13.04.2013 Views

Manual de leitura Alma.pdf - Teatro Nacional São João no Porto

Manual de leitura Alma.pdf - Teatro Nacional São João no Porto

Manual de leitura Alma.pdf - Teatro Nacional São João no Porto

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

De profundis<br />

Do profundo abismo em que me achei,<br />

E em que não me lembro se caí ou fui precipitado,<br />

Da lama fofa e a ferver <strong>de</strong> que me cozi, clamei<br />

A vós, Senhor, surdo e infinito:<br />

Sejas tu neste grito<br />

Para todo o sempre louvado.<br />

Sejam vossos ouvidos atentos (ah, Senhor,<br />

Assim se diz, assim seja!)<br />

À voz da minha culpa e do meu nada –<br />

Maior, neste clamor<br />

E na miséria que esse olhar <strong>de</strong>seja,<br />

Que toda a coisa principiada.<br />

O meu corpo é moído e ar<strong>de</strong>nte<br />

Como a areia do <strong>de</strong>serto<br />

De que o teu vento faz as ondas da cegueira<br />

Rotativa e lunar;<br />

Tenho o meu lado aberto<br />

Por uma lança rasteira,<br />

E não por te imitar.<br />

Aqui, das toalhas da aflição<br />

Pela canalha rasgadas<br />

E em minhas chagas embebidas,<br />

Levanto o meu queixume,<br />

Pura evaporação,<br />

Secada pelo teu lume,<br />

Das minhas fraldas doloridas,<br />

Em sangue e mijo molhadas,<br />

Vitori<strong>no</strong> Nemésio<br />

O Bicho Harmonioso, 1938<br />

In Obras Completas: Vol. I: Poesia, 1916 ‑1940.<br />

Lisboa: Imprensa <strong>Nacional</strong> -Casa da Moeda, 2006. p. 278 -280.<br />

Senhor, que me sujei na força da agonia<br />

E em minhas lágrimas me lavo,<br />

Como um velhinho fazia<br />

No catre do hospital, fe<strong>de</strong>ndo a murta e alho bravo –<br />

Uma algália nas partes, algodão num ouvido:<br />

Só por cima da colcha uma mosca o afagava<br />

Enquanto ele chorava,<br />

Todo borrado e comovido.<br />

Sim, daqui, <strong>de</strong>ste abismo trivial<br />

A que só as palavras dão fundura,<br />

A ti clamo.<br />

Abre o meu pe<strong>de</strong>rnal,<br />

Que a seca estéril rege;<br />

Monda o vil coração com que te amo<br />

E, ainda que eu fraqueje,<br />

Cava -me até ao fio <strong>de</strong> água pura.<br />

Abre os seios dos meus ossos<br />

E a cerração tenaz dos meus tendões:<br />

Assim se abrem os poços<br />

Que dão <strong>de</strong> beber aos leões.<br />

Aí, Senhor, a tua estrela,<br />

Quanto mais podre eu for à tona,<br />

Mais brilhará, profunda e bela<br />

Como o luar e a beladona.<br />

Recebe, Senhor, do abismo<br />

Em que me engolfo e <strong>de</strong>bato,<br />

As lembranças agudas em que me pico e cismo –<br />

Meu remorso barato<br />

Que o tempo vai tornando<br />

Todo em cinza saudosa,<br />

Minhas sauda<strong>de</strong>s peneirando<br />

Com uma peneira <strong>de</strong> rosa.<br />

Ah! Tu, Toiro <strong>de</strong> Fogo, e eu lesma fria!<br />

Tu, Roda <strong>de</strong> Navalhas retiradas<br />

Das Sete Dores <strong>de</strong> tua Mãe!<br />

Tu, Tubarão <strong>de</strong> Amor, e eu a enguia<br />

Que até as águas estagnadas<br />

Têm!<br />

Tu, Sol cortado a diamante,<br />

Que lavra as terras, aprofunda o dia,<br />

Abre o mar ao navio confiante<br />

E cerra a flor cansada e esguia,<br />

Enquanto eu, o morrão grosso,<br />

Encarquilhado, me escureço<br />

E na fogueira do meu osso<br />

Chamusco tudo o que te ofereço.<br />

Mas, já levado nas areias<br />

De que a minha alma faz moinha<br />

E a tua cólera <strong>de</strong>sdoba,<br />

Hei -<strong>de</strong> enterrar a dor, farinha<br />

Das minhas sementes feias,<br />

Nos sete palmos <strong>de</strong> uma cova.<br />

Abre, Senhor, teus flancos: pare -me<br />

(Que tudo po<strong>de</strong>s) outra vez,<br />

E a chaga <strong>de</strong>nsa<br />

Da minha outra vida sare -me!<br />

A tua mão salgada e imensa<br />

Como todos os mares comunicados<br />

Já ressuscita a tua rês:<br />

Ela me acene,<br />

E à tua divina presença<br />

Suba meus ossos branqueados.<br />

Ámen.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!