12.04.2013 Views

História e liberdade na argumentação de Joaquim ... - ANPUH-SP

História e liberdade na argumentação de Joaquim ... - ANPUH-SP

História e liberdade na argumentação de Joaquim ... - ANPUH-SP

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>História</strong>, Escravidão e Liberda<strong>de</strong> <strong>na</strong> <strong>argumentação</strong> política e historiográfica <strong>de</strong><br />

<strong>Joaquim</strong> Nabuco *<br />

Izabel Andra<strong>de</strong> Marson<br />

IFCH-UNICAMP<br />

Tendo por objetivo trazer alguma contribuição para a temática proposta por este XX<br />

Encontro Regio<strong>na</strong>l – <strong>História</strong> e Liberda<strong>de</strong> – apresento reflexão abordando a<br />

importância das referências históricas <strong>na</strong> <strong>argumentação</strong> <strong>de</strong> <strong>Joaquim</strong> Nabuco,<br />

especialmente <strong>na</strong> conceituação das categorias escravidão, <strong>liberda<strong>de</strong></strong> e revolução. Nesse<br />

sentido pretendo si<strong>na</strong>lizar também como o exercício da escrita e da reflexão históricas<br />

foram para aquele perso<strong>na</strong>gem um recurso <strong>de</strong> atuação política pois suas obras mais<br />

conhecidas – A Escravidão, O Abolicionismo, Um Estadista do Império, Balmaceda, A<br />

intervenção estrangeira durante a Revolta da Armada e Minha Formação 1 - se<br />

constituíram no <strong>de</strong>bate político contemporâneo e propuseram encaminhamentos <strong>de</strong><br />

matiz liberal aristocrático para questões prementes como a abolição do cativeiro e a<br />

<strong>de</strong>fesa da causa monárquica.<br />

Marcando a singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua atuação frente à <strong>de</strong> outros mo<strong>na</strong>rquistas, antes e<br />

após a queda do Império, Nabuco sempre preferiu exercer uma modalida<strong>de</strong> muito<br />

especial <strong>de</strong> militância: por um lado, estudar e divulgar - <strong>na</strong> imprensa e em livros - os<br />

problemas e as realizações da mo<strong>na</strong>rquia, e compreen<strong>de</strong>r as razões <strong>de</strong> sua queda; por<br />

outro, conhecer os regimes republicanos implantados <strong>na</strong> América e suas probabilida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> evolução; ainda, integrar seletos clubes <strong>de</strong> intelectuais - como o IHGB e a Aca<strong>de</strong>mia<br />

Brasileira <strong>de</strong> Letras – e políticos, como o corpo diplomático da República, o qual<br />

passou a integrar em 1899.<br />

* Pesquisa fi<strong>na</strong>nciada pelo CNPq<br />

1 NABUCO, J. O Abolicionismo. Londres:Typ. <strong>de</strong> Abraham Kingdon, 1883; Balmaceda. R. <strong>de</strong> .Janeiro:<br />

Typ. Leuzinger, l895; A intervenção estrangeira durante a Revolta da Armada. R. <strong>de</strong> .Janeiro: Typ.<br />

Leuzinger, l896; Um Estadista do Império. Nabuco <strong>de</strong> Araujo, sua vida suas opiniões, sua época. R.. <strong>de</strong><br />

Janeiro./Paris: H. Garnier livreiro e editor, l897-99. 3 vols; Minha Formação. 1 ª ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro/Paris,<br />

H. Garnier, 1900. As citações estão remetidas a NABUCO, J.- Um Estadista do Império: Nabuco <strong>de</strong><br />

Araujo – sua vida, suas opiniões, sua época. 2ª ed. S. Paulo: Cia Ed. Nacio<strong>na</strong>l; R. <strong>de</strong> Janeiro:Civ.<br />

Brasileira, 1936. 2 v. e NABUCO, <strong>Joaquim</strong>. O Abolicionismo. Introdução <strong>de</strong> Marco Aurélio Nogueira. 5 ª<br />

ed. Petrópolis:Vozes, 1988;. NABUCO, J. Minha Formação. 5 ª ed. Brasília:Ed. da UNB, 1963.


Explorando a aproximação entre o político e o historiador, lembro como figuras<br />

literárias e, sobretudo, eventos e exemplos históricos constituíram importante fio da<br />

<strong>argumentação</strong> escrita e falada <strong>de</strong> Nabuco que os manejou com refi<strong>na</strong>mento e precisão<br />

no jor<strong>na</strong>lismo, <strong>na</strong> Câmara e <strong>na</strong> escrita da <strong>História</strong>. Ao tratar <strong>de</strong> temas particularmente<br />

imbricados <strong>na</strong>s discussões políticas do fi<strong>na</strong>l do século XIX –-escravidão- <strong>liberda<strong>de</strong></strong>-<br />

revolução – perso<strong>na</strong>gens e circunstâncias da Roma republica<strong>na</strong> e imperial, da Grécia<br />

clássica, do Antigo Regime e da história do Império, <strong>de</strong>ntre outras, foram<br />

engenhosamente associadas <strong>na</strong> tessitura <strong>de</strong> eficiente e pragmática retórica, presente em<br />

todos seus pronunciamentos e obras. Tal recurso possibilitou a<strong>na</strong>logias e representações<br />

sensíveis e impactantes dos problemas sociais e políticos do Brasil do século XIX, por<br />

ele consi<strong>de</strong>rados como os gran<strong>de</strong>s empecilhos à moldagem da <strong>na</strong>ção brasileira - a<br />

escravidão africa<strong>na</strong>, as rebeliões do Império e a tirania imperial – representações<br />

essenciais <strong>na</strong> montagem <strong>de</strong> propostas visando solucio<strong>na</strong>r esses problemas.<br />

Dentre os recursos <strong>de</strong> retórica utilizados por Nabuco em seus trabalhos mais<br />

conhecidos - O Abolicionismo, Um Estadista do Império e Minha Formação - nota-se o<br />

argumento “feudalismo, latifundia, servidão, escravidão”, provi<strong>de</strong>ncial <strong>na</strong> <strong>de</strong>monstração<br />

do <strong>de</strong>scompasso entre as instituições brasileiras e as européias do século XIX e no<br />

convencimento da necessida<strong>de</strong> e viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> projetos liberais reformadores do<br />

regime monárquico. Na composição das categorias <strong>de</strong>sse argumento Nabuco projetou<br />

imagens da escravidão, da servidão, da gran<strong>de</strong> e peque<strong>na</strong> proprieda<strong>de</strong>s, da aristocracia e<br />

da <strong>de</strong>cadência das civilizações grega e roma<strong>na</strong> inspiradas em escritores latinos<br />

(particularmente nos A<strong>na</strong>is e Germânia, <strong>de</strong> Tácito) e <strong>na</strong> <strong>História</strong> <strong>de</strong> Roma, do jurista,<br />

político e historiador liberal alemão Theodor Mommsen 2 .<br />

Observar alterações nos significados daqueles temas - escravidão- <strong>liberda<strong>de</strong></strong>-<br />

revolução - e compreen<strong>de</strong>-las à luz das conjunturas históricas que as suscitaram<br />

constitui maneira profícua <strong>de</strong> perceber o diálogo entre história e política nos textos <strong>de</strong><br />

Nabuco. Acompanhando a discussão <strong>de</strong> seu tempo sobre as melhores formas <strong>de</strong><br />

proprieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> Estado para o Brasil, e moldando<br />

argumentações liberalmente maleáveis às circunstâncias, o político-historiador os<br />

(re)significou, <strong>de</strong> forma a a<strong>de</strong>quá-los a pontuais exigências. Assim, em 1870, no texto A<br />

2 TÁCITO, Cornélio. A<strong>na</strong>les (libros XI-XVI). Trad. José Moralejo. Madrid:Editorial Gredos, 1986;<br />

Germânia. Trad. J.M.Requejo. Madri: Editorial Gredos, 1999; MOMMSEN, Theodor. El Mundo <strong>de</strong> los<br />

Césares. Trad. Wencelao Roces. México:Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica., 1995.(<strong>História</strong> <strong>de</strong> Roma, libro V)<br />

Nabuco citou especialmente trechos o cap. 1 <strong>de</strong>sse volume, <strong>de</strong> título “Las províncias bajo Julio César”,<br />

p.7-50.<br />

2


Escravidão 3 alertou para os perigos que aquela instituição representava para a<br />

integrida<strong>de</strong> do Império e reconheceu diferentes formas da condição escrava – uma<br />

expressivamente negativa (a roma<strong>na</strong>), e outras mais aceitáveis (a grega e a germânica) -<br />

para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r gradativa fi<strong>na</strong>lização do cativeiro por intermédio <strong>de</strong> uma lei que<br />

conce<strong>de</strong>sse a <strong>liberda<strong>de</strong></strong> ao ventre escravo, o direito ao pecúlio e ao resgate forçado<br />

expedientes que, em seu enten<strong>de</strong>r, <strong>na</strong>quele momento, evitariam os riscos <strong>de</strong> revolução<br />

símile da guerra civil como a recentemente ocorrida nos Estados Unidos.<br />

Noutra ocasião, em 1883, no texto <strong>de</strong> O Abolicionismo reiterou experiências da<br />

escravidão antiga (a roma<strong>na</strong> especialmente) e da servidão do Antigo Regime para<br />

projetar valorações exclusivamente negativas da relação servil. E, ainda tendo em vista<br />

a or<strong>de</strong>m pública e razões <strong>de</strong> Estado, propôs uma reforma, entendida como substitutivo<br />

<strong>de</strong> uma anunciada revolução pacífica, que principiaria pela extinção rápida do cativeiro<br />

sem ressarcimento aos proprietários e ônus aos cofres públicos, além do incentivo aos<br />

investimentos estrangeiros e à imigração européia. Contudo, no fi<strong>na</strong>l da década <strong>de</strong> 1890,<br />

ao divulgar Minha Formação, retomaria figurações nuançadas da condição escrava,<br />

provi<strong>de</strong>nciais <strong>na</strong> rememoração respeitosa do passado, das instituições monárquicas e <strong>de</strong><br />

seus estadistas. Acompanhemos o percurso da <strong>argumentação</strong> <strong>de</strong> Nabuco e nela o<br />

movimento daquelas categorias que, no fundo, compõem uma tría<strong>de</strong> recorrentemente<br />

trabalhada no discurso liberal. 4<br />

1. Os diferentes perfis do cativeiro em A Escravidão, e a <strong>de</strong>fesa da Lei <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong><br />

setembro <strong>de</strong> 1871<br />

As primeiras figurações <strong>de</strong>talhadas do cativeiro, e <strong>de</strong> seu oposto, a <strong>liberda<strong>de</strong></strong>,<br />

apareceram em A Escravidão, texto escrito em 1870, quando Nabuco fi<strong>na</strong>lizava o curso<br />

<strong>de</strong> direito no Recife. Peça que origi<strong>na</strong>lmente previa três atos - o crime, a história do<br />

crime e a reparação do crime - da qual só foram escritas as duas primeiras, 5 seu<br />

3 NABUCO, J. A Escravidão. Compilação <strong>de</strong> José Antonio Gonçalves <strong>de</strong> Mello; apresentação <strong>de</strong><br />

Leo<strong>na</strong>rdo Dantas Silva; prefácio <strong>de</strong> Manuel Correia <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. Recife:Fundaj/Ed. Massanga<strong>na</strong>, 1988<br />

(2ª. ed. comemorativa).<br />

4 Para uma abordagem mais <strong>de</strong>tida <strong>de</strong>sta <strong>argumentação</strong> ver: MARSON, Izabel Andra<strong>de</strong>. Política, história<br />

e método em <strong>Joaquim</strong> Nabuco: tessituras da revolução e da escravidão. Uberlândia:EDUFU, 2008.<br />

5 O texto permaneceu inédito até 1949, quando foi publicado pela revista do I.H.G.B. As teses nele<br />

utilizadas provinham <strong>de</strong> fontes contemporâneas, <strong>de</strong>stacando-se entre elas a obra do político e jurista<br />

Perdigão Malheiro publicada origi<strong>na</strong>lmente em 1866-67. Cf. MALHEIRO, Perdigão. A Escravidão no<br />

Brasil: ensaio histórico, jurídico, social. Intr. <strong>de</strong> Edison Carneiro. 3ª. ed. Petrópolis:Vozes, Brasília:INL,<br />

1976.<br />

3


conteúdo compôs-se, <strong>na</strong> primeira parte, com argumentos do processo criado para livrar<br />

da pe<strong>na</strong> <strong>de</strong> morte o escravo Tomás, autor <strong>de</strong> dois assassi<strong>na</strong>tos. Intentando comprovar a<br />

inocuida<strong>de</strong> daquela punição quando o objetivo era prevenir atos <strong>de</strong> violência dos<br />

cativos, Nabuco faz severa <strong>de</strong>núncia contra a escravidão <strong>de</strong>monstrando-a como “a<br />

opressão <strong>de</strong> uma raça sobre a outra sob o domínio da força”, e razão maior dos atos da<br />

agressão <strong>de</strong> escravos contra os senhores e a or<strong>de</strong>m pública. Ainda, consi<strong>de</strong>rou-a um<br />

crime contra a moral, a proprieda<strong>de</strong>, o cristianismo, a carida<strong>de</strong> e os direitos <strong>na</strong>turais do<br />

homem.<br />

A segunda parte do texto apresentou uma história da escravidão antiga e mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong><br />

marcando diferenças formais e históricas entre os dois momentos - tanto porque a<br />

escravidão antiga se extinguira juntamente com o império romano, quanto porque o<br />

cativeiro mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong>senvolvera procedimentos próprios <strong>de</strong>finidos pelo costume <strong>de</strong> um<br />

outro tempo -, e ressaltando, portanto, a improprieda<strong>de</strong> da recorrência à regulamentação<br />

e à experiência roma<strong>na</strong>s, sempre lembradas por juristas e políticos para invalidar duas<br />

cláusulas do projeto da lei <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1871, então discutida no Parlamento:<br />

o direito do escravo ao pecúlio próprio e ao resgate forçado.<br />

Ao conceituar a escravidão <strong>na</strong> antiguida<strong>de</strong>, Nabuco enfatizou seu perfil bárbaro e<br />

princípios superados pelos argumentos da razão, particularmente apreendidos em<br />

escritos liberais clássicos <strong>de</strong> Montesquieu e Rousseau: a diferença <strong>de</strong> raças (<strong>na</strong> Grécia)<br />

e, em Roma, o direito das gentes – ou seja, o direito <strong>de</strong> posse sobre os vencidos <strong>na</strong><br />

guerra, sobre os apreendidos <strong>na</strong> pirataria, ou <strong>na</strong> execução <strong>de</strong> dívidas. Demonstrou o<br />

quanto as normas da escravidão roma<strong>na</strong> eram responsáveis por um <strong>de</strong>svio moral, - um<br />

“vício” expressivo “da sanha, egoísmo” e “luxo” dos senhores - incentivado pelo<br />

número excessivo <strong>de</strong> cativos, provindos das conquistas, sob domínio <strong>de</strong> um só<br />

proprietário, tanto <strong>de</strong> escravos domésticos quanto dos empregados em outras tarefas;<br />

pelo po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong> morte do senhor sobre todos escravos; pela <strong>de</strong>svalorização<br />

absoluta do cativo, ali equiparado aos objetos, aos animais, aos corpos mortos, e<br />

sujeitos a castigos aviltantes e pe<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>s rigorosas e injustas.<br />

Todos esses atributos explicavam a forma cruel como eram tratados <strong>na</strong> vida<br />

cotidia<strong>na</strong> e <strong>na</strong>s leis; o caos político-social <strong>de</strong>monstrado pelas constantes rebeliões que<br />

ameaçavam a or<strong>de</strong>m pública, e a dissolução dos costumes da socieda<strong>de</strong> que os<br />

incorporou; ainda, registra a <strong>de</strong>cadência do império romano, <strong>de</strong>sfecho que Nabuco não<br />

<strong>de</strong>sejava para o Brasil. Nessa <strong>argumentação</strong>, foi essencial um episódio do relato <strong>de</strong><br />

Tácito nos A<strong>na</strong>is, Livro 14, 42-45): o assassi<strong>na</strong>to do prefeito <strong>de</strong> Roma, Lucio Pedânio<br />

4


Segundo, ocorrido em 61.d.C., durante o rei<strong>na</strong>do <strong>de</strong> Nero, e seus <strong>de</strong>sdobramentos: a<br />

divisão dos membros do Se<strong>na</strong>do <strong>na</strong> <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r aos 400 escravos que<br />

habitavam a casa daquela autorida<strong>de</strong>, sob a acusação <strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong>, a pe<strong>na</strong> <strong>de</strong> morte<br />

prevista <strong>na</strong> lei; e a reação da plebe roma<strong>na</strong> à execução daquela sentença. O evento, foi<br />

provi<strong>de</strong>ncial para o trato <strong>de</strong> vários temas: a <strong>de</strong>monstração da ineficácia da pe<strong>na</strong> <strong>de</strong><br />

morte quando aplicada isoladamente a cativos pelo crime <strong>de</strong> assassi<strong>na</strong>to; a reiteração do<br />

risco representado pela escravidão à segurança pessoal dos senhores e à or<strong>de</strong>m pública<br />

o que a tor<strong>na</strong>va, portanto, uma questão <strong>de</strong> Estado; e a certeza da inevitável <strong>de</strong>cadência<br />

moral e política a que estavam con<strong>de</strong><strong>na</strong>das as socieda<strong>de</strong>s que praticavam a escravidão. 6<br />

Contudo, apesar <strong>de</strong> con<strong>de</strong><strong>na</strong>r o cativeiro por seus riscos à moral, à or<strong>de</strong>m pública<br />

e à socieda<strong>de</strong>; e problematizar como i<strong>na</strong><strong>de</strong>quado e inoportuno o uso indiscrimi<strong>na</strong>do que<br />

os juristas brasileiros faziam do código romano, o texto <strong>de</strong> A Escravidão também<br />

admitiu a existência <strong>de</strong> práticas mais huma<strong>na</strong>s <strong>de</strong> trabalho escravo reconhecidas <strong>na</strong><br />

Grécia clássica e entre os povos da Germânia, experiências que contrapõe à roma<strong>na</strong>.<br />

Referindo-se à Grécia comenta: “Nessa civilização eminentemente artística, havia <strong>na</strong><br />

escravidão certos <strong>de</strong>talhes que salvavam a dignida<strong>de</strong> do homem; assim a avaliação dos<br />

seus talentos, cuja manifestação era ple<strong>na</strong>mente permitida.” Quanto à escravidão<br />

existente entre os germanos, ainda mencio<strong>na</strong>ndo Tácito, consi<strong>de</strong>ra-a “ mais uma<br />

servidão que um cativeiro” 7 .<br />

Os motivos <strong>de</strong>ssa opinião possivelmente se relacio<strong>na</strong>m às circunstâncias <strong>de</strong> sua<br />

moldagem e aos objetivos para os quais o texto foi escrito. Diante das expectativas da<br />

lei sobre o elemento servil em <strong>de</strong>bate no Parlamento – abolir gradualmente o trabalho<br />

escravo – Nabuco consi<strong>de</strong>rou que a escravidão era um fato “que <strong>de</strong>veria ter vida<br />

longa” e, assim como muitos outros <strong>de</strong>fensores do direito escravo ao pecúlio e ao<br />

resgate forçado, si<strong>na</strong>lizou formas alter<strong>na</strong>tivas <strong>de</strong> cativeiro inspiradas <strong>na</strong> escravidão<br />

6 NABUCO, J. A Escravidão. p. 75.. Os A<strong>na</strong>is <strong>de</strong> Tácito também si<strong>na</strong>lizaram outros temas e argumentos<br />

políticos importantes nos textos <strong>de</strong> A Escravidão e O Abolicionismo: a abordagem da escravidão como<br />

uma questão <strong>de</strong> Estado, tanto pela ameaça dos cativos à or<strong>de</strong>m pública quanto e, sobretudo, por ser aquela<br />

instituição, quando <strong>de</strong>sregradamente utilizada, a origem e o alicerce da tirania imperial, do servilismo dos<br />

políticos (especialmente do Se<strong>na</strong>do) e da corrupção política. Sobre os temas e mensagens políticos<br />

imbricados <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa das obras <strong>de</strong> Tácito ver: BOISSIER, Gaston.Tacite. Paris: Hachette, 1904;<br />

MELLOR, Ro<strong>na</strong>ld. Tacitus. N. York, Routledge, 1994. Sobre os sentidos e usos políticos da categoria<br />

escravidão <strong>na</strong>quele autor ver: JOLY, Fábio Duarte. Tácito e a metáfora da escravidão. Um estudo da<br />

cultura política roma<strong>na</strong>. S. Paulo:Edusp, 2004.<br />

7 NABUCO, J. A Escravidão, p. 72-74. Mommsen também partilha <strong>de</strong>ssa tese, consi<strong>de</strong>rando a escravidão<br />

roma<strong>na</strong> mais <strong>de</strong>gradante e nefasta do que a grega. Comentando a expansão do trabalho escravo <strong>na</strong>s<br />

manufaturas <strong>de</strong> Roma comentou: “La situación <strong>de</strong> estos esclavos tenia, <strong>na</strong>turalmente, pouco <strong>de</strong> envidiable<br />

y era em todo más <strong>de</strong>sfavorable que la <strong>de</strong> los griegos;” MOMMSEN, T. op. cit. p. 527..<br />

5


ateniense e <strong>na</strong> servidão da Germânia, categorias que assumiram o perfil <strong>de</strong> importantes<br />

metáforas em sua <strong>argumentação</strong> 8 .<br />

Todavia, para além <strong>de</strong>ssas razões circunstanciais, a expressiva tolerância e mesmo a<br />

admiração para com a Grécia clássica perduraram e si<strong>na</strong>lizaram a sintonia <strong>de</strong> Nabuco<br />

com pressupostos <strong>de</strong> historiadores ingleses, alemães e franceses da Terceira República a<br />

propósito das instituições, sobretudo, atenienses 9 . Nesse sentido, sua avaliação da<br />

Grécia é muito positiva - apesar da presença da escravidão fundada <strong>na</strong> “diferença <strong>de</strong><br />

raças” - até por concebe-la como expressão exemplar da beleza, da tolerância, da<br />

<strong>de</strong>mocracia e da razão. Não por acaso, a atuação <strong>de</strong> Péricles foi importante para<br />

referenciar a origem do abolicionismo e do que consi<strong>de</strong>rava “um verda<strong>de</strong>iro<br />

liberalismo”.<br />

2. Campanhas abolicionistas (1884-1888): a Escravidão como Crime e Monopólio:<br />

negação da <strong>liberda<strong>de</strong></strong> pessoal e do direito ao livre acesso à proprieda<strong>de</strong><br />

Em O Abolicionismo (1883) e <strong>na</strong>s Conferências e comícios proferidos durante a<br />

campanha eleitoral <strong>de</strong> 1884, Nabuco aprofundou a <strong>argumentação</strong> crítica contra a<br />

escravidão. Associando razões históricas, jurídicas, políticas e morais teceu uma<br />

imagem nefasta e universal daquela instituição, a quem atribuiu todas as dificulda<strong>de</strong>s<br />

enfrentadas pelo Império. Ainda tendo em vista a or<strong>de</strong>m pública e razões <strong>de</strong> Estado,<br />

nessa circunstância propôs uma reforma, entendida como substitutivo <strong>de</strong> uma anunciada<br />

revolução, que principiaria pela extinção rápida do cativeiro sem ressarcimento aos<br />

proprietários e ônus aos cofres públicos, além do incentivo aos investimentos<br />

estrangeiros e à imigração européia.<br />

Assim, referenciando-se em premissas liberais – especialmente a <strong>liberda<strong>de</strong></strong> dos<br />

indivíduos <strong>de</strong> ir e vir e o direito <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> sobre o próprio corpo - concebeu aquela<br />

instituição como um gran<strong>de</strong> “crime”, razão <strong>de</strong> muitas infrações: era uma ilegalida<strong>de</strong><br />

8 Segundo alguns estudiosos da obra <strong>de</strong> Tácito, a <strong>na</strong>rrativa da escravidão praticada em Roma e entre os<br />

povos da Germânia constituiu importante metáfora para construir “um discurso sobre os valores morais e<br />

políticos romanos. Tácito teria representado o bárbaro como antítese do homem romano a fim <strong>de</strong><br />

apresentar um espelho crítico da socieda<strong>de</strong> roma<strong>na</strong> e imperial”.MARTIN, R. Tacitus. p. 57 ; e JOLY,<br />

F.B. ob.cit. especialmente os capítulos 3 e 4.<br />

9 Contrapontuando leituras francesas criadas no contexto da revolução <strong>de</strong> 1789 favoráveis ou críticas dos<br />

antigos – jacobi<strong>na</strong>s e termidoria<strong>na</strong>s – com as dos historiadores <strong>de</strong> outros países, Hartog <strong>de</strong>staca a boa<br />

acolhida das instituições atenienses em Grote, Winckelmann, Hegel; e mesmo algumas roma<strong>na</strong>s (o direito<br />

e o Estado) em Mommsen. Destaca também a politização dos antigos - pela valorização da “<strong>de</strong>mocracia<br />

ateniense”- a partir do período da Terceira República francesa. HARTOG , François. “O confronto com<br />

os antigos”. IN: Os antigos, o passado e o presente .Org. <strong>de</strong> José Otávio Guimarães. Trad. Sonia Lacerda,<br />

Marcos Veneu e José Otávio Guimarães. Brasília:Ed, da UnB, 2003. p. 151-153.<br />

6


perante o direito inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, a legislação brasileira, a ética e as práticas econômicas<br />

liberais. Dessa forma, o tráfico no continente africano constituía um “contrabando <strong>de</strong><br />

sangue” e um atentado contra as leis das socieda<strong>de</strong>s civilizadas. 10 Também, a<br />

escravidão <strong>de</strong>safiava a legislação brasileira pois, pela lei <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> l831<br />

(que <strong>de</strong>cretou a ilegalida<strong>de</strong> do tráfico), todos os africanos aqui chegados a partir daquela<br />

data <strong>de</strong>veriam ser <strong>de</strong>clarados livres. Ainda, a instituição tor<strong>na</strong>ra-se uma infração do<br />

ponto <strong>de</strong> vista da proprieda<strong>de</strong> – tanto porque expropriava o cativo dos frutos <strong>de</strong> seu<br />

labor, quanto pelo fato da maior parte dos escravos haver cumprido um tempo <strong>de</strong><br />

trabalho suficiente para ressarcir seus senhores e obter o direito à alforria. 11 Por<br />

último, a escravidão constituía, invariavelmente, um crime <strong>de</strong> “usura”, pois os<br />

proprietários <strong>de</strong> escravos pagavam, literalmente, com carne huma<strong>na</strong>, os juros<br />

exorbitantes cobrados por agiotas inescrupulosos e fi<strong>na</strong>nciadores da lavoura do Império.<br />

A maior “chaga” da escravidão era, portanto, a “violação da lei”, entendida também<br />

como instigação da <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, que constrangia os estadistas a reduzir reféns<br />

estrangeiros ao cativeiro e torná-los proprieda<strong>de</strong> legítima. 12<br />

A escravidão instigava a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m ainda porque, negando os princípios liberais,<br />

constituía um monopólio que garantia o domínio exclusivo dos senhores sobre o<br />

trabalho e a terra, impedindo assim que esses recursos essenciais para a reprodução da<br />

riqueza circulassem livremente no mercado. Nessa medida, para Nabuco, ela mantinha<br />

todos os trabalhadores atados à gran<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> territorial on<strong>de</strong>, além dos escravos,<br />

outros “trabalhadores enclausurados” (os homens livres pobres que atuavam como<br />

lavradores, meeiros e moradores), verda<strong>de</strong>iros “servos da gleba, viviam sem<br />

in<strong>de</strong>pendência alguma”.<br />

Por várias razões, esse monopólio era a origem dos gran<strong>de</strong>s problemas do<br />

Império, pois moldava um “organismo social” sem or<strong>de</strong>m, hierarquia e estabilida<strong>de</strong>.<br />

Primeiro, porque ao criar uma riqueza supostamente estéril e efêmera reaplicada em<br />

escravos e no luxo, a escravidão “não fomentara nenhuma indústria, não empregara<br />

máqui<strong>na</strong>s”, não constituíra consumidores, não <strong>de</strong>senvolvera cida<strong>de</strong>s, tor<strong>na</strong>ra o<br />

comércio servo <strong>de</strong> uma classe, a dos produtores <strong>de</strong> açúcar e café” 13 . Nesse sentido,<br />

constituíra uma socieda<strong>de</strong> instável socialmente, com “algumas famílias<br />

10<br />

NABUCO, J.- O Abolicionismo. p. 89. Especialmente após a abolição do cativeiro nos Estados Unidos<br />

e a estipulação <strong>de</strong> uma data para o seu fim em Cuba.<br />

11<br />

Ibi<strong>de</strong>m, p.157-158..<br />

12<br />

Ibi<strong>de</strong>m, pg. 45-l0l, passim..<br />

13<br />

NABUCO, J.- “Segunda Conferência no Teatro Santa Isabel”, l.ll.l884. IN: O Abolicionismo.<br />

Conferencias e Discursos Abolicionistas. p. 120.<br />

7


transitoriamente ricas e <strong>de</strong>z milhões <strong>de</strong> proletários”, ou seja, sem uma verda<strong>de</strong>ira<br />

aristocracia, pois “a aristocracia territorial não é nem aristocracia do dinheiro, nem <strong>de</strong><br />

<strong>na</strong>scimento, nem <strong>de</strong> inteligência, nem <strong>de</strong> raça”. Também impedira a formação <strong>de</strong><br />

peque<strong>na</strong>s proprieda<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> uma “classe média”, e <strong>de</strong> classes operárias; fizera crescer<br />

artificialmente o contingente <strong>de</strong> empregados públicos; neutralizara as forças sociais<br />

cooptando a Igreja, impedindo a emergência da opinião pública. 14<br />

Segundo, porque a escravidão no Brasil não <strong>de</strong>senvolvera a prevenção <strong>de</strong> cor nem<br />

“uma divisão fixa”, criando uma socieda<strong>de</strong> sem hierarquia em virtu<strong>de</strong> do “ caos étnico”<br />

e da “<strong>de</strong>gradação das classes” pois, no dia seguinte à alforria, o escravo tor<strong>na</strong>va-se um<br />

cidadão como qualquer outro, po<strong>de</strong>ndo mesmo comprar escravos, casar com pessoas<br />

livres, participar das eleições e ascen<strong>de</strong>r <strong>na</strong> socieda<strong>de</strong>. Assim, no sentido <strong>de</strong>ssa<br />

<strong>de</strong>gradação, fora mais hábil aqui do que nos Estados Unidos, já que a escravidão não<br />

afetara a constituição social daquele país “mantendo a parte superior do organismo<br />

intacta”, ou seja, os negros fora da socieda<strong>de</strong>: “Entre nós a escravidão não exerceu toda<br />

a sua influência ape<strong>na</strong>s abaixo da linha roma<strong>na</strong> da libertas; exerceu-a, também, <strong>de</strong>ntro e<br />

acima da esfera da civitas (..) a unida<strong>de</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l faz pensar <strong>na</strong> soberba <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m dos<br />

mundos incan<strong>de</strong>scentes”. 15<br />

Em terceiro, porque o sistema da escravidão <strong>de</strong>svirtuara a verda<strong>de</strong>ira economia e<br />

política liberais, pois impusera ao Império o monopólio <strong>de</strong> “suas fi<strong>na</strong>nças” ( fundadas<br />

em quatro pilares econômicos carcomidos”que sustentavam o cativeiro: a apólice do<br />

governo, a dívida exter<strong>na</strong>, o câmbio baixo e o papel-moeda”) usufruídas por uma<br />

minoria <strong>de</strong> senhores agregados ao Estado. Eram eles os responsáveis pelo “déficit<br />

colossal” do país e por um sistema extorsivo <strong>de</strong> impostos que arrui<strong>na</strong>va a lavoura, o<br />

comércio, o artesa<strong>na</strong>to e, principalmente, a mo<strong>na</strong>rquia escravizando toda a <strong>na</strong>ção aos<br />

proprietários <strong>de</strong> escravos e aos “Correspon<strong>de</strong>ntes” reunidos nos Clubes da<br />

Lavoura. 16 Assim, ela também inviabilizara a prática <strong>de</strong> uma mo<strong>na</strong>rquia parlamentar<br />

legítima criando uma “paródia <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia”, <strong>de</strong>generando os partidos - tor<strong>na</strong>ndo-os<br />

veículos <strong>de</strong> interesses e ambições pessoais <strong>de</strong> uma “casta <strong>de</strong> senhores”-, e fazendo do<br />

sistema representativo um “enxerto <strong>de</strong> formas parlamentares num governo patriarcal”,<br />

on<strong>de</strong> ministros, se<strong>na</strong>dores e <strong>de</strong>putados viviam subjugados pelo po<strong>de</strong>r pessoal do<br />

14 NABUCO, J.- “Segunda Conferência no Teatro Santa Isabel”, l.ll.l884. In: O Abolicionismo.<br />

Conferencias e Discursos Abolicionistas. p. 271.; NABUCO, J.- O Abolicionismo, p. 129-139.<br />

15 Ibi<strong>de</strong>m, p. l26-127.<br />

16 Ibi<strong>de</strong>m, pg. l38-l39; 34; “Segunda Conferência no teatro Santa Isabel,” Recife. 1 º .11.1884 In: O<br />

Abolicionismo. Conferências e Discursos Abolicionistas. p. 273..<br />

8


Imperador absoluto “como o Czar e o Sultão”, pois “um povo que se habitua a<br />

escravidão não dá valor à <strong>liberda<strong>de</strong></strong>, nem apren<strong>de</strong> a gover<strong>na</strong>r-se a si mesmo”. 17<br />

Dessa maneira, num sentido mais universal, em 1883, Nabuco consi<strong>de</strong>rou a<br />

escravidão vivenciada no Brasil, uma reiteração das instituições da república roma<strong>na</strong> e<br />

do antigo regime europeu, pois as práticas sociais e políticas do país espelhavam o<br />

avesso da <strong>liberda<strong>de</strong></strong>: pelo lado dos senhores havia monopólio da proprieda<strong>de</strong> e do po<strong>de</strong>r<br />

político, <strong>de</strong>sregramento, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, prepotência, ociosida<strong>de</strong>, perversida<strong>de</strong>; e, do ponto<br />

<strong>de</strong> vista dos escravos, subserviência, interesse pessoal, ressentimento e revolta.<br />

Negando qualquer traço particular ou suavida<strong>de</strong> àquela instituição, consi<strong>de</strong>rou-a a<br />

mesma havia 300 anos, e igual “a qualquer outro país da América”. 18 Nesse sentido, a<br />

escravidão brasileira reverberava um repetitivo episódio da história da humanida<strong>de</strong><br />

flagrado tanto <strong>na</strong> antiguida<strong>de</strong> quanto no Antigo Regime do qual resultara ape<strong>na</strong>s<br />

“ruí<strong>na</strong>, intoxicação e morte”, ou seja, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m social e, com ela, revoluções. 19<br />

3. Reforma contra Revolução: significados da <strong>liberda<strong>de</strong></strong> e objetivos do projeto<br />

abolicionista<br />

O argumento que associa os termos “antigo regime, feudalismo, latifundia,<br />

servidão, escravidão” 20 , pressuposto fundamental nos pronunciamentos <strong>de</strong> Nabuco é<br />

corrente entre políticos e autores a<strong>de</strong>ptos <strong>de</strong> um liberalismo mo<strong>de</strong>rado que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o fi<strong>na</strong>l<br />

do XVIII e ao longo do XIX opi<strong>na</strong>ram sobre as origens dos costumes e dos problemas<br />

políticos do Brasil e propuseram reformas no sentido <strong>de</strong> superá-los. Os vários<br />

programas <strong>de</strong> mudanças “pacíficas” criados para a socieda<strong>de</strong> brasileira do XIX<br />

constituíram verda<strong>de</strong>iros programas político-pedagógicos fundamentados em uma<br />

tradição liberal emergente no século XVIII <strong>na</strong> França e Inglaterra que elaborou um<br />

preciso conceito <strong>de</strong> “civilização” associando tradição e progresso, ou conciliando<br />

comportamentos da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> corte (poli<strong>de</strong>z, civilida<strong>de</strong>, domínio <strong>de</strong> si - o savoir-<br />

17 NABUCO, J. O Abolicionismo. p. 138-140.<br />

18 Ibi<strong>de</strong>m. p. 39-50 passim.<br />

19 Ibi<strong>de</strong>m, p.165-166.<br />

20 A dimensão histórica e política do conceito <strong>de</strong> “feudalismo”, divulgado no século XVIII pela<br />

ilustração, e <strong>de</strong>finido em oposição ao <strong>de</strong> civilização, foi <strong>de</strong>monstrada por Marc Bloch em suas obras<br />

maiores.BLOCH, Marc. La Societé Féodale. Paris: Ed.Albin Michel, 1940; Les Rois Thaumaturges.<br />

Paris: Éditions Gallimard, 1983.<br />

9


faire) com preceitos burgueses do laissez-faire – o direito <strong>de</strong> opinião nos negócios <strong>de</strong><br />

Estado, <strong>de</strong> livre circulação e empreendimento. 21<br />

Nabuco criou a versão mais difundida daquele argumento ao longo da campanha<br />

abolicionista. Inspirando-se <strong>na</strong> história da política inglesa contemporânea -<br />

especialmente no <strong>de</strong>sempenho do ministro Gladstone para solucio<strong>na</strong>r o problema<br />

irlandês -, e <strong>na</strong> orientação da Anti-Slavery Society, concebeu a abolição institucio<strong>na</strong>l do<br />

cativeiro como ponto <strong>de</strong> partida <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> “reforma regeneradora e pacífica” da<br />

socieda<strong>de</strong>, dos partidos e da mo<strong>na</strong>rquia visando instaurar o que <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong>va um<br />

“verda<strong>de</strong>iro liberalismo”.<br />

Entendia que a fi<strong>na</strong>lização da escravidão não po<strong>de</strong>ria ser abando<strong>na</strong>da ao<br />

movimento <strong>na</strong>tural da história como acontecera no império romano, nem à vonta<strong>de</strong> dos<br />

proprietários <strong>de</strong> escravos. Também não concordava com soluções extremas como a<br />

“guerra civil” ocorrida nos Estados Unidos; ou a “guerra servil”, uma “incitação ao<br />

crime”, remetido à <strong>de</strong>sorganização do trabalho nos engenhos e fazendas incentivada<br />

por grupos abolicionistas que já instigavam fugas e revoltas <strong>na</strong>s senzalas; ou<br />

“insurreições” <strong>de</strong> iniciativa escrava, 22 por exporem a classe mais influente e po<strong>de</strong>rosa<br />

do Estado à “vindita bárbara e selvagem <strong>de</strong> uma população mantida ao nível dos<br />

animais e cujas paixões, quebrado o freio do medo, não conheceria limites”. 23<br />

Contrapondo-se a tais iniciativas, no livro O Abolicionismo e nos comícios da<br />

campanha abolicionista propôs uma intervenção pon<strong>de</strong>rada e pacífica no tempo e lugar<br />

a<strong>de</strong>quados: um projeto <strong>de</strong> emancipação do monopólio do cativeiro, uma “segunda<br />

in<strong>de</strong>pendência” do país a ser realizada por um partido político no âmbito do Parlamento<br />

por meio <strong>de</strong> leis. A primeira <strong>de</strong>las, a emancipação dos escravos existentes sem qualquer<br />

21 Norbert Elias <strong>de</strong>staca o quanto o conceito <strong>de</strong> civilização <strong>na</strong> França, Inglaterra e Alemanha é tributário<br />

dos costumes aristocráticos. ELIAS, Norbert – O Processo Civilizador. Uma história dos costumes. Trad.<br />

Ruy Jungmann. Revisão e apresentação <strong>de</strong> Re<strong>na</strong>to Janine Ribeiro. R. <strong>de</strong> Janeiro, Jorge Zahar Ed. 1994. v.<br />

1. p. 63. Acompanhando Elias, Claudine Haroche aponta a dimensão discipli<strong>na</strong>r e autoritária <strong>de</strong>sse<br />

conceito HAROCHE, Claudine - Da Palavra ao Gesto. Trad. A<strong>na</strong> Montoya e Jacy Seixas. Campi<strong>na</strong>s,<br />

Papirus, 1998. p. 43.<br />

22 Mais freqüentes nos últimos anos do Império em virtu<strong>de</strong> da transferência <strong>de</strong> trabalhadores do norte para<br />

as áreas <strong>de</strong> café, da formação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s plantéis e do rigor ao qual estava submetido o trabalho escravo.<br />

Cf. COSTA, Emília V. da. Da Senzala à Colônia. 3 a . ed. S. Paulo:Brasiliense, 1989; AZEVEDO, Célia<br />

M.M. Onda negra medo branco. O negro no imaginário das elites do séc. XIX. R. <strong>de</strong> Janeiro:Paz e Terra,<br />

1987;.CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberda<strong>de</strong>. Uma história das últimas décadas da escravidão <strong>na</strong><br />

corte. S. Paulo:Cia das Letras, 1990; MACHADO, Maria Hele<strong>na</strong>. O Plano e o Pânico. Os movimentos<br />

sociais <strong>na</strong> década da abolição. R. <strong>de</strong> Janeiro:Ed. da UFRJ; S. Paulo:EDU<strong>SP</strong>, 1994; Crime e Escravidão.<br />

Trabalho, luta, resistência <strong>na</strong>s lavouras paulistas. 1830-1881. S. Paulo:Brasiliense, 1987; MATTOS,<br />

Hebe M. Das Cores do Silêncio. Os significados da <strong>liberda<strong>de</strong></strong> <strong>na</strong> socieda<strong>de</strong> escravista. Brasil século XIX.<br />

2 a . ed. R. <strong>de</strong> Janeiro: N. Fronteira, 1978; GOMES, Flávio dos S. <strong>História</strong>s <strong>de</strong> Quilombolas. Mocambos e<br />

Comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Senzalas no R. <strong>de</strong> Janeiro. séc. XIX. R. <strong>de</strong> Janeiro: Arquivo Nacio<strong>na</strong>l, 1993.<br />

23 NABUCO, J. O Abolicionismo, p. 39-40; 103.<br />

10


essarcimento, era “urgente” e significava uma “nova” concepção <strong>de</strong> Abolicionismo que<br />

sucedia os lentos expedientes <strong>de</strong> alforria <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>dos pela lei <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong><br />

1871 ou, segundo Nabuco, a “idéia <strong>de</strong> suprimir a escravidão entregando-lhe um milhão<br />

e meio <strong>de</strong> escravos (...)e <strong>de</strong>ixando-a morrer com eles”. 24<br />

Falando aos “ricos” do bairro da Madale<strong>na</strong> no Recife, a 16 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1884,<br />

esclareceu o amplo sentido <strong>de</strong>ssa <strong>liberda<strong>de</strong></strong>: a emancipação dos escravos promoveria<br />

também a autonomia dos senhores reféns <strong>de</strong> uma riqueza “efêmera”, dos<br />

correspon<strong>de</strong>ntes e dos traficantes. Libertaria ainda os próprios investidores, aos quais<br />

abrir-se-iam empreendimentos no comércio e <strong>na</strong>s indústrias “<strong>na</strong>turais” – no caso <strong>de</strong><br />

Per<strong>na</strong>mbuco, o açúcar; e o próprio Estado, asfixiado pelos encargos dos empréstimos<br />

feitos <strong>na</strong> Europa para bancar o alto custo das “fi<strong>na</strong>nças da escravidão”. 25 Em outro<br />

pronunciamento, <strong>de</strong>sta vez aos comerciantes do Recife (28 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1884),<br />

também <strong>de</strong>stacou a importância da emancipação dos escravos no sentido <strong>de</strong> criar<br />

condições mais seguras para os fi<strong>na</strong>nciadores da lavoura. Ressaltou que, quebrando-se<br />

o “monopólio territorial” da escravidão, valorizar-se-ia a terra – garantia das hipotecas<br />

inócuas - e, com o seu parcelamento, viabilizar-se-ia a peque<strong>na</strong> proprieda<strong>de</strong><br />

fornecedora <strong>de</strong> ca<strong>na</strong> para os engenhos centrais. 26<br />

A segunda lei é tratada mais especificamente nos comícios populares. Tratava-se<br />

<strong>de</strong> uma “lei agrária” instituindo um “imposto territorial” sobre terras incultas,<br />

expediente capaz <strong>de</strong> impelir seus proprietários a negociá-las e assim concretizar a<br />

peque<strong>na</strong> proprieda<strong>de</strong> e uma “classe média” <strong>de</strong> lavradores <strong>de</strong> ca<strong>na</strong>. Dessa maneira, a<br />

emancipação dos escravos, a “lei agrária” e o imposto nela imbricado promoveriam<br />

uma “<strong>de</strong>mocratização solo”, uma reforma social sem violência. 27<br />

Além <strong>de</strong>ssas realizações mais imediatas, havia outra maior, a do futuro - a<br />

regeneração do país pela “igualda<strong>de</strong> social”, remetida à associação entre “<strong>liberda<strong>de</strong></strong> e<br />

trabalho” pois, liberto da escravidão, o trabalho abundante viabilizaria a emergência <strong>de</strong><br />

uma classe operária e <strong>de</strong> um mercado <strong>de</strong> consumidores. Aos “proletários” do campo -<br />

lavradores e ren<strong>de</strong>iros - o Abolicionismo ace<strong>na</strong>va com a peque<strong>na</strong> proprieda<strong>de</strong>; aos<br />

moradores, com o trabalho livre <strong>na</strong>s empresas <strong>de</strong> produtos “<strong>na</strong>turais” da província, os<br />

engenhos centrais. Aos da cida<strong>de</strong>, os “artistas”, ofereceu a <strong>liberda<strong>de</strong></strong> do trabalho e o<br />

24<br />

NABUCO, J. O Abolicionismo. p. 25.<br />

25<br />

Ibi<strong>de</strong>m, p. 25.<br />

26<br />

NABUCO, J.-, “Discurso no Largo do Corpo Santo”, Recife, 28/11/1884. In: O Abolicionismo e<br />

Conferências, p. 362.<br />

27<br />

Ibi<strong>de</strong>m, “Discurso num meeting popular no Bairro <strong>de</strong> S. José, Recife 5.11.1884..p. 285.<br />

11


acesso à instrução técnica, condição sine qua non para realização <strong>de</strong> uma genuí<strong>na</strong><br />

“classe operária”. Projetando esse segmento como o mais importante para o futuro da<br />

<strong>na</strong>ção e o <strong>de</strong> sua preferência; e procurando dissuadir os artistas da idéia classicamente<br />

veiculada por eles <strong>de</strong> que seus interesses estariam contemplados com leis que<br />

<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lizassem o comércio a retalho, tarifas que protegessem a indústria <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e<br />

acesso ao funcio<strong>na</strong>lismo público, ressaltou a importância da “livre concorrência e do<br />

espírito mercantil” <strong>na</strong> construção da verda<strong>de</strong>ira riqueza, da <strong>liberda<strong>de</strong></strong> e do progresso das<br />

“indústrias <strong>na</strong>turais do país” 28<br />

Nabuco também rebateu a tese <strong>de</strong> que o Brasil necessitasse <strong>de</strong> uma imigração<br />

subsidiada, em especial <strong>de</strong> chineses, consi<strong>de</strong>rando: havia um contingente <strong>de</strong><br />

trabalhadores <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is capaz preencher a lacu<strong>na</strong> <strong>de</strong>ixada pela abolição do cativeiro.<br />

Ele precisava ape<strong>na</strong>s ser melhor encaminhado, voluntária ou involuntariamente, para o<br />

trabalho disponível. 29<br />

Mas a tarefa mais ambiciosa do Abolicionismo previa a reeducação da elite<br />

política e sua conversão aos princípios <strong>de</strong> um “verda<strong>de</strong>iro liberalismo”. Aos liberais,<br />

conseguiria “por a <strong>de</strong>scoberto os alicerces mentirosos do liberalismo entre nós”. 30 E<br />

convenceria a um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> republicanos que sua obrigação mais urgente não<br />

era “mudar a forma <strong>de</strong> governo com o auxílio <strong>de</strong> proprietários <strong>de</strong> homens mas que a<br />

elevação dos escravos a homens era tarefa que precedia toda a arquitetura<br />

<strong>de</strong>mocrática”, cabendo a eles auxiliar a mo<strong>na</strong>rquia a solucio<strong>na</strong>r a questão da<br />

escravidão. 31<br />

Entendia que as Constituições liberais não <strong>de</strong>veriam ser imóveis como as<br />

“catedrais góticas” ou as “Tábuas da Lei”. Pelo contrário, assemelhando-se a “<br />

organismos vivos que se adaptam às funções diversas que em cada época tem<br />

necessariamente <strong>de</strong> produzir”, po<strong>de</strong>riam incorporar as reformas cobradas pelo<br />

progresso visando, sobretudo, <strong>de</strong>smobilizar anunciadas revoluções jacobi<strong>na</strong>s, aqui<br />

potencializadas pela questão da escravidão. Nesse sentido, as almejadas reformas<br />

permitiriam que, no Império, os ministérios representassem os partidos; o governo<br />

fosse efetivamente <strong>de</strong> Gabinete e não do presi<strong>de</strong>nte do Conselho; os gran<strong>de</strong>s negócios<br />

28<br />

Ibi<strong>de</strong>m, “Discurso aos Artistas do Recife” , p. 369,372-373.<br />

29<br />

Ibi<strong>de</strong>m, “Primeira Conferência no Teatro Santa Isabel”, Recife, l2.10.l884; e “Discurso no Monte Pio<br />

Per<strong>na</strong>mbucano”, 9.ll.l884, pgs.254,292.<br />

30<br />

“Terceira Conferência no teatro Santa Isabel”. Recife, 16.11. 1844. Ibi<strong>de</strong>m, p.293-347.<br />

31<br />

NABUCO, J. O Abolicionismo. p. 31.<br />

12


do Estado fossem <strong>de</strong>cididos em conferência <strong>de</strong> ministros e não em <strong>de</strong>spacho imperial; o<br />

eixo parlamentar passasse pela Câmara e não pelo Se<strong>na</strong>do vitalício; as províncias se<br />

vinculassem fe<strong>de</strong>rativamente à União; e que, fi<strong>na</strong>lmente, fossem implantadas a eleição<br />

direta (com o sufrágio estendido a todos os alfabetizados e com maior representação<br />

das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s), a <strong>liberda<strong>de</strong></strong> religiosa e a emancipação dos escravos sem<br />

in<strong>de</strong>nização 32 .<br />

***<br />

O projeto liberal abolicionista divulgado por <strong>Joaquim</strong> Nabuco enfrentou muitas<br />

resistências e foi parcialmente implementado pela Lei Áurea que em 13 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong><br />

1888 suprimiu o cativeiro sem ressarcimento dos proprietários <strong>de</strong> escravos. Dentre as<br />

inúmeras dificulda<strong>de</strong>s encontradas 3 se <strong>de</strong>stacam. Em primeiro lugar, constituiu-se à<br />

revelia das principais li<strong>de</strong>ranças e, mesmo do eleitorado do Partido Liberal. Em<br />

segundo, resguardava muitas contradições: a primeira <strong>de</strong> suas metas – através da<br />

abolição do cativeiro, <strong>de</strong>struir os privilégios do monopólio sobre o trabalho e a terra,<br />

estimular a livre concorrência, e suprimir subsídios – atendia o mais genuíno princípio<br />

liberal por elimi<strong>na</strong>r favoritismos e restringir a presença do Estado <strong>na</strong> economia. Porém,<br />

ao recusar qualquer in<strong>de</strong>nização, implicava num confisco da proprieda<strong>de</strong> privada,<br />

procedimento inédito <strong>na</strong> resolução da questão servil, pois a Inglaterra, a França e<br />

mesmo Cuba compensaram os proprietários <strong>de</strong> alguma forma. Ape<strong>na</strong>s nos Estados<br />

Unidos, em virtu<strong>de</strong> da guerra civil, não haviam sido ressarcidos os custos da<br />

emancipação. Da mesma maneira, a lei agrária impunha pesado tributo sobre a terra<br />

constrangendo seus proprietários a negociá-las. Ou seja, ambas representavam uma<br />

ingerência in<strong>de</strong>sejável nos interesses privados e nos direitos senhoriais.<br />

Umas terceira e expressiva dificulda<strong>de</strong> foi o fato <strong>de</strong> ter concorrido com muitas<br />

outras alter<strong>na</strong>tivas, também abolicionistas, preocupadas em resolver a “crise da<br />

lavoura”, a superação da escravidão e expansão do trabalho livre, algumas <strong>de</strong>las criadas<br />

por companheiros próximos <strong>de</strong> Nabuco <strong>na</strong> Socieda<strong>de</strong> Brasileira contra a Escravidão, a<br />

exemplo <strong>de</strong> André Rebouças e membros da Socieda<strong>de</strong> Brasileira pela Imigração,<br />

propostas que exemplificam a complexida<strong>de</strong> e a pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vozes, instituições e<br />

propostas envolvidas no <strong>de</strong>bate sobre a escravidão <strong>na</strong> década <strong>de</strong> 1880 no Brasil.<br />

32 NABUCO,J. O Abolicionismo. Conferências e Discursos Abolicionistas. p.293-347.<br />

13


Tal confronto <strong>de</strong> propostas e <strong>de</strong> expectativas resultou em <strong>de</strong>sfecho surpreen<strong>de</strong>nte para<br />

todos, no qual foram adaptadas medidas <strong>de</strong> variada origem. Assim, realizaram-se,<br />

<strong>de</strong>ntre outras idéias, a abolição sem contrapartida, a imigração subsidiada e, i<strong>na</strong>ceitável<br />

para Nabuco e muitos outros, a república li<strong>de</strong>rada por militares, positivistas e jacobinos,<br />

esta última, talvez, a maior das <strong>de</strong>cepções do político-escritor. Assim, como admitiria<br />

o próprio Nabuco em 1890, por <strong>de</strong>scontentar os proprietários <strong>de</strong> escravos, a abolição<br />

contribuiu para a queda do regime monárquico que ele, com seu projeto abolicionista,<br />

esperava “regenerar”, tanto quanto impedir aquela tão in<strong>de</strong>sejada modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

revolução republica<strong>na</strong> contra a qual pug<strong>na</strong>ria ao longo da década <strong>de</strong> 1890 <strong>na</strong> imprensa<br />

e em trabalhos historiográficos, <strong>de</strong>ntre os quais se <strong>de</strong>stacaram Balmaceda, A<br />

intervenção estrangeira durante a revolta da Armada e, especialmente Um Estadista do<br />

Império. 33<br />

Avaliando-se as interpretações sobre o passado e o presente feitas pelo historiador<br />

po<strong>de</strong>-se perceber que serviram para a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> um princípio – “reforma e contra-<br />

revolução” – próprio <strong>de</strong> convicções liberais aristocráticas, a saber: a <strong>de</strong>fesa intransigente<br />

da <strong>liberda<strong>de</strong></strong> com or<strong>de</strong>m e sem violência; da hierarquia social e <strong>de</strong> estadistas <strong>na</strong><br />

condução das socieda<strong>de</strong>s, a brasileira em particular, convicções que reiteradamente se<br />

manifestaram em seus escritos. Sobre a socieda<strong>de</strong> brasileira, tinha uma percepção<br />

particularmente <strong>de</strong>sencantada, que se acentuou com o passar dos anos, e singular,<br />

mesmo frente à <strong>de</strong> outros mo<strong>na</strong>rquistas e republicanos, com os quais Nabuco tinha<br />

divergências políticas e um complicado relacio<strong>na</strong>mento, um dos motivos <strong>de</strong> seu<br />

“isolamento” <strong>na</strong> década <strong>de</strong> 1890 34 . Consi<strong>de</strong>rava que, em virtu<strong>de</strong> do habitat inóspito, da<br />

mestiçagem das raças e, sobretudo, da longa convivência com a escravidão africa<strong>na</strong> –<br />

motivo maior da condição <strong>de</strong> “menorida<strong>de</strong>” do Brasil - o povo oscilava entre a<br />

indiferença política e a violência irrefletida e anárquica das revoluções, sendo, portanto,<br />

presa fácil dos ditadores.<br />

Nesse sentido, entendia que esse povo precisava ser bastante preparado para um<br />

retorno pacífico e efetivo ao regime monárquico ou, <strong>na</strong> impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste retorno,<br />

33 NABUCO, J. Balmaceda. R. <strong>de</strong> .Janeiro: Typ. Leuzinger, l895; A intervenção estrangeira durante a<br />

Revolta da Armada. R. <strong>de</strong> .Janeiro: Typ. Leuzinger, l896; Um Estadista do Império. Nabuco <strong>de</strong> Araujo,<br />

sua vida suas opiniões, sua época. R.. <strong>de</strong> Janeiro./Paris: H. Garnier livreiro e editor, l897-99. 3 vols<br />

34 Sobre a atuação dos mo<strong>na</strong>rquistas e dos republicanos “jacobinos” após o l5 <strong>de</strong> novembro ver<br />

respectivamente: JANOTTI, M.L. Os subversivos da República. S. Paulo, Brasiliense, l986; QUEIROZ,<br />

Suely Robles Reis <strong>de</strong>. Os radicais da república. S. Paulo: Brasiliense, 1986.Para uma análise mais <strong>de</strong>tida<br />

<strong>de</strong> Minha Formação cf. MARSON, Izabel Andra<strong>de</strong>. “Minha Formação: autobiografia, política e<br />

história”.Revista Brasileira <strong>de</strong> <strong>História</strong> (Biografia, biografias), 33(17):78-97, 1997.<br />

14


ser conduzido por bons estadistas <strong>na</strong> direção <strong>de</strong> uma república similar à chile<strong>na</strong>, tese<br />

si<strong>na</strong>lizada em artigos <strong>de</strong>pois reunidos no livro Balmaceda, <strong>de</strong> 1895, momento em que o<br />

partido mo<strong>na</strong>rquista se revigorava após intensa perseguição sofrida nos primeiros anos<br />

da república. Naquela circunstância, ao <strong>de</strong>cli<strong>na</strong>r um convite do correligionário paulista<br />

Eduardo Prado para assumir a chefia da redação <strong>de</strong> O Commércio <strong>de</strong> S. Paulo,<br />

comentou que não po<strong>de</strong>ria fazer um jor<strong>na</strong>l <strong>de</strong> agitação ou panfletário como se esperava,<br />

pois compreendia que o papel da imprensa <strong>na</strong>quele momento <strong>de</strong>veria ser “o <strong>de</strong> um<br />

médico em um hospício <strong>de</strong> alie<strong>na</strong>dos” 35 .<br />

Não por acaso, a autobiografia Minha Formação, <strong>de</strong> 1900, também traria<br />

sensíveis recados políticos. Por um lado, si<strong>na</strong>lizando a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma conciliação,<br />

procuraria atenuar a “luta terrível entre abolicionistas e escravocratas”, mo<strong>na</strong>rquistas e<br />

republicanos no passado e, no presente, o que levaria o escritor a retomar duas<br />

i<strong>de</strong>alizações opostas da escravidão: uma, a do “jugo cruel”, <strong>de</strong>stacada no livro O<br />

Abolicionismo, segundo ele observada “<strong>na</strong>s novas e ricas fazendas do sul on<strong>de</strong> o<br />

escravo, <strong>de</strong>sconhecido do proprietário, era somente um instrumento <strong>de</strong> colheita”. E<br />

outra, a do “jugo suave, orgulho exterior do senhor, mas também orgulho íntimo do<br />

escravo”, assistida no engenho Massanga<strong>na</strong>, proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua madrinha D. Rosa<br />

Falcão <strong>de</strong> Carvalho, e em antigas proprieda<strong>de</strong>s do norte “pobres explorações industriais,<br />

on<strong>de</strong> os escravos existiam ape<strong>na</strong>s para a conservação do estado <strong>de</strong> senhor, e<br />

administradas durante gerações seguidas com o mesmo espírito <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong> por uma<br />

aristocracia <strong>de</strong> maneiras”, dotada <strong>de</strong> “um pudor, um resguardo em questão <strong>de</strong> lucro<br />

próprio das classes que não traficam”.<br />

Por outro lado, no último capítulo <strong>de</strong> Minha Formação, acabou por justificar a<br />

disposição <strong>de</strong> abando<strong>na</strong>r “o isolamento” a que se propusera e a aceitar um cargo<br />

diplomático oferecido pelo governo republicano <strong>na</strong> legação brasileira em Londres.<br />

Constatando a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um retorno à mo<strong>na</strong>rquia, o político-historiador<br />

<strong>de</strong>cidiu-se pela aproximação com a república aristocrática <strong>de</strong> Campos Sales, uma<br />

república já <strong>de</strong>scompromissada com o jacobinismo. Naquele capítulo comentou que o<br />

estudo <strong>de</strong>tido da história do Império e do <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> seus estadistas, <strong>de</strong>ntre eles seu<br />

pai, perso<strong>na</strong>gem biografado em Um Estadista, haviam si<strong>na</strong>lizado que a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao<br />

liberalismo não pressupunha necessariamente um compromisso exclusivo com o regime<br />

monárquico mas, o cumprimento <strong>de</strong> metas mais amplas e nobres ditadas pelo progresso<br />

35 NABUCO, J. Cartas, p.264-265.<br />

15


espeitoso da tradição, e atentas às necessida<strong>de</strong>s e preservação da <strong>na</strong>ção, ou seja ao<br />

<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> zelar pela pátria:<br />

“...Por outro lado, durante os anos que trabalhei <strong>na</strong> Vida <strong>de</strong> meu pai a minha atitu<strong>de</strong> foi<br />

insensivelmente sendo afetada pelo espírito das antigas gerações que criaram e fundaram o<br />

regime liberal que a nossa <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong>struir...O que eu respirava <strong>na</strong>quela vasta documentação não<br />

era um espírito monárquico inconcebível, bastando como uma religião...A mo<strong>na</strong>rquia para<br />

aquelas épocas <strong>de</strong> arquitetos, pedreiros e escultores políticos incomparáveis, era uma bela e pura<br />

forma, mas que não podia existir por si só; o interesse, o amor, o zelo, o fervor patriótico <strong>de</strong>les<br />

dirigia-se à substância <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, o país; sua vassalagem ao princípio monárquico era ape<strong>na</strong>s um<br />

preito rendido á primeira das conveniências sociais...Para tais homens, verda<strong>de</strong>iramente<br />

fundadores, um terremoto po<strong>de</strong>ria subverter as instituições, mas o Brasil existiria sempre, e à<br />

sua voz seria forçoso acudir...Eles não estabeleceram nunca o dilema entre a mo<strong>na</strong>rquia e a<br />

pátria, porque a pátria não podia ter rival.” 36<br />

A aceitação da oferta republica<strong>na</strong> ofen<strong>de</strong>u profundamente os correligionários que<br />

estavam no Brasil, transformando o “isolamento” do escritor, agora diplomata, em<br />

rompimento. Nabuco anota em seu Diário, em 7 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1899, que quando foi<br />

divulgada a notícia <strong>de</strong> que aceitara compor com o governo Campos Sales, criou-se “um<br />

mal estar entre os amigos”. Então, comentou: “Estão me achando muito mudado,<br />

quando o que mudou é o barômetro, é o tempo” 37 .<br />

36 NABUCO, J. Minha Formação, p. 256-257.<br />

37 NABUCO,J. <strong>Joaquim</strong> Nabuco - Diários.(1889-1910) Prefácios e notas <strong>de</strong> Evaldo Cabral <strong>de</strong> Mello. R.<br />

<strong>de</strong> Janeiro::Bem te Vi Produções Literárias;Recife::Ed. Massanga<strong>na</strong>,-Fundaj, 2008. v. 1, p. 158.<br />

16

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!