30 caros amigos julho 2010 Tatiana Merlino Fechando o fosso entre a pobreza e a universidade Cursinhos populares proporcionam o acesso à educação superior no Brasil para estudantes de baixa renda imagine uma sala de cursinho pré-vestibular. Imagine o perfil dos alunos que estudam ali. Provavelmente, a maioria das pessoas pensaria em jovens brancos, de classe média. Esse seria o cenário dos cursos preparatórios para o ensino superior não fosse a existência de cursinhos pré-vestibular populares. Surgidos a partir da década de 1990 com o objetivo de auxiliar na democratização do acesso à universidade, tais cursinhos ajudam jovens (e não tão jovens) de baixa renda a conquistarem o sonho do diploma de uma universidade. De acordo com Henrique Nagao Hamada, coordenador do Cursinho da Psico, ligado à Faculdade de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), “os cursinhos populares realizam um trabalho de inserção de jovens e adultos de baixa renda em universidades públicas, partindo do princípio do direito à educação. Eles ajudam a diminuir o abismo existente entre essas pessoas e as universidades públicas. Também auxiliam na democratização do acesso à universidade como medida paliativa para uma transformação maior na educação brasileira”. -Tatiana_160.indd 30 02.07.10 17:09:49
Hamada explica que essas instituições foram criadas num contexto histórico marcado pelo “sucateamento do ensino público e mercantilização da educação privada”. O vestibular, por sua vez, “tem se tornado cada vez mais uma barreira de seletividade econômica, que desconsidera as condições sociais concretas de jovens populares”. Para ele, há uma suposta objetividade oferecida pelos exames de admissão, assumidos como um instrumento igual para todos aqueles aptos a prestá-los. “Como fruto desse processo, observamos a naturalização de desigualdades social e historicamente produzidas”. Processo seletivo Em muitos casos, os cursinhos populares são fundados por iniciativa de professores, grêmios ou centros acadêmicos das próprias universidades, a exemplo do Cursinho da Poli, de iniciativa da Escola Politécnica da USP, e o Cursinho Popular da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Há, também, os oferecidos por movimentos sociais, como a Educafro (Educação e Cidadania de Afro-descendentes e Carentes) e a Uneafro (União de Núcleos da Educação Popular para Negros e Classe Trabalhadora). Porém, nem todos são absolutamente gratuitos, a exemplo dos que não possuem instituições responsáveis por sua manutenção. Nesses casos, suas estruturas são garantidas por meio de pagamento de taxas simbólicas. Em alguns, os professores são estudantes voluntários, em outros, recebem uma “ajuda de custo” pelo trabalho realizado. Para assegurar que os inscritos sejam pessoas de baixa renda, a admissão é feita após um processo seletivo em que se avalia a condição socioeconômica do candidato. O perfil dos alunos atendidos pela Uneafro é semelhante ao de Anderson Lima da Silva, de 21 anos. Morador do bairro Pedreira, na zona sul de São Paulo, o jovem estuda no cursinho da entidade há oito meses. Entre suas opções para o vestibular, estão geografia, ciências sociais ou serviço social. Filho de pernambucanos que vieram tentar a vida em São Paulo, o rapaz, além de aluno, é voluntário na secretaria do cursinho. “No começo, meus pais não aceitavam, porque diziam que eu tinha que dar preferência para trabalho remunerado, que isso não ia encher barriga”, relata. Filho de mãe faxineira e pai pedreiro, Anderson acredita que o cursinho ajuda “na inclusão das pessoas que vêm da base”. Segundo ele, o foco da instituição é preparar os alunos para as universidades públicas federais e estaduais “que não foram feitas para nós, negros, trabalhadores e toda essa massa das bases”. Bairros Periféricos O cursinho da Uneafro é organizado em núcleos. Cada um deles é responsável por uma unidade do curso. São 42 espalhados pelo Estado de São Paulo, em cidades como Atibaia, Bragança Paulista, Campinas, Ribeirão Preto, Jundiaí e Piracicaba. Na capital paulista, há cursos organizados em bairros periféricos como Parque São Rafael, Jardim São Francisco e Penha. Na região central, está o núcleo que Anderson frequenta, localizado na rua da Abolição. A maioria dos cursos da Uneafro é realizada aos fins de semana, com poucas exceções, entre elas, o frequentado por Anderson, que funciona de segunda a sexta-feira, das 19h às 22h45. Os demais são aos sábados, das 8h às 17h. “Cada núcleo pode cobrar no máximo R$ 20 dos alunos, variando de acordo com as necessidades”, explica Vanessa Cristina do Nascimento, coordenadora da Uneafro. Como os professores são voluntários, o valor cobrado dos alunos é revertido para o lanche oferecido no intervalo das aulas, para a condução dos professores e para a manutenção do núcleo, formado por quatro ou cinco coordenadores. Segundo Vanessa, a proposta do cursinho é oferecer, além do conteúdo cobrado no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e no vestibular, formação política. “Discutimos temas que estão na mídia. A gente dá a versão diferente do que a Globo divulga. Estamos formando alunos críticos”. Tais aulas, explica, têm a mesma carga horária que as disciplinas tradicionais, “pois não adianta o aluno ser craque em matemática se ele não é politizado”. Porém, ela garante que são cobradas todas as matérias. formação Política O incentivo à formação político-cultural está presente em muitos cursinhos populares, e é uma das características que os diferem dos cursinhos comerciais. “A diferença entre o popular e o comercial está basicamente no valor e nos objetivos de cada um: o comercial tende a ter suas atividades voltadas quase exclusivamente para os vestibulares, enquanto os populares tendem a oferecer, além da preparação para os vestibulares, um olhar voltado para a formação cidadã”, explica Gilberto Alvarez Giusepone Jr., diretor-geral do Cursinho da Poli. “Os cursinhos populares ajudam a diminuir o abismo existente entre estudantes de baixa renda e as universidades públicas”. “Os pré-vestibulares populares não funcionam apenas como formadores de candidatos aptos a passar no vestibular, mas também como questionadores do modelo excludente de educação do País”. Novo sítio: www.carosamigos.com.br Esse aspecto foi preponderante para João Victor Pavesi de Oliveira na hora da escolha do curso pré vestibular. “Comecei a fazer o cursinho da Acepusp [Associação Cultural de Educadores e Pesquisadores da USP, criado por um grupo de ex-alunos da Universidade] por uma questão política. O lado financeiro também pesou, mas não foi o decisivo”. Ao final do ano, João foi aprovado no vestibular da USP, no curso de Geografia. Meses depois, passou a trabalhar como professor plantonista do cursinho e, depois, como professor. O jovem também lecionou nos cursinhos pré vestibulares da Poli e Psico, e acredita que a existência de cursinhos populares é muito relevante, por questionarem o problema do acesso à educação pública. “Mas, para que ele seja efetivo, tem que ter como plano estratégico o seu fim, que é o acesso universal à educação”. Assim, os cursinhos populares não funcionam apenas como formadores de candidatos aptos a passar no vestibular, mas também como questionadores do modelo excludente de educação do País. “A gente pressiona por políticas públicas”, afirma Vanessa, da Uneafro. “Um dos desafios é buscar participação popular ativa na reformulação e no desenvolvimento de vias alternativas de acesso à universidade”, elucida Hamada. Por conta dessas concepções, parte dos cursinhos se autodenomina pré-universitário, ao invés de pré-vestibular. “Nossa proposta não é apenas preparar os alunos para as provas seletivas das universidades, mas levar os jovens a terem consciência de sua importância na formação da sociedade”, explica Giusepone Jr. Para Hamada, “essa distinção permite assumirmos o vestibular não como um fim em si (foco exclusivo de nossos esforços), mas como um meio (se não obstáculo) para algo maior: a inserção e relação dos estudantes com a universidade”. Para manter o debate político, a Uneafro realiza encontros de formação. Uma vez ao mês, prepara uma aula pública. “Pegamos lousa e carteira e vamos para lugares como a Praça da Sé para fazermos uma aula ao ar livre. É uma maneira de debater o modelo de educação”. O Cursinho da Psico mantém um espaço chamado de Arena, onde, periodicamente, ocorrem rodas de debate, que servem como exercício de argumentação e articulação entre os alunos. UNiversidade PúBlica Os cursinhos populares incentivam os alunos a ingressarem em universidades públicas. No entanto, “como a gente sabe que eles vêm do ensino público, que é muito defasado, e, pela realidade de estudarem apenas aos sábados, não dá julho 2010 caros amigos -Tatiana_160.indd 31 02.07.10 17:09:51 31