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Considerações sobre os horizontes pedagógicos em ... - ECA-USP

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I Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS/<strong>USP</strong><br />

<strong>Considerações</strong> <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> <strong>horizontes</strong> pedagógic<strong>os</strong> <strong>em</strong> Játékok, de György<br />

Kurtág<br />

Helena Carreras Cabezas<br />

<strong>ECA</strong>-<strong>USP</strong> – helencarreras@hotmail.com<br />

Resumo: O presente trabalho visa analisar <strong>os</strong> diferentes plan<strong>os</strong> didátic<strong>os</strong> que <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> do primeiro<br />

volume de Játékok, obra pedagógica para piano do comp<strong>os</strong>itor húngaro György Kurtág. Baseando-se<br />

<strong>em</strong> text<strong>os</strong> de Albèra (1995), Cavaye (1996), Juntuu (2008), Huizinga (1971) e Wischman (1997),<br />

pretende propor uma perspectiva de análise centrada no aprofundamento de questões <strong>sobre</strong> ludicidade,<br />

corporeidade e criatividade, aspect<strong>os</strong> pedagógic<strong>os</strong> que, inserid<strong>os</strong> no ensino preliminar do piano, pod<strong>em</strong><br />

enriquecer <strong>os</strong> <strong>horizontes</strong> da aprendizag<strong>em</strong> musical.<br />

Palavras-chave: Kurtág, Játékok, piano, pedagogia<br />

Considerations about pedagogical horizons in Játékok, by György Kurtág<br />

Abstract: The present work analyzes the different teaching plans that <strong>em</strong>erge from the first volume of<br />

Játékok, pedagogical piano work of Hungarian comp<strong>os</strong>er György Kurtág. Based on texts by Albèra<br />

(1995), Cavaye (1996), Juntuu (2008), Huizinga (1971) and Wischman (1997), it intends to prop<strong>os</strong>e an<br />

analytical perspective focused on deepening of questions about playfulness, corporeality and creativity.<br />

Pedagogical aspects that incorporated into the preliminary teaching of piano, can enrich the horizons of<br />

musical learning.<br />

Keywords: Kurtág, Játékok, piano, pedagogy<br />

Introdução a Játékok<br />

Játékok é uma coleção de peças breves para piano, compiladas <strong>em</strong> oito volumes<br />

até o momento, que abraça desde <strong>os</strong> níveis mais el<strong>em</strong>entares até <strong>os</strong> mais avançad<strong>os</strong>. Foi<br />

comp<strong>os</strong>ta <strong>em</strong> 1973 por encomenda da pianista Marianne Teöke 1 . Dito isto, é preciso<br />

considerar que tal encomenda reflete a idi<strong>os</strong>sincrasia do contexto musical húngaro, no qual<br />

adquire muita relevância a produção pedagógica nacional direcionada às crianças,<br />

continuando assim a tradição iniciada com Bela Bartók 2 e Zoltan Kodaly 3 .<br />

Kurtág usa no Játékok algumas técnicas do piano moderno, tais como diferentes<br />

tip<strong>os</strong> de clusters e glissandi. Porém, Játékok apresenta uma linguag<strong>em</strong> comp<strong>os</strong>itiva que<br />

ultrapassa <strong>os</strong> interesses puramente idiomátic<strong>os</strong> do piano, e como aponta Philippe Albèra,<br />

representa a própria essência do pensamento musical de Kurtág, sendo assim um verdadeiro<br />

“diario, laboratório de ideias, de invenção, de técnicas e de expressões, numa forma<br />

intencionalmente despojada e el<strong>em</strong>entar”. (ALBÈRA, 1995, p. 9).<br />

A síntese das pretensões de Kurtág na elaboração do Játékok pode ser localizada<br />

já no prefácio da obra. Neste, Kurtág se preocupa <strong>em</strong> assinalar que Játékok não é um método,


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fato visível na recusa do autor <strong>em</strong> ordenar as peças por qualquer parâmetro de ord<strong>em</strong> técnica<br />

ou musical. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, apresentam-se três questões, que expõ<strong>em</strong> a espinha dorsal da<br />

obra: “O piano como brinquedo”, “A alegria do movimento” e a “P<strong>os</strong>sibilidade de<br />

experimentar” (KURTÁG, 2004, prefácio). Na seqüência, passar<strong>em</strong><strong>os</strong> a analisar cada uma<br />

delas individualmente para conseguir um maior detalhe <strong>em</strong> n<strong>os</strong>sa observação.<br />

1. “O piano como brinquedo”: a ludicidade na aprendizag<strong>em</strong><br />

Kurtág propõe no Játékok inúmeras peças breves que pretend<strong>em</strong> cativar e<br />

estimular a imaginação da criança mediante o uso do piano como um novo e sugestivo<br />

brinquedo. Certamente, não deixa de ser uma declaração de intenções que a palavra húngara<br />

Játékok signifique Jog<strong>os</strong>. O autor reflete assim <strong>sobre</strong> a escolha de apoiar sua linguag<strong>em</strong><br />

comp<strong>os</strong>itiva na ludicidade:<br />

“A ideia de compor <strong>os</strong> ‘Jog<strong>os</strong>’ (Játékok <strong>em</strong> húngaro), se inspirou nas crianças que<br />

brincam espontaneamente com o piano, para as quais o instrumento ainda significa<br />

um brinquedo. Elas experimentam com ele, o acariciam, o atacam e deixam correr<br />

seus ded<strong>os</strong> <strong>sobre</strong> ele. Elas ‘montam’ sons aparent<strong>em</strong>ente desconectad<strong>os</strong>, mas se <strong>em</strong><br />

algumas crianças isso desperta o seu instinto musical, tratarão de recuperar estas<br />

harmonias descobertas por casualidade e se divertirão <strong>em</strong> repetir-las.” (KURTÁG,<br />

2004, prefácio)<br />

Assim, a idéia prop<strong>os</strong>ta por Kurtág é a de um contato natural da criança com o<br />

instrumento, na qual a percepção e interiorização d<strong>os</strong> fenômen<strong>os</strong> musicais chegam a partir das<br />

próprias vivências, filtradas diretamente através da esfera sensorial e afetiva. Esta concepção<br />

pedagógica rompe com o sist<strong>em</strong>a de ensino tradicional que parte da leitura da partitura e da<br />

técnica digital como únic<strong>os</strong> desencadeantes do universo pianístico e musical.<br />

Uma vez que pretend<strong>em</strong><strong>os</strong> apontar como a ludicidade e a aprendizag<strong>em</strong> se<br />

conjugariam <strong>em</strong> Játékok, é importante considerarm<strong>os</strong> as atribuições que o historiador Johan<br />

Huizinga, <strong>em</strong> sua obra Homo Ludens, faz ao jogo:<br />

“O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de cert<strong>os</strong> e<br />

determinad<strong>os</strong> limites de t<strong>em</strong>po e de espaço, segundo regras livr<strong>em</strong>ente consentidas,<br />

mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim <strong>em</strong> si mesmo, acompanhado de<br />

um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da vida<br />

cotidiana.” (HUIZINGA, 2000, p. 24)<br />

No mesmo exercício, agora visando traçar a conjunção existente entre a<br />

ludicidade e a interpretação, outro aspecto notável no pensamento de Huizinga seria a<br />

conciliação que o autor faz do jogo com as atividades performáticas:


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“O mesmo verificam<strong>os</strong> no ator, que, quando está no palco, deixa-se absorver<br />

inteiramente pelo ‘jogo’ da representação teatral, ao mesmo t<strong>em</strong>po que t<strong>em</strong><br />

consciência da natureza desta. O mesmo é válido para o violinista, que se eleva a um<br />

mundo superior ao de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> dias, s<strong>em</strong> perder a consciência do caráter lúdico de<br />

sua atividade. Portanto, a qualidade lúdica pode ser própria das ações mais<br />

elevadas.” (HUIZINGA, 2000, p. 17)<br />

Em Jeu avec le poing 1 4 , por ex<strong>em</strong>plo, Kurtág usa exclusivamente clusters<br />

realizad<strong>os</strong> com o punho, e o fato do aluno manipular o piano s<strong>em</strong> uma destreza especial, e sim<br />

com um gesto primário, confere à peça um caráter inovador e lúdico, além de parecido ao que<br />

seria o próprio modo de exploração de um instrumento por uma criança. É justamente por<br />

meio de gest<strong>os</strong> despreocupad<strong>os</strong> que as crianças se aproximam de um instrumento musical,<br />

s<strong>em</strong> reservas n<strong>em</strong> restrições.<br />

Ex<strong>em</strong>plo 1: György Kurtág – Jeu avec le poing 1 – de Játékok (VII-A)<br />

Como pod<strong>em</strong><strong>os</strong> observar no ex<strong>em</strong>plo acima, a notação não detalha com exatidão<br />

as alturas, a partitura converte-se então <strong>em</strong> uma sugestão, <strong>em</strong> uma guia da experiência<br />

musical. Nas palavras do pianista inglês Ronald Cavaye:<br />

“Em Játékok, portanto, <strong>os</strong> err<strong>os</strong> – notas esbarradas, ritm<strong>os</strong> imprecis<strong>os</strong> – ocupam um<br />

segundo lugar e t<strong>em</strong> uma importância muito maior aspect<strong>os</strong> musicais mais<br />

fundamentais como o fraseado, a produção de som e o reconhecimento e a<br />

clarificação da forma global da peça.” (CAVAYE, 1996, p. 77)<br />

É no caminho entre essas duas vertentes projetadas por Kurtág – o gesto primário<br />

e a indeterminação da escrita – que <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> as vivências musicais, a autonomia do intérprete<br />

e o prazer de tocar, portanto, a ludicidade.


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Trata-se então, voltando às reflexões apontadas por Huizinga, de uma triangulação<br />

entre ludicidade, aprendizag<strong>em</strong> e interpretação, condensadas numa mesma prop<strong>os</strong>ta<br />

pedagógico-musical: o Játékok.<br />

2. “A alegria do movimento”: a valorização e a primazia do corpo na<br />

aprendizag<strong>em</strong><br />

Como observam<strong>os</strong> no ponto anterior, o lúdico infantil é um d<strong>os</strong> distintiv<strong>os</strong> e<br />

norteadores da obra pedagógica de Kurtág. Nela, o comp<strong>os</strong>itor pretende minimizar o esforço<br />

reflexivo que supõe a decodificação de uma partitura, assim como o esforço motriz que<br />

significa a técnica digital, ambas as operações complexas no início da aprendizag<strong>em</strong>. Assim,<br />

Kurtág, por meio de uma linguag<strong>em</strong> pianística e comp<strong>os</strong>itiva que usa moviment<strong>os</strong> mais<br />

descontraíd<strong>os</strong>, coloca o corpo num lugar preponderante na hierarquia do aprendizado. A<br />

maioria de peças de Játékok prioriza o gesto, a ação primária <strong>sobre</strong> o teclado, a motricidade<br />

que parte de uma vontade sonora e não de um intelectualismo abstrato como é a leitura<br />

convencional de uma partitura. Segundo Claus Wischman, esta valorização e primazia do<br />

corpo no ensino do piano significam:<br />

“[...] um estímulo importante, especialmente para alun<strong>os</strong> muito jovens com grande<br />

necessidade de movimento e de ludicidade, para <strong>os</strong> quais sentar-se no banco do<br />

piano durante períod<strong>os</strong> long<strong>os</strong> equivale a um esforço obrigatório. Diante disso,<br />

Kurtág propõe uma mudança do pensamento <strong>sobre</strong> tocar piano e mesmo <strong>sobre</strong> o<br />

fazer música, <strong>em</strong> geral. Para ele, a movimentação deve ser globalizante, quando se<br />

trata da condução a uma expressão musical natural, a qual compreende todo o corpo<br />

e não pode se restringir ao braço ou à mão." (WISCHMAN, 1997, p. 53)<br />

Análogo a esta linha de pensamento se encontra o artigo de Kristiina Junttu:<br />

György Kurtág’s Játékok brings the body to the centre of learning piano. Mas a ótica de<br />

estudo neste caso seria a aproximação cinestésica 5 que se encontra <strong>em</strong> Játékok. Para Juntuu,<br />

Játékok é uma útil ferramenta para o desenvolvimento de esta capacidade na criança. Neste<br />

sentido comenta:<br />

“Na fase inicial, o ensino de piano é construído de forma sist<strong>em</strong>ática, tendo especial<br />

atenção na introdução de todas as habilidades básicas necessárias para tocar o piano.<br />

As peças de Játékok pod<strong>em</strong> estimular uma aproximação ao piano desde uma<br />

abordag<strong>em</strong> cinestésica. As crianças g<strong>os</strong>tam de experimentar com sons e moviment<strong>os</strong><br />

extr<strong>em</strong><strong>os</strong>: com Játékok eles pod<strong>em</strong> usar todo o teclado do piano desde o início. Os<br />

extr<strong>em</strong><strong>os</strong> do teclado fascinam jovens estudantes; através de clusters e glissand<strong>os</strong><br />

eles têm a p<strong>os</strong>sibilidade de explorá-l<strong>os</strong> desde o princípio de seus estud<strong>os</strong>. Apesar da<br />

notação aproximada, Kurtág é muito cuidad<strong>os</strong>o com a qualidade da expressão. As<br />

dimensões espirituais, físicas e gestuais são trazidas ao primeiro plano. A qualidade<br />

da interpretação é muito importante desde <strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> encontr<strong>os</strong> com o<br />

instrumento.” (JUNTUU, 2008, p, 99-100)


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Esta ideia n<strong>os</strong> conduz a um outro ex<strong>em</strong>plo no Játékok: trata-se da peça Hommage<br />

à Tchaïkovski 6 . Nela, Kurtág reduz perspicazmente todo o material musical da célebre<br />

abertura do Concerto para piano n.1 de Tchaïkovski 7 , à síntese máxima, à mínima expressão.<br />

Os acordes que dão início à obra transformam-se <strong>em</strong> clusters com as palmas das mã<strong>os</strong> que,<br />

como no Concerto, deslocam-se <strong>em</strong> paralelo ao longo de toda a extensão do piano.<br />

Ex<strong>em</strong>plo 2: György Kurtág – Início de Hommage à Tchaïkovski de Játékok (21)<br />

Kurtág aproveita, com este exercício de <strong>em</strong>ulação, o engajamento de todo o corpo<br />

do intérprete, já que se exploram <strong>os</strong> registr<strong>os</strong> graves, médi<strong>os</strong> e agud<strong>os</strong> do piano. Por meio<br />

desta gestualidade ampla e vigor<strong>os</strong>a, a peça proporciona ao aluno uma aproximação a<strong>os</strong><br />

moviment<strong>os</strong> desenvolt<strong>os</strong> d<strong>os</strong> braç<strong>os</strong>, a<strong>os</strong> deslocament<strong>os</strong> rápid<strong>os</strong> e extens<strong>os</strong> pelo piano e à<br />

sonoridades profundas baseadas no peso d<strong>os</strong> braç<strong>os</strong>. Um trabalho mais natural e espontâneo<br />

que o tipo de motricidade requerida num exercício baseado <strong>em</strong> técnica digital.<br />

Assim, este primeiro trecho de Hommage à Tchaikovsky, retrata brev<strong>em</strong>ente como<br />

encontram<strong>os</strong> <strong>em</strong> Játékok estímul<strong>os</strong> para o desenvolvimento da capacidade cinestésica das<br />

crianças na sua aproximação ao piano. Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que, na ord<strong>em</strong> inversa, as<br />

crianças pod<strong>em</strong> se sentir mais atraídas por peças musicais que consigam atingir com uma<br />

motricidade mais simplesmente controlável por elas.<br />

3. “P<strong>os</strong>sibilidade de experimentar”: estímulo à criatividade<br />

As peças do Játékok são projetadas com o intuito de ser a base para uma<br />

experimentação <strong>em</strong> diversas vertentes: a exploração gestual do corpo, a exploração


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topográfica do teclado, a exploração musical de sonoridades distintas (clusters, glissand<strong>os</strong>...)<br />

e a exploração de novas formas de notação musical, são alguns d<strong>os</strong> ex<strong>em</strong>pl<strong>os</strong>.<br />

Esta diversidade de “p<strong>os</strong>sibilidades de experimentação” deriva principalmente da<br />

notação não determinada criada por Kurtág especificamente para o Játékok. Justamente esta<br />

indeterminação oferece ao aluno a oportunidade de “completar” a peça, isto é, de determinar<br />

ele mesmo as alturas e durações de notas e pausas. Portanto, <strong>os</strong> parâmetr<strong>os</strong> não detalhad<strong>os</strong><br />

conformam um estímulo para a co-criação junto com o aluno, ou seja, um impulso para sua<br />

criatividade musical. O próprio comp<strong>os</strong>itor afirma nesse sentido:<br />

“ A imag<strong>em</strong> escrita não deve ser tomada seriamente <strong>em</strong> absoluto, mas é importante<br />

tomar com extr<strong>em</strong>a seriedade o processo musical, a qualidade do som e o silêncio.<br />

Dev<strong>em</strong><strong>os</strong> confiar na aparência das grafias impressas e deixar que exerçam sua<br />

influência <strong>sobre</strong> nós.” (KURTÁG, 2004, prefácio)<br />

Citar<strong>em</strong><strong>os</strong> ainda mais um fragmento do prefácio para dar uma ideia melhor da<br />

relevância de esta pretendida indefinição tonal e rítmica que encontra-se <strong>em</strong> Játékok, e de<br />

quais são suas fontes de inspiração ao largo da história da música:<br />

“ Dev<strong>em</strong><strong>os</strong> n<strong>os</strong> valer de todo n<strong>os</strong>so conhecimento e de n<strong>os</strong>sas l<strong>em</strong>branças da<br />

declamação livre, a música folclórica, o parlando-rubato, o canto gregoriano e toda a<br />

prática musical improvisatória de qualquer momento histórico.” (KURTÁG, 2004,<br />

prefácio)<br />

Para Kurtág, Játékok significa o espaço no qual pod<strong>em</strong> aflorar as percepções e <strong>os</strong><br />

estímul<strong>os</strong> à co-criação do aluno, <strong>em</strong> substituição a<strong>os</strong> métod<strong>os</strong> padronizad<strong>os</strong> que procuram<br />

resultad<strong>os</strong> precis<strong>os</strong>. Um ótimo ex<strong>em</strong>plo disso é a peça intitulada Le lapin et le renard 8<br />

comp<strong>os</strong>ta por Krisztina Takács, uma criança de seis an<strong>os</strong>. A peça, de estilo programático,<br />

relaciona a música com uma pequena narração 9 de quatro vers<strong>os</strong> que relata a perseguição<br />

entre uma rap<strong>os</strong>a e um coelho. Por meio de clusters com as palmas das mã<strong>os</strong>, se apresentam<br />

<strong>os</strong> protagonistas da história. Os mais graves e lent<strong>os</strong> representam a rap<strong>os</strong>a enquanto <strong>os</strong> mais<br />

agud<strong>os</strong> e rápid<strong>os</strong> o coelho. No fim da peça, se cria uma grande pausa até aparecer um cluster<br />

com o punho, forte e conciso, simbolizando o “disparo do caçador”.<br />

É importante sublinhar aqui a total imprecisão da notação, que não detalha alturas<br />

n<strong>em</strong> ritm<strong>os</strong> exat<strong>os</strong>. O relato e a partitura são mer<strong>os</strong> acompanhament<strong>os</strong> de um programa,<br />

deixando aberto o campo da co-criação do aluno na escolha das durações de cada nota e<br />

pausa, b<strong>em</strong> como nas alturas de cada um d<strong>os</strong> clusters. Portanto, a partitura limita-se a ser uma<br />

guia orientativa do processo musical.


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Ex<strong>em</strong>plo 3: György Kurtág e Krisztina Takács – Início de Le lapin et le renard – de Játékok (9A)<br />

A peça vai além ao ser notada numa tessitura que insinua as “garatujas” que criam<br />

ou pod<strong>em</strong> recriar as crianças e também no uso de uma linguag<strong>em</strong> corporal que se corresponde<br />

com a motricidade natural e espontânea do estágio da infância. Contudo, esta peça, sendo<br />

comp<strong>os</strong>ta por uma menina de seis an<strong>os</strong>, não diverge <strong>em</strong> muito de outras peças da coleção,<br />

prova viva de que Játékok pode ser o estímulo à <strong>em</strong>ergência de experiéncias musicais<br />

criativas nas crianças.<br />

<strong>Considerações</strong> finais<br />

Neste ponto, pod<strong>em</strong><strong>os</strong> concluir que cada um d<strong>os</strong> <strong>horizontes</strong> pedagógic<strong>os</strong> exp<strong>os</strong>t<strong>os</strong>,<br />

intrínsec<strong>os</strong> na essência do projeto de Kurtág, trata de enfatizar e liberar alguns d<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> da<br />

educação pianística que tradicionalmente são p<strong>os</strong>icionad<strong>os</strong> num lugar de destaque menor na<br />

hierarquia da aprendizag<strong>em</strong> do instrumento ou, simplesmente, tratad<strong>os</strong> com certas reservas.<br />

Assim, a convergência das questões anteriormente exp<strong>os</strong>tas, como é a ludicidade,<br />

o corpo e a criatividade, num profuso e rico material pedagógico para piano, coloca o Játékok<br />

num diferenciado território da educação pianístico-musical atual. Tal integração <strong>em</strong> uma obra<br />

pedagógica produz uma sinergia de forças que estimulam o aluno a relacionar conceit<strong>os</strong><br />

musicais, corporais e vivenciais tendo assim múltiplas p<strong>os</strong>sibilidades de percepções, conexões<br />

e assimilações a beneficiar sua relação com o instrumento e a música.<br />

A inclusão do Játékok <strong>em</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> repertori<strong>os</strong> habituais para alun<strong>os</strong> iniciantes pode<br />

ampliar o espectro do aprendizado do aluno, atingindo uma visão mais ampla e transversal do<br />

piano e da música.


Referências:<br />

I Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS/<strong>USP</strong><br />

ALBÈRA, Philippe. György Kurtág- Entretiens, textes, écrits sur son oeuvre. Genève:<br />

Editions Contrechamps, 1995.<br />

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. 4ª Ed. São Paulo, Editora Perspectiva, 2000. (Tradução:<br />

João Paulo Monteiro)<br />

CAVAYE, Ronald. “Játékok” L<strong>os</strong> jueg<strong>os</strong> de György Kurtág. Quodlibet. Alcalá de Henares,<br />

nº4, p. 73–89, 1996.<br />

JUNTUU, Kristiina. György Kurtág’s Játékok brings the body to the centre of learning piano.<br />

Musiikkikasvastus. The finish Journal of Music Education (FJME), Helsinki, Vol.11, nº 1-2,<br />

p. 97 – 106, 2008.<br />

WISCHMANN, Claus. Kurtágs “Játékok” für Klavier. Musiktexte, Köln, nº72, nov<strong>em</strong>bro<br />

1997.<br />

KURTÁG, György. JEUX. Játékok I. París: Editions Henry L<strong>em</strong>oine, 2004<br />

Notas<br />

1<br />

Marianne Teöke: pianista húngara (1923) que encomendou e recompilou peças breves para piano de vari<strong>os</strong><br />

comp<strong>os</strong>itores muito conhecid<strong>os</strong> na Hungria. O projeto resultou na publicação pela Editio Musica Budapest da<br />

coleção intitulada Tarka-Barka (que significa “multicolorido”) e contribu<strong>em</strong> nela László Borsody (1944), Attila<br />

Bozay (1939-1999), Laj<strong>os</strong> Huszár (1948), Miklós Kocsár (1933), Jószef Sopropni (1930) e György Kurtág<br />

(1926). Participação de Kurtág que resultaria <strong>em</strong>brionária do Játékok.<br />

2<br />

Béla Bartók: comp<strong>os</strong>itor, pianista e etnomusicólogo húngaro (1881-1945). Sua obra pianístico-pedagógica<br />

mais representativa é o Mikrok<strong>os</strong>m<strong>os</strong>: recompilação de 153 peças curtas para piano divididas <strong>em</strong> 6 volumes.<br />

3<br />

Zoltán Kodály: comp<strong>os</strong>itor, pedagogo e etnomusicólogo húngaro (1882-1967). A partir de 1945 desenvolveu<br />

um sist<strong>em</strong>a de educação musical para as escolas públicas da Hungria que enfatiza as canções do folclore<br />

nacional. Seu nome, atualmente, é associado ao método Kodály, escrito por seus seguidores a partir do material<br />

produzido <strong>em</strong> suas pesquisas e práticas pedagógicas na àrea do ensino músical.<br />

4<br />

KURTÁG, György. Játékok I. H.L. París: Editions Henry L<strong>em</strong>oine, 2004, Op. Cit., p.VII-A: “Jogo com <strong>os</strong><br />

punh<strong>os</strong> 1”.<br />

5<br />

Entendendo cinestesia como a senso-percepção d<strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> corporais <strong>em</strong> relação ao ambiente à sua volta,<br />

ou seja, consciência através da qual perceb<strong>em</strong><strong>os</strong> a movimentação de n<strong>os</strong>so corpo, de n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> moviment<strong>os</strong><br />

musculares.<br />

6<br />

KURTÁG, György. Játékok I. H.L. París: Editions Henry L<strong>em</strong>oine, 2004, Op. Cit., p. 21: “Homenág<strong>em</strong> a<br />

Tchaïkovski”.<br />

7<br />

Concerto para piano e orquestra Nº 1 <strong>em</strong> Si b<strong>em</strong>ol menor, op. 23<br />

8<br />

Ibid. p. 9A: “O coelho e a rap<strong>os</strong>a”.<br />

9<br />

“Le renard se faufile dans une clairière et scrute les alentours. Le lapin court lui aussi vers la clairière. Il<br />

observe ce qui l’entoure. Le renard s’élance à la poursuite du lapin. Le chasseur poursuit le renard et... tire!”

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