Manual de leitura Alma.pdf - Teatro Nacional São João no Porto
Manual de leitura Alma.pdf - Teatro Nacional São João no Porto
Manual de leitura Alma.pdf - Teatro Nacional São João no Porto
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Paixão<br />
É aquela paixão – dizia a minha tia, prolongando<br />
a frase numa nasal chorosa,<br />
e apontando o marido, inchado, uivante,<br />
na cama da província.<br />
Era a primeira vez que eu ouvia tal palavra, ave<br />
impetuosa do sexo, caída moribunda<br />
sobre a dor <strong>de</strong> um corpo<br />
repugnante.<br />
Eu tinha vinte a<strong>no</strong>s e lembrei -me <strong>de</strong> Cristo.<br />
Do seu lânguido e marfinado corpo<br />
que se <strong>de</strong>ixava cair com elegância dos braços<br />
da sua cruz <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira santíssima.<br />
E mesmo já <strong>de</strong>itado sob altares barrocos,<br />
<strong>de</strong>fendido do fervor amoroso das fiéis por cristais<br />
<strong>de</strong> chumbo e fechos <strong>de</strong> ouro, exibia a sedução da morte.<br />
O tio estava grosso e escarrava num bacio <strong>de</strong> plástico<br />
o que viria do fígado<br />
ou <strong>de</strong> outro lugar animal que lhe roía<br />
as vísceras.<br />
Eu só lera romances e poemas, tinha a liturgia,<br />
a sexta -feira roxa, uma vigília solene e paramentada.<br />
E aquela palavra esplendorosa não cabia<br />
na paisagem horrível<br />
<strong>de</strong> lençóis molhados, <strong>de</strong> infectas secreções<br />
sobre a cama <strong>de</strong> pinho.<br />
Um raio <strong>de</strong> sol corria a sua misericórdia da janela cerrada<br />
até ao esgar da boca.<br />
Deus viera àquela casa disfarçado <strong>de</strong> tio,<br />
amado por uma madalena em <strong>de</strong>salinho.<br />
A ave torturada do sexo <strong>de</strong>batia -se <strong>no</strong> sangue<br />
e a plumagem dos versos barrava -lhe o caminho.<br />
Mas ele chegara.<br />
E a semântica iniciava o seu ofício <strong>de</strong> trevas.<br />
Armando Silva Carvalho<br />
In O Que Foi Passado a Limpo: Obra Poética.<br />
Lisboa: Assírio & Alvim, 2007. p. 434 -435.