Manual de leitura Alma.pdf - Teatro Nacional São João no Porto
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As <strong>no</strong>ções litúrgicas <strong>de</strong> Gil Vicente<br />
espalhadas <strong>no</strong>s autos <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção reforçam<br />
a hipótese <strong>de</strong> uma formação escolar<br />
recebida talvez em casa <strong>de</strong> algum aba<strong>de</strong><br />
sertanejo ou em escola conventual. Em<br />
todo o caso, o saber não acusa a glosa<br />
universitária. É uma ciência mo<strong>de</strong>sta, sem<br />
línguas sábias, nenhum sabor oratório,<br />
a não ser o eclesiástico, e quase sempre<br />
um rasgo <strong>de</strong> dúvida e empirismo. Devia<br />
ter lido muito, mas <strong>de</strong>stas <strong>leitura</strong>s vadias<br />
e vivas que ensinam pela ficção e pelo<br />
ardor da experiência. Teve conhecimentos<br />
mitológicos, assimilou matéria dos livros<br />
<strong>de</strong> cavalaria, manuseou sentenças e livros<br />
morais, teve luzes <strong>de</strong> certas disputas<br />
essenciais da história do pensamento e dos<br />
temas mais universais da literatura <strong>de</strong> ficção.<br />
Entre os seus raros alar<strong>de</strong>s <strong>de</strong> erudição há<br />
mesmo um verso <strong>de</strong> Virgílio.<br />
Mas esta matéria avulsa e pitoresca é<br />
domada pelo seu génio, assimilada e sujeita<br />
às leis da sua expressão. Não utiliza nem<br />
compõe por amor dos amigos. A sua pena e o<br />
seu gosto são arcaicos; o mito e a história não<br />
têm para ele sentido enquanto se não <strong>de</strong>ixam<br />
reduzir à escala humana. Toda a entida<strong>de</strong><br />
conhecida, as próprias personagens bíblicas,<br />
as abstrações e personificações tomam<br />
a<strong>de</strong>manes terre<strong>no</strong>s, à medieval.<br />
A Providência é uma princesa; o Mundo<br />
um rei; o Tempo o seu monteiro -mor. David<br />
Vitori<strong>no</strong> Nemésio<br />
Excerto <strong>de</strong> “Gil Vicente, Floresta <strong>de</strong> Enga<strong>no</strong>s”. In Vultos e Perfis, II: Quase<br />
Que Os Vi Viver. Lisboa: Imprensa <strong>Nacional</strong> -Casa da Moeda, 2004. p. 38.<br />
oscila entre a alta dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> duque da<br />
Promissão e o humil<strong>de</strong> pelote <strong>de</strong> um pastor.<br />
Pastor é Salomão; a Fé uma pastorinha.<br />
A Virgem tão <strong>de</strong>pressa é uma rainha como<br />
uma grã -duquesa, o próprio Deus se tor<strong>no</strong>u<br />
o maior grã -duque do mundo: precisava <strong>de</strong><br />
parceira. Quanto a pagãos, basta fixar este<br />
reitor das Moedas – Mercúrio. Idêntico estilo<br />
na hierarquia do infer<strong>no</strong>. Um diabo -mor<br />
outorga a Lúcifer o título um pouco<br />
arrastado <strong>de</strong> Capitão dos Rei<strong>no</strong>s do<br />
Mundo. Acrescentem -se a isto os disfarces<br />
conhecidos do romance pastoril e a<br />
<strong>de</strong>liciosa metamorfose dos príncipes e<br />
dos cortesãos portugueses em peixes e<br />
em animais marinhos que, nas Cortes <strong>de</strong><br />
Júpiter, fazem séquito à infanta D. Beatriz,<br />
duquesa <strong>de</strong> Sabóia, que parte para Itália –<br />
e empreen<strong>de</strong>remos como o génio <strong>de</strong> Gil<br />
Vicente enca<strong>de</strong>ia o Olimpo, o céu, a criação,<br />
por uma série <strong>de</strong> reduções e equivalências<br />
<strong>de</strong> uma natureza a outra, até darem uma<br />
interpretação esteticamente pessoal do valor<br />
das hierarquias numa representação do<br />
mundo.