar o que eles designam de lagarto. E lagarto<br />
é a pior coisa do mundo. Ladrão é cabuloso,<br />
troca tiro com a polícia, ladrão tem um ethos<br />
guerreiro, sei lá, ladrão é ladrão. E ser mandado<br />
por outro ladrão é a pior coisa que tem no mundo,<br />
é ser esquema do outro, é ser lagarto. Esses caras<br />
falam assim: você tem que ficar atento porque<br />
todo mundo que foi líder do PCC, que foi fundador,<br />
general, que atribuiu posições de chefia pra<br />
si mesmo, o que aconteceu com esses caras? Ou<br />
morreram ou foram expulsos. Então o que é mandar<br />
dentro desse comando? Talvez mandar dentro<br />
desse comando seja se colocar na posição do próximo<br />
a ser morto.<br />
E o que são os salves?<br />
Karina Biondi – Muita gente fala que o salve<br />
é uma ordem, mas não é.<br />
Adalton Marques – É uma ideia.<br />
Karina Biondi – O PCC está fora do regime jurídico,<br />
então as coisas não funcionam na base da<br />
lei, do quem cumpre e quem não cumpre, quem<br />
manda e quem não manda. O salve eu diria que<br />
são mais orientações, recomendações, já que ninguém<br />
é obrigado a nada.<br />
caros amigos julho 2010<br />
E eles partem de onde?<br />
Karina Biondi – Existem salves gerais, que<br />
vêm das torres e se espalham para as quebradas.<br />
As torres são posições políticas da onde partiriam<br />
esses salves.<br />
Adalton Marques – Onde que está a torre?<br />
Ela está numa cela exclusiva dentro de uma cadeia?<br />
Não, ela está tirando cadeia nas mesmas<br />
celas com outros homens, sai pro pátio com outros<br />
homens, escuta ideias de outros homens...<br />
Karina Biondi – Ou às vezes a torre é designada<br />
uma cadeia inteira, essa cadeia é torre.<br />
O que não implica que todos os presos de lá<br />
sejam torres.<br />
Adalton Marques – Pensar que a ideia<br />
parte da cabeça do torre é muito jurídico. Como<br />
é que se constitui um salve? Ele pode se constituir,<br />
imagino eu, a partir de um acontecimento<br />
específico que exige uma reflexão para a qual<br />
talvez as situações passadas não dão conta de<br />
resolver.<br />
Karina Biondi – Como o exemplo de quem<br />
dorme ou não na cama. Antes era o preso que<br />
cumpriu mais tempo de pena que dormia na<br />
cama, e os outros dormiam no chão, porque são<br />
40 presos por cela e 12 camas só, como se decide?<br />
Dizem que antes era pela força, ou vendiam-se<br />
as camas, isso é uma coisa que dizem<br />
que foi abolida pelo PCC. Só que aí acontece um<br />
caso em que um cara cumpriu 20 anos, foi pra<br />
rua e voltou uma semana depois. “O cara foi pra<br />
rua, se não ficou por lá a culpa é dele, eu já subi<br />
pra cama e estou há 12 anos aqui, ininterruptos”.<br />
Antes o critério era o tempo total de cadeia,<br />
e isso foi para debate. E aí se decidiu que<br />
o que vale é o tempo ininterrupto, se saiu nem<br />
que foi meio dia na rua, você desce pra dormir<br />
no chão. Então são situações que aparecem. Alguns<br />
salves são lidos. São passados por telefone,<br />
transcritos sabe-se lá como. E são lidos no<br />
pátio da cadeia, na presença dos funcionários.<br />
E outros só importam aos que estão na faxina,<br />
aos que são pilotos...<br />
Adalton Marques – Tem uma política colocada<br />
pra esses caras que é manter a paz entre<br />
os ladrões e bater de frente com a polícia. Daria<br />
pra gente dizer, forçando um pouco a barra,<br />
que são salves permanentes. Orientações permanentes.<br />
Onde que surgiram essas orientações?<br />
Elas surgiram em 93 num jogo de futebol? Não.<br />
Surgiram depois num processo depois de pensar<br />
num estatuto? Não necessariamente. Eu tenho<br />
dados de 74, 76, 78, em que essa questão de parar<br />
de se matar, e de bater de frente com agente<br />
e com polícia já era colocada. Então isso não<br />
é um enunciado que apareceu, essa coisa estava<br />
colocada. O PCC coloca isso num patamar diferente<br />
de considerações, mas as coisas não saem<br />
do nada, saem de relações. Têm que ser procuradas<br />
nas relações.<br />
Nesse sentido de não hierarquia, como isso<br />
contrasta ou não com o enquadramento de<br />
crime organizado? O PCC é uma organização<br />
criminosa? Tem fins econômicos puramente,<br />
tem um caixa?<br />
Adalton Marques – A noção de crime organizado<br />
é uma figura que não possui definição jurídica<br />
constante em nossa legislação, ainda não<br />
saiu do campo doutrinário. Está totalmente imbricada<br />
com as noções de bando e de quadrilha,<br />
oriundas do artigo 288 do Código Penal. Tem<br />
também a definição da Convenção de Palermo,<br />
da qual somos signatários. A questão é que crime<br />
organizado não tem definição, ou pelo menos<br />
têm várias. Algumas quantificam o número<br />
de pessoas associadas ao crime, outras elencam<br />
características estruturantes do tipo disposição<br />
empresarial, hierarquia, divisão de funções, motivação<br />
financeira, etc. Seja como for, a noção<br />
de crime organizado não parece funcionar bem<br />
conceitualmente. E, ao que me parece, mais difícil<br />
do que conceituar precisamente o que é crime<br />
organizado, é a tarefa de dizer o que é o PCC<br />
e outros comandos. Apesar disso, a noção de crime<br />
organizado está funcionando a pleno vapor,<br />
enquadrando presos no Regime Disciplinar Diferenciado<br />
– a despeito de uma série de posições<br />
que apontam a inconstitucionalidade desse dispositivo<br />
penitenciário.<br />
Isso seria um instrumento da repressão para<br />
rotular o inimigo mais facilmente e poder<br />
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