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Ricardo Vidal Golovaty. A “psicologia do boato” numa ... - ANPUH-SP

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<strong>Ricar<strong>do</strong></strong> <strong>Vidal</strong> <strong>Golovaty</strong>. A “psicologia <strong>do</strong> boato” <strong>numa</strong> novela de Amadeu Amaral: estética,política e ciência na literatura paulista <strong>do</strong>s anos 1910-1920 (PPGHIS-UFU, <strong>do</strong>utoran<strong>do</strong>,bolsista CAPES)Nem de longe meu amigo. A mentira e a calúnia são o nossopão espiritual de cada dia! São a nossa arma predileta na lutada vida! São nossos utensílios de trabalho! São o maisinocente <strong>do</strong>s nossos brincos, o mais <strong>do</strong>ce <strong>do</strong>s nossospassatempos! Mente-se e calunia-se por ódio e por despeito; éa fúria destrui<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> homicida transformada em energiaerrante, - menos intensa, porém mais extensa, e mais durável.Mente-se e calunia-se sem ódio nem despeito; agrada,convém ao superior de “X” que “A” sofra a tortura de se verpinta<strong>do</strong> como um salafrário, exposto à risota e ao desprezo damultidão estúpida e cruel? Pois, alma de cachorro, “X”oferecerá esse prazer ao amo. Mente-se e calunia-se porinteresse, por cálculo, por desfastio, por descui<strong>do</strong>, por graça.Mente-se e calunia-se por engano... E não só por palavras,mas também por pensamentos e obras! A mentira e a calúniaestão no ar que respiramos, estão na substância <strong>do</strong> nossoespírito. São uma secreção regular da nossa alma. Padre,mente-se e calunia-se até por virtude!Veloso (Amadeu Amaral (1920), A Pulseira de Ferro, in:Novela e Conto, 1976: p.65-66)Perscrutan<strong>do</strong> A Pulseira de Ferro de Amadeu Amaral (jornalista, literato e folclorista<strong>do</strong>s anos 1900-1920), novela “regionalista” publicada no ano de 1920, encontro os motivoscientíficos, políticos e estéticos que inspiraram essa obra, ten<strong>do</strong> como contraponto a críticaliterária de Antonio Candi<strong>do</strong>. Uma análise apurada da construção interna da Pulseira e de seu“prefácio” por Franco da Rocha, revela outros caminhos para a escrita da história <strong>do</strong>“regionalismo paulista”, para além <strong>do</strong> “pitoresco e <strong>do</strong> jocoso” como lugares comuns instituí<strong>do</strong>spela crítica literária supracitada.*Percebo a presença <strong>do</strong> cânone literário toda vez que vou apresentar minha pesquisa de<strong>do</strong>utoramento, formal ou informalmente. O motivo: pesquiso Amadeu Amaral (1875-1929),jornalista, literato e folclorista <strong>do</strong>s anos 1900-1920. Ora, por que a necessidade de apresentareste ilustre desconheci<strong>do</strong> objeto de tese? Se eu pesquisasse algum <strong>do</strong>s seus contemporâneos,talvez não precisasse da apresentação. Ao contrário, afinaria o recorte específico sobre sua obra,da<strong>do</strong> a proporção de estu<strong>do</strong>s sobre eles, por exemplo: Mário de Andrade, Menotti Del Pichia,Sérgio Milliet – interlocutores de Amaral na crítica literária.Menotti em 1923 provocava resposta de Amadeu Amaral sobre sua poesia: parnasiana?Simbolista? Resposta: “vago simbolismo”, e desejo de uma arte de desaparecimento <strong>do</strong> autor,visan<strong>do</strong> esse apenas um pouco de prazer aos seus leitores, sem pretensão à imortalidade. 1 A1 AMARAL, Amadeu. “Poesia de ontem e de hoje”, in: O elogio da mediocridade. São Paulo: Hucitec; Secretariade Cultura e Tecnologia <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de São Paulo, 1976, p.35-48.Texto integrante <strong>do</strong>s Anais <strong>do</strong> XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. <strong>ANPUH</strong>/<strong>SP</strong>-U<strong>SP</strong>. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.


década de 1940 foi rica em fornecer lugares à fortuna crítica de Amaral. Mário o definiu comoseu contemporâneo nos estu<strong>do</strong>s de folclore, apesar de usá-lo como objeto de combate no campoda poética. 2 Já Milliet traçou um retrato <strong>do</strong> autor e da obra específica que aqui focalizo: Amaralfora respeita<strong>do</strong> em 1922 devi<strong>do</strong> à sua qualidade (seja no folclore, seja no “vago simbolismo”nomea<strong>do</strong> pelo próprio) e sua maturidade intelectual naquele momento. Quanto à Pulseira, ele arecorda como fruto de um “prosa<strong>do</strong>r limpo”. 3Prosa<strong>do</strong>r limpo? Como entender uma novela que se passa em pequena localidade <strong>do</strong>interior de São Paulo como “prosa limpa”, se na história da literatura brasileira por AntonioCandi<strong>do</strong> o regionalismo <strong>do</strong>s anos 1900-1920 se caracteriza por elementos exóticos e jocosos,por visões equivocadas sobre o homem rural, por juízos estéticos e políticos perigosos? 4 Nãohaveria sob este juízo generalizante <strong>do</strong> crítico uma ponte para o entendimento <strong>do</strong>s modernistasde 1922 como os “bons interpela<strong>do</strong>res” <strong>do</strong> popular na literatura? Em que medida a noção de prémodernoestá insidiosamente pré-colocada aos escritores regionalistas nos senti<strong>do</strong>s de antimodernos,de (pre)destina<strong>do</strong>s ao limbo, ou, em registro “melhor”, como (pre)cursores <strong>do</strong>smodernos?Será mera coincidência Antonio Candi<strong>do</strong> definir Amadeu Amaral tal qual Mário deAndrade? Em prefácio a Paulo Duarte, o crítico ressalta Amaral como poeta parnasiano que teveo mérito de, ao interessar-se por folclore, alçar <strong>do</strong>is temas importantes aos modernistas: acultura popular e a língua falada. 5 Para contraste deste lugar-comum historiográfico, canônico,vou sintetizar A Pulseira de Ferro para prosseguir na análise.1) A PULSEIRA DE FERRO: ESTUDO NATURALISTA DO BOATOResumo ao máximo a novela, toman<strong>do</strong> como base seu próprio prólogo: segun<strong>do</strong> AmadeuAmaral, tal história poderia ter si<strong>do</strong> narrada em poucas páginas. Sua inspiração foi apenas2 ANDRADE, Mário de. “Amadeu Amaral”, in: O empalha<strong>do</strong>r de passarinho. São Paulo: Martins; Brasília: INL,1972, p.178-181. O texto é de fins de 1939. Por isso o remeto à década de 1940.3 MILLIET, Sérgio. “2 de outubro de 1947”, in: Diário crítico de Sérgio Milliet. São Paulo: Martins, 1981, p.205-209. Contemporâneo de Amadeu Amaral, Fernan<strong>do</strong> de Azeve<strong>do</strong> notava em 1924 ou 1925: A sua arte é uma artesempre orientada segun<strong>do</strong> a razão e a logica, essas duas medidas, essas duas forças de equilibrio de toda a belleza.Dahi não procurar elle dar á sua prosa aspectos de originalidade ficticia, sobre carregan<strong>do</strong>-a de ornatos poeticos.(...) A profissão <strong>do</strong> jornalismo, contra cujos pen<strong>do</strong>res á superficialidade reagiu pela cultura (o sr. Amadeu Amaral éum grande auto-didacta), foi-lhe, certamente, sob esse aspecto, favoravel á formação <strong>do</strong> estilo, para que elle passouessa simplicidade agil e essa fluidez correntia <strong>do</strong>s que são obriga<strong>do</strong>s a manter a sua penna em actividade cotidiana.Foi, porém, no contacto espiritual com os grandes parnasianos, que elle aprendeu, (...) a sabia economia daspalavras, a fidelidade caracteristica, a precisão energica, e a justeza <strong>do</strong> sentimento aliada a um tacto raro naexpressão.” AZEVEDO, Fernan<strong>do</strong> de. “Amadeu Amaral”, in: Ensaios. Critica literaria para “O Esta<strong>do</strong> de SãoPaulo” 1924-1925. São Paulo; Rio de Janeiro: Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1929, p.172-173-174.4 CANDIDO, Antonio. “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, in: Literatura e Sociedade. São Paulo: EditoraNacional, 1975, p.113-114.5 CANDIDO, Antonio. Prefácio, in: DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. São Paulo: Hucitec;Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 1985, p.XV. Candi<strong>do</strong> alude aos estu<strong>do</strong>s de folclore e ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>dialeto caipira. Os primeiros foram publica<strong>do</strong>s nos rodapés <strong>do</strong> jornal O Esta<strong>do</strong> de São Paulo, e o segun<strong>do</strong> veio alume no ano de 1920.Texto integrante <strong>do</strong>s Anais <strong>do</strong> XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. <strong>ANPUH</strong>/<strong>SP</strong>-U<strong>SP</strong>. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.


descrever um caso verídico, ocorri<strong>do</strong> em Candeias, pequena localidade de São Paulo, em 1875ou 1880. Mas apesar de passar-se na roça, “não houve, entretanto, intenção regionalista”: obarro nos sapatos e os espinhos nos vesti<strong>do</strong>s foram emprega<strong>do</strong>s apenas como parte da técnicanarrativa, como o vocabulário, “na sua corrente acepção brasileira, ou antes, paulista, (...)segun<strong>do</strong> a consonância e uso da terra onde o autor conheceu a língua e a vida.” 6O segun<strong>do</strong> motivo <strong>do</strong> resumo se dá pela própria estrutura da Pulseira: há na novela umpequeno conto, outro caso ocorri<strong>do</strong> em Candeias, que é a síntese da discussão levantada peloconjunto da obra. O conto é narra<strong>do</strong> por Veloso, segun<strong>do</strong> personagem, fiel amigo <strong>do</strong> padreGuilherme de Meneses, personagem principal. Na ocasião, Veloso narra ao padre como tambémfora vítima da boataria de Candeias. O caso se passou em calúnia sobre ele a suas relações coma filha dum ferreiro, seu amigo e vizinho, Manuel da Costa.A família <strong>do</strong> ferreiro vivia em casa simples, pobre, feliz. Sua esposa Ana, ajudava nostratos <strong>do</strong>mésticos e na feitura e venda de sequilhos. O filho Paulo era o ajudante de Manuel. Suaa<strong>do</strong>rável filha Raquel era um <strong>do</strong>s bons motivos da felicidade <strong>do</strong> ferreiro. Era ela que,ocasionalmente, servia a Veloso uma xícara de café quan<strong>do</strong> visita dele à família. Manueltrabalhava o dia to<strong>do</strong>, com pequenas pausas para agradar Raquel, então com onze anos. Emtempos raros, quan<strong>do</strong> não tinha demanda de trabalho, fabricava utensílios <strong>do</strong>s quais presenteavaamigos. Numa feita, resolveu dar a Raquel uma pulseirinha de ferro. O trato com o materialsensível e a perfeição almejada pelo ferreiro (parte <strong>do</strong> seu grande afeto pela filha) fizeram daconfecção da pulseira um labor de cinco anos. Raquel, então com dezesseis, “recebeu comomenina a sua pulseira de ferro, e remirou-se encantada (...)” 7Tempos depois, Veloso ausenta-se de Candeias a trabalho, coisa de meses. A cidadeinterpreta essa ausência pelo viés da calúnia, remeten<strong>do</strong> à relação amigável entre Veloso eRaquel uma demasiada complacência “aos agra<strong>do</strong>s de um velhote (...) que “inexplicavelmente”lhe freqüentava a casa e de repente “fugira” da vila sob esfarrapa<strong>do</strong>s pretextos (...)” 8 Corre oboato pela cidade. Quan<strong>do</strong> volta a Candeias, Veloso toma conhecimento <strong>do</strong> falecimento deRaquel: prometida ao primo desde infância, o noiva<strong>do</strong> não resiste ao boato. Desconcertada etriste, Raquel comete suicídio. É encontrada pelos pais num ingazeiro localiza<strong>do</strong> <strong>numa</strong> curva <strong>do</strong>ribeirão próximo à sua casa: “Perto, sobre um espinheiro, o seu xale de lã cor de rosa e, sobreele, pousada delicadamente, a pulseirinha de ferro.” 9 Após a tragédia, o fim da família. Paulovai-se de Candeias à cata de trabalho. Manuel e Ana de casa não saem. A<strong>do</strong>ecem. Morrem.6 AMARAL, Amadeu. Novela e Conto. São Paulo: Hucitec; Secretaria de Cultura e Tecnologia <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de SãoPaulo, 1976, p.3-5.7 AMARAL, Amadeu. Novela e Conto. Opus cit. p.77-78.8 Idem. Opus cit. p.79-80.9 Idem. Opus cit. p.79-80.Texto integrante <strong>do</strong>s Anais <strong>do</strong> XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. <strong>ANPUH</strong>/<strong>SP</strong>-U<strong>SP</strong>. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.


Veloso narra esse conto a padre Guilherme quan<strong>do</strong> este o procura em busca de consolopela calúnia de que fora vítima. Tem o padre trinta e nove anos, há seis habitan<strong>do</strong> Candeias. Eleé caracteriza<strong>do</strong> na novela como uma mistura de bondade e pouca esperteza, natureza <strong>do</strong>ce ecomunicativa. Tem ao fun<strong>do</strong> de sua casa a companhia da empregada Rosa, mulata, servi<strong>do</strong>rafiel. O seu sacristão chama-se Chicão: negro caboclo de andar desajeita<strong>do</strong>.Padre Guilherme a<strong>do</strong>tara um recém nasci<strong>do</strong>, deixa<strong>do</strong> na porta da Igreja, após Chicãochamá-lo para um batismo urgente, de um inocente desfaleci<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> relato <strong>do</strong>s pais.Chega<strong>do</strong>s à Igreja esperam por estes, mas apenas há o bebê deixa<strong>do</strong> à porta, segun<strong>do</strong> relato deChicão e Vito (afilha<strong>do</strong> <strong>do</strong> padre, negro). Sua bondade e solidão fazem padre Guilhermeintencionar a a<strong>do</strong>ção. Começa a cuidar de Matias (nome da<strong>do</strong> à criança em homenagem aosacristão, seu verdadeiro nome, pois Chicão era alcunha provinda <strong>do</strong> seu pai) como legítimo ecuida<strong>do</strong>so pai. Corre então o boato que a criança era filha legítima <strong>do</strong> padre, provavelmente desuas relações com Rosa. Calunia<strong>do</strong> pela comunidade e imprensa local padre Guilherme seentristece até deixar Candeias e Matias. Mas logo após sua ida a verdade vem à tona: Matias erafruto de adultério de Chicão. Para ajudá-lo, Rosa armou um tríplice artifício: o padre a<strong>do</strong>ta obebê; Chicão se livra <strong>do</strong> filho indeseja<strong>do</strong>; e o órfão ganha vida digna, pois a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelo padre.Nas duas narrativas o eixo é o boato como história inverídica prejudican<strong>do</strong> pessoasinocentes com desfecho “trágico”. Daí a intenção naturalista de Amadeu Amaral: a novela éuma espécie de estu<strong>do</strong> sobre o poder <strong>do</strong> boato <strong>numa</strong> pequena cidade, ten<strong>do</strong> como personagensprincipais <strong>do</strong>is amigos que se completam: padre Guilherme, exemplo de bondade e ingenuidade;Veloso, exemplo de intelecto e faro para o mal. Ambos intelectuais locais e, por isso, solitáriosobjetos de calúnia – o padre como um novato e Veloso como o experiente.Outros indícios da abordagem naturalista estão nas soluções formais da novela. 10 Apesar<strong>do</strong> tom coloquial Amadeu Amaral opta pouco pela oralidade (tão presente e posteriormentecriticada) <strong>do</strong>s textos regionalistas <strong>do</strong>s anos 1920. Ela aparece na fala <strong>do</strong>s negros e de um italianoem seus contornos mais gerais. 11 Como narra<strong>do</strong>r Amaral não fala à moda <strong>do</strong>s personagens, nemcoloca um deles nessa função (solução típica <strong>do</strong> regionalismo), salvo em algumas passagenscom Veloso. 12 Último indício: contemporâneo de Amaral, o alienista Franco da Rocha escreveao autor saudan<strong>do</strong>-o pela obra, rara, pois pesquisara literatura de ficção sobre o boato e nada10 Importante salientar que a recepção crítica de Nestor Victor, contemporâneo de Amadeu Amaral entendeu aPulseira como novela naturalista. Ver: VICTOR, Nestor. Cartas à gente nova. Rio de Janeiro: Edição <strong>do</strong> Annuario<strong>do</strong> Brasil, 1924. Sobre Nestor Victor como crítico literário ver: CARA, Salete de Almeida. A recepção crítica: omomento parnasiano-simbolista no Brasil. São Paulo: Ática, 1983.11 Alguns exemplos. Rosa: “Venanço! Purfiro! Benedito!”. Chicão: “Não faz mal seu vigário. Aminhã ela arrepeteos guiza<strong>do</strong>s.” Nicola: “Oh <strong>do</strong>ttore, aqui entre noise: sabe o que estava dizen<strong>do</strong> o Bernardino, agora meisimo?”.12 Pode-se objetar que as falas de padre Guilherme e Veloso não têm oralidade devi<strong>do</strong> à condição destes comointelectuais. Penso que esta hipótese é provável, porém, deve-se reconhecer que tal condição não necessariamenteelimina tipos de dicção, impostação de voz, formas de expressão <strong>do</strong> “R” reconhecidas como caipiras.Texto integrante <strong>do</strong>s Anais <strong>do</strong> XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. <strong>ANPUH</strong>/<strong>SP</strong>-U<strong>SP</strong>. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.


encontrara, salvo a Pulseira. Nas mãos de Paulo Duarte nos anos 1970, o ensaio “Psicologia <strong>do</strong>boato” <strong>do</strong> alienista <strong>do</strong> Juquery virou prefácio da edição que tenho em mãos. 13Mas antes de abordar o ensaio de Franco da Rocha volto à abordagem de AntonioCandi<strong>do</strong> sobre o regionalismo <strong>do</strong>s anos 1920, pois nem próximo e nem afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> pitoresco e<strong>do</strong> jocoso, Amaral escreveu uma novela que comportava outros interesses. 14 Quais?2) UMA LITERATURA DA ESCRAVIDÃO?Em 1918, trinta anos após a “abolição da escravidão”, exatamente no dia 13 de maio,Amadeu Amaral palestrava sobre o tema “Literatura da Escravidão”. Não vou sintetizar o texto,mas enfatizar a conclusão <strong>do</strong> autor sobre a realidade das relações entre escravos e senhoresquan<strong>do</strong> contraposta aos registros literários (<strong>do</strong>s românticos e <strong>do</strong>s realistas). Nem o negro forauma criatura superior, nem o branco fora um monstro. As fazendas não tinham um cotidiano dehorrores. Havia relações cordiais entre brancos e negros, principalmente entre os escravos<strong>do</strong>mésticos. E mesmo os escravos <strong>do</strong> trabalho pesa<strong>do</strong> tinham os seus momentos de folga. Haviasenhores de escravos cruéis e explosivos, outros bonachões e pie<strong>do</strong>sos. Neste viés, Amaralsalienta que o verdadeiro horror perpassava, ao mesmo tempo, brancos e negros, ou seja, ainstituição escravatura. 15Sem dúvida uma “bela saída” ideológica e política no momento em que palestrava, e, emhipótese, um mote político e estético para a Pulseira, bem como para que se entenda(m) o(s)juízo(s) <strong>do</strong> autor sobre os negros no livro: Rosa e Chicão traíram o padre inocente? Ou foramastutos? Nesse caso, Rosa demonstraria grande engenhosidade em resolver o problema <strong>do</strong>sacristão e ainda dar ao padre um filho a<strong>do</strong>tivo para superar sua carência de afetos? Nas relaçõessociais expressas entre brancos e negros a novela revela um subestimar <strong>do</strong>s primeiros sobre os13 O projeto Obras de Amadeu Amaral foi dirigi<strong>do</strong> por Paulo Duarte. Foram publica<strong>do</strong>s 9 entre 11 livrosanuncia<strong>do</strong>s. São eles: Tradições Populares, O Dialeto Caipira, O Elogio da Mediocridade, Poesias Completas,Novela e Conto, Política Humana, Letras Floridas, Memorial de um Passageiro de Bonde e Ensaios eConferências. Não foram publica<strong>do</strong>s: Crônicas e Correspondência.14 Em 1921 Tristão de Athayde notava mistura de realismo, tragédia e sátira nos contos que julgou os melhorespublica<strong>do</strong>s no ano anterior, por Amadeu Amaral, A pulseira de ferro, Monteiro Lobato, Negrinha, Gastão Cruls,Coivara e Lima Barreto, História e sonho: “Quan<strong>do</strong> a imaginação cede passo à observação, surge logo um caráternovo e que vamos encontrar em quasi to<strong>do</strong>s os livros de prosa da epoca, como adeante veremos, - a sátira. – Oslivros <strong>do</strong>s srs. Monteiro Lobato, Lima Barreto e Gastão Cruls e mesmo a novella <strong>do</strong> sr. Amadeu Amaral, estãoimpregna<strong>do</strong>s delle. Ha em to<strong>do</strong>s elles uma visão aguda da realidade, tragica ou satirica, conforme a posição <strong>do</strong>autor perante o espetaculo <strong>do</strong> mal.” ATHAYDE, Tristão. “A literatura em 1920”, parte IV, in: Revista <strong>do</strong> Brasil,nº65, volume XVII, ano IV, 1921, p.119.15 AMARAL, Amadeu. Literatura da escravidão, in: Letras Floridas. São Paulo: Hucitec; Secretaria de Cultura eTecnologia <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de São Paulo, 1976, p.95-122. Tenho como mote meto<strong>do</strong>lógico <strong>do</strong> <strong>do</strong>utoramento a tentativade entender e descrever, pelo cruzamento <strong>do</strong>s diferentes escritos de Amadeu Amaral, sua “chave de leitura” da vida,da vida social e política, da vida como escritor e jornalista, bem como das suas idéias políticas (principalmente noque se refere aos “populares” ou ao “povo”). Neste viés, defen<strong>do</strong> que a interpretação <strong>do</strong>s seus escritos de diferentesnaturezas (poesia, crítica literária, folclore, ficção em prosa) deve cruzá-los, pois assim se descortinam motivos etópicas recorrentes no seu estilo ou forma: o que não significa linearidade, evolução interna ou totalidade. Sãoestratégias e figuras retóricas que demonstram um autor “polígrafo”, característica conhecida <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>. Portanto,o méto<strong>do</strong> não é nada mais <strong>do</strong> que um aporte que se pretende “fiel” às características <strong>do</strong> “objeto” estuda<strong>do</strong>.Texto integrante <strong>do</strong>s Anais <strong>do</strong> XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. <strong>ANPUH</strong>/<strong>SP</strong>-U<strong>SP</strong>. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.


segun<strong>do</strong>s. Padre Guilherme vê em Chicão apenas um sacristão ignorante, <strong>do</strong> qual conversam emmonólogo, como momentos de piedade e companhia. Rosa é entendida pelo padre como mulatafiel e carinhosa, mas uma mera empregada.Entre patrões e subalternos, brancos e negros, a Pulseira enfatiza implicitamente aastúcia <strong>do</strong>s negros como parte <strong>do</strong> saber peculiar <strong>do</strong>s pobres, saber que se organiza dentro <strong>do</strong>espaço <strong>do</strong>s <strong>do</strong>minantes: não fosse a bondade religiosa <strong>do</strong> padre, não teria caí<strong>do</strong> no artifício.Ainda em plano implícito, a novela tem na boataria o seu “vilão”, e, nesta circunstância, a“totalidade” da cidade de Candeias (totalidade <strong>do</strong> social sobre os indivíduos), com foconarrativo nos “setores médios” (comerciais - a botica e a barbearia – e institucionais - o jornal ea igreja), que dão asas aos vôos da farsa <strong>do</strong> padre como pai <strong>do</strong> bebê. Resolução que volta àinstituição como vilã. Lembran<strong>do</strong> o diagnóstico de Amaral sobre a escravidão, o boato e achacota são verdadeiras instituições de Candeias: na interpretação certeira de Veloso,metamorfoseada no “nosso pão espiritual de cada dia”. 16 Mas há também preconceitos emAmadeu Amaral, presentes na caracterização <strong>do</strong>s negros: Vito sorri como macaco; Rosa émulata, velha e gorda; Chicão é ignorante, “bal<strong>do</strong> de inteligência”, tem cabeça de moganga.Prosseguin<strong>do</strong> na análise das instituições como vilãs da vida social, a Pulseira trazrespectivamente, na simbologia de Padre Guilherme e <strong>do</strong> bacharel Veloso, uma crítica à Igreja eao Esta<strong>do</strong>, instituições que se pretendem regenera<strong>do</strong>ras. 17 Representantes da religião e daciência, mas incapazes de entender, diagnosticar e governar as classes pobres, os negrosescravos ou ex-escravos, são, ao contrário, vítimas das astúcias destes. Já as classes médiasrepresentam o ócio, hipocrisia e inveja nas instituições <strong>do</strong> comércio e da imprensa: Felisberto,desafeto de padre Guilherme, é o <strong>do</strong>no da botica, ponto de encontro das fofocas locais; Nicola:barbeiro, é um <strong>do</strong>s propaga<strong>do</strong>res <strong>do</strong> boato; e Camacho, professor de primeiras letras e articulistada Gazeta de Candeias se vê constrangi<strong>do</strong> ao boato ao publicar artigo que ironiza o padre.3) “PSICOLOGIA DO BOATO” NA PULSEIRA DE FERRO: “DEMOPSICOLOGIA”?No ano de 1920 foram publicadas três obras de Amadeu Amaral. Seus conteú<strong>do</strong>srevelam certa passagem <strong>do</strong> autor como poeta e crítico literário para estudioso da linguagem e<strong>do</strong>s costumes populares, bem como prosa<strong>do</strong>r. Letras Floridas é uma coletânea de críticas e16 AMARAL, Amadeu. Novela e Conto. Opus cit. p.65.17 É possível alçar essa hipótese porque, apesar da história se passar em 1875 ou 1880, como afirma<strong>do</strong> no prólogo, adata da publicação (1920) permitiria a Amaral criticar as suas instituições e classes contemporâneas. O registro dedesterra<strong>do</strong> com que encerra a análise da literatura da escravidão reforça esta hipótese: “Quem, como eu,desabrochou para o mun<strong>do</strong> na atmosfera das lutas pela liberdade <strong>do</strong> negro e pela liberdade <strong>do</strong> branco, e bebeu alargos sorvos o vento de ideal que ro<strong>do</strong>piava por tu<strong>do</strong> e zunia por todas as frinchas, e chorou, e exultou, e riu, esofreu, no embate desinteressa<strong>do</strong> das idéias, pela sorte de uns tantos anelos ama<strong>do</strong>s, há de arrastar sempre pela vida,onde tais situações de exaltação generosa são passageiras e raras, a melancolia funda de um desengana<strong>do</strong>, odesencanto secreto de alguém que despertou de um grande sonho, a saudade pungente e irremediável <strong>do</strong> desterra<strong>do</strong>de uma pátria morta!” AMARAL, Amadeu. Letras Floridas. Opus cit. p.122.Texto integrante <strong>do</strong>s Anais <strong>do</strong> XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. <strong>ANPUH</strong>/<strong>SP</strong>-U<strong>SP</strong>. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.


conferências literárias realizadas nos anos 1910. O Dialeto Caipira, hoje seu título maisconheci<strong>do</strong>, polemizou sobre o falar caipira e os brasileirismos, revelan<strong>do</strong> que a sintaxe,morfologia e fonética <strong>do</strong> dialeto remetiam às raízes portuguesas, aos arcaísmos, em fase detransformação ou decomposição acentuada.Sobre a Pulseira, ela compõe um projeto da Sociedade Editora Olegário Ribeiro, deintuito de popularização da leitura intitula<strong>do</strong> “A Novella Nacional”, tal como bem analisa<strong>do</strong> noestu<strong>do</strong> de Teresinha Del Fiorentino. 18 Talvez a natureza deste e de outros projetos editoriais <strong>do</strong>perío<strong>do</strong> sejam um <strong>do</strong>s incômo<strong>do</strong>s implícitos da crítica literária de Antonio Candi<strong>do</strong>, sobretu<strong>do</strong>quanto ao regionalismo e sua sintomática persistência na “subliteratura e no rádio”. Fato nãoentendi<strong>do</strong> pelo crítico é que esses livros foram escritos por autores/intelectuais egressos <strong>do</strong>interior para a capital <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de São Paulo. Autores que produziram textos de visadapopular/popularizante nos projetos editoriais e temáticos que, com maior cuida<strong>do</strong>, descortinammotivos outros em suas tramas, para além <strong>do</strong>s estereótipos e piadas sobre caipiras e matutos,Jeca Tatu e Pedro Malasartes.A Pulseira não é apenas um “causo” passa<strong>do</strong> em pequena cidade; é obra de autor afina<strong>do</strong>com as teorias sociais de seu tempo 19 , as usan<strong>do</strong> como inspiração/motivação para suas própriasdescobertas <strong>do</strong> “povo”. Fato que desloca a idéia de Candi<strong>do</strong> de que o regionalismo ganha aresde estu<strong>do</strong>s sociais na década de 1930 quan<strong>do</strong> contraposta a 1920, década <strong>do</strong> reitera<strong>do</strong> pitorescoe jocoso (ao menos, então, no caso de Amadeu Amaral).Na década de 1970, na organização das Obras de Amadeu Amaral, Paulo Duarte dispôs oartigo Psicologia <strong>do</strong> boato, de Franco da Rocha, como prefácio ao livro Novela e Conto. 20 Omotivo é simples e inquietante: logo após a publicação da Pulseira, o alienista e diretor <strong>do</strong> Asilo<strong>do</strong> Juquery 21 enviou à redação <strong>do</strong> jornal O Esta<strong>do</strong> de São Paulo (no qual Amaral trabalhava)carta elogian<strong>do</strong> a obra. Afirmou que procurara ficção que retratasse o seu estu<strong>do</strong>, mas nada18 FIORENTINO, Teresinha Del. Prosa de ficção em São Paulo: produção e consumo. São Paulo: Hucitec;Secretaria de Esta<strong>do</strong> da Cultura, 1982.19 Sobre Franco da Rocha, “prefacia<strong>do</strong>r” da Pulseira, diz Maria Clementina Pereira Cunha: “O alienismo brasileiromantém uma absoluta atualização em relação àquilo que se produz nos centros mais “avança<strong>do</strong>s” <strong>do</strong> saberpsiquiátrico. Particularmente no caso de São Paulo, onde Franco da Rocha foi figura <strong>do</strong>minante – e, em parte, pormérito seu -, a fala alienista demonstra intimidade com os autores mais recentes <strong>do</strong> alienismo internacional (...).”CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1988, p.28.20 O livro Novela e Conto está forma<strong>do</strong> por: A Pulseira de Ferro e pelo conto Ratinha de Esgoto.21 Franco da Rocha (1864-1933) formou-se em 1890 na academia Nacional de Medicina <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Em1893 ingressou no corpo médico <strong>do</strong> asilo de loucos de São Paulo como o seu primeiro especialista. Influencia<strong>do</strong> poruma série de teorias e práticas psiquiátricas (da teoria da degenerescência nos anos de formação a divulga<strong>do</strong>r deFreud no Brasil nos anos 1920) dirigiu o Asilo <strong>do</strong> Juquery de 1903 ao final da década de 1920. De intervenção“moral” e social, o papel <strong>do</strong> asilo durante este perío<strong>do</strong> pode ser sintetiza<strong>do</strong> como abrigo e prisão de tipos sociaiscaracteriza<strong>do</strong>s como “loucos em potencial”, “demi-fous”: vagabun<strong>do</strong>s, prostitutas, alcoólatras, pederastas,homicidas, revolucionários, criminosos, fracos (para os desafios da vida social) e degenera<strong>do</strong>s.Texto integrante <strong>do</strong>s Anais <strong>do</strong> XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. <strong>ANPUH</strong>/<strong>SP</strong>-U<strong>SP</strong>. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.


encontrara até então. Por um acaso, não teve tempo de retificar seu ensaio com a devidareferência à Pulseira, pois já o havia envia<strong>do</strong> à gráfica (fato depois corrigi<strong>do</strong> em outra edição 22 ).Os aspectos inquietantes são os de que, apesar de Amaral e Franco da Rocha não seconhecerem pessoalmente, a Psicologia <strong>do</strong> Boato é uma bela síntese teórica e de enre<strong>do</strong> daPulseira em cinco pontos significativos 23 : 1) <strong>do</strong> boato como parte da psicopatologia dasmultidões; 2) a definição <strong>do</strong> boato; 3) as circunstâncias que tornam o boato propício; 4) asnoções de civilização e de humano; 5) a dinâmica da difusão e “recepções” <strong>do</strong> boato.O “pano de fun<strong>do</strong>” comum aos textos são alguns <strong>do</strong>s elementos da psicologia dasmultidões por autores como Gustave Le Bon, Scipio Siguele e Gabriel Tarde: a dimensãoviolenta, irracional e inconsciente das multidões aglomeradas desses teóricos ganhou ares depropagação de perversidades e idiotia moral na natureza <strong>do</strong> boato por Franco da Rocha eAmadeu Amaral. Daí a definição <strong>do</strong> boato pelo alienista: fruto da inveja de uma mente perversade um idiota moral, falsário, que cria história irreal e desmoralizante de pessoa de destaquesocial. Na Pulseira, os alvos <strong>do</strong> boato são: padre Guilherme, figura central da vida religiosa deCandeias, alveja<strong>do</strong> principalmente por Felisberto, boticário e ironista local (vende produtosfalsos segun<strong>do</strong> Veloso), que não gostou da atitude <strong>do</strong> padre em não dividir diferentemente suasatenções entre os comuns e as elites locais; Veloso, bacharel e intelectual, alvo <strong>do</strong> boatojuntamente com Raquel, moça nova, bela e bon<strong>do</strong>sa – to<strong>do</strong>s, portanto, inveja<strong>do</strong>srespectivamente pela posição social, inteligência/excentricidade e bondade/beleza.Segun<strong>do</strong> Franco da Rocha o contexto propício ao boateiro é o <strong>do</strong> anonimato. Pois naPulseira a “peça” pregada por Chicão e Rosa ao padre, no dia <strong>do</strong> batismo <strong>do</strong> bebê, forapresenciada por alguns transeuntes e por Felisberto (o que dá uma dimensão compartilhada aoinício <strong>do</strong> boato, apesar da novela deixar claro que o boticário fora o seu articular central). Oanonimato <strong>do</strong> boato se dá então pela curiosidade de Candeias em saber por que o vigário iniciouseu amor e posterior a<strong>do</strong>ção ao inocente, ou seja, a própria curiosidade local em entender umfato inusita<strong>do</strong> num cotidiano prosaico. 2422 “Buscar na literatura, na obra de arte, o exemplo concreto, confirma<strong>do</strong>r de uma <strong>do</strong>utrina exposta em princípiosgerais, é hoje moda e fundada em boas razões. Quem quiser ler um belíssimo exemplo de boato em lugarejo <strong>do</strong>interior, encontrá-lo-á na novela de Amadeu Amaral A Pulseira de Ferro. Aí se acha o fenômeno magistralmentedescrito.” ROCHA, Franco da. Psicologia <strong>do</strong> Boato, in: AMARAL, Amadeu. Novela e Conto. Opus cit. p.XXXI.23 Franco da Rocha não deixou de anotar certa alegria ao reconhecer os paralelos <strong>do</strong>s textos: “Outra coincidênciainteressante: empreguei lá a palavra salafrário. Esta noite passei algumas horas persegui<strong>do</strong> pela obsessão de seraquela palavra desconhecida de to<strong>do</strong>s os dicionários da nossa língua (inclusive o Taunay). Quan<strong>do</strong> li hoje o seuconto, lá dei de encontro com salafrário! Bom, disse eu, minha letra agora está en<strong>do</strong>ssada! E en<strong>do</strong>ssada por firmacreditada na praça... Dei um suspiro de alívio. Agora, se me acusarem <strong>do</strong> emprego de tal palavra, empurrarei aquestão ao en<strong>do</strong>ssante.” ROCHA, Franco da. Carta a Amadeu Amaral, in: AMARAL, Amadeu. Novela e Conto.Opus cit. p.VIII-IX.24 É possível levantar hipótese de que Amaral inspirou-se em Gabriel Tarde nesta questão, sobre a conversação empequena cidade como agente da imitação e da propagação. O texto <strong>do</strong> sociólogo francês foi publica<strong>do</strong> na Revue desDeux Mondes no ano de 1899. Provável, portanto, que o autor da Pulseira conhecesse o ensaio. Em Tarde anota-se:Texto integrante <strong>do</strong>s Anais <strong>do</strong> XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. <strong>ANPUH</strong>/<strong>SP</strong>-U<strong>SP</strong>. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.


A título de melhor compreensão/conceituação <strong>do</strong> boato, Franco da Rocha prossegue nasua caracterização pelas dimensões humana e civilizatória em que ele se expressa. Definin<strong>do</strong> ohumano como sujeito misto de bondade e maldade, sociabilidade e crueldade, contenção eviolência, o inconsciente <strong>do</strong> indivíduo e da sociedade fornece o campo de disputa das tendênciascontraditórias, <strong>do</strong>nde o trabalho secular da civilização é o de contenção da dimensãoanimal/cruel, ao fornecer constrangimentos sociais pelo trabalho da moral e da cultura. Noensaio <strong>do</strong> alienista esta discussão está colocada no momento de abstração <strong>do</strong> fenômeno no quetange aos seus aspectos individuais/sociais, psicológicos/culturais. Na Pulseira, é no momentoque Veloso busca confortar o vigário de seu sofrimento e frustração que ele palestra sobre oshomens e suas animalidades intrínsecas. Paralelo que merece citação:Repare-se quan<strong>do</strong> diversos cavalos comem <strong>numa</strong> só manje<strong>do</strong>ura, cada um com seuquinhão de alimento, como sai sempre um deles <strong>do</strong> seu lugar, para ir escoicear osoutros, embora não lhe falte comida. É o mesmo fenômeno que se encontra no meiosocial, muito abranda<strong>do</strong>, está visto, pelo grau superior de desenvolvimento em que seacha o homem. 25O homem, descendente degenera<strong>do</strong> <strong>do</strong> gorila, estava fada<strong>do</strong> a ser um bruto feroz eleal, a ter a agressividade rija, direta e explosiva <strong>do</strong>s grandes vertebra<strong>do</strong>s, que lutam àluz <strong>do</strong> sol, atiran<strong>do</strong>-se ao inimigo, sem cerimônias, sem disfarces, quan<strong>do</strong> isso lhes dána gana, morden<strong>do</strong>, escoicean<strong>do</strong>, pisan<strong>do</strong>, rasgan<strong>do</strong> carnes, rebentan<strong>do</strong> ossos,espalhan<strong>do</strong> sangue, aos berros, aos guinchos, aos pinotes. Vieram vocês, econvenceram o bicho de que era preciso ser humano, ser humilde, ser desambicioso,ser compassivo, ser justo. (...) O bruto ganhou em peçonha, em perversidade recolhidae fe<strong>do</strong>renta o que perdeu em brutalidade esbarrondante e sadia (...). 26E como em tu<strong>do</strong> há diferenças de qualidade ou de “quantidade” de civilizaçãoacumulada, hereditária, Franco da Rocha encerra seu ensaio revelan<strong>do</strong> a diferença moral entre oboateiro e o homem de bem. Enquanto o boateiro se abre aos impulsos sarcásticos da tentaçãode difundir o boato, o homem civiliza<strong>do</strong> não se permite ao engano e ao engo<strong>do</strong>, reprimin<strong>do</strong> seusimpulsos e também reprimin<strong>do</strong> o boateiro. O mesmo se dá na Pulseira, em momentos queVeloso busca defender o padre, repreenden<strong>do</strong> os boateiros, seja na botica de Felisberto (quan<strong>do</strong>toma conhecimento da mentira), seja na barbearia de Nicola e, principalmente, quan<strong>do</strong> se dirige“A conversação de cidade pequena, entre concidadãos que estão liga<strong>do</strong>s uns aos outros por amizades hereditárias,são e devem ser muito diferentes das conversações de cidade grande, entre pessoas instruídas que se conhecemmuito pouco. (...) Os primeiros, em troca, não têm idéias que lhes sejam mais comuns e ao mesmo tempo maisconhecidas <strong>do</strong> que as particularidades da vida e <strong>do</strong> caráter das outras pessoas de seu conhecimento; daí suapropensão ao mexerico e à maledicência.” TARDE, Gabriel. A opinião e a conversação, in: A opinião e as massas.São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.79. Ao diferenciar os interesses de Le Bon, Siguele e Tarde, respectivamente osde combate às multidões, de normalização jurídica e de caráter demonstrativo (ou seja, interesse de investigação emdetrimento ao de intervenção), Dominique Cochart permite aventar mais um da<strong>do</strong> de que a Pulseira é um estu<strong>do</strong>naturalista <strong>do</strong> boato, posto este pequeno paralelo Amaral-Tarde. COCHART, Dominique. As multidões e aComuna: análise <strong>do</strong>s primeiros escritos sobre a Psicologia das Multidões, in: Revista Brasileira de História. SãoPaulo: v.10, nº20, março 1991-agosto1991, p.116.25 ROCHA, Franco da. Psicologia <strong>do</strong> Boato, in: AMARAL, Amadeu. Opus cit. p.XXI.26 AMARAL, Amadeu. Novela e Conto. Opus cit. p.67.Texto integrante <strong>do</strong>s Anais <strong>do</strong> XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. <strong>ANPUH</strong>/<strong>SP</strong>-U<strong>SP</strong>. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.


a redação da Gazeta de Candeias e pede ao redator para que poupe seu amigo (depois de notíciaironizan<strong>do</strong> o vigário).Creio que esses enre<strong>do</strong>s imbrica<strong>do</strong>s entre Franco da Rocha e Amadeu Amaral revelam apresença da psicologia coletiva/das multidões na Pulseira. Contemporâneo da novela, Amaralinteressava-se nas chamadas tradições populares: costumes, crenças e literaturas populares queprincipiou a investigar em busca da demopsicologia <strong>do</strong> povo paulista e brasileiro, em projetonão finaliza<strong>do</strong> e que seria concretiza<strong>do</strong> com livro intitula<strong>do</strong> “Cancioneiro Caipira”.O termo demopsicologia provavelmente provém de Giuseppe Pitré, teórico socialitaliano. As influências folclóricas de Amadeu Amaral perpassavam ainda outros autores:Arnold Van Gennep, André Varagnac e Paul Sébillot. É possível entender demopsicologia comoestu<strong>do</strong> da demografia psicológica de determina<strong>do</strong> espaço/nação, um rastreamento <strong>do</strong>s usos ecostumes tradicionais/morais da população distribuí<strong>do</strong>s no território. Consagrava-a o méto<strong>do</strong>histórico-geográfico, peculiar aos folcloristas <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> aqui retrata<strong>do</strong>. A Pulseira é exemplo deestu<strong>do</strong> de caso ficcional destes aportes/interesses, depois inicia<strong>do</strong>s e des<strong>do</strong>bra<strong>do</strong>s nos rodapés<strong>do</strong> OE<strong>SP</strong> intitula<strong>do</strong>s “Tradições Populares” em 1925.Para concluir volto à “estrutura social” de Candeias e aos fundamentos implícitos dapsicologia <strong>do</strong> boato. Volto à idéia de que o boato toma forma como vilão, mas um vilão que éuma verdadeira instituição social da pequena cidade. No interior dessa totalidade os personagensrepresentam posições sociais específicas: padre Guilherme e Veloso como intelectuais; Nicola,Felisberto e professor Camacho como classe média; Chicão e Rosa como pobres/escravos ou exescravos,negros, trabalha<strong>do</strong>res.Posto que ao final da novela a farsa é descoberta como fruto de adultério de Chicão porsua esposa, que a denuncia aos cunha<strong>do</strong>s em cena de “reboliço com muita pinga, muito choro,muita descompostura, várias porretadas e facadas” 27 esclarecidas na polícia, descortina-se arepresentação <strong>do</strong>s negros como perigosos, caborteiros, traiçoeiros: entre si e diante <strong>do</strong>s brancos.Imagem comum na literatura <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>. Imagem fiel à idéia de negros = classes perigosas =vagabun<strong>do</strong>s ou bandi<strong>do</strong>s. Lugar comum da psicologia das multidões, da psicologia <strong>do</strong> boato deFranco da Rocha e Amadeu Amaral. 28 Lugar para concluir que o estu<strong>do</strong> naturalista de Amaral é27 Idem. Opus cit. p.120.28 Outro paralelo, a conclusão de cada texto: “Caminha para a perfeição espiritual aquele que consegue tornarconsciente a maior parte da maldade que lhe existe no inconsciente, e assim pode <strong>do</strong>miná-la. Ainda estamos longeda perfeição; não podemos exigir a extinção <strong>do</strong> boato.” ROCHA, Franco da. Psicologia <strong>do</strong> Boato, in: AMARAL,Amadeu. Opus cit. p.XXXI.“Chicão pegou no pequeno far<strong>do</strong>, atravessou em silêncio a vila silenciosa, e foi largá-lo, com uma chupeta na boca,à entrada da igreja. Depois, chamou Vito, Pó-lo de guarda ao templo, recomendan<strong>do</strong>-lhe, com uma carrancaimperativa, que não saísse da sacristia, e foi chamar o padre... O resto sabe-se. Candeias achou imensa graça àfinura <strong>do</strong>s brutos, e riu-se regaladamente da peça pregada a padre Guilherme de Meneses.” AMARAL, Amadeu.Novela e Conto. Opus cit. p.120-121.Texto integrante <strong>do</strong>s Anais <strong>do</strong> XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. <strong>ANPUH</strong>/<strong>SP</strong>-U<strong>SP</strong>. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.


ambíguo. Crítico da ingenuidade <strong>do</strong> padre e da passividade <strong>do</strong> intelectual (Igreja e Esta<strong>do</strong>)demonstra parte <strong>do</strong>s conflitos entre brancos e negros, mas encerra “optan<strong>do</strong>” pelo ardil <strong>do</strong>snegros como astúcia traiçoeira.Por fim, há no “pitoresco e jocoso” <strong>do</strong> regionalismo elementos outros para análise: mistode ciência, política, estética e história, a Pulseira revela um universo complexo de referências epontos de vista. Ao la<strong>do</strong> da chave de leitura crítica que institui a redução <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> 1900-1922como (pré)para<strong>do</strong>r dum momento derradeiro, espero ter proposto algumas estradas vicinais paraum entendimento mais aberto destas “caipiridades”. 2929 Enten<strong>do</strong> por “caipiridades” o perío<strong>do</strong> (1889-1929) e os interesses científicos (teorias sociais, psicológicas,folclóricas e lingüísticas) estéticos (naturalismo, realismo, sátira, ironia e regionalismo) e políticos (que fazer com oJeca? Como modernizar um país agrário-exporta<strong>do</strong>r? Que significa modernizar o Jeca? É mesmo possível isso?)que deram aos “caipiras” e seus mo<strong>do</strong>s de vida uma instituição imaginária “brasileira”, como parte da questão da“identidade nacional”. O neologismo é inspira<strong>do</strong> no trabalho de meu orienta<strong>do</strong>r de monografia em Ciências Sociaisda PUC-<strong>SP</strong>, professor Roberto Adrian Ribaric, que num <strong>do</strong>s capítulos de seu mestra<strong>do</strong> em Antropologia trabalhoucom “caiçaridades”. Ver: RIBARIC, Roberto Adrian. Caiçara: para uma arqueologia da memória (mestra<strong>do</strong> emAntropologia), PUC-<strong>SP</strong>, 1996.Texto integrante <strong>do</strong>s Anais <strong>do</strong> XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. <strong>ANPUH</strong>/<strong>SP</strong>-U<strong>SP</strong>. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

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