Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale - Portal Educacional
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Dois irmãos - MILTON HATOUM<br />
A casa <strong>foi</strong> vendida com todas as lembranças<br />
to<strong>do</strong>s os móveis to<strong>do</strong>s os pesadelos<br />
to<strong>do</strong>s os peca<strong>do</strong>s cometi<strong>do</strong>s ou em vias de cometer<br />
a casa <strong>foi</strong> vendida com seu bater de <strong>por</strong>tas<br />
com seu vento encana<strong>do</strong> sua vista <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
seus imponderáveis [...]<br />
Carlos Drummond de Andrade<br />
Zana teve de deixar tu<strong>do</strong>: o bairro partuário de Ma-<br />
naus, a rua em declive sombreada <strong>por</strong> mangueiras cente-<br />
nârias, o lugar que para ela era quase tão vital quanto a Bi-<br />
blos de sua infãncia: a pequena cïdade no Líbano que ela<br />
recordava em voz alta, vagan<strong>do</strong> pelos aposentos empoei-<br />
ra<strong>do</strong>s até se perder no quintal, onde a copa da velha serin-<br />
gueira sombreava as palmeiras e o pomar cultiva<strong>do</strong>s <strong>por</strong><br />
máis de meio século.<br />
Perto <strong>do</strong> alpendre, o cheiro das açucenas-brancas se<br />
misturava com o <strong>do</strong> filho caçula. Então ela sentava no chão,<br />
rezava sozinha e chorava, desejan<strong>do</strong> a volta de Omar. Antes<br />
de aban<strong>do</strong>nar a casa, Zana via o vulto <strong>do</strong> pai e <strong>do</strong> esposo<br />
nos pesadelos das últimas noites, depoís sentia a presença<br />
de ambos no quarto em que haviam <strong>do</strong>rmi<strong>do</strong>. Durante o<br />
dia eu a ouvia repetir as palavras <strong>do</strong> pesadelo, "Eles andam<br />
<strong>por</strong> aquí, meu pai e Halim vieram me visitar... eles estão<br />
nesta casa", e ai de quem duvidasse disso com uma palavra,<br />
um gesto, um olhar. Ela imaginava o sofá cinzento na sala<br />
onde Halim largava o narguilé para abraçá-la, lembrava a<br />
voz <strong>do</strong> pai conversan<strong>do</strong> com barqueiros e pesca<strong>do</strong>res no<br />
Manaus Harbour, e ali no alpendre lembrava a rede verme-<br />
lha <strong>do</strong> Caçula, o cheiro dele, o corpo que ela mesma despia<br />
na rede onde ele terminava suas noitadas. "Sei que um dia<br />
ele vai voltar", Zana me dizia sem olhar para mim, talvez<br />
sem sentir a minha presença, o rosto que fora tão belo agora<br />
sombrio, abati<strong>do</strong>. A mesma frase eu ouvi, como uma ora-<br />
ção murmurada, no dia em que ela desapareceu na casa<br />
deserta. Eu a procurei <strong>por</strong> to<strong>do</strong>s os cantos e só fui encon-<br />
trá-la ao anoitecer, deitada sobre folhas e palmas secas, o<br />
braço engessa<strong>do</strong> sujo, cheio de titica de pássaros, o rosto<br />
incha<strong>do</strong>, a saia e a anágua molhadas de urina.<br />
Eu não a vi morrer, eu não quis vê-la morrer. Mas al-<br />
guns dias antes de sua morte, ela deitada na cama de uma<br />
clínica, soube que ergueu a cabeça e perguntou em árabe<br />
para que só a filha e a amiga quase centenária entendes-<br />
sem (e para que ela mesma não se traísse): "Meus filhos já<br />
fizeram as pazes?°'. Repetiu a pergunta com a força que lhe<br />
restava, com a coragem que mãe aflita encontra na hora<br />
da morte.<br />
Ninguém respondeu. Então o rosto quase sem rugas<br />
de Zana desvaneceu; ela ainda virou a cabeça para o la<strong>do</strong>,<br />
à procura da única janelinha na parede cinzenta, onde se<br />
apagava um pedaço <strong>do</strong> céu crepuscular.<br />
1
Quan<strong>do</strong> Yaqub chegou <strong>do</strong> Líbano, o pai <strong>foi</strong> buscá-lo<br />
no Rio de Janeiro. O cais Pharoux estava apinha<strong>do</strong> de pa-<br />
rentes de pracinhas e oficiais que regressavam da Itália.<br />
Bandeiras brasileiras enfeitavam o balcão e a varanda <strong>do</strong>s<br />
apartamentos da Glória, rojões espocavam no céu, e para<br />
onde o pai olhava havia sinais de vitória. Ele avistou o<br />
filho no <strong>por</strong>taló <strong>do</strong> navio que acabara de chegar de Marse-<br />
lha. Não era mais o menino, mas o rapaz que passara cinco<br />
<strong>do</strong>s seus dezoito anos no sul <strong>do</strong> Líbano. O andar era o mes-<br />
mo: passos rápi<strong>do</strong>s e firmes que davam ao corpo um senso<br />
de equilíbrio e uma rigidez impensável no andar <strong>do</strong> outro<br />
filho, o Caçula.<br />
Yaqub havia estica<strong>do</strong> alguns palmos. E à medida que<br />
se aproximava <strong>do</strong> cais, o pai comparava o corpo <strong>do</strong> filho<br />
recém-chega<strong>do</strong> com a imagem que construíra durante os<br />
anos da separação. Ele carregava um farnel de lona cinza,<br />
surra<strong>do</strong>, e debaixo <strong>do</strong> boné verde os olhos graú<strong>do</strong>s arrega-<br />
i2<br />
laram com os vivas e a choradeira <strong>do</strong>s militares da Força<br />
Expedicionária Brasileira.<br />
Halim acenou com as duas mãos, mas o filho demorou<br />
a reconhecer aquele homem vesti<strong>do</strong> de branco, um pouco<br />
mais baixo <strong>do</strong> que ele. Por pouco não esquecera o rosto <strong>do</strong><br />
pai, os olhos <strong>do</strong> pai e o pai <strong>por</strong> inteiro. Apreensivo, ele se<br />
aproximou <strong>do</strong> moço, os <strong>do</strong>is se entreolharam e ele, o filho,<br />
perguntou: "Baba?". E depois os quatro beijos no rosto, o<br />
abraço demora<strong>do</strong>, as saudações em árabe. Saíram <strong>do</strong> cais<br />
abraça<strong>do</strong>s, atravessaram a praça Paris e a rua <strong>do</strong> Catete e<br />
foram até a Cinelândia. O filho falou da viagem e o pai la-<br />
mentou a penúria em Manaus, a penúria e a fome durante<br />
os anos da guerra. Na Cinelândia sentaram-se à mesa de<br />
um bar, e no meio <strong>do</strong> burburinho Yaqub abriu o farnel e<br />
tirou um embrulho, e o pai viu pães embolora<strong>do</strong>s e uma<br />
caixa de figos secos. Só isso trouxera <strong>do</strong> Líbano? Nenhuma<br />
carta? Nenhum presente? Não, não havïa mais nada no far-<br />
nel, nem roupa nem presente, nada! Então Yaqub explicou<br />
em árabe que o tio, o irmão <strong>do</strong> pai, não queria que ele vol-<br />
tasse para o Brasil.<br />
Calou. Halim baixou a cabeça, pensou em falar <strong>do</strong><br />
outro filho, hesitou. Disse: "Ttia mãe...", e também calou.<br />
Viu o rosto crispa<strong>do</strong> de Yaqub, viu o filho levantar-se, aper-<br />
rea<strong>do</strong>, arriar a calça e mijar de frente para a parede <strong>do</strong> bar<br />
em plena Cinelândia. Mijou durante uns minutos, o rosto<br />
agora alivia<strong>do</strong>, indiferente às gargalhadas <strong>do</strong>s que pas-<br />
savam <strong>por</strong> ali. Halim ainda gritou, "Não, tu não deves fazer<br />
isso. . . ", mas o filho não entendeu ou fingiu não entender<br />
o pedi<strong>do</strong> <strong>do</strong> pai.<br />
Ele teve que engolir o vexame. Esse e outros, de Yaqub<br />
e também <strong>do</strong> outro filho, Omar, o Caçula, o gêmeo que<br />
nascera poucos minutos depois. O que mais preocupava<br />
Halim era a separação <strong>do</strong>s gêmeos, "<strong>por</strong>que nunca se sabe<br />
como vão reagir depois.. .". Ele nunca deixou de pensar no<br />
reencontro <strong>do</strong>s filhos, no convívio após a longa separação.<br />
Desde o dia da partida, Zana não parou de repetir: "Meu<br />
filho vai voltar um matuto, um pastor, um ra'í. Vai esque-<br />
cer o <strong>por</strong>tuguês e não vai pisar em escola <strong>por</strong>que não tem<br />
escola lá na aldeia da tua família".
Aconteceu um ano antes da Segunda Guerra, quan<strong>do</strong><br />
os gêmeos completaram treze anos de idade. Halim queria<br />
mandar os <strong>do</strong>is para o sul <strong>do</strong> Líbano. Zana relutou, e con-<br />
seguiu persuadir o mari<strong>do</strong> a mandar apenas Yaqub. Duran-<br />
te anos Omar <strong>foi</strong> trata<strong>do</strong> como filho único, o único menino.<br />
No centro <strong>do</strong> Rio, Halim comprou roupas e um par de<br />
sapatos para Yaqub. Na viagem de volta a Manaus, fez um<br />
longo sermão sobre educação <strong>do</strong>méstica: que não se deve<br />
mïjar na rua, nem comer como uma anta, nem cuspir no<br />
chão, e Yaqub, sim, Baba, a cabeça baixa, vomitan<strong>do</strong> quan<strong>do</strong><br />
o bimotor chacoalhava, os olhos fun<strong>do</strong>s no rosto páli<strong>do</strong>, a<br />
expressão de pânico toda vez que o avião decolava ou ater-<br />
rissava nas seis escalas entre o Rio de Janeiro e Manaus.<br />
Zana os esperava no aero<strong>por</strong>to desde o começo da tar-<br />
de. Ela estacionou o Land Rover verde, <strong>foi</strong> até a varanda e<br />
ficou olhan<strong>do</strong> para o leste. Quan<strong>do</strong> viu o bimotor pratea<strong>do</strong><br />
aproximar-se da cabeceira da pista, desceu corren<strong>do</strong>, atra-<br />
vessou a sala de desembarque, subornou um funcionário,<br />
caminhou altiva até o avião, subiu a escada e irrompeu na<br />
cabine. Levava um buquê de helicôneas que deixou cair ao<br />
abraçar o filho ainda lívi<strong>do</strong> de pavor, dizen<strong>do</strong>-lhe, "Meu<br />
14 15<br />
queri<strong>do</strong>, meus olhos, minha vida", choran<strong>do</strong>, "Por que tan-<br />
ta demora? O que fizeram contigo?", beijan<strong>do</strong>-lhe o rosto, o<br />
pescoço, a cabeça, sob o olhar incrédulo de tripulantes e<br />
passageiros, até que Halim disse, "Chega! Agora vamos des-<br />
cer, o Yaqub não parou de provocar, só faltou pôr as tripas<br />
para fora". Mas ela não cessou os afagos, e saiu <strong>do</strong> avião<br />
abraçada ao filho, e assim desceu a escada e caminhou até<br />
a sala de desembarque, radiante, cheia de si, como se enfim<br />
tivesse reconquista<strong>do</strong> uma parte de sua própria vida: o gê-<br />
meo que se ausentara <strong>por</strong> capricho ou teimosia de Halim.<br />
E ela permitira <strong>por</strong> alguma razão incompreensível, <strong>por</strong> al-<br />
guma coisa que parecia insensatez ou paixão, devoção cega<br />
e irrefreável, ou tu<strong>do</strong> isso junto, e que ela não quis ou nun-<br />
ca soube nomear.<br />
Agora ele estava de volta: um rapaz tão vistoso e alto<br />
quanto O outro filho, o Caçula. Tinham o mesmo rosto an-<br />
guloso, os mesmos olhos castanhos e graú<strong>do</strong>s, o mesmo<br />
cabelo ondula<strong>do</strong> e preto, a mesmíssima altura. Yaqub dava<br />
um suspiro depois <strong>do</strong> riso, igualzinho ao outro. A distância<br />
não dissipara certos tiques e atitudes comuns, mas a sepa-<br />
ração fizera Yaqub esquecer certas palavras da língua <strong>por</strong>-<br />
tuguesa. Ele falava pouco, pronuncian<strong>do</strong> monossílabos<br />
ou frases curtas; calava quan<strong>do</strong> podia, e, às vezes, quan<strong>do</strong><br />
não devia.<br />
Zana logo percebeu. Via o filho sorrir, suspirar e evitar<br />
as palavras, como se um silêncio paralisante o envolvesse.<br />
No caminho <strong>do</strong> aero<strong>por</strong>to para casa, Yaqub reconhe-<br />
ceu um pedaço da infância vivida em Manaus, se emocio-<br />
nou com a visão <strong>do</strong>s barcos colori<strong>do</strong>s, atraca<strong>do</strong>s às margens<br />
<strong>do</strong>s igarapés <strong>por</strong> onde ele, o irmão e o pai haviam navega<strong>do</strong><br />
numa canoa coberta de palha. Yaqub olhou para o pai e<br />
apenas balbuciou sons embaralha<strong>do</strong>s.<br />
"O que aconteceu?", perguntou Zana. "Arrancaram a<br />
tua língua?"<br />
"La, não, mama", disse ele, sem tirar os olhos da paisa-
gem da infância, de alguma coisa interrompida antes <strong>do</strong><br />
tempo, bruscamente.<br />
Os barcos, a correria na praia quan<strong>do</strong> o rio secava, os<br />
passeios até o Careiro, no outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> rio Negro, de on-<br />
de voltavam com cestas cheias de frutas e peixes. Ele e o<br />
irmão entravam corren<strong>do</strong> na casa, ziguezagueavam pelo<br />
quintal, caçavam calangos com uma baladeira. Quan<strong>do</strong><br />
chovia, os <strong>do</strong>is trepavam na seringueira <strong>do</strong> quintal da casa,<br />
e o Caçula trepava mais alto, se arriscava, mangava <strong>do</strong> ir-<br />
mão, que se equilibrava no meio da árvore, escondi<strong>do</strong> na<br />
folhagem, agarra<strong>do</strong> ao galho mais grosso, tremen<strong>do</strong> de me-<br />
<strong>do</strong>, temen<strong>do</strong> perder o equilbrio. A voz de Omar, o Caçula:<br />
"Daqui de cima eu posso enxergar tu<strong>do</strong>, sobe, sobe". Yaqub<br />
não se mexia, nem olhava para o alto: descia com gestos<br />
meticulosos e esperava o irmão, sempre o esperava, não<br />
gostava de ser repreendi<strong>do</strong> sozinho. Detestava os ralhos de<br />
Zana quan<strong>do</strong> fugiam nas manhãs de chuva torrencial e o<br />
Caçula, só de calção, enlamea<strong>do</strong>, se atirava no igarapé per-<br />
to <strong>do</strong> presídio. Eles viam as mãos e a silhueta <strong>do</strong>s detentos,<br />
e ele ouvia o irmão xingar e vaiar, sem saber quem eram os<br />
insulta<strong>do</strong>s: se os detentos ou os curumins que ajudavam as<br />
mães, tias ou avós a retirar as roupas de um trança<strong>do</strong> de<br />
fios nas estacas das palafitas.<br />
Não, fôlego ele não tinha para acompanhar o irmão.<br />
Nem coragem. Sentia raiva, de si próprio e <strong>do</strong> outro, quan-<br />
i6 17<br />
d via o braço <strong>do</strong> Caçula enrosca<strong>do</strong> no pescoço de um curu-<br />
im <strong>do</strong> cortiço que havia nos fun<strong>do</strong>s da casa. Sentia raiva<br />
d sua impotência e tremia de me<strong>do</strong>, acovarda<strong>do</strong>, ao ver o<br />
açula desafiar três ou quatro moleques parru<strong>do</strong>s, agüen-<br />
tar o cerco e os socos deles e revidar com fúria e palavrões.<br />
Ydqub se escondia, mas não deixava de admirar a coragem<br />
de Omar. Queria brigar como ele, sentír o rosto incha<strong>do</strong>, o<br />
gosto de sangue na boca, a ardência no lábio estria<strong>do</strong>, na<br />
testa e na cabeça cheía de calombos; queria correr descalço,<br />
sem me<strong>do</strong> de queimar os pés nas ruas de macadame aque-<br />
cidas pelo sol forte da tarde, e saltar para pegar a linha ou<br />
a rabiola de um papagaio que planava lentamente, em cír-<br />
cUlos, solto no espaço. O Caçula tomava ímpulso, pulava,<br />
r<strong>do</strong>piava no ar como um acrobata e caía de pé, soltan<strong>do</strong><br />
um grito de guerra e mostran<strong>do</strong> as mãos estriadas. Yaqub<br />
recuava ao ver as mãos <strong>do</strong> irmão cheias de sangue, cor-<br />
tadas pelo vidro <strong>do</strong> cerol.<br />
Yaqub não era esse acrobata, não lambuzava as mãos<br />
eom cerol, mas bem que gostava de brincar e pular nos<br />
bailes de Carnaval no sobra<strong>do</strong> de Sultana Benemou, onde<br />
o Caçula ficava para a festa <strong>do</strong>s adultos e varava a noite<br />
om os foliões. Eles tinham treze anos, e, para Yaqub, era<br />
como se a infância tivesse termina<strong>do</strong> no últïmo baile no<br />
casarão <strong>do</strong>s Benemou. Naquela noite ele nem sonhava que<br />
<strong>do</strong>is meses depois ia se separar <strong>do</strong>s pais, <strong>do</strong> país e dessa<br />
paisagem que agora, senta<strong>do</strong> no banco da frente <strong>do</strong> Land<br />
Rover, reanimava o rosto dele.<br />
O baile <strong>do</strong>s jovens havia começa<strong>do</strong> antes <strong>do</strong> anoitecer.<br />
Às dez horas os adultos entraram fantasía<strong>do</strong>s na sala <strong>do</strong><br />
casarão, cantan<strong>do</strong>, pulan<strong>do</strong> e enxotan<strong>do</strong> a garotada. Yaqub<br />
quis ficar até meia-noite, <strong>por</strong>que uma sobrinha <strong>do</strong>s Reinoso,
a menina aloirada, corpo alto de moça, também ia brincar<br />
até a manhã da Quarta-Feíra de Cinzas. Seria a primeira<br />
noite de Lívia na festa <strong>do</strong>s adultos, a primeira noite que<br />
ele, Yaqub, viu-a com os lábios pinta<strong>do</strong>s, os olhos contor-<br />
na<strong>do</strong>s <strong>por</strong> linhas pretas, as tranças salpicadas de lantejoulas<br />
que brílhavam nos ombros bronzea<strong>do</strong>s. Queria ficar para<br />
pular abraça<strong>do</strong> com ela, sentir-se quase adulto como ela.<br />
Já pensava em se aproxímar de Lívia quan<strong>do</strong> a voz de Zana<br />
ordenou: "Leva tua irmã para casa. Podes voltar depois". Ele<br />
obedeceu. Acompanhou Rânia até o quarto, esperou-a <strong>do</strong>r-<br />
mir e voltou corren<strong>do</strong> ao casarão <strong>do</strong>s Benemou. A sala fer-<br />
vilhava de foliões, e no meio das tantas cores e das másca-<br />
ras ele viu as tranças brilhantes e os lábios pinta<strong>do</strong>s, e logo<br />
ficou trêmulo ao reconhecer o cabelo e o rosto semelhan-<br />
tes ao dele, pertinho <strong>do</strong> rosto que admirava.<br />
Lívia e o irmão dançavam num canto da sala. Dança-<br />
vam quietos, enrosca<strong>do</strong>s, movi<strong>do</strong>s <strong>por</strong> um ritmo só deles,<br />
que não era carnavalesco. Quan<strong>do</strong> os foliões esbarravam<br />
no par, os <strong>do</strong>is rostos se encontravam e, aí sim, davam gar-<br />
galhadas de Carnaval. Yaqub ensombreceu. Não teve cora-<br />
gem de ir falar com ela. Odiou o baile, "odiei as músicas da-<br />
quela noite, os mascara<strong>do</strong>s, e odiei a noite", contou Yaqub<br />
a Domingas na tarde da Quarta-Feira de Cinzas. Foi uma<br />
noite insone. Ele fíngia <strong>do</strong>rmir quan<strong>do</strong> o irmão entrou no<br />
quarto dele naquela madrugada, quan<strong>do</strong> o som das mar-<br />
chinhas carnavalescas e a gritaria <strong>do</strong>s bêba<strong>do</strong>s enchiam a<br />
atmosfera de Manaus. De olhos fecha<strong>do</strong>s, sentiu o cheiro de<br />
Iança-perfume e suor, o o<strong>do</strong>r de <strong>do</strong>is corpos enlaça<strong>do</strong>s, e<br />
percebeu que o irmão estava senta<strong>do</strong> no assoalho e olhava<br />
i8 1 19<br />
para ele. Yaqub permaneceu quieto, apreensivo, derrota-<br />
<strong>do</strong>. Notou o irmão sair lentamente <strong>do</strong> quarto, o cabelo e a<br />
camisa cheios de confete e serpentina, o rosto sorridente e<br />
cheio de prazer.<br />
Foi o seu último baile. Quer dizer, a última manhã em<br />
que viu o irmão chegar de uma noitada de arromba. Não<br />
entendia <strong>por</strong> que Zana não ralhava com o Caçula, e não en-<br />
tendeu <strong>por</strong> que ele, e não o irmão, viajou para o Líbano<br />
<strong>do</strong>is meses depois.<br />
Agora o Land Rover contornava a praça Nossa Senhora<br />
<strong>do</strong>s Remédios, aproximava-se da casa e ele não queria se<br />
lembrar <strong>do</strong> dia da partida. Sozinho, aos cuida<strong>do</strong>s de uma<br />
família de amigos que ia viajar para o Líbano. Sim, <strong>por</strong> que<br />
ele e não o Caçula, perguntava a si mesmo, e as mangueiras<br />
e oitizeiros sombrean<strong>do</strong> a calçada, e essas nuvens imensas,<br />
inertes como uma pintura em fun<strong>do</strong> azula<strong>do</strong>, o cheiro da<br />
rua da infância, <strong>do</strong>s quintais, da umidade amazônica, a vi-<br />
são <strong>do</strong>s vizinhos debruça<strong>do</strong>s nas janelas e a mãe acarician-<br />
<strong>do</strong>-lhe a nuca, a voz dócil dizen<strong>do</strong>-lhe: "Chegamos queri<strong>do</strong>,<br />
a nossa casa...".<br />
Zana desceu <strong>do</strong> jipe e procurou em vão Omar. Rânia<br />
estava no alpendre, alinhada, perfumada.<br />
"Ele chegou? Meu irmão chegou?" Correu para a <strong>por</strong>-<br />
ta, de onde avistou um rapaz tími<strong>do</strong>, mais alto que o pai, se-<br />
guran<strong>do</strong> o farnel surra<strong>do</strong> e agora olhan<strong>do</strong> para ela com o<br />
olhar de alguém que vê pela primeira vez a moça, e não a<br />
menina mirrada que abraçara no cais <strong>do</strong> Manaus Harbour.
Ele não sabia o que dizer: largou o farnel e abriu os braços<br />
para enlaçar o corpo esbelto, alonga<strong>do</strong> <strong>por</strong> uma pose altiva,<br />
o queixo levemente empina<strong>do</strong>, que lhe dava um ar auto-<br />
confiante e talvez antipático ou alheio. Rânia hipnotizava-<br />
se com a presença <strong>do</strong> irmão: uma réplica quase perfeita <strong>do</strong><br />
outro, sem ser o outro. Ela o observava, queria notar algu-<br />
ma coisa que o diferenciasse <strong>do</strong> Caçula. Olhou-o de perto,<br />
de muito perto, de vários ângulos; percebeu que a maior<br />
diferença estava no silêncio <strong>do</strong> irmão recém-chega<strong>do</strong>. No<br />
entanto, ela ouviu a voz agora grave perguntar "Onde está<br />
Domingas?", e viu o irmão caminhar até o quintal e abra-<br />
çar a mulher que o esperava. Entraram no quartinho onde<br />
Domingas e Yaqub haviam brinca<strong>do</strong>. Ele observou os dese-<br />
nhos de sua infância cola<strong>do</strong>s na parede: as casas, os edifí-<br />
cios e as pontes coloridas, e viu o lápis de sua primeira ca-<br />
ligrafia e o caderno amarela<strong>do</strong> que Domingas guardara e<br />
agora lhe entregava como se ela fosse sua mãe e não a em-<br />
pregada.<br />
Yaqub demorou no quintal, depois visitou cada apo-<br />
sento, reconheceu os móveis e objetos, se emocionou ao en-<br />
trar sozinho no quarto onde <strong>do</strong>rmira. Na parede viu uma<br />
fotografia: ele e o irmão senta<strong>do</strong>s no tronco de uma árvore<br />
que cruzava um igarapé; ambos riam: o Caçula, com escár-<br />
nio, os braços soltos no ar; Yaqub, um riso conti<strong>do</strong>, as mãos<br />
agarradas no tronco e o olhar apreensivo nas águas escuras.<br />
De quan<strong>do</strong> era aquela foto? Tinha si<strong>do</strong> tirada um pouco<br />
antes ou talvez um pouco depoís <strong>do</strong> último baile de Car-<br />
naval no casarão <strong>do</strong>s Benemou. No plano de fun<strong>do</strong> da ima-<br />
gem, na margem <strong>do</strong> igarapé, os vizinhos, cujos rostos pare-<br />
ciam tão borra<strong>do</strong>s na foto quanto na memória de Yaqub.<br />
Sobre a escrivaninha viu outra fotografia: o irmão senta<strong>do</strong><br />
20<br />
21<br />
numa bicicleta, o boné inclina<strong>do</strong> na cabeça, as botas lustra-<br />
das, um relógio no pulso. Yaqub se aproximou, mirou de<br />
perto a fotografia para enxergar as feições <strong>do</strong> irmão, o olhar<br />
<strong>do</strong> irmão, e se assustou ao ouvir uma voz: °O Omar vai che-<br />
gar de noitinha, ele prometeu jantar conosco".<br />
Era a voz de Zana; ela havia segui<strong>do</strong> os passos de Yaqub<br />
e queria mostrar-lhe o lençol e as fronhas em que bordara o<br />
nome dele. Desde que soubera de sua volta, Zana repetia<br />
to<strong>do</strong>s os dias: "Meu menino vai <strong>do</strong>rmir com as minhas le-<br />
tras, com a minha caligrafia". Ela dizia isso na presença <strong>do</strong><br />
Caçula, que, enciuma<strong>do</strong>, perguntava: "Quan<strong>do</strong> ele vai che-<br />
gar? Por que ele ficou tanto tempo no Líbano?". Zana não<br />
lhe respondia, talvez <strong>por</strong>que também para ela era inexpli-<br />
cável o fato de Yaqub ter passa<strong>do</strong> tantos anos longe dela.<br />
Ela havia mobilia<strong>do</strong> o quarto de Yaqub com uma ca-<br />
deira austríaca, um guarda-roupa de aguano e uma estan-<br />
te com os dezoito volumes de uma enciclopédia que Halim<br />
comprara de um magistra<strong>do</strong> aposenta<strong>do</strong>. Um vaso com ta-<br />
jás enfeitava um canto <strong>do</strong> quarto perto da janela aberta<br />
para a rua.<br />
Apoia<strong>do</strong> no parapeito, Yaqub olhava os passantes que<br />
subiam a rua na direção da praça <strong>do</strong>s Remédios. Por ali cir-<br />
culavam carroças, um e outro carro, cascalheiros tocan<strong>do</strong><br />
triângulos de ferro; na calçada, cadeiras em meio círculo
esperavam os mora<strong>do</strong>res para a conversa <strong>do</strong> anoitecer; no<br />
batente,das janelas, tocos de velas iluminariam as noites da<br />
cidade sem luz. Fora assim durante os anos da guerra: Ma-<br />
naus às escuras, seus mora<strong>do</strong>res acotovelan<strong>do</strong>-se diante <strong>do</strong>s<br />
açougues e empórios, disputan<strong>do</strong> um naco de carne, um<br />
pacote de arroz, feijão, sal ou café. Havia racionamento de<br />
energia, e um ovo valia ouro. Zana e Domingas acordavam<br />
de madrugada, a empregada esperava o carvoeiro, a patroa<br />
ia ao Merca<strong>do</strong> A<strong>do</strong>lpho Lisboa e depois as duas passavam<br />
a ferro, preparavam a massa <strong>do</strong> pão, cozinhavam. Quan<strong>do</strong><br />
tinha sorte, Halim comprava carne enlatada e farinha de<br />
trigo que os aviões norte-americanos traziam para a Amazô-<br />
nia. As vezes, trocava víveres <strong>por</strong> teci<strong>do</strong> encalha<strong>do</strong>: morim<br />
ou algodão esgarça<strong>do</strong>, renda encardida, essas coisas.<br />
Conversavam em volta da mesa sobre isso: os anos da<br />
guerra, os acampamentos miseráveis nos subúrbios de Ma-<br />
naus, onde se amontoavam ex-seringueiros. Yaqub, cala-<br />
<strong>do</strong>, prestava atenção, tamborilava na madeira, assentin<strong>do</strong><br />
I com a cabeça, feliz <strong>por</strong> entender as palavras, as frases, as<br />
histórias contadas pela mãe, pelo pai, uma e outra obser-<br />
vação de Rânia. Yaqub entendia. As palavras, a sintaxe, a<br />
melodia da língua, tu<strong>do</strong> parecia ressurgir. Ele bebia, comia e<br />
escutava, atento; entregava-se à reconciliação com a famí-<br />
lia, mas certas palavras em <strong>por</strong>tuguês lhe faltavam. E sen-<br />
tiu a falta quan<strong>do</strong> os vizinhos vieram vê-lo. Yaqub <strong>foi</strong> bei-<br />
ja<strong>do</strong> <strong>por</strong> Sultana, <strong>por</strong> Talib e suas duas filhas, <strong>por</strong> <strong>Este</strong>lita<br />
Reinoso. Alguém disse que ele era mais altivo que o irmão.<br />
Zana discor<strong>do</strong>u: "Nada disso, são iguais, são gêmeos, têm o<br />
mesmo corpo e o mesmo coração". Ele sorriu, e desta vez a<br />
hesitação da fala, o esquecimento da língua e o receio de di-<br />
zer uma asneira foram providenciais. Desembrulhou os pre-<br />
sentes, viu as roupas vistosas, o cinturão de couro, a cartei-<br />
ra com as iniciais prateadas. Manuseou a carteira e a enfiou<br />
no bolso da calça que .Halim lhe comprara no Rio.<br />
"Coita<strong>do</strong>! Ya haram ash-shum!", lamentou Zana. "Meu<br />
filho <strong>foi</strong> maltrata<strong>do</strong> naquela aldeia."<br />
22 ' 23<br />
Ela olhou para o mari<strong>do</strong>:<br />
"Imagino como ele desembarcou no Rio. Querem ver<br />
a bagagem que trouxe? Uma trouxa velha e fe<strong>do</strong>renta! Não<br />
é um absur<strong>do</strong>?"<br />
"Vamos mudar de assunto", pediu Halim. "Sacos e rou-<br />
pa velha são coisas que a gente esquece."<br />
Mudaram de assunto e também de expressão: o rosto<br />
de Zana se iluminou ao ouvir um assobio prolonga<strong>do</strong> -<br />
uma senha, o sinal da chegada <strong>do</strong> outro filho. Era quase<br />
meia-noite quan<strong>do</strong> o Caçula entrou na sala. Vestia calça<br />
branca de linho e camisa azul, manchada de suor no peito<br />
e nas axilas. Omar se dirigiu à mãe, abriu os braços para<br />
ela, como se fosse ele o filho ausente, e ela o recebeu com<br />
uma efusão que parecia contrariar a homenagem a Yaqub.<br />
Ficaram juntos, os braços dela enrosca<strong>do</strong>s no pescoço <strong>do</strong><br />
Caçula, ambos entregues a uma cumplicidade que provo-<br />
cou ciúme em Yaqub e inquietação em Halim.<br />
"Obriga<strong>do</strong> pela festa", disse ele, com um quê de cinis-<br />
mo na voz. "Sobrou comida para mim?"<br />
"Meu Omar é brincalhão", Zana tentou corrigir, bei-
jan<strong>do</strong> os olhos <strong>do</strong> filho. "Yaqub, vem cá, vem abraçar o teu<br />
irmão."<br />
Os <strong>do</strong>is se olharam. Yaqub tomou a iniciativa: levan-<br />
tou, sorriu sem vontade e na face esquerda a cicatriz alte-<br />
rou-lhe a expressão. Não se abraçaram. Do cabelo cachea-<br />
<strong>do</strong> de Yaqub despontava uma pequena mecha cinzenta,<br />
marca de nascença, mas o que realmente os distinguia era<br />
a cicatriz pálida e em meia-lua na face esquerda de Yaqub.<br />
Os <strong>do</strong>is irmãos se encararam. Yaqub avançou um passo,<br />
Halim disfarçou, falou <strong>do</strong> cansaço da viagem, <strong>do</strong>s anos de<br />
separação, mas de agora em diante a vida ia melhorar. Tu-<br />
<strong>do</strong> melhora depois de uma guerra.<br />
Talib concor<strong>do</strong>u, Sultana e <strong>Este</strong>lita propuseram um brin-<br />
de ao fim da guerra e à chegada de Yaqub. Nenhum <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is<br />
brin<strong>do</strong>u: os cristais tilintan<strong>do</strong> e uma euforia contida não<br />
- animaram os gêmeos. Yaqub apenas estendeu a mão direi-<br />
ta e cumprimentou o irmão. Pouco falaram, e isso era tanto<br />
mais estranho <strong>por</strong>que, juntos, pareciam a mesma pessoa.<br />
Foi Domingas quem me contou a história da cicatriz no<br />
rosto de Yaqub. Ela pensava que um ciuminho reles tivesse<br />
si<strong>do</strong> a causa da agressão. Vivia atenta aos movimentos <strong>do</strong>s<br />
gêmeos, escutava conversas, rondava a intimidade de to<strong>do</strong>s.<br />
Domingas tinha essa liberdade, <strong>por</strong>que as refeições da famí-<br />
lia e o brilho da casa dependiam dela.<br />
A minha história também depende dela, Domingas.<br />
Era uma tarde nublada de sába<strong>do</strong>, logo depois <strong>do</strong> Car-<br />
naval. As crianças da rua se alinhavam para passar a tarde na<br />
casa <strong>do</strong>s Reinoso, onde se aguardava a chegada de um cine-<br />
matógrafo ambulante. No último sába<strong>do</strong> de cada mês, <strong>Este</strong>-<br />
lita avisava as mães da vizinhança que haveria uma sessão<br />
de cinema em sua casa. Era um acontecimento e tanto. As<br />
crïanças almoçavam ce<strong>do</strong>, vestiam a melhor roupa, se per-<br />
fumavam e saíam de casa sonhan<strong>do</strong> com as imagens que<br />
veriam na parede branca <strong>do</strong> <strong>por</strong>ão da casa de <strong>Este</strong>lita.<br />
Yaqub e o Caçula usavam um fato de linho e uma gra-<br />
vatinha-borboleta; saíam iguais, com o mesmo pentea<strong>do</strong> e<br />
o mesmo aroma de essências <strong>do</strong> Pará borrifa<strong>do</strong> na roupa.<br />
Domingas, de braços da<strong>do</strong>s com os <strong>do</strong>is, também se arruma-<br />
24 1 2s<br />
va para acompanhar os gêmeos. O Caçula se desgarrava,<br />
corria, era o primeiro a beijar o rosto de <strong>Este</strong>lita e entregar-<br />
lhe um buquê de flores. Na sala, Zahia e Nahda Talib con-<br />
versavam com Lívia, a meninona aloirada, sobrinha <strong>do</strong>s<br />
Reinoso; <strong>do</strong>is curumins de uma farnlia que morava no Se-<br />
ringal Mirim serviam guaraná e bíscoitos de castanha aos<br />
convida<strong>do</strong>s. Esperavam o cinemató$rafo, e cada minuto pas-<br />
sava com lentidão <strong>por</strong>que estavam ansiosos para ver a pa-<br />
rede branca <strong>do</strong> <strong>por</strong>ão cheia de imagens, ansiosos <strong>por</strong> uma<br />
história de aventura ou de amor que tornava a tarde <strong>do</strong><br />
sába<strong>do</strong> a mais desejada de todas as tardes. Então o tempo<br />
fechou com nuvens baixas e pesadas e Abelar<strong>do</strong> Reinoso<br />
decidiu ligar o gera<strong>do</strong>r. Na sala iluminada um batalhão de<br />
soldadinhos <strong>foi</strong> ordena<strong>do</strong> sobre a mesa, e selos de outros<br />
países passaram de mão em mão, como diminutas vinhetas<br />
de paisagens, rostos e bandeiras longínquas. A meninona<br />
loira apreciava um selo raro, e seus braços roçavam os <strong>do</strong>s<br />
gêmeos. Alisava o selo com o indica<strong>do</strong>r, os outros meninos
se entretinham com o batalhão verde, e ela parecia atraída<br />
pelo aroma que exalava <strong>do</strong>s gêmeos. Lívia sorria para um,<br />
depois para o outro, e dessa vez <strong>foi</strong> o Caçula quem ficou<br />
enciuma<strong>do</strong>, disse Domingas. O Caçula fez cara feia, tirou<br />
a gravatinha-borboleta, desabotoou a gola e arregaçou as<br />
mangas da camisa. Bufou, se esforçou para ser dócil. Balbu-<br />
ciou: "Vamos dar uma volta no quintal?", e ela, olhan<strong>do</strong> O<br />
selo: "Mas vai chover, Omar. Escuta só as trovoadas". En-<br />
tão ela tirou um selo <strong>do</strong> álbum e ofereceu-o a Yaqub. O<br />
Caçula detestou isso, disse Domingas; detestou ver os de-<br />
<strong>do</strong>s <strong>do</strong> irmão brincarem de minhoca louca com os de<strong>do</strong>s<br />
de Lívia. Não era sonsa, era uma mocinha apresentada,<br />
que sorria sem malícia e atraía os gêmeos e to<strong>do</strong>s os meni-<br />
nos da vizinhança quan<strong>do</strong> trepava na mangueira, e em re-<br />
<strong>do</strong>r <strong>do</strong> tronco um enxame de moleques erguia a cabeça e<br />
seguia com o olhar a ondulação <strong>do</strong> short vermelho. Mas<br />
ela gostava mesmo era <strong>do</strong>s gêmeos; olhava dengosa para<br />
os <strong>do</strong>is; às vezes, quan<strong>do</strong> se distraía, olhava para Yaqub co-<br />
mo se visse nele alguma coisa que o outro não tinha. Yaqub,<br />
meio acanha<strong>do</strong>, percebia? O Caçula pensava que depois <strong>do</strong><br />
baile <strong>do</strong>s Benemou a Lívia ia cheirar e morder o gogó dele<br />
e desfilar com ele nas matinês <strong>do</strong> Guarany e <strong>do</strong> Odeon. Já<br />
tinha prometi<strong>do</strong> roubar o Land Rover <strong>do</strong>s pais e passear<br />
com ela até as cachoeiras <strong>do</strong> Tarumã. Zana desconfiou, es-<br />
condeu a chave <strong>do</strong> jipe, cortou a curica <strong>do</strong> Caçula. Brin-<br />
cavam com os de<strong>do</strong>s, e Omar já tinha se afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is<br />
quan<strong>do</strong> o homem <strong>do</strong> cinematógrafo chegou. Trazia na ma-<br />
leta de couro o projetor e o rolo <strong>do</strong> filme. Era alto, de gestos<br />
calmos, o rosto magro dividi<strong>do</strong> <strong>por</strong> um bigodaço: "Trouxe<br />
a grande diversão, o grande sonho, curuminzada".<br />
Selos, solda<strong>do</strong>s e canhões foram esqueci<strong>do</strong>s. O chori-<br />
nho da vitrola, apaga<strong>do</strong>. Um relógio antigo bateu quatro<br />
vezes. Uma correria pela escada de madeira estremeceu a<br />
casa e em pouco tempo o <strong>por</strong>ão <strong>foi</strong> povoa<strong>do</strong> de gritos, as<br />
cadeiras da primeira fila foram disputadas. Yaqub reservou<br />
uma cadeira para Lívia e o Caçula desaprovou com o olhar<br />
esse gesto poli<strong>do</strong>. Da escuridão surgiram cenas em preto-e-<br />
branco e o ruí<strong>do</strong> monótono <strong>do</strong> projetor aumentava o si-<br />
lêncio da tarde. Nesse momento Domingas despediu-se <strong>do</strong>s<br />
Reinoso. A magia no <strong>por</strong>ão escuro demorou uns vinte mi-<br />
nutos. Uma pane no gera<strong>do</strong>r apagou as imagens, alguém<br />
abriu uma janela e a platéia viu os lábios de Lívia gruda<strong>do</strong>s<br />
26 1 27<br />
no rosto de Yaqub. Depois, o barulho de cadeiras atiradas<br />
no chão e o estouro de uma garrafa estilhaçada, e a estoca-<br />
da certeira, rápida e furiosa <strong>do</strong> Caçula. O silêncio durou uns<br />
segun<strong>do</strong>s. E então o grito de pânico de Lívia ao olhar o ros-<br />
to rasga<strong>do</strong> de Yaqub. Os Reinoso desceram ao <strong>por</strong>ão, a voz<br />
de Abelar<strong>do</strong> abafou o alvoroço. O Caçula, apoia<strong>do</strong> na pa-<br />
rede branca, ofegava, o caco de vidro escuro na mão direi-<br />
ta, o olhar aceso no rosto ensangüenta<strong>do</strong> <strong>do</strong> irmão.<br />
<strong>Este</strong>lita subiu com o feri<strong>do</strong> e chamou um <strong>do</strong>s curumins:<br />
corre até a casa da Zana, chama a Domingas, mas não fala<br />
nada sobre isso.<br />
A cicatriz já começava a crescer no corpo de Yaqub. A<br />
cicatriz, a <strong>do</strong>r e algum sentimento que ele não revelava e<br />
talvez desconhecesse. Não tornaram a falar um com o ou-
tro. Zana culpava Halim pela falta de mão firme na educa-<br />
ção <strong>do</strong>s gêmeos. Ele discordava: "Nada disso, tu tratas o<br />
Omar como se ele fosse nosso único filho".<br />
Ela chorou quan<strong>do</strong> viu o rosto de Yaqub, disse Domin-<br />
gas. Beijava-lhe a face direita e chorava, aflita, ao ver a<br />
outra face inchada, costurada em semicírculo. Treze pon-<br />
tos. O fio preto da costura parecia uma pata de carangue-<br />
jeira. Yaqub, cala<strong>do</strong>, matutava. Evitava falar com o outro.<br />
Desprezava-o? Remoía, mu<strong>do</strong>, a humilhação?<br />
"Cara de lacrau", diziam-lhe na escola. "Bochecha de<br />
<strong>foi</strong>ce." Os apeli<strong>do</strong>s, muitos, todas as manhãs. Ele engolia os<br />
insultos, não reagia. Os pais tiveram de conviver com um<br />
filho silencioso. Temiam a reação de Yaqub, temiam o pior:<br />
a violência dentro de casa. Então Halim decidiu: a viagem,<br />
a separação. A distância que promete apagar o ódio, o ciú-<br />
me e o ato que os engendrou.<br />
Yaqub partiu para o Líbano corn os amïgos <strong>do</strong> pai e<br />
regressou a Manaus cinco anos depois. Sozinho. "Um rude,<br />
um pastor, um ra'í. Olha como o meu filho come!", lamen-<br />
tava-se Zana.<br />
Ela tentou esquecer a cicatriz <strong>do</strong> filho, mas a distância<br />
trazia para mais perto ainda o rosto de Yaqub. As cartas que<br />
ela escreveu!<br />
Dezenas? Centenas, talvez. Cinco anos de palavras. Ne-<br />
nhuma resposta. As raras notícias sobre a vida de Yaqub<br />
eram transmitidas <strong>por</strong> amigos ou conheci<strong>do</strong>s que voltavam<br />
<strong>do</strong> Líbano. Um primo de Talib que visitara a família de Ha-<br />
lim avistara Yaqub no <strong>por</strong>ão de uma casa. Estava sozinho e<br />
lia um <strong>livro</strong> senta<strong>do</strong> no chão, onde havia um monte de<br />
figos secos. O rapaz tentou falar com ele, em árabe e <strong>por</strong>-<br />
tuguês, mas Yaqub o ignorou. Zana passou a noite culpan-<br />
<strong>do</strong> Halim, e ameaçou viajar para o Líbano durante a guer-<br />
ra. Então ele escreveu aos parentes e man<strong>do</strong>u o dinheiro<br />
da passagem de Yaqub.<br />
Isso Domingas me contou. Mas muita coisa <strong>do</strong> que<br />
aconteceu eu mesmo vi, <strong>por</strong>que enxerguei de fora aquele<br />
pequeno mun<strong>do</strong>. Sim, de fora e às vezes distante. Mas fui<br />
0 observa<strong>do</strong>r desse jogo e presenciei muitas cartadas, até o<br />
lance final.<br />
Nos primeiros meses depois da chegada de Yaqub,<br />
Zana tentou zelar <strong>por</strong> uma atenção equilibrada aos filhos.<br />
Rânia significava muito mais <strong>do</strong> que eu, <strong>por</strong>ém menos <strong>do</strong><br />
que os gêmeos. Por exemplo: eu <strong>do</strong>rmia num quartinho<br />
construí<strong>do</strong> no quintal, fora <strong>do</strong>s limites da casa. Rânia <strong>do</strong>r-<br />
28 ] 29<br />
mia num pequeno aposento, só que no andar superior. Os<br />
gêmeos <strong>do</strong>rmiam em quartos semelhantes e contíguos,<br />
com a mesma mobília; recebiam a mesma mesada, as mes-<br />
mas moedas, e ambos estudavam no colégio <strong>do</strong>s padres.<br />
Era um privilégio; era também um transtorno.<br />
Os <strong>do</strong>is saíam ce<strong>do</strong> para o colégio; quem, de longe, os<br />
olhasse caminhar, juntos, vestin<strong>do</strong> a farda engomada <strong>por</strong><br />
Domingas, teria a impressão de ver os <strong>do</strong>is irmãos concilia-<br />
<strong>do</strong>s para sempre. Yaqub, que perdera alguns anos de esco-<br />
la no Líbano, era um varapau numa sala de baixotes. Zana<br />
temia que ele mijasse no pátio <strong>do</strong> colégio, comesse com as<br />
mãos no refeitório ou matasse um cabrito e o trouxesse
para casa. Nada disso aconteceu. Era um tími<strong>do</strong>, e talvez<br />
<strong>por</strong> isso passasse <strong>por</strong> covarde. Tinha vergonha de falar: tro-<br />
cava o pê pelo bê (Não bosso, babai! Buxa vida! ), e era alvo<br />
de chacota <strong>do</strong>s colegas e de certos mestres que o tinham<br />
como um rapaz rude, esquisito: vaso mal molda<strong>do</strong>. Mas<br />
era também alvo de olhares femininos. E olhar Yaqub sa-<br />
bia. De frente, como um destemi<strong>do</strong>, arquean<strong>do</strong> a sobran-<br />
celha esquerda: um tími<strong>do</strong> que podia passar <strong>por</strong> conquis-<br />
ta<strong>do</strong>r. Sorria e dava uma risada gostosa no momento certo:<br />
o momento em que as meninas das praças, <strong>do</strong>s bailes e <strong>do</strong>s<br />
arraiais suspiravam. Na casa, Zana <strong>foi</strong> a primeira a notar<br />
esse pen<strong>do</strong>r <strong>do</strong> filho para o galanteio. Domingas também<br />
se deixava encantar <strong>por</strong> aquele olhar. Dizia: "Esse gêmeo<br />
tem olhão de boto; se deixar, ele leva to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para o<br />
fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> rio". Não, ele não arrastou ninguém para a cidade<br />
encantada. Esse encantamento <strong>do</strong>s olhos deixava expec-<br />
tativas e promessas no ar. Depois a mãe tinha que aturar as<br />
cunhantãs que assediavam seu filho. Enviavam bilhetes e<br />
mensagens pela manicure. A mãe lia as palavras das ofere-<br />
cidas, lia com um prazer quase cruel, saben<strong>do</strong> que o seu<br />
Yaqub não sucumbiria aos versos de amor copia<strong>do</strong>s de poe-<br />
tas românticos. Ali, tranca<strong>do</strong> no quarto, ele varava noites<br />
estudan<strong>do</strong> a gramática <strong>por</strong>tuguesa; repetia mil vezes as pa-<br />
lavras malpronunciadas: atonito, em vez de atônito. A acen-<br />
tuação tônica. . . um drama e tanto para Yaqub. Mas ele <strong>foi</strong><br />
aprenden<strong>do</strong>, soletran<strong>do</strong>, cantan<strong>do</strong> as palavras, até que os<br />
sons <strong>do</strong>s nossos peixes, plantas e frutas, to<strong>do</strong> esse tupi es-<br />
queci<strong>do</strong> não embolava mais na sua boca. Mesmo assim,<br />
nunca <strong>foi</strong> tagarela. Era o mais silencioso da casa e da rua,<br />
reticente ao extremo. Nesse gêmeo lacônico, carente de<br />
prosa, crescia um matemático. O que lhe faltava no mane-<br />
jo <strong>do</strong> idioma sobrava-lhe no poder de abstrair, calcular,<br />
operar com números.<br />
"E para isso", dizia o pai, orgulhoso, "não é preciso lín-<br />
gua, só cabeça. Yaqub tem de sobra o que falta no outro."<br />
Omar ouvia essa frase e tornou a ouvi-la anos depois,<br />
quan<strong>do</strong> Yaqub, em São Paulo, comunicou à famrlia que<br />
havia ingressa<strong>do</strong> na Escola Politécnica (em "brimeiro lugar,<br />
babai", escreveu ele, brincan<strong>do</strong>). Zana sorriu triunfante,<br />
enquanto Halim repetia: "Eu não disse? Só cabeça, só inte-<br />
ligência, e isso o nosso Yaqub tem de sobra".<br />
O matemático, e também o rapaz altivo e circunspecto<br />
que não dava bola para ninguém; o enxadrista que no<br />
sexto lance decidia a partida e assobiava sem vontade um<br />
soprinho de passarinho rouco, anteven<strong>do</strong> o rei acua<strong>do</strong>. Der-<br />
rotava o adversário emitin<strong>do</strong> esse assobio meio irritante,<br />
anúncio <strong>do</strong> inevitável xeque-mate. Dias e noites no quarto,<br />
sem dar um mergulho nos igarapés, nem mesmo aos <strong>do</strong>-<br />
31<br />
rningos, quan<strong>do</strong> os manauaras saem ao sol e a cidade se na hora<br />
<strong>do</strong> último sereno, voltava para casa. E lá estava Za-<br />
concilia com o rio Negro. Zana preocupava-se com esse bi- na,<br />
impávida na rede vermelha, no rosto a serenidade fingi-<br />
cho escondi<strong>do</strong>. Por que não ia aos bailes? "Olha só, Halim, da, no<br />
fun<strong>do</strong> atormentada, entristecida <strong>por</strong> passar mais uma<br />
esse teu filho vive enfurna<strong>do</strong> na toca. Parece um amarelão noite<br />
sem o filho. Omar maI percebia o vulto arquea<strong>do</strong> sob o
mofan<strong>do</strong> na vida." O pai tampouco entendia <strong>por</strong> que ele alpendre.<br />
Ia direto ao banheiro, provocava em golfadas a be-<br />
renunciava à juventude, ao barulho festívo e às serenatas bedeira<br />
da noite, cambaleava ao tentar subir a escada; às ve-<br />
que povoavam de sons as noites de Manaus, zes caía, inteiro, o<br />
corpanzil sua<strong>do</strong>, esqueci<strong>do</strong> da alquimia da<br />
Que noites, que nada! Ele desprezava, altivo em sua noite. Então<br />
ela saía da rede, arrastava o corpo <strong>do</strong> filho até o<br />
solidão, os bailes carnavalescos, ainda mais anima<strong>do</strong>s<br />
nos alpendre e acordava Domíngas: as duas o desnudavam, pas-<br />
anas <strong>do</strong> pós-guerra, com os corsos e suas colombinas que savam-lhe<br />
álcool no corpo e o acomodavam na rede. Omar<br />
saíam da praça da Saudade e desciam a avenida num frene- <strong>do</strong>rmia até<br />
meio-dia. O rosto incha<strong>do</strong>, engelhad.o pela res-<br />
si louco até o Merca<strong>do</strong> Municipal; desprezava as festas ju- saca,<br />
rosnava pedin<strong>do</strong> água gelada, e lá ia Domingas com a<br />
ninas, a dança <strong>do</strong> tipiti, os campeonatos de remo, os<br />
bailes bilha: derramava-lhe na boca aberta o líqui<strong>do</strong> que ele pri-<br />
a bor<strong>do</strong> <strong>do</strong>s navios italianos e os jogos de futebol no Par- meiro<br />
bochechava e depois sorvia como uma onça sedenta.<br />
que Amazonense. Trancava-se no quarto, o egoísta radical, Halim<br />
se incomodava com isso, detestava sentir o cheiro <strong>do</strong><br />
e vivia o mun<strong>do</strong> dele, e de ninguém mais. O pastor, o al- filho,<br />
que empestava o Iugar sagra<strong>do</strong> das refeições. O pai<br />
deão apavora<strong>do</strong> na cidade? Talvez isso, ou pouco mais: o rondava a<br />
sala, caminhava em diagonal, o ollrar de relance<br />
montanhês rústíco que urdia um futuro triunfante. na rede vermelha<br />
sob o alpendre.<br />
Esse Yaqub, que embranquecia feito osga em parede Num dia em que<br />
o Caçula passou a tarde toda de cueca<br />
úmida, compensava a ausência <strong>do</strong>s gozos <strong>do</strong> sol e <strong>do</strong> corpo deita<strong>do</strong><br />
na rede, o pai o cutucou e disse, com a voz abafada:<br />
aguçan<strong>do</strong> a capacidade de calcular, de equacionar. No colé- "Não<br />
tens vergonha de viver assim? Vais passar a vida nessa<br />
gio das padres ele encontrava sempre, antes de qualquer rede<br />
imunda, com essa cara?". Halim preparava uma rea-<br />
um, o valor de um z, y ou x. Surpreendía os professores: a ção, uma<br />
punição exemplar, mas a audácia <strong>do</strong> Caçula cres-<br />
chave da mais complexa equação se armava na cabeça de cia diante <strong>do</strong><br />
pai. Não se vexava, parecia um filho sem cul-<br />
Yaqub, para quem o giz e o quadro-negro eram inúteis. pa, livre<br />
da cruz. Mas não da espada. Foi reprova<strong>do</strong> <strong>do</strong>is<br />
O outro, o Caçula, exagerava as audácias juvenis: ga- anos<br />
segui<strong>do</strong>s no colégio <strong>do</strong>s padres. O pai o repreendia,<br />
zeava lições de latim, subornava <strong>por</strong>teiros sisu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> colé- dava o<br />
exemplo <strong>do</strong> outro filho, e Omar, mesmo cala<strong>do</strong>,<br />
gio <strong>do</strong>s padres e saía para a noíte, farda<strong>do</strong>, transgressor<br />
<strong>do</strong>s parecia dizer: Dane-se! Danem-se to<strong>do</strong>s, vivo a minha vida<br />
pés ao gogó, rondan<strong>do</strong> os salões da Maloca <strong>do</strong>s Barés, <strong>do</strong> como quero.<br />
Acapulco, <strong>do</strong> Cheik Clube, <strong>do</strong> Shangri-Lá. De madrugada, Foi o<br />
que ele gritou ao ser expulso <strong>do</strong> colégio. Gritou<br />
32 33<br />
várias vezes na presença <strong>do</strong> pai, desafian<strong>do</strong>-o, rasgan<strong>do</strong> a<br />
farda azul, a voz impertinente dizen<strong>do</strong>: "Acertei em cheio<br />
o professor de matemática, o mestre <strong>do</strong> teu filho queri<strong>do</strong>,<br />
o que só tem cabeça".<br />
Zana e Halim foram convoca<strong>do</strong>s pelo diretor. Só ela
<strong>foi</strong>, ela e Domingas, sua sombra servil. Soltou cobras e<br />
lagartos nas ventas <strong>do</strong> irmão diretor. O senhor não sabia<br />
que o meu Omar a<strong>do</strong>eceu nos primeiros meses de vida?<br />
Por pouco não morreu, irmâo. Só Deus sabe... Deus e a<br />
mãe... Ela suava, entregue ao êxtase de grande mãe prote-<br />
tora. uviram o sino bater seis vezes, o vozerio e a agita-<br />
ção <strong>do</strong>s internos que se encaminhavam ao refeitório, e<br />
logo o silêncio, e a voz dela, mais calma, menos injuriada,<br />
Quantos órfãos deste internato comem à nossa custa, ir-<br />
mão? E as ceias de Natal, as quermesses, as roupas que nós<br />
mandamos para as índias das missões?<br />
Domingas abanava o corpo da patroa. O irmão diretor<br />
su<strong>por</strong>tou o desabafo, olhou para fora, para o anoitecer mor-<br />
no que começava a esconder o imenso edifício <strong>do</strong>s sale-<br />
sianos. Cabras pastavam no quintal <strong>do</strong> colégio. Os meninos<br />
órfãos, farda<strong>do</strong>s, brincavam de gangorra, os corpos equi-<br />
libra<strong>do</strong>s sumin<strong>do</strong> lentamente na noite. Ele abriu uma ga-<br />
veta e entregou a Zana o boletim de notas e uma cópia da<br />
ata de expulsão de Omar. Mostrou-lhe o boletim médico<br />
sobre o esta<strong>do</strong> de saúde <strong>do</strong> padre Bolislau, o professor de<br />
matemática. Entendia a indignação de uma mãe ferida,<br />
entendia o ímpeto e a imprudência de alguns jovens, mas<br />
dessa vez tinha si<strong>do</strong> inevitável. A única expulsão nos últi-<br />
mos dez anos. Então o irmão diretor perguntou pelo outro,<br />
o Yaqub. Continuaria no colégio?<br />
Ela gaguejou, confusa; seus olhos encontraram a gan-<br />
gorra agora vazia. O vão da janela escurecia, trazen<strong>do</strong> a<br />
noite para o interior da sala. Pensava no pen<strong>do</strong>r matemá-<br />
tico <strong>do</strong> filho. O pastor, o rapaz rústico, o mágico <strong>do</strong>s núme-<br />
ros que prometia ser o cérebro da família. Adiou a resposta<br />
e se levantou de supetão, meio amarga, meio esperançosa,<br />
dizen<strong>do</strong> a Domingas uma frase que no futuro repetiria tal<br />
uma prece: A esperança e a amargura. . . são parecidas.<br />
Na velhice que poderia ter si<strong>do</strong> menos melancólica,<br />
ela repetiu isso várias vezes a Domingas, sua escrava fiel, e<br />
a mim, sem me olhar, sem se im<strong>por</strong>tar com a minha pre-<br />
sença. Na verdade, para Zana eu só existia como rastro <strong>do</strong>s<br />
filhos dela.<br />
O Caçula, expulso pelos padres, só encontrou abrigo<br />
numa escola de Manaus onde eu estudaria anos depois. O<br />
nome <strong>do</strong> colégio era pomposo - Liceu Rui Barbosa, o<br />
Aguia de Haia -, mas o apeli<strong>do</strong> era bem menos edificante:<br />
Galinheiro <strong>do</strong>s Vândalos.<br />
Hoje, penso que o apeli<strong>do</strong> era inadequa<strong>do</strong> e um tanto<br />
quanto preconceituoso. No Liceu, que não era totalmente<br />
desprezível, reinava a liberdade de gestos ousa<strong>do</strong>s, a liber-<br />
dade que faz estremecer convenções e normas. A escória<br />
de Manaus o freqüentava, e eu me deixei arrastar pela tor-<br />
rente <strong>do</strong>s insensatos. Ninguém ali era "très raisonnable",<br />
como dizia o mestre de francês, ele mesmo um excêntrico,<br />
um dândi desloca<strong>do</strong> na província, recita<strong>do</strong>r de simbolistas,<br />
palhaço da sua própria excentricidade. Não ensinava a gra-<br />
mática, apenas recitava, barítono, as iluminações e as ver-<br />
34 ! 35<br />
des neves de seu a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> simbolista francês. Quem enten-<br />
dia essas imagens fulgurantes? To<strong>do</strong>s eram atraí<strong>do</strong>s pelo en-<br />
canto da voz, e alguém, num átimo, apreendia algo, sentia
uma fulguração, desnorteava-se. Depois da "aula", na cal-<br />
çada <strong>do</strong> Café Mocambo, ele fazia loas a Diana, a deusa de<br />
bronze, beleza esbelta da praça das Acácias. Os elogios pas-<br />
savam da deusa a uma moça fardada, toda ela índia, aco-<br />
breada, assanhada de desejo; e os <strong>do</strong>is, juntos, escapuliam<br />
<strong>do</strong> Mocambo e sumiam na noite da cidade sem luz.<br />
Foi esse mestre, Antenor Laval, o primeiro a saudar o<br />
recém-chega<strong>do</strong> expulso <strong>do</strong> colégio <strong>do</strong>s padres. Ele, o Laval,<br />
regozija<strong>do</strong>, quis saber a causa da expulsão sumária. O Ca-<br />
çula não escondia de ninguém a versão verdadeira: o ato<br />
mais insubordina<strong>do</strong>, mais infame da história da catequese<br />
<strong>do</strong>s salesianos na Amazônia, dizia ele. Contava a história<br />
para to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Contou-a diante <strong>do</strong>s alunos <strong>do</strong> Galinhei-<br />
ro <strong>do</strong>s Vândalos, em voz alta, rin<strong>do</strong> ao dizer que o padre<br />
polonês que o humilhou só podia tomar sopa, nunca mais<br />
ia mastigar comida. Tinha aconteci<strong>do</strong> na aula desse profes-<br />
sor de matemática, o Bolislau, gigante de tez vermelha, car-<br />
nadura atlética, sempre de batina preta, sebenta de tanto<br />
suor. Os olhos dele, de castiga<strong>do</strong>r que procura cobaia, foca-<br />
ram o Caçula. Bolislau fez a pergunta dificílima, e, em res-<br />
posta ao silêncio <strong>do</strong> aluno, zombou. O Caçula se levantou,<br />
caminhou para o quadro-negro, parou cabisbaixo diante <strong>do</strong><br />
gigante Bolislau, deu-lhe um soco no queixo e um chute no<br />
saco: um petar<strong>do</strong> tão violento que o pobre Bolislau se aga-<br />
chou, muito corcunda, e ro<strong>do</strong>piou como um pião bambo.<br />
Não gritou: grunhiu. E na lividez <strong>do</strong> rosto os olhos claros<br />
saltaram, molha<strong>do</strong>s. Houve um tumulto na sala, risos ner-<br />
vosos e risos de prazer, antes <strong>do</strong> silêncio, antes da chegada<br />
<strong>do</strong> irmão diretor escolta<strong>do</strong> pela matilha de bedéis.<br />
O Caçula não esquecera a humilhação de um antigo<br />
castigo: ajoelha<strong>do</strong> ao pé de uma castanheira, desde o meio-<br />
dia até enxergar a primeira estrela no céu. Ele fora caçoa-<br />
<strong>do</strong> pelos internos que cercavam a árvore, gritavam: "E se<br />
chover, hein, valentão? E se cair um ouriço na tua cacho-<br />
la?". Insultos de to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s, enquanto a figura <strong>do</strong> Bolis-<br />
lau avultava na visão <strong>do</strong> castiga<strong>do</strong>, deformada, odiada. Não<br />
choveu, mas no céu meio embaça<strong>do</strong> o primeiro brilho de-<br />
morou a aparecer. Por isso o Caçula, ainda excita<strong>do</strong> com a<br />
vingança, dissera à mãe: "O Bolislau parrudão viu todas as<br />
estrelas <strong>do</strong> céu, mama. E nem tinha céu. Não é um milagre?<br />
Ver uma constelação sem céu?".<br />
Ah, dessa vez Omar tinha i<strong>do</strong> longe demais. O episó-<br />
dio abalara o orgulho da mãe; o orgulho, não a fé. Ela con-<br />
siderou injusta a expulsão <strong>do</strong> filho, mas Deus quis assim;<br />
afinal, até um ministro de Deus é vulnerável. "Esse Bolis-<br />
lau errou", murmurava. "Meu filho só quis provar que é<br />
homem... que mal há nisso?"<br />
Ela não queria ver no homem o agressor. No Galinhei-<br />
ro <strong>do</strong>s Vândalos não havia nenhuma exigência; os mestres<br />
não faziam chamada; uma reprovação era uma façanha<br />
para poucos. Uma calça verde (um verde qualquer) e uma<br />
camisa branca compunham a farda. A escória <strong>do</strong> Galinheiro<br />
queria caçar um diploma, um pedaço de papel timbra<strong>do</strong> e<br />
assina<strong>do</strong>, com uma tarja verde-amarela no canto superior.<br />
Eu ia conseguir isso: o diploma <strong>do</strong> Galinheiro <strong>do</strong>s Vân-<br />
dalos, minha alforria. Sem que eu soubesse, Halim arru-<br />
mava no meu quarto os manuais que o Caçula desprezava
36 37<br />
e os muitos <strong>livro</strong>s que Yaqub dei°u ao viajar para São<br />
Paulo, em janeiro de 1950.<br />
A partida de Yaqub <strong>foi</strong> providencial para mim. Além<br />
as velhas que anos de-<br />
<strong>do</strong>s <strong>livro</strong>s usa<strong>do</strong>s, ele deixou roup<br />
ías camísetas, duas ca-<br />
pois me serviriam: três calças, vát<br />
misas de gola puída, <strong>do</strong>is pares d sapato molambentos.<br />
Quan<strong>do</strong> ele viajou para São Paul eu tinha uns quatro<br />
anos de idade, mas a roupa dele m esperou crescer e <strong>foi</strong> se<br />
ajustan<strong>do</strong> ao rouxas, pareciam sacos;<br />
meu corpo; as calças,<br />
e os sapatos, que mais tarde ficaraln um pouco aperta<strong>do</strong>s,<br />
, em parte <strong>por</strong> teimosia, e<br />
entravam meio na marra nos pés.<br />
muito <strong>por</strong> necessidade. O corpo é flexível. Inflexível <strong>foi</strong> o<br />
próprio Yaqub, que enfrentou a resistência da mâe quan-<br />
<strong>do</strong> informou, no Natal de 1949, qle ia embora de Manaus.<br />
Disse isso à queima-roupa, como Auem transforma em ato<br />
uma idéía rurninada até a exaustá Ninguém desconfiava<br />
de seus planos; ele era evasivo ns respostas, esquivo até<br />
nas miudezas <strong>do</strong> cotidiano, indifeíente às diabruras <strong>do</strong> ir-<br />
mão, que soltava as rédeas no Gahnheiro <strong>do</strong>s Vândalos.<br />
Yaqub quase nada revelava sobre sua vida no sul <strong>do</strong><br />
Líbano. Rânia Silêncio <strong>do</strong> irmão, com o<br />
, impaciente com o<br />
pedaço de passa<strong>do</strong> soterrada, espíaçava-o com perguntas.<br />
Ele disfar ava °Eu cuidava <strong>do</strong> rebanho.<br />
ç . Ou dizia, lacônico:<br />
Eu, o responsável pelo rebanho, S° isso". Quan<strong>do</strong> Rânia<br />
insistia, ele se tornava áspero, quase intratável, contrarian-<br />
<strong>do</strong> a candura de gestos e a altivea e aderin<strong>do</strong> talvez à rude-<br />
za que cultivara na aldeia. No ePtanto, havia aconteci<strong>do</strong><br />
alguma coisa naquele tempo de pastor. Talvez Halím sou-<br />
besse, mas ninguém, nem mesmo Zana, arrancou <strong>do</strong> filho<br />
esse segre<strong>do</strong>. Não, de Yaqub não saía nada. Ele se retraía,<br />
encasulava-se no momento certo. As vezes, ao sair <strong>do</strong> ca-<br />
sulo, surpreendia.<br />
Numa manhã de agosto de 1949, dia <strong>do</strong> aniversário<br />
<strong>do</strong>s gêmeos, o Caçula pediu dinheiro e uma bicicleta nova.<br />
Halim deu a bicicleta, saben<strong>do</strong> que a esposa, às escondidas,<br />
enchía de moedas os bolsos <strong>do</strong> filho.<br />
yaqub recusou o dinheiro e a bicicleta. Pediu uma far-<br />
da de gala para desfilar no dia da Independência. Era o seu<br />
últímo ano no colégio <strong>do</strong>s padres e agora ia desfilar como<br />
espadachim. Já era garboso à paisana, imagine de farda<br />
branca com botões <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s, a ombreíra enfeitada de es-<br />
trelas, o cinturão de couro com fecho pratea<strong>do</strong>, a polaina,<br />
a luva branca, a espada reluzente que ele empunhou dian-<br />
te <strong>do</strong> espelho da sala. A mãe, com o olhar maravilha<strong>do</strong>,<br />
não sabia se mirava o filho ou a imagem dele. Talvez tives-<br />
se olhos para mírar os <strong>do</strong>is, ou os três, pois <strong>do</strong> alpendre o<br />
Caçula espiava a cena senta<strong>do</strong> na bicicleta, a cara meio ale-<br />
sada com um sorriso esquisito, vá saber se de despeito ou<br />
irisão. Ele ignorou o desfile e a Independência. O pai prefe-<br />
riu aproveitar em casa a quietude <strong>do</strong> feria<strong>do</strong>. Insístíu para
que Zana ficasse com ele, deixasse o filho desfilar e marchar<br />
à vontade, mas ela quería a emoção de ver Yaqub farda<strong>do</strong><br />
no centro da avenida Eduar<strong>do</strong> Ribeiro.<br />
As mulheres da casa se assanharam para admirar o<br />
espadachim. Madrugaram na avenida para conseguir um<br />
lugar próximo à passagem das bandas e pelotões. Levaram<br />
chapéu de palha, suco de abacaxi e uma sacola cheia de tu-<br />
cumãs. Esperaram três horas sob o soI forte de setembro.<br />
38 / 39<br />
1 Viram o desfile <strong>do</strong> Batalhão de Caça<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Exército, com<br />
' seus blinda<strong>do</strong>s, bazucas e baionetas e sua coreografia de<br />
onças-pintadas que esturravam sob o sol a pino. Logo de-<br />
pois, o alto-falante anunciou o desfile <strong>do</strong> colégio <strong>do</strong>s padres.<br />
Ouviram o rufar <strong>do</strong>s tambores e a harmonia <strong>do</strong>s metais<br />
num crescen<strong>do</strong> impressionante; a banda, ainda invisível,<br />
emitia sons cada vez mais graves, estron<strong>do</strong>s cadencia<strong>do</strong>s<br />
ecoan<strong>do</strong> no centro de Manaus. A multidão voltou-se para<br />
o topo da avenida. Zana <strong>foi</strong> a primeira a divisar uma figu-<br />
ra de branco, ostentan<strong>do</strong> uma lâmina reluzente. A figura<br />
avançou, devagar; os passos ritma<strong>do</strong>s pela cadência divi-<br />
diam a avenida. O espadachim marchava à frente da banda<br />
e <strong>do</strong>s oito pelotões, sozinho, receben<strong>do</strong> aplausos e asso-<br />
bios. Jogavam-lhe açucenas-brancas e flores <strong>do</strong> mato, que<br />
ele pisava sem pena, concentra<strong>do</strong> na cadência da marcha,<br />
sem dar bola aos beijos e gracejos que vinham da mulhe-<br />
rada, sem nem mesmo piscar para Rânia. Ele não olhou<br />
para ninguém: desfilou com um ar de filho único que não<br />
era. Yaqub, que pouco falava, deixou a aparência falar <strong>por</strong><br />
ele. A aparência e a imprensa: no dia seguinte um jornal<br />
publicou a fotografia dele, com <strong>do</strong>is de<strong>do</strong>s de elogios.<br />
Durante meses Zana mostrou aos vizinhos o parágrafo<br />
a respeito <strong>do</strong> belo espadachim que ela havia pari<strong>do</strong>. A es-<br />
pada cintilava na fotografia <strong>do</strong> jornal, mas o tempo tratou<br />
de esmaecer o brilho metálico; no entanto, ficou a imagem<br />
da arma com sua forma pontiaguda. As palavras elogiosas<br />
ao filho bem que poderiam ter sumi<strong>do</strong>, <strong>por</strong>que a mãe já as<br />
havia memoriza<strong>do</strong>.<br />
Yaqub vinha ruminan<strong>do</strong> a mudança para São Paulo.<br />
Foi o padre Bolislau quem o aconselhou a partir. "Vá em-<br />
bora de Manaus", dissera o professor de matemática. "Se fi-<br />
cares aqui, serás derrota<strong>do</strong> pela província e devora<strong>do</strong> pelo<br />
teu irmão."<br />
Um bom mestre, um exímio prega<strong>do</strong>r, o Bolislau. A<br />
mãe se desnorteou com a notícia da viagem de Yaqub. O<br />
pai, ao contrário, estimulou o filho a ir morar em São Pau-<br />
lo, e ainda lhe prometeu uma parca mesada. Halim havia<br />
melhora<strong>do</strong> de vida nos anos <strong>do</strong> pós-guerra. Vendia de tu<strong>do</strong><br />
um pouco aos mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s Educan<strong>do</strong>s, um <strong>do</strong>s bairros<br />
mais populosos de Manaus, que crescera muito com a che-<br />
gada <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s da borracha, vin<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s rios mais distan-<br />
tes da Amazônia. Com o fim da guerra, migraram para<br />
Manaus, onde ergueram palafitas à beira <strong>do</strong>s igarapés, nos<br />
barrancos e nos clarões da cidade. Manaus cresceu assim: no<br />
tumulto de quem chega primeiro. Desse tumulto participa-<br />
va Halim, que vendia coisas antes de qualquer um. Vendia<br />
sem prosperar muito, mas atento à ameaça da decadência,<br />
que um dia ele me garantiu ser um abismo. Não caiu nesse
abismo, nem exigiu de si grandes feitos. O abismo mais te-<br />
mível estava em casa, e este Halim não pôde evitar.<br />
O desfile com farda de gala fora a despedida de Yaqub:<br />
um pequeno espetáculo para a famMia e a cidade. No colé-<br />
gio <strong>do</strong>s padres prestaram-lhe uma homenagem. Ganhou<br />
duas medalhas e dez minutos de elogios, e ainda <strong>foi</strong> louva-<br />
<strong>do</strong> <strong>por</strong> latinistas e matemáticos. Os religiosos sabiam que o<br />
ex-aluno tinha futuro; naquela época, Yaqub e o Brasil in-<br />
teiro pareciam ter um futuro promissor. Quem não brilhou<br />
<strong>foi</strong> o outro, o Caçula, este, sim, um ser opaco para padres e<br />
41<br />
leigos, um lunático, alheio, inebria<strong>do</strong> com a atmosfera li-<br />
bertina <strong>do</strong> Galinheiro <strong>do</strong>s Vândalos e da cidade.<br />
Omar faltou ao jantar de despedida <strong>do</strong> irmão. Chegou<br />
de madrugada, no fim da festa, quan<strong>do</strong> só os da família,<br />
exaustos, se despediam da última noite com Yaqub. Halim<br />
estava orgulhoso: o filho ia morar sozinho no outro la<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> país, mas ia precisar de dinheiro, não podia viajar as-<br />
sim... Por um momento a voz de Yaqub ressoou na casa,<br />
uma voz já de homem, cheia de decisão, dizen<strong>do</strong> "Não,<br />
baba, não vou precisar de nada... Dessa vez quem quis ir<br />
embora fui eu". Halim abraçou o filho, chorou como havia<br />
chora<strong>do</strong> na manhã em que Yaqub partira para o Líbano.<br />
Zana ainda insistiu: que lhe mandaria uma mesada, que<br />
ele não ia ter tempo para trabalhar. "Teus estu<strong>do</strong>s...", acres-<br />
centou. "Nem um centavo", ele disse olhan<strong>do</strong> para a mãe.<br />
Então escutaram um ruí<strong>do</strong>: Omar largara a bicicleta no<br />
quintal e armava a rede vermelha. Não estava embriaga<strong>do</strong>,<br />
demorou a pegar no sono e acor<strong>do</strong>u várias vezes com o sol<br />
que lhe esquentava a cabeça, irritava-o a ponto de esmur-<br />
rar o chão e a parede. Ele <strong>foi</strong> esqueci<strong>do</strong>, <strong>por</strong> uma vez Omar<br />
<strong>do</strong>rmira sem a proteção das duas mulheres. Só se levantou<br />
depois <strong>do</strong> almoço, e não quis a comida fria. Estava atento<br />
aos movimentos da mãe, que só tinha olhos para o via-<br />
jante. Halim ainda estava no quarto, Domingas arrumava<br />
na mala pacotes de farinha e mantas de pirarucu seco. O<br />
Caçula não moveu uma palha: continuou senta<strong>do</strong> à mesa,<br />
quieto diante <strong>do</strong> prato intoca<strong>do</strong>, o olhar desvian<strong>do</strong> furti-<br />
vamente para o rosto <strong>do</strong> irmão. Sofria com a decisão de<br />
Yaqub. Ele, o Caçula, ia permanecer ali, ia reinar em casa,<br />
nas ruas, na cidade, mas o outro tivera a coragem de par-<br />
tir. O destemi<strong>do</strong>, o indômito na infância, estava murcho,<br />
feri<strong>do</strong>. "Ele queria sair da sala, mas não conseguia' disse-<br />
me Domingas. Não queria ver o irmão altivo, sereno, ouvin-<br />
<strong>do</strong> a mãe pedir a Yaqub que lhe escrevesse uma crta <strong>por</strong><br />
semana, nem pensasse em deixá-la sem notícias, preocu-<br />
pada aqui neste fim de mun<strong>do</strong>. Rânia rondava o iajante,<br />
e ajoelhava-se para murmurar palavras que só elé escuta-<br />
va. Domingas não tirava os olhos dele, e anos de'Pois ela<br />
me contou que estava nervosa com a viagem de' Yaqub.<br />
Nem Zana podia impedi-lo de partir.<br />
As mãos agitadas de Domingas tiravam roupa da mala,<br />
tentavam encontrar um lugar para o peixe seco e a farinha.<br />
Zana vigiava essa arrumação complicada, ia interfeiir Quan-<br />
<strong>do</strong> a campainha tocou com insistência e Omar se adiantou,<br />
correu para a <strong>por</strong>ta da entrada e to<strong>do</strong>s ouviram palavras<br />
atropeladas.
"Quem é, Omar?", perguntou a mãe, e logo dPois um<br />
bate-boca, e o estalo da <strong>por</strong>ta que se fecha e mais uma vez<br />
o som da campainha.<br />
"Por onde o Omar se meteu?", perguntou Zana. "Do-<br />
mingas, vai lá ver o que está acontecen<strong>do</strong>."<br />
Domingas fechou a mala e <strong>foi</strong> apressada até a <strong>por</strong>ta.<br />
Depois a voz dela, alta, num tom petulante:<br />
"Ele vai viajar daqui a pouquinho."<br />
Estalos de salto alto ecoaram no corre<strong>do</strong>r. Zana lançou<br />
um olhar perplexo e depois desdenhoso para a mlher que<br />
entrava na sala procuran<strong>do</strong> Yaqub com os olhos. linguém<br />
ouvira falar dela desde aquela tarde em que o Caçula ras-<br />
gara o rosto <strong>do</strong> irmão no <strong>por</strong>ão da casa <strong>do</strong>s Reincso. Zana<br />
atribuía a cicatriz no rosto de Yaqub ao demônio da sedu-<br />
42 43<br />
ção daquela meninona aloirada. Mesmo quan<strong>do</strong> o filho es-<br />
tava no LíMano, ela dizia a Domingas: "Não enten<strong>do</strong> como<br />
a tal grandalhona pôde enfeitiçar meu filho". As vezes re-<br />
fazia a frase e dizia: "Não enten<strong>do</strong> como o meu Yaqub se<br />
deixou enfeitiçar <strong>por</strong> aquela osga".<br />
"Parecia a mesma meninona, só que naquela visita a<br />
Lívia mostrava uma parte <strong>do</strong>s peitos e das coxas", disse-me<br />
Domingas.<br />
O resto <strong>do</strong> corpo de Lívia <strong>foi</strong> esquadrinha<strong>do</strong> pelos olhos<br />
arregala<strong>do</strong>s de Zana, que lhe perguntou com uma voz ma-<br />
liciosa: "A querida veio se despedir <strong>do</strong> meu galã?".<br />
Lívia se afastou e saiu da sala, atrain<strong>do</strong> Yaqub para o<br />
quintal. Sussurraram com muitos risinhos e logo sumiram<br />
no matagal <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s. Demoraram o tempo da sobremesa,<br />
<strong>do</strong> café espesso e da sesta. Zana, inquieta, fez um sínal a<br />
Domingas, que os encontrou perto da cerca. Estavam es-<br />
picha<strong>do</strong>s no mato, e Yaqub acariciava o ventre e os seios da<br />
mulher, adian<strong>do</strong> a despedida. Domingas ficou calada, ofe-<br />
gante; agachou-se, balançou as folhas e torceu com raiva<br />
os galhos da fruta-pão. Observou a cena, boquiaberta, e se<br />
retirou com a boca seca, com sede daquela água.<br />
Lívia não apareceu, deve ter saí<strong>do</strong> pela ruela <strong>do</strong>s fun-<br />
<strong>do</strong>s. Depois Yaqub entrou sozinho na sala, o pescoço com<br />
arranhões e marcas de mordidas, a expressão ainda in-<br />
cendiada.<br />
Viajou assim mesmo: a roupa amarrotada, o rosto úmi-<br />
<strong>do</strong>, o cabelo aninhan<strong>do</strong> talos, folhinhas e fios de cabelo ama-<br />
rela<strong>do</strong>s. Viajou cala<strong>do</strong>, deixan<strong>do</strong> a casa que ele ocupara com<br />
parcimônia e discrição. Era pouco mais que uma sombra<br />
habitan<strong>do</strong> um lugar. Deixou na casa a lembrança forte de<br />
duas cenas ousadas: o desfile com farda de gala e o encon-<br />
tro com a mulher que ele amava.<br />
Omar, mordi<strong>do</strong> de ciúme, não tocou no nome <strong>do</strong> ir-<br />
mão. E a mãe, pura ânsia, dizia que filho que parte pela<br />
segunda vez não volta mais a casa. O pai concordava, sem<br />
ânsia. Sonhava com um futuro glorioso para Yaqub, e isso<br />
era mais im<strong>por</strong>tante que a volta <strong>do</strong> filho, mais forte que a<br />
separação. Os olhos acinzenta<strong>do</strong>s de Halim se acendiam<br />
quan<strong>do</strong> dizia isso.<br />
Eu vi esses olhos muitas vezes, não tão acesos, mas<br />
tampouco baços. Apenas cansa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> presente, sem acenar<br />
para o futuro, qualquer futuro.
44 . 4ï<br />
2<br />
Por volta de 1914, Galib inaugurou o restaurante Biblos<br />
no térreo da casa. O almoço era servi<strong>do</strong> às onze, comida sim-<br />
ples, mas com sabor raro. Ele mesmo, o viúvo Galib, cozi-<br />
nhava, ajudava a servir e cultivava a horta, cobrin<strong>do</strong>-a com<br />
um véu de tule para evitar o sol abrasa<strong>do</strong>r. No Merca<strong>do</strong> Mu-<br />
nicipal, escolhia uma pescada, um tucunaré ou um matrin-<br />
xã, recheava-o com farofa e azeitonas, assava-o no forno de<br />
lenha e servia-o com molho de gergelim. Entrava na sala <strong>do</strong><br />
restaurante com a bandeja equilibrada na palma da mão es-<br />
querda; a outra mão enlaçava a cintura de sua filha Zana.<br />
Iam de mesa em mesa e Zana oferecia guaraná, água gasosa,<br />
vinho. O pai conversava em <strong>por</strong>tuguês com os clientes <strong>do</strong><br />
restaurante: mascateiros, comandantes de embarcação, re-<br />
gatões, trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Manaus Harbour. Desde a inaugu-<br />
ração, o Biblos <strong>foi</strong> um ponto de encontro de imigrantes li-<br />
baneses, sírios e judeus marroquinos que moravam na praça<br />
Nossa Senhora <strong>do</strong>s Remédios e nos quarteirões que a rodea-<br />
47<br />
varn. Falavam <strong>por</strong>tuguês mistura<strong>do</strong> com árabe, francês e<br />
espanhol, e dessa algaravia surgiam histórias que se cruza-<br />
vam, vidas em trânsito, um vaivém de vozes que contavam<br />
Lim pouco de tu<strong>do</strong>: um naufrágio, a febre negra num po-<br />
voa<strong>do</strong> <strong>do</strong> rio Purus, uma trapaça, um incesto, lembranças<br />
renotas e o mais recente: uma <strong>do</strong>r ainda viva, uma paixão<br />
ainda acesa, a perda coberta de luto, a esperança de que os<br />
caloteiros saldassem as dívidas. Comiam, bebiam, fumavam,<br />
e as vozes prolongavam o ritual, adian<strong>do</strong> a sesta.<br />
Qnem indicou o restaurante ao jovem Halím <strong>foi</strong> um<br />
amigo que se dizia poeta, um certo Abbas, que tinha mora-<br />
<strong>do</strong> no Acre e agora vivia navegan<strong>do</strong> no Amazonas, entre<br />
Manaus, Santarém e Belém. Halim passou a freqüentar o<br />
Biblos aos sába<strong>do</strong>s, depois ia todas as manhãs, beliscava<br />
Llma posta de peixe, uma berinjela recheada, um pedaço de<br />
nlacaxeira frita; tirava <strong>do</strong> bolso a garrafinha de arak, bebia e<br />
sH fartava de tanto olhar para Zana. Passou meses assim: so-<br />
zinho num canto da sala, agita<strong>do</strong> ao ver a filha de Galib,<br />
acompanhan<strong>do</strong> com o olhar os passos da gazela. Contem-<br />
plava-a, o rosto ansioso, à espera de um milagre que não<br />
acontecia. Ia pescar nos lagos e trazia tucunarés e postas de<br />
Surubim para Galib. O <strong>do</strong>no <strong>do</strong> Biblos lhe agradecia, não<br />
cobrava o almoço, e Halim se entusiasmava com essa inti-<br />
znidade que ainda não bastava para aproximá-lo de Zana.<br />
Um día, Abbas viu o amigo na loja Rouaix, perto <strong>do</strong><br />
Restaurante Avenida, no centro de Manaus. Halim queria<br />
comprar um chapéu de mulher, francês, que Marie Rouaix<br />
lhe venderia a prestação. Abbas se antecipou a madame<br />
Rouaix, cutucou o amigo, saíram da loja e foram ao Café<br />
Polar, perto <strong>do</strong> Teatro Amazonas. Conversaram. Halim de-<br />
Sabafou, e Abbas sugeriu que desse a Zana um gazal, não<br />
urn chapéu.<br />
"Sai mais barato", disse o poeta, "e certas palavras não<br />
saem da moda."<br />
Abbas escreveu em árabe um gazal com quinze dísticos,<br />
que ele mesmo traduziu para o <strong>por</strong>tuguês. Halim leu e re-<br />
leu os versos rima<strong>do</strong>s: lua com nua, amên<strong>do</strong>a com tenda,
amada com almofada. Pôs as folhas de papel num envelope<br />
e no dia seguinte fìngiu esquecê-lo na mesa <strong>do</strong> restaurante.<br />
Passou uma semana sem dar as caras no Biblos, e quan<strong>do</strong><br />
reapareceu no restaurante, Galib lhe devolveu o envelope:<br />
"Esqueceu na mesa, <strong>por</strong> pouco não jogamos fora. Es-<br />
tava pescan<strong>do</strong>?"<br />
Ele não respondeu; abriu o envelope e passou a ler em<br />
voz baixa os gazais de Abbas. Galib ouvia com atenção, mas<br />
o burburinho <strong>do</strong>s clientes abafava a voz de Halim. Zana não<br />
andava <strong>por</strong> ali, e ele parou de ler antes <strong>do</strong> fim, já decep-<br />
ciona<strong>do</strong>.<br />
"Lin<strong>do</strong>s poemas", elogiou Galib. "Uma mulher sentiria<br />
essas palavras na carne."<br />
Palavras na carne, repetiu Halim, enquanto saía <strong>do</strong> Bi-<br />
blos. Ele relia os gazais de Abbas no intervalo <strong>do</strong> trabalho.<br />
Às seis da manhã já estava venden<strong>do</strong> seus badulaques nas<br />
ruas e praças de Manaus, nas estações e mesmo dentro <strong>do</strong>s<br />
bondes; só parava de mascatear <strong>por</strong> volta das oito da noite;<br />
depois passava no Café Polar, antes de voltar para o quarto<br />
da Pensão <strong>do</strong> Oriente.<br />
Na madrugada de uma sexta-feira encontrou Cid Tan-<br />
nus, um corteja<strong>do</strong>r das últimas polacas e francesas que<br />
ainda moravam na cidade decadente. Beberam o vinho que<br />
49<br />
Tannus comprara de marinheiros franceses e italianos. De-<br />
pois chegou Abbas, ainda sóbrio, mas anima<strong>do</strong> com outras<br />
encomendas de gazais. Bateu nas costas de Halim: "E então,<br />
paisano? Que cara é essa?". Abbas, diante da ameaça de<br />
um fracasso, cochichou no ouvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> amigo: "Os gazais são<br />
convincentes, a paciência é poderosa, mas o coração de um<br />
tími<strong>do</strong> não conquista ninguém". Pediu duas garrafas de vi-<br />
nho, entregou-as a Halim e disse: "Amanhã, sába<strong>do</strong>, <strong>do</strong>is<br />
litros de vinho e... felicidades, paisano!".<br />
Enfim, Halim decidiu agir, cheio da coragem exacerba-<br />
da pelo vinho. Ele se exaltava quan<strong>do</strong>, nas nossas conver-<br />
sas, me contava os detalhes da conquista amorosa. "Ah...<br />
a ânsia e o transe que tomaram conta de mim naquela ma-<br />
nhã", disse-me.<br />
As rimas de Abbas: louco com a<strong>foi</strong>to. O que mais que-<br />
ria Zana? Então, na manhã daquele sába<strong>do</strong>, Halim entrou<br />
cambalean<strong>do</strong> no Biblos. Os olhos dele fisgaram a moça no<br />
meio da sala. O viúvo Galib notou o fogo no visitante. Fi-<br />
cou paralisa<strong>do</strong>, o peixe de boca aberta e olhos salta<strong>do</strong>s na<br />
bandeja equilibrada na mão esquerda. Talheres silencia-<br />
ram, rostos viraram-se para Halim. As pás <strong>do</strong> ventila<strong>do</strong>r, o<br />
único zuni<strong>do</strong> no mormaço da sala. Ele deu três passos na<br />
direção de Zana, aprumou o corpo e começou a declamar<br />
os gazais, um <strong>por</strong> um, a voz firme, grave e melodiosa, as<br />
mãos em gestos de enlevo. Não parou, não pôde parar de<br />
declamar, a timidez vencida pela torrente da paixão, pelo<br />
ar<strong>do</strong>r que irrompe subitamente. Zana, a moça de quinze<br />
anos, ficou estonteada, buscou refúgio junto ao pai. O zu-<br />
ni<strong>do</strong> <strong>do</strong> ventila<strong>do</strong>r <strong>foi</strong> abafa<strong>do</strong> <strong>por</strong> murmúrios; alguém riu,<br />
muitos riram, mas as gaitadas não alteraram a expressão<br />
<strong>do</strong> rosto de Halim. Tinha o olhar concentra<strong>do</strong> em Zana, e os<br />
<strong>por</strong>os to<strong>do</strong>s da pele expeliam o vinho da felicidade. Tími<strong>do</strong>,<br />
mas corajoso num rompante, nem ele mesmo soube como
atravessou a sala e segurou o braço de Zana, cochichou-lhe<br />
alguma coisa e se afastou, de frente para ela, encaran<strong>do</strong>-<br />
a com o olhar devora<strong>do</strong>r, dócil e cheio de promessas. Per-<br />
maneceu assim até que as risadas cessaram, e um silêncio<br />
solene deu mais força e senti<strong>do</strong> ao olhar de Halim. Ninguém<br />
o molestou, nenhuma voz surgiu naquele momento. Então<br />
ele se retirou <strong>do</strong> Biblos. E <strong>do</strong>is meses depois voltou como<br />
esposo de Zana.<br />
Os gazais de Abbas na boca <strong>do</strong> Halim! Parecia um sufi<br />
em êxtase quan<strong>do</strong> me recitava cada par de versos rima<strong>do</strong>s.<br />
Contemplava a folhagem verde e umedecida, e falava com<br />
força, a voz vin<strong>do</strong> de dentro, pronuncian<strong>do</strong> cada sílaba da-<br />
quela poesia, celebran<strong>do</strong> um instante <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Eu não<br />
compreendia os versos quan<strong>do</strong> ele falava em árabe, mas<br />
ainda assim me emocionava: os sons eram fortes e as pala-<br />
vras vibravam com a entonação da voz. Eu gostava de ou-<br />
vir as histórias. Hoje, a voz me chega aos ouvi<strong>do</strong>s como<br />
sons da memória ardente. As vezes ele se distraía e falava<br />
em árabe. Eu sorria, fazen<strong>do</strong>-lhe um gesto de incompreen-<br />
são: "É bonito, mas não sei o que o senhor está dizen<strong>do</strong>".<br />
Ele dava um tapinha na testa, murmurava: "É a velhice, a<br />
gente não escolhe a língua na velhice. Mas tu podes apren-<br />
der umas palavrinhas, queri<strong>do</strong>".<br />
A intimidade com os filhos, isso o Halim nunca teve.<br />
Uma parte de sua história, a valentia de uma vida, nada<br />
disso ele contou aos gêmeos. Ele me fazia revelações em<br />
dias esparsos, aos pedaços, "como retalhos de um teci<strong>do</strong>".<br />
5i<br />
Ouvi esses "retalhos", e o teci<strong>do</strong>, que era vistoso e forte, <strong>foi</strong><br />
se desfibran<strong>do</strong> até esgarçar.<br />
Ele padeceu. Ele e muitos imigrantes que chegaram<br />
com a roupa <strong>do</strong> corpo. Mas acreditava, bêba<strong>do</strong> de idealis-<br />
mo, no amor excessivo, extático, com suas metáforas luna-<br />
res. Um romântico tardio, um tanto desloca<strong>do</strong> ou anacrô-<br />
nico, alheio às aparências poderosas que o ouro e o roubo<br />
propiciam. Talvez pudesse ter si<strong>do</strong> poeta, um flâneur da<br />
província; não passou de um modesto negociante possuí<strong>do</strong><br />
de fervor passional. Assim viveu, assim o encontrei tantas<br />
vezes, pitan<strong>do</strong> o bico <strong>do</strong> narguilé, pronto para revelar pas-<br />
sagens de sua vida que nunca contaria aos filhos.<br />
Logo to<strong>do</strong>s na cidade souberam: Halim se embeiçara<br />
<strong>por</strong> Zana. As cristãs maronitas de Manaus, velhas e moças,<br />
não aceitavam a idéia de ver Zana casar-se com um muçul-<br />
mano. Ficavam de vigília na calçada <strong>do</strong> Biblos, encomen-<br />
davam novenas para que ela não se casasse com Halim.<br />
Diziam a Deus e o mun<strong>do</strong> fuxicos assim: que ele era um<br />
mascateiro, um teque-teque qualquer, um rude, um mao-<br />
metano das montanhas <strong>do</strong> sul <strong>do</strong> Líbano que se vestia como<br />
um pé-rapa<strong>do</strong> e matraqueava nas ruas e praças de Manaus.<br />
Galib reagiu, enxotou as beatas: que deixassem sua filha em<br />
paz, aquela ladainha prejudicava o movimento <strong>do</strong> Biblos.<br />
Zana se recolheu ao quarto. Os clientes queriam vê-la, e o<br />
assunto <strong>do</strong> almoço era só este: a reclusão da moça, o amor<br />
louco <strong>do</strong> "maometano". Inventaram que Halim havia ofe-<br />
reci<strong>do</strong> um <strong>do</strong>te ao viúvo, e outras lorotas, mais mal<strong>do</strong>sas,<br />
vozes de to<strong>do</strong>s os cantos ricochetean<strong>do</strong> aqui e ali. Praga de<br />
palavras: cada um inventa duas e to<strong>do</strong>s acreditam.
"Ah, essas paixões na província", ria Halim. "É como<br />
estar no palco de um teatro, ouvin<strong>do</strong> a platéia vaiar <strong>do</strong>ïs<br />
atores, os <strong>do</strong>is amantes. E quanto mais vaiavam, mais eu<br />
perfumava o lençol da primeira noite."<br />
Zana não escutava vaias nem conselhos; escutava sua<br />
própria voz recitar os gazais de Abbas. Assim, duas sema-<br />
nas, indecisa: nem sim nem não. Ela era a pérola <strong>do</strong> pai,<br />
que lhe levava as refeições, contava-lhe as novidades <strong>do</strong><br />
dia, as histórias <strong>do</strong>s clientes, um recente assassinato que<br />
abalara a cidade. Ele não tocava no assunto <strong>do</strong> Halim, e<br />
ela, com o olhar, pedia para decidir sozinha.<br />
Tempos depois, entendi <strong>por</strong> que Zana deixava Halim<br />
falar sobre qualquer assunto. Ela esperava, a cabeça meio<br />
inclinada, o rosto sereno, e então falava, <strong>do</strong>na de si, uma<br />
só vez, palavras em cascata, com a confiança de uma carto-<br />
mante. Foi assim desde os quinze anos. Era possuída <strong>por</strong><br />
uma teimosia silenciosa, matutada, uma insistência em fo-<br />
go bran<strong>do</strong>; depois, armada <strong>por</strong> uma convicção poderosa,<br />
golpeava ferinamente e decidia tu<strong>do</strong>, deixan<strong>do</strong> O outro es-<br />
tatela<strong>do</strong>. Assim fez. Solitária, reclusa entre quatro paredes,<br />
extasiada com os gazais de Abbas, Zana <strong>foi</strong> falar com o pai.<br />
Já havia decidi<strong>do</strong> casar-se com Halim, mas tinham de mo-<br />
rar em casa, nesta casa, e <strong>do</strong>rmir no quarto dela. Fez a exi-<br />
gência ao Halim na frente <strong>do</strong> pai. E fez outra: tinham de<br />
casar diante <strong>do</strong> altar de Nossa Senhora <strong>do</strong> Líbano, com a<br />
presença das maronitas e católicas de Manaus.<br />
Galib convi<strong>do</strong>u alguns amigos <strong>do</strong> <strong>por</strong>to da Catraia, das<br />
escadarias <strong>do</strong>s Remédios, pesca<strong>do</strong>res e peixeiros que abas-<br />
teciam o Biblos, e também compadres <strong>do</strong>s lagos da ilha <strong>do</strong><br />
Careiro e <strong>do</strong> paraná <strong>do</strong> Cambixe. Uma mistura de gente,<br />
de línguas, de origens, trajes e aparências. Juntaram-se na<br />
52 53<br />
igreja Nossa Senhora <strong>do</strong>s Remédios e juntos ouviram a ho-<br />
milia <strong>do</strong> padre Zoraier. Já era noitinha quan<strong>do</strong> apareceram<br />
Abbas e Cid Tannus, acompanha<strong>do</strong>s <strong>por</strong> duas cantoras de<br />
um cabaré da praça Pedro n. Não entraram na igreja, mas<br />
foram fotografa<strong>do</strong>s ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s noivos e participaram <strong>do</strong><br />
jantar no Biblos, que acabou numa festança embalada pela<br />
voz rouca de uma das cantoras e pelas caixas de vinho fran-<br />
cês ofertadas <strong>por</strong> Tannus.<br />
Halim me mostrou o álbum <strong>do</strong> casamento, de onde ti-<br />
rou uma fotografia que apreciava: ele, elegante, beijan<strong>do</strong> a<br />
moça morena, ambos cerca<strong>do</strong>s <strong>por</strong> orquídeas brancas: o bei-<br />
jo tão espera<strong>do</strong>, sem nenhum pu<strong>do</strong>r, nenhuma reverência<br />
às ratas de igreja e ao Zoraier: os lábios de Halim cola<strong>do</strong>s nos<br />
de Zana, que, assustada, os olhos abertos, não esperava um<br />
beijo tão voraz no altar. "Foi um beijo guloso e vingativo",<br />
disse-me Halim. "Calei aquelas matracas, e to<strong>do</strong>s os gazais<br />
<strong>do</strong> Abbas estavam naquele beijo."<br />
Então era isso, assim: ela, Zana, mandava e desman-<br />
dava na casa, na empregada, nos fillios. Ele, paciência só,<br />
um Jó apaixona<strong>do</strong> e ardente, aceitava, engolia cobras e la-<br />
gartos, sempre fazen<strong>do</strong> as vontades dela, e, mesmo na ve-<br />
lhice, miman<strong>do</strong>-a, "tocan<strong>do</strong> o alaúde só para ela", como<br />
costumava dizer.<br />
Mas era um demônio na cama e na rede. Ele me con-<br />
tou cenas de amor com a maior naturalidade, a voz pastosa,
pausada, a expressão libidinosa no rosto estria<strong>do</strong>, molha<strong>do</strong><br />
de suor, molha<strong>do</strong> pela lembrança das noites, tardes e ma-<br />
nhãs em que os <strong>do</strong>is se enrolavam na rede, o leito preferi<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> amor, ali onde os poderes de Zana se desmanchavam<br />
em melopéia de gozo e riso.<br />
"Algaravias <strong>do</strong> desejo", repetia Halim, citan<strong>do</strong> as pa-<br />
lavras de Abbas. Ele abanava o tabaco <strong>do</strong> narguilé, a fuma-<br />
ça cobria-lhe o rosto e a cabeça e o sumiço momentâneo de<br />
suas feições era acompanha<strong>do</strong> de um silêncio: o intervalo<br />
necessário para recuperar a perda de uma voz ou imagem,<br />
essas passagens da vida devoradas pelo tempo. Aos poucos,<br />
a fala voltava: membranas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> rompidas <strong>por</strong> súbitas<br />
imagens.<br />
Não viajaram. Passaram três noites no Hotel América,<br />
esquivos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, mergulha<strong>do</strong>s na ardência da paixão.<br />
Depois Halim quis passar uma noite ao ar livre, nas ca-<br />
choeiras <strong>do</strong> Tarumã, perto de Manaus. Quan<strong>do</strong> voltaram<br />
ao Biblos, Zana sugeriu ao pai que viajasse para o Líbano,<br />
revisse os parentes, a terra, tu<strong>do</strong>. Era o que Galib queria<br />
ouvir. E partiu, a bor<strong>do</strong> <strong>do</strong> Hildebrand, um colosso de navio<br />
que tantos imigrantes trouxe para a Amazônia. Galib, o<br />
viúvo. Dele só restou uma fotografia, muito antiga, o rosto<br />
com ar bonachão em fun<strong>do</strong> azula<strong>do</strong>, imitan<strong>do</strong> pintura; o<br />
bigode terminava em finas espirais, e o cabelo, uma juba<br />
grisalha, roçava a moldura <strong>do</strong>urada. Os olhos, graú<strong>do</strong>s, cres-<br />
ceram ainda mais no rosto da filha. A foto de Galib ficou<br />
pendurada na sala, para quem quisesse admirar.<br />
Ele preparou e serviu o último almoço: a festa de um<br />
homem que regressa à pátria. Já sonhava com o Mediter-<br />
râneo, com o país <strong>do</strong> mar e das montanhas. Sonhava com<br />
os Cedros, seu lugar. Para lá voltou, reencontrou partes dis-<br />
persas <strong>do</strong> clã, os que permaneceram, os que renunciaram<br />
a aventurar-se em busca de um outro lar. Zana recebeu<br />
duas cartas <strong>do</strong> pai: que estava moran<strong>do</strong> em Biblos, na<br />
mesma casa em que ela, Zana, havia nasci<strong>do</strong>. Ele festejava<br />
54 55<br />
a volta cozinhan<strong>do</strong> acepipes amazônicos: o pirarucu seco<br />
com farofa, tortas de castanha, coisas que levara <strong>do</strong> Ama-<br />
zonas. Duas cartas, depois nada. Em Biblos, <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> na<br />
casa perto <strong>do</strong> mar, ele morreu. Mas a notícia tar<strong>do</strong>u a che-<br />
gar, e, quan<strong>do</strong> Zana soube, se trancou no quarto <strong>do</strong> pai,<br />
como se ele ainda estivesse <strong>por</strong> ali. Depois balbuciou para<br />
o esposo: "Agora sou órfã de pai e mãe. Quero filhos, pelo<br />
menos três".<br />
"Chorava que nem uma viúva", disse-me Halim. "Se es-<br />
fregava nas roupas <strong>do</strong> pai, cheirava tu<strong>do</strong> o que tinha perten-<br />
ci<strong>do</strong> ao Galib. Ela se agarrou às coisas, e eu tentava dizer que<br />
as coisas não têm alma nem carne. As coisas são vazias...<br />
mas ela não me ouvia."<br />
Halim tragou, expeliu fumaça pelas narinas, tossiu rui-<br />
<strong>do</strong>samente. De novo, silenciou, e dessa vez eu não soube se<br />
era esquecimento ou pausa para meditar. Ele era assim: não<br />
tinha pressa para nada, nem para falar. Devia amar sem ân-<br />
sia, aos bocadinhos, como quem sabe saborear uma delícia.<br />
Como poderia enriquecer? Nunca poupou um vintém,<br />
esbanjava na comida, nos presentes para Zana, nas vonta-<br />
des <strong>do</strong>s filhos. Convidava os amigos para partidas de ga-
mão, o taule, e era uma festa, noitadas de grande demora,<br />
cheias de comilanças.<br />
"Voltar para a terra natal e morrer", suspirou Halim.<br />
"Melhor permanecer, ficar quieto no canto onde escolhemos<br />
viver."<br />
Duas semanas trancada no quarto, duas semanas sem<br />
<strong>do</strong>rmir com o Halim. Gritava o nome <strong>do</strong> pai, ator<strong>do</strong>ada, fo-<br />
ra de si, inacessível. Os vizinhos escutavam, tentavam con-<br />
solá-la, em vão.<br />
"O oceano, a travessia. .. Como tu<strong>do</strong> era tão distante! ",<br />
lamentou Halim. "Quan<strong>do</strong> alguém morria no outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>, era como se desaparecesse numa guerra, num nau-<br />
frágio. Nossos olhos não contemplavam o morto, não ha-<br />
via nenhum ritual. Nada. Só um telegrama, uma carta. . . A<br />
minha maior falha <strong>foi</strong> ter manda<strong>do</strong> o Yaqub sozinho para<br />
a aldeia <strong>do</strong>s meus parentes", disse com uma voz sussur-<br />
rante. "Mas Zana quis assim... ela decidiu."<br />
57<br />
56<br />
3<br />
Uma carta de Yaqub, pontual, chegava de São Paulo<br />
no fim de cada mês. Zana fazia da leitura um ritual, lia co-<br />
mo quem lê um salmo ou uma surata; a dicção, emociona-<br />
da, alternava com uma pausa, como se quisesse escutar a<br />
voz <strong>do</strong> filho distante. Domingas se lembrava dessas sessões<br />
de leituras. Eram tristes só em termos, <strong>por</strong>que Halim con-<br />
vidava os vizinhos e a leitura era pretexto para um jantar<br />
festivo. Domingas percebia essa artimanha de Halim. Sem<br />
festa, Zana ficaria deprimida, pensan<strong>do</strong> no frio que o filho<br />
sentia, na babugem que devia estar engolin<strong>do</strong>, coitadinho,<br />
na solidão das noites num quarto úmi<strong>do</strong> da Pensão Ve-<br />
neza, no centro de São Paulo. Com poucas palavras, Yaqub<br />
pintava o ritmo de sua vida paulistana. A solidão e o frio<br />
não o incomodavam; comentava os estu<strong>do</strong>s, a perturbação<br />
da metrópole, a seriedade e a devoção das pessoas ao tra-<br />
balho. De vez em quan<strong>do</strong>, ao atravessar a praça da Repú-<br />
blica, parava para contemplar a imensa seringueira. Gostou<br />
59<br />
de ver a árvore amazônica no centro de São Paulo, mas<br />
nunca mais a mencionou.<br />
As cartas iam revelan<strong>do</strong> um fascínio <strong>por</strong> uma vida no-<br />
va, o ritmo <strong>do</strong>s desgarra<strong>do</strong>s da família que vivem só. Agora<br />
não morava numa aldeia, mas numa metrópole.<br />
"Meu filho paulista", brincava Zana, orgulhosa e preo-<br />
cupada ao mesmo tempo. Temia que Yaqub nunca mais<br />
voltasse. Aos poucos, esse desgarra<strong>do</strong> <strong>foi</strong> apuran<strong>do</strong> sua<br />
capacidade de abstração. No sexto mês de vida paulistana<br />
começou a lecionar matemática. Abreviou as cartas, <strong>do</strong>is<br />
ou três parágrafos curtos, ou apenas um: mero sinal de vi-<br />
da e uma notícia que justificava a carta. Assim, sem alarde,<br />
quase em surdina, o jovem professor Yaqub noticiou seu<br />
ingresso na Universidade de São Paulo. Não ia ser matemá-<br />
tico, ia ser engenheiro. Um politécnico, calculista de estru-<br />
turas. Zana não entendeu direito o significa<strong>do</strong> da futura<br />
profissão <strong>do</strong> filho, mas engenheiro já bastava, e era muito.<br />
Um <strong>do</strong>utor. Os pais mandaram-lhe dinheiro e um telegra-<br />
ma; ele agradeceu as belas palavras e devolveu o dinheiro.
Entenderam que o filho nunca mais precisaria de um vin-<br />
tém. Mesmo se precisasse, não lhes pediria.<br />
As cartas rareavam e as notícias de São Paulo pareciam<br />
sinais de um outro mun<strong>do</strong>. O pouco que ele revelava não<br />
justificava o barulho que se fazia em casa. Um bilhete com<br />
palavras vagas podia originar um festejo. Zana aderiu à co-<br />
memoração, que no início era mensal e depois <strong>foi</strong> rarean-<br />
<strong>do</strong>, de mo<strong>do</strong> que as poucas linhas enviadas <strong>por</strong> Yaqub pas-<br />
savam <strong>por</strong> Manaus como um cometa de brilho páli<strong>do</strong>. Os<br />
acenos intermitentes da metrópole: o dia-a-dia na Pensão<br />
Veneza, os cinemas da São João, os passeios de bonde, o<br />
burburinho <strong>do</strong> viaduto <strong>do</strong> Chá e os sisu<strong>do</strong>s mestres engra-<br />
vata<strong>do</strong>s, venera<strong>do</strong>s <strong>por</strong> Yaqub. Na primeira foto que enviou,<br />
trajava paletó e gravata e tinha o ar posu<strong>do</strong> que lembrava<br />
o espadachim no desfile da Independência.<br />
"Como está diferente daquele montanhês que vi no<br />
Rio", comentou Halim, miran<strong>do</strong> a imagem <strong>do</strong> filho.<br />
"O montanhês é o teu filho", disse Zana. "O meu é ou-<br />
tro, é esse futuro <strong>do</strong>utor em frente <strong>do</strong> Teatro Municipal."<br />
Um outro Yaqub, usan<strong>do</strong> a máscara <strong>do</strong> que havia de<br />
mais moderno no outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil. Ele se sofisticava,<br />
preparan<strong>do</strong>-se para dar o bote: minhoca que se quer ser-<br />
pente, algo assim. Conseguiu. Deslizou em silêncio sob a<br />
folhagem.<br />
Por fora, era realmente outro. Por dentro, um mistério<br />
e tanto: um ser cala<strong>do</strong> que nunca pensava em voz alta.<br />
Cresci ven<strong>do</strong> as fotos de Yaqub e ouvin<strong>do</strong> a mãe dele<br />
ler suas cartas. Numa das fotos, posou com a farda <strong>do</strong> Exér-<br />
cito; outra vez uma espada, só que agora a arma de <strong>do</strong>is<br />
gumes dava mais poder ao corpo <strong>do</strong> oficial da reserva. Du-<br />
rante anos, essa imagem <strong>do</strong> galã farda<strong>do</strong> me impressionou.<br />
Um oficial <strong>do</strong> Exército, e futuro engenheiro da Escola Po-<br />
litécnica. . .<br />
Já Omar era presente demais: seu corpo estava ali, <strong>do</strong>r-<br />
min<strong>do</strong> no alpendre. O corpo participava de um jogo entre a<br />
inércia da ressaca e a euforia da farra noturna. Durante a<br />
manhã, ele se esquecia <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, era um ser imóvel, em-<br />
brulha<strong>do</strong> na rede. No começo da tarde, rugia, faminto, bon<br />
vivant em tempo de penúria. Era, na aparência, indiferente<br />
60 6i<br />
ao êxito <strong>do</strong> irmão. Não participava da leitura das cartas,<br />
ignorava o oficial da reserva e futuro politécnico. No entan-<br />
to, mangava das fotografias expostas na sala. "Um lesão<br />
com pinta de im<strong>por</strong>tante", ele dizia, e com uma voz tão pa-<br />
recida com a <strong>do</strong> irmão que Domingas, assustada, procurava<br />
na sala um Yaqub de carne e osso. A mesma voz, a mesma<br />
inflexão. Na minha mente, a imagem de Yaqub era dese-<br />
nhada pelo corpo e pela voz de Omar. Neste habitavam os<br />
gêmeos, <strong>por</strong>que Omar sempre esteve <strong>por</strong> ali, expandin<strong>do</strong><br />
sua presença na casa para apagar a existência de Yaqub.<br />
Quan<strong>do</strong> Rânia beijava as fotos <strong>do</strong> irmão ausente, Omar fazia<br />
umas macacadas, se exibia, era um contorcionista tentan<strong>do</strong><br />
atrair a atenção da irmã. Mas a lembrança de Yaqub triunfa-<br />
va. As fotografias emitiam sinais fortes, poderosos de presen-<br />
ça. Yaqub sabia disso? Sempre com a expressão altaneira, o<br />
cabelo pentea<strong>do</strong>, o paletó impecável, as sobrancelhas grossas<br />
e arqueadas, e um sorriso sem vontade, difícil de compreen-
der. O duelo entre os gêmeos era uma centelha que prome-<br />
tia explodir.<br />
"Duelo? Melhor chamar de rivalidade, alguma coisa que<br />
não deu certo entre os gêmeos ou entre nós e eles", revelou-<br />
me Halim, miran<strong>do</strong> a seringueira centenária <strong>do</strong> quintal.<br />
Os gêmeos não nasceram logo depois da morte de Galib.<br />
Halim queria gozar a vida com Zana, queria tu<strong>do</strong>, viver tu<strong>do</strong><br />
com ela, só os <strong>do</strong>is, sidera<strong>do</strong>s pelo egoísmo da paixão. Ele<br />
exagerava a beleza dela e ria quan<strong>do</strong> falava isso: que ela fi-<br />
cava mais linda assim, enlutada, viúva <strong>do</strong> pai.<br />
Deita<strong>do</strong>s na rede, conversavam sobre Galib, a infância<br />
de Zana em Biblos, interrompida aos seis anos, quan<strong>do</strong> ela e<br />
o pai embarcaram para o Brasil. O pai a levava para banhar-<br />
se no Mediterrâneo, depois caminhavam juntos pelas al-<br />
deias, eles e um médico forma<strong>do</strong> em Atenas, o único <strong>do</strong>utor<br />
de Biblos; visitavam amigos e conheci<strong>do</strong>s, cristãos intimi-<br />
da<strong>do</strong>s e mesmo persegui<strong>do</strong>s pelos otomanos. Em cada casa<br />
visitada, o <strong>do</strong>utor atendia o enfermo e Galib preparava um<br />
prato de raro sabor. O homem que deixara a clientela <strong>do</strong><br />
restaurante manauara com água na boca já era um exímio<br />
cozinheiro na sua Biblos natal. Cozinhava com o que havia<br />
nas casas de pedra de Jabal al Qaraqif, Jabal Haous e Jabal<br />
Laqlouq, montanhas onde a neve brilhava sob a intensi-<br />
dade <strong>do</strong> azul. A beleza misteriosa, bíMlica, <strong>do</strong>s cedros mile-<br />
nares nas ondulações brancas, às vezes <strong>do</strong>uradas pelo sol<br />
invernal - ela fazia uma pausa, e os olhos, úmi<strong>do</strong>s, roça-<br />
vam o rosto de Halim. E quan<strong>do</strong> visitava uma casa à beira-<br />
mar, Galib levava seu peixe preferi<strong>do</strong>, o sultan ibrahim, que<br />
temperava com uma mistura de ervas cujo segre<strong>do</strong> nunca<br />
revelou. No restaurante manauara ele preparava temperos<br />
fortes com a pimenta-de-caiena e a murupi, misturava-as<br />
com tucupi e jambu e regava o peixe com esse molho. Havia<br />
outros condimentos, hortelã e zatar, talvez.<br />
"Ali naquele canto ele cultivava as ervas <strong>do</strong> Oriente",<br />
disse Halim, apontan<strong>do</strong> um quadra<strong>do</strong> de capim, ao la<strong>do</strong><br />
da seringueira.<br />
Enlutada, Zana se esquivava das carícias <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e<br />
voltava ao assunto, falan<strong>do</strong> na imagem <strong>do</strong> pai, no rosto <strong>do</strong><br />
pai, nos gestos <strong>do</strong> homem que a criara desde a morte de sua<br />
mãe. Passou um bom tempo sem tirar da boca o nome de<br />
Galib. Os sonhos que ela lhe contava: pai e filha abraça<strong>do</strong>s<br />
à beira-mar, entran<strong>do</strong> na água que levou a mãe dela. Os<br />
<strong>do</strong>is, juntos no sonho, sempre perto <strong>do</strong> mar, contemplan<strong>do</strong><br />
62<br />
o roche<strong>do</strong> escuro como um navio encalha<strong>do</strong>, enferruja<strong>do</strong>.<br />
Relembrou o dìa em que leu para o pai os gazaís e disse, à<br />
queima-roupa, sem um triz de hesitação: "Vou me casar<br />
com esse Halim".<br />
"Passei meses assim, rapaz", ele disse balançan<strong>do</strong> a ca-<br />
beça. "Quatro, cinco meses, nem sei mais. Pensei que ela<br />
não gostava mais de mim, pensei em levá-la a Biblos, de-<br />
senterrar o Galib e dizer para ela: Pica com os ossos <strong>do</strong> teu<br />
pai, ou então vamos levar essa ossada para o Brasil, aí tu<br />
conversas com os restos dele até o fim da vida."<br />
Não, não disse nada disso. Esperou: paciente, insístente<br />
na paciência. Então ela sugeriu que abrissem um pequeno<br />
comércio na rua <strong>do</strong>s Barés, entre o <strong>por</strong>to e a igreja. Ali o
movímento era de multidão: um vaivém noite e dia. Pecha-<br />
riam o restaurante, <strong>por</strong>que to<strong>do</strong>s aqueles clientes, com suas<br />
ane<strong>do</strong>tas obscenas, histórias de naufrágio e seres encanta-<br />
<strong>do</strong>s, Iembravam-lhe o pai. Halim concor<strong>do</strong>u. Concordava<br />
com tu<strong>do</strong>, desde que to<strong>do</strong>s os assentimentos terminassem<br />
na rede ou na cama ou mesmo no tapete da sala.<br />
Na época em que abríram a loja, uma freira, Irmãzinha<br />
de Jesus, ofereceu-lhes uma órfã, já batizada e alfabetizada.<br />
Domingas, uma beleza de cunhantã, cresceu nos fun<strong>do</strong>s<br />
da casa, onde havia <strong>do</strong>ís quartos, separa<strong>do</strong>s <strong>por</strong> árvores e<br />
palmeiras.<br />
"Uma menina mirrada, que chegou com a cabeça cheia<br />
de piolhos e rezas cristãs", lembrou Halim. "Andava descal-<br />
ça e tomava bênção da gente. Parecia uma menina de boas<br />
maneiras e bom humor: nem melancólica, nem apresentada.<br />
Durante um tempinho, ela nos deu um trabalho dana<strong>do</strong>,<br />
mas Zana gostou dela. As duas rezavam juntas as orações<br />
que uma aprendeu em Bíblos e a outra no orfanato das freí-<br />
ras, aqui em Manaus." Halim sorriu ao comentar a aproxi-<br />
mação da esposa com a índia. "O que a religìão é capaz de<br />
fazer", ele disse. "Pode aproximar os opostos, o céu e a ter-<br />
ra, a empregada e a patroa."<br />
Um pequeno milagre, desses que servem para a família<br />
e as gerações vin<strong>do</strong>uras, pensei. Domingas serviu; e só não<br />
serviu mais <strong>por</strong>que a vi morrer, quase tão mirrada como no<br />
dia em que chegou a casa, e, quem sabe, ao mun<strong>do</strong>. Ela se<br />
assustava com o estardalhaço que os patrões faziam na hora<br />
<strong>do</strong> amor, e se impressionava como Zana, tão devota, se en-<br />
tregava com tanta fúria a Halim.<br />
"Parece que toda a tara <strong>do</strong> corpo deles aparece nessa<br />
hora", disse-me Domingas, numa tarde em que enxaguava<br />
no tanque os lençóis <strong>do</strong>s patrões.<br />
Com o tempo, ela acabou <strong>por</strong> se acostumar com os <strong>do</strong>is<br />
corpos acasala<strong>do</strong>s, escandalosos, que não tinham hora nem<br />
lugar para o encontro. Nas manhãs de <strong>do</strong>mingo Zana resis-<br />
tia aos galanteios de Haüm e corria para a igreja Nossa Se-<br />
nhora <strong>do</strong>s Remédios. Mas ao regressar a casa, com a alma<br />
pura e o gosto da hóstia no céu da boca, Halim a erguia na<br />
soleira da <strong>por</strong>ta e subía a escada carregan<strong>do</strong>-a no colo. E,<br />
enquanto subia, deixava as alpercatas e o roupão nos de-<br />
graus, e mais os sapatos, as meias, as anáguas e o vesti<strong>do</strong><br />
dela, de mo<strong>do</strong> que entravam quase nus na alcova aromada<br />
<strong>por</strong> orquídeas brancas.<br />
"Por Deus, nunca pude levar a sério o comércio", disse<br />
ele, num tom de falso lamento. "Não tinha tempo nem ca-<br />
beça para isso. Sei que fui displicente nos negócios, mas é<br />
que exagerava nas coisas <strong>do</strong> amor."<br />
g4 65<br />
Não queria trê5 filhos; aliás, se dependesse da vontade<br />
dele, não teria nenrium. Repetiu isso várias vezes, irrita<strong>do</strong>,<br />
morden<strong>do</strong> o bico d0 narguilé. Podiam viver sem chateação,<br />
sem preocupação, <strong>por</strong>que um casal enamora<strong>do</strong>, sem filhos,<br />
pode resistir à penrlria e a todas as adversidades. No entan-<br />
to, teve de ceder a0 silêncio da esposa e ao tom imperativo<br />
da frase posterior ao silêncio. Ela sabia insistir, sem estar-<br />
dalhaço:<br />
"Quer dizer qne vamos passar a vida sozinhos neste ca-
sarão? Nós <strong>do</strong>is e e5sa indiazinha no quintal? Quanto egoís-<br />
mo, Halim! "<br />
"Um filho é u~ desmancha-prazer", dizia ele, sério.<br />
"Três, queri<strong>do</strong>~ nês filhos, nem mais nem menos", ela<br />
insistia, manhosa, arman<strong>do</strong> a rede no quarto, espalhan<strong>do</strong><br />
as almofadas no cYlão, como ele gostava.<br />
uVão mudar a nossa vida, vão desarmar a nossa rede...",<br />
larnentava Halim.<br />
"Se meu pai estivesse vivo, não acreditaria nas tuas<br />
palavras."<br />
Halim recua~a quan<strong>do</strong> ela mencionava o pai, e Zana<br />
percebia isso. Ela não desistiu: alternava o silêncio com a<br />
perseverança, se entregava a Halim com promessas de mu-<br />
lher apaixonada. Ele não notou a ambigüidade da atitude<br />
de Zana? Deixou-se levar pelas noites de amor em que não<br />
faltavam frases dóceis e que sempre terminavam com a feli-<br />
cidade promissora de povoar o casarão de filhos.<br />
Yaqub e Omar nasceram <strong>do</strong>is anos depois da chegada<br />
de Domingas à casa. Halim se assustou ao ver os <strong>do</strong>is de<strong>do</strong>s<br />
da parteira anunCian<strong>do</strong> gêmeos. Nascerarn em casa, e Omar<br />
uns poucos minutos depois. O Caçula. O que a<strong>do</strong>eceu muito<br />
no~ primeiros meses de vida. E também um pouco mais es-<br />
curro e cabelu<strong>do</strong> que o outro. Cresceu cerca<strong>do</strong> <strong>por</strong> um zelo<br />
exccessivo, um mimo <strong>do</strong>entio da mãe, que via na compleição<br />
frá~gil <strong>do</strong> filho a morte iminente.<br />
Zana não se despegava dele, e o outro ficava aos cui-<br />
da.<strong>do</strong>s de Domingas, a cunhantã mirrada, meio escrava,<br />
m~eio ama, "louca para ser livre", como ela me disse certa<br />
ve•z, cansada, derrotada, entregue ao feitiço da família, não<br />
m.uito diferente das outras empregadas da vizinhança, alfa-<br />
betizadas, educadas pelas religiosas das missões, mas todas<br />
viven<strong>do</strong> nos fun<strong>do</strong>s da casa, muito perto da cerca ou <strong>do</strong><br />
rnuro, onde <strong>do</strong>rmiam com seus sonhos de liberdade.<br />
"Louca para ser livre." Palavras mortas. Ninguém se<br />
liberta só com palavras. Ela ficou aqui na casa, sonhan<strong>do</strong><br />
com uma liberdade sempre adiada. Um dia, eu lhe disse:<br />
Ao diabo com os sonhos: ou a gente age, ou a morte de re-<br />
pente nos cutuca, e não há sonho na morte. To<strong>do</strong>s os so-<br />
nhos estão aqui, eu dizia, e ela me olhava, cheia de pala-<br />
vras guardadas, ansiosa <strong>por</strong> falar.<br />
Mas ela não tinha coragem, quer dizer, tinha e não<br />
tinha; na dúvida, preferiu capitular, deixou de agir, <strong>foi</strong> to-<br />
mada pela inação. Pela inação e também pelo envolvimen-<br />
to com os gêmeos, sobretu<strong>do</strong> com a criança Yaqub, e, qua-<br />
tro anos depois, com Rânia. Com Yaqub <strong>foi</strong> mais forte: amor<br />
de mãe postiça, incompleto, talvez impossível. Zana se re-<br />
festelava no convívio com o outro, levava-o para toda par-<br />
te: passeios de bonde até a praça da Matriz, os bulevares, o<br />
Seringal Mirim, as chácaras da Vila Municipal; levava-o<br />
para ver os malabaristas <strong>do</strong> Gran Circo Mexicano, para brin-<br />
car nos bailes infantis <strong>do</strong> Rio Negro Clube, onde aos <strong>do</strong>is<br />
66 ~ 67<br />
anos ele <strong>foi</strong> fotografa<strong>do</strong> com a fantasia de sauim-de-coleira<br />
que ela, Zana, guar<strong>do</strong>u como relíquia.<br />
Domingas ficava com Yaqub, brincava com ele, dimi-<br />
nuída, regredin<strong>do</strong> à infância que passara à margem de um<br />
rio, longe de Manaus. Ela o levava para outros lugares:
praias formadas pela vazante, onde entravam nos barcos<br />
encalha<strong>do</strong>s, aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s na beira de um barranco. Passea-<br />
vam também pela cidade, in<strong>do</strong> de praça em praça até che-<br />
gar à ilha de São Vicente, onde Yaqub contemplava o Forte,<br />
trepava nos canhees, imitava a pose das sentinelas. Quan<strong>do</strong><br />
chovia, os <strong>do</strong>is se escondiam nos barcos de bronze da praça<br />
São Sebastião, contava Domingas, depois iam ver os ani-<br />
mais e peixes na praça das Acácias. Zana acreditava, mas de<br />
vez em quan<strong>do</strong> as palavras das vizinhas a deixavam em<br />
pânico. Essas cunhantãs malinavam as crianças: não havia<br />
casos de estrangulamento, de vampirismo, de envenena-<br />
mento, de maldades ainda piores? Mas logo Zana lembrava<br />
que rezavam juntas, veneravam o mesmo deus, os mesmos<br />
santos, e nisso elas se irmanavam. Nas horas da reza, em<br />
frente ao altar da sala, ficavam juntas, ajoelhadas, a<strong>do</strong>ran<strong>do</strong><br />
a santa de gesso que Domingas espanava todas as manhãs.<br />
Quan<strong>do</strong> os meninos nasceram, Halim passou <strong>do</strong>is me-<br />
ses sem poder tocar no corpo da Zana. Ele me contou como<br />
sofreu: achava um absur<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> de resguar<strong>do</strong>, e mais<br />
absurda ainda a devoção louca da esposa pelo Caçula. Ele<br />
passava o dia na loja, entreti<strong>do</strong> com os fregueses e os vadios<br />
que perambulavam pelos arre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> <strong>por</strong>to, ensinan<strong>do</strong>-os<br />
a jogar gamão, beben<strong>do</strong> arak no gargalo, como nos tempos<br />
da conquista amorosa, da recitação <strong>do</strong>s gazais de Abbas. As<br />
vezes voltava alegre, o bafo de anis na boca, e um ou <strong>do</strong>is<br />
dísticos de amor na ponta da língua, quem sabe assim ela<br />
não saía <strong>do</strong> resguar<strong>do</strong>. Por fim, convenci<strong>do</strong> de que o nasci-<br />
mento <strong>do</strong>s filhos havia interferi<strong>do</strong> em suas noites de amor<br />
tanto quanto a morte de Galib, lançou mão da mesma ma-<br />
nha, <strong>do</strong>s mesmos galanteios que tinha usa<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> da<br />
morte <strong>do</strong> sogro. Reconquistou Zana, mas deu adeus ao tem-<br />
po em que se arrepiavam 1de prazer em qualquer canto da<br />
casa ou <strong>do</strong> quintal.<br />
"Ali mesmo, debaixo da seringueira", apontou com o<br />
indica<strong>do</strong>r da mão enrugada, mas firme. "Era o nosso leito<br />
de folhas. Dava uma coceira danada, <strong>por</strong>que aquele canto<br />
<strong>do</strong> mato era cheio de urtigas. Foi assim até o nascimento<br />
<strong>do</strong>s gêmeos."<br />
Halim perdeu o sossego logo que os filhos começaram<br />
a andar. Mexiam no tabaco <strong>do</strong> narguilé, traziam calangos<br />
mortos para dentro de casa, enchiam as redes de urtigas e<br />
gafanhotos. Omar era mais ousa<strong>do</strong>: entrava no quarto <strong>do</strong>s<br />
pais durante a sesta e dava cambalhotas na cama até ex-<br />
pulsar Halim. Só aquietava quan<strong>do</strong> Zana saía <strong>do</strong> quarto<br />
para brincar com ele no quintal. Os <strong>do</strong>is sentavam à sombra<br />
da seringueira, enquanto Halim, irrita<strong>do</strong>, tinha vontade de<br />
trancar o Caçula no galinheiro aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> desde a partida<br />
de Galib. "Como penava com o Caçula, o pobre <strong>do</strong> Halim",<br />
disse Domingas, lembran<strong>do</strong>-se da época em que ele tentava<br />
apaziguar o filho. Quan<strong>do</strong> se enfezava, corria pela casa atrás<br />
<strong>do</strong> Omar, que trepava na jaqueira e ameaçava jogar uma<br />
jaca na cabeça <strong>do</strong> pai. Zana ria: "Pareces mais infantil <strong>do</strong><br />
que o Omar".<br />
Numa noite Halim acor<strong>do</strong>u com tosse e falta de ar.<br />
Acendeu o candeeiro, viu refletida no espelho <strong>do</strong> quarto<br />
68<br />
uma teia de aranha amarela, sentiu cheiro de fumaça e pen-
sou que o mosquiteiro ardia lentamente ao la<strong>do</strong> dele. Saltou<br />
da cama e viu o Caçula aninha<strong>do</strong> no corpo de Zana. Expul-<br />
sou-o <strong>do</strong> quarto aos gritos, acordan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, acusan-<br />
<strong>do</strong> Omar de incendiário, enquanto Zana repetia: "Foi um<br />
pesadelo, nosso filho nunca faria isso". Discutiram no meio<br />
da noite, até que ele saiu de casa baten<strong>do</strong> a <strong>por</strong>ta com fúria.<br />
Atrás dele correram Zana e Domingas, e o alcançaram per-<br />
to de um quiosque <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong> Municipal. Estava de pé,<br />
fuman<strong>do</strong>, olhan<strong>do</strong> os barcos pesqueiros ilumina<strong>do</strong>s que<br />
acabavam de atracar no <strong>por</strong>to da Escadaria. Disse às duas<br />
mulheres que voltaria mais tarde, e passou o resto da noite<br />
relembran<strong>do</strong> o pesadelo, o olhar nos barcos e no rio Negro,<br />
até que as vozes e os risos <strong>do</strong> alvorecer o devolveram à rea-<br />
lìdade. Estava descalço, de pijama, e os primeiros peixeiros<br />
da manhã pensaram que estivesse louco. Um deles o con-<br />
duziu para casa puxan<strong>do</strong>-o pelo braço como um sonâmbu-<br />
lo. Dormiu duas noites no depósito da loja, não su<strong>por</strong>tava a<br />
presença <strong>do</strong> filho na cama, não su<strong>por</strong>tava uma intromissão<br />
no leito conjugal. Depois, mais calmo, chegou a sugerir que<br />
fìzessem amor na presença de Omar. Zana, sem se alterar,<br />
disse: "Ótimo, na presença das crianças, da Domingas e da<br />
vizinhança. Aí eu anuncio que vamos ter mais um filho".<br />
Quan<strong>do</strong> Rânia nasceu, Halim já se conformara com o<br />
espaço limita<strong>do</strong> da alcova. Nas raras visitas de Zana à loja,<br />
ele mandava embora os fregueses e os joga<strong>do</strong>res, trancava<br />
as <strong>por</strong>tas e subia com ela para o pequeno depósito, onde<br />
uma janelinha dá para o rio Negro. Passavam horas ali, lon-<br />
ge <strong>do</strong>s três filhos e da órfã que os pajeava, longe das manhas<br />
e intromissões. Os <strong>do</strong>is a sós, como ele gostava. Uma brisa<br />
soprava <strong>do</strong> rio, trazen<strong>do</strong> o pitiú de peixe, o cheiro de frutas<br />
e pimenta. Ele gostava desse cheiro, que se misturava com<br />
outros: o suor <strong>do</strong>s corpos, o mofo <strong>do</strong>s teci<strong>do</strong>s encalha<strong>do</strong>s,<br />
das sandálias de couro, das redes de algodão, <strong>do</strong>s rolos de<br />
tabaco de corda. Ao reabrir a loja, comemorava o encontro<br />
fazen<strong>do</strong> uma liquidação das tralhas todas espalhadas no<br />
cubículo. Era uma festa, cada vez mais rara.<br />
Os filhos haviam se intrometi<strong>do</strong> na vida de Halim, e<br />
ele nunca se conformou com isso. No entanto, eram filhos,<br />
e conviveu com eles, contava-lhes histórias, cuidava deles<br />
em momentos esparsos. Levava-os para pescar no lago <strong>do</strong><br />
Puraquecoara, e remavam no paraná <strong>do</strong> Cambixe, onde<br />
Halim conhecia cria<strong>do</strong>res de ga<strong>do</strong>, <strong>do</strong>nos de fazen<strong>do</strong>las. Foi<br />
o que se poderia chamar de pai, só que um pai consciente<br />
de que os filhos tinham lhe rouba<strong>do</strong> um bom pedaço de<br />
privacidade e prazer. Anos depois, iriam roubar-lhe a sere-<br />
nidade e o bom humor. Ele advertia a esposa sobre o ex-<br />
cesso de mimo com o Caçula, a criança delicada que <strong>por</strong><br />
pouco não morrera de pneumonia.<br />
"Meu mico-preto, meu peludinho", Zana dizia a Omar,<br />
para desespero de Halim. O peludinho cresceu, e aos <strong>do</strong>ze<br />
anos já tinha a força e a coragem de um homem.<br />
"Fez os diabos, o Omar... mas não quero falar sobre<br />
isso", disse ele, fechan<strong>do</strong> as mãos. "Me dá raiva comentar<br />
certos episódios. E, para um velho como eu, o melhor é re-<br />
cordar outras coisas, tu<strong>do</strong> o que me deu prazer. É melhor<br />
assim: lembrar o que me faz viver mais um pouco."<br />
Calou sobre o episódio da cicatriz. Calou também sobre
a vida de Domingas. No entanto, depois de insistir muito,<br />
arranquei dela alguns minutos de confissão.<br />
4<br />
Eu não sabia nada de mim, como vim ao mun<strong>do</strong>, de<br />
onde tinha vin<strong>do</strong>. A origem: as origens. Meu passa<strong>do</strong>, de al-<br />
guma forma palpitan<strong>do</strong> na vida <strong>do</strong>s meus antepassa<strong>do</strong>s, na-<br />
da disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal da<br />
origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco<br />
num rio deserto, até que uma das margens a acolhe. Anos<br />
depois, desconfiei: um <strong>do</strong>s gêmeos era meu pai. Domingas<br />
disfarçava quan<strong>do</strong> eu tocava no assunto; deixava-me cheio<br />
de dúvida, talvez pensan<strong>do</strong> que um dia eu pudesse desco-<br />
brir a verdade. Eu sofria com o silêncio dela; nos nossos pas-<br />
seios, quan<strong>do</strong> me acompanhava até o aviário da Matriz ou<br />
a beira <strong>do</strong> rio, começava uma frase mas logo interrompia e<br />
me olhava, aflita, vencida <strong>por</strong> uma fraqueza que coíbe a sin-<br />
ceridade. Muitas vezes ela ensaiou, mas titubeava, hesitava<br />
e acabava não dizen<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> eu fazia a pergunta, seu<br />
olhar logo me silenciava, e eram olhos tristes.<br />
Uma vez, na noite de um sába<strong>do</strong>, enervada, enfadada<br />
73<br />
pela rotina, ela quis sair de casa, da cidade. Pediu a Zana<br />
para passar o <strong>do</strong>mingo fora. A patroa estranhou, mas con-<br />
sentiu, desde que Domingas não voltasse tarde. Foi a única<br />
vez que saí de Manaus com minha mãe. Ainda estava escu-<br />
ro quan<strong>do</strong> ela chacoalhou minha rede; já tinha prepara<strong>do</strong> O<br />
café da manhã e cantava baixinho uma canção. Não queria<br />
acordar os outros, e estava ansiosa <strong>por</strong> partir. Caminhamos<br />
até o <strong>por</strong>to da Catraia e embarcamos num motor que ia le-<br />
var uns músicos para uma festa de casamento à margem<br />
<strong>do</strong> Acajatuba, afluente <strong>do</strong> Negro. Durante a viagem, Do-<br />
mingas se alegrou, quase infantil, <strong>do</strong>na de sua voz e <strong>do</strong> seu<br />
corpo. Sentada na proa, o rosto ao sol, parecía livre e dizia<br />
para mim: "Olha as batuíras e as jaçanãs", apontan<strong>do</strong> esses<br />
pássaros que triscavam a água escura ou chapinhavam<br />
sobre folhas de matupá; apontava as ciganas aninhadas<br />
nos galhos tortuosos <strong>do</strong>s aturiás e os jacamins, com uma<br />
gritaria estranha, cortan<strong>do</strong> em ban<strong>do</strong> o céu grandioso, pesa-<br />
<strong>do</strong> de nuvens. Minha mãe não se esquecera desses pássaros:<br />
reconhecia os sons e os nomes, e mirava, ansiosa, o vasto<br />
horizonte rio acima, relembran<strong>do</strong> o lugar onde nascera,<br />
perto <strong>do</strong> povoa<strong>do</strong> de São João, na margem <strong>do</strong> Jurubaxi,<br />
braço <strong>do</strong> Negro, muito longe dali. "O meu lugar", lembrou<br />
Domingas. Não queria sair de São João, não queria se afas-<br />
tar <strong>do</strong> pai e <strong>do</strong> irmão; ajudava as mulheres da vila a ralar<br />
mandioca e a fazer farinha, cuidava <strong>do</strong> irmão menor en-<br />
quanto o pai trabalhava na roça. A mãe dela... Domingas<br />
não se lembrava, mas o pai dizia: tua mãe nasceu em Santa<br />
Isabel, era bonita, dava rísadas alegres, nas festas <strong>do</strong> ajuri e<br />
nas noites dançantes era a mais bonita de todas. Um dia,<br />
bem cedinho, o pai saiu para cortar piaçaba e colher cas-<br />
tanha. Era junho, véspera de São João, a canoa com a ima-<br />
gem <strong>do</strong> santo se aproximava <strong>do</strong> rio, os gambeiros batiam<br />
tambor, cantavam e pediam esmola para São João. O po-<br />
voa<strong>do</strong> de Jurubaxi já se animava com rezas e danças, e das<br />
vilas vizinhas e até mesmo de Santa Isabel <strong>do</strong> rio Negro<br />
chegavam caboclos e índios para o festejo. Os sons <strong>do</strong> tam-
or foram abafa<strong>do</strong>s <strong>por</strong> grunhi<strong>do</strong>s, e então Domingas viu<br />
um <strong>por</strong>co-<strong>do</strong>-mato espernean<strong>do</strong>, tremen<strong>do</strong>, sufoca<strong>do</strong>, com<br />
baba no focinho, o cal<strong>do</strong> venenoso de mandioca brava.<br />
"Um homem jogou água fervente e deu umas cacetadas na<br />
cabeça <strong>do</strong> bícho e depois arrancou os pêlos para ser mo-<br />
quea<strong>do</strong>", contou Domingas. "Corri para dentro da tapera,<br />
onde meu irmão brincava. Fiquei ali, arrepiada de me<strong>do</strong>,<br />
choran<strong>do</strong>... Esperei meu pai... ele demorou... Ninguém<br />
sabia de nada."<br />
Não houve festa para ela. O pai tinha si<strong>do</strong> encontra<strong>do</strong><br />
morto num piaçabal. Ainda se lembrava <strong>do</strong> rosto dele, <strong>do</strong><br />
enterro no pequeno cemitério, na outra margem <strong>do</strong> Juru-<br />
baxi. Não se esquecía da manhã que partiu para o orfana-<br />
to de Manaus, acompanhada <strong>por</strong> uma freira das mïssões de<br />
Santa Isabel <strong>do</strong> rio Negro. As noites que ela <strong>do</strong>rmiu no or-<br />
fanato, as orações que tinha de decorar, e ai de quem se es-<br />
quecesse de uma reza, <strong>do</strong> nome de uma santa. Uns <strong>do</strong>is<br />
anos ali, aprenden<strong>do</strong> a ler e a escrever, rezan<strong>do</strong> de manhã-<br />
zinha e ao anoitecer, limpan<strong>do</strong> os banheiros e o refeitório,<br />
costuran<strong>do</strong> e bordan<strong>do</strong> para as quermesses das missões. As<br />
noites eram mais tristes, as internas não podiam se aproxi-<br />
mar das janelas, tinham de ficar caladas, deitadas na escu-<br />
ridão; às oito a irmã Damasceno abria a <strong>por</strong>ta, atravessava<br />
o <strong>do</strong>rmìtório, rondava as camas, parava perto de cada me-<br />
74 1• 75<br />
nina. O corpo da religiosa crescia, uma palmatória balan-<br />
çava na mão dela. Irmã Damasceno era alta, carrancuda,<br />
toda de preto, amedrontava a to<strong>do</strong>s. Domingas fechava os<br />
olhos e fingia <strong>do</strong>rmir, e se lembrava <strong>do</strong> pai e <strong>do</strong> irmão. Cho-<br />
rava quan<strong>do</strong> se lembrava <strong>do</strong> pai, <strong>do</strong>s bichinhos de madei-<br />
ra que fazia para ela, das cantigas que cantava para os fi-<br />
lhos. E chorava de raiva. Nunca mais ia ver o irmão, nunca<br />
pôde voltar para Jurubaxi. As freiras não deixavam, nin-<br />
guém podia sair <strong>do</strong> orfanato. As irmãs vigiavam o tempo<br />
to<strong>do</strong>. Espiava as alunas da Escola Normal passean<strong>do</strong> na<br />
praça, livres, em ban<strong>do</strong>s... namoran<strong>do</strong>. Dava vontade de<br />
fugir. Duas internas, as mais velhas, conseguiram escapar<br />
de madrugada: pularam o muro <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s, caíram no beco<br />
Simón Bolívar e sumiram no matagal. Foram corajosas.<br />
Domingas também pensou em fugir, mas as irmãs perce-<br />
beram, Deus vai castigar, diziam. O fe<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s banheiros, o<br />
cheiro de creolina, das roupas suadas e gosmentas das reli-<br />
giosas. Domingas não agüentava mais. Um dia a irmã Da-<br />
masceno ordenou: que tomasse um banho de verdade, la-<br />
vasse a cabeça com sabão de coco, cortasse as unhas <strong>do</strong>s<br />
pés e das mãos. Tinha que ficar limpa e cheirosa! Domingas<br />
vestiu uma saia marrom e uma blusa branca que ela mes-<br />
ma passou a ferro e engomou. A irmã pôs uma touca na<br />
cabeça dela e as duas saíram <strong>do</strong> orfanato, e caminharam<br />
até a avenida Joaquim Nabuco e entraram numa rua arbo-<br />
rizada que dá na praça Nossa Senhora <strong>do</strong>s Remédios. Para-<br />
ram diante de um sobra<strong>do</strong> antigo, pinta<strong>do</strong> de verde-escuro.<br />
No alto, bem no centro da fachada, um quadra<strong>do</strong> de azu-<br />
lejos <strong>por</strong>tugueses azuis e brancos com a imagem de Nossa<br />
Senhora da Conceição. Uma mulher jovem e bonita, de<br />
cabelo cachea<strong>do</strong>, veio recebê-las. "Trouxe uma cunhantã<br />
para vocês", disse a irmã. "Sabe fazer tu<strong>do</strong>, lê e escreve
direitinho, mas se ela der trabalho, volta para o internato e<br />
nunca mais sai de lá." Entraram na sala, onde havia mesi-<br />
nhas e cadeiras de madeira empilhadas num canto. "Tu<strong>do</strong><br />
isso pertencia ao restaurante <strong>do</strong> meu pai", disse a mulher,<br />
"mas agora a senhora pode levar para o orfanato." Irmã<br />
Damasceno agradeceu. Parecia esperar mais alguma coisa.<br />
Olhou para Domingas e disse: "Dona Zana, a tua patroa, é<br />
muito generosa, vê se não faz besteira, minha filha". Zana<br />
tirou um envelope <strong>do</strong> pequeno altar e o entregou à reli-<br />
giosa. As duas foram até a <strong>por</strong>ta e Domingas ficou sozinha,<br />
contente, livre daquela carrancuda. Se tivesse fica<strong>do</strong> no orfa-<br />
nato, ia passar a vida limpan<strong>do</strong> privada, lavan<strong>do</strong> anáguas,<br />
costuran<strong>do</strong>. Detestava o orfanato e nunca visitou as Irmã-<br />
zinhas de Jesus. Chamavam-na de ingrata, mal-agradecida,<br />
mas ela queria distância das religiosas, nem passava pela rua<br />
<strong>do</strong> arfanato. A visão <strong>do</strong> edifício a oprimia. As palmadas que<br />
levou da Damasceno! Não escolhia hora nem lugar para<br />
tacar a palmatória. Estava educan<strong>do</strong> as índias, dizia. Na casa<br />
da Zana o trabalho era pareci<strong>do</strong>, mas tinha mais liberdade...<br />
Rezava quan<strong>do</strong> queria, podia falar, discordar, e tinha o canto<br />
dela. Viu os gêmeos nascerem, cui<strong>do</strong>u <strong>do</strong> Yaqub, brincaram<br />
,juntinhos... Quan<strong>do</strong> viajou para o Líbano sentiu falta dele.<br />
Era quase um menino, não queria ir embora. Seu Halim <strong>foi</strong><br />
molenga com a mulher, deixou o filho viajar sozinho. "O<br />
Omar ficou debaixo da saia da mãe", contou Domingas. "Ia<br />
resmungar no meu quarto, chamava o seu Halim de egoís-<br />
ta... Os <strong>do</strong>is nunca se entenderam."<br />
Quan<strong>do</strong> desembarcamos na vilinha à margem <strong>do</strong> Aca-<br />
77<br />
76<br />
jatuba, minha mãe mu<strong>do</strong>u de feição. Não sei o que a fez<br />
tão sombria. Talvez uma cena <strong>do</strong> lugar, ou alguma coisa<br />
daquela vila, algo que lhe era penoso ver ou sentir. Não<br />
quis assistir ao casamento, muíto menos esperar a festa, o<br />
foguetôrio, a peixada ao ar livre, na beira <strong>do</strong> rio. Minha<br />
mãe tinha me<strong>do</strong> de chegar tarde em Manaus. Ou, quem<br />
sabe, me<strong>do</strong> de ficar ali para sempre, sôfrega, enredada em<br />
suas lembranças.<br />
Voltamos no mesma motor, com uns dez mora<strong>do</strong>res<br />
de Acajatuba que iam vender <strong>por</strong>cos, peixes, galinhas e<br />
mandioca em Manaus. Percebi que minha mãe faIava me-<br />
nos à medida que nos aproximávamos da cidade. Olhava<br />
as margens <strong>do</strong> rio, não dizia nada. Os vende<strong>do</strong>res vïgïavam<br />
seus anímaís, as galinhas se debatiam em gaiolas impro-<br />
visadas, os <strong>por</strong>cos estavam amarra<strong>do</strong>s uns aos outros. O<br />
fim da viagem <strong>foi</strong> horrível. Começou a chover quan<strong>do</strong> O<br />
motor passava perto <strong>do</strong> Tarumã. Uma tempestade, com ra-<br />
jadas de chuva grossa. Tu<strong>do</strong> ficou escuro, céu e río pare-<br />
ciam uma coisa só, e o barco balançava muito e saltava<br />
quan<strong>do</strong> cortava as ondas. A chuva inundava o convés e o<br />
passadiço, o comandante pediu que ficássemos deita<strong>do</strong>s.<br />
To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> começou a gritar, não havia bóias, o jeito era<br />
se agarrar à amurada. Minha mãe <strong>foi</strong> a prímeíra a vomitar.<br />
Depois <strong>foi</strong> a minha vez; nós <strong>do</strong>is despejamos tu<strong>do</strong>, provo-<br />
camos to<strong>do</strong> o café da manhã e os bolinhos de tapíoca que<br />
havíamos comi<strong>do</strong> na ida. Eu via to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> de boca aber-<br />
ta, aos prantos, vomitan<strong>do</strong> em cima de <strong>por</strong>cos e galinhas.
Ninguém entendia mais nada, a gritaria se misturava com<br />
grunhi<strong>do</strong>s e cacarejos, e eu tentava proteger minha mãe <strong>do</strong>s<br />
<strong>por</strong>cos que tremiam e esperneavam ao nosso la<strong>do</strong>. Solta-<br />
~am grunhi<strong>do</strong>s me<strong>do</strong>nhos, tentavam correr mas patinavam,<br />
e se amontoavam desespera<strong>do</strong>s, como se fossem morrer.<br />
Maïs de meia hora de trovoadas, rajadas de chuva e vento,<br />
eü pensava que íamos naufragar, depois não pensei maìs<br />
nada, de tanto enjôo. Só não expulsei a alma e os olhos, e<br />
isso parecia tu<strong>do</strong> o que me restava. Mamãe, coitada, ofe-<br />
gava, já não tinha força. Soluçava, babava de cabeça baixa<br />
e apertava minhas mãos. Eu fraquejava com a trepidação<br />
<strong>do</strong> barco, as golfadas que vinham <strong>do</strong> rio e <strong>do</strong> céu golpeavam<br />
meu corpo, mas não larguei minha mãe. Os animais não<br />
paravam de grítar, me deu vontade de jogá-los no rio, mas<br />
os <strong>do</strong>nos se agarravam às gaiolas, aos <strong>por</strong>cos, não podiam<br />
perder os bichos, eram o seu ganha-pão.<br />
Chegamos de noitinha, quan<strong>do</strong> ainda chovía muito. O<br />
cais <strong>do</strong> pequeno <strong>por</strong>to da Escadaria estava um lamaçal só,<br />
tivemos que saltar na beira da praia e caminhar entre as<br />
tendas de lona e barracas derrubadas. O nosso esta<strong>do</strong> era<br />
lamentável, estávamos ensopa<strong>do</strong>s, sujos, cheiran<strong>do</strong> a vô-<br />
mito. Entramos em casa pela <strong>por</strong>tinhola da cerca <strong>do</strong>s fun-<br />
<strong>do</strong>s. Domingas <strong>foi</strong> direto para o quarto, deitou-se na rede e<br />
me pediu que ficasse com ela. Cochilei no chão, marea<strong>do</strong>,<br />
com um gosto aze<strong>do</strong> na boca. No meio da noite acordei<br />
com a voz de Domíngas: se eu gostava de Yaqub, se eu me<br />
lembrava dele, <strong>do</strong> rosto. Não escutei mais nada. As cinco<br />
ela já estava pronta para ir ao Merca<strong>do</strong> Municipal.<br />
Nunca mais passeamos de barco: a viagem até Aca-<br />
jatuba <strong>foi</strong> a única que fiz com minha mãe. Pensei: <strong>por</strong><br />
pouco ela não teve força ou coragem para dizer alguma<br />
coisa sobre o meu pai. Esquivou-se <strong>do</strong> assunto e se esque-<br />
ceu das perguntas que me fízera na noite daquele <strong>do</strong>mingo.<br />
Jurou que não pronunciara o nome de Yaqub. No fun<strong>do</strong>,<br />
sabia que eu nunca ia deixar de indagar-lhe sobre os gê-<br />
meos. Talvez <strong>por</strong> um acor<strong>do</strong>, um pacto qualquer com Za-<br />
na, ou Halim, ela estivesse obrigada a se calar sobre qual <strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>is era meu pai.<br />
Depois da nossa viagem de barco Halim sugeriu que<br />
eu ocupasse o outro quartinho <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s. Disse a Domin-<br />
gas que eu já passara da idade de <strong>do</strong>rmir com a mãe no<br />
mesmo quarto, que ela devia se desgarrar um pouco de<br />
mim. Eu mesmo ajudei a limpar e a pintar o quartinho.<br />
Desde então, <strong>foi</strong> o meu abrigo, o lugar que me pertence<br />
neste quintal. Agora só escutava o eco da canção que mi-<br />
nha mãe cantava nas noites de insônia. As vezes, quan<strong>do</strong><br />
eu estava estudan<strong>do</strong> debruça<strong>do</strong> sobre uma mesinha, via o<br />
rosto de Domingas no vão da janela, o cabelo liso, de co-<br />
bre, sobre os ombros morenos, os olhos dirigi<strong>do</strong>s para mim,<br />
como se me pedisse para <strong>do</strong>rmir com ela, na mesma rede,<br />
nós <strong>do</strong>is abraça<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong> eu saía à noite pela cerca <strong>do</strong>s<br />
fun<strong>do</strong>s, ela me esperava, alerta, tal uma sentinela preocu-<br />
pada com alguma ameaça noturna. Ela temia que o meu<br />
destino confluísse para o de Omar, como <strong>do</strong>is rios indômi-<br />
tos e turbulentos: águas sem nenhum remanso.<br />
Aos <strong>do</strong>mingos, quan<strong>do</strong> Zana me pedia para comprar<br />
miú<strong>do</strong>s de boi no <strong>por</strong>to da Catraia, eu folgava um pouco,
passeava ao léu pela cidade, atravessava as pontes metá-<br />
licas, perambulava nas áreas margeadas <strong>por</strong> igarapés, os<br />
bairros que se expandiam àquela época, cercan<strong>do</strong> o cen-<br />
tro de Manaus. Via um outro mun<strong>do</strong> naqueles recantos,<br />
a cidade que não vemos, ou não queremos ver. Um mun-<br />
<strong>do</strong> escondi<strong>do</strong>, oculta<strong>do</strong>, cheio de seres que improvisavam<br />
so<br />
tu<strong>do</strong> para sobreviver, alguns vegetan<strong>do</strong>, feito a cachorrada<br />
esquálida que rondava os pilares das palafitas. Via mulhe-<br />
res cujos rostos e gestos lembravam os de minha mãe, via<br />
crianças que um dia seriam levadas para o orfanato que<br />
Domingas odiava. Depois caminhava pelas praças <strong>do</strong> cen-<br />
tro, ia passear pelos becos e ruelas <strong>do</strong> bairro da Aparecida<br />
e apreciar a travessia das canoas no <strong>por</strong>to da Catraia. O<br />
<strong>por</strong>to já estava anima<strong>do</strong> àquela hora da manhã. Vendia-se<br />
tu<strong>do</strong> na beira <strong>do</strong> igarapé de São <strong>Raimun<strong>do</strong></strong>: frutas, peixes,<br />
maxixe, quiabo, brinque<strong>do</strong>s de latão. O edifício antigo da<br />
Cervejaria Alemã cintilava na Colina, lá no outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
igarapé. Imenso, to<strong>do</strong> branco, atraía o meu olhar e parecia<br />
achatar os casebres que o cercavam. Mas a visão das deze-<br />
nas de catraias alinhadas impressionava mais. No meio da<br />
travessia já se sentia o cheiro de miú<strong>do</strong>s e vísceras de boi.<br />
Cheiro de entranhas. Os catraieiros remavam lentamente,<br />
as canoas emparelhadas pareciam um réptil imenso que se<br />
aproximava da margem. Quan<strong>do</strong> atracavam, os bucheiros<br />
descarregavam caixas e tabuleiros cheios de vísceras. Com-<br />
prava os miú<strong>do</strong>s para Zana, e o cheiro forte, os milhares de<br />
moscas, tu<strong>do</strong> aquilo me enfastiava, e eu me afastava da<br />
margem e caminhava até a ilha de São Vicente. Mirava o<br />
rio. A imensidão escura e levemente ondulada me aliviava,<br />
me devolvia <strong>por</strong> um momento a liberdade tolhida. Eu res-<br />
pirava só de olhar para o rio. E era muito, era quase tu<strong>do</strong><br />
nas tardes de folga. As vezes Halim me dava uns troca<strong>do</strong>s<br />
e eu fazia uma festa. Entrava num cinema, ouvia a grita-<br />
ria da platéia, ficava zonzo de ver tantas cenas movimenta-<br />
das, tanta luz na escuridão. Depois eu cochilava e <strong>do</strong>rmia,<br />
uma, duas sessões, e despertava com o lanterninha chacoa-<br />
8i<br />
lhan<strong>do</strong> meu ombro. Era o fim. O fim de todas as sessões,<br />
o fim <strong>do</strong> meu <strong>do</strong>mingo.<br />
podia freqüentar o interior da casa, sentar no sofá cin-<br />
zento e nas cadeiras de palha da sala. Era raro eu sentar à<br />
mesa com os <strong>do</strong>nos da casa, mas podia comer a comida de-<br />
les, beber tu<strong>do</strong>, eles não se im<strong>por</strong>tavam. Quan<strong>do</strong> não esta-<br />
va na escola, trabalhava em casa, ajudava na faxina, lim-<br />
pava o quintal, ensacava as folhas secas e consertava a cerca<br />
<strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s. Saía a qualquer hora para fazer compras, ten-<br />
tava poupar minha mãe, que também não parava um mi-<br />
nuto. Era um corre-corre sem fim. Zana inventava mil tare-<br />
fas <strong>por</strong> dia, não podia ver um cisco, um inseto nas paredes,<br />
no assoalho, nos móveis. A estátua da santa no pequeno<br />
altar tinha que ser lustrada to<strong>do</strong>s os dias, e uma vez <strong>por</strong><br />
semana eu subia à platibanda para limpar os azulejos da<br />
fachada. Além disso, havia os vizinhos. Eram uns folga-<br />
dões, pediam a Zana que eu lhes fizesse um favorzinho, e<br />
lá ia eu comprar flores numa chácara da Vila Municipal,<br />
uma peça de organza na Casa Colombo, ou entregar um
ilhete no outro la<strong>do</strong> da cidade. Nunca davam dinheiro<br />
para o trans<strong>por</strong>te, às vezes nem agradeciam. <strong>Este</strong>lita Rei-<br />
noso, a única realmente rica, era a mais pão-dura. Seu<br />
casarão era um luxo, as salas cheias de tapetes persas, ca-<br />
deiras e espelhos franceses; os copos e taças cintilavam na<br />
cristaleira, tu<strong>do</strong> devia ser limpo cem vezes <strong>por</strong> dia. O pên-<br />
dulo <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> brilhava, mas o relógio silenciara havia mui-<br />
to tempo. Para entrar na cozinha <strong>do</strong>s Reinoso eu tinha que<br />
tirar as sandálias, era a norma. Na casa moravam empre-<br />
gadas de quem <strong>Este</strong>lita falava horrores para Zana. Eram<br />
umas desastradas, desmazeladas, não serviam para nada!<br />
Não valia a pena educar aquelas cabocas, estavam todas<br />
perdidas, eram inúteis! O Calisto, um curumim meio par-<br />
ru<strong>do</strong> <strong>do</strong> cortiço <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s, cuidava <strong>do</strong>s animais <strong>do</strong>s Rei-<br />
noso, sobretu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s macacos, que guinchavam e saltitavam<br />
nos imensos cubos de arame <strong>do</strong> quintal. Eram diverti<strong>do</strong>s,<br />
dóceis, faziam gracejos para as visitas e não davam tanto<br />
trabalho. Os macacos amestra<strong>do</strong>s eram o tesouro vivo de<br />
<strong>Este</strong>lita. Com toda a tropa de serventes à sua disposição,<br />
aquela parasita era a vizinha que mais me atazanava. Pare-<br />
ce que fazia de propósito. "Zana", dizia com uma voz me-<br />
losa e falsa, "o teu menino pode apanhar uma talha de leite<br />
para mim?" Eu saía para buscar o leite e tinha vontade de<br />
mijar e cuspir na talha. As vezes, depois <strong>do</strong> almoço, quan<strong>do</strong><br />
me sentava para fazer uma tarefa da escola, escutava os<br />
estali<strong>do</strong>s <strong>do</strong> salto alto de <strong>Este</strong>lita ressoan<strong>do</strong> no assoalho de<br />
casa. As marteladas <strong>do</strong>s passos acordavam to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
Zana fechava a <strong>por</strong>ta <strong>do</strong> quarto para que a vizinha não<br />
escutasse os palavrões de Halim. Eu já sabia o que me espe-<br />
rava. Via o rosto sonolento to<strong>do</strong> pinta<strong>do</strong> e já borra<strong>do</strong> de<br />
suor, o cabelo arma<strong>do</strong> de laquê que nem uma cuia, e ouvia<br />
a voz gralhar que o forro cinzento <strong>do</strong> sofá estava mancha-<br />
<strong>do</strong>, o lustre fora de moda, o tapete esgarça<strong>do</strong>. Zana se dei-<br />
xava impressionar com o passa<strong>do</strong> de <strong>Este</strong>lita. O avô dela,<br />
um <strong>do</strong>s magnatas <strong>do</strong> Amazonas, aparecera na capa de uma<br />
revista norte-americana que a neta mostrava para to<strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>. Mostrava também as fotografias das embarcações<br />
da firma, que haviam navega<strong>do</strong> pelos rios da Amazônia<br />
venden<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong> aos ribeirinhos e <strong>do</strong>nos de seringais.<br />
82 ~ g3<br />
Numa roda de pessoas desconhecidas, ela começava a con-<br />
versa dizen<strong>do</strong>: "O rei da Bélgica se hospe<strong>do</strong>u em casa e<br />
passeou no iate <strong>do</strong> meu avô". Agora os Reinoso viviam <strong>do</strong>s<br />
imóveis aluga<strong>do</strong>s em Manaus e no Rio de Janeiro. A cada<br />
mês, na noite de um sába<strong>do</strong>, a casa de Eatelita virava um<br />
cassino, explodia de tanta luz, só eles na rua tinham gera-<br />
<strong>do</strong>r. Os vizinhos não eram convida<strong>do</strong>s a entrar no palacete<br />
ilumina<strong>do</strong>, ficavam na janela, entoca<strong>do</strong>s na escuridão, ad-<br />
miran<strong>do</strong> aquele chafariz de lâmpadas, tentan<strong>do</strong> adivinhar<br />
quem eram os convida<strong>do</strong>s. Naquelas noites, <strong>Este</strong>lita tinha<br />
a audácia de pedir a Zana baldes cheios de gelo. Certa vez<br />
pediu um rolo de gaze. Fui levar o gelo e a gaze, e fiquei<br />
curioso de saber quem estava feri<strong>do</strong> no palácio <strong>do</strong>s Reinoso.<br />
Antes de voltar, dei uma espiadela na sala onde iam jantar<br />
antes da jogatina. O rolo de gaze havia se transforma<strong>do</strong> em<br />
trouxinhas que os convida<strong>do</strong>s usavam para espremer o<br />
limão sobre o peixe. Contei a cena a Halim. "São finíssi-
mos, pertencem à nossa aristocracia", disse ele, "<strong>por</strong> isso<br />
a<strong>do</strong>ram aqueles macacos enjaula<strong>do</strong>s no quintal." Um dia<br />
encasquetei: me recusei a ser mensageiro <strong>do</strong>s Reinoso.<br />
Minha mãe não tinha coragem de dizer a Zana que eu não<br />
era um emprega<strong>do</strong> <strong>do</strong>s outros. Eu mesmo disse, exageran<strong>do</strong><br />
um pouco, contan<strong>do</strong> que <strong>Este</strong>lita atrapalhava a minha vida,<br />
que eu não tinha tempo para trabalhar em casa. Halim con-<br />
cor<strong>do</strong>u comigo. E muitos anos depois, quan<strong>do</strong> Zana expul-<br />
sou brutalmente <strong>Este</strong>lita de casa, dei umas gargalhadas na<br />
cara daquela megera.<br />
Com Talib era melhor, eu me dava bem com o viúvo.<br />
Ele pedia hortelã e cebolinha para o tempero da comida<br />
que as filhas preparavam. As vezes queria um pouco de ta-<br />
84<br />
baco e uma garrafinha de arak. Sempre me oferecia um<br />
lanche. "Entra, senta um pouco, queri<strong>do</strong>, vem provar o<br />
nosso quibe cru." Zahia era mais alta <strong>do</strong> que o pai e bem<br />
mais enxerida <strong>do</strong> que a irmã. Quan<strong>do</strong> Zahia requebrava<br />
ou cantava, Nahda imitava o saracoteio e a voz da outra. A<br />
mocinha tímida, toda retraída, abria a boca para grandes<br />
risadas, mostran<strong>do</strong> dentes tão brancos que brilhavam. As<br />
duas irmãs, juntinhas assim, eram belezas de estontear. Eu<br />
tinha a impressão de que eram incansáveis, não podiam<br />
ficar paradas um só minuto, faziam tu<strong>do</strong> na casa e ainda<br />
ajudavam o pai na taberna. Ao meio-dia, apareciam no alto<br />
da rua, fardadas, rebolan<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> passavam diante da<br />
casa de <strong>Este</strong>lita. Eu devorava o quibe cru sem tirar os olhos<br />
das pernas cruzadas de Zahia, cobertas de pêlos <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s.<br />
Torcia para que ela tirasse a farda e voltasse para a sala só<br />
de short e camiseta, e quan<strong>do</strong> isso acontecia eu me fartava<br />
de tanto olhar para o corpo dela. Talib me tacava uma ca-<br />
choleta: "Queres engolir minha filha, seu safa<strong>do</strong>?". Eu fica-<br />
va acabrunha<strong>do</strong>, Zahia dava uma risada. Não perdia uma<br />
noite em que elas dançavam em casa, onde eram rivais de<br />
Rânia e rebolavam como nunca. Na véspera <strong>do</strong> aniversário<br />
de Zana, Talib me chamava logo de manhã. "Leva esse cor-<br />
deiro para tua casa." Halim matava o animal, e minha mãe<br />
não agüentava ver o sangue esguichar <strong>do</strong> pescoço <strong>do</strong> bi-<br />
cho, tapava os ouvi<strong>do</strong>s, os bali<strong>do</strong>s eram tristes e deses-<br />
pera<strong>do</strong>s, o bichinho parecia gritar <strong>por</strong> socorro ou piedade.<br />
Domingas saía de perto, se escondia, morria de pena, coi-<br />
ta<strong>do</strong> <strong>do</strong> cordeirinho de Deus, ela dizia. A visão <strong>do</strong> carneiro<br />
ensangüenta<strong>do</strong>, pendura<strong>do</strong> ao galho da seringueira a entris-<br />
tecia. Desde pequeno me acostumei a esfolar e a destripar<br />
85<br />
cordeiro. Halim cortava a carne que Zana preparava com o<br />
tempero <strong>do</strong> fina<strong>do</strong> Galib. A cabeça era reservada a Talib,<br />
que a comia ensopada, com bastante alho. Eu passava o<br />
ano to<strong>do</strong> à espera <strong>do</strong> pernil: saboreava as minhas fatias e as<br />
de minha mãe, que raspava para mim os ossos <strong>do</strong> cordei-<br />
rinho de Deus.<br />
O que me dava um pouco de folga e certo prazer era<br />
uma tarefa que não chegava a ser um trabalho de verdade.<br />
Quan<strong>do</strong> as casas da rua explodiam de gritos, Zana me man-<br />
dava zarelhar pela vizinhança, eu cascavilhava tu<strong>do</strong>, roía<br />
os ossos apodreci<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s vizinhos. Era cobra nisso. Memo-<br />
rizava as cenas, depois contava tu<strong>do</strong> para Zana, que se de-
liciava, os olhos saltan<strong>do</strong> de tanta curiosidade: "Conta logo,<br />
menino, mas devagar... sem pressa". Eu me esmerava nos<br />
detalhes, inventava, fazia uma pausa, absorto, como se<br />
me esforçasse para lembrar, até dar o estalo: As mocinhas<br />
<strong>do</strong> viúvo Talib, não as filhas: as outras, que ele fisgava per-<br />
to <strong>do</strong>s armazéns. Certa vez as filhas o flagraram com uma<br />
cunhã atrás <strong>do</strong> balcão da Taberna Flores <strong>do</strong> Minho. Ele não<br />
esperava <strong>por</strong> isso, não acreditava que um dia os professo-<br />
res das filhas faltariam to<strong>do</strong>s ao mesmo tempo. Deram uma<br />
sova no pai, nós ouvíamos os urros <strong>do</strong> viúvo ecoan<strong>do</strong> no<br />
quarteirão, e quan<strong>do</strong> me aproximei da casa eu o vi deita<strong>do</strong><br />
na sala, escorja<strong>do</strong> sob os braços roliços e rijos das filhas, a<br />
voz de súplica repetin<strong>do</strong>: "Só estava me divertin<strong>do</strong> um<br />
pouquinho, filhas...". Apanhou das duas feito um con-<br />
dena<strong>do</strong>, elas morriam de ciúme, não admitiam vê-lo perto<br />
de uma mulher, temiam as visitas noturnas <strong>do</strong> solteirão Cid<br />
Tannus, cercavam o pai, ficavam de vigília, só o deixavam<br />
jogar bilhar na loja <strong>do</strong> Balma se Halim o acompanhasse.<br />
Mas quan<strong>do</strong> elas dançavam, Talib lagrimava de gozo, sua<br />
barriga tremia de tanto prazer. Ele as chamava "minhas<br />
guerreiras morenas, minhas lindas amazonas". Eram suas<br />
flores <strong>do</strong> Minho, <strong>por</strong>que a mãe nascera em Portugal.<br />
Na casa <strong>do</strong>s Reinoso era pior, Zana ficava sem fôlego,<br />
me pedia para contar tudinho. Quan<strong>do</strong> a confusão come-<br />
çava, os emprega<strong>do</strong>s ligavam o gera<strong>do</strong>r para abafar os<br />
guinchos <strong>do</strong>s macacos e os gritos de Abelar<strong>do</strong> Reinoso. A<br />
barulheira estremecia a rua, os curiosos corriam para ver<br />
<strong>Este</strong>lita espancar o esposo em plena manhã. Eu o via acua-<br />
<strong>do</strong>, de cócoras, num <strong>do</strong>s cantos <strong>do</strong> cubo de arame <strong>do</strong>s ma-<br />
cacos, onde ele ouvia xingamentos e ameaças de <strong>Este</strong>lita,<br />
tu<strong>do</strong> <strong>por</strong> causa da irmã dela, aquela enxerida, mãe da Lívia.<br />
<strong>Este</strong>lita ordenava às empregadas que não dessem nada<br />
àquele safa<strong>do</strong>: nem banana, nem água. "Vais mofar aí den-<br />
tro", ela gritava. "És uma péssima companhia para os meus<br />
macacos." Na manhã seguinte, a caminho da escola, eu<br />
trepava na mangueira <strong>do</strong> quintal de Talib para ver o pobre<br />
Abelar<strong>do</strong> agonia<strong>do</strong> no meio <strong>do</strong>s animais. Durante a noite<br />
o viúvo jogava biscoitos na jaula de arame, e via a sombra<br />
<strong>do</strong>s símios moven<strong>do</strong>-se como aranhas enormes ao re<strong>do</strong>r<br />
de Abelar<strong>do</strong>. <strong>Este</strong>lita não se im<strong>por</strong>tava com fuxicos. Era al-<br />
tiva, considerava-se superior aos vizinhos imigrantes, ali-<br />
mentava-se das lendas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> da famMia, e a visita <strong>do</strong><br />
rei da Bélgica não lhe saía da cabeça. Ostentava os colares<br />
e pulseiras de marfim que a avó ganhara <strong>do</strong> rei.<br />
Quan<strong>do</strong> a vizinhança apaziguava, Zana me mandava à<br />
taberna <strong>do</strong> Talib e a dez outros lugares para comprar uma<br />
coisinha de nada. Ela comprava fia<strong>do</strong>, só pagava no fim <strong>do</strong><br />
mês, desconfiava de mim e de to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Ralhava: "Não<br />
era isso que eu queria, volta corren<strong>do</strong> e traz o que te pedi".<br />
Eu tentava argumentar, mas não adiantava, ela era tei-<br />
mosa, se sentia melhor quan<strong>do</strong> dava ordens. Eu contava os<br />
segun<strong>do</strong>s para ir à escola, era um alívio. Mas faltava às<br />
aulas duas, três vezes <strong>por</strong> semana. Farda<strong>do</strong>, pronto para<br />
sair, a ordem de Zana azarava a minha manhã na escola:<br />
"Tens que pegar os vesti<strong>do</strong>s na costureira e depois passar<br />
no Au Bon Marché para pagar as contas". Eu bem podia<br />
fazer essas coisas à tarde, mas ela insistia, teimava. Eu atra-
sava as lições de casa, era repreendi<strong>do</strong> pelas professoras,<br />
me chamavam de cabeça-de-pastel, relapso, o diabo a qua-<br />
tro. Fazia tu<strong>do</strong> às pressas, e até hoje me vejo corren<strong>do</strong> da<br />
manhã à noite, louco para descansar, sentar no meu quar-<br />
to, longe das vozes, das ameaças, das ordens. E havia tam-<br />
bém Omar. Aí tu<strong>do</strong> se embrulhava, <strong>foi</strong> um inferno até o<br />
fim. Eu não podia comer à mesa com o Caçula. Ele queria<br />
a mesa só para ele, almoçava e jantava quan<strong>do</strong> tinha von-<br />
tade. Sozinho. Um dia, eu estava almoçan<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> ele se<br />
aproximou e deu a ordem: que eu saísse, fosse comer na<br />
cozinha. Halim estava <strong>por</strong> perto, me disse: "Não, come aí<br />
mesmo, essa mesa é de to<strong>do</strong>s nós". O Caçula bufava, de-<br />
pois se vingava de mim. Nunca su<strong>por</strong>tou me ver estudar<br />
noite adentro, concentra<strong>do</strong> no quartinho abafa<strong>do</strong>. As noi-<br />
tes eram a minha esperança remota. Quan<strong>do</strong> Omar esbor-<br />
niava, era um transtorno. Às vezes vinha tão chumba<strong>do</strong><br />
que perdia o equilbrio e tombava, anula<strong>do</strong>. Mas se entra-<br />
va meio lúci<strong>do</strong>, com força para mais algazarra, acordava as<br />
mulheres, e lá ia eu ajudar Zana e minha mãe_ "Traz uma<br />
bacia de água fria... O braço dele está sangran<strong>do</strong>... Corre,<br />
pega o mercurocromo!... Cuida<strong>do</strong> para não acordar o<br />
Halim... Ferve um pouco de água, ele precisa tomar um<br />
chá..." Não paravam de pedir coisas enquanto o Caçula<br />
se contorcia, arrotava, mandava to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> à merda, se<br />
exibia, era um touro, agarrava minha mãe, bolinava, dava-<br />
Ihe um tapinha na bunda e eu pulava em cima dele, que-<br />
ria esganá-lo, ele me tacava um safanão, depois um coice,<br />
e aí a gritaria era geral, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> se intrometia, Zana<br />
me despachava para o quarto, Domingas me socorria, cho-<br />
rava, me abraçava, Rânia enlaçava o irmão, "Pára com<br />
isso, pelo amor de Deus!", mas ele persistia, queria acabar<br />
rom a noite de to<strong>do</strong>s, escornar Deus e o mun<strong>do</strong>, acordar os<br />
mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> cortiço, da rua, <strong>do</strong> bairro. O que ele mais<br />
queria era a presença <strong>do</strong> pai. Halim raramente descia. Ele<br />
pigarreava, acendia a luz, víamos a sua sombra alongada,<br />
imensa na parede de cima. A sombra se movia, depois se<br />
aquietava, sumia. Ele batia a <strong>por</strong>ta, um estron<strong>do</strong>. No dia<br />
seguinte ninguém falava, to<strong>do</strong>s enfeza<strong>do</strong>s com to<strong>do</strong>s. Só<br />
mau humor, carranca. E ódio. Eu odiava aquelas noites em<br />
claro, as muitas noites que perdi <strong>por</strong> causa <strong>do</strong> Caçula. Os<br />
carões que levava de Zana <strong>por</strong>que eu não entendia o filho<br />
dela, coita<strong>do</strong>, tão desnortea<strong>do</strong> que nem conseguia estudar!<br />
Ela aproveitava a ausência de Halim e inventava tarefas<br />
pesadas, me fazia trabalhar em <strong>do</strong>bro, eu mal tinha tempo<br />
de ficar com minha mãe. Quantas vezes pensei em fugir!<br />
Uma vez entrei num navio italiano e me escondi, estava<br />
decidi<strong>do</strong>: ia embora, duas semanas depois desembarcaria<br />
em Gênova, e eu só sabia que era um <strong>por</strong>to na Itália. Tinha<br />
rompantes de fuga, podia embarcar para Santarém ou Be-<br />
lém, seria mais fácil. Olhava para to<strong>do</strong>s aqueles barcos e<br />
navios atraca<strong>do</strong>s no Manaus Harbour e adiava a partida.<br />
88 g9<br />
A imagem de minha mãe crescia na minha cabeça, eu não<br />
queria deixá-la sozinha nos fun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> quintal, não ia con-<br />
seguir... Ela nunca quis se aventurar. "Estás louco? Só de<br />
pensar me dá uma tremedeira, tens que ter paciência com<br />
a Zana, com o Omar, o Halim gosta de ti." Domingas caiu
no conto da paciência, ela que chorava quan<strong>do</strong> me via<br />
corren<strong>do</strong> e bufan<strong>do</strong>, faltan<strong>do</strong> aula, engolin<strong>do</strong> desaforos.<br />
Então, fiquei com ela, su<strong>por</strong>tei a nossa sina. E passei a me<br />
intrometer em tu<strong>do</strong>. Vi Halim e Zana de pernas para o ar,<br />
entregues a lambidas e beijos dana<strong>do</strong>s, cenas que eu via<br />
quan<strong>do</strong> tinha dez, onze anos e que me divertiam e me<br />
assustavam, <strong>por</strong>que Halim soltava urros e gaitadas, e ela,<br />
Zana, com aquela cara de santa no café da manhã, era uma<br />
diaba na cama, um vulcão erotiza<strong>do</strong> até o de<strong>do</strong> mindinho.<br />
Às vezes não dava tempo ou eles se esqueciam de trancar<br />
a <strong>por</strong>ta, e ali, na fresta, meu olho esquer<strong>do</strong> acompanhava<br />
as ondulações <strong>do</strong>s corpos, os seios dela sumin<strong>do</strong> na boca<br />
de Halim.<br />
Talvez <strong>por</strong> esquecimento, ele omitiu algumas cenas es-<br />
quisitas, mas a memória inventa, mesmo quan<strong>do</strong> quer ser<br />
fiel ao passa<strong>do</strong>. Certa vez tentei fisgar-lhe uma lembrança:<br />
não recitava os versos <strong>do</strong> Abbas antes de namorar? Ele me<br />
olhou, bem dentro <strong>do</strong>s olhos, e a cabeça se voltou para o<br />
quintal, o olhar na seringueira, a árvore velha, meio mor-<br />
ta. E só silêncio. Perdi<strong>do</strong> no passa<strong>do</strong>, sua memória ronda-<br />
va a tarde distante em que o vi recitar os gazais de Abbas.<br />
Era um preâmbulo, e Zana se excitava com aquela voz<br />
grave, cheia de melodia, que devia tocar a alma dela antes<br />
da loucura <strong>do</strong>s corpos. Omissões, lacunas, esquecimento.<br />
O desejo de esquecer. Mas eu me lembro, sempre tive sede<br />
de lembranças, de um passa<strong>do</strong> desconhecí<strong>do</strong>, joga<strong>do</strong> sei lá<br />
em que Praia de rio.<br />
Yaqub já morava em São Paulo haVía uns seis anos,<br />
cada vez mais orgulhoso de si próprio, cada vez mais ge-<br />
nial. Mas ele não se elogiava; deixava transParecer certas<br />
linhas de conduta, e não eram tortas. No fim de cada linha<br />
havia uma flecha apontan<strong>do</strong> um destino glorioso, e o ca-<br />
samento fazia parte desse destino. O qüe não estava na<br />
mira <strong>do</strong> calculista era a ida de Omar a São Paulo. Naquele<br />
ano, 1956, o Caçula já tinha aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> o Galinheiro <strong>do</strong>s<br />
Vândalos, e nem falava em estu<strong>do</strong>, diploma, nada disso.<br />
Antenor Laval trazia-lhe <strong>livro</strong>s e o convidava a ler poemas<br />
na pensão onde morava. Admirava a entonação da voz de<br />
Omar, que, depois de recitar um poema <strong>do</strong> amigo, dizia:<br />
"Esta é a voz <strong>do</strong> teu único leitor". Os <strong>do</strong>is não demoravam<br />
em casa, o Caçula esvaziava a bolsa da mãe e arrastava La-<br />
val para a calçada <strong>do</strong> Café Mocambo, <strong>por</strong> onde passavam<br />
veteranas e calouras <strong>do</strong> Liceu Rui Barbosa~<br />
Gandaiava como nunca, e certa noite entrou em casa<br />
com uma caloura, uma moça <strong>do</strong> cortiço da rua <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s,<br />
irmã <strong>do</strong> Calisto. Fizeram uma festinha a <strong>do</strong>is: dançaram<br />
em re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> altar, fumaram narguilé e beberam à vontade.<br />
De manhãzinha, <strong>do</strong> alto da escada, I~alim 5entiu o cheiro de<br />
pupunha cozida e jaca; viu garrafas de arak e roupas espa-<br />
lhadas no assoalho, caroços e casca de frUtas sobre a Bíblia<br />
aberta no tapete em frente ao altar, e viu o filho e a moça,<br />
nus, <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> no sofá cinzento. O pai desceu lentamente,<br />
a moça despertou, assustada, envergonbada, e Halim, no<br />
0 ~ 9i<br />
meio da escada, esperou que ela se vestisse e fosse embora.<br />
Depois se aproximou <strong>do</strong> filho, que fingia <strong>do</strong>rmir, ergueu-o<br />
pelo cabelo, arrastou-o até a borda da mesa e então eu vi
o Omar, já homem feito, levar uma bofetada, uma só, a<br />
rnãozorra <strong>do</strong> pai giran<strong>do</strong> e cain<strong>do</strong> pesada como um remo<br />
no rosto <strong>do</strong> filho. To<strong>do</strong>s os pedi<strong>do</strong>s que Halim lhe fizera em<br />
vão, todas as palavras rudes estavam concentradas naquele<br />
tabefe. Foi um estalo de martelada em pau oco. Que mão!<br />
E que pontaria!<br />
O valentão, o notívago, o conquista<strong>do</strong>r de putas esta-<br />
tela<strong>do</strong> sobre o tapete. O Caçula não se levantou. O pai o<br />
acorrentou na maçaneta <strong>do</strong> cofre de aço, sentou-se uns<br />
minutos no sofá cinzento, tomou fôlego e saiu de casa.<br />
Sumiu <strong>por</strong> <strong>do</strong>is dias. Zana não pôde interferir, não teve<br />
tempo de socorrer o filho. Ela esbravejou, gritou, sentiu-se<br />
mal ao ver o filho acorrenta<strong>do</strong>, apoia<strong>do</strong> ao cofre enferru-<br />
ja<strong>do</strong>, a face esbofeteada em alto-relevo. No meu íntimo,<br />
aquele tabefe soava como parte de uma vingança.<br />
Rânia passava arnica na face intumescida, a mãe ali-<br />
mentava o filhote na boquinha e Domingas ajeitava o pe-<br />
nico para ele mijar. Três escravas de um cativo. Zana <strong>foi</strong><br />
atrás de Halim e encontrou a loja trancada. Eu fui incum-<br />
bi<strong>do</strong> de vasculhar o centro da cidade; entrei nas barracas<br />
espalhadas no <strong>por</strong>to da praça <strong>do</strong>s Remédios, nos pequenos<br />
restaurantes encafua<strong>do</strong>s no alto <strong>do</strong>s barrancos, nos botecos<br />
<strong>do</strong> labirW to da Cidade Flutuante, onde ele costumava pa-<br />
pear com um compadre. Ninguém o avistara, e mesmo se<br />
eu o tivesse encontra<strong>do</strong>, não teria dito nada. Na extremi-<br />
dade <strong>do</strong> <strong>por</strong>to da Escadaria, amarra<strong>do</strong> a uma canoa, latia<br />
um cachorro, e babava, o vira-lata, de tanta agonia; dessa<br />
vez eu ri de verdade, pois a visão <strong>do</strong> cachorro amarra<strong>do</strong> me<br />
remetia ao cativo de cara inflada. Toda valentia é vulnerá-<br />
vel. Halim, tão sereno, sabia disso? Bateu firme no rosto <strong>do</strong><br />
filho e <strong>foi</strong> embora. Só voltou para casa <strong>do</strong>is dias depois.<br />
Durante as duas noites de cativeiro, ouvíamos os urros de<br />
Omar, o ruí<strong>do</strong> <strong>do</strong>s pontapés inúteis no cofre maciço, o tilin-<br />
tar grave das argolas de ferro. Bastava um maçarico para<br />
libertá-lo, mas ninguém pensou nisso, muito menos eu, que<br />
desconhecia a existência <strong>do</strong>s maçaricos e só pensava, vaga-<br />
mente, em vingança. Mas vingar-me de quem?<br />
Foi só depois <strong>do</strong> episódio da Mulher Prateada que Ha-<br />
lim decidiu mandar Omar para São Paulo. Yaqub já estava<br />
casa<strong>do</strong>, e, mais uma vez, não aceitara um vintém <strong>do</strong>s pais;<br />
talvez recusasse até uma dádiva da mão de Deus. Não re-<br />
velou o nome da mulher e apenas um telegrama anunciou<br />
o casório. Zana mordeu os lábios. Para ela, um filho casa<strong>do</strong><br />
era um filho perdi<strong>do</strong> ou seqüestra<strong>do</strong>. Fingiu-se desinteres-<br />
sada <strong>do</strong> nome da nora e cercou ainda mais o Caçula, que ela<br />
atraía para si como um imenso ímã atrai limalhas.<br />
No aniversário de Zana, os vasos da sala amanheciam<br />
com flores e bilhetinhos amorosos <strong>do</strong> Caçula, flores e pala-<br />
vras que despertavam em Rânia uma paixão nunca vivida.<br />
Por um momento, naquela única manhã <strong>do</strong> ano, Rânia<br />
esquecia o farrista cheio de escárnio e via no gesto nobre<br />
<strong>do</strong> ïrmão o fantasma de um noivo sonha<strong>do</strong>. Ela o abraçava<br />
e beijava, mas afagos em fantasmas são passageiros, e Omar<br />
reaparecia, de carne e osso, sorrin<strong>do</strong> cinicamente para a<br />
irmã. Sorria, fazia-lhe cócegas nos quadris, nas nádegas,<br />
93<br />
uma das mãos tateava-lhe o vão das pernas. Rânia suava, se
eriçava e se afastava <strong>do</strong> irmão, chispan<strong>do</strong> para o quarto.<br />
Antes <strong>do</strong> jantar, quan<strong>do</strong> os vizinhos já conversavam e be-<br />
biam na sala, ela reaparecia. Era a mais alinhada da noite,<br />
quase mais bela que a mãe, e os vizinhos a olhavam sem<br />
entender <strong>por</strong> que aquela mulher teimava em <strong>do</strong>rmir sozi-<br />
nha numa cama estreita. Rânia podia freqüentar os arraiais,<br />
as festas juninas, os bailes carnavalescos, as festinhas no<br />
parque aquático <strong>do</strong> Atlético Rio Negro Clube, mas evitava<br />
tu<strong>do</strong> isso. Nas poucas vezes que apareceu na festa <strong>do</strong>s Be-<br />
nemou, ficou arredia, bela e admirada, receben<strong>do</strong> chuvas<br />
de confetes e serpentinas de rapazes imberbes e homens<br />
grisalhos. Muito mocinha, Rânia se retraiu, emburrou a<br />
cara. Domingas, que a viu nascer e crescer, lembrava-se da<br />
tarde em que mãe e filha se estranharam. Os buquês de<br />
flores com mensagens para Rânia murcharam na sala até<br />
exalar um cheiro de luto. Minha mãe não soube o que<br />
aconteceu, e eu só viria a saber alguma coisa anos depois,<br />
num encontro inespera<strong>do</strong> e memorável. Era uma menina<br />
alegre e apresentada, contou Domingas, mas desde aque-<br />
le dia Rânia só tocou em <strong>do</strong>is homens: os gêmeos. Não <strong>foi</strong><br />
mais aos salões dançantes da cidade; parou de passear pelas<br />
praças onde encontrava veteranos <strong>do</strong> Ginásio Amazonense<br />
para ir às matinês <strong>do</strong> Odeon, <strong>do</strong> Guarany, <strong>do</strong> Polytheama;<br />
aderiu à reclusão, à solidão noturna <strong>do</strong> quarto fecha<strong>do</strong>.<br />
Ninguém soube o que fazia entre quatro paredes. Rânia <strong>foi</strong><br />
esse ser enclausura<strong>do</strong>, e ai de quem a molestasse depois<br />
das oito, quan<strong>do</strong> ela se resguardava <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Saía <strong>do</strong><br />
quarto na noite <strong>do</strong> aniversário da mãe e nas ceias natalinas.<br />
Aban<strong>do</strong>nou a umversidade no primeiro semestre e pediu<br />
ao pai para trabalhar na loja. Halim consentiu. O que ele<br />
esperava de Omar, veio de Rânia, e da expectativa ínvertida<br />
nasceu uma águia nos negócios. Em pouco temp~. Rânia<br />
começou a vender, comprar e trocar merca<strong>do</strong>rias. Conhe-<br />
ceu os regatões mais poderosos e, sem sair de Manaus, Sem<br />
mesmo sair da rua <strong>do</strong>s Barés, soube quem vendia roupa<br />
aos povoa<strong>do</strong>s mais distantes. Fez um acor<strong>do</strong> com esses rega_<br />
tões, que no início a desprezaram; depois, acreditararri ou<br />
fingiram acreditar que Halim se escondia <strong>por</strong> trãs da nego-<br />
ciante astuta. Não era raro vê-la exibir para os fregueses o<br />
sorriso quase instantâneo de uma falsa simpatia. Sabia atraí-<br />
los, lançan<strong>do</strong>-lhes um olhar lângui<strong>do</strong>, demora<strong>do</strong> e cativan-<br />
te que contrastava com os gestos rápi<strong>do</strong>s e prestativos de<br />
vende<strong>do</strong>ra exímia.<br />
Uma fotografia de Yaqub com seis palavras rio ~erso<br />
aguçava-lhe a compulsão de missivista. No entarito, não<br />
respondia às cartas de galanteio enviadas <strong>por</strong> medicos e<br />
advoga<strong>do</strong>s, cartas que Zana lia com voz terna e al$urna es-<br />
perança. Rânia rasgava todas elas e jogava o papel pica<strong>do</strong><br />
no fogareiro.<br />
"É assim que tratas os teus pretendentes?", diz~a a mãe.<br />
"Fumaça! To<strong>do</strong>s viram cinza e fumaça", ela respondia,<br />
sorrin<strong>do</strong>, morden<strong>do</strong> os beiços.<br />
Às escondidas, a mãe convidava algum pretendente<br />
para o jantar <strong>do</strong> seu aniversário, e fez assim a cada ano,<br />
<strong>por</strong>que vi muitos homens solteiros entrarem na Gasa com<br />
<strong>do</strong>is buquês, um para a mãe, outro para a filha. Na manhã<br />
seguinte, as folhas <strong>do</strong> quintal estavam salpicadas de Péta-
las. Rânia picava as cartas e despetalava as flores com na-<br />
turalidade, e, quan<strong>do</strong> o fazia diante de Zana, até mesmo<br />
94 ~ 95<br />
com deleite. De nada adiantavam as advertências da mãe:<br />
"Vais ficar uma solteirona, filha. É triste ver uma moça en-<br />
velhecer assim".<br />
A velhice ainda estava longe, e a amargura, se existia,<br />
Rânia sabia esconder. Escondia muitas coisas: seus pensa-<br />
mentos, suas idéias, seu humor e mesmo uma boa parte <strong>do</strong><br />
corpo, que eu nunca deïxei de admirar. No entanto, era<br />
uma virtuose nas questões mais prosaicas, e nisso ela me<br />
ajudava. Dá pena pensar que ela só usava aquelas mãos<br />
morenas de de<strong>do</strong>s longos e perfeitos para trocar uma lâm-<br />
pada, consertar uma torneira ou desentupir um ralo. Ou<br />
para fazer contas e contar dinheiro; talvez <strong>por</strong> isso a loja<br />
tenha se manti<strong>do</strong> aberta <strong>por</strong> tanto tempo, mesmo em épo-<br />
ca de movimentó escasso, quan<strong>do</strong> ela saía com uma caixa<br />
de bugigangas para garantir o sustento da casa e da famMia.<br />
Fazia tu<strong>do</strong> isso durante o dia. Depois <strong>do</strong> jantar entocava-se<br />
no quarto, onde a noite a esperava.<br />
Vá saber o que acontecia durante esse encontro miste-<br />
rioso. É provável que nem a noite percebesse seus gestos e<br />
pensamentos. Mas a festa de aniversário da Zana era, para<br />
Rânia, um parêntesis em seu confinamento noturno. Era a<br />
noite em que deixava esperançoso um <strong>do</strong>s pretendentes,<br />
que não retornaria a casa no aniversário <strong>do</strong> próximo ano.<br />
Iludia a to<strong>do</strong>s, um <strong>por</strong> um, a cada noite festiva em que a<br />
mãe envelhecia. Eu sentia o cheiro de Rânia antes de escu-<br />
tar seus passos no corre<strong>do</strong>r <strong>do</strong> andar de cima. Deixava-se<br />
admirar no alto da escada; depois, com movimentos meti-<br />
culosos, descia, e aos poucos iam surgin<strong>do</strong> as pernas bem<br />
torneadas, os braços roliços e nus, o cabelo ondula<strong>do</strong> co-<br />
brin<strong>do</strong>-lhe os ombros, o decote <strong>do</strong> vesti<strong>do</strong> que ampliava<br />
sua respiração. Víamos o corpo moreno e quase tão alto<br />
quanto o <strong>do</strong>s gêmeos, o rosto maquia<strong>do</strong> e os lábios pinta-<br />
<strong>do</strong>s na única noite <strong>do</strong> ano, e os olhos, de incompreensão ou<br />
aturdimento, pareciam perguntar <strong>por</strong> que diabo ela ingres-<br />
sava naquela sala cheia de gente. Rânia causava arrepios<br />
no meu corpo quase a<strong>do</strong>lescente. Eu tinha gana de beijar e<br />
morder aqueles braços. Esperava com ânsia o abraço aper-<br />
ta<strong>do</strong>, o único <strong>do</strong> ano. A espera era uma tortura. Eu ficava<br />
quieto, mas um fogaréu me queimava <strong>por</strong> dentro. Então a<br />
sonsa se acercava de mim, me dava um acocho e eu sentia<br />
os peitos dela apertan<strong>do</strong> meu nariz. Sentia o cheiro de jas-<br />
mim e passava o resto da noite estontea<strong>do</strong> pelo o<strong>do</strong>r. Quan-<br />
<strong>do</strong> ela se afastava, alisava meu queixo como se eu tivesse<br />
uma barbicha e me beijava os olhos com os lábios cheios<br />
de saliva, e eu saía corren<strong>do</strong> para o meu quarto.<br />
Talib era tara<strong>do</strong> <strong>por</strong> ela. O viúvo se adiantava, era o<br />
primeiro a saudá-la com beijos desabusa<strong>do</strong>s nas mãos, nos<br />
braços, no rosto. Zahia e Nahda, enciumadas, iam corren-<br />
<strong>do</strong> apartá-lo de Rânia, enquanto ele gritava para Halim:<br />
"Por Deus, eu trocaria minhas duas filhas pela tua".<br />
Eu invejava o pretendente da noite quan<strong>do</strong> Rânia lhe<br />
estendia as mãos para receber o buquê. Depois ela se afas-<br />
tava com um olhar etéreo, enigmático, que encabulava o<br />
galantea<strong>do</strong>r. Mas aceitava o convite para dançar, fingin<strong>do</strong>-
se tímida e distante nos primeiros passos; aos poucos os<br />
braços morenos enlaçavam-lhe as costas, as mãos aperta-<br />
vam-lhe a cintura, e, de olhos fecha<strong>do</strong>s, ela apoiava o quei-<br />
xo no ombro direito <strong>do</strong> dançarino. Nesse momento, Zana<br />
apagava as lâmpadas da sala e torcia para que da dança<br />
surbisse um namoro ou uma promessa de noiva<strong>do</strong>. Surgia<br />
96 ~ 97<br />
um homem ressenti<strong>do</strong>, que via Rânia interromper brusca-<br />
mente a dança e atirar-se nos braços <strong>do</strong> Caçula quan<strong>do</strong> este<br />
entrava na sala. O pretendente, boquiaberto com a intimi-<br />
dade entre os irmãos, saía irrita<strong>do</strong>, alguns nem se despe-<br />
diam da aniversariante. Omar os chamava de lesos, pamo-<br />
nhas empertiga<strong>do</strong>s, escravos da aparência e ocos de alma.<br />
É que nenhum tinha o olhar <strong>do</strong> Caçula: um olhar de volú-<br />
pia, devora<strong>do</strong>r. Talvez Rânia quisesse pegar um daqueles<br />
pamonhas e dizer-lhe: Observa o meu irmão Omar; agora<br />
olha bem para a fotografia <strong>do</strong> meu queri<strong>do</strong> Yaqub. Mistu-<br />
ra os <strong>do</strong>is, e da mistura sairá o meu noivo.<br />
Ela nunca encontrou essa mistura. Contentou-se em<br />
i<strong>do</strong>latrar os gêmeos, saben<strong>do</strong> que os laços sangüíneos não<br />
anulavam o que neles havia de irreconciliável. Mesmo as-<br />
sim, a admiração de Rânia <strong>por</strong> ambos <strong>foi</strong> <strong>por</strong> muito tempo<br />
visceral e quase simétrica. Ela conversava com a imagem de<br />
Yaqub, beijava-1he o rosto no papel fosco, soprava-lhe uma<br />
seqüência de murmúrios, palavras que punha numa carta.<br />
Ano após ano eu ouvi Zana dizer para a filha no dia se-<br />
guinte à festa de aniversário: "Perdeste um rapagão, querida.<br />
Estás jogan<strong>do</strong> a_ sorte pela janela". Rânia reagia com raiva: "A<br />
senhora sabe... Não era esse que eu queria. Nunca me senti<br />
atraída <strong>por</strong> nenhum desses idiotas que passam <strong>por</strong> aqui".<br />
O que para a mãe era um golpe de sorte, para ela não<br />
passava de um prazer que durava três músicas ou quinze<br />
minutos. Ao contrário de Zana, ela conseguia disfarçar o<br />
ciúme que sentia <strong>do</strong> Caçula, e ambas faziam tu<strong>do</strong> para rei-<br />
nar nas noites de festa, quan<strong>do</strong> ele aparecia em casa com<br />
uma nova namorada. Mas na noite <strong>do</strong> episódio da Mulher<br />
Prateada elas não reinaram sozinhas.<br />
Havia rumores de que o Caçula andava cortejan<strong>do</strong> uma<br />
mulher mais velha <strong>do</strong> que ele. Foi Zahia Talib quem deu a<br />
notícia na noite <strong>do</strong> aniversário de Zana. As duas irmãs e o<br />
pai chegaram ce<strong>do</strong> em casa. Talib trouxera um tambor,<br />
o darbuk, e disse que ia tocar para as filhas dançarem no<br />
meio da festa. Zana agradeceu e parou de sorrir quan<strong>do</strong> ou-<br />
viu a voz de Zahia:<br />
"Parece que o Omar encontrou uma mulher e tanto. Di-<br />
zem que eles passam a noite toda dançan<strong>do</strong> no Acapulco.. ."<br />
"Uma mulher e tanto? No Acapulco? Puxa, Zahia, co-<br />
mo tu menosprezas o meu Caçula! Logo o Omar, que sem-<br />
pre te olhou com admiração."<br />
A notícia de Zahia deixou Zana ïmpaciente. A cada con-<br />
vida<strong>do</strong> que chegava ela mostrava as flores ainda viçosas e o<br />
bilhete de amor escrito pelo filho. Ela sabia que ce<strong>do</strong> ou<br />
tarde Omar chegaria acompanha<strong>do</strong> de uma mulher. Che-<br />
gou às dez, antes da dança das irmãs Talib. Abriu os braços,<br />
dizen<strong>do</strong> em árabe: "Feliz aniversário, rainha". Era uma frase<br />
decorada, mas pronunciada com esmero. Beijou-a com ar-<br />
<strong>do</strong>r, e nesse momento Zana lagrimou, em parte <strong>por</strong> emo-
ção, em parte <strong>por</strong>que o Caçula, depois <strong>do</strong> beijo, apresenta-<br />
va-lhe a namorada.<br />
Dessa vez ela não quis disfarçar: encarou com um sor-<br />
riso dócil e um olhar de desprezo a mulher que jamais seria<br />
a esposa de seu filho, a rival derrotada de antemão. No fun-<br />
<strong>do</strong>, Zana não dava muita trela às mulheres que o Caçula<br />
levava para casa. Ele não escolhia, não se empolgava com a<br />
cor <strong>do</strong>s olhos ou cabelos. Namorava as anônimas, mulheres<br />
que ninguém da famMia ou da vizinhança podia dizer: é<br />
filha, neta, sobrinha de fulano ou beltrano. Galanteava as<br />
99<br />
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desconhecidas, que não freqüentavam os salões de beleza<br />
famosos, muito menos o Sa1ão Verde <strong>do</strong> Ideal Clube; na-<br />
morava moças que nunca tinham saí<strong>do</strong> de Manaus, nunca<br />
viajariam ao Rio de Janeiro. No entanto, as mulheres anô-<br />
nimas <strong>do</strong> Caçula surpreendiam, e ele cultivava essas sur-<br />
presas, deleitava-se com a reação <strong>do</strong>s outros. Halïm torcia<br />
para que uma dessas mulheres levasse o filho para bem<br />
longe de casa, ou que uma das filhas de Talib, sobretu<strong>do</strong><br />
Zahia, a mais formosa, sensual e perspicaz, laçasse o Caçu-<br />
la. Mas ele intuía que Zana era mais forte, mais audaciosa,<br />
mais poderosa.<br />
O ciúme, o me<strong>do</strong>, a ïnveja e a compaixão que causa-<br />
vam as mulheres de Omar! A peruana de Iquitos, miudinha<br />
e graciosa, que cantou a noite toda em espanhol, fazen<strong>do</strong><br />
beicinho para Halim, até que Zana falou para to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
ouvir: "Filho, a tua mocinha está procuran<strong>do</strong> emprego?".<br />
Todas foram vítimas de Zana. Todas, menos duas. A<br />
que eu conheci e vi de perto surge agora diante de mim,<br />
como se aquela noite distante se intrometesse nesta noite<br />
<strong>do</strong> presente.<br />
As outras, assanhadas e oferecidas, não foram páreo<br />
para Zana, nem de longe ameaçavam o amor da mãe. Nerri<br />
chegaram a duelar, não Foi preciso. Além disso, não tinharri<br />
nome, quer dizer, o Caçula só as chamava de queridinha<br />
ou princesa, para deleite da rainha-mãe, jamais destronada~<br />
Mas a mulher daquela noite tinha um nome: Dália. E assim<br />
<strong>foi</strong> apresentada a to<strong>do</strong>s, um <strong>por</strong> um. Um nome era pouco<br />
para ela. Omar revelou-lhe o sobrenome, que eu esqueci. O<br />
resto, ou seja, to<strong>do</strong> o encanto dessa Dália veio dela própria.<br />
Que belo duelo entre Zana e a pretensa nora! Um duelo<br />
silencioso, que Poucos perceberam, tamanha era a força de<br />
dissimulação <strong>do</strong>s risinhos e salamaleques.<br />
1vlas a força de Dália começava no corpo e crescia no
vesti<strong>do</strong> to<strong>do</strong> vermelho, mais rebelde, sensual e sangüíneo<br />
que o da semente <strong>do</strong> guaraná. Ela atraiu mais olhares <strong>do</strong><br />
que Rânia. Atraiu e permaneceu quieta, misteriosa, ao sa-<br />
bor da nossa imaginação. Aos poucos, os olhares desvia-<br />
ram <strong>do</strong> vesti<strong>do</strong> para o rosto, que sorria sem esforço. Omar<br />
e Dália se aconchegaram num canto da sala, e nesse mo-<br />
mento Zana <strong>foi</strong> até lá falar com ela. Omar se afastou, dei-<br />
xan<strong>do</strong>-as a sós. Não se sabe o que conversaram, mas cada<br />
uma tateava o território da outra, ambas cheias de gestos e<br />
disfarces, e mW to nervosas, atrizes em noite de estréia. As<br />
palavras de Dália prevaleceram em tom e timbre, e eram<br />
sons cativantes, levemente canta<strong>do</strong>s, sem falseio. Zana sen-<br />
tiu-se ameaçada e procurou outro canto. Foi a sua pri-<br />
meira derrota, ainda parcial, antes da meia-noite.<br />
No fim da sobremesa Rânia recolheu-se, <strong>por</strong>que até o<br />
seu pretendente ficou aturdi<strong>do</strong> com a presença de Dália.<br />
Aquela não era a noite de Rânia. Saiu sem dar boa-noite, e<br />
ao atravessar lentamente a sala a caminho da escada, ainda<br />
tentou fisgar algum galanteio, mas dessa vez sua beleza <strong>foi</strong><br />
ignorada.<br />
Foi então que a noitada começou. As luzes da sala se<br />
apagaram. Do alpendre, um piscar de luar revelava silhue-<br />
tas sentadas. Sons de alaúde e de batucada encheram a sala,<br />
a casa, e, para os meus ouvi<strong>do</strong>s, encheram o mun<strong>do</strong>. Então<br />
as duas moças Talib surgiram da penumbra. Seus braços<br />
ondulavam, depois os quadris e o ventre, ritma<strong>do</strong>s pela mú-<br />
sica que parecia multiplicar os movimentos <strong>do</strong> corpo das<br />
ioo ~ ioi<br />
dançarinas. Faziam gestos semelhantes, ensaia<strong>do</strong>s, talvez<br />
previsíveis, uma sensualidade pensada, artifícios das irmãs<br />
dançarinas. Estavam repetin<strong>do</strong> os passos e os volteios, es-<br />
tavam sideradas pela música, e já enrijeciam bruscamente<br />
o corpo numa pausa inesperada <strong>do</strong> batuque quan<strong>do</strong> surgiu<br />
da escuridão um vulto claro e alto que se acercou <strong>do</strong> cen-<br />
tro da sala com passos e requebros e ro<strong>do</strong>pios simétricos, e<br />
logo vimos um delga<strong>do</strong> corpo feminino, descalço, dançan<strong>do</strong><br />
como uma deusa, jogan<strong>do</strong> o rosto e os ombros para trás,<br />
curvada feito um arco, e agora a música era ritmada <strong>por</strong><br />
palmas e estali<strong>do</strong>s de sapatos no assoalho. O ambiente já<br />
estava abafa<strong>do</strong>, quente, quase sufocante, quan<strong>do</strong> o foco de<br />
uma lanterna aclarou o rosto da dançarina. Então vimos o<br />
sorriso, os lábios carnu<strong>do</strong>s sem batom, os olhos volta<strong>do</strong>s<br />
para o canto da sala, onde Omar, extasia<strong>do</strong>, empunhava a<br />
lanterna. E quarlta magia havia na luz lamben<strong>do</strong> aquela<br />
Dália, a luz que vinha da mão trêmula de Omar. Só ela<br />
atraía os olhares, e assim dançou <strong>por</strong> um bom momento, o<br />
corpo pratea<strong>do</strong> enlouqueci<strong>do</strong> pelo ritmo <strong>do</strong>s tambores, das<br />
palmas e <strong>do</strong> alatide, e nós - aturdi<strong>do</strong>s com os giros sen-<br />
suais daquele corpo que nos desviou da noite -, nós inve-<br />
jamos o Caçula, o gêmeo disputa<strong>do</strong>.<br />
Mas Omar cometia o erro de trair a mulher que nunca<br />
o havia traí<strong>do</strong>. Zana se reznexeu na cadeira ao ver o filho<br />
aproximar-se de Dália, o foco de luz da lanterna crescen<strong>do</strong><br />
no rosto da dançarina, até que ele, exibicionista e enamo-<br />
ra<strong>do</strong>, beijou teatralmente a amante no meio da sala e de-<br />
pois pediu aplatzsos para ela. To<strong>do</strong>s bateram palmas ao<br />
som de um batuque toca<strong>do</strong> pelo viúvo Talib. Só Zana ficou
alheia a tanta hornenagem. Não quis que cantassem o pa-<br />
rabéns; desprezou o bolo que ela e Domingas tinham prepa-<br />
ra<strong>do</strong> e deixou acesas as velinhas com que Halim desenhara<br />
o nome da esposa. O nome de Zana permaneceu aceso so-<br />
bre o bolo confeita<strong>do</strong>, e a imagem das chamas daquelas<br />
velas vermelhas ainda se acende com força na minha me-<br />
mória. Halim entendeu e subiu para o quarto. Minha mãe<br />
me fez um sinal, que eu a acompanhasse, mas disfarcei,<br />
fiquei <strong>por</strong> ali. Então ela desapareceu nos fun<strong>do</strong>s da casa.<br />
Os vizinhos se despediram, Talib <strong>foi</strong> o último a sair com o<br />
seu tambor. Não havia mais música: Omar e Dália se arras-<br />
tavam na sala, gruda<strong>do</strong>s, enquanto Zana, sentada na cadei-<br />
ra de balanço, o leque na mão imóvel, acompanhava a<br />
dança silenciosa <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is.<br />
Nunca, nas noites festivas, ele havia dança<strong>do</strong> tanto<br />
tempo de rosto e corpo cola<strong>do</strong>s com uma mulher. Era uma<br />
afronta à mãe, a grande traição <strong>do</strong> Caçula. Zana esperou os<br />
corpos cambalearem de cansaço, esperou o momento pro-<br />
pício ao desfecho que não tardaria. Largou o leque, levan-<br />
tou-se, acendeu todas as lâmpadas, e com a voz meiga pe-<br />
diu: que a dançarina lhe desse uma mãozinha, ajudasse a<br />
limpar a mesa. Omar aprovou essa intimidade. Deitou-se<br />
na rede vermelha, não longe de mim. Penso que não me<br />
viu: ele só tinha olhos para a Mulher Prateada. As duas<br />
começaram a tirar copos e pratos da mesa, iam da sala para<br />
a cozinha, às vezes falavam andan<strong>do</strong>, e numa dessas idas<br />
e vindas Zana segurou com força o braço da outra e cochi-<br />
chou. Dália entrou no banheiro. Reapareceu com o vesti-<br />
<strong>do</strong> vermelho, segurava uma sacola onde guardara o traje<br />
pratea<strong>do</strong>. Só de relance pude ver seu rosto, e não era o<br />
mesmo da mulher que entrara na casa nem o da dançari-<br />
io2 ~ io3<br />
na que magnetizara tantos olhares. Era o rosto de uma<br />
mulher humilha da. Ela parou na sala e, antes de ir embo-<br />
ra, disse em voz alta: "Vamos ver, vamos ver".<br />
Omar, sonolento, se ergueu da rede e ainda ouviu a<br />
<strong>por</strong>ta da entrada bater com força. Correu para a calçada e<br />
desapareceu na ri°ite, atrás da mulher.<br />
Nós souberri°s que Dália era uma das Mulheres Pra-<br />
teadas que se exiblam aos <strong>do</strong>mingos na Maloca <strong>do</strong>s Barés.<br />
~ram dançarinas amazonenses, mas se diziam cariocas, acre-<br />
ditan<strong>do</strong> que essa mentira lhes daria maior audiência. Então<br />
zana fez de tu<strong>do</strong> para convencer o filho <strong>do</strong>utor a hospedar<br />
o filho farrista. "Ele quer se enganchar com uma sirigaita<br />
da Maloca, uma dançarina que se exibiu na noite <strong>do</strong> meu<br />
aniversário. Se ele não passar um tempo em São Paulo, vai<br />
aban<strong>do</strong>nar tu<strong>do</strong>: os estu<strong>do</strong>s, a casa, a famffia", escreveu ao<br />
engenheiro.<br />
Yaqub negou abrigo ao irmão. Escreveu à mãe que po-<br />
~íia alugar um quarto numa pensão para Omar e matriculá-<br />
lo num colégio particular. Podia enviar notícias sobre a vida<br />
dele em São Paulo, mas não ia permitir que o irmão <strong>do</strong>r-<br />
lnisse sob o seu teto. "Que ele encontre o caminho dele,<br />
rnas longe de mim, muito longe da minha seara."<br />
Quan<strong>do</strong> Omar soube <strong>do</strong> plano, passou vários dias sem<br />
aparecer em casa. Dormia e comia fora, e man<strong>do</strong>u um bi-<br />
~hete desafora<strong>do</strong>, xingan<strong>do</strong> o irmão de "fresco, pulha e fal-
so". Tentou, em vão, marcar um encontro com Dália e a<br />
tnãe. Zana descobriu o teto da dançarina: uma casa derruí-<br />
da na Vila Saturníno, onde, in<strong>do</strong> para o norte, Manaus ter-<br />
io4<br />
minava. Era a última casinha da vila, situada num pequeno<br />
descampa<strong>do</strong> cheio de carcaças de carroça e aros de bicicleta<br />
enferruja<strong>do</strong>s. As flores vermelhas <strong>do</strong>s jambeiros cobriam<br />
um caminho de terra que ligava a rua à vila. Dália morava<br />
com duas tias, uma costureira, a outra <strong>do</strong>ceira, e as três vi-<br />
viam à beira da penúria. Dava dó ver o esta<strong>do</strong> da casa: uma<br />
promessa de cortiço, com os tabiques empena<strong>do</strong>s multipli-<br />
can<strong>do</strong> quartinhos e saletas. Eu as visitei a man<strong>do</strong> de Zana.<br />
Mesmo à luz <strong>do</strong> dia, sem a maquiagem e a fantasia pratea-<br />
da, Dália era bela. Estava de short e camiseta, sentada no<br />
chão, um monte de carretéis colori<strong>do</strong>s entre as coxas more-<br />
nas. Quan<strong>do</strong> me viu, ficou séria, espetou a agulha na man-<br />
ga da camiseta puída e saiu da saleta. Ainda cheguei a ver<br />
de perto os seios que o teci<strong>do</strong> esgarça<strong>do</strong> não escondia. Mi-<br />
nha missão era infame, mas a ida <strong>do</strong> Caçula a São Paulo, sua<br />
ausência mesmo tem<strong>por</strong>ária me seria vantajosa, traria um<br />
pouco de paz. Ofereci às tias de Dália o dinheiro envia<strong>do</strong><br />
<strong>por</strong> Zana. Relutaram, mas encomendas de <strong>do</strong>ces e vesti<strong>do</strong>s<br />
rareavam àquela época. A outra extremidade <strong>do</strong> Brasil cres-<br />
cia vertiginosamente, como Yaqub queria. No marasmo de<br />
Manaus, dinheiro da<strong>do</strong> era maná envia<strong>do</strong> <strong>do</strong> céu. As tias<br />
aceitaram a oferta e talvez tenham troca<strong>do</strong> as telhas que-<br />
bradas e os caibros podres da cobertura. Assim, aliviei-lhes<br />
o inverno chuvoso, acalmei o coração de uma mãe e ainda<br />
colhi uns cobres de gorjeta.<br />
Dália sumiu da Maloca <strong>do</strong>s Barés, da casa na Vila Sa-<br />
turnino, da cidade. Só não soubemos se sumiu deste mun-<br />
<strong>do</strong>, e isso nem Omar soube, ou, se soube, nada disse quan-<br />
<strong>do</strong> reapareceu numa tarde de chuva. Estava descalço, sem<br />
camïsa, a calça encharcada. Um espantalho fugi<strong>do</strong> <strong>do</strong> dilú-<br />
io5<br />
vio, e bêba<strong>do</strong>, a ponto de esbarrar nos <strong>do</strong>is vasos de <strong>por</strong>ce-<br />
lana e no console antes de cair na rede vermelha. Zana não<br />
arre<strong>do</strong>u o pé. Domingas e Rânia, aflitas, quiseram socorrê-<br />
lo, mas foram detidas <strong>por</strong> um olhar severo. Ele <strong>do</strong>rmiu no<br />
sereno, acor<strong>do</strong>u tossin<strong>do</strong>, amolenga<strong>do</strong>, incapaz de dar um<br />
passo. Já estava com febre quan<strong>do</strong> ouviu a mãe dizer:<br />
"Tu<strong>do</strong> isso <strong>por</strong> causa de uma dançarina vulgar. Aque-<br />
la serpente ia te levar para o inferno, queri<strong>do</strong>. Teu irmão<br />
vai te ajudar em São Paulo."<br />
"Meu irmão?", gritou ele, exaspera<strong>do</strong>.<br />
Halim se aproximou <strong>do</strong> filho:<br />
"Vais estudar em São Paulo, vais ter que dar duro que<br />
nem o teu irmão..."<br />
"Calma, Halim... o nosso menino está queiman<strong>do</strong> de<br />
febre", disse Zana, abraçan<strong>do</strong> o filho. "Ele precisa de repou-<br />
so, depois viaja, passa uns meses em São Paulo e volta."<br />
Omar cravou os olhos avermelha<strong>do</strong>s no rosto <strong>do</strong> pai,<br />
tentou ficar de pé, mas Halim o empurrou com força e deu<br />
as costas para o filho. Os <strong>do</strong>is não se falaram mais até o dia<br />
<strong>do</strong> embarque. Zana, arrependida, ainda quis adiar a via-<br />
gem <strong>do</strong> filho; parecia enlutada, rezava para que tu<strong>do</strong> desse<br />
certo com Omar, a separação tinha o travo da morte.
Ele viajou dan<strong>do</strong> coices no ar, rebelde, enraiveci<strong>do</strong>.<br />
Foram seis meses de quietude na casa, de alívio para Halim.<br />
Os <strong>livro</strong>s <strong>do</strong> Caçula, romances e poemas que ele lia na rede,<br />
caíram nas minhas mãos. Os <strong>livro</strong>s, os cadernos, as cane-<br />
tas, tu<strong>do</strong>, menos o quarto, que era só dele, só para ele. No<br />
quarto bagunça<strong>do</strong>, o colchão velho e o lençol foram tro-<br />
ca<strong>do</strong>s. Mas, antes de viajar, o Caçula pedira a Domingas<br />
que deixasse os objetos nas prateleiras da estante; ela co-<br />
briu com um lençol a coleção de cinzeiros, copos, garrafas<br />
cheias de areïa, calcinhas, sutiãs, sementes vermelhas, to-<br />
cos de batom e baganas manchadas. Domingas, ao vasculhar<br />
o guarda-roupa, descobriu um remo indígena, lustra<strong>do</strong> e<br />
escuro. Na pá <strong>do</strong> remo, nomes femininos grava<strong>do</strong>s a ponta<br />
de faca. Domingas alisava a pá escura, pronunciava um e<br />
outro nome e se sentava na cama <strong>do</strong> Caçula, meio aérea,<br />
não sei se sau<strong>do</strong>sa. Agora ela podia entrar no quarto dele,<br />
conviver com as coisas que ele deixara, abrir a janela e se<br />
deparar com o horizonte que ele avistava no fim de cada<br />
tarde, antes de sair para os balneários noturnos. Ela rastrea-<br />
va to<strong>do</strong>s os móveis <strong>do</strong> quarto, não parava de encontrar ob-<br />
jetos, fotografias, brinque<strong>do</strong>s, a velha farda de guerra <strong>do</strong><br />
Galinheiro <strong>do</strong>s Vândalos. Era diferente <strong>do</strong> quarto de Yaqub,<br />
vazio, sem marcas ou entulho: abrigo de um corpo, nada<br />
mais. Não sei qual <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is minha mãe preferia limpar. O<br />
fato é que to<strong>do</strong>s os dias, de bom ou mau humor ela entra-<br />
va em cada quarto e se demorava antes de começar a lim-<br />
peza. E se o remo e as tralhas <strong>do</strong> Caçula lhe exaltavam o<br />
ânimo, o despojamento <strong>do</strong> espaço de Yaqub lhe esfriava a<br />
cabeça. Talvez minha mãe gostasse desse contraste.<br />
Zana me deu a farda <strong>do</strong> filho; ficou frouxa no meu cor-<br />
po e provocou risadas. Engoli as risadas; e devolvi a roupa<br />
antes de ser engoli<strong>do</strong> pelos olhos de Zana, incapaz de ver a<br />
farda em outro corpo. E, graças a Halim, ingressei no Gali-<br />
nheiro <strong>do</strong>s Vândalos.<br />
No liceu havia vestígios <strong>do</strong> Caçula: ex-namoradas, his-<br />
tórias de algazarra, de cenas heróicas, duelos, desafios. Nas<br />
paredes <strong>do</strong> banheiro havia inscrições de sua autoria. Por<br />
onde passava, deixava um gesto ousa<strong>do</strong>, de valentia, ou um<br />
io6 ~ l07<br />
epigrama qualquer, palavras de humor e ironia. Eu che-<br />
guei a terminar o curso que ele havia aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> no últi-<br />
mo ano. Na verdade, o Caçula não terminou nada, jamais<br />
freqüentaria uma faculdade, desprezava um diploma um-<br />
versitário, ignorava tu<strong>do</strong> o que não lhe desse um prazer in-<br />
tenso, fortíssimo, de caça<strong>do</strong>r de aventuras sem fim.<br />
Halim e Zana pensavam que o filho <strong>do</strong>utor ia corrigi-<br />
lo, que ce<strong>do</strong> ou tarde a vida dura em São Paulo podia <strong>do</strong>-<br />
má-lo. Passaram meses acreditan<strong>do</strong> nas cartas de Omar:<br />
que ia bem, que no início estranhara o frio mas já estava<br />
estudan<strong>do</strong>, madrugava para ir ao colégio, jantava na pen-<br />
são da rua Tamandaré, quase não saía <strong>do</strong> quarto. Era um<br />
outro Caçula, compenetra<strong>do</strong>, não gazeava, apenas sentia-<br />
se meio desloca<strong>do</strong> entre os alunos, <strong>por</strong>que já era um mar-<br />
manjo. No último sába<strong>do</strong> de agosto, a empregada de Yaqub<br />
fez uma visita à pensão de Omar para entregar-lhe roupa e<br />
<strong>do</strong>ces envia<strong>do</strong>s <strong>por</strong> Zana. Dois casacos, um pulôver e uma<br />
calça de velu<strong>do</strong> para que o Peludinho não sofresse com a
garoa e o frio. Uma lata cheia de <strong>do</strong>ces árabes, assim ele se<br />
lembraria da mãe dele. Omar agradeceu com um bilhete:<br />
"Muito obriga<strong>do</strong>, mano. Desde que cheguei a São Paulo é<br />
a primeira vez que como com prazer. E só minha mãe me<br />
daria tanto prazer". Yaqub permaneceu mu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> a<br />
empregada lhe disse que Omar, senta<strong>do</strong> na cama, devorou<br />
os <strong>do</strong>ces.<br />
Esse outro Omar existiu durante alguns meses. No<br />
feria<strong>do</strong> de 15 de novembro, antes de viajar com a esposa<br />
para Santos, Yaqub decidiu ir ao bairro da Liberdade, onde<br />
morava Omar. Anos depois, Yaqub disse ao pai que não<br />
quis falar com o irmão, sequer vê-lo. Tinha passa<strong>do</strong> em<br />
frente à pensão para observar aquela casa triste ocupada<br />
<strong>por</strong> estudantes de outras cidades e regiões. Pensou nas noi-<br />
tes solitárias <strong>do</strong>s primeiros meses em que ele, Yaqub, havia<br />
mora<strong>do</strong> em São Paulo. Aos sába<strong>do</strong>s caminhava até a ladei-<br />
ra Porto Geral e a rua 25 de Março, entrava nos armarinhos<br />
e nas lojas de teci<strong>do</strong>s; ouvia a conversa <strong>do</strong>s imigrantes ára-<br />
bes e armênios e ria sozinho, ou se amargurava ao lembrar<br />
da infância no bairro <strong>por</strong>tuário de Manaus, onde escutara<br />
aqueles sons. Depois, no Empório Damasco, passava um<br />
bom tempo sentin<strong>do</strong> o cheiro forte <strong>do</strong>s temperos, devoran-<br />
<strong>do</strong> com os olhos as iguarias que não podia comprar; pen-<br />
sou nos restaurantes e clubes que não podia freqüentar,<br />
nas vitrines das lojas que admirava no caminho entre a<br />
Pensão Veneza e a Escola Politécnica; pensou no tédio <strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>mingos e feria<strong>do</strong>s numa cidade sem amigos e parentes.<br />
A solidão extrema <strong>do</strong>maria um selvagem como o Omar.<br />
Yaqub acreditava que o sofrimento, a labuta, o transtorno<br />
<strong>do</strong> dia-a-dia e o desespero da solidão seriam decisivos para<br />
a educação de Omar. Ele não ia ajudá-lo. Acreditava que o<br />
desamparo engrandece a pessoa. Mas tinha curiosidade de<br />
saber alguma coisa da vida <strong>do</strong> irmão. Como ele vivia? Como<br />
se com<strong>por</strong>tava no colégio? Como podia viver longe de<br />
Manaus, onde conhecia cada rua e era sauda<strong>do</strong> e festeja<strong>do</strong><br />
nos clubes grã-finos e nos lupanares? Onde os quitutes<br />
caseiros e o colo e os afagos das mulheres da casa estimu-<br />
lavam ainda mais a insolência dele? Em Manaus, Omar<br />
nunca seria um anônimo. E, para Yaqub, o anonimato era<br />
um desafio.<br />
Uma semana depois <strong>do</strong> feria<strong>do</strong>, decidiu passar no colé-<br />
gio em que o irmão estudava. Conversou com professores<br />
io8 ~ io9<br />
e alunos. Ele era estranho, disseram-lhe. Um rapaz impul-<br />
sivo, ousa<strong>do</strong>, gostava de vencer obstáculos. Omar assistia às<br />
aulas com assiduidade, freqüentava os laboratórios, só era<br />
um pouco estabana<strong>do</strong> nas aulas de educação física. Estava<br />
in<strong>do</strong> bem: <strong>por</strong> que deixara de freqüentar o colégio? A<strong>do</strong>e-<br />
cera? Yaqub arregalou os olhos: desde quan<strong>do</strong> não assistia<br />
às aulas? Depois <strong>do</strong> feria<strong>do</strong> não tinha compareci<strong>do</strong> a uma<br />
única aula.<br />
Foi à pensão da rua Tamandaré e soube que o irmão<br />
aban<strong>do</strong>nara o quarto sem nenhuma explicação, sem nem<br />
mesmo pagá-lo. Entrou no quartinho de Omar e viu uma<br />
maleta vazia no chão, a roupa pendurada em cruzetas im-<br />
provisadas, um mapa <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s sobre a escriva-<br />
ninha. Nenhum bilhete, nenhuma palavra, sinal algum.
Yaqub pensou num acidente, numa tragédia. Procurou o<br />
irmão nos hospitais, delegacias e necrotérios de São Paulo.<br />
A esposa o aconselhou: "Nada de mencionar o desapareci-<br />
mento dele aos teus pais. Ele vai voltar. Se não voltar, não<br />
é culpa tua".<br />
Pensaram que ele podia reaparecer a qualquer momen-<br />
to, não custava nada esperar uma ou duas semanas. Caixas<br />
de <strong>do</strong>ces continuaram a chegar de Manaus. Em dezembro<br />
eles receberam o primeiro cartão-postal.<br />
5<br />
Na vida de Omar aconteciam lances incríveis, ou ele os<br />
deixava acontecer, como quem recebe de mão cheia um<br />
lance de aventura. E não há seres assim? Pessoas que nem<br />
carecem buscar o la<strong>do</strong> fantasioso da vida, apenas se deixam<br />
conduzir pelo acaso, pelo inusita<strong>do</strong> que assoma nas ventas.<br />
Yaqub só revelou a verdade sobre o irmão quan<strong>do</strong> vi-<br />
sitou pela primeira vez a família desde que partira para São<br />
Paulo.<br />
Quan<strong>do</strong> soube que ele ia chegar, senti uma coisa es-<br />
tranha, fiquei agita<strong>do</strong>. A imagem que faziam dele era a de<br />
um ser perfeito, ou de alguém que buscava a perfeição.<br />
Pensei nisso: se for ele o meu pai, então sou filho de um<br />
homem quase perfeito. A sabe<strong>do</strong>ria dele não me intimida-<br />
va, nunca tinha si<strong>do</strong> uma ameaça para mim. Eu o conside-<br />
rava um homem tenaz, respeita<strong>do</strong> em casa, a ponto de ser<br />
elogia<strong>do</strong> pelo pai, que não sabia até onde o filho queria<br />
chegar. Certa vez, Halim me disse que Yaqub era capaz de<br />
m<br />
mo<br />
esconder tu<strong>do</strong>: um homem que não se deixa ex<strong>por</strong>, reves-<br />
ti<strong>do</strong> de uma armadura sólida. De um filho assim, disse o<br />
pai, pode-se esperar tu<strong>do</strong>. Omar, ao contrário, se expunha<br />
até as entranhas, e esse excesso era a maior arma de Zana.<br />
Eu tentava descobrir qual <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is tinha atraí<strong>do</strong> minha<br />
mãe. Percebia que Domingas ficava nervosa quan<strong>do</strong> Omar<br />
me chamava com voz insolente e me mandava entregar<br />
um bilhete nos confins da cidade. Ele se aproveitava da<br />
proteção de Zana até para engrossar a voz, mas quan<strong>do</strong><br />
Halim estava <strong>por</strong> perto ele se acovardava, e era um alívio<br />
para minha mãe. Agora, com a visita de Yaqub, ela não<br />
saía de perto de mim. Quan<strong>do</strong> Yaqub me viu no quintal,<br />
de mãos dadas com Domingas, ficou sem jeito, não sabia<br />
quem abraçar primeiro. Minha alegria <strong>foi</strong> tão grande quan-<br />
to a surpresa. Ele abraçou minha mãe, e senti a mão dela<br />
suada, trêmula, apertan<strong>do</strong> meus de<strong>do</strong>s. Eu tinha uma vaga<br />
lembrança da voz dele, pois costumava entrar no quarto de<br />
minha mãe e falar um pouco, dizia palavras que eu não<br />
entendia. O que me lembro, muito bem, é da pergunta que<br />
Domingas lhe fez quan<strong>do</strong> soube que ele ia morar em São<br />
Paulo. Vais levar aquela moça contigo?, perguntou várias<br />
vezes minha mãe. Ele não respondeu, saiu <strong>do</strong> quarto sem<br />
dizer nada. Anos depois, mïnha mãe me revelou quem era<br />
a moça e me contou que Omar tinha corta<strong>do</strong> o rosto <strong>do</strong><br />
irmão <strong>por</strong> causa dela.<br />
Agora eu reconhecia a voz que havia escuta<strong>do</strong> aos<br />
quatro ou cinco anos de idade. Disse que trouxera <strong>livro</strong>s<br />
para mim. Ele não parecia um estranho, mas alguém que
não conseguia ser espontâneo na casa onde nascera.<br />
Zana lhe perguntou <strong>por</strong> que a esposa não tinha vin<strong>do</strong> a<br />
lvlanaus, e ele apenas olhou para a mãe, altaneiro, saben<strong>do</strong><br />
qlle podia irritá-la com o sïlêncio.<br />
"Quer dizer que não vou conhecer minha nora?", in-<br />
sistiu a mãe. "Ela está com me<strong>do</strong> <strong>do</strong> calor ou pensa que so-<br />
mos bichos?"<br />
"O outro filho vai te dar uma nora e tanto", disse Ya-<br />
qub, secamente. "Uma nora tão exemplar quanto ele."<br />
Zana preferiu não responder.<br />
Na véspera da chegada de Yaqub ela havia sonha<strong>do</strong> que<br />
os gêmeos conversavam serenamente no quarto dela, mas<br />
de repente viu o jovem Yaqub no cais, de costas para um<br />
navio branco, sorrin<strong>do</strong> friamente para ela. Sorriu e cravou<br />
os olhos na mãe, até desaparecer.<br />
Durante o café da manhã ela contou o sonho a Halim.<br />
Estava tensa, atrapalhada, e ele, acarïcian<strong>do</strong>-lhe as mãos,<br />
disse com uma voz irônica:<br />
"Por Deus, Zana, se eu tivesse um lugarzinho no teu<br />
sonho teria enxota<strong>do</strong> os <strong>do</strong>is <strong>do</strong> nosso quarto e arma<strong>do</strong> a<br />
rede. . ."<br />
"Ainda assim, seria um sonho", disse ela, amargurada.<br />
"O que eu posso fazer? Nossos filhos não se entendem..."<br />
"O que podes fazer? Dá um pouco de atenção ao outro<br />
filho. Faz anos que não vemos o Yaqub. Olha o que ele<br />
conseguiu fazer, sozinho em São Paulo. Tem a vida dele, a<br />
mulher dele."<br />
Ela temia um encontro <strong>do</strong>s filhos, uma explosão de in-<br />
sultos dentro de casa. Ficava de vïgMia durante a noite até<br />
a chegada <strong>do</strong> Caçula; depois Domingas ajudava a levá-lo<br />
até o quarto, de onde ele saía quan<strong>do</strong> o irmão já estava<br />
fora de casa. Fizeram isso três noites seguidas, e assim evi-<br />
ma ~ m3<br />
tararn Wue Yaqub encontrasse o irmão na rede vermelha<br />
<strong>do</strong> alpe~/ndre.<br />
A rvisita de Yaqub, ainda que passageira, permitiu que<br />
eu o c~nhecesse um pouco. Algo <strong>do</strong> com<strong>por</strong>tamento dele<br />
.apava; ele me deixou uma impressão ambígua, de<br />
me esc<br />
alguér~ duro, resoluto e altivo, mas ao mesmo tempo mar-<br />
ca<strong>do</strong> pPr uma sofreguidão que se assemelhava a uma for-<br />
ma de f feto. Essa atitude indecisa me deixava confuso. Ou<br />
talvez eu mesmo oscilasse feito gangorra. Muita coisa <strong>do</strong><br />
que di~lam de Yaqub não se ajustou ao que vi e senti. Em<br />
casa, d~ante da famMia, ele se alterava, ficava desconfia<strong>do</strong>.<br />
Mas p~rto de mim não vestia uma armadura sólida, como<br />
dissera Halim a respeito <strong>do</strong> filho. Durante o nosso passeio<br />
pela ci dade, enquanto nos aproximávamos da zona <strong>por</strong>-<br />
ele parecia estranhar tu<strong>do</strong>. Estava ensopa<strong>do</strong> de suor,<br />
tuária,<br />
irritad~ com a sujeira acumulada nas ruas. Aos poucos,<br />
tu<strong>do</strong> iyso <strong>foi</strong> perden<strong>do</strong> im<strong>por</strong>tância. Perto <strong>do</strong> Hotel Ama-<br />
zonas ele parou diante da banquinha de tacacá da <strong>do</strong>na<br />
Deúsa~ tomou duas cuias, sorven<strong>do</strong> com calma o tucupi<br />
fumeg~nte, mastigan<strong>do</strong> lentamente o jambu apimenta<strong>do</strong>,<br />
como ye quisesse recuperar um prazer da infância. Depois<br />
nós cal~lnhamos pelo <strong>por</strong>to da Escadaria, onde um canoei-
conduziu até o igarapé <strong>do</strong>s Educan<strong>do</strong>s. A vazante<br />
ro nos<br />
<strong>do</strong> rio Negro formava praias enlameadas, onde havia pe-<br />
quenos motores encalha<strong>do</strong>s e cascos de embarcações em-<br />
borcad~s. Yaqub começou a remar, às vezes erguia o remo<br />
e acenava aos mora<strong>do</strong>res das palafitas, ria ao ver os meni-<br />
nos co~ren<strong>do</strong> nos becos <strong>do</strong> bairro, nos campos de futebol<br />
irnpro~tsa<strong>do</strong>s, ou escalan<strong>do</strong> o tol<strong>do</strong> de barcos aban<strong>do</strong>na-<br />
<strong>do</strong>s. "~u brincava muito <strong>por</strong> aqui", ele disse. "Vinha com a<br />
llá<br />
tua mãe, nós <strong>do</strong>is passávamos o <strong>do</strong>mingo nessas margens. . .<br />
escondi<strong>do</strong>s nos aningais." Parecia estar contente, não se<br />
irritava com o cheiro de lo<strong>do</strong> que empestava as praias <strong>do</strong><br />
igarapé. Apontou uma palafita na margem esquerda, um<br />
pouco antes da ponte metálica. Encostamos a canoa, Yaqub<br />
observou a casinha suspensa, subiu uma escada e me cha-<br />
mou. Era um barraco que fora pinta<strong>do</strong> de azul, mas agora<br />
a fachada estava coberta de manchas cinzentas; no seu in-<br />
terior havia duas mesinhas e tamboretes; uma mulher que<br />
arrumava as mesas perguntou se íamos comer. Yaqub res-<br />
pondeu com uma pergunta: ela se lembrava dele? Não,<br />
não fazia idéia: quem era? "Eu e a mãe deste rapaz vínha-<br />
mos comer jaraqui frito na sua casa. Depois a gente nada-<br />
va no igarapé... eu jogava futebol e empinava papagaio..."<br />
Ela recuou, observou-o <strong>do</strong>s pés à cabeça, quis saber quan-<br />
<strong>do</strong>, fazia muito tempo? "Sou filho <strong>do</strong> Halim." "O da rua <strong>do</strong>s<br />
Barés? Minha Nossa Senhora... aquele menino? Olha...<br />
como cresceu! Espera um pouco." Ela trouxe uma fotogra-<br />
fia em preto-e-branco: Yaqub e minha mãe juntos, numa<br />
canoa, em frente da palafita, o Bar da Margem. Ele olhou<br />
a imagem, quieto e pensativo, e procurou com os olhos o<br />
lugar da margem em que algum dia fora feliz. Depois falou<br />
que morava muito longe, em São Paulo, fazia anos que<br />
não visitava a cidade. A mulher quis puxar conversa, mas<br />
Yaqub quase não falou, sua alegria <strong>foi</strong> se apagan<strong>do</strong>, o rosto<br />
ficou sério. Despediu-se com poucas palavras, a mulher lhe<br />
ofereceu a foto, ele agradeceu: talvez voltasse com Do-<br />
mingas ao Bar da Margem. Na canoa, reman<strong>do</strong> para o pe-<br />
queno <strong>por</strong>to, ele me disse que nunca ia se esquecer <strong>do</strong> dia<br />
em que saiu de Manaus e <strong>foi</strong> para o Líbano. Tinha si<strong>do</strong><br />
115<br />
horrível. "Fui obriga<strong>do</strong> a me separar de to<strong>do</strong>s, de tu<strong>do</strong>...<br />
não queria."<br />
A <strong>do</strong>r dele parecia mais forte que a emoção <strong>do</strong> reen-<br />
contro com o mun<strong>do</strong> da infância. Ele molhou o rosto com<br />
a água <strong>do</strong> rio e pediu que o canoeiro contornasse a Cidade<br />
Flutuante, onde já piscavam chamas de velas e de can-<br />
deeiros. A floresta escurecia às nossas costas, e o clarão da<br />
cidade aumentava enquanto navegávamos na noite úmi-<br />
da. Eu via, em relances, o rosto sério de Yaqub, e imaginei<br />
o que teria lhe aconteci<strong>do</strong> durante o tempo em que viveu<br />
numa aldeia <strong>do</strong> sul <strong>do</strong> I,íbano. Talvez nada, talvez nenhuma<br />
torpeza ou agressão tivesse si<strong>do</strong> tão violenta quanto a brus-<br />
ca separação de Yaqub <strong>do</strong> seu mun<strong>do</strong>. Mas naqueles dias<br />
que passou em Manaus, eu notei que o humor dele oscila-<br />
va muito. Seu entusiasmo para redescobrir certas pessoas,<br />
paisagens, cheiros e sabores era logo sufoca<strong>do</strong> pela lembran-
ça de uma ruptura. Hoje é menos difícil pensar nisso. Ainda<br />
o vejo saltar da canoa e se encaminhar para a rua <strong>do</strong>s Barés;<br />
ouço a voz dele criticar o comércio anacrônico <strong>do</strong> pai e os<br />
amigos que rodeavam o tabuleiro de gamão.<br />
"São pessoas que atrapalham o movimento da loja, uns<br />
urubus na carnïça que ficam esperan<strong>do</strong> o lanche da tarde.<br />
Assim vocês não vão rrluito longe."<br />
Rânia concordava, mas Halim, apoian<strong>do</strong> os braços no<br />
balcão, perguntou:<br />
"Para que ir tão longe? E o prazer <strong>do</strong> jogo, da con-<br />
versa?"<br />
"O comércio não se alimenta de prazeres fortuitos",<br />
disse Yaqub, dirigin<strong>do</strong>-se à irmã.<br />
Halim me pediu que o acompanhasse à loja <strong>do</strong> Balma:<br />
"Hoje à noite o Issa e o Talib vão jogar bilhar, e eu não<br />
quero perder esse jogo fortuito."<br />
Eu me despedi <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is irmãos e só fui ver Yaqub no<br />
dia seguinte, véspera de sua partida para São Paulo.<br />
Ele desceu ce<strong>do</strong>, tomou café e começou a ler um <strong>livro</strong><br />
de cálculo de "grandes estruturas"; quan<strong>do</strong> Rânia lhe mos-<br />
trou as fotografias emolduradas, fechou o <strong>livro</strong> e admirou<br />
suas próprias imagens. Rânia emagrecera, tornara-se mais<br />
bonita, os olhos amen<strong>do</strong>a<strong>do</strong>s mais graú<strong>do</strong>s, o pescoço alon-<br />
ga<strong>do</strong> e o rosto, tal o da mãe, quase sem rugas. Envelheceria<br />
assim, refratária aos homens, revelan<strong>do</strong> depois de cada ano<br />
os vestígios de uma beleza que nunca deixou de me im-<br />
pressionar. Ela mimava os gêmeos e se deixava acariciar<br />
<strong>por</strong> eles, como naquela manhã em que Yaqub a recebeu no<br />
colo. As pernas dela, morenas e rijas, roçavam as <strong>do</strong> irmão;<br />
ela acariciava-lhe o rosto com a ponta <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s, e Yaqub,<br />
embeveci<strong>do</strong>, ficava menos sisu<strong>do</strong>. Como ela se tornava sen-<br />
sual na presença de um irmão! Com esse ou com o outro,<br />
formava um par promissor.<br />
Nos quatro dias da visita ela se empetecou como nun-<br />
ca, e parecia que toda a sua sensualidade, represada <strong>por</strong><br />
tanto tempo, jorrava de uma só vez sobre o irmão visitante.<br />
Rânia, não a mãe, ganhou os melhores presentes dele: um<br />
colar de pérolas e um bracelete de prata, que ela nunca usou<br />
na nossa frente.<br />
Ainda chovia muito quan<strong>do</strong> a vi subir a escada, de mãos<br />
dadas com Yaqub; entraram no quarto dela, alguém fechou<br />
a <strong>por</strong>ta e nesse momento minha imaginação correu solta.<br />
Só desceram para comer.<br />
Almoçaram com os pais, Talib e suas duas filhas. Yaqub<br />
m6 ~ m7<br />
com<strong>por</strong>tou-se de um mo<strong>do</strong> quase formal; tratava os vizi-<br />
nhos com humildade, era cordial sem fazer festa. Fumava<br />
com piteira, e se mostrou enfastia<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> Zana tornou<br />
a encher seu prato com lentilhas e fatias de pernil de car-<br />
neiro. Deu uma baforada e afastou-se da mesa sem tocar<br />
na comida.<br />
Tomaram café sob a seringueira <strong>do</strong> quintal, e ele nada<br />
falou da engenharia e suas façanhas. Nem era preciso: tu<strong>do</strong><br />
dava tão certo na vida dele que os atropelos e o purgatório<br />
<strong>do</strong> dia-a-dia só pertenciam aos outros. E nós éramos os<br />
outros. Nós e o resto da humanidade.<br />
Foi então que aconteceu o inespera<strong>do</strong>: Talib, voz gros-
sa e troante, triscou no assunto:<br />
"Não sentes saudades <strong>do</strong> Líbano?"<br />
Yaqub ficou páli<strong>do</strong> e demorou a responder. Não res-<br />
pondeu, perguntou:<br />
"Que Lí~bano?"<br />
Halim tomou mais um gole de café, franziu a testa,<br />
olhou sério para o filho. Zana mordeu os lábios, Rânia se-<br />
guiu com os olhos, até encontrar o japüm-vermelho que<br />
piava num galho da seringueira, perto de mim.<br />
"Por enquanto, só há um Líbano", respondeu Talib.<br />
"Quer dizer, há muitos, e aqui dentro cabe um." Ele apon-<br />
tou para o coração.<br />
Zahia se levantou, Talib fez um gesto, ela tornou a sen-<br />
tar, quieta. Nahda não sabia onde pôr os olhos, e ninguém<br />
sabia o que dizer.<br />
uma aldeia no sul, e o tempo que passei lá, esqueci. >~ isso<br />
mesmo, já esqueci quase tu<strong>do</strong>: a aldeia, as pessoas, o nome<br />
da aldeia e o nome <strong>do</strong>s parentes. Só não esqueci a língua...".<br />
"Talib, não vamos falar..."<br />
"Não pude esquecer outra coisa", Yaqub interrompeu o<br />
pai, exalta<strong>do</strong>. "Não pude esquecer...", ele repetiu, reticente,<br />
e se calou.<br />
Zana convi<strong>do</strong>u os vizinhos a tomar licor na sala, mas<br />
Talib agradeceu, disse que ia fazer a sesta, sentia <strong>do</strong>r de<br />
cabeça. Ele e as filhas se despediram, e logo depois os da<br />
famMia se encafuaram. Só Yaqub permaneceu debaixo da<br />
seringueira. Ele e sua frase incompleta. A reticência. O ruí-<br />
<strong>do</strong> de sua vida. Yaqub, encurrala<strong>do</strong>, parecia mais humano,<br />
ou menos perfeito, mais inacaba<strong>do</strong>. Percebi que estava ner-<br />
voso, fumava com ânsia, os olhos fixos no chão. Eu não me<br />
aproximei dele, não tive coragem. Estava transfigura<strong>do</strong>,<br />
parecia trincar os dentes até a alma.<br />
À noite ele quis conversar com Halim; os <strong>do</strong>is saíram<br />
para jantar e voltaram tarde. Só fui vê-lo no <strong>do</strong>mingo, an-<br />
tes da volta para São Paulo. Havia recupera<strong>do</strong> a carnadura<br />
e não revelava vestígio de fraqueza ou sofrimento. Abra-<br />
çou-me com força, depois recuou e me olhou de frente,<br />
examinan<strong>do</strong> minha estatura, observan<strong>do</strong> meu rosto.<br />
Rânia fez questão de acompanhá-lo até o aero<strong>por</strong>to.<br />
Já estavam na calçada quan<strong>do</strong> Domingas entregou a Yaqub<br />
um pacote de farinha e uma penca de pacovãs. Abraçou-o;<br />
soluçou ao vê-lo partir. Foi a cena mais comovente da visi-<br />
"Não morei no Líbano, seu Talib." A voz começou man- ta de Yaqub.<br />
sa e monótona, mas prometia subir de tom. E subiu tanto<br />
que as palavras seguintes assustaram: "Me mandaram para<br />
m8 ~ m9<br />
Ele revelara ao pai alguns episódios sobre o sumiço de<br />
Omar. Halim não sabia de nada. Ele e Zana, iludi<strong>do</strong>s, pen-<br />
savam que o Caçula havia freqüenta<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s melhores<br />
colégios de São Paulo e que durante to<strong>do</strong> um semestre leti-<br />
vo o Peludinho queimara as pestanas, aplica<strong>do</strong>, debruça<strong>do</strong><br />
sobre uma escrivaninha coberta de <strong>livro</strong>s. Pensavam: Por<br />
isso tinha volta<strong>do</strong> falan<strong>do</strong> um pouco de inglês e espanhol.<br />
"Majnun! Um maluco, esse Omar!", disse Halim, beben-<br />
<strong>do</strong> um trago de arak.<br />
Ele me levara para um boteco na ponta da Cidade Flu-<br />
tuante. Dali podíamos ver os barrancos <strong>do</strong>s Educan<strong>do</strong>s, o
imenso igarapé que separa o bairro anfí~bio <strong>do</strong> centro de<br />
Manaus. Era a hora <strong>do</strong> alvoroço. O labirinto de casas ergui-<br />
das sobre troncos fervilhava: um enxame de canoas navega-<br />
va ao re<strong>do</strong>r das casas flutuantes, os mora<strong>do</strong>res chegavam<br />
<strong>do</strong> trabalho, caminhavam em fila sobre as tábuas estreitas,<br />
que formam uma teia de circulação. Os mais ousa<strong>do</strong>s carre-<br />
gavam um botijão, uma criança, sacos de farinha; se não<br />
fossem equilibristas, cairiam no Negro. Um ou outro sumia<br />
na escuridão <strong>do</strong> rio e virava notícia.<br />
Eu tinha percorri<strong>do</strong> os caminhos da Cidade Flutuante<br />
nas folgas <strong>do</strong> <strong>do</strong>mingo. No entanto, Halim conhecia o bair-<br />
ro melhor <strong>do</strong> que eu; conhecia e era conheci<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong><br />
vendia além da conta, fechava a loja mais ce<strong>do</strong> e entrava<br />
no trança<strong>do</strong> de ruelas <strong>do</strong> bairro agita<strong>do</strong>. Ia de casa em casa,<br />
cumprimentava esse e aquele e sentava à mesa <strong>do</strong> último<br />
boteco, onde tomava uns tragos e comprava peixe fresco<br />
<strong>do</strong>s compadres que chegavam <strong>do</strong>s lagos.<br />
Antes da nossa conversa, ofereceu tabaco de corda a<br />
um compadre <strong>do</strong> lago <strong>do</strong> Janauacá, o Pocu, que vinha a Ma-<br />
naus para vender sorva, fibras de piaçaba e farinha. Quan<strong>do</strong><br />
não vendia suas coisas, trocava <strong>por</strong> sal, café, açúcar e ins-<br />
trumentos de pesca. Sempre trazia um pacu frito para tira-<br />
gosto e contava casos; tinha si<strong>do</strong> comandante de barco e<br />
navegara <strong>por</strong> muitos rios. Ouvimos o trechinho de uma<br />
história que até Halim desconhecia: a de um casal de irmãos<br />
que morava num barco aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>, escondi<strong>do</strong>, encalha<strong>do</strong><br />
para sempre, lá perto da boca <strong>do</strong> rio Preto da Eva. Dois se-<br />
res <strong>do</strong> mesmo sangue, irmãos, viven<strong>do</strong> longe de tu<strong>do</strong>, sem<br />
nenhum sinal de vida humana <strong>por</strong> perto. Num entardecer,<br />
finzinho de uma grande pescaria, Pocu os encontrou e fa-<br />
lou com eles.<br />
"Bichos. . .", murmurou Pocu. "Viviam que nem bichos."<br />
"Bichos?" Halim balançou a cabeça, mirou o banzeiro,<br />
os barcos amontoa<strong>do</strong>s no pequeno <strong>por</strong>to das escadarias <strong>do</strong>s<br />
Remédios.<br />
"Isso mesmo, bichos. Só que pareciam felizes."<br />
"Conheço um bicho, mas sem muita coragem." Halim<br />
soltou a língua, tomou mais um gole de arak, enrolou um ci-<br />
garro, o olhar vagan<strong>do</strong> entre a Cidade Flutuante e a floresta.<br />
Agora ouvíamos a barulheira <strong>do</strong>s que zanzavam carre-<br />
gan<strong>do</strong> tralhas, o grito <strong>do</strong>s catraieiros, grunhi<strong>do</strong>s de <strong>por</strong>cos, as<br />
vozes vizinhas, choro de crianças, a algaravia <strong>do</strong> anoitecer.<br />
"Um bicho sem muita coragem", ele repetiu, o cigarro<br />
na boca. Marcou um encontro com Pocu, que desse uma<br />
voltinha na loja, amanhã, antes <strong>do</strong> sol a pino. O ex-bar-<br />
queiro saiu <strong>do</strong> boteco e <strong>por</strong> um momento eu fiquei imagi-<br />
nan<strong>do</strong> o fim da história <strong>do</strong>s irmãos amantes. Invenção de<br />
Pocu? E o que há de verdade e mentira nas palavras de um<br />
navegante? Ele contara o evento com convicção e ar<strong>do</strong>r,<br />
i2o ~ izi<br />
como se fosse uma verdade íntima, tanto que continuei a<br />
pensar nos <strong>do</strong>is irmãos acasala<strong>do</strong>s num barco.<br />
"Isso mesmo, majnun, um maluco mesmo." Halim es-<br />
talou os de<strong>do</strong>s, depois coçou a barba <strong>por</strong> fazer, grisalha,<br />
que envelhecia ainda mais o seu rosto. "Omar quer viver<br />
com emoção. Ele não abre mão disso, quer sentir emoção<br />
em cada instante da vida. A Zana pensou que o nosso fi-
lho..." Halim olhou para a margem <strong>do</strong> rio, como se ten-<br />
tasse lembrar de algo. "Sabes de uma coisa? Eu também. ..<br />
estava crente que ele tinha estuda<strong>do</strong> um semestre inteiro<br />
num ótimo colégio e que depois ia poder entrar numa um-<br />
versidade. Nem São Paulo corrigiu o Omar! Aliás, nenhum<br />
santo nem cidade vai dar jeito nele."<br />
Então Yaqub revelou a verdade, na versão dele. Con-<br />
tou só para o pai, que deixou o outro desabafar. O enge-<br />
nheiro, lacônico, dessa vez desan<strong>do</strong>u a falar mal <strong>do</strong> irmão:<br />
"Um mal-agradeci<strong>do</strong>, um primitivo, um irracional, estra-<br />
ga<strong>do</strong> até o tutano. Fez pouco de mim e da minha mulher".<br />
Halim escutara o filho <strong>do</strong>utor com um ar sério, com-<br />
penetra<strong>do</strong>. Agora, à mesa <strong>do</strong> boteco, contraía o rosto e sol-<br />
tava uma gargalhada de dar me<strong>do</strong>.<br />
Pois bem, o Caçula enviou o primeiro cartão-postal de<br />
Miami; depois enviou outros, de Tampa, Mobile e Nova<br />
Orleans, contan<strong>do</strong> suas farras e peripécias em cada cidade.<br />
Yaqub rasgara to<strong>do</strong>s os postais menos um, que entregou ao<br />
pai: "Queri<strong>do</strong>s mano e cunhada, Louisiana é a América em<br />
esta<strong>do</strong> bruto e mesmo brutal, e o Mississippi é o Amazonas<br />
desta paragem. Por que não dão uma voltinha <strong>por</strong> aqui?<br />
Mesmo selvagem, Louisiana é mais civilizada que vocês<br />
<strong>do</strong>is juntos. Se vierem, tratem de pintar o cabelo de loiro,<br />
assim vão ser superiores em tu<strong>do</strong>. Mano, a tua mulher, que<br />
já <strong>foi</strong> bonita, pode rejuvenescer com o cabelo <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>. E tu<br />
podes enriquecer muito, aqui na América. Abraços <strong>do</strong> ma-<br />
no e cunha<strong>do</strong> Omar".<br />
"Durante cem dias o teu filho <strong>foi</strong> disciplina<strong>do</strong> como não<br />
tinha si<strong>do</strong> em quase trinta anos, mas foram cem dias de<br />
farsa", dis~e Yaqub ao pai. "Ele roubou meu passa<strong>por</strong>te e<br />
viajou para os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. O passa<strong>por</strong>te, uma gravata<br />
de seda e duas camisas de linho irlandês!"<br />
Yaqub teve certeza disso quan<strong>do</strong> recebeu o primeiro<br />
cartão-postal. Já tinha expulsa<strong>do</strong> a empregada, <strong>por</strong>que ela<br />
levara Omar para o apartamento quan<strong>do</strong> ele e a esposa es-<br />
tavam em Santos no feria<strong>do</strong> de 15 de novembro. A empre-<br />
gada havia confessa<strong>do</strong> quase tu<strong>do</strong>: Omar a levara para pas-<br />
sear no Trianon e no Jardim da Luz; tinham almoça<strong>do</strong> no<br />
Brás e nos restaurantes <strong>do</strong> centro. Dois folgadões! Tu<strong>do</strong> is-<br />
so com o dinheiro que vocês mandavam, disse Yaqub, ira<strong>do</strong>.<br />
Depois Yaqub se lembrou <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is volumes velhos e em-<br />
poeira<strong>do</strong>s de cálculo integral e diferencial, <strong>livro</strong>s que com-<br />
prara <strong>por</strong> uma pechincha num sebo da rua Aurora. Abriu os<br />
<strong>livro</strong>s com o pressentimento de que fora avilta<strong>do</strong>. Rangia<br />
os dentes, as mãos trêmulas mal conseguiam folhear o pri-<br />
meiro volume, onde tinham si<strong>do</strong> enfiadas várias cédulas de<br />
um dólar; no outro volume guardara as notas de vinte. Fo-<br />
lheou os <strong>do</strong>is <strong>livro</strong>s, página <strong>por</strong> página, depois chacoalhou-<br />
os, e caíram cédulas de um dólar. O patife! Muito bem, que<br />
o pulha levasse o passa<strong>por</strong>te, a gravata de seda, as camisas<br />
de linho, mas dinheiro... "Deixou a mixaria, deixou o que<br />
ele é. Esse é o teu filho. Um Ytarami, ladrão!"<br />
"Gritou ladrão tantas vezes que pensei que estivesse se<br />
123<br />
122<br />
referin<strong>do</strong> a mim", disse Halim. "Bom, ele falava <strong>do</strong> meu fi-<br />
lho, e de alguma forma me atingia. Mas deixei o Yaqub
falar, eu queria que ele desembuchasse tu<strong>do</strong>. Depois eu<br />
disse: 'Não dá para esquecer essas coisas? Per<strong>do</strong>ar?'. Meu<br />
Deus, <strong>foi</strong> pior!"<br />
Yaqub passou da acusação à cobrança. Não ia sossegar<br />
enquanto o irmão não lhe devolvesse os oitocentos e vinte<br />
dólares rouba<strong>do</strong>s. Uma fortuna! A poupança de um ano de<br />
trabalho. Um ano calculan<strong>do</strong> estruturas de casas e edifícios<br />
na capital e no interior. Um ano vistorian<strong>do</strong> obras. Zana<br />
devia conhecer essa história, e aí sim, ela ia entender o<br />
verdadeiro caráter <strong>do</strong> caçulinha dela, o peludinho frágil.<br />
Mimem esse crápula até ele acabar com vocês! Vendam a<br />
loja e a casa! Vendam a Domingas, vendam tu<strong>do</strong> para es-<br />
timular a safadeza dele!<br />
"Ele não parava, não conseguia parar de xingar o filho<br />
mima<strong>do</strong> da minha mulher. Parece que o diabo torce para<br />
que uma mãe escolha um filho..." Halim me encarou: os<br />
olhos embacia<strong>do</strong>s pareciam querer dizer mais. Ele se apru-<br />
mou. "Não estava furioso só <strong>por</strong> causa <strong>do</strong>s dólares. A em-<br />
pregada já tinha conta<strong>do</strong> para Omar quem era a esposa de<br />
Yaqub. Ficou ira<strong>do</strong> <strong>por</strong>que o Caçula entrou no apartamen-<br />
to dele e vasculhou tu<strong>do</strong>, encontrou as fotos <strong>do</strong> casamento,<br />
das viagens, e deve ter visto outras coisas. Só eu sabia que<br />
a Lívia, a primeira namorada <strong>do</strong> Yaqub, tinha viaja<strong>do</strong> para<br />
São Paulo a pedi<strong>do</strong> dele. Ele queria manter esse segre<strong>do</strong>,<br />
mas Omar acabou saben<strong>do</strong>. Não sei qual <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is ficou mais<br />
enciuma<strong>do</strong>, mas a verdade é que Yaqub não per<strong>do</strong>ou os<br />
desenhos obscenos que Omar fez nas fotos de casamento.. ."<br />
Halim pôs as mãos na cabeça, confirmou: "Isso mes-<br />
mo: Omar encheu o rosto da Lívia de obscenidades, cobriu<br />
as fotografias <strong>do</strong> álbum de casamento com palavrões e dese-<br />
nhos.. . Yaqub ficou louco. . . Não tinha per<strong>do</strong>a<strong>do</strong> a agressão<br />
<strong>do</strong> irmão na infância, a cicatriz. .. Isso nunca tinha saí<strong>do</strong> da<br />
cabeça dele. Jurou que um dia ia se vingar".<br />
Agora ele parecia melancólico e bebia arak com gelo,<br />
raramente bebia outra coisa. Duas garrafinhas azuis na me-<br />
sa, com o selo de Zahle, compradas de um contrabandista.<br />
Tomou três, quatro goles, enrolou mais um cigarro. O rio e<br />
o céu se confundiam, e, ao longe, uma procissão de canoas<br />
iluminadas desenhava uma linha sinuosa na escuridão. O<br />
vento trazia o cheiro da floresta, não muito distante. O vo-<br />
zerio findava, a Cidade Flutuante aquietava-se.<br />
Halim ia parar de falar? Ele me encarou mais uma vez,<br />
mordeu com raiva o lábio inferior. Deu um murro na me-<br />
sa, como se pedisse silêncio.<br />
"Sabes o que eu fiz depois dessas acusações?" Ele pare-<br />
cia agita<strong>do</strong>, meio bêba<strong>do</strong>, sei lá. "Sabes o que a gente deve<br />
fazer quan<strong>do</strong> um filho, um parente ou um fulano qualquer<br />
estrebucha <strong>por</strong> causa de dinheiro? Sabes?"<br />
"Não", eu disse, quase sem perceber.<br />
"Pois bem. Deixei o Yaqub terminar. Estava altera<strong>do</strong>,<br />
nunca tinha visto meu filho assim. Depois <strong>do</strong> desabafo, ele<br />
<strong>foi</strong> murchan<strong>do</strong>, virou mururé fora d'água. Então eu disse:<br />
'Está bem, vou dar um jeito nisso'. Pensou que eu ia sair<br />
atrás <strong>do</strong> irmão dele, ou que eu ia contar tu<strong>do</strong> para Zana. Me<br />
levantei, voltei para casa, enchi de orquídeas os vasos <strong>do</strong><br />
quarto, armei a rede e gritei o nome da minha mulher...<br />
Filhos! Por Deus, eu tinha que esquecer todas essas <strong>por</strong>-
carias, os oitocentos e vinte dólares, o passa<strong>por</strong>te, a gravata,<br />
i24 ~ i25<br />
as camisas e a droga de Louisiana... Zana entrou no quarto<br />
e me viu nu na rede. Me viu e entendeu. Declamei umas<br />
palavras <strong>do</strong> Abbas... Era a senha..."<br />
Foi a primeira vez que vi Halim cambalear; estava gro-<br />
gue, <strong>por</strong> pouco não caiu da cadeira. Ele quis ficar mais uns<br />
minutos ali, sem dar um pio. Um pequeno motor se aproxi-<br />
mou <strong>do</strong>s troncos, o comandante lançou as cordas e eu<br />
ajudei na amarração. Atracou perto <strong>do</strong> boteco, o holofote<br />
<strong>do</strong> motor girou lentamente, focou os esteios de madeira, a<br />
nossa mesa, o rosto de Halim. Vi seu lábio inferior vermelho<br />
demais, feri<strong>do</strong>, no rosto abrasa<strong>do</strong>. Pedi ao comandante que<br />
iluminasse a nossa mesa e ajudei Halim a se levantar. Acom-<br />
panhei-o de volta para casa; nós <strong>do</strong>is juntos, abraça<strong>do</strong>s, atra-<br />
vessamos passagens estreitas, caminhamos sobre as tábuas<br />
envergadas da Cidade Flutuante. De vez em quan<strong>do</strong> alguém<br />
o chamava, mas ele não respondia, continuava andan<strong>do</strong><br />
comigo na escuridão. O silêncio de Halim. Eu já descon-<br />
fiava <strong>do</strong> que ele mais temia. O engenheiro se engrandecia,<br />
endinheira<strong>do</strong>. E o outro gêmeo não precisava de dinheiro<br />
para ser o que era, para fazer o que fez.<br />
E como fez! Aqueles cinco ou seïs anos: o tempo entre a<br />
fuga de Omar e a visita de Yaqub a Manaus. Só depois sou-<br />
bemos que Yaqub havia prospera<strong>do</strong>, aspiran<strong>do</strong>, talvez, a um<br />
lugar no vértice. Ele mudara de endereço, e o novo bairro<br />
paulistano onde morava dizia muito. O bairro e o aparta-<br />
mento, <strong>por</strong>que agora as fotografias enviadas <strong>por</strong> Yaqub<br />
revelavam interiores tão imponentes que os corpos dimi-<br />
nuíam, tendiam a desaparecer. Rânia reclamava disso:<br />
~~Querem mostrar a decoração e se esquecem de mostrar o<br />
rosto", dizia.<br />
Realmente, os rostos <strong>do</strong> casal Yaqub se afastaram da<br />
lente <strong>do</strong> fotógrafo. A mulher dele, que só existia na minha<br />
imaginação, agora aparecia nas imagens como um corpo<br />
alto e delga<strong>do</strong>, mais fino que lâmina. Omar dissera que a<br />
mulher arrastava Yaqub para os clubes grã-finos, onde ele<br />
conhecia clientes e fechava negócios. "Ela não pode ter fi-<br />
lhos", contou Omar, cruamente. "Mas as crias daqueles <strong>do</strong>is<br />
serão outras, vocês vão ver."<br />
Mesmo assim, Rânia emoldurava as fotografias e a<br />
mãe as mostrava às amigas. Zana orgulhava-se <strong>do</strong> filho<br />
<strong>do</strong>utor, mas na conversa com as vizinhas venerava Omar.<br />
Punha os gêmeos numa gangorra e fazia loas ao Caçula,<br />
elogian<strong>do</strong>-o até a cegueira. Mas Zana não era cega. Via<br />
muito, <strong>por</strong> to<strong>do</strong>s os ângulos, de perto e de longe, de frente<br />
e de viés, <strong>por</strong> cima e <strong>por</strong> baixo, e sua visão continha uma<br />
sabe<strong>do</strong>ria. Só que Zana era possuída <strong>por</strong> um ciúme exces-<br />
sivo. Fingiu não se desesperar com o casamento <strong>do</strong> filho:<br />
soube se controlar, mas não sossegou até descobrir quem<br />
era a nora. Aos poucos, a curiosidade cresceu com o ciú-<br />
me. A nora mandava de São Paulo caixas de presente para<br />
Halim. Garrafas de arak, latas de tabaco para o narguilé,<br />
sacos de pistache, figos secos, amên<strong>do</strong>as e tâmaras. Halim,<br />
guloso, se refestelava. "Que mulher! Que nora maravilho-<br />
sa!" Zana virava o rosto, tinha vontade de jogar tu<strong>do</strong> no<br />
lixo, mas acabava comen<strong>do</strong> as guloseimas às escondidas.
Sozinha, na cozinha, ela enchia a boca de tâmaras. To<strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> sabia disso: pela boca morriam to<strong>do</strong>s. O Caçula,<br />
insolente, exigia tu<strong>do</strong> <strong>do</strong> bom e <strong>do</strong> melhor. Catavam as<br />
ia6 ~ i27<br />
espinhas <strong>do</strong> peix~ para ele comer sem chateação; o pudim<br />
de tapioca com coco rala<strong>do</strong> tinha que ser bem assa<strong>do</strong>; co-<br />
mida mal passada ele mastigava e ia cuspir no galinheiro.<br />
Eu saboreava o plldim que o Caçula só ciscava. Minha mãe<br />
também escondla um punha<strong>do</strong> de tâmaras e amên<strong>do</strong>as<br />
atrás <strong>do</strong>s bichos ~e madeira. Eu comia antes de <strong>do</strong>rmir, ela<br />
não tocava em nada, deixava tu<strong>do</strong> para mim, queria me<br />
ver saudável, fortu<strong>do</strong> como um cavalo.<br />
Halim nunca quis ter mais que o necessário para co-<br />
mer, e eomer bein, Não se azucrinava com as goteiras nem<br />
com os morceg4s que, aninha<strong>do</strong>s no forro, sob as telhas<br />
quebradas faziam vôos rasantes nas muitas noites sem<br />
luz. NoZtes de bl~caute no norte, enquanto a nova capital<br />
<strong>do</strong> país estava sen<strong>do</strong> inaugurada. A euforia, que vinha de<br />
um Brasil tão diStante, chegava a Manaus como um sopro<br />
amornd<strong>do</strong>. E o f uturo, ou a idéia de um futuro promissor,<br />
dissolvìa_se no ~ormaço amazônico. Estávamos longe da<br />
era industrial e mais longe ainda <strong>do</strong> nosso passa<strong>do</strong> gran-<br />
dioso. zana, qu,e na juventude aproveitara os resquícios<br />
desse passa<strong>do</strong>, agora se irritava com a geladeira a quero-<br />
sene, com o fogareiro, com o jipe mais velho de Manaus,<br />
que cir~ulava aqs sacolejos e fumegava.<br />
N~ssa época, Rânia quis modernizar a loja, decorá-la,<br />
variar as merca<strong>do</strong>rias. Halim fez um gesto de fadiga, talvez<br />
indifer,~nça. Nã o tinham dinheiro para reformar a casa<br />
nem a loja, mui~o menos os <strong>do</strong>is quartos <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s, onde<br />
eu e rrünha mã~ <strong>do</strong>rmíamos. E, quan<strong>do</strong> menos esperáva-<br />
mos, o pequenp deus agiu sobre nossa vida. Yaqub agiu e<br />
<strong>foi</strong> gerZeroso. Anos depois, no momento mais trágico da<br />
vida d~le, eu re~ribuiria, talvez sem querer, essa generosi-<br />
dade que de algum mo<strong>do</strong> mu<strong>do</strong>u minha vida. Ele não era<br />
desatento para o mun<strong>do</strong>; ao contrário, observava tu<strong>do</strong>, e<br />
isso eu fui perceben<strong>do</strong> aos poucos. Na breve visita que fez<br />
a Manaus, deve ter nota<strong>do</strong> e anota<strong>do</strong> todas as carências da<br />
casa, <strong>do</strong>s parentes e emprega<strong>do</strong>s. O homem que estrebu-<br />
chou <strong>por</strong> oitocentos e vinte dólares e uns poucos pertences<br />
transformou a nossa casa.<br />
Halim não teve tempo de recusar a ajuda providencial.<br />
Uma boa amostra da indústria e <strong>do</strong> progresso de São Paulo<br />
estacionou diante da casa. Os vizinhos se aproximaram<br />
para ver o caminhão cheio de caixas de madeira lacradas;<br />
a palavra frágil, pintada de vermelho num <strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s, salta-<br />
va aos olhos. Vimos, como dádiva divina, os utensílios <strong>do</strong>-<br />
mésticos novinhos em folha, esmalta<strong>do</strong>s, enfileira<strong>do</strong>s na<br />
sala. Se a inauguração de Brasília havia causa<strong>do</strong> euforia<br />
nacional, a chegada daqueles objetos <strong>foi</strong> o grande evento<br />
na nossa casa. O maior problema era o corte quase diário<br />
de energia, de mo<strong>do</strong> que Zana decidiu manter ligada a<br />
geladeira a querosene. Domingas, no fim da tarde, antes<br />
<strong>do</strong> blecaute, tirava tu<strong>do</strong> da geladeira nova e transferia pa-<br />
ra a velha. T~<strong>do</strong> o que era novo, mesmo de uso limita<strong>do</strong>,<br />
impressionava. Yaqub surpreendeu ainda mais: man<strong>do</strong>u<br />
dinheiro para restaurar a casa e pintar a loja. Então, uma
aparência moderna lustrou o nosso teto. Nosso, <strong>por</strong>que o<br />
meu quarto e o de minha mãe também foram reforma<strong>do</strong>s.<br />
Troquei as ripas <strong>do</strong> forro, tapei com argamassa os buracos<br />
das paredes e as pintei de branco; construí um telheiro le-<br />
vemente inclina<strong>do</strong> para proteger as janelas da chuva; des-<br />
de então, pude <strong>do</strong>rmir e estudar sem goteiras, sem o mofo e<br />
o bolor que nas noites mais úmidas <strong>do</strong> ano dificultavam mi-<br />
i2.8 ~ i29<br />
nha respiração. Eu abria as duas janelas, uma que dá para o<br />
quintal, a outra para o alpendre, e deixava o sol aquecer as<br />
paredes e o chão. Quan<strong>do</strong> chovia sem força de tem<strong>por</strong>al,<br />
Domingas entrava no meu quarto e eu a ajudava a tirar a ',<br />
casca de um pedaço de tronco de muirapiranga, que depois '~<br />
ela esculpiria com habilidade e paciência. Ela, que tinha ~~<br />
me<strong>do</strong> de trocar uma lâmpada, podia transformar um pau ~<br />
tosco num pequenino papa-açaí de peito encarna<strong>do</strong>. Graças i<br />
a Yaqub, os nossos cômo<strong>do</strong>s tornaram-se habitáveis em :~<br />
qualquer época <strong>do</strong> ano: os meses de chuva não nos amea- ~<br />
çavam como antes, e nós nos sentíamos mais à vontade pa-<br />
ra conversar ali.<br />
Rânia dirigiu a reforma da loja. Eu a ajudei a emboçar e<br />
rebocar a fachada, e ela mesma pegou nas brochas e pintou<br />
todas as paredes de verde. Minha ajuda não <strong>foi</strong> inútil, mas<br />
quem trabalhasse ao la<strong>do</strong> de Rânia tinha a sensação de que<br />
estava atrapalhan<strong>do</strong>. Ela queria fazer tu<strong>do</strong> sozinha, e tu<strong>do</strong><br />
era pouco para o empenho e a disposição dela. Era forçuda<br />
como uma anta e paciente como o pai, que a observava per-<br />
plexo, rodea<strong>do</strong> pelos amigos <strong>do</strong> gamão e <strong>do</strong>s tragos. Depois<br />
da reforma, Rânia tomou mais gosto pela loja. Mandava e<br />
desmandava, cuidava <strong>do</strong> caixa, <strong>do</strong> estoque e das dívidas <strong>do</strong>s<br />
caloteiros. Acabou de vez com a venda a fia<strong>do</strong>, "uma filan-<br />
tropia que não combina com o comércio". Publicou anún-<br />
cios nos jornais e nas estações de rádio, man<strong>do</strong>u imprimir<br />
folhetos de propaganda. Fez uma promoção de merca<strong>do</strong>rias<br />
e torrou o encalhe, as coisas velhas, de um outro tempo.<br />
Ela acreditava na moda, e reverenciou a moda <strong>do</strong> mo-<br />
mento.<br />
Desconfiei da sanha empreende<strong>do</strong>ra de Rânia e percebi<br />
que o seu impulso era movi<strong>do</strong> pelas mãos e as palavras de<br />
yaqub. Em menos de seis meses a loja deu uma guinada,<br />
antecipan<strong>do</strong> a euforia econômica que não ia tardar.<br />
Omar desprezou a reforma da casa e da loja. Proibiu<br />
que pintassem seu quarto, privou-se de qualquer sinal de<br />
conforto material que viesse <strong>do</strong> irmão. Comia fora de casa.<br />
A mãe enlouquecia quan<strong>do</strong> não o encontrava de manhã<br />
no quarto dele. Ele continuou fiel a suas aventuras, fiel aos<br />
clubes noturnos, onde era conheci<strong>do</strong> e festeja<strong>do</strong>. Sem ele,<br />
o leque luminoso <strong>do</strong> Acapulco Night Club brilhava menos.<br />
Nos dias de fevereiro, seu quarto cheirava a álcool e lança-<br />
perfume. Fantasiava-se com extravagância, pregava nas<br />
paredes <strong>do</strong> quarto fotografias coloridas em que aparecia<br />
enrosca<strong>do</strong> em colombinas e odaliscas seminuas. A mãe se<br />
divertia ao mirar as imagens: era preferível contemplá-lo<br />
numa foto, cerca<strong>do</strong> de mulheres quase nuas, a vê-lo em<br />
carne e osso com uma única mulher vestida. O êxtase <strong>do</strong><br />
lança-perfume induzia Omar a surrupiar uma parte <strong>do</strong> di-<br />
nheiro <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> e da feira. Várias vezes fez isso. Depois vi
Domingas tirar uma ou duas cédulas amarelas, imaginan<strong>do</strong><br />
que a patroa atribuiria o roubo ao filho. Não atribuiu a nin-<br />
guém: Zana se deixava ludibriar. Às vezes, quan<strong>do</strong> o filho se<br />
penteava diante <strong>do</strong> espelho da sala, a mãe se aproximava<br />
dele, cheirava-lhe o pescoço, e enquanto ele se arrepiava,<br />
vai<strong>do</strong>so e possuí<strong>do</strong> pelo amor materno, ela arrumava-lhe a<br />
gola da camisa; depois a mão de Zana descia, apertava o cin-<br />
turão, e nesse momento dava um jeito de enfiar um maço<br />
de cédulas no bolso da calça.<br />
<strong>Este</strong> <strong>livro</strong> <strong>foi</strong> <strong>digitaliza<strong>do</strong></strong> <strong>por</strong> <strong>Raimun<strong>do</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Vale</strong> Lucas, com a única<br />
intenção de que seja bem utiliza<strong>do</strong> <strong>por</strong> seus companheiros cegos<br />
O Caçula preferia ignorar que parte daquele dinheiro<br />
vinha de São Paulo. Dinheiro e merca<strong>do</strong>rias: Yaqub co-<br />
nhecia alguns fabricantes na capital e no interior de São<br />
Paulo, gente que freqüentava os mesmos clubes que ele e<br />
para quem ele construíra casas e edifícios. Rânia recebia as<br />
amostras, escolhia os teci<strong>do</strong>s, as camisetas, carteiras e bol-<br />
sas. Quan<strong>do</strong> Halim se deu conta, já não vendia quase nada<br />
<strong>do</strong> que sempre vendera: redes, malhadeiras, caixas de fós-<br />
foro, terça<strong>do</strong>s, tabaco de corda, iscas para corricar, lanter-<br />
nas e lamparinas. Assim, ele se distanciava das pessoas <strong>do</strong><br />
interior, que antes vinham à sua <strong>por</strong>ta, entravam na loja,<br />
compravam, trocavam ou sirnplesmente proseavam, o que<br />
para Halim dava quase no mesmo.<br />
Agora a fachada da loja exibia vitrines, e pouca coisa<br />
restava que lembrasse o antigo armarinho situa<strong>do</strong> a menos<br />
de duzentos metros da praia <strong>do</strong> Negro. Restou, sïm, o chei-<br />
ro, que resistiu ao reboco, à pintura e aos novos tempos. A<br />
sobreloja, espaço exíguo onde Halim às vezes rezava ou se<br />
refugiava com a mulher, não havia si<strong>do</strong> reformada. Ali ele<br />
empilhou seus badulaques e ali ele se entocava, agora sem<br />
Zana, sozinho. De vez em quan<strong>do</strong> eu o via na janela, pican-<br />
<strong>do</strong> tabaco e enrolan<strong>do</strong> um cigarro, o olhar na rua <strong>do</strong>s Barés,<br />
seus quiosques, camelôs, mendigos e bêba<strong>do</strong>s em meio aos<br />
urubus, atento para o burburinho da rua que era uma ex-<br />
tensão <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong> e <strong>do</strong> atraca<strong>do</strong>uro <strong>do</strong> pequeno <strong>por</strong>to.<br />
Penso que não me via, olhava na minha direção e não<br />
me enxergava, ou me confundia com um passante qual-<br />
quer, um <strong>do</strong>s muitos que rondam a zona <strong>por</strong>tuária desde<br />
sempre, caminhan<strong>do</strong> a esmo pelas calçadas ou pela beira <strong>do</strong><br />
rio, paran<strong>do</strong> numa taberna para tomar um trago ou comer<br />
um jaraqui frito. A vista <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong> Municipal e seus<br />
arre<strong>do</strong>res, isso o velho Halim apreciava. As frutas e peixes,<br />
os paus e troncos podres, pedaços de uma natureza morta<br />
que teima em renascer <strong>por</strong> meio <strong>do</strong> cheiro.<br />
"Esse cheiro", disse Halim no esconderijo da sobreloja,<br />
"e essa gente toda, os pesca<strong>do</strong>res, os carroceiros, os carre-<br />
ga<strong>do</strong>res que conheci quan<strong>do</strong> era muito jovem, antes de<br />
freqüen.tar o restaurante <strong>do</strong> Galib."<br />
Passavam em frente ao Merca<strong>do</strong> Municipal, já velhos,<br />
recurva<strong>do</strong>s, ainda carregan<strong>do</strong> nas costas sacos de farinha e<br />
um monte de pencas de pacovã; acenavam para Halim, mas<br />
não davam mais uma paradinha na loja para tomar água ou<br />
guaraná. Não paravam, continuavam a subir até o topo da<br />
praça, onde descarregavam o far<strong>do</strong>. Depois voltavam para a
eira das escadarias <strong>do</strong> pequeno <strong>por</strong>to, entravam nas em-<br />
barcações e recomeçavam. Desde quan<strong>do</strong> faziam isso?<br />
"Há mais de meio século", continuou. "Eu era mole-<br />
que, e eles uns curumins que já carregavam tu<strong>do</strong>, iam <strong>do</strong>s<br />
barcos para o alto da praça, o dia to<strong>do</strong> assim. Eu vendia tu-<br />
<strong>do</strong>, de <strong>por</strong>ta em <strong>por</strong>ta. Entrei em centenas de casas de Ma-<br />
naus, e quan<strong>do</strong> não vendia nada, me ofereciam guaraná,<br />
banana frita, tapioquinha com café. Em vinte e poucos, <strong>por</strong><br />
aí, conheci o restaurante <strong>do</strong> Galib e vi a Zana... Depois, a<br />
morte <strong>do</strong> Galib, o nascimento <strong>do</strong>s gêmeos..."<br />
Não mencionou Domingas. Adiei a pergunta sobre o<br />
meu nascimento. Meu pai. Sempre adiaria, talvez <strong>por</strong> me-<br />
<strong>do</strong>. Eu me enredava em conjeturas, matutava, desconfiava<br />
de Omar, dizia a mim mesmo: Yaqub é o meu pai, mas<br />
também pode ser o Caçula, ele me provoca, se entrega com<br />
0 olhar, com o escárnio dele. Halim nunca quis falar disso,<br />
132 ~ 133<br />
nem insinuou nada. Devia temer não sei o quê. Ainda bem<br />
que não chegou a presenciar o pior. O mais infame, o fun<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> abismo que Halim tanto temia, só aconteceu alguns anos<br />
depois da história da Pau-Mulato.<br />
Pau-Mulato: bela rubiácea. E que apeli<strong>do</strong> para uma<br />
mulher!<br />
O apeli<strong>do</strong> <strong>foi</strong> o de menos. Depois de Dália, Zana pen-<br />
sou que o Caçula ia desistir de amar alguém. Não desistiu;<br />
não era tão fraco assim. Além disso, as mulheres da casa<br />
não saciavam a sede <strong>do</strong> Caçula. E o aventureiro, quan<strong>do</strong><br />
menos ëspera, cai na malhadeira e se enrosca.<br />
Desta vez Halim parecia baquea<strong>do</strong>. Não bebeu, não<br />
queria falar. Contava esse e aquele caso, <strong>do</strong>s gêmeos, de sua<br />
vida, de Zana, e eu juntava os cacos dispersos, tentan<strong>do</strong> re-<br />
com<strong>por</strong> a tela <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.<br />
"Certas coisas a gente não deve contar a ninguém",<br />
disse ele, miran<strong>do</strong> nos meus olhos.<br />
Relutou, insistiu no silêncio. Mas para quem ia desa-<br />
bafar? Eu era o seu confidente, bem ou mal era um mem-<br />
bro da famMia, o neto de Halim.<br />
Omar se escondeu com a Pau-Mulato. Não a trouxe<br />
para casa, e <strong>por</strong> um bom tempo deixou de visitar os clubes<br />
noturnos. Voltava sereno, sem a expressão estúrdia e os tro-<br />
peções da bebedeira. Passou a <strong>do</strong>rmir no quarto dele. Ele,<br />
que se excedera na algazarra, agora exagerava na discrição.<br />
Tanto silêncio parecia um excesso. Omar amanhecia no<br />
quarto e amanhecia em paz, sem ressaca, sem aquele olhar<br />
esgazea<strong>do</strong> das noites insones e insanas. Esse homem meta-<br />
morfosea<strong>do</strong> em anjo assombrou sua mãe. E o anjo, em lu-<br />
gar de apaziguá-la, transtornou-a. Zana achava esquisito ver<br />
o filho à mesa nas refeições, ver o homem que nunca tinha<br />
trabalha<strong>do</strong> acordar ce<strong>do</strong>, barbear-se, vestir sua melhor rou-<br />
pa e dirigir-se a um banco estrangeiro. Era um emprego e<br />
tanto, e para isso deviam ter servi<strong>do</strong> suas andanças pela<br />
Flórida e Louisiana. Não tinha pinta de americano, muito<br />
menos de inglês, mas andava engravata<strong>do</strong>, e quem o visse<br />
de longe, alto, ereto, o cabelo engoma<strong>do</strong> e reparti<strong>do</strong> ao<br />
meio, poderia tê-lo confundi<strong>do</strong> com Yaqub. Quer dizer, na<br />
aparência podia ser o outro, sen<strong>do</strong> ele próprio. A esponta-<br />
neïdade e o desleixo haviam sumi<strong>do</strong> de seu corpo; e aquele
ímpeto de quem se arrisca, de aventureiro que torce pelo<br />
lance mais difícil e excitante, isso também já não vibrava<br />
dentro dele. Tinha si<strong>do</strong> <strong>do</strong>ma<strong>do</strong>, <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>? O fogaréu que<br />
incendiava as noites manauaras virou chama de vela, olhi-<br />
nho de luz, quieto no escuro. Agora Omar era um obedien-<br />
te às normas e regras <strong>do</strong> trabalho rotineiro, um homem de<br />
relógio <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> no pulso, que entrava e saía com passos<br />
firmes.<br />
Rânia só faltava devorar esse novo irmão. Agora ela<br />
convivia mais com ele, conversavam durante o café da ma-<br />
nhã, quan<strong>do</strong> ela e a mãe o cercavam e davam palpites so-<br />
bre a roupa, o perfume, a cor da gravata e <strong>do</strong> sapato. Na<br />
manhã que Zahia o viu alinha<strong>do</strong> e transforma<strong>do</strong> num ca-<br />
valheiro, a mãe e a irmã não desgrudaram dele, nem tira-<br />
ram os olhos <strong>do</strong> decote da filha mais velha de Talib.<br />
"Dessa vez o Omar vai ser fisga<strong>do</strong> <strong>por</strong> um monte de<br />
noivas...", disse Zahia, beijan<strong>do</strong>-lhe o rosto.<br />
"Ele não precisa disso", disse Rânia.<br />
134 ~ 135<br />
"E para que serve uma noiva, querida? Ele é tão feliz<br />
assim", acrescentou Zana. "Minha filha é quem precisa de<br />
um noivo. T~z também, ZaL~ia... Quantos aninhos vais fa-<br />
zer? Meu Deus, quan<strong>do</strong> m e lembro que vocês duas já fo-<br />
ram crianças..."<br />
"É verdade, preciso m,esmo de um noivo", concor<strong>do</strong>u<br />
Zahia. "Quem sabe se ele n âo <strong>do</strong>rme nessa casa?"<br />
"Halim é muito velho para ti, querida", riu Zana, aper-<br />
tan<strong>do</strong> as bochechas de Omax. "E o filho da Domingas é mui-<br />
to novinho, e só quer saber de estudar."<br />
Os olhos escuros de Zahia me encontraram na <strong>por</strong>ta<br />
da cozinha.<br />
"Só quer saber de estudar, mas é abelhu<strong>do</strong> como nin-<br />
guém", ela riu, me encaran<strong>do</strong> com o olhar aceso, de dan-<br />
çarina em noite de aniversá rio na casa de Zana e nos bailes<br />
de Sultana Benemou. Zahìa sabia que ali em casa não ha-<br />
via noivo para ela nem para sua irmã, mas não sabia o que<br />
estava acontecen<strong>do</strong> com Omar, traja<strong>do</strong> de linho branco,<br />
com um ar de felicidade, falan<strong>do</strong> menos e sorrin<strong>do</strong> muito<br />
mais, a ponto de surpreender os Reinoso e todas as visitas<br />
da casa. "Que rapagão o teu fílho, heïn, Zana", suspirava Es-<br />
telita. "Nern parece aquele desleixa<strong>do</strong>! Se não for feitiço de<br />
mulher, corto o meu pescoço-° Zana, nervosa, dava uma<br />
risada: "Então corta logo, <strong>Este</strong>lita. O Omar não é leso que<br />
nem o Yaqub".<br />
Já não o víamos de perrlas para o ar na rede vermelha,<br />
as unhas sujas e compridas esperan<strong>do</strong> pela tesourinha de<br />
Domingas, nem ouvíamos a voz meio pastosa exigin<strong>do</strong> que<br />
lhe cozinhassem tal peixe corn tal recheio. Por um tempo<br />
minha mãe ficou livre de sUas estocadas grosseiras e exi-<br />
gências absurdas. Ele parou de rosnar quan<strong>do</strong> despertava<br />
faminto ao meio-dia, e eu me livrei <strong>do</strong>s reca<strong>do</strong>s que manda-<br />
va para mulheres de vários baírros distantes. Voltava sóbrio<br />
das noitadas e, quan<strong>do</strong> não ia dïreto para o quarto, sentava<br />
11o quintal, respirava o ar úmi<strong>do</strong>, meditava. Ria sozinho.<br />
Nas noites enluaradas, quan<strong>do</strong> eu queimava as pestanas<br />
para terminar uma lição, via a cabeça erguida de Omar, o<br />
rosto ilumina<strong>do</strong> <strong>por</strong> um sorriso. Não nos falávamos. Ele se
perdia no enlevo e eu me concemtrava nas minhas leituras e<br />
equações. Vez ou outra via Zana espïá-lo da sala, ressabiada.<br />
EIe a ignorava.<br />
"Zana vivia desconfiada", disse Halim. Ele hesitava, e<br />
eu não sabia se queria calar ou contar tu<strong>do</strong>. Desistira de<br />
apaziguar os filhos, mas não de influir no destino de Omar,<br />
homem feito mas cheio de arestas esquisitas. "Um impre-<br />
visível... Levou para casa um ínglês empeteca<strong>do</strong>, um tal de<br />
Wyckham ou Weakhand, que se dïzia gerente de um banco<br />
estrangeiro. Comia que nem. uma mocinha, sentava com<br />
pose de debutante e tinha me<strong>do</strong> de provar o molho, o pei-<br />
xe e até o tabule. Um sujeito que tem me<strong>do</strong> de provar co-<br />
mida, pode?"<br />
Wyckham beliscou os quítutes de Domingas, recusou<br />
a sobremesa e deve ter levanta<strong>do</strong> da mesa faminto. Quan-<br />
<strong>do</strong> saiu, Omar o acompanhou, e então nós vimos à <strong>por</strong>ta<br />
da casa um Oldsmobile conversível, pratea<strong>do</strong>, os bancos for-<br />
ra<strong>do</strong>s de azulão. Era um carro e tanto. E, para nossa sur-<br />
presa, era o carro de Omar.<br />
Os <strong>do</strong>is entraram no conversível e da janela os vizinhos<br />
observavam a cena, atônitos, surpresos com tanto luxo,<br />
corn tanta compostura. Como tu<strong>do</strong> aquilo impressionava!<br />
i36 :~ i37<br />
A roupa impecável, os sapatos de cromo, o carro im<strong>por</strong>ta<strong>do</strong>.<br />
Tu<strong>do</strong> parecia o avesso dele, nada parecia ser ele. Até o últi-<br />
mo momento, ninguém soube o que estava acontecen<strong>do</strong>,<br />
ninguém, nem mesmo Halim. Zana, sim: <strong>foi</strong> a primeira a<br />
perceber, e duelou com garra na batalha final. Por Deus!<br />
Os estilhaços. Mas como ela tinha concluí<strong>do</strong>?<br />
"Como?" Halim mordeu os lábios. "Ela não precisou ir<br />
atrás <strong>do</strong> Omar, <strong>foi</strong> atrás <strong>do</strong> carro. .. aquela sucata de aço. O<br />
Omar poderia estar viven<strong>do</strong> com aquela mulher até hoje.<br />
Por mim, viveria com qualquer mulher, bonita ou feia,<br />
puta ou não... Com qualquer uma, ou muitas ao mesmo<br />
tempo, desde que me deixasse em paz com a minha..."<br />
O filho de Halim: forte, viril com todas, mas com a<br />
mãe se desmanchava em chamegos ou tremia como taqua-<br />
ra verde. Vá entender o poder de uma mãe. Daquela Zana.<br />
Porque só ela não engoliu a história <strong>do</strong> banco britânico. O<br />
Caçula ludibriou to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>: quem não acreditou naque-<br />
la aparência poderosa, nos horários britânicos e no próprio<br />
britânico? A voz dele, os gestos ensaia<strong>do</strong>s até a exaustão,<br />
as frases curtas, o temor de completá-las, os muitos sinais<br />
de bem-nasci<strong>do</strong>. Wyckham, o grandalhão de braços lon-<br />
guíssimos, rosto arre<strong>do</strong>nda<strong>do</strong> cheio de pintas vermelhas,<br />
era, como Zana veio a descobrir, um impostor, um senhor<br />
contrabandista. Os gestos, a voz, o jeito de comer, tu<strong>do</strong> era<br />
dele, menos a profissão. Omar trabalhava com Wyckham,<br />
era o seu braço direito. Os <strong>do</strong>is tinham uma sócia, e aí en-<br />
tram o conversível e a mulher. A mãe cascavilhou, imagi-<br />
nou, intuiu, deu uma de arquiteta às avessas: desfez os re-<br />
cantos construí<strong>do</strong>s. E a construção, inacabada, prometia<br />
ser monumental.<br />
Primeiro, a parte mais fácil: descobriu que o emprego<br />
no banco britânico era pura farsa. Depois, gatean<strong>do</strong> na Ca-<br />
pitania <strong>do</strong>s Portos e nos armazéns <strong>do</strong> Manaus Harbour, mo-<br />
lhou a mão de emprega<strong>do</strong>s e estiva<strong>do</strong>res. Com paciência,
armou a malhadeira e fisgou as piabas e as piraíbas. Armou<br />
também a rede, a teia de contraban<strong>do</strong> em que se envolvera<br />
Omar. O pai só tomou conhecimento da história perto <strong>do</strong><br />
desfecho. Daí seu semblante sisu<strong>do</strong> nas últimas semanas,<br />
antes da nossa conversa no depósito da loja.<br />
"Quan<strong>do</strong> o destino de um filho está em jogo, nenhum<br />
detetive <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> consegue mais pistas que uma mãe",<br />
ele disse. "Ela fez tu<strong>do</strong> caladinha, quieta que nem uma<br />
sombra."<br />
Zana ia ao <strong>por</strong>to todas as manhãs. Sem ser vista, viu<br />
várias vezes o filho. Não no <strong>por</strong>to, mas no armazém onde<br />
a muamba era empilhada e depois desviada para um desti-<br />
no incerto. Descobriu o destino e a origem. A muamba era<br />
trans<strong>por</strong>tada nos navios da Booth Line, Omar conferia tu-<br />
<strong>do</strong> no armazém número nove e saía sozinho no conversí-<br />
vel, enquanto as piabas da rede levavam a merca<strong>do</strong>ria para<br />
uma chácara. Chocolate suíço, roupas e caramelos ingle-<br />
ses, máquinas fotográficas japonesas, canetas, tênis ameri-<br />
canos. Tu<strong>do</strong> o que naquela época não se via em nenhuma<br />
cidade brasileira: a forma, a cor, a etiqueta, a embalagem e<br />
o cheiro estrangeiros. Wyckham percebeu isso. Intuiu a<br />
sede de novidade, de consumo, o poder de feitiço que cada<br />
coisa tem. De que forma participava <strong>do</strong> negócio? Estava<br />
ganhan<strong>do</strong> dinheiro? Halim não sabia. Mas o que Zana<br />
soube é que o seu Peludinho fora atraí<strong>do</strong> <strong>por</strong> uma mu-<br />
lher. Nunca andava com ela à luz <strong>do</strong> dia. Disfarçavam, os<br />
138 `~ 139<br />
<strong>do</strong>is no fun<strong>do</strong> de um caracol noturno, amorosos. Os <strong>do</strong>is e<br />
ninguém mais.<br />
°Como eu sempre quis." Halim enfim sorriu, e cumpri-<br />
mento u um peixeiro. "Dessa vez ele puxou ao pai, mas<br />
Zana estragou tu<strong>do</strong>."<br />
Ela descobriu um tipo de nome esquisito, Zanuri, que<br />
uma noite apareceu em casa. Era um rapaz esquisito mes-<br />
mo, dissimula<strong>do</strong>, quase apresenta<strong>do</strong>, quase sorridente, um<br />
tipo cheio de metades e quases, com um nariz enjambra<strong>do</strong><br />
no rosto meio chupa<strong>do</strong>. Uma figura que carecïa de olhar,<br />
que é Como carecer de alma. Um chapéu Panamá enlaça<strong>do</strong><br />
<strong>por</strong> uríza fita amarela, inclina<strong>do</strong> na cabeça, dava a ele um<br />
jeito quase cômico.<br />
°(Zuase, <strong>por</strong>que era um ser incompleto da cabeça aos<br />
pés. Nem carnadura de homem esse Zanuri tinha", res-<br />
mungou Halim. "Um tipo covarde, incapaz de acariciar um<br />
animal. ""<br />
Halim antipatizou com ele assim, logo de cara, desde<br />
que o viu segredan<strong>do</strong> com Zana, uma única vez, no quios-<br />
que de ferro <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong> A<strong>do</strong>lpho Lisboa. A aversão cres-<br />
ceu, tornou-se insu<strong>por</strong>tável quan<strong>do</strong> Zanuri entrou na casa<br />
sem bater na <strong>por</strong>ta, em plena noite, ousadia típica de anti-<br />
go vizinho, nunca de um Zanuri qualquer. Halim estava na<br />
rede com Zana, ambos esqueci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, reman<strong>do</strong><br />
entre os mimos lentos da velhice que acenava. Aprovei-<br />
tavam o silêncio e o sereno da noite fresca. Rânia já tinha<br />
se confina<strong>do</strong> no quarto. Domingas, vencida pela fadiga,<br />
estava estendida na rede <strong>do</strong> aposento dela. E eu, amoita<strong>do</strong>,<br />
vi o tipo, o quase sorriso na cabeça <strong>do</strong> vulto. Ouvi murmú-<br />
rios. A voz de Zana prevalecia. Ela falava em voz baixa e
gesticulava como se repreendesse alguém. A sombra das<br />
mãos dela desenhava formas estranhas na parede <strong>do</strong> al-<br />
pendre, e quan<strong>do</strong> um barulhinho de trote veio da escada,<br />
ela calou. A sombra das mãos sumiu e a figura de Omar<br />
apareceu no centro da sala. Ele se penteou diante <strong>do</strong> espe-<br />
Iho, arqueou as sobrancelhas e sorriu para sua imagem.<br />
Estava elegante, o terno de linho irlandês recendia a chei-<br />
ro-<strong>do</strong>-pará, e um o<strong>do</strong>r mais forte exalava <strong>do</strong> corpo dele.<br />
Esses cheiros mistura<strong>do</strong>s, de essências daqui e de lá, en-<br />
cheram a casa. Ao meu esconderijo só chegaram os restos<br />
dessa mistura, um cheiro que morreu nos tajás da minha<br />
moita.<br />
Halïm viu o filho sair de casa. E, logo depois, o deplo-<br />
rável Zanuri.<br />
"Nada me perturbava quan<strong>do</strong> eu estava com a Zana<br />
na rede", Halim me disse, "mas encasquetei, desconfiei da<br />
mïssão daquele Zanuri, quis saber quem era aquele intruso.<br />
Um delator..."<br />
Zanuri, funcionário <strong>do</strong> Tribunal de Justiça, cobrava ca-<br />
ro <strong>por</strong> outro serviço: olheiro de apaixona<strong>do</strong>s. O alcagüete<br />
acumulara um punha<strong>do</strong> de cobre delatan<strong>do</strong> casais que es-<br />
banjam risos e arrepios. Mas casais clandestinos, enclausu-<br />
ra<strong>do</strong>s, vigia<strong>do</strong>s <strong>por</strong> um réptil invisível. Zanuri era Lzm assim:<br />
camufla<strong>do</strong>, cobra-papagaio enroscada em folhagem escura.<br />
De longe, Zanuri seguiu o conversível. O Oldsmobile<br />
afastou-se <strong>do</strong> centro, atravessou as pontes metálicas sobre<br />
os igarapés e entrou no labirinto da Cachoeirinha. Rua da<br />
Matinha, aclarada <strong>por</strong> lampiões de luz fraca. Terceira casa<br />
à direita, sem número. Casa de madeira, caiada, vasos no<br />
batente das duas janelas abertas. A sala iluminada, um<br />
i<br />
quadro oval, o rosto de Cristo emoldura<strong>do</strong>, na parede que<br />
dá para a rua. A <strong>por</strong>ta da sala, protegida <strong>por</strong> uma tela de<br />
arame. Omar estacionou o carro uns quinze metros adiante.<br />
Caminhou na direção da casa; parecia preocupa<strong>do</strong>, olhan-<br />
<strong>do</strong> para os la<strong>do</strong>s, para trás. Parou para pentear o cabelo e<br />
arrumar o colarinho. Tirou <strong>do</strong> bolso um frasco. Perfumou-<br />
se. Antes de entrar na casa, observou o movimento na rua:<br />
meninos brincan<strong>do</strong> ao re<strong>do</strong>r de uma fogueira, um casal-<br />
zinho ao pé de uma mangueira, duas velhas sentadas na<br />
calçada, rin<strong>do</strong> e contan<strong>do</strong> lorotas. Ele assobiou uma can-<br />
ção conhecida, um chorinho, e a <strong>por</strong>ta da sala abriu. Nin-<br />
guém apareceu. Escondidinha atrás da <strong>por</strong>ta, sem dúvida.<br />
A sala escureceu, as janelas foram fechadas. Ele demorou<br />
no moquiço. As três e dez da manhã, saiu. Quer dizer, saí-<br />
ram. Uma giganta. Uma mulher maçuda, roliça, alta e escu-<br />
ra. Um tronco de mulateiro. Por pouco, uma pura africana.<br />
O rosto esculpi<strong>do</strong>, a pele lisa, o nariz pequenino. Uma covi-<br />
nha no queixo, de dar água na boca. Uma boca normal. Um<br />
riso solto, musical, notas mais agudas que graves, em tons<br />
de bandalheira. Cabelo longo, alisa<strong>do</strong>, ainda assim crespo.<br />
Uma trancinha cain<strong>do</strong> no ombro direito, salpicada de pon-<br />
tos pratea<strong>do</strong>s, bijuteria barata, <strong>por</strong> certo. Os anéis dela, es-<br />
tes sim: metal precioso. O colar, miudezas de marfim, lá da<br />
terra ancestral dela. Beijaram-se na boca. Muitos minutos.<br />
Abraça<strong>do</strong>s, gruda<strong>do</strong>s, caminharam até o conversível. Entra-<br />
ram no carro. Mais um beijo, agora breve, sem ânsia. Ela ti-
ou a blusa, Omar bolinou os peitos dela, sem pressa. Ela<br />
deixou, se entregou, meio deitada no banco. Depois a ca-<br />
beça dela sumiu, e um <strong>do</strong>s braços, o direito, também. Não<br />
pude ver, não posso afirmar o que ela fez. Sei, ouvi ele miar<br />
que nem jaguatirica no cio, mas abafa<strong>do</strong>, morden<strong>do</strong>, engo-<br />
lin<strong>do</strong> os de<strong>do</strong>s da mão esquerda dela. Um bêba<strong>do</strong> apareceu<br />
no outro la<strong>do</strong> da rua. Bebia no gargalo, cambaleava, solu-<br />
çava sem alvoroço. Avançou em oito até parar pertinho <strong>do</strong><br />
conversível. De soslaio, observou a bandalheira. Uma festa<br />
carnal ao ar livre. Estrelas piscavam lá em cima; um bêba<strong>do</strong><br />
piscou aqui embaixo. Assim os <strong>do</strong>is, até as cinco da manhã.<br />
Os primeiros feirantes, os últimos notívagos, movimento,<br />
vozes. Ele ligou o motor, ela saiu <strong>do</strong> carro. Até, meu amor,<br />
ela disse. Tchau, meus olhos, ele disse. Depois ele disse al-<br />
guma coisa em árabe que eu não compreendi. E assim <strong>foi</strong>.<br />
Sem tirar nem pôr.<br />
"Sem tirar nem pôr: palavras de um bêba<strong>do</strong>", resmun-<br />
gou Halim, largan<strong>do</strong> uma folha de papel. "Um alcagüete<br />
disfarça<strong>do</strong> de bêba<strong>do</strong>. E o crápula ainda teve coragem de<br />
cobrar um bom dinheiro <strong>por</strong> essa delação. Devia ter amas-<br />
sa<strong>do</strong> o chapéu Panamá no nariz dele."<br />
Zanuri, o delator profissional, anotava tu<strong>do</strong> e depois<br />
datilografava os detalhes <strong>do</strong> encontro clandestino. Halim<br />
me entregou a última página <strong>do</strong> relatório. As letras dan-<br />
çavam na folha branca. Sete páginas para um só encontro.<br />
Havia detalhes exagera<strong>do</strong>s. "Colinas de lixo nas ruas da Ca-<br />
choeirinha. Fumei oito cigarros esperan<strong>do</strong> o par de passari-<br />
nhos sair da gaiola. A Pau-Mulato caminhava ereta, tronco<br />
liso e altivo de árvore nobre. Um papagaio com a figura de<br />
uma caveira em fun<strong>do</strong> branco, esqueci<strong>do</strong> na rua de casca-<br />
lho. Sem rabiola..."<br />
Zana leu e analisou tu<strong>do</strong>: os detalhes, os desvios e a<br />
cena <strong>do</strong> encontro em si. Despachou o Zanuri e partiu para<br />
a ofensiva, mas com cautela. Começou a batalha trazen<strong>do</strong><br />
142 ~ 143<br />
para casa caixas de caramelo inglês e chocolate suíço. Deu<br />
de presente a Omar uma gravata de seda e um paletó de<br />
linhcy irlandês para "Tu saíres mais alinha<strong>do</strong>, filho, mais<br />
linda nas tuas noites da Cachoeirinha".<br />
pmar percebeu o ultraje, entendeu que a mãe desco-<br />
brira tu<strong>do</strong>. Fingiu, fingiram, e buscaram uma trégua para<br />
arrurnar os pensamentos. Ele arrumou outras coisas: o quar-<br />
to, <strong>por</strong> exemplo. Arrumou também as roupas na mala. Por<br />
fim, arrumou um motivo para sair de casa.<br />
pecidiu partir, senhor de si, na aparência; quer dizer,<br />
seguro de sua decisão: livrar-se <strong>do</strong> que tinha si<strong>do</strong> até aque-<br />
la noite: o engravata<strong>do</strong> fingin<strong>do</strong>-se funcionário de banco,<br />
magnânimo, <strong>do</strong>no de gestos estuda<strong>do</strong>s. O lorde qwe não<br />
deu certo.<br />
A mãe sentiu-se ameaçada, rondava o filho.<br />
''Para onde vais? Que viagem é essa?", gritou ela, pu-<br />
xan<strong>do</strong> a manga <strong>do</strong> paletó e olhan<strong>do</strong> para ele. "Já sei de tu-<br />
<strong>do</strong>, Onlar, essa viagem é um fingimento, uma mentira. Sei<br />
direitinho quem é a mulher.. . ela vai te sugar, te enfeitiçar,<br />
tu vais voltar um trapo para casa. . . São todas iguais, ela vai<br />
te deixar louco. . . Um ïngênuo, um meninão, isso é o que tu<br />
és. .. Nem parece meu filho."
~la o intimi<strong>do</strong>u até onde pôde, falou sem tirar os olhos<br />
<strong>do</strong> rosto dele e sentiu que agora era mais grave que da outra<br />
vez em que ele havia se apaixona<strong>do</strong>. Com um gesto rápi<strong>do</strong><br />
Omar tirou o paletó e deixou-o nas mãos da mãe, solto e<br />
amarrota<strong>do</strong>. Ele exalava cheiros mistura<strong>do</strong>s, a mesma brisi-<br />
nha enjoada. Mas devia lhe causar certos arrepios.<br />
Lá <strong>do</strong> alto da escada Halim via a cena, torcen<strong>do</strong> para<br />
que o filho fosse embora. Omar ouviu o ralho, su<strong>por</strong>tou<br />
0 olhar reprova<strong>do</strong>r da mãe. Então, arrancou o paletó das<br />
mãos de Zana, apontou o de<strong>do</strong> para ela:<br />
"A senhora tem o outro filho, que só dá gosto e tem<br />
bom posto. Agora é a minha vez de viver... Eu e a minha<br />
mulher, longe da senhora..." Ergueu a cabeça e gritou<br />
para o pai: "Longe <strong>do</strong> senhor também, longe dessa casa...<br />
de to<strong>do</strong>s. Não venham atrás de mim, não adianta...".<br />
Saiu gritan<strong>do</strong> como um alucina<strong>do</strong>, sem se despedir de<br />
Rânia nem de Domingas. Era capaz de bater, de quebrar<br />
tu<strong>do</strong> se alguém o impedisse de partir. Ninguém <strong>do</strong>rmiu na-<br />
quela noite. Zana não parava de se lamentar; culpava-se,<br />
depois acusava Halim: "Nunca foste um pai para ele, nunca.<br />
Ele fugiu <strong>por</strong> causa <strong>do</strong> teu egoísmo... Isso mesmo, egoís-<br />
mo". Subia e descia a escada, atarantada, exigin<strong>do</strong> a minha<br />
presença, a de Domir.gas. Não sabia o que pedir, o que dizer<br />
a nós <strong>do</strong>is. Esperávamos, sonolentos, a tarefa. Mas ela não<br />
se decidia e perguntava: "O que acham disso? Meu fillno<br />
perdi<strong>do</strong> <strong>por</strong> uma mulher qualquer! O que vocês acham? E<br />
Rânia, <strong>por</strong> que não desce? Em vez de me ajudar, fica mo-<br />
fan<strong>do</strong> naquele quarto". Enfim, ordenou: que eu tirasse a<br />
filha da cama. Rânia abriu a <strong>por</strong>ta, o rosto mal-humo_ra<strong>do</strong>.<br />
Não estava <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, o quarto dela to<strong>do</strong> ilumina<strong>do</strong>. As<br />
duas rezaram, fizeram promessas, acenderam velas. Acen-<br />
deram tu<strong>do</strong>: as lâmpadas, os olhos, a alma. O tempo passa-<br />
va e ele não voltava para casa. Soltara-se de vez? Tinha asas,<br />
era impulsivo, mas faltou-lhe força para voar alto e perder-<br />
se livremente no imenso céu <strong>do</strong> desejo.<br />
"O filho da Zana! Vai e volta, bêba<strong>do</strong> de indecisão, um<br />
molenga no momento de soltar as amarras", larnentou Ha-<br />
lim. "Resistiu <strong>por</strong> um bom tempo, mas no fun<strong>do</strong> eu sabia<br />
144 ~ 145<br />
que ele não ia conseguir. Tinha tu<strong>do</strong> nas mãos, no coração:<br />
o amor, uma mulher colossal... Tinha ouro puro, só faltou<br />
coragem. Mas bem que tentou. E como! Até enganou o<br />
Zanuri alcagüete. Quanto dinheiro joga<strong>do</strong> no lixo!"<br />
A mãe agiu. Zanzava pela cidade atrás <strong>do</strong> conversível.<br />
Três motoristas de praça circulavam pelos bairros, vasculha-<br />
vam garagens clandestinas, galpões em fun<strong>do</strong>s de quintal,<br />
vilas antigas de Manaus. E os tantos terrenos de ninguém,<br />
<strong>por</strong> toda parte, na cidade e em suas beiradas. Era impos-<br />
sível perscrutar to<strong>do</strong>s os lugares: os milhares de palafitas às<br />
margens <strong>do</strong>s igarapés, a Cidade Flutuante, as balsas na baía,<br />
as vilas vizinhas, os barcos, os lagos, furos e rios.<br />
Andava tristonha, murmurava "Roubaram o meu Ca-<br />
çula", sonhava pesadelos em noites mal<strong>do</strong>rmidas e assim<br />
<strong>foi</strong> perden<strong>do</strong> o viço. Não comia, só beliscava, bebericava.<br />
Mas não desistiu da busca, continuou inconformada, emi-<br />
tin<strong>do</strong> soluços de quieto desespero. Mãe enlutada. Só que,<br />
para ela, era luto passageiro. A volta <strong>do</strong> filho era só uma
questão de vida, nunca de morte.<br />
"Deu tanto trabalho", suspirou Halim. "O que eu per-<br />
cebi, o que eu entendi, é que uma mulher, a minha mulher,<br />
se agigantava quan<strong>do</strong> sentia que ia perder o filho. Ela se<br />
recompôs, repensou tu<strong>do</strong>. Quer dizer, desembaralhou as<br />
cartas até encontrar seu rei de espada."<br />
Numa noite, o tal de Zanuri reapareceu, intruso e dis-<br />
simula<strong>do</strong>. Ela o enxotou com o abana<strong>do</strong>r <strong>do</strong> fogareiro. In-<br />
sultou-o nas duas línguas que falava. O gatuno alesa<strong>do</strong>, o<br />
ladrão, harami! Tinha brasa nos olhos, e, quem sabe, cinzas<br />
no coração. Calada diante <strong>do</strong>s vizinhos, muda para os con-<br />
selhos de fulana, muda para tu<strong>do</strong>. Mas <strong>por</strong> dentro, lá no<br />
fun<strong>do</strong>, um banzeiro se agitava. Halim, seco de tanto dese-<br />
jo, mas com me<strong>do</strong>, recuou. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> já sabia <strong>do</strong> caso, a<br />
cidade inteira, os povoa<strong>do</strong>s vizinhos: cochichos no ar, feito<br />
chuva de confete. Nenhuma caçada é anônima. E caçada de<br />
mãe é tempestade, revira o mun<strong>do</strong>, faz vendaval. Alguém<br />
soube o que Zana tramava? Porque, naquele silêncio só<br />
dela, ela mexia os paus, soprava o carvão em brasa. Só ela,<br />
com a voz serena antes <strong>do</strong> bote. Ela enchia de mistérios o<br />
seu jamaxi. O que mais fazia era rezar, ela e as beatas, bem<br />
coesas: abelha numa só casinha da colméia. Domingas ade-<br />
riu ao ritual de cada noite. Minha mãe também queria o<br />
Omar de volta? Eu notava nela um desejo, uma ânsia que<br />
ela sabia esconder, uma sombra no sentimento. Ela me dei-<br />
xava na dúvida, me desnorteava quan<strong>do</strong> lamentava a au-<br />
sência <strong>do</strong> Caçula.<br />
Ah, a falta que lhe fazia o corpo <strong>do</strong> galã desmaia<strong>do</strong> na<br />
rede! O suor ralo <strong>do</strong>s drinques e coquetéis, e o sua<strong>do</strong>uro es-<br />
pesso, com seu cheiro mareante de bebida forte e amarga,<br />
nhaca de pelame de jaguar. As mãos dela enxugan<strong>do</strong>-lhe o<br />
rosto, o pescoço, o peito cabelu<strong>do</strong>. Ele, quase nu, esparra-<br />
ma<strong>do</strong> na rede vermelha. Os chumaços de formigas-de-fogo,<br />
batalhões de amarelo vivo cercan<strong>do</strong> as garrafas de rum e<br />
uísque no chão de cimento. O cheiro de arnica, banha de<br />
cacau e óleo de copaí~ba nos hematomas que manchavam<br />
o corpo de Omar. Esses cheiros e outros: o das folhas gran-<br />
des da fruta-pão, semelhantes a abanos verdes; o <strong>do</strong> cupua-<br />
çu pesa<strong>do</strong> e maduro, cofre de velu<strong>do</strong> ocre que protege a<br />
polpa prateada, fonte de raro perfume. As folhas molhadas<br />
com que ela cobria as partes roxas <strong>do</strong> corpo dele; o suco de<br />
cupuaçu com caroços para chupar que ela lhe preparava<br />
i46 ~ 147<br />
no meio da tarde, quan<strong>do</strong>, revigora<strong>do</strong>, ele abria os braços<br />
para minha mãe e beijava-lhe o rosto com intimidade, antes<br />
de sorver a bebida espessa.<br />
Disso ela sentia falta? Do corpo e <strong>do</strong>s cheiros que o en-<br />
volviam nas noites de mil farras? Minha mãe parecia se-<br />
denta <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong> Caçula, já não escondia mais a ânsia<br />
pelo regresso dele. Domïngas perguntou à patroa: "Posso<br />
preparar um olho de boto? A senhora pendura o olho no<br />
pescoço e aí o Caçula vem beijar a senhora... com muito<br />
amor". Zana não sabia o que dizer? Ela se aproximou de<br />
minha mãe e virou a cabeça para o oratório. As duas, jun-<br />
tas, ainda disputavam a beleza de outros tempos. A índia e<br />
a levantina, la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>: a expressão solene <strong>do</strong>s rostos, o<br />
fervor que cruzara oceanos e rios para palpitar ali naquela
sala - tanta devoção para que ele voltasse, são e salvo,<br />
sobretu<strong>do</strong> sozinho, para o quarto que seria sempre só dele.<br />
"Aí o nosso namoro amornou de vez", murmurou Ha-<br />
lim, trançan<strong>do</strong> uns fios de tucum com os de<strong>do</strong>s. "Então co-<br />
meçou o jejum das nossas brincadeiras, quer dizer, o jejum<br />
da vida. Tu<strong>do</strong> <strong>por</strong> causa dessa história com a Pau-Mulato."<br />
Halim nunca me falou da morte, senão uma única vez,<br />
com disfarce, triscan<strong>do</strong> as beiradas <strong>do</strong> assunto. Falou quan-<br />
<strong>do</strong> já se sentia perto <strong>do</strong> fim, uns anos depois da história <strong>do</strong><br />
filho com a Pau-Mulato. Ele não viu o pior, o descalabro.<br />
Não viu, mas era da<strong>do</strong> a apreciar presságios: as tantas ante-<br />
visões que escutara <strong>do</strong>s caboclos companheiros dele, filhos<br />
da mata e da solidão. Tinha tendência a crer piamente nes-<br />
sas histórias, e se deixava embalar pela trama, pela magia<br />
das palavras. Halim: um ingênuo fingi<strong>do</strong>, cultor <strong>do</strong> amor e<br />
seus transes; um boa-vida no mar de miudezas da província.<br />
E um despreocupa<strong>do</strong>: qualquer açúcar, grosso ou fino, a<strong>do</strong>-<br />
çava seu café. Mas nas coisas <strong>do</strong> amor, com Zana, sempre<br />
queria, sempre pedia mais. Nos dias e meses de ausência<br />
de Omar, ele começou a embiocar, a voar baixinho, zonzo<br />
de <strong>do</strong>r e carente. E agiu. Quantas artimanhas não usou para<br />
acabar com as rezas, novenas e tanta santimônia? Não pro-<br />
meteu fun<strong>do</strong>s e mun<strong>do</strong>s: só uma coisa, uma difícil façanha.<br />
Disse: "Vou trazer o Omar para casa. Ou ele volta ou some<br />
de vez com aquela mulher".<br />
14g ~ 149<br />
6<br />
Estava envelhecen<strong>do</strong>, o Halim: uns setenta e tantos,<br />
quase oitenta, nem ele sabia o dia e o ano <strong>do</strong> nascimento.<br />
Dizia: "Nasci no fim <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, em algum dia de<br />
janeiro... A vantagem é que vou envelhecen<strong>do</strong> sem saber<br />
minha idade: sina de imigrante". No entanto, as pelancas<br />
ainda pelejavam para tirar-lhe toda a rigidez <strong>do</strong>s músculos.<br />
Um cavalo, quan<strong>do</strong> abria e fechava a loja. Puxava ou er-<br />
guia com força as <strong>por</strong>tas de ferro, os cilindros estalavam<br />
com estron<strong>do</strong>. Rânía podia fazer esse trabalho, mas ele se<br />
adiantava, mostran<strong>do</strong> a musculatura e exibin<strong>do</strong>-se para a<br />
filha. Até um pouco antes de morrer, <strong>foi</strong> discreto em roda<br />
de amigos, incapaz de rir sem gana, generoso sem pensar<br />
três vezes, mas irnprevisível na coragem de macho. Um<br />
homem capaz de dar coice em queixo inimigo e machucar.<br />
Assim acontecera com um certo A. L. Azaz e sua gan-<br />
gue de brutos, um ano depois <strong>do</strong> fim da Segunda Guerra.<br />
Não me é difícil lembrar a data <strong>por</strong>que Domingas me dizia:<br />
~5i<br />
"Tu nasceste quan<strong>do</strong> o Halim brigou em praça pública e a<br />
cidade todinha comentou".<br />
A briga quE: toda a cidade ficou saben<strong>do</strong>, e se lembrava,<br />
em tom de ane<strong>do</strong>ta, hoje tão distorcida, nas versões fan-<br />
tasiadas pelo tempo e suas vozes.<br />
É que Azaz, vagabun<strong>do</strong> e peitu<strong>do</strong>, espalhou que Halim<br />
andava no maior chamego com as índias, a empregada dele<br />
e as da vizinhança. E contava, esse Azaz, que muitos curu-<br />
mins pediam a bênção a Halim. O despreocupa<strong>do</strong> <strong>foi</strong> o últi-<br />
mo a saber. Ouviu a difamação quan<strong>do</strong> se entretia com ami-<br />
gos no Bar <strong>do</strong> Encalhe, um boteco na carcaça de um barco<br />
estropia<strong>do</strong>, lá na baixada <strong>do</strong>s Educan<strong>do</strong>s, então povoa<strong>do</strong> <strong>por</strong>
ex-seringueiros, quase to<strong>do</strong>s paupérrimos. Ali havia sempre<br />
uns três com peixeira ou canivete afia<strong>do</strong> no bolso. Mas Ha-<br />
lim gostava <strong>do</strong> Encalhe, da macaxeira e <strong>do</strong> jaraqui frito que<br />
serviam na mesinha de caixotes, e, já naquela época, não<br />
se desgrudava da garrafa de arak e <strong>do</strong> tabuleiro de gamão.<br />
Halim escutou o boato, parou de rir e largou os da<strong>do</strong>s en-<br />
cardi<strong>do</strong>s.<br />
A. L. Azaz não tinha endereço: mandrião que procura-<br />
va abrigo nos casarões aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s que arrombava para<br />
passar tem<strong>por</strong>adas, moran<strong>do</strong> como falso proprietário. Cis-<br />
cava a babugem <strong>do</strong>s banquetes no apagar das festas <strong>do</strong>s<br />
ricos, e depois, no Bar <strong>do</strong> Encalhe, contava vantagens de<br />
conquista<strong>do</strong>r barato. Mas tinha pinta de valentão, e era di-<br />
fama<strong>do</strong>r mal<strong>do</strong>so, comadre de fim de tarde, quan<strong>do</strong> a voz se<br />
envenena e a maldade apaga o juízo. Era parru<strong>do</strong>, o cabelo<br />
xexéu aloira<strong>do</strong>, meio sarará, e a calça apertada, os bolsos<br />
sempre cheios de ferros afia<strong>do</strong>s.<br />
Halim fechou o tabuleiro, guar<strong>do</strong>u os da<strong>do</strong>s, pagou a<br />
conta. Olhou um <strong>do</strong>s amigos: Quer dizer que esse tal de<br />
Azaz não tem lar? Então que fosse sozinho, de mãos lim-<br />
pas, no <strong>do</strong>mingo às três da tarde, à praça General Osório.<br />
To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> soube. Quem não admira um duelo? Houve<br />
até platéia, gente <strong>do</strong>s Educan<strong>do</strong>s, os clientes <strong>do</strong> Encalhe, os<br />
camelôs <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, to<strong>do</strong>s ali, senta<strong>do</strong>s à sombra <strong>do</strong>s oiti-<br />
zeiros na beirada da praça: a imensa e verde arena oval,<br />
palco de muita festa junina.<br />
A. L. Azaz chegou antes das três. Esperou o inimigo no<br />
meio da arena sem sombra. Sua camiseta branca molhou-<br />
se, e contam que ele esfregava as mãos e olhava para os<br />
la<strong>do</strong>s em relances de gavião inquieto, desafian<strong>do</strong> um in-<br />
truso qualquer. Mas os da platéia, cala<strong>do</strong>s, compenetra<strong>do</strong>s,<br />
não se moviam. Azaz olhava, mirava em panorâmica para<br />
ver se o outro vinha. Halim demorava, ensaian<strong>do</strong> renúncia<br />
ou covardia. Então, às três e meia, Azaz, banha<strong>do</strong> de suor,<br />
riu, bêba<strong>do</strong> de triunfo. Exibiu-se: virou o corpo, caminhou<br />
rumo à platéia. Vinha gritan<strong>do</strong> desaforos, urros de guerra,<br />
e socava o ar, estalava os ossos, esmurran<strong>do</strong> e chutan<strong>do</strong><br />
inimigos fantasmas. Grunhia, o abobalha<strong>do</strong>: guaribão en-<br />
louqueci<strong>do</strong>. Tentava amedrontar os clientes <strong>do</strong> Encalhe, e,<br />
já ofegante, gritava com força difamações sobre o adversá-<br />
rio. Então, com calma, no meio da roda de amigos, Halim<br />
apareceu. Ergueu-se, bem devagar, e pediu passagem. Azaz,<br />
ao ver o outro, estacou, ficou trava<strong>do</strong>; sua loucura buscou<br />
repouso, e contam que o guariba virou filhote de macaco-<br />
cheiro. Azaz não teve tempo para pensar, quase não teve<br />
tempo para se defender. Estava exausto de tanto comemo-<br />
rar o duelo adia<strong>do</strong>, a suposta covardia <strong>do</strong> inimigo. Halim<br />
avançou alguns passos e não se intimi<strong>do</strong>u com a navalha<br />
i52 ~ 153<br />
que o outro empunhava. Ele, Halim, também tinha sua ar-<br />
ma: a corrente de aço que sacou da cintura com um só ges-<br />
to. Azaz, em desvantagem, recuou, gaguejou: que largassem<br />
as armas, lutassem corpo a corpo. Halim ignorou as palavras<br />
e avançou, cauteloso mas decidi<strong>do</strong>, ondulan<strong>do</strong> a corrente,<br />
os olhos crava<strong>do</strong>s no rosto <strong>do</strong> inimigo.<br />
A sangueira na arena da Genenal Osório: assim diziam,<br />
ainda dizem. Ambos, ensangüenta<strong>do</strong>s, largaram os ferros e
se atracaram até saciar a sede de vingança. Os clientes <strong>do</strong><br />
Bar <strong>do</strong> Encalhe se impressionaram com o pacato joga<strong>do</strong>r de<br />
gamão. Evitaram que Halim cortasse a língua de A. L. Azaz.<br />
Não puderam evitar as navalhadas e os golpes com a cor-<br />
rente de aço. No fim da tarde, pouco antes <strong>do</strong> fim da luta,<br />
as bordas da arena estavam cheias de gente. Ninguém se<br />
intrometeu. Em duelos assim, só Deus é media<strong>do</strong>r.<br />
Azaz, manco, morreu três anos depois, esfaquea<strong>do</strong>, no<br />
centro de uma arena menor, menos visível: uma toca de si-<br />
nuca freqüentada <strong>por</strong> marinheiros e putas, perto <strong>do</strong> <strong>por</strong>to,<br />
onde tombavam os valentões anônimos de Manaus. Diz que<br />
Halim, quan<strong>do</strong> soube, não festejou, não lamentou; limitou-<br />
se a murmurar: "Quem quer a glória, deve pagar caro".<br />
Mas ele calava sobre o duelo. Deixava a historinha cor-<br />
rer de boca em boca, alheio às novas versões, em que ele e<br />
o inimigo renasciam como heróis ou covardes. Azaz, morto,<br />
ressurgiu mais vezes pinta<strong>do</strong> de valente e imbatível. Halim<br />
não se vexava. Mas o pior, Domingas me disse, é que depois<br />
da briga, quan<strong>do</strong> chegou em casa viu a mulher agarrada à<br />
cintura de Omar, dizen<strong>do</strong> "Pelo amor de Deus, filho, deixa<br />
o teu irmão em paz", e viu Yaqub acua<strong>do</strong>, ajoelha<strong>do</strong> debaixo<br />
da escada, ouvin<strong>do</strong> as ameaças <strong>do</strong> irmão: que era um meti-<br />
<strong>do</strong>, um puxa-saco <strong>do</strong>s padres; que nem sabia falar <strong>por</strong>tu-<br />
guês e merecia uma <strong>por</strong>rada na cara. Halim viu a cena, ti-<br />
rou a camisa, ro<strong>do</strong>piou a corrente de aço e gritou: "Agora<br />
vão brigar comigo... Isso mesmo, os <strong>do</strong>is marmanjos contra<br />
o pai, vamos ver se são homens".<br />
Omar calou ao ver as costas e os ombros <strong>do</strong> pai ensan-<br />
güenta<strong>do</strong>s, cheios de furos e fendas das estocadas de Azaz.<br />
Assustada, Zana largou o Caçula e pediu que Halim se acal-<br />
masse; depois, tremen<strong>do</strong>, perguntou várias vezes quem o<br />
tinha feri<strong>do</strong>, e ele respondeu, "Um calunia<strong>do</strong>r... an<strong>do</strong>u di-<br />
zen<strong>do</strong> que eu tinha filhos com várias índias. Pensan<strong>do</strong> bem,<br />
eu estaria em paz se tivesse meia dúzia de curumins soltos<br />
<strong>por</strong> aí". Ele se aproximou de Omar e ordenou: que subisse<br />
para o quarto e não metesse o nariz para fora sem a per-<br />
missão dele. Yaqub esperou o irmão subir a escada, saiu ras-<br />
tejan<strong>do</strong> <strong>do</strong> esconderijo e depois correu até o quarto de Do-<br />
mingas. Halim deitou-se de bruços no assoalho da sala e<br />
apalpou as estrias das navalhadas.<br />
"Domingas", gritou Zana, "deixa o teu bebê com o Ya-<br />
qub e vem me ajudar."<br />
Minha mãe, na <strong>por</strong>ta da cozinha, tremeu ao ver tanto<br />
sangue. Halim passou a noite gemen<strong>do</strong>, e durante algumas<br />
semanas <strong>foi</strong> o mais mima<strong>do</strong> da casa, me disse Domingas.<br />
Zana cui<strong>do</strong>u dele, enfaixou-lhe as costas e os ombros, der-<br />
raman<strong>do</strong> infusão de crajiru nos ferimentos antes de fazer o<br />
curativo. Tinha me<strong>do</strong> de que ele contraísse uma infecção,<br />
e ele dizia: "Não, a navalha estava limpinha, a sujeira vi-<br />
nha era da boca <strong>do</strong> Azaz, <strong>do</strong> palavrório que an<strong>do</strong>u espa-<br />
lhan<strong>do</strong>...".<br />
Mesmo depois de sara<strong>do</strong> ele reclamava da <strong>do</strong>r, <strong>do</strong> for-<br />
154 ~ 155<br />
migamento que sentia nas costas, das pontadas nos om-<br />
bros. Zana percebeu o fingimento:<br />
"Filho com as índias? Que história é essa?"<br />
"Olha as marcas nas minhas costas e nos meus ombros",
disse ele. "Se não fosse uma calúnia, tu achas que eu ia en-<br />
frentar um gigante daqueles com uma navalha na mão?"<br />
Os curumins, supostos filhos dele, não apareceram. Ele<br />
não engolia calúnias, tampouco explodia com qualquer<br />
centelha, e a grande batalha de sua vida <strong>foi</strong> mesmo com os<br />
filhos.<br />
Agora precisava fisgar o Oanar, ou empurrá-lo com sua<br />
sereia para bem longe de casa. Se estivessem fora da cidade,<br />
seria quase impossivel encontrá-los. Meses de busca. .. Além<br />
disso, <strong>por</strong> onde começar? Tantos pequenos povoa<strong>do</strong>s e vilas<br />
nas margens de cada rio e seus afluentes... Mas fora daqui<br />
a vida vegeta, seria a morte para Omar, um notívago nato.<br />
Halim pensou em Wyckham, o contrabandista.<br />
Encontrou-o a bor<strong>do</strong> de um navio da Booth Line. Per-<br />
guntou pelo filho: não o via já fazia um tempão, queria<br />
notícias dele. Onde estava? Wyckham <strong>foi</strong> cordial e matrei-<br />
ro. Elogiou Omar, disse que ambos tinham deixa<strong>do</strong> o banco<br />
estrangeiro e agora planejavam abrir um supermerca<strong>do</strong> de<br />
im<strong>por</strong>ta<strong>do</strong>s. Por isso Omar viajara para os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,<br />
mas até agora não lhe dera notícias. Chegaria a qualquer<br />
momento, de surpresa, coisas <strong>do</strong> Omar.<br />
"Por Deus, tive vontade de dar um sopapo na venta<br />
daquele mentiroso", resmungou Halim. "Media cada pala-<br />
vra, falava com a convicção de um pastor."<br />
Então lembrou-se de Cid Tannus, joga<strong>do</strong>r ccmo o pró-<br />
prio Halim e amigo das camelagens de outrora. Tannus, <strong>do</strong>is<br />
olhões acesos no rostinho de gafanhoto, só raramente pas-<br />
sava na loja <strong>do</strong> Halim. Rânia não gostava, dizia que atrapa-<br />
lhava o movimento, pois a visitinha se prolongava, e os <strong>do</strong>is<br />
homens, em voz alta, recordavam os tempos de cassinos e<br />
polacas. Zana também implicava com ele:<br />
"Esse velho solteirão só tem idéia para orgias."<br />
É que Tannus era, sempre tinha si<strong>do</strong>, um rastrea<strong>do</strong>r de<br />
chzbes de quinta, barracões sem tabique, só cobertura e<br />
estacas de madeira. Em andanças <strong>por</strong> um e outro rala-bu-<br />
cho, ele via Omar, às vezes bebiam juntos, <strong>por</strong> prazer, sem<br />
mulher à mesa. Proseavam, e Tannus sempre mandava um<br />
abraço para Halim, mas Omar não mandava abraço nem<br />
coisa nenhuma.<br />
"Nunca me falou desses encontros", disse Halim. "Aliás,<br />
nunca quis conversar comigo. O Omar só tem língua para<br />
a mãe."<br />
"Deve ter também para outras mulheres", riu Cid<br />
Tannus.<br />
"Essa Pau-Mulato... Parece que agora o Omar está<br />
louco <strong>por</strong> ela. Os <strong>do</strong>is desapareceram."<br />
Halim queria encontrá-los antes de Zana, e Tannus tal-<br />
vez soubesse onde o filho se escondia com a Pau-Mulato.<br />
O amigo tornou a rir, balançou a cabeça, mas concor<strong>do</strong>u. Os<br />
<strong>do</strong>is vasculharam as cafuas da cidade; passaram três noites<br />
visitan<strong>do</strong> os clubes grã-finos <strong>do</strong> centro e os anima<strong>do</strong>s tetos<br />
noturnos <strong>do</strong>s subúrbios de Manaus. Na quarta noite para-<br />
ram num botequim da Colina, perto da Cervejaria Alemã.<br />
Nenhuma pista de Omar. Sentaram a uma mesinha, Tannus<br />
156 ~ 157<br />
abriu uma garrafa de uísque, encheu o copo sem gelo e dis-<br />
se: "Um verdadeiro néctar, Halim. Sabes quem me deu de
presente? Lorde Wyckham".<br />
Halim soube então mais coisas sobre o inglês, e certas<br />
coisinhas sobre Omar. Soube que não era inglês e não se<br />
chamava Wyckham coisa nenhuma. Chamava-se, isso sim,<br />
Francisco Keller, o Chico Quelé, assim conheci<strong>do</strong> no cais<br />
<strong>do</strong> roadway <strong>por</strong> práticos de embarcações, marinheiros e<br />
estiva<strong>do</strong>res. Neto de alemães pobres, gente que enrique-<br />
ceu e perdeu tu<strong>do</strong>. Não tinha si<strong>do</strong> gerente de banco? Sim,<br />
já tinha trabalha<strong>do</strong> em bancos, em várias repartições, mas<br />
Quelé não agüenta isso, detesta horários, abomina marcar<br />
ponto e dar bom-dia e boa-tarde para as mesmas pessoas<br />
o ano to<strong>do</strong>, a vida toda. É um desertor da rotina. Quelé<br />
conhecera Omar no Verônica, um colosso de balneário-<br />
lupanar, cheio de lâmpadas cobertas de papel de seda lilás.<br />
Omar e Quelé beberam juntos no Verônica, na mesma<br />
mesa, bulin<strong>do</strong> com as mesmas meninas. Quelé. Francisco<br />
Alves Keller, alto, arruiva<strong>do</strong> pelo la<strong>do</strong> paterno, e delica<strong>do</strong>.<br />
Ele tinha o mela<strong>do</strong> que atraía as caboquinhas, as mais lin-<br />
das morenas, quase infantis, sorrisos de dentes de leite.<br />
Quelé tinha outras coisas: o melhor uísque, caramelo in-<br />
glês nos bolsos. Blusas de seda. Frascos de perfume fran-<br />
cês. E mais, o máximo: um Oldsmobile. Um carro velho,<br />
só carcaça. Quelé adaptou o motor, as rodas, os vidros e o<br />
pára-choque de outro carro. Fez da carcaça um carro con-<br />
versível, meio troncho: monstro que impressiona. Só ia ao<br />
Verônica no conversível; o Oldsmobile chegava de man-<br />
sinho, deslizan<strong>do</strong> suavemente na ladeira arenosa, macia,<br />
o motor desliga<strong>do</strong>, os faróis aclaran<strong>do</strong> o barracão lilás cer-<br />
ca<strong>do</strong> de açaizeiros. O carro parecia um batelão antigo, um<br />
va<strong>por</strong> movi<strong>do</strong> a rodas, um daqueles de Delaware, barco de<br />
outro tempo, <strong>do</strong> nosso tempo, Halim. As meninas larga-<br />
vam o parceiro no meio <strong>do</strong> salão, corriam até o carro, e ali<br />
mesmo, no areal, Quelé distribuía frascos de perfume, bom-<br />
bons, blusas e beijos. Se assanhava com as cunhantãs na<br />
beirada <strong>do</strong> matagal, entre tajás molha<strong>do</strong>s; faziam carinho<br />
nele e imploravam para dar uma voltinha no Oldsmobile.<br />
O Quelé ficava nisso. Ele nunca ia aos tijupás nos fun<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> Verônica. Não gostava <strong>do</strong> cheiro de outros corpos que<br />
farreavam no colchão de paina de sumaúma. Nem saía com<br />
as meninas, gostava era da festinha com dengos e mordi-<br />
das, manias de um esquisito.<br />
"Mas o teu filho topa todas, Halim. Colhe a orquídea<br />
mais rara, mas também arranca a aninga da lama."<br />
Uma noite, qúan<strong>do</strong> o Caçula se divertia no Verônica,<br />
percebeu o charivari das meninas, seguiu com os olhos o<br />
adejo das borboletas e a debandada rui<strong>do</strong>sa rumo ao con-<br />
versível. Levantou-se, curioso: para onde iam as mais vis-<br />
tosas? Viu a cena, depois acercou-se da festinha, apreciou<br />
o conversível. Ficou <strong>por</strong> ali, beben<strong>do</strong> rum no gargalo. Es-<br />
perou o <strong>do</strong>no <strong>do</strong> Oldsmobile serenar, esperou a saída das<br />
cunhantãs. Então, de relance, ele viu a mulher sentada no<br />
banco traseiro. Não saiu <strong>do</strong> carro. Sim, a mulher que Quelé<br />
trouxera. E não era <strong>do</strong> Verônica, nem parecia amazonense.<br />
Alta. E altiva. Os peitos, os ombros e a cabeça insinuavam<br />
a beleza. Parecia alheia ao cacarejo das outras, festinha de<br />
meninas pobres, maliciosas antes <strong>do</strong> tempo. Omar, a gar-<br />
rafa de rum na mão, olhava feliz para a mulher. Devia ar-
mar uma rede vermelha com aquele olhar. Mas ela per-<br />
158 ~ 159<br />
maneceu quieta, cabeça de estátua, bronze de traços finos. Ele<br />
estava disposto a navegar semanas até encontrar o<br />
Estava encanta<strong>do</strong>, o Omar. Chico Quelé, beben<strong>do</strong> <strong>por</strong> ali, se filho.<br />
No fun<strong>do</strong>, pensava nas muitas noites perdidas <strong>por</strong><br />
aproximou <strong>do</strong> carro. Os <strong>do</strong>is conversaram. Quelé pegou a causa <strong>do</strong><br />
Caçula. Halim alugou um motor e convocou o<br />
garrafa <strong>do</strong> Omar, jogou-a no matagal e trouxe uma<br />
garrafa comandante Pocu: queria vasculhar as beiradas <strong>do</strong>s lagos<br />
de uísque, esse néctar. Depois saíram <strong>do</strong> Verônica, os três, e paranás.<br />
Pediu a minha ajuda, insistiu para que Tannus<br />
para algum lugar da noite. nos acompanhasse. Passamos semanas<br />
navegan<strong>do</strong> em cír-<br />
Tannus encontrou os três outras vezes, sempre à noite, culos.<br />
Saíamos de manhãzinha, contornávamos a ilha Ma-<br />
no conversível. Depois só os <strong>do</strong>is: a mulher e Omar. Não rapatá,<br />
atravessávamos o paraná <strong>do</strong> Xiborena até a ilha<br />
no Verônica, em nenhum lupanar ou clube noturno;<br />
viu- Marchanteria. Depoïs, já no Solimões, entrávamos no pa-<br />
os na estrada da ponte da Bolívia, duas vezes. Nas quebra- raná <strong>do</strong><br />
Careiro, navegan<strong>do</strong> em arco até o Amazonas. Per-<br />
das da Cachoeirinha, três noites seguidas. E neste boteco,<br />
f guntávamos aos ribeirinhos e pesca<strong>do</strong>res se tinham visto O<br />
uma única vez. Estavam senta<strong>do</strong>s aqui mesmo. Omar, per- 4 casal.<br />
Halim mostrava fotos <strong>do</strong> filho, Tannus descrevia a<br />
fuma<strong>do</strong> e airoso, conversa<strong>do</strong>r, pinta de amante derreti<strong>do</strong>, mulher.<br />
Os ribeirinhos olhavam as fotografias, franziam a<br />
<strong>do</strong>a<strong>do</strong>r de tu<strong>do</strong>, alma e coração. O corpo inteiro. Ela, cala- testa,<br />
se esforçavam, não senhor, nenhum estranho passou<br />
da, sabia receber, serena, os galanteios. Bebiam e se olha- <strong>por</strong><br />
aqui. Halim repetia: "Vou trazer o Omar no garrote,<br />
vam, bebiam e se tocavam, embeveci<strong>do</strong>s. Miravam a ladei- vocês vão<br />
ver". Bastava avistar uma palafita, uma casinha<br />
ra ladeada de casebres que terminava no barranco. Mais isolada,<br />
uma maromba, para ele pedir que Pocu encostasse<br />
além, a faixa de luz <strong>do</strong>s flutuantes na baía <strong>do</strong> Negro. Um o motor.<br />
Dïas assim. Tannus dizia que Halim estava per-<br />
motor que passava, ruí<strong>do</strong> no rio, luz móvel na noite. Curu- ;len<strong>do</strong><br />
a cabeça, que não estava procuran<strong>do</strong> o filho, mas<br />
mins da vizinhança apalpavam o conversível,<br />
admiravam perseguin<strong>do</strong>-o. Já não sabíamos o dia da semana, <strong>do</strong> mês,<br />
a maravilha de automóvel: máquina <strong>do</strong> outro mun<strong>do</strong>.<br />
Tron- c'~esembarcávamos em Manaus de noitinha e às cinco em<br />
~<br />
cho, guenzo, e ainda assim atraente. O Oldsmobile deixara ponto<br />
Halim me acordava, e lá íamos nós, a pé, para o pe-<br />
rastros, era a pista das andanças <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is. Sumiu o conver- queno<br />
<strong>por</strong>to. Percorremos toda a costa da Terra Nova, <strong>do</strong><br />
sível. Sumiram Omar e a mulher. Quase impossível encon- Marimba,<br />
<strong>do</strong> Murumurutuba... Contornamos os lagos da<br />
trá-los nesse mun<strong>do</strong> de ilhas, lagos, rios intermináveis. ilha <strong>do</strong><br />
Careiro: o Joanico, o Parun, o Alencorne, o Ima-<br />
"Às vezes, é mais prvdente desistir. . . deixar os <strong>do</strong>is vi- nha, o<br />
Marinho, o Acará, o Pagão.. . Nem sinal <strong>do</strong> Caçula.<br />
verem. Tomara que teu filho desembeste de uma vez, Ha- Pocu<br />
aproveitava para caçar ciganas e patos selvagens; ar-
lim! Que se embriague com a alegria de uma mulher solta." mava a<br />
malhadeira num lago e na volta recolhia os peixes,<br />
"É o que eu queria", disse Halim. "Mas o Omar quer ' que vendia<br />
depois nas feiras de Nlanaus. No paraná <strong>do</strong> Pa-<br />
muito mais, deseja tu<strong>do</strong>. É um prisioneiro de tanto desejo." rauá,<br />
um velho, muito sério, disse: "Vai ver que o boto en-<br />
i6o ~ i6i<br />
feitiçou os <strong>do</strong>is; devem estar encanta<strong>do</strong>s, lá no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
rio". Passávamos das águas pretas às águas barrentas, atra-<br />
camos dezenas de vezes na beirada <strong>do</strong> paraná <strong>do</strong> Cambixe.<br />
Eu e Halim visitávamos as fazen<strong>do</strong>las, ele perguntava, se<br />
informava, e nada. Um dia, Pocu, cansa<strong>do</strong>, lembrou a Halim<br />
que já haviam passa<strong>do</strong> sete vezes pelos mesmos lugares.<br />
"Estamos queiman<strong>do</strong> combustível à toa", disse o coman-<br />
dante. Então Halim cismou em navegar no Madeira, quem<br />
sabe não estariam em Humaitá... Ou andariam na fron-<br />
teira com a Colômbia, ou no Peru, em Iquitos. . . De repente,<br />
mudava de idéia, extenua<strong>do</strong>: não, talvez em Itacoatiara, ou<br />
em alguma ilha perto de Parintins. Mas havia centenas.<br />
Pensou em Santarém, onde o poeta Abbas era conheci<strong>do</strong>,<br />
e Abbas o ajudaria, conhecia o Médio e o Baixo Amazonas,<br />
andava num vaivém <strong>por</strong> ali.<br />
Os amigos, mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s lagos, também ajudaram na<br />
busca. Mais de um mês, meses. E nos bares da Cidade Flu-<br />
tuante, os compadres desconversavam, sem esperança. Ga-<br />
rantiam: não estavam nos lagos, em nenhuma vila <strong>do</strong>s ar-<br />
re<strong>do</strong>res de Manaus.<br />
Tannus sentiu pena <strong>do</strong> amigo atormenta<strong>do</strong>. Insistiu:<br />
que desistisse, os <strong>do</strong>is não estavam em lugar nenhum. "Es-<br />
tão é nas nuvens, no bem-bom embaixo de uma árvore, co-<br />
men<strong>do</strong> peixe frito."<br />
Desistïu?<br />
Esperava, um pouquinho crédulo, como alguém que<br />
anseia colher um pequeno milagre: ver piscar a luzinha <strong>do</strong><br />
acaso, quan<strong>do</strong> já nada se espera.<br />
Não piscou a luz de nenhuma providência. Piscavam,<br />
na escuridão <strong>do</strong> quintal, os vaga-lumes. E na sala da casa,<br />
as chamas <strong>do</strong> oratório. Halim, avesso de santinho, olhava<br />
com cara enfezada para a mulher. Ele não estava toma<strong>do</strong><br />
<strong>por</strong> esse fervor. Nunca se entregou ao êxtase religioso. Suas<br />
orações, sempre serenas, pareciam duvidar das coisas <strong>do</strong><br />
além. E quan<strong>do</strong> não havia tapete para se ajoelhar, ele adia-<br />
va o mergulho na transcendência. A vida, em seu prólogo,<br />
dispensava tais rituais. E não fossem os atritos entre os gê-<br />
meos e o ciúme louco que Zana sentia <strong>do</strong> Caçula, ele não<br />
teria com que se preocupar. Podia passar o resto <strong>do</strong> tempo,<br />
os dias ou anos <strong>do</strong> desfecho, entre as tabernas <strong>do</strong> <strong>por</strong>to, o<br />
labirinto da Cidade Flutuante e o leito conjugal.<br />
Rânia, tutora da loja, atara os laços com São Paulo, de<br />
onde vinham as novidades que enchiam as vitrines. Além<br />
de labiosa nos negócios, ela sabia controlar as despesas da<br />
casa, anotan<strong>do</strong> cada níquel; mas cedeu, contrariada, à com-<br />
pra excessiva de peixe.<br />
Nunca comemos tão bem. Peixes os mais varia<strong>do</strong>s, de<br />
sabor incomum, cobriam a mesa: costela de tambaqui na<br />
brasa, tucunaré frito, pescada amarela recheada de farofa.<br />
O pacu, o matrinxã, o curimatã, as postas volumosas e ten-
as <strong>do</strong> surubim. Até caldeirada de piranhas, a caju aver-<br />
melhada e a preta, com molho de pimenta, fumegava sobre<br />
a mesa. E também pirão e sopa com sobras de peixe, fari-<br />
nha feita das espinhas e cabeças, bolinhos de pirarucu com<br />
salsa e cebola.<br />
"Tanto peixe assim, não era de estranhar?", contou Ha-<br />
lim. "Zana encheu de peixe as duas geladeiras. Distribuía<br />
peixes para a vizinhança. Eu perguntava: Laysh? Por quê?<br />
l~<br />
i62 yj i63<br />
Pra que tanto peixe? E ela: 'Faz bem para os ossos, nossa<br />
carcaça está fraca'."<br />
Algo estranho havia nessa profusão de pesca<strong>do</strong>, <strong>por</strong>que<br />
a época não era fértil: o rio estava longe de baixar, e longe<br />
estávamos da Sexta-Feira da Paixão. Enjoamos de tanto<br />
peixe. O pitiú era forte, os gatos e as varejeiras aninhavam-<br />
se no quintal, vieram os mendigos à cata das sobras, e toda<br />
essa fertilidade de alimento, que nos tornava generosos com<br />
homens e animais, durou os meses da estação chuvosa.<br />
Em março, quan<strong>do</strong> Zana ,já sorria e orava menos, Ha-<br />
lim desviou a atenção <strong>do</strong>s peixes para Adamor, o peixeiro.<br />
Nós o conhecíamos. Ele voltara a freqüentar a nossa rua, o<br />
Perna-de-Sapo. Era um <strong>do</strong>s mais antigos peixeiros <strong>do</strong> bair-<br />
ro. Antes <strong>do</strong> amanhecer, ouvíamos sua voz de barítono<br />
ama<strong>do</strong>r, um grito que prolongava em eco as vogais da pa-<br />
lavra que o ajudava a sobreviver: peixeiro. Era o canto<br />
inaugural da manhã, um estentor que se intrometia na fes-<br />
ta da passarinhada triscan<strong>do</strong> a copa das árvores imensas. A<br />
melopéia <strong>do</strong> Perna-de-Sapo. Depois da voz, surgia um vulto<br />
que se movia com passos curtos, pulinhos calcula<strong>do</strong>s, simé-<br />
tricos, que alcançavam a <strong>por</strong>ta de uma casa conhecida. Aí,<br />
nessa espécie de pouso, o Perna-de-Sapo fazia uma pausa.<br />
E o corpo, já visível no mun<strong>do</strong> surpreendi<strong>do</strong> pela clari-<br />
dade, esperava. Nas mãos espalmadas, o tabuleiro. Assim,<br />
para<strong>do</strong>, ele não cantava, não gritava, era um ser mu<strong>do</strong>. Ti-<br />
nha a perna esquerda estropiada, meio morta, e o inchaço<br />
<strong>do</strong> rosto o impedia de abrir os olhos. Aos poucos, o Perna-<br />
de-Sapo pestanejava, e duas fendas muito finas surgiam na<br />
cara suada. O sol, fraco de manhãzinha, aclarava ângulos,<br />
fachadas, árvores, corpos em movimento. Lá nas alturas,<br />
os blocos de nuvens se dissolviam com o sopro da manhã.<br />
Aqui embaixo, na calçada suja, o corpo de Domingas debru-<br />
çava-se sobre o tabuleiro, as mãos apalpavam os olhos de<br />
um peixe. Ela resmungava: "Esse matrinxã já <strong>foi</strong> fresco,<br />
agora serve para gato de rua". Adamor se irritava com as<br />
fisgadas de Domingas. Ele queria esvaziar o tabuleiro na<br />
nossa rua, mas minha mãe era exigente, ranzinza, não com-<br />
prava peixe liso: "São reimosos, não prestam, dão <strong>do</strong>ença<br />
de pele". Os <strong>do</strong>is discutiam, chamavam a patroa, Domingas<br />
tinha razão. Na escolha <strong>do</strong>s peixes minha mãe triunfava,<br />
era vitoriosa, se orgulhava disso.<br />
Ela só malinava na presença <strong>do</strong> Perna-de-Sapo, e toda<br />
a ousadia, contida dentro de casa, revelava-se na calçada,<br />
para quem quisesse ver. "Hoje não, Adamor, esses peixes<br />
enfeita<strong>do</strong>s com salsa, cebolinha e tomate servem para <strong>do</strong>na<br />
<strong>Este</strong>lita... Eu não gosto disso, essas fantasias enganam a<br />
gente." Ele saía se arrastan<strong>do</strong>, dan<strong>do</strong> pulinhos, xingan<strong>do</strong>
minha mãe de índia metida a besta, puxa-saco de patroa...<br />
Mas Domingas não era durona com o cascalheiro, um curu-<br />
mim musical que tocava notas agudas num triângulo de fer-<br />
ro e cantarolava. Nem era muquirana com o vende<strong>do</strong>r de<br />
pitomba e sapoti, um velho de rosto de bronze que atraves-<br />
sava o século venden<strong>do</strong> frutinhas surrupiadas de terrenos<br />
baldios e quintais de casas arruinadas.<br />
Esses seres, que piavam de tanta pobreza, ela até aju-<br />
dava. Atraía o cascalheiro, oferecia-lhe uma tapioquinha da<br />
véspera, e enquanto o curumim comia, ela observava suas<br />
unhas sujas, os pés imun<strong>do</strong>s, o calção puí<strong>do</strong>: como podia<br />
trabalhar assim? Não tinha vergonha de tanta sujeira? De-<br />
pois <strong>do</strong> ralho escolhia uns cones de cascalho para mim,<br />
i64 :~~ 165<br />
dava-lhe uma moedinha, aconselhava-o: que tomasse um<br />
banho antes de sair de casa. Mas o Perna-de-Sapo, o pei-<br />
xeiro sazonal, era seu alvo predileto. Ele sumia de repente,<br />
ele e a voz. E numa manhã ele reapareceu, tremen<strong>do</strong>, in-<br />
cha<strong>do</strong> de tanta cachaça, medin<strong>do</strong> os passos, pronto para<br />
tombar de vez. Difícil imaginar um sopro de soberba em<br />
seres assim. No entanto, o que lhe faltava no corpo e na<br />
aparência, sobrava-lhe na coragem. Uma medalhinha de<br />
orgulho e bravura ornava o seu passa<strong>do</strong>. A história dele fora<br />
soprada de boca em boca na nossa rua, no bairro, na cidade.<br />
Uma dessas histórias que desciam os rios, vinham <strong>do</strong>s bei-<br />
radões mais distantes e renasciam em Manaus, com força<br />
de coisa veraz. Ele, filho <strong>do</strong> rio Purus, filho de Lábrea, onde<br />
os mutila<strong>do</strong>s são muitos. Filho de Lázaro, da peste mais<br />
atroz, vergonha das vergonhas. Mateiro na época da guer-<br />
ra, quan<strong>do</strong> navios e aviões norte-americanos navegavam<br />
<strong>por</strong> águas e céus <strong>do</strong> Amazonas. Tempo de poderosos car-<br />
gueiros e hidroaviões. Traziam tu<strong>do</strong>, levavam borracha para<br />
a América. Então, num dia de 1943, um Catalina desviou-<br />
se da rota <strong>do</strong> Purus. Desapareceu. Na busca cerrada, aviõe-<br />
zinhos esquadrinharam a área. Faziam vôos rasantes, em<br />
círculos que se expandiam e se reduziam. Farejavam das<br />
alturas e seguiam urubus que planavam baixo, ávi<strong>do</strong>s de<br />
carniça; ávi<strong>do</strong>s, quem sabe, <strong>do</strong>s restos <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is tripulantes<br />
<strong>do</strong> Catalina. A floresta: é sobrevoar, admirar, assombrar-se<br />
e desistir. Depois de duas semanas de busca, desistiram.<br />
Em setembro, antes <strong>do</strong> dia da Independência, o mateiro, o<br />
fareja<strong>do</strong>r Adamor apareceu em Lábrea carregan<strong>do</strong> um cor-<br />
po; quer dizer, arrastava um embrulho pesa<strong>do</strong>. Os mora-<br />
<strong>do</strong>res se benzeram, incrédulos, assusta<strong>do</strong>s. O sobrevivente,<br />
enrola<strong>do</strong> numa rede, tinha força para apertar as mãos de<br />
Adamor e chorar. Tenente-avia<strong>do</strong>r A. P. Binford, um mo-<br />
lambo de homem, nu, com estrias no corpo to<strong>do</strong>, as coste-<br />
las quebradas, os <strong>do</strong>is pés tortos, um curupira. O militar<br />
parecia assombração da floresta. Adamor <strong>por</strong> pouco não<br />
perdeu a perna esquerda. Infeccionada, depois paralisada<br />
para sempre. Em Manaus, ele teve sua noite de herói: a<br />
medalhinha de bons serviços presta<strong>do</strong>s aos alia<strong>do</strong>s. Foi<br />
fotografa<strong>do</strong>, deu entrevista; Adamor e o tenente-avia<strong>do</strong>r<br />
Binford, abraça<strong>do</strong>s, juntos mais uma vez, a última, na pri-<br />
meira página <strong>do</strong>s jornais. O mateiro agradeceu, recusou<br />
uma viagem para os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Não podia mais ser<br />
abri<strong>do</strong>r de vara<strong>do</strong>uros e picadas. Nunca mais um cami-
nhante, livre para buscar atalhos na floresta. Não retornou<br />
a Lábrea, nem ao Purus: embrenhou-se no trança<strong>do</strong> de<br />
becos de Manaus, ergueu uma palafita e mofou no fe<strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong>s pauís. Aquele que salvou o militar americano? A glória<br />
maior: salvar um verdadeiro herói! De longe, via-se o bri-<br />
lho da medalhinha presa na camisa esfarrapada. Exercitou<br />
a voz, o timbre grave, o grito prolonga<strong>do</strong>. Fazia assim na flo-<br />
resta, e o estentor afastava o me<strong>do</strong> da solidão, <strong>do</strong>s bichos,<br />
<strong>do</strong>s seres assombra<strong>do</strong>s. Sobreviveu. Mais um sobrevivente.<br />
Adamor: o Perna-de-Sapo. Nenhum passa<strong>do</strong> é anônimo. O<br />
apeli<strong>do</strong>, o nome, o mateiro. O peixeiro preferi<strong>do</strong> de Zana.<br />
"Sim, madame. Pois não, madame. Vou atrás <strong>do</strong> seu meni-<br />
no, madame."<br />
"E <strong>foi</strong> mesmo", lembrou Halim. "O Adamor, um senhor<br />
fareja<strong>do</strong>r. Zana ofereceu a ele um monte de fotos <strong>do</strong> nosso<br />
filho, mas ele não quis. Folheou o álbum, disse que o rosto<br />
<strong>do</strong> Omar já estava na cabeça dele."<br />
IIOllllw'I'Í'I'll I'II<br />
i ,~<br />
I ¡'I<br />
,~:,i,i i<br />
, ,';; :'I ,<br />
~~1'~II, fi',<br />
i66<br />
Em pouco tempo, fez o que Halim e Tannus não conse-<br />
guiram fazer em meses. Zana percebeu a manha de Adamor.<br />
Ela falava sobre o sumiço <strong>do</strong> filho, insinuava a busca, tatea-<br />
va o terreno. O Perna-de-Sapo se emocionava, franzin<strong>do</strong> a<br />
testa, atencioso. Ele chegou a lacrimejar, meio sincero, meio<br />
fingi<strong>do</strong>. Enxugou os olhos com as mãos cheias de escamas,<br />
ergueu a cabeça e pediu, bem sério, que a madame tirasse<br />
aquela índia desconfiada da frente dele. Domingas, obedien-<br />
te, parou de apalpar o olho <strong>do</strong>s peixes. Saiu da calçada, vol-<br />
tou para os fun<strong>do</strong>s da casa. Então Adamor passou a oferecer<br />
à madame os peixes mais caros, e também os encalha<strong>do</strong>s, da<br />
piranha ao filhote.<br />
"Só faltou comprar o tabuleiro e aquela medalha enfer-<br />
rujada", resmungou Halim. "Compraria tu<strong>do</strong>: o rio, o sol, o<br />
céu e todas as estrelas. Tu<strong>do</strong>, tudinho."<br />
Durante a madrugada, a mãe se plantava na sala à espe-<br />
ra da voz grave <strong>do</strong> peixeiro. Halim, nervoso, passava noites<br />
em claro. Sozinho na cama. Às vezes ele se levantava e a es-<br />
piava <strong>do</strong> alto da escada, mas ela, fora de si, não tinha olhos<br />
para Halim; morava em sua re<strong>do</strong>ma, onde só cabia a ima-<br />
gem de Omar. Chegaram a passar uma noite inteira mu<strong>do</strong>s,<br />
um de frente para o outro, os olhos dela no rosto dele, só os<br />
olhos, <strong>por</strong>que o olhar parecia sem fun<strong>do</strong>, sem fim nem co-<br />
meço. Numa outra noite ele se lembrou <strong>do</strong>s gazais de Abbas,<br />
recitou os que sabia de cor e depois pediu, implorou que ela<br />
deixasse o filho em paz com aquela mulher... Omar queria<br />
isso, ele mesmo tinha dito antes de ir embora: queria viver<br />
longe de to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, quem sabe não ia trabalhar com a<br />
mulher, os <strong>do</strong>is juntos, como adultos... Omar já era um<br />
homem, não fazia senti<strong>do</strong> ele morar em casa, com os pais,<br />
se estragan<strong>do</strong> com bebida e putas. .. Isso mesmo, se estra-<br />
gan<strong>do</strong>.. . daqui a pouco vai a<strong>do</strong>ecer, vai apodrecer, ninguém<br />
agüenta ver um filho ir para o buraco... Ela escutou, os
olhos no rosto de Halim. O rosto impassível, sério, nem pes-<br />
tanejava. Ele deu um suspiro e se levantou, percebeu que<br />
as suas palavras, sua voz, a entonação de apaixona<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong><br />
se perdia no silêncio da noite.<br />
Na manhã de um sába<strong>do</strong> ele a viu sair com o peixeiro.<br />
Chuviscavam fios finos depois <strong>do</strong> toró noturno. Zana vesti-<br />
ra sua melhor roupa. O rosto levemente maquia<strong>do</strong>, o cabelo<br />
solto, os delica<strong>do</strong>s brincos de jade nos lóbulos. Os olhos<br />
protegi<strong>do</strong>s <strong>por</strong> longas pestanas e as sobrancelhas em arco<br />
perfeito estonteavam Halim.<br />
"Sessenta e tantos anos não escondem toda a beleza<br />
dessa mulher", dizia ele.<br />
Repetiu isso até o fim, como se ela tivesse para<strong>do</strong> de en-<br />
velhecer. Ou o tempo fosse uma abstração, incapaz de agir<br />
sobre o corpo de Zana. Cego de amor, até as últimas. Pobre<br />
Halim! Pobre? Nem tanto. Um guloso de amor carnal: fez da<br />
vidinha na província uma festa de prazeres.<br />
Naquela manhã ele esperou o filho. Sabia que Omar se-<br />
ria fisga<strong>do</strong>, era inevitável. Morava num motor velho, barqui-<br />
nho de aluguel, bem barato. Dormiam numa rede, ele e a<br />
mulher. E <strong>do</strong>rmiam ao ar livre em praias desertas, onde atra-<br />
cavam o motor. Passariam a vida assim? Talvez. Ela, a Pau-<br />
Mulato, dan<strong>do</strong> uma de cartomante, len<strong>do</strong> a mão calosa <strong>do</strong>s<br />
ribeirinhos, receben<strong>do</strong> farinha e moedas em troca de desti-<br />
nos fantasiosos. Pescavam nos paranás desertos das Anavi-<br />
lhanas, armavam a malhadeira perto <strong>do</strong> barco, e, antes <strong>do</strong><br />
amanhecer, recolhiam os peixes. Viviam de uma forma anfí-<br />
i68 ~~ 169<br />
bia, clandestinos, ambos na honrosa pobreza, sem horário<br />
para nada. Soltos e livres, viviam a vïda sem o previsível.<br />
O faro <strong>do</strong> Perna-de-Sapo. Como conseguiu encontrar<br />
os amantes? Difícil <strong>foi</strong> encontrar o militar Binford, <strong>por</strong>que<br />
o avião resvalara em árvores e mergulhara no Purus. A as-<br />
túcia de Adamor: observar to<strong>do</strong>s os ângulos, to<strong>do</strong>s os can-<br />
tos da floresta, e também olhar para cima, em busca de ga-<br />
lhos quebra<strong>do</strong>s, copas cortadas, restos de fuselagem. Depois<br />
<strong>foi</strong> só seguir a sinuosa trilha de destroços até encontrar um<br />
homem quieto perto da beira <strong>do</strong> rio: duas olheiras no rosto<br />
chupa<strong>do</strong>, os dentes esverdea<strong>do</strong>s de tanto mastigar folhas,<br />
uma pistola no colo. Um corpo imóvel e ovos de tracajá<br />
espalha<strong>do</strong>s na areia. Adamor riu ao ver a cena. Quase vinte<br />
anos depois, tornou a rir ao descobrir o barquinho de Omar<br />
escondi<strong>do</strong> entre batelões pesa<strong>do</strong>s: um motorzinho mixuru-<br />
ca, desses que atravessam o dia to<strong>do</strong> a baía <strong>do</strong> Negro. Um<br />
barco perigoso durante uma tempestade e frágil quan<strong>do</strong> en-<br />
frenta um banzeiro forte. Estava ali, bem atrás <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong><br />
A<strong>do</strong>lpho Lisboa, entrincheira<strong>do</strong> e muito inocente, reve-<br />
lan<strong>do</strong> a rede <strong>do</strong> amor armada sob a pequena ponte, ao la<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> passadiço; na popa, a bandeirinha <strong>do</strong> Brasil, murcha e<br />
desbotada. Ali, a trezentos metros da toca de Halim, que<br />
imaginava o filho em alguma fronteira, em alguma ilha dis-<br />
tante, ou em Iquitos, Santarém, Belém. Imaginava-o no Sul<br />
<strong>do</strong> Brasil ou na América <strong>do</strong> Norte, no frio <strong>do</strong> outro hemis-<br />
fério. Podia estar em qualquer lugar muito longe, menos ali,<br />
no tumulto <strong>do</strong> pequeno <strong>por</strong>to.<br />
"Nem o Tannus acreditou", disse Halim. "Quem ia pro-<br />
curar os <strong>do</strong>is aqui, no <strong>por</strong>to da Escadaria? Estavam nas mi-
nhas ventas..."<br />
O Perna-de-Sapo não <strong>foi</strong> atrás <strong>do</strong> barco, preferiu se-<br />
guir a pista <strong>do</strong>s peixes. Conversou com os peixeiros: quem<br />
lhes fornecia peixe fresco em pequenas quantidades? Ha-<br />
via dezenas de barcos pesqueiros, e o Perna-de-Sapo conhe-<br />
cia quase to<strong>do</strong>s. Mas eram os pequenos pesca<strong>do</strong>res, <strong>do</strong>nos<br />
de canoas e barquinhos, que podiam dar alguma pista de<br />
Omar. O Perna-de-Sapo, com dinheiro no bolso, <strong>foi</strong> falar<br />
com os atravessa<strong>do</strong>res. Mencionou um pesca<strong>do</strong>r novato.<br />
Esboçou o jeitão dele: alto, moreno, sobrancelhas que nem<br />
caranguejeira. Testa larga. Espadaú<strong>do</strong>. Riso solto de bona-<br />
chão, gargalhada de mostrar a garganta. Ah, o careca barbu-<br />
dão? Um parru<strong>do</strong> que dança para uma mulher séria? Pode<br />
ser. Ele? Com uma garrafa na mão, canta e dança, faz pre-<br />
sepadas, <strong>do</strong>i<strong>do</strong> que nem pião de bêba<strong>do</strong>. Esse? Ninguém<br />
sabia o nome dele, um sujeito festeiro, mas de poucos ami-<br />
gos. Arredio, sem querer ser. Cara meio tapada, sempre de<br />
óculos escuros, até na escuridão. Um outro Omar: a cabeça<br />
raspada, a barba espessa e grisalha, de profeta ou louco mes-<br />
siânico. Passa dias sem aparecer. Atraca de madrugada, bem-<br />
humora<strong>do</strong>, faz a festinha dele, vende os peixes <strong>por</strong> qual-<br />
quer preço e cai fora. Raríssimo, vez em mês, ele amanhece<br />
no barco, e é a mulher que dá banho nele, de cuia, ensaboa<br />
ele todinho, o bebezão nu. Depois ela puxa as cordas, dá<br />
ordens de partir. Zarpam antes <strong>do</strong>s pesca<strong>do</strong>res, na boca <strong>do</strong><br />
amanhecer, e não voltam tão ce<strong>do</strong>.<br />
"Acho que comprávamos <strong>do</strong> Adamor os peíxes fisga-<br />
<strong>do</strong>s pelo Omar e a diva dele. Só faltava essa!", comentou<br />
Halim.<br />
Careca e barbu<strong>do</strong>. Bronzea<strong>do</strong>, quase preto de tanto sol.<br />
Mais magro, mais esbelto, no peito um colar de sementes de<br />
i7o ~ i7i<br />
guaraná. Descalço, usava uma bermuda suja, cheia de furos. corriam<br />
de um la<strong>do</strong> para o outro, se escondiam, ele ia atrás<br />
Não parecia o Peludinho cheiroso da Zana. delas, escorregava,<br />
chutava tu<strong>do</strong>, queria destroçar a sala<br />
Quan<strong>do</strong> entrei em casa, vi que ele procurava o pai no toda, as<br />
paredes, o altar, a santa. Mas eu não arredei pé,<br />
andar de cima, no banheiro, <strong>por</strong> toda parte. Estava arra- queria<br />
ver até onde ia a coragem <strong>do</strong> bicho, o teatrinho, a<br />
nha<strong>do</strong> nos braços e no pescoço, os olhos salta<strong>do</strong>s assus- pantomima<br />
<strong>do</strong> Caçula... Torcia para que ele me tocasse, ia<br />
tavam Rânia e Domingas. Foi até o quintal, entrou nos levar uma<br />
<strong>por</strong>retada na frente da mãe, cair de joelhos na<br />
quartos <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s, voltou para a sala com uma corrente minha<br />
frente. Mas não. Ele <strong>foi</strong> esmorecen<strong>do</strong>, fraquejan<strong>do</strong>,<br />
de aço. Quan<strong>do</strong> a <strong>por</strong>ta da frente bateu, ele se agachou até<br />
murchar. Segurava a cabeça, resfolegan<strong>do</strong>. Rânia ainda<br />
perto da escada e alçou a corrente. Rânia escutou os passos salvou<br />
duas fotografias: os retratos em que o rosto de Yaqub<br />
no corre<strong>do</strong>r e deu um grito. A mãe apareceu na sala e<br />
ainda aparecia amplia<strong>do</strong>, mais níti<strong>do</strong>. Tentou se aproximar <strong>do</strong> ir-<br />
viu o filho arremessar a corrente no espelho. Foi um estron-<br />
~ mão, mas ele a empurrou, expulsou-a da sala, e, quan<strong>do</strong> ia<br />
<strong>do</strong>, não sobrou nada. Uma parte <strong>do</strong> assoalho ficou coberta erguer a<br />
mão, Zana interferiu, investiu contra ele armada<br />
de cacos. O Caçula continuou a destroçar tu<strong>do</strong> com fúria: <strong>do</strong> poder
de mãe. Agora era a vez dela. Acuou o Caçula lo-<br />
arrastou cadeiras, quebrou as molduras <strong>do</strong>s retratos <strong>do</strong> go de<br />
cara, não ia admitir que o filho se embeiçasse <strong>por</strong> uma<br />
irmão, e começou a rasgar as fotos; rasgava, pisoteava e mulher<br />
qualquer. "Isso mesmo, uma qualquer! Uma char-<br />
chutava os pedaços de moldura, bufan<strong>do</strong>, gritan<strong>do</strong>: "Ele é muta, uma<br />
puta! Que ela passe o resto da vida mofan<strong>do</strong> na-<br />
o culpa<strong>do</strong>... Ele e o meu pai... Por onde anda o velho? quele<br />
barco imun<strong>do</strong>, mas não com o meu filho. Uma con-<br />
Está escondi<strong>do</strong> naquele depósito imun<strong>do</strong>? Por que não<br />
apa- trabandista! Falsária... Agiota... Gastei uma fortuna para<br />
rece para elogiar o engenheiro. .. o gênio, o cabeça da<br />
famí- descobrir os detalhes. O contraban<strong>do</strong>, as meninas que ela<br />
lia, o filho exemplar. . . a senhora também é culpada. .<br />
. aliciava para o Quelé, aquele inglês de araque... O esconde-<br />
vocês deixaram ele fazer o que queria... casar com aquela rijo de<br />
vocês na Cachoeirinha... As orgias... A patifaria... a<br />
mulher... <strong>do</strong>is idiotas... ". sujeira toda! Eu não ia permitir...<br />
nunca! Ouviste bem?<br />
Não parava de xingar, xingou minha mãe e Rânia, as Nunca!" Ela<br />
abaixou a voz e sussurrou, dócil, tristonha:<br />
vacas, só faltou cuspir na cara das duas, me chamou de "Tens tu<strong>do</strong><br />
aqui em casa, meu amor". Começou a soluçar,<br />
filho duma égua, interesseiro, puxa-saco de Halim, mas eu a<br />
chorar. Pegou nas mãos dele, penteou-lhe a barba grisalha<br />
não recuei, me preparei, fechei as mãos com toda a força, com os<br />
de<strong>do</strong>s, alisou-lhe a careca feridenta. Os <strong>do</strong>is, abra-<br />
se o idiota me atacasse não sobraria nada de nenhum de ça<strong>do</strong>s,<br />
foram para o alpendre; ela franziu a testa ao ver sua<br />
nós. Ele babava, relinchava, as veias <strong>do</strong> pescoço tufadas, a própria<br />
imagem distorcida em mil fragmentos no espelho<br />
boca expelin<strong>do</strong> saliva. A careta, a barba espessa grisalha<br />
e estilhaça<strong>do</strong>. Perdeu o espelho precioso, mas ainda assim<br />
a cabeça careca amedrontavam to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, as mulheres suspirava de<br />
felicidade <strong>por</strong>que o filho estava ali, queima<strong>do</strong><br />
i72 ~ 173<br />
<strong>por</strong> dentro, mas agora só dela. Fez um sinal para que eu e<br />
Domingas limpássemos a sala. Muitos objetos estavam des-<br />
troça<strong>do</strong>s. Haviam sobra<strong>do</strong> o pequeno altar, o narguilé e a<br />
cristaleira. Havia pedaços de espelho e de moldura sobre o<br />
sofá cinzento. O console e várias cadeiras estavam quebra-<br />
das. Eu e Domingas tivemos de varrer o chão e consertar as<br />
cadeiras antes da chegada de Halim. O espelho veneziano<br />
era uma relíquia de Zana, um <strong>do</strong>s presentes de casamento<br />
de Galib. Para mim <strong>foi</strong> um alívio, <strong>por</strong>que eu o lustrava com<br />
um pedaço de flanela to<strong>do</strong>s os dias, ouvin<strong>do</strong> a mesma ladai-<br />
nha: "Cuida<strong>do</strong> com o meu espelho, passa o espana<strong>do</strong>r na<br />
moldura".<br />
Quase nada sobrou da relíquia. Depois Halim comprou<br />
outro espelho, imenso, que eu passei a lustrar com menos<br />
zelo.<br />
Na madrugada daquele sába<strong>do</strong> em que Zana e o Perna-<br />
de-Sapo saíram juntos, Halim entrou no meu quarto e me<br />
pediu para ir atrás deles. Eu estava <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, tinha passa-<br />
<strong>do</strong> parte da noite estudan<strong>do</strong> para um exame <strong>do</strong> Liceu Rui<br />
Barbosa. Halim não pregara as pestanas, intuía que alguma<br />
coisa ia acontecer naquele dia, e teve certeza disso ao ver
Zana sair de mansinho <strong>do</strong> quarto. Elegante, perfumada e,<br />
para os olhos de Halim, atraente. Imaginou-a sorridente e<br />
excitada, e sentiu ciúme <strong>do</strong> filho como nunca sentira.<br />
O Perna-de-Sapo apareceu sem entoar o vozerio de<br />
sempre, dissimula<strong>do</strong> na noite que findava. Tampouco ba-<br />
teu na <strong>por</strong>ta. Esperou uns segun<strong>do</strong>s e <strong>foi</strong> embora com a<br />
madame.<br />
IVII'IIIIIII IIIIII II<br />
r<br />
Não era o peixeiro, mas o fareja<strong>do</strong>r de outras épocas, o "<br />
rastrea<strong>do</strong>r da cidade. Ele mesmo espalharia para to<strong>do</strong>s os<br />
fregueses como tinha arma<strong>do</strong>, como tinha pensa<strong>do</strong> a cilada.<br />
Na noite da sexta-feira, Adamor fora ao <strong>por</strong>to da Escadaria<br />
com duas garrafas de uísque; chamou um curumim: que as<br />
oferecesse ao careca barbu<strong>do</strong> <strong>por</strong> um preço de pivete ladrão.<br />
Omar comprou as duas garrafas e convi<strong>do</strong>u o curumim para '<br />
a festinha a bor<strong>do</strong> <strong>do</strong> motor. Beberam, dançaram ao som da<br />
rádio Voz da Amazônia. No meio da madrugada, Omar e a hi I<br />
mulher gemiam na rede que ondulava, como se estivessem<br />
numa praia deserta, numa das mil ilhas das Anavilhanas.<br />
Foram imprudentes, amos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, felizes em excesso. E<br />
a<strong>do</strong>rmeceram, imersos nessa magia. A praia <strong>do</strong> pequeno ¡''<br />
,I I<br />
<strong>por</strong>to cheirava a detritos e a combustível. A brisa <strong>do</strong> fim da<br />
noite trazia o cheiro da floresta, ainda sombria na outra 'll ~<br />
~i<br />
margem <strong>do</strong> rio. E também o cheiro de Zana, o o<strong>do</strong>r de jas-<br />
mim. Ela era conhecida nas ruas da zona <strong>por</strong>tuária. A esposa<br />
<strong>do</strong> Halim, a mãe de Rânia, gerente da loja. Ninguém enten- I ,<br />
deu a presença dela, tão ce<strong>do</strong>, naquele lugar cheio de gente ~, . ;<br />
i:l I<br />
humilde: catraieiros à espera da primeira travessia, carrega-<br />
<strong>do</strong>res seminus, garapeiros e vende<strong>do</strong>res de frutas que arma- j<br />
vam tendinha de lona. Ela, elegante <strong>do</strong>s sapatos ao cha éu,<br />
p<br />
usava um vesti<strong>do</strong> sóbrio, cinzento, mais propício a uma so-<br />
lenidade noturna <strong>do</strong> que a um encontro matinal num cais<br />
em<strong>por</strong>calha<strong>do</strong>. No entanto, era um encontro com o filho,<br />
i<br />
mais um desafio com uma rival que surgira sabe-se lá de que ' ~ '<br />
buraco. Assim ela subiu no trapiche e caminhou com passos<br />
decidi<strong>do</strong>s bem no meio da passarela, o olhar passean<strong>do</strong> nos I~<br />
'j,i~f~<br />
barcos e batelões que emergiam da noite como um arqui- ' ,:'f~<br />
~i,~ i;<br />
pélago no meio <strong>do</strong> rio.<br />
ls<br />
A aparição dela impunha um silêncio que podia signi-<br />
ficar respeito ou surpresa. Atrás, o Perna-de-Sapo, sorriden-<br />
te, triunfante, acenava para os barqueiros acocora<strong>do</strong>s na<br />
proa <strong>do</strong>s barcos. De vez em quan<strong>do</strong> surgiam rostos sonolen-<br />
tos das redes armadas na ponte das embarcações. Adamor<br />
parou na extremidade <strong>do</strong> trapiche, onde o esperavam qua-<br />
tro homens atarraca<strong>do</strong>s. Conversaram, gesticularam e su-<br />
biram num batelão que dava acesso ao barquinho de Omar.<br />
Eu os segui de longe, ven<strong>do</strong> os corpos diminuí<strong>do</strong>s pela dis-<br />
tância, borra<strong>do</strong>s pela neblina <strong>do</strong> amanhecer. Mais perto <strong>do</strong>
atelão, pude enxergar a confusão no passadiço <strong>do</strong> motor,<br />
corpos engalfinha<strong>do</strong>s, uma rede balançan<strong>do</strong> e a proa <strong>do</strong> bar-<br />
co oscilan<strong>do</strong>, forman<strong>do</strong> um banzeiro que agitava as águas<br />
pretas. Ouvi gritos de mulher, depois um choro e a voz de<br />
Zana: "Soltem essa mulher... deixem ela no barco... Meu<br />
filho vai sozinho para casa".<br />
Corri para a beira <strong>do</strong> cais da Escadaria e fiquei espian-<br />
<strong>do</strong> <strong>por</strong> uma fenda no talude de pedras vermelhas.<br />
O contorno <strong>do</strong> cais, a silhueta das pessoas, a leve on-<br />
dulação de proas vermelhas, as redes coloridas, o banzeiro<br />
que despejava na praia dejetos oleosos, os mendigos eston-<br />
tea<strong>do</strong>s pela luz <strong>do</strong> dia, as nuvens imensas, nômades no es-<br />
paço, a floresta escura que se oferecia à visão, tu<strong>do</strong> parecia<br />
adquirir espessura, movimento, vida.<br />
Então ele apareceu na extremidade <strong>do</strong> trapiche.<br />
A barba grisalha e a cabeça pelada causavam menos<br />
estranheza <strong>do</strong> que o olhar. Por um momento, o momento<br />
da travessia da passarela, ele podia ser confundi<strong>do</strong> com os<br />
outros, podia ser mais um carrega<strong>do</strong>r ou peixeiro, ou ven-<br />
de<strong>do</strong>r de ninharias. Ou mais um pobre-diabo. Podia ser<br />
mais <strong>do</strong>no de si e cair na tentação de se libertar, de viver<br />
uma aventura até o fim.<br />
Cada vez mais perto da praia, eu o via como um estra-<br />
nho, e queria que Omar fosse realmente um estranho.<br />
Fosse estranho e eu estaria talvez menos preocupa<strong>do</strong> com<br />
a idéia que fazia dele. Não estaria ali, atrás da muralha ver-<br />
melha, espreitan<strong>do</strong> a figura se aproximar de mim, os bra-<br />
ços bambos, os ombros e o pescoço arroxea<strong>do</strong>s, uma figura<br />
maltrapilha que minutos depois seria olhada com comisera-<br />
ção pelos vizinhos. Omar não os sau<strong>do</strong>u; parecia um cego<br />
que conhecia de cor o caminho de casa. Ele, que sempre<br />
acenava e sorria para os vizinhos, dessa vez não se dirigim<br />
a ninguém. Estava cheio de arranhões, meio bicho, olhos<br />
assusta<strong>do</strong>s; um movimeuto brusco da cabeça acentuava ne-<br />
le um desequilíMrio que harmonizava com o resto <strong>do</strong> corpo.<br />
Assim, de cara, ninguém o reconheceu. Depois, quan<strong>do</strong><br />
Domingas o recebeu na <strong>por</strong>ta da casa, aí então os vizinhos<br />
entenderam que Omar estava de volta.<br />
Ele almoçou no meio da tarde, sozinho, ensimesma<strong>do</strong>.<br />
Passou vários dias sem sair <strong>do</strong> quarto, remoen<strong>do</strong> sua der-<br />
rota. Reeluso, esperou o cabelo crescer, esperou a visita <strong>do</strong><br />
barbeiro, que lhe devolveu o rosto original de galã notíva-<br />
go e não de noivo cativo.<br />
Essa fidelidade à mãe merecia uma recompensa. E, pa-<br />
ra desespero de Halim, o Caçula <strong>foi</strong> mima<strong>do</strong> como nunca.<br />
Nem precisava pedir certas coisas: a mãe adivinhava seus<br />
desejos, dava-lhe tu<strong>do</strong>, desde que não se desgarrasse. Entre<br />
ambos não havia recompensa gratuita. Rânia, irritada, teve<br />
que abrir o cofre da loja; cedia, a conta-gotas, aos caprichos<br />
<strong>do</strong> irmão; cedia fazen<strong>do</strong> sermões, enumeran<strong>do</strong> os gastos<br />
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da casa e da loja, como faz um conta<strong>do</strong>r ou um muquira-<br />
na. Ele ouvia a ladainha e começava a acariciar a irmã:<br />
um beijo nas mãos, um afago no pescoço, uma lambida no<br />
lóbulo de cada orelha. Enlaçava-a, carregava-a no colo,<br />
olhan<strong>do</strong> para ela como um conquista<strong>do</strong>r cheio de desejo.<br />
As palavras que a<strong>do</strong>raria ouvir de um homem ela ouviu de<br />
Omar, "o irmão que nunca ficou longe de ti, que nunca te<br />
aban<strong>do</strong>nou, mana", ele sussurrava. Rânia se derretia, sen-<br />
sual e manhosa, e a voz dela, mais pausada, ia ceden<strong>do</strong> um<br />
pouquinho, até balbuciar, concordar: "Está bem, mano, te<br />
<strong>do</strong>u uma mesadinha, assim tu te divertes <strong>por</strong> aí".<br />
E assim também ele readquiria o poder de sedução que<br />
havia perdi<strong>do</strong> durante o tempo em que se entregara à Pau-<br />
Mulato, no barco amaldiçoa<strong>do</strong> pela mãe.<br />
No fun<strong>do</strong>, Omar era cúmplice de sua própria fraqueza,<br />
de uma escolha mais poderosa <strong>do</strong> que ele; não podia muito<br />
contra a decisão da mãe, para quem parecia dever uma boa<br />
parte de sua vida e de seus sentimentos. Preferiu as putas<br />
e o conforto <strong>do</strong> lar a uma vida humilde ou penosa com a<br />
mulher que amava. Tentou se conformar com essa frustra-<br />
ção que ele supunha pacificada, e nunca mais ousou entre-<br />
gar-se a mulher nenhuma.<br />
Voltou aos lupanares, aos clubes noturnos <strong>do</strong> centro<br />
e <strong>do</strong> subúrbio; voltaram as madrugadas de bebedeira, ele<br />
sempre sozinho, entran<strong>do</strong> na casa como um autômato, às<br />
vezes balbucian<strong>do</strong> o nome das duas mulheres que real-<br />
mente amou, ou choran<strong>do</strong> feito criança que perdeu algu-<br />
ma coisa preciosa. Tornou-se meio infantil, envelheci<strong>do</strong>,<br />
com longos intervalos de silêncio, como certas crianças que<br />
renunciam ao paraíso materno ou adiam a pronúncia da<br />
primeira palavra inteligível. Plantava-se no alpendre tal<br />
um animal acua<strong>do</strong>, esquivan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> contato humano,<br />
arruina<strong>do</strong> talvez pela ressaca prolongada quan<strong>do</strong> a bebe-<br />
deira prosseguia dentro de casa até o dia clarear. Não tive<br />
pena dele. Ele mesmo me ensinara serem inúteis a pena e<br />
a comiseração. Lembrei-me de uma tarde em que Zana me<br />
mandara à praça da Saudade para pegar um vesti<strong>do</strong> numa<br />
costureira. Eu não tinha almoça<strong>do</strong>, o sol muito forte me<br />
deixou zonzo. Sentei num banco sombrea<strong>do</strong> <strong>por</strong> um cara-<br />
manchão. Olhava para a rua Simón Bolívar, que dá para os<br />
fun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> orfanato onde minha mãe havia mora<strong>do</strong>. Pensei<br />
nela, no tempo que havia passa<strong>do</strong> naquele cativeiro, e<br />
depois me lembrei das palavras de Laval: que ali, debaixo<br />
da praça, havia um cemitério indígena. A algazarra de um<br />
grupo de homens me despertou. Quan<strong>do</strong> se aproximaram<br />
<strong>do</strong> caramanchão, um deles apontou para mim e gritou: "É<br />
o filho da minha empregada". To<strong>do</strong>s riram, e continuaram<br />
a andar. Nunca esqueci. Tive vontade de arrastar o Caçula<br />
até o igarapé mais féti<strong>do</strong> e jogá-lo no lo<strong>do</strong>, na podridão<br />
desta cidade.<br />
Disse isso a Halim, tive coragem de dizer isso quan<strong>do</strong>
ele acabou de contar a história da Pau-Mulato.<br />
Ele me olhou e virou o rosto para a janela <strong>do</strong> depósi-<br />
to. Lâminas prateadas pelo fulgor <strong>do</strong> sol encrespavam as<br />
águas pretas, e o alvoroço <strong>do</strong> pequeno cais nos fun<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
Merca<strong>do</strong> A<strong>do</strong>lpho Lisboa agitava aquela manhã de sába<strong>do</strong>.<br />
Pensei que a minha frase sobre Omar fosse selar o fim<br />
da nossa conversa. Os olhos acinzenta<strong>do</strong>s me procuraram,<br />
ele perguntou sobre o Liceu Rui Barbosa, se estava valen<strong>do</strong><br />
a pena freqüentar uma escola de péssima reputação. "Sem-<br />
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pre vale a pena concluir alguma coisa", eu disse. "Aprendi<br />
um pouco no Galinheiro <strong>do</strong>s Vândalos e aprendi muito<br />
len<strong>do</strong> os <strong>livro</strong>s que Laval me emprestou, conversan<strong>do</strong> com<br />
ele depois das aulas."<br />
"Nem nesse galinheiro meu filho quis estudar", Halim<br />
se queixou. "Um fraco.. . deixou minha mulher sugar toda<br />
a força dele, a fibra... a coragem... sugou o coração, a al-<br />
ma... o desejo... Eu não queria filhos, é verdade... mas o<br />
Yaqub e a Rânia, bem ou mal, me deixaram viver... Quis<br />
mandar os gêmeos para o Líbano, eles iam conhecer outro<br />
país, falar outra língua... Era o que eu mais queria... Falei<br />
isso para a Zana, ela ficou <strong>do</strong>ente, me disse que o Omar ia<br />
se perder longe dela. Não deu certo... nem para o que <strong>foi</strong><br />
nem para o outro que ficou aqui. Quan<strong>do</strong> Yaqub voltou,<br />
eu ainda tinha esperança... trazia Zana para cá, brincáva-<br />
mos à vontade, tínhamos liberdade... O que eu fiz para<br />
conquistar essa mulher! Meses e meses.. . os gazais, o vinho<br />
para vencer a timidez... Ninguém queria aceitar... nin-<br />
guém acreditava que um mascateiro pudesse atrair a filha<br />
<strong>do</strong> Galib. Ela <strong>foi</strong> corajosa, decidiu. E eu acreditei... Só pen-<br />
sava nela, só queria ela... Depois a vida <strong>foi</strong> dan<strong>do</strong> voltas,<br />
<strong>foi</strong> me cercan<strong>do</strong>, me acuan<strong>do</strong>... A vida vai andan<strong>do</strong> em<br />
linha reta, de repente dá uma cambalhota, a linha dá um<br />
nó sem ponta. Foi assim... A morte <strong>do</strong> pai dela, o Galib...<br />
A morte a distância, a <strong>do</strong>r que isso causa, eu enten<strong>do</strong>...<br />
Um pai... eu nunca soube o que significa... não conheci<br />
nem pai nem mãe. .. Vim para o Brasil com um tio, o Fadel.<br />
Eu tinha uns <strong>do</strong>ze anos. .. Ele <strong>foi</strong> embora, desapareceu, me
deixou sozinho num quarto da Pensão <strong>do</strong> Oriente... Me<br />
agarrei na Zana, quis tu<strong>do</strong>... até o impossível. Essa paixão<br />
voraz como o abismo. Depois da morte <strong>do</strong> Galib, o Omar<br />
<strong>foi</strong> crescen<strong>do</strong> na vida dela... Vivia dizen<strong>do</strong> que o Caçula ia<br />
morrer... Era uma desculpa, eu sabia que não ia acontecer<br />
nada com ele... Ficou louca, fez tu<strong>do</strong> <strong>por</strong> ele, é capaz de<br />
morrer com ele... Longe <strong>do</strong> filho, era a minha mulher, a<br />
mulher que eu queria. Sentia o cheiro dela, me lembrava<br />
das nossas noites mais assanhadas, nós <strong>do</strong>is rolan<strong>do</strong> <strong>por</strong><br />
cima desses panos velhos. De manhãzinha, íamos tomar<br />
; café no quiosque <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, andávamos descalços pela<br />
praia... me dava vontade de fugir com ela, entrar num<br />
barco e ir embora para Belém, deixar os três filhos com a<br />
tua mãe... Pensava nisso, pensei em tu<strong>do</strong>... até em fugir<br />
sozinho... Mas não ia conseguir, ela ia reaparecer inteira<br />
na minha imaginação... Ainda tivemos muitas noites de<br />
gozo, aqui mesmo, no meio dessa bagunça toda. . . O proble-<br />
ma era o Omar, as paixões dele, as duas mulheres.. . A últi-<br />
ma <strong>foi</strong> um transtorno, a Zana percebeu que podia perder o<br />
filho... O frouxo! Covarde... Nunca vai saber... Não consi-<br />
go nem olhar para ele... não quero escutar a voz dele...<br />
acho que nunca quis, me dá enjôo... Se tivesse força, daria<br />
nele outro safanão, teria da<strong>do</strong> uns cem quan<strong>do</strong> ele quebrou<br />
o espelho que a Zana a<strong>do</strong>rava... Mil bofetadas, mil..."<br />
Rânia subiu para ver o que estava acontecen<strong>do</strong>, mas<br />
ele não parava de gritar: "Mil bofetadas naquele covarde!".<br />
ï Ela se curvou, passou a mão na cabeça dele, limpou o suor<br />
<strong>do</strong> rosto e a saliva que lhe cobria a boca; ele babava de ódio,<br />
se engasgou, sacudiu a cabeça, começou a tossir, a escarrar,<br />
ofegante, os olhos avulta<strong>do</strong>s, as mãos procuran<strong>do</strong> a ben-<br />
gala. "Baba, o senhor está melhor? Fique calmo, a loja está<br />
cheia de fregueses." Ele olhou para a filha: "To<strong>do</strong>s à merda",<br />
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disse. Ela desceu. Halim se levantou, apoia<strong>do</strong> na bengala.<br />
Ficou olhan<strong>do</strong> para os rolos de morim e chitão esgarça<strong>do</strong>s,<br />
cheios de traças. Deu uns passos meio inseguros, desceu<br />
bem devagar a escada de ferro. Quis ajudá-lo, mas ele recu-<br />
sou. Não disse para onde ia. Atravessou a loja empunhan<strong>do</strong><br />
a bengala para afastar os fregueses. Eu o vi cambalear entre<br />
os barcos encosta<strong>do</strong>s na rampa. Logo depois, só a cabeça<br />
branca movia-se no horizonte escuro <strong>do</strong> rio.
Àquela altura da vida era-lhe penoso caminhar da casa<br />
à loja, subir a escada em caracol e sentar-se na cadeira de<br />
palha perto da janela debruçada sobre a baía. Eu o acompa-<br />
nhei várias vezes nessa lenta caminhada, e quan<strong>do</strong> alguém<br />
o cumprimentava ou gritava o nome dele, ele erguia a<br />
bengala e me perguntava quem era esse <strong>do</strong>i<strong>do</strong>, e eu dizia<br />
é o Ibrahim da Coalhada Seca, ou então, é o filho <strong>do</strong> Issa<br />
Azmar, ou um compadre que jogava gamão naquele bar, A<br />
Sereia <strong>do</strong> Rio. Ele havia para<strong>do</strong> de jogar, as mãos trêmulas<br />
o impediam de brincar com os da<strong>do</strong>s antes de cada lance.<br />
Esse ritual era uma espécie de magia secreta, fatal para o<br />
jogo. Brincar com os da<strong>do</strong>s, sentir suas arestas, o relevo das<br />
faces, a textura da matéria, e vê-los quicar e rolar no retân-<br />
gulo de feltro. Esse ritual acabara. Às vezes Rânia convida-<br />
va <strong>do</strong>is conheci<strong>do</strong>s para jogar no cubículo de cima, só para<br />
que o pai se distraísse e não metesse o bedelho nos negó-<br />
cios, embora ele quase nada se interessasse pelo destino da<br />
loja. Halim tampouco dava atenção aos joga<strong>do</strong>res e seus<br />
lances de da<strong>do</strong>s, <strong>por</strong>que o outro, o grande jogo, o móvel<br />
de sua vida havia termina<strong>do</strong> desde a época em que o filho<br />
conhecera a mulher no lupanar lilás. Ele se deixava entor-<br />
pecer pelo mormaço, as leves lufadas de ar morno que<br />
182<br />
penetravam na janela <strong>do</strong> depósito. E quan<strong>do</strong> olhava para<br />
o tabuleiro, logo desviava o rosto para a baía <strong>do</strong> Negro,<br />
procuran<strong>do</strong> serenidade nas águas que espelhavam nuvens<br />
brancas e imensas.<br />
Nos últimos anos de vida, Halim conviveu com essa<br />
paisagem sozinho no pequeno depósito de coisas velhas,<br />
entregue aos meandros da memória, <strong>por</strong>que sorria e ges-<br />
ticulava, ficava sério e tornava a sorrir, afirman<strong>do</strong> ou ne-<br />
gan<strong>do</strong> algo indecifrável ou tentan<strong>do</strong> reter uma lembrança<br />
que estalava na mente, uma cena qualquer que se des<strong>do</strong>-<br />
brava em muitas outras, como um filme que começa na<br />
metade da história e cujas cenas embaralhadas e confusas<br />
pinoteiam no tempo e no espaço.<br />
Assim eu via o velho Halim: um náufrago agarra<strong>do</strong> a<br />
um tronco, longe das margens <strong>do</strong> rio, arrasta<strong>do</strong> pela cor-<br />
renteza para o remanso <strong>do</strong> fim. Fingia estar alheio a tu<strong>do</strong>?<br />
Às vezes dissimulava um apagar súbito, de quem vaga,<br />
aéreo, sobre as coisas deste mun<strong>do</strong>. Não dava ouvi<strong>do</strong>s a<br />
ninguém, fazia-se de sur<strong>do</strong>, mas retinha uma ponta de<br />
ânimo. Nunca deixou de entornar uns bons goles de arak.<br />
Bebia, suava, lambia os beiços e espreitava os gestos de<br />
Zana, se derretia para ela, balbuciava palavras de amor. E<br />
ainda teve tempo para testemunhar alguns acontecimen-<br />
tos im<strong>por</strong>tantes na nossa vida.<br />
i83 I '<br />
7<br />
Na primeira semana de janeiro de 1964 Antenor Laval III' I<br />
passou em casa para conversar com Omar. O professor de<br />
francês estava afoba<strong>do</strong>, me perguntou se eu havia li<strong>do</strong> os<br />
<strong>livro</strong>s que me emprestara e me lembrou, com uma voz aba-<br />
fada: as aulas no liceu começam logo depois <strong>do</strong> Carnaval. I'III<br />
Falava como um autômato, sem a calma e as pausas <strong>do</strong><br />
professor em sala de aula, sem o humor que nos mantinha Ili'<br />
acesos quan<strong>do</strong> ele traduzia e comentava um poema. Mi-
nha mãe se assustou ao vê-lo tão abati<strong>do</strong>, um morto-vivo, ; I<br />
a expressão aflitiva de um homem encurrala<strong>do</strong>o Recusou<br />
café e guaraná, fumou vários cigarros enquanto tentava II~~ ~III ,<br />
convencer Omar a participar de uma leitura de poesia, mas<br />
o Caçula primeiro fez uma careta de desgosto, depois brin-<br />
~'I~~~ ~I,I<br />
a'<br />
cou: se fosse no Shangri-Lá, eu ainda topava. Para Laval<br />
não era dia de chacotas: fechou a cara, calou, pigarreou,<br />
I<br />
mas logo tornou a pedir, a implorar que Omar fosse com ele ,<br />
até o <strong>por</strong>ão onde morava. Laval ainda teve que esperar o<br />
185<br />
amigo tomar um banho para tirar a ressaca. Os <strong>do</strong>is saíram<br />
apressa<strong>do</strong>s e Omar só voltou na madrugada <strong>do</strong> dia seguinte,<br />
quan<strong>do</strong> Zana estranhou a sobriedade <strong>do</strong> filho, alguma coisa<br />
que ele escondia ou o inquietava. Bombardeou-o com per-<br />
guntas, mas ele desconversou. Antes de almoçar pediu di-<br />
nheiro à irmã. Era bem mais <strong>do</strong> que costumava pedir, um<br />
dinheirão que Rânia se recusou a dar: "De jeito nenhum,<br />
mano, não há farra que custe essa fortuna". Ele ainda insis-<br />
tiu, sem o cinismo habitual, sem os gestos de sedução que<br />
a desmanchavam. Insistiu com o rosto tenso, a voz grave, o<br />
olhar sincero. Zana, desconfiada, interpelou a filha: que des-<br />
se uma parte <strong>do</strong> dinheiro, ou um pouquinho, Omar talvez<br />
quisesse pagar uma dívida. "Vocês <strong>do</strong>is não param de pedir<br />
dinheiro. Por que não passam uma semana atrás daquele<br />
balcão? Ou um dia inteiro, um só, naquele forno, agüen-<br />
tan<strong>do</strong> o desaforo <strong>do</strong>s bêba<strong>do</strong>s, a chatice <strong>do</strong>s fregueses e<br />
ainda <strong>por</strong> cima a ladainha <strong>do</strong> papai."<br />
Rânia não cedeu. Andava preocupada com o péssimo<br />
movimento de janeiro; o comércio estava quase para<strong>do</strong>, e<br />
a greve <strong>do</strong>s <strong>por</strong>tuários afastava a clientela <strong>do</strong>s arre<strong>do</strong>res <strong>do</strong><br />
<strong>por</strong>to da Escadaria. Ela encheu uma caixa com amostras de<br />
novidades de São Paulo e pediu que eu fosse atrás <strong>do</strong>s fre-<br />
gueses mais assíduos. "Corre atrás desses fujões, se alguém<br />
quiser comprar eu mesma levo a merca<strong>do</strong>ria." A lista era<br />
imensa, em cada rua eu entrava em oito ou dez casas para<br />
oferecer as maravilhas de Rânia. Conheci to<strong>do</strong> tipo de fre-<br />
guês: os indecisos, os pedantes, os exigentes, os perdulários,<br />
os agressivos, os medrosos, os intratáveis. Alguns me convi-<br />
davam para merendar, contavam histórias intermináveis e<br />
se despediam como se eu fosse visita. Lembrei-me das pala-<br />
vras de Halim: "O comércio é antes de tu<strong>do</strong> uma troca de<br />
palavras". Muitos economizavam para gastar no Carnaval,<br />
mas alguém sempre comprava, e eu arrancava de Rânia<br />
um sorriso e uns troca<strong>do</strong>s a título de comissão. Ela ficava<br />
eufórica, transpirava, os olhos graú<strong>do</strong>s reviravam de tanto<br />
prazer. O comércio a empolgava, ela se transfigurava ao<br />
receber os pedi<strong>do</strong>s, mordia os lábios, me abraçava, e eu tre-<br />
mia como nas noites festivas <strong>do</strong> aniversário de Zana, que<br />
não existiam mais. Passei os meses de janeiro e fevereiro<br />
nesse vaivém <strong>por</strong> ruas, becos e alamedas. Quan<strong>do</strong> anoite-<br />
cia, Rânia fechava a loja e continuava o meu trabalho, en-<br />
quanto eu ia atrás de Halim. Zana não o queria fora de<br />
casa durante a noite. "Ele não pode andar sozinho <strong>por</strong> aí, é<br />
perigoso", ela dizia. Eu o encontrava numa roda de com-
padres no Canto <strong>do</strong> Quintela, ou na casa de um amigo já<br />
velho e <strong>do</strong>ente. Relutava em voltar para casa, soltava uns<br />
palavrões em árabe, mas depois murmurava: "Está bem,<br />
queri<strong>do</strong>, vamos, vamos... é o jeito, não é?".<br />
Na noite em que vimos Rânia carregan<strong>do</strong> uma caixa e<br />
venden<strong>do</strong> de <strong>por</strong>ta em <strong>por</strong>ta, ele disse com raiva: "Coitada<br />
da minha filha, está se matan<strong>do</strong> para sustentar aquele pa-<br />
rasita". Ele não su<strong>por</strong>tava mais olhar para o Omar. Até a<br />
voz <strong>do</strong> filho o irritava, dizia que lhe dava <strong>do</strong>r de barriga,<br />
que o coração queimava, tu<strong>do</strong> queimava <strong>por</strong> dentro dele.<br />
Soube que ele tapava os ouvi<strong>do</strong>s com uma bolinha de su-<br />
maúma e cera só para não escutar a voz <strong>do</strong> Caçula. Quan<strong>do</strong><br />
eu ia atrás de Halim, passava pela pensão <strong>do</strong> Laval, mas não<br />
o via no subsolo. Estava totalmente escuro e a rua deserta<br />
dava um pouco de me<strong>do</strong>. Lembrava-me das poucas vezes<br />
que havia participa<strong>do</strong> das leituras no <strong>por</strong>ão. Pilhas de papel<br />
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cercavam a rede onde ele <strong>do</strong>rmia. Do teto pendiam escul-<br />
turas, móbiles e ob,jetos de papel. Talvez não tivesse joga<strong>do</strong><br />
fora uma só folha. Devia guardar tu<strong>do</strong>: bilhetes, poemas e<br />
inúmeras anotações de aula rabiscadas em folhas de papel<br />
enroladas, <strong>do</strong>bradas, ou soltas, espalhadas no chão sujo. Nos<br />
cantos escuros amontoavam-se garrafões vazios de vinho, e<br />
no piso cimenta<strong>do</strong> restos de comida ressequida se mistura-<br />
vam a asas de barata. "<strong>Este</strong> caos é mais infecto que um pe-<br />
sadelo, mas é o meu alïmento", dizia Laval aos alunos.<br />
Saíamos <strong>do</strong> <strong>por</strong>ão carregan<strong>do</strong> <strong>livro</strong>s e apostilas velhas que<br />
ele nos presenteava. Ele permanecia lá dentro, fuman<strong>do</strong>,<br />
beben<strong>do</strong> e traduzin<strong>do</strong> poemas franceses durante a noite.<br />
Estranhei que Laval não tivesse me convida<strong>do</strong> para<br />
participar da leitura de poesia. Depois, em março, ele faltou<br />
às primeiras aulas e só apareceu na terceira semana <strong>do</strong> mês.<br />
Entrou na sala com uma expressão mais abatida <strong>do</strong> que<br />
quan<strong>do</strong> o vira em casa, o paletó branco cheio de nó<strong>do</strong>as,<br />
os de<strong>do</strong>s da mão esquerda e os dentes amarela<strong>do</strong>s de tanto<br />
furnar. "Desculpem-me, estou muito indïsposto", disse em<br />
francês. "Aliás, muita gente está indisposta", murmurou,<br />
agora em <strong>por</strong>tuguês. Mal se equilibrava de pé. A mão direi-<br />
ta, trêmula, segurava um pedaço de giz, a outra um cigarro.<br />
Esperávamos a "preleção" de costume, uns cinqüenta mi-<br />
nutos que dedicava ao mun<strong>do</strong> que envolvia o poeta. Tinha<br />
si<strong>do</strong> sempre assim: primeiro o cerco histórico, ele dizia, de-<br />
pois uma conversa, <strong>por</strong> fim a obra. Era a momento em que<br />
ele falava em francês, e nos provocava, nos estimulava, fa-<br />
zia perguntas, queria que falássemos uma frase, que nin-<br />
guém ficasse cala<strong>do</strong>, nem os mais tími<strong>do</strong>s, nada de passi-<br />
vidade, isso nunca. Queria discussão, opiniões diferentes,<br />
opostas, ele seguia todas as vozes, e no fim falava ele, argu-<br />
mentava anima<strong>do</strong>, lembran<strong>do</strong>-se de tu<strong>do</strong>, de cada absur<strong>do</strong><br />
ou intuição ou dúvida. Mas naquela manhã ele não fez na-<br />
da disso, não conseguia falar, estava engasga<strong>do</strong>, que droga,<br />
parecia sufoca<strong>do</strong>. Estávamos boquiabertos, nem os mais ou-<br />
sa<strong>do</strong>s e rebeldes conseguiam provocá-lo fazen<strong>do</strong> uma care-<br />
ta me<strong>do</strong>nha <strong>por</strong> causa <strong>do</strong> bafo dele. "Vamos ver.. . vamos. ..<br />
ler alguma coisa... traduzir..." A mão trêmula começou a<br />
escrever um poema no quadro-negro, o giz desenhava ra-<br />
biscos que lembravam arabescos, só <strong>foi</strong> possível ler o último
verso, que eu copiei: "Je dis: Que cherchent-ils au Ciel, tous<br />
ces<br />
aveugles?". O resto era ilegível, ele se esquecera <strong>do</strong> título, e<br />
<strong>por</strong> um momento nos lançou um olhar estranho. Depois<br />
largou o giz e saiu sem dizer palavra. O professor de fran-<br />
cês não voltou mais ao liceu, até que numa manhã de abril<br />
nós presenciamos sua prisão.<br />
Ele acabara de sair <strong>do</strong> Café Mocambo, atravessava len-<br />
tamente a praça das Acácias na direção <strong>do</strong> Galinheiro <strong>do</strong>s<br />
Vândalos. Carregava a pasta surrada em que guardava li-<br />
vros e papéis, a mesma pasta, os mesmos <strong>livro</strong>s; os papéis<br />
é que podiam ser diferentes, <strong>por</strong>que continham as garatu-<br />
jas dele. Laval escrevia um poema e o distribuía aos estu-<br />
dantes. Ele mesmo não guardava o que escrevia. Dizia: "Um<br />
verso de um grande simbolista ou romântico vale mais <strong>do</strong><br />
que uma tonelada de retórica - dessa minha inútil e mise-<br />
rável retórica", acentuava.<br />
Foi humilha<strong>do</strong> no centro da praça das Acácias, esbofe-<br />
tea<strong>do</strong> como se fosse um cão vadio à mercê da sanha de uma<br />
gangue feroz. Seu paletó branco explodiu de vermelho e ele<br />
ro<strong>do</strong>piou no centro <strong>do</strong> coreto, as mãos cegas procuran<strong>do</strong><br />
i88 ~ ~ 189<br />
um apoio, o rosto incha<strong>do</strong> volta<strong>do</strong> para o sol, o corpo giran-<br />
<strong>do</strong> sem rumo, cambalean<strong>do</strong>, tropeçan<strong>do</strong> nos degraus da es-<br />
cada até tombar na beira <strong>do</strong> lago da praça. Os pássaros, os<br />
jaburus e as seriemas fugiram. A vaia e os protestos de estu-<br />
dantes e professores <strong>do</strong> liceu não intimidaram os policiais.<br />
Laval <strong>foi</strong> arrasta<strong>do</strong> para um veículo <strong>do</strong> Exército, e logo de-<br />
pois as <strong>por</strong>tas <strong>do</strong> Café Mocambo foram fechadas. Muitas<br />
<strong>por</strong>tas foram fechadas quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>is dias depois soubemos<br />
que Antenor Laval estava morto. Tu<strong>do</strong> isso em abril, nos<br />
primeiros dias de abril.<br />
Na manhã da caçada ao mestre eu apanhei a pasta sur-<br />
rada, perdida na beira <strong>do</strong> lago. Dentro da pasta, os <strong>livro</strong>s e<br />
as folhas com poemas, cheias de manchas.<br />
As lembranças de Laval: seus ensinamentos, sua cali-<br />
grafia esmerada, de letras quase desenhadas. As palavras<br />
pensadas e repensadas. Ele não queria ser chama<strong>do</strong> de poe-<br />
ta, não gostava disso. Detestava pompa, ria <strong>do</strong>s políticos da<br />
província, espicaçava-os durante os intervalos, mas recusa-<br />
va-se a falar sobre o assunto no meio de uma aula. Dizia:<br />
"Política é conversa de recreio. Aqui na sala, o tema é muito<br />
mais eleva<strong>do</strong>. Voltemos à nossa outra noite...".<br />
Choveu muito, um toró <strong>do</strong>s diabos, no dia de sua mor-<br />
te. Mesmo assim, alunos e ex-alunos de Laval se reuniram<br />
no coreto, acenderam tochas, e to<strong>do</strong>s tínhamos pelo menos<br />
um poema manuscrito <strong>do</strong> mestre. O coreto estava cheio,<br />
ilumina<strong>do</strong> <strong>por</strong> um círculo de fogo. Alguém sugeriu um<br />
minuto de silêncio em homenagem ao mestre imola<strong>do</strong>.<br />
Depois, um ex-aluno <strong>do</strong> liceu começou a ler em voz alta<br />
um poema de Laval. Omar <strong>foi</strong> o último a recitar. Estava<br />
emociona<strong>do</strong> e triste, o Caçula. A chuva acentuava a tristeza,<br />
mas acendia a revolta. No chão <strong>do</strong> coreto, manchas de san-<br />
gue. Omar escreveu com tinta vermelha um verso de Laval,<br />
e <strong>por</strong> muito tempo as palavras permaneceram ali, legíveis<br />
e firmes, oferecidas à memória de um, talvez de muitos.<br />
Por uma vez, uma só, não hostilizei o Caçula, não pude
odiá-lo naquela tarde chuvosa, nossos rostos ilumina<strong>do</strong>s<br />
<strong>por</strong> tochas, nossos ouvi<strong>do</strong>s atentos às palavras de um mor-<br />
to, nosso olhar na fachada <strong>do</strong> liceu, na tarja preta que des-<br />
cia <strong>do</strong> beiral à soleira da <strong>por</strong>ta. Um liceu enluta<strong>do</strong>, um mes-<br />
tre assassina<strong>do</strong>: assim começou aquele abril para mim, para<br />
muitos de nós.<br />
Não pude odiar o Caçula. Pensei: se toda a nossa vida se<br />
resumisse àquela tarde, então estaríamos quites. Mas não<br />
era, não <strong>foi</strong> assim. Foi só aquela tarde. E ele voltou para ca-<br />
sa tão altera<strong>do</strong> que não se apercebeu da presença <strong>do</strong> outro.<br />
A cidade estava meio deserta, <strong>por</strong>que era um tempo<br />
de me<strong>do</strong> em dia de aguaceiro. A casa também, quase vazia.<br />
Rânia lá na loja, Halim perambulan<strong>do</strong> pela cidade, Zana <strong>por</strong><br />
ali, na vizinhança, talvez na casa de Talib, em visita culi-<br />
nária. Domingas, guardiã da casa, engomava a roupa no<br />
quartinho <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s. Eu chegara mais ce<strong>do</strong> da praça das<br />
Acácias. Pensava em Laval, nas conversas noturnas em sua<br />
caverna, como ele chamava o <strong>por</strong>ão onde morava sozinho.<br />
Pouca coisa sabíamos dele: ao meio-dia e às seis a <strong>do</strong>na da<br />
casa deixava um prato feito na entrada da caverna. Fazia<br />
isso to<strong>do</strong>s os dias, mesmo aos <strong>do</strong>mingos, quan<strong>do</strong> eu passava<br />
na calçada da pensão e enxergava o prato de comida na<br />
soleira da <strong>por</strong>ta, onde fervilhavam formigas-de-fogo e a<br />
i9o ~ ~ i9i<br />
gataria <strong>do</strong> Igarapé de Manaus. Eu via a silhueta de Laval<br />
através <strong>do</strong> óculo re<strong>do</strong>n<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>por</strong>ão. A luz solar pouco acla-<br />
rava a caverna, e uma lâmpada que pendia <strong>do</strong> teto ilumi-<br />
nava a cabeça <strong>do</strong> mestre. Ele movia nervosamente as mãos<br />
para fumar, escrever ou virar a página de um <strong>livro</strong>. Rara-<br />
mente comia à noite: começava a beber depois <strong>do</strong> almoço,<br />
entrava na sala <strong>do</strong> liceu ainda sóbrio, mas anima<strong>do</strong>. Os alu-<br />
nos <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> noturno sentiam à distância o bafo aze<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
sangue-de-boi. Expelia pelos <strong>por</strong>os esse vinagre insu<strong>por</strong>tá-<br />
vel. Suava. No entanto, não perdia a compostura nem o<br />
humor. Quan<strong>do</strong> faltava luz, acendia um lampião e muitas<br />
velas. Nunca deixava de ler um poema e comentá-lo com<br />
entusiasmo. Compenetrava-se, circunspecto, assim de re-<br />
pente, no meio de uma lição. Podia ser o silêncio de um<br />
intervalo, uma reflexão, pausa que a memória pede e a voz<br />
cumpre. Ou seria o efeito <strong>do</strong> vinho, a caída no abismo? Tal-<br />
vez isto: alguma coisa inexplicável. Porque de sua vida nin-<br />
guém tinha notícias claras: um caracolzinho entre pedre-<br />
gulhos. Só um zunzum corria nos corre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> liceu, <strong>do</strong>is<br />
de<strong>do</strong>s de mexerico da vida alheia, dele, Laval. Um: que fora<br />
militante vermelho, <strong>do</strong>s mais a<strong>foi</strong>tos, chefe <strong>do</strong>s chefes, com<br />
passagem <strong>por</strong> Moscou. Ele não negava, tampouco apro-<br />
vava. Calava quan<strong>do</strong> a curiosidade se alastrava em ala-<br />
ri<strong>do</strong>s. O outro rumor, bem mais triste. Diz que havia muito<br />
tempo o jovem advoga<strong>do</strong> Laval vivia com uma moça <strong>do</strong> in-<br />
terior. Líder e ora<strong>do</strong>r nato, ele fora convoca<strong>do</strong> para uma<br />
reunião secreta, no Rio. Levou a amante e voltou a Manaus<br />
sozinho. Falou-se de traição e aban<strong>do</strong>no. Versões desiguais,<br />
palavras desencontradas e afins... Conjeturas. O que se sa-<br />
be é que, desde então, Laval internou-se no subsolo de uma<br />
I<br />
,, I,<br />
casa à margem <strong>do</strong> Igarapé de Manaus. Várias vezes <strong>foi</strong> en-
;, '~ II!~! ;~<br />
contra<strong>do</strong> no canto da caverna, quieto e emudeci<strong>do</strong>, o rosto ,<br />
cadavérico, a barba espessa que ele conservaria até a imola-<br />
ção. Não era greve de fome nem inapetência. Talvez deses- ¡ ¡II<br />
pero. Seus poemas, cheios de palavras raras, insinuavam<br />
noites aflitas, mun<strong>do</strong>s soterra<strong>do</strong>s, vidas sem saída ou esca-<br />
pe. Às sextas-feiras distribuía-os aos alunos, pensan<strong>do</strong> que ,<br />
ninguém os leria, pensan<strong>do</strong> sempre no pior. Lá no íntimo<br />
era um pessimista, um desencanta<strong>do</strong>, e tentava compensar '<br />
i<br />
esse desencanto <strong>por</strong> meio da aparência, com seu jeito de<br />
dândi. Refutava o rótulo de poeta, mas não se incomodava i,<br />
quan<strong>do</strong> o chamavam de excêntrico ou afeta<strong>do</strong>. Não sei qual<br />
<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is atributos o definia melhor. Nenhum, talvez. Mas !<br />
<strong>foi</strong> um mestre. E também um atormenta<strong>do</strong> que escrevia,<br />
saben<strong>do</strong> que não publicaria nada. Seus poemas repousam<br />
<strong>por</strong> aí, em gavetas esquecidas ou na memória de ex-alunos. ;<br />
A pasta de couro surrada já estava seca, e eu aquecia<br />
os papéis de Laval no va<strong>por</strong> <strong>do</strong> ferro com que Domingas i f<br />
passava roupa. Os papéis estavam enruga<strong>do</strong>s, mancha<strong>do</strong>s.<br />
Só algumas palavras podiam ser lidas. Os poemas, que já<br />
eram breves, tornaram-se brevíssimos: palavras quase sol- I<br />
tas, como olhar para uma árvore e enxergar só as frutas. ~'I~ '<br />
I I<br />
Enxerguei as frutas, que logo caíram, sumidas. E, ao olhar il,<br />
~,,<br />
para a sala, divisei um vulto alto e esguio, e só pude pen- ¡`',<br />
sar no poeta, no espectro <strong>do</strong> poeta Antenor Laval. '<br />
Era Yaqub. , I i<br />
Ele me deu um susto ao entrar de mansinho na casa.<br />
Tinha acaba<strong>do</strong> de chegar <strong>do</strong> aero<strong>por</strong>to e parecia um paxá.<br />
193<br />
O espadachim da juventude não perdera a pose: estava de<br />
pé, as mangas arregaçadas, e fumava, aprecian<strong>do</strong> a chuva,<br />
magnetiza<strong>do</strong> pelo ruí<strong>do</strong> das gotas grossas que estalavam<br />
no telha<strong>do</strong>. Domingas largou o ferro e <strong>foi</strong> acolher o recém-<br />
chega<strong>do</strong>. Abraçou-o, e <strong>foi</strong> o abraço mais demora<strong>do</strong> que ela<br />
deu num homem da casa. Depois serviu-lhe suco de jambo,<br />
armou a rede no alpendre e pôs ali uma mesinha com pu-<br />
punhas cozidas e um bule de café. Ele deitou na rede e, com<br />
um gesto, pediu que minha mãe ficasse junto dele.<br />
Eu me aproximei <strong>do</strong> alpendre para ouvir a voz de Ya-<br />
qub: uma voz grave que pronunciou várias vezes o meu<br />
nome. Minha mãe apontou os fun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> quintal. Notei que<br />
alguma coisa nele havia muda<strong>do</strong>, pois na outra visita não<br />
ficara tão perto de Domingas. Agora os <strong>do</strong>is pareciam mais<br />
íntimos, confabulavam à vontade. Quan<strong>do</strong> a rede se aproxi-<br />
mava de minha mãe, Yaqub passava-lhe a mão no cabelo,<br />
na nuca. Ele só parou de rir quan<strong>do</strong> Domingas, <strong>por</strong> distra-<br />
ção, roçou-lhe a cicatriz com os de<strong>do</strong>s. O rosto cora<strong>do</strong> de<br />
Yaqub se fechou, ele pôs os pés no chão, interrompeu o ba-<br />
lanço da rede e acendeu outro cigarro. Nunca deve ter se<br />
conforma<strong>do</strong> com esse traço estranho na face esquerda, que<br />
ele logo tratou de cobrir com a palma da mão. O rosto se<br />
contraiu e o olhar ficou desnortea<strong>do</strong>, aflito. Ele se levantou<br />
da rede quan<strong>do</strong> Omar entrou na sala, ensopa<strong>do</strong>, descalço, a<br />
roupa colada no corpo. Parecia febril, e no rosto dele ainda
era visível o luto <strong>por</strong> Laval. Eu me lembrei da voz de Omar<br />
recitan<strong>do</strong> um poema <strong>do</strong> morto, da época em que os <strong>do</strong>is,<br />
aluno e professor, saíam juntos depois da aula e se embre-<br />
nhavam no matagal nos arre<strong>do</strong>res da rua Frei José <strong>do</strong>s<br />
Inocentes, onde as putas os esperavam.<br />
O rosto crispa<strong>do</strong> de Yaqub voltou-se para o irmão. Tal-<br />
vez fosse o momento o<strong>por</strong>tuno para se engalfinharem, se<br />
esfolarem, os <strong>do</strong>is em carne viva nas nossas ventas, a mi-<br />
nha e a de Domingas. Yaqub balbuciou umas palavras, mas<br />
Omar não o encarou: ignorou-o e subiu a escada apoian<strong>do</strong>-<br />
se no corrimão. A tosse e os passos pesa<strong>do</strong>s ecoaram na ca-<br />
sa, e antes de entrar no quarto ele gritou o nome de Domin-<br />
gas. O tom da voz soava como ordem, mas minha mãe não<br />
saiu de perto de Yaqub. Deixou o <strong>do</strong>ente berrar como um<br />
louco e eu notei um sorriso demora<strong>do</strong> no rosto dela.<br />
Fiquei observan<strong>do</strong> Yaqub, o seu semblante agora bem<br />
menos exaspera<strong>do</strong>, o corpo ereto, to<strong>do</strong> ele recomposto.<br />
Lembrei-me da última vez que o tinha visto em casa, <strong>do</strong>s<br />
nossos passeios, e senti me<strong>do</strong> da distância, <strong>do</strong> longo tempo<br />
que havia passa<strong>do</strong> sem vê-lo: o tempo que faz uma pessoa<br />
se tornar humilde, cínica ou cética. Pensei que ele fosse se<br />
tornar mais arrogante, <strong>do</strong>no de muitas verdades e certezas,<br />
se não de todas. Lembrei-me das palavras de minha tnãe:<br />
"Logo que ele chegou <strong>do</strong> Líbano, vinha conversar comigo.<br />
Só ele entrava no meu quarto, só ele di~zia que querïa ouvir<br />
minha história.. . Ele só era cala<strong>do</strong> com os outros".<br />
Não perdera o ar soberbo: o orgulho de alguém que<br />
quis provar a si mesmo e aos outros que um ser rude, um<br />
pastor, um ra'í, como o chamava a mãe, poderia vir a ser<br />
um engenheiro famoso, reverencia<strong>do</strong> no círculo que fre-<br />
qüentava em São Paulo. Agora não queria ser chama<strong>do</strong> de<br />
<strong>do</strong>utor, sentia-se mais à vontade em casa, não vestia mais<br />
paletó e gravata. Tampouco se com<strong>por</strong>tou como hóspede.<br />
Era um filho que volta à casa <strong>do</strong>s pais e ao lugar da infân-<br />
cia. Ele matutava na rede quan<strong>do</strong> o pai e a mãe chegaram<br />
195<br />
quase ao mesmo tempo. Zana <strong>foi</strong> a primeira a ver o filho,<br />
a primeira a se debruçar sobre ele e a beijá-lo, mas logo<br />
se afastou <strong>por</strong>que ouviu gemi<strong>do</strong>s que vinham <strong>do</strong> quarto<br />
de Omar.<br />
"Vou ver o que está acontecen<strong>do</strong> com o teu irmão",<br />
disse ela, afobada. "Halim, olha só quem chegou de sur-<br />
presa."<br />
O pai reclamava que a cidade estava inundada, que ha-<br />
via correria e confusão no centro, que a Cidade Flutuante<br />
estava cercada <strong>por</strong> militares.<br />
"Eles estão <strong>por</strong> toda parte", disse, abraçan<strong>do</strong> o filho.<br />
"Até nas árvores <strong>do</strong>s terrenos baldios a gente vê uma pen-<br />
ca de solda<strong>do</strong>s..."<br />
"É que os terrenos <strong>do</strong> centro pedem para ser ocupa-<br />
<strong>do</strong>s", sorriu Yaqub. "Manaus está pronta para crescer."<br />
Halim enxugou o rosto, olhou nos olhos <strong>do</strong> filho e dis-<br />
se sem entusiasmo:<br />
"Eu peço outra coisa, Yaqub... Já cresci tu<strong>do</strong> o que ti-<br />
nha de crescer..."<br />
Yaqub desviou o olhar para a chuva e se levantou, e a<br />
voz de Rânia o tirou <strong>do</strong> embaraço. Ela estava assustada com
o movimento de tropas na área <strong>por</strong>tuária, mas a visão de<br />
Yaqub a fez esquecer a tempestade política. Halim os deixou<br />
a sós. A mãe ocupava-se <strong>do</strong> filho enfermo: passava horas<br />
dentro <strong>do</strong> quarto, e quan<strong>do</strong> abria a <strong>por</strong>ta, ouvíamos a voz<br />
lamentar: "O Omar pegou chuva, a<strong>do</strong>eceu <strong>por</strong> causa <strong>do</strong> La-<br />
val, aquele poeta <strong>do</strong>i<strong>do</strong>". Ela armou uma rede no quarto <strong>do</strong><br />
filho, interrompeu a conversa de Rânia com Yaqub: "Vou<br />
chamar um médico, o pobre <strong>do</strong> Omar mal consegue engo-<br />
lir saliva". Yaqub apenas seguiu com o rabo <strong>do</strong> olho os mo-<br />
vimentos de Zana. Não <strong>foi</strong> caloroso com ela; <strong>por</strong>tou-se<br />
com um certo distanciamento que não significava neutra-<br />
lidade nem estranheza. Revelou-se um mestre <strong>do</strong> equilí-<br />
brio quan<strong>do</strong> as partes se tensionam. Não reagiu na juven-<br />
tude, quan<strong>do</strong> um caco de vidro cortou-lhe a face esquerda;<br />
tampouco conformou-se com a cicatriz no rosto, como al-<br />
guém que aceita passivamente um traço <strong>do</strong> destino. Minha<br />
mãe via Yaqub cada vez mais decidi<strong>do</strong>, mais enérgico,<br />
"pronto para dar bote de cobra-papagaio". Ela pressentia<br />
que ele matutava alguma coisa, e eu não sabia se os <strong>do</strong>is<br />
iam se encontrar fora de casa, secretamente. Trocavam<br />
olhares rápi<strong>do</strong>s, quase instantâneos, mas eu percebia o sor-<br />
riso dela.<br />
Naqueles dias o que mais me impressionou <strong>foi</strong> a obsti-<br />
nação de Yaqub pelo trabalho. E também a coragem. Ele<br />
passava uma boa parte da noite trabalhan<strong>do</strong>, a mesa da<br />
sala coberta de folhas quadriculadas, cheias de números e<br />
desenhos. Levantava-se às cinco, quan<strong>do</strong> só eu e Domingas<br />
estávamos acorda<strong>do</strong>s. As seis, me convidava para sentar à<br />
mesa <strong>do</strong> café da manhã. Tomava leite morno com tapioca,<br />
comia banana frita, rabanada e compota de manga; comia<br />
quase com voracidade, melan<strong>do</strong> as mãos e a boca. Aquela<br />
hora, sentíamos com mais intensidade o cheiro da folha-<br />
gem úmida, <strong>do</strong>s cachos de frutas das palmeiras, das jacas<br />
maduras. Yaqub gostava de esperar o sol nascer, gostava de<br />
acompanhar a mudança de cor da vegetação que emergia<br />
da noite e se iluminava lentamente. Era um momento <strong>do</strong><br />
dia em que ele não tinha pressa. Naquela manhã, ele mur-<br />
murou: "Sinto falta desse amanhecer. O cheiro... o quin-<br />
tal". Depois me contou sobre o seu trabalho; ia duas vezes<br />
196 197<br />
<strong>por</strong> mês ao litoral de São Paulo, onde construía edifícios.<br />
"Um dia tu vais me visitar, vou te levar para ver o mar."<br />
Era uma promessa, mas eu não via grande coisa no<br />
futuro, o mar estava muito longe, meu pensamento estava<br />
crava<strong>do</strong> ali mesmo, nos dias e noites <strong>do</strong> presente, nas <strong>por</strong>-<br />
tas fechadas <strong>do</strong> liceu, na morte de Laval. Yaqub sabia dis-<br />
so? Ele notou minha inquietação, minha tristeza. Disse-lhe<br />
isto: que estava com me<strong>do</strong>, faltava pouco para terminar o<br />
curso no liceu. Um professor tinha si<strong>do</strong> assassina<strong>do</strong>, o<br />
Antenor Laval. .. Ele ficou pensativo, balançan<strong>do</strong> a cabeça.<br />
Olhou para mim: "Eu também tenho um amigo. .. <strong>foi</strong> meu<br />
professor em São Paulo...". Parou de falar, me olhou como<br />
se eu não fosse entender o que ele ia dizer. Na época em<br />
que havia estuda<strong>do</strong> no colégio <strong>do</strong>s padres Yaqub talvez<br />
tivesse conheci<strong>do</strong> Laval.<br />
Ele sabia que Manaus se tornara uma cidade ocupada.<br />
As escolas e os cinemas tinham si<strong>do</strong> fecha<strong>do</strong>s, lanchas da
Marinha patrulhavam a baía <strong>do</strong> Negro, e as estações de rá-<br />
dio transmitiam comunica<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Coman<strong>do</strong> Militar da Ama-<br />
zônia. Rânia teve que fechar a loja <strong>por</strong>que a greve <strong>do</strong>s <strong>por</strong>-<br />
tuários terminara num confronto com a polícia <strong>do</strong> Exército.<br />
Halim me aconselhou a não mencionar o nome de Laval<br />
fora de casa. Outros nomes foram emudeci<strong>do</strong>s. A tarja pre-<br />
ta que cobria uma parte da fachada <strong>do</strong> liceu fora arranca-<br />
da e as <strong>por</strong>tas <strong>do</strong> prédio permaneceram trancadas <strong>por</strong> vá-<br />
rias semanas.<br />
Mesmo assim, Yaqub não se intimi<strong>do</strong>u com os veículos<br />
verdes que cercavam as praças e o Manaus Harbour, com<br />
os homens de verde que ocupavam as avenidas e o aero-<br />
<strong>por</strong>to. Nem mesmo um diabo verde o teria intimida<strong>do</strong>. Eu<br />
.;<br />
.5<br />
,.<br />
,.<br />
I<br />
não queria sair de casa, não entendia as razões da quar-<br />
telada, mas sabia que havia tramas, movimento de tropas,<br />
protestos <strong>por</strong> toda parte. Violência. T~<strong>do</strong> me fez me<strong>do</strong>. Mas<br />
ele insistiu em que eu o acompanhasse: "Já fui militar, sou<br />
oficial da reserva", me disse orgulhoso.<br />
Na tarde em que saímos para fotografar edifícios e mo-<br />
numentos da área central, nós paramos na praça da Matriz<br />
e eu me lembrei da missa em memória de Laval, a missa<br />
proibida. Enquanto Yaqub fotografava e fazia anotações eu<br />
percorri os caminhos da praça, sentei num banco de pedra<br />
enreda<strong>do</strong> pelas raízes grossas de um apuizeiro. O calor da<br />
tarde me deu tontura, senti a boca seca, os lábios gruda<strong>do</strong>s.<br />
Não jorrava água da boca <strong>do</strong>s anjos de bronze da fonte.<br />
Perto da igreja, parei para descansar e admirar os pássaros<br />
<strong>do</strong> aviário. Percebi que estavam assusta<strong>do</strong>s, voavam enlou-<br />
queci<strong>do</strong>s para to<strong>do</strong> la<strong>do</strong>, mas logo um zuni<strong>do</strong> de varejeiras<br />
me incomo<strong>do</strong>u, um som grave e monótono que <strong>foi</strong> aumen-<br />
tan<strong>do</strong>, e quan<strong>do</strong> desviei os olhos para a rua, fiquei gela<strong>do</strong><br />
ao ver um jipe apinha<strong>do</strong> de baionetas. Pensei em Laval,<br />
seu corpo sen<strong>do</strong> espanca<strong>do</strong> e pisotea<strong>do</strong> no coreto, e arras-<br />
ta<strong>do</strong> até a beira <strong>do</strong> lago. Esperei o veículo militar desapa-<br />
recer, mas logo veio outro, e mais outro. Muitos, e sons de<br />
trovoada. Os solda<strong>do</strong>s gritavam, davam vivas, uma baru-<br />
lheira de vozes e buzinas alarmou a praça da Matriz. Era um<br />
comboio de caminhões que vinha da praça General Osório<br />
e ia na direção <strong>do</strong> roadway. Acompanhei com o rabo <strong>do</strong><br />
olho a trepidação daquele monstro verde na rua de pedras,<br />
senti um mal-estar, uma pontada na cabeça e logo uma<br />
ânsia de vômito ao perceber a fila de veículos verdes que<br />
parecia não ter fim. O chão trepidava cada vez mais, agora<br />
i98 ~ ~ 199<br />
eram sirenes e urros que zuniam na minha cabeça, e baio-<br />
netas que apontavam para a <strong>por</strong>ta da igreja, onde os meus<br />
colegas <strong>do</strong> liceu erguiam os braços, se atiravam ao chão ou<br />
caíam, e depois apontavam para Laval, que se contorcia no<br />
aviário cheio de pássaros mortos, a mão direita seguran<strong>do</strong><br />
sua pasta surrada, a esquerda tentan<strong>do</strong> agarrar as folhas de<br />
papel que queimavam no ar. Eu quis entrar no aviário, mas<br />
estava tranca<strong>do</strong>, e ainda pude ver Laval bem perto de mim,
o rosto rasga<strong>do</strong> de <strong>do</strong>r, o colarinho cheio de sangue, o olhar<br />
triste e a boca aberta, incapaz de falar. Ele desapareceu na<br />
noite súbita e eu comecei a gritar <strong>por</strong> Yaqub, gritei como<br />
um louco, e vi minha mãe diante de mim, as mãos no meu<br />
rosto quente, os olhos dela arregala<strong>do</strong>s, acesos e tensos.<br />
Halim e Yaqub estavam atrás dela e me olhavam assusta-<br />
<strong>do</strong>s. Eu tremia de febre, suava, estava ensopa<strong>do</strong>. Quis saber<br />
sobre a missa <strong>do</strong> mestre, eles desconversaram. Minha mãe<br />
não saiu de perto de mim, <strong>foi</strong> a única vez que a vi noite e<br />
dia ao meu la<strong>do</strong>. Aban<strong>do</strong>nou tu<strong>do</strong>, toda a labuta diária,<br />
nem subiu para ver o Caçula.<br />
Nos últimos dias que ficou em Manaus Yaqub me visi-<br />
tou várias vezes. Sentava num tamborete, passava a mão no<br />
meu braço e na minha testa, dizia que eu tinha um pouco<br />
de febre. Ainda me lembro <strong>do</strong> seu rosto preocupa<strong>do</strong>, da<br />
voz que queria chamar um médico, ele pagaria tu<strong>do</strong>. Do-<br />
mingas não aceitou, ela confiava no bálsamo de copaíba,<br />
nas ervas medicinais. Passei alguns dias deita<strong>do</strong>, e me ale-<br />
grou saber que Halim dera mais atenção ao neto bastar<strong>do</strong><br />
que ao filho legítimo. Ele sequer pisou na soleira da <strong>por</strong>ta<br />
<strong>do</strong> Caçula. No meu quarto entrou várias vezes, e numa<br />
delas me deu uma caneta-tinteiro, toda prateada, presente<br />
I;III<br />
I<br />
IÍ<br />
<strong>do</strong>s meus dezoito anos. Nem Yaqub se lembrara da data,<br />
mas o que ele não gastou com médico, ofereceu a Domin- ,I'~ ,<br />
gas, e dessa vez ela aceitou. Foi um aniversário inesquecível,<br />
com minha mãe, Halim e Yaqub ao la<strong>do</strong> da minha cama, to- ; ~i '!<br />
<strong>do</strong>s falan<strong>do</strong> de mim, da minha febre e <strong>do</strong> meu futuro. Lá<br />
Ii<br />
em cima, o outro enfermo, enciuma<strong>do</strong>, quis roubar a come-<br />
;I,,<br />
moração da minha maioridade. Escutamos gemi<strong>do</strong>s, gritos,<br />
pancadas, sons de metal, uma zoada <strong>do</strong>s diabos. Omar, en-<br />
fureci<strong>do</strong>, tinha chuta<strong>do</strong> o penico e a escarradeira, bader-<br />
nan<strong>do</strong> o quarto dele como se renegasse seu próprio canto.<br />
Não, ele não deixaria <strong>por</strong> menos, não ia permitir que eu ~ I<br />
reinasse um só dia na casa. Ele tossia, esturrava, batia na<br />
<strong>por</strong>ta, não se agüentava de pé, emborcava a cama, abria as 'i<br />
janelas, sentia-se sufoca<strong>do</strong>. Rânia subia e descia com com- ,'<br />
pressas e pratos de comida. Zana não se despegava dele; I I<br />
ela se ressentiu de Domingas e Halim, que não tinham i<strong>do</strong><br />
ver o Caçula. Minha mãe não <strong>foi</strong> visitá-lo. Halim não su-<br />
IÍ'~ I~<br />
<strong>por</strong>tava escutar os cochichos entre Zana e o filho. No meu<br />
quarto, ele repetia, cabisbaixo: "Tu entendes isso? Enten-<br />
I~i<br />
des?". Parecia falar com ele mesmo, ou, quem sabe, com I"i<br />
um ausente, um desconheci<strong>do</strong>. Ergueu a cabeça quan<strong>do</strong><br />
Yaqub, pronto para partir, entrou no meu quarto. Eu não<br />
sabia se ia vê-lo de novo. Ele não gostava de prolongar a<br />
despedida; segurou minhas mãos e disse que ia me escre-<br />
ver e enviar <strong>livro</strong>s. Depois apertou a mão <strong>do</strong> pai, disse que "<br />
I~I,''<br />
tinha pressa, mas Halim o abraçou com força e começou a<br />
chorar, o corpo encurva<strong>do</strong>, a cabeça apoiada ao ombro de
Yaqub, a voz entrecortada balbucian<strong>do</strong>: "Esta é a tua casa, ~<br />
I~'il,<br />
filho. . . . I II<br />
Poucas vezes eu tinha visto Halim tão triste, os olhos ~i ~<br />
Zoo ì~ I aoi d!II'' ¡<br />
aperta<strong>do</strong>s no rosto crispa<strong>do</strong>, as mãos engelhadas agarradas<br />
nas costas de Yaqub. Os <strong>do</strong>is saíram <strong>do</strong> meu quarto, e eu<br />
me levantei para vê-los da janela. Zana e Rânia os espera-<br />
vam no alpendre. Halim pediu que o filho ficasse mais uns<br />
dias, que voltasse com a mulher. Yaqub prometeu que em<br />
sua próxima visita traria a esposa. Escutei a voz dele, grave,<br />
ecoar: "A senhora pode ficar tranqüila, vamos ficar num<br />
hotel".<br />
"Como, ficar num hotel? Ouviste essa, Halim? Nosso<br />
filho quer se esconder com a mulher... Quer ser um estra-<br />
nho na terra dele..."<br />
Halim se afastou, fazen<strong>do</strong> um gesto com as mãos: que<br />
o deixassem em paz.<br />
"Minha mulher não é obrigada a aturar os surtos de<br />
um <strong>do</strong>ente", disse Yaqub, em voz alta.<br />
Zana engoliu a frase. Era capaz de engolir tu<strong>do</strong> para<br />
evitar um confronto entre os gêmeos. Acompanhou Yaqub<br />
até a <strong>por</strong>ta, e em seguida eu a vi subir a escada, devagar e<br />
hesitante, como se o pensamento lhe travasse os passos.<br />
Cochilei o resto da manhã e acordei com um zumbi<strong>do</strong> que<br />
se manteve constante <strong>por</strong> uns segun<strong>do</strong>s, depois <strong>foi</strong> per-<br />
den<strong>do</strong> força até sumir de vez. Era o avião de Yaqub que<br />
acabara de decolar. O vôo <strong>do</strong> meio-dia para o Sul, como se<br />
dizia naquela época.<br />
Pressenti que não veria mais Yaqub. Perguntei à mi-<br />
nha mãe o que eles tinham conversa<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> ele entrou<br />
no quarto dela. O que havia entre os <strong>do</strong>is? Tive coragem<br />
de lhe perguntar se Yaqub era o meu pai. Eu não su<strong>por</strong>tava<br />
o Caçula, tu<strong>do</strong> o que via e sentia, tu<strong>do</strong> o que Halim havia<br />
me conta<strong>do</strong> bastava para me fazer detestar o Omar. Não en-<br />
iy<br />
,<br />
tendia <strong>por</strong> que mmha mae nao o destratava de vez, ou pelo<br />
menos não se afastava dele. Por que tinha que aturar tanta<br />
humilhação? Ela pediu que eu descansasse: devia apro-<br />
veitar esses dias para repousar e ler na cama. "Estás magro,<br />
amarelo...", disse ela, as mãos no meu rosto. Domingas<br />
disfarçou como pôde, quis me consolar com a última frase<br />
que pronunciou antes de sair <strong>do</strong> quarto. A saúde <strong>do</strong> outro<br />
parecia mais precária que a minha. Era um enfermo; eu era<br />
um convalescente. A morte de Laval <strong>foi</strong>, para Omar e para<br />
mim, um golpe. Os gemi<strong>do</strong>s e a reação violenta pareciam<br />
exagera<strong>do</strong>s, mas ele sentira a morte <strong>do</strong> mestre.<br />
Antenor Laval, mais que Chico Keller, fora amigo <strong>do</strong><br />
Caçula. Uma amizade meio clandestina, como acontecera<br />
com os <strong>do</strong>is amores de Omar ou com tu<strong>do</strong> o que lhe dava<br />
prazer, desejo e confiança. Ele <strong>foi</strong> um prisioneiro desses<br />
prazeres proibi<strong>do</strong>s. Não esqueceu Laval e continuou confi-<br />
na<strong>do</strong> mesmo depois da partida <strong>do</strong> irmão. Havia sinceridade<br />
em sua reclusão. Escreveu um "Manifesto contra os golpis-<br />
tas" e o leu em voz alta. Foi um ato corajoso, e deu pena<br />
desperdiçar tanta coragem numa sala quase vazia, <strong>por</strong>que
só eu ouvi as frases ousadas, com tantas palavras duras.<br />
Quan<strong>do</strong> saiu <strong>do</strong> quarto, parecia o andrajoso que eu<br />
tinha visto caminhar no trapiche, vin<strong>do</strong> em minha direção.<br />
O mesmo olhar fixo e espanta<strong>do</strong> de um empareda<strong>do</strong>: olhos<br />
de pesadelo, perdi<strong>do</strong>s na mais escura das noites.<br />
Então ele deu de catar frutas podres no quintal, frutas<br />
e folhas que depois varria, amontoava e ensacava. Domin-<br />
gas queria ajudá-lo, mas ele a repelia com gestos bruscos,<br />
202 J~ I Zo3<br />
~A<br />
raivoso. Ciscava a terra, plantava mudas de palmeira e po-<br />
dava ramos rebeldes que se contorciam para fora da copa.<br />
Catava as frutas bichadas, mas perdia tempo com uma jaca<br />
desventrada, observan<strong>do</strong> as moscas e larvas aninhadas na<br />
polpa amarela. Era estranho vê-lo assim, tão perto <strong>do</strong> nos-<br />
so canto, descalço e sujo. Ele mal sabia manusear um anci-<br />
nho, ficava agonia<strong>do</strong>, as mãos e os pés incha<strong>do</strong>s, vermelhos,<br />
o corpo queima<strong>do</strong> e feri<strong>do</strong> de tanta mordida das formigas<br />
devora<strong>do</strong>ras.<br />
Essa mania esquisita <strong>do</strong> Caçula me permitia estudar<br />
aos sába<strong>do</strong>s, mas eu temia ser chama<strong>do</strong> para algum afazer<br />
na casa ou na loja. As vezes interrompia uma leitura para<br />
comprar carne no talho <strong>do</strong> Quim ou levar uma sobremesa<br />
à casa de fulano; esperava um tempão na <strong>por</strong>ta <strong>do</strong>s vizi-<br />
nhos, <strong>por</strong>que eles não devolviam a travessa e a cumbuca<br />
vazias. Essa troca de amabilidades estragava a minha tarde<br />
de sába<strong>do</strong>, e talvez <strong>por</strong> isso eu detestasse aqueles salamale-<br />
ques. No caminho de volta, eu separava um pedaço de torta<br />
e uma fatia de bolo e os levava para Domingas. Fazia isso<br />
também para poupá-la, <strong>por</strong>que aos sába<strong>do</strong>s ela amanhecia<br />
extenuada, com <strong>do</strong>r nas costas e a voz fraca. Ela começava<br />
a semana queren<strong>do</strong> fazer tu<strong>do</strong>, atenta a to<strong>do</strong>s os cantos da<br />
casa, e só não limpava o galinheiro construí<strong>do</strong> <strong>por</strong> Galib<br />
<strong>por</strong>que Zana proibia; dizia-lhe, com o tom melindroso <strong>do</strong>s<br />
supersticiosos: "Não, ninguém entra no galinheiro <strong>do</strong> meu<br />
pai... pode dar azar". Mas <strong>do</strong> resto da casa Domingas cui-<br />
dava com zelo, e parecia sofrer com a mania <strong>do</strong> Caçula,<br />
que passava horas sob o sol. Do meu quarto eu espiava o<br />
desajeita<strong>do</strong> cortar galhos, capinar, amontoar folhas secas.<br />
Havia devaneio demais nessa faina de jardineiro ocasional.<br />
De vez em quan<strong>do</strong> ele largava o ancinho e o terça<strong>do</strong> para<br />
apreciar as belezas <strong>do</strong> nosso quintal: o urumutum <strong>do</strong> rio<br />
Negro, de que Domingas tanto gostava, pousa<strong>do</strong> num ga-<br />
lho alto da velha seringueira; um camaleão rastejan<strong>do</strong> no<br />
tronco da fruta-pão, até parar perto de um ninho de suru-<br />
cuás-de-barriga-vermelha, protegi<strong>do</strong> pela mãe. No chão,<br />
perto da cerca, Omar catava os jambos e as flores verme-<br />
lhas que caíam <strong>do</strong> quintal <strong>do</strong> vizinho. Ele enchia as mãos<br />
com os jambinhos rosa<strong>do</strong>s, e nos outros, roxos e carnu<strong>do</strong>s,<br />
dava dentadas de fome. A meninada <strong>do</strong> cortiço malinava,<br />
vinha mexer com ele. Tamanho homem, engatinhan<strong>do</strong>,<br />
cheiran<strong>do</strong> as flores, torcen<strong>do</strong> os ingás e chupan<strong>do</strong> seus ba-<br />
gos brancos. Ele estacava também para cavar a terra, só <strong>por</strong><br />
cavar, acho que para sentir o cheiro da umidade, forte, de-<br />
pois da chuva. Divertia-se com essa liberdade, e dava até<br />
vontade de imitá-lo.<br />
Na tarde de um sába<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> eu me distraía com os
movimentos de Omar, Rânia me man<strong>do</strong>u um reca<strong>do</strong>: que<br />
eu passasse na loja para ajudá-la a empilhar caixas de mer-<br />
ca<strong>do</strong>rias no depósito.<br />
Havia pouca gente na rua <strong>do</strong>s Barés, o alto-falante da<br />
Voz da Amazônia tocava um bolero famoso, e nós <strong>do</strong>is, den-<br />
tro da loja, escutávamos o eco da canção. Ela trancou as <strong>por</strong>-<br />
tas para que ninguém nos im<strong>por</strong>tunasse. Suávamos muito,<br />
ela mais <strong>do</strong> que eu. E quase não falávamos. Carreguei tan-<br />
ta caixa que o andar de cima ficou atulha<strong>do</strong>. Não cabia mais<br />
nada no refúgio de Halim. Rânia acendeu a luz, deu uma<br />
olhada naquela bagunça e mu<strong>do</strong>u de idéia: cismou em arru-<br />
mar toda a loja e quis começar pelo depósito. O rosto, o pes-<br />
coço e os ombros dela brilhavam de tanto suor. Desci com as<br />
204
tu<strong>do</strong> o que eu não ven<strong>do</strong> durante o ano. Agora é esse o<br />
meu mun<strong>do</strong>... sou <strong>do</strong>na de tu<strong>do</strong> isso", ela disse, olhan<strong>do</strong><br />
as paredes da loja. Permanecemos em silêncio, na penum-<br />
bra; com a luz fraca <strong>do</strong> depósito, mal dava para ver o rosto<br />
dela. Ela me pediu que fosse embora, queria ficar sozinha,<br />
talvez <strong>do</strong>rmisse na loja. Eram mais de duas da madrugada,<br />
e eu sabia que não ia pegar no sono. Só pensava em Rânia,<br />
na voz dela, na beleza que vi de perto, muito perto, como<br />
ninguém talvez tivesse visto. Aquele homem, <strong>por</strong> quem ela<br />
se apaixonou, eu nunca soube quem era. Gostaria de ter<br />
passa<strong>do</strong> muitos sába<strong>do</strong>s ajudan<strong>do</strong>-a na loja, mas ela não<br />
me pediu mais.<br />
Zana devia achar estranho me ver senta<strong>do</strong> no quarti-<br />
nho, len<strong>do</strong> e estudan<strong>do</strong>, enquanto o filho mourejava. Uma<br />
única vez, na hora <strong>do</strong> almoço, vi o pai observar o filho ca-<br />
var e remexer a terra, carregar sacos de folhas mortas, ex-<br />
tenuar-se. Não sentiu pena dele. Comentou com amargu-<br />
206 ~ 207<br />
ra: "É curioso como ele sua, como se esforça só para não sair<br />
de perto da mãe".<br />
Um dia, a mãe se envergonhou de uma cena. É que as<br />
duas filhas de Talib, Zahia e Nahda, entraram de supetão<br />
na casa e logo começaram a rir. Riam e cobriam o rosto com<br />
as mãos, nervosas. Nós ouvimos o riso e o tilintar das pul-<br />
seiras de ouro que chacoalhavam no braço das moças. A<br />
mãe apareceu na sala, e, antes de perguntar a razão <strong>do</strong><br />
riso, olhou para o quintal: o filho, nu, enlaçava o tronco da<br />
seringueira, e, com uma lentidão artística, arranhava-lhe o<br />
tronco. Queria extrair leite daquela árvore secular? Ao ver<br />
a mãe espiá-lo, ele se afastou da árvore, pôs as mãos entre<br />
as pernas, apalpou a virilha. Começou a gemer, fazen<strong>do</strong><br />
uma careta me<strong>do</strong>nha. Zahia e Nahda pararam de rir, arre-<br />
galaram os olhos. Recuaram. Ele uivava, berrava como um<br />
desgraça<strong>do</strong>, apertan<strong>do</strong> as coxas com as mãos. Zana gritou<br />
<strong>por</strong> Domingas, as duas se acercaram <strong>do</strong> tronco, minha mãe<br />
logo percebeu o motivo <strong>do</strong>s berros. Sofria, o Caçula. Arre-<br />
ganhava-se para mijar, mordia os lábios e tornava a arra-<br />
nhar o tronco da seringueira. "Está com o ramêmi ensopa-<br />
<strong>do</strong> de pus", disse Domingas. Zana se espantou: "O que é<br />
isso? Estás louca?". Minha mãe balançou a cabeça: "A se-<br />
nhora não sabe... Não é a primeira vez que ele pega essa<br />
<strong>do</strong>ença". Zana não acreditou. A noite, o sonso <strong>do</strong> jardinei-<br />
ro escapava pela cerca <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s.. . Dessa vez tinha si<strong>do</strong><br />
forte, uma gonorréia galopante, como se dizia. As duas le-<br />
varam o Caçula para o banheiro, fizeram um curativo, en-<br />
rolaram o ramêmi de Omar com gaze. Ele teve que ir ao<br />
médico, e agüentou umas duas agulhadas na bunda. Volta-<br />
va da farmácia caminhan<strong>do</strong> de banda, como um papagaio.<br />
Em casa, o tratamento não era mais ameno. Zana esperava<br />
Halim sair, Domingas fervia água com folhas de crajiru e<br />
o Caçula ficava de cócoras ao la<strong>do</strong> da bacia, receben<strong>do</strong> O<br />
tratamento da mãe. Ele apertava a virilha, se contorcia,<br />
trincava os dentes, derramava a infusão, queria fugir. Zana<br />
pegava uma toalha limpa e recomeçava a aplicação. No<br />
fim, ele se sentia alivia<strong>do</strong>. Nós sabíamos quan<strong>do</strong> ele mija-<br />
va <strong>por</strong> causa <strong>do</strong>s urros que soltava durante a noite. Era um<br />
escândalo. "Quem fez isso contigo?", quis saber Zana. Ele
não falou. Suplicou silêncio da mãe com um olhar de sofri-<br />
mento. O querubim. Não ia denunciar as putas. Permane-<br />
ceu ali, capinan<strong>do</strong>, juntan<strong>do</strong> folhas secas. Quan<strong>do</strong> ele acor-<br />
dava to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> com os gritos, Halim se assustava: "O<br />
que aconteceu dessa vez?". Zana o acalmava, mentia: "Nos-<br />
so filho está com enxaqueca, deixa ele sossega<strong>do</strong>, a <strong>do</strong>r vai<br />
passar".<br />
"Enxaqueca? Rosnan<strong>do</strong> que nem cão raivoso?"<br />
Ele não su<strong>por</strong>tava ouvir os urros <strong>do</strong> filho, muito me-<br />
nos as mentiras da mulher. Saía em plena noite, sabia onde<br />
encontrar amigos notívagos nos bares <strong>do</strong>s Educan<strong>do</strong>s. De<br />
dia, escapulia com mais freqüência, nem esperava a sesta<br />
para pôr os pés na rua. Zana não me deixava em paz, batia<br />
na <strong>por</strong>ta <strong>do</strong> meu quarto, ralhava: que eu tinha a vida toda<br />
para estudar, que eu fosse agorinha atrás <strong>do</strong> Halim.<br />
Sozinho, ele se mandava <strong>por</strong> aí, capengan<strong>do</strong> com a<br />
bengala sob o sol quente. Não perdera o senso de direção,<br />
era capaz de apontar um barraco e nomear o compadre que<br />
ali morava, de caminhar às cegas <strong>por</strong> áreas mais distantes: o<br />
Boulevard Amazonas, a praça Chile, o cemitério, o reser-<br />
vatório <strong>do</strong>s Ingleses. Quan<strong>do</strong> não o encontrava senta<strong>do</strong> na<br />
208 209<br />
cadeira de palha da sobreloja, eu seguia seus rastros de bar<br />
em bar, contornan<strong>do</strong> toda a orla <strong>do</strong> rio. Minha busca tar-<br />
dava horas; na verdade, ele não se escondia, apenas cami-<br />
nhava, solto, errante, desencanta<strong>do</strong>, um balão que mur-<br />
cha antes de tocar as nuvens. Às vezes, ao chegar em casa,<br />
Halim sentava no sofá cinzento e murmurava: "Morreu o<br />
Issa Azmar... morreu aquele vizinho da loja, o <strong>por</strong>tuguês<br />
da Barão de São Domingos... como se chamava? Balma,<br />
isso mesmo... Nem esperaram a missa... já vão demolir<br />
o casarão... Jogávamos bilhar na casa <strong>do</strong> Balma... Tu te<br />
lembras?".<br />
Falava sozinho, baten<strong>do</strong> a bengala no assoalho, afir-<br />
man<strong>do</strong> com a cabeça. Zana tentava corrigi-lo: "O Issa mor-<br />
reu há muito tempo e o Balrna vendeu a loja e <strong>foi</strong> morar<br />
no Rio". Ele continuava: "O Tannus era <strong>do</strong>i<strong>do</strong> pela cunhan-<br />
se com as amên<strong>do</strong>as e as tâmaras da nora. Já não se empan-<br />
zinava com a voracidade <strong>do</strong> prazer, comia de birra, a expres-<br />
são triste, mastigan<strong>do</strong> com enfa<strong>do</strong>, o olhar já bem longe.<br />
Numa tarde que ele escapara logo depois da sesta eu o<br />
encontrei na beira <strong>do</strong> rio Negro. Estava ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> com-<br />
padre Pocu, cerca<strong>do</strong> de pesca<strong>do</strong>res, peixeiros, barqueiros e<br />
mascateiros. Assistiam, atônitos, à demolição da Cidade Flu-<br />
;<br />
tuante. Os mora<strong>do</strong>res xingavam os demoli<strong>do</strong>res, náo que-<br />
riam morar longe <strong>do</strong> pequeno <strong>por</strong>to, longe <strong>do</strong> rio. Halim<br />
balançava a cabeça, revolta<strong>do</strong>, ven<strong>do</strong> todas aquelas casinhas<br />
serem derrubadas. Erguia a bengala e soltava uns palavrões,<br />
gritava "Por que estão fazen<strong>do</strong> isso? Não vamos deixar, não<br />
tã <strong>do</strong> Balma... Deixava a gente jogan<strong>do</strong> bilhar e ia se en-<br />
roscar com ela nos sacos de açúcar no <strong>por</strong>ão... Linda, a<br />
mocinha... olhos cheios, rostinho re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>... Linda mesmo!<br />
A casa <strong>do</strong> Balma... agora só tem um buraco na rua.. . um<br />
buracão sem sombra".<br />
Zana o vigiava, mas ele escapulia, mentin<strong>do</strong>: "Vou pas-<br />
sar na loja, a Rânia precisa de mim". Saía sem rumo, às ve-
zes ia beber num <strong>do</strong>s flutuantes no meio <strong>do</strong> rio. Quan<strong>do</strong><br />
chovia, chegava encharca<strong>do</strong>, tossin<strong>do</strong>, escarran<strong>do</strong>, sujan<strong>do</strong><br />
a casa toda. Evitava ver o filho no quintal. Queria a pre-<br />
sença <strong>do</strong> outro. "Onde está Yaqub? Por que não vem logo<br />
com a mulher dele?" Gostava da Lívia, o velho. Desafiava<br />
a mulher, comia as guloseimas que Lívia lhe mandava de<br />
São Paulo, desprezava a comida de casa. Era um insulto<br />
para Zana, mas ele não se im<strong>por</strong>tava mais. Empanturrava-<br />
vamos", mas os policiais impediam a entrada no bairro. Ele Í<br />
ficou engasga<strong>do</strong>, e começou a chorar quan<strong>do</strong> viu as taber-<br />
nas e o seu bar predileto, A Sereia <strong>do</strong> Rio, serem desman-<br />
tela<strong>do</strong>s a golpes de macha<strong>do</strong>. Chorou muito enquanto ar-<br />
rancavam os tabiques, cortavam as amarras <strong>do</strong>s troncos °Ï Í<br />
flutuantes, golpeavam brutalmente os finos pilares de ma-<br />
deira. Os telha<strong>do</strong>s desabavam, caibros e ripas caíam na água<br />
e se distanciavam da margem <strong>do</strong> Negro. Tu<strong>do</strong> se desfez num<br />
I,II<br />
só dia, o bairro to<strong>do</strong> desapareceu. Os troncos ficaram flu- I<br />
iÍÍÏ~'I<br />
tuan<strong>do</strong>, até serem engoli<strong>do</strong>s pela noite. ' I<br />
Só uma vez minha busca <strong>foi</strong> inútil. Na manhã da vés-<br />
pera <strong>do</strong> Natal de 1968 ele saiu de casa e to<strong>do</strong>s esperávamos i<br />
que de noitinha estivesse de volta, carregan<strong>do</strong> caixas de<br />
presentes, pronto para comer arroz com lentilha, pernil IIII~'I<br />
de carneiro assa<strong>do</strong> e outras iguarias que Zana e Domingas<br />
preparavam. No fim da tarde, quan<strong>do</strong> os vizinhos passavam<br />
em casa e perguntavam <strong>por</strong> ele, Zana dizia: "Vocês não<br />
conhecem o Halim? Ele finge que some e de repente apa- Ï<br />
210<br />
rece.. .". Antes <strong>do</strong> anoitecer, Talib telefonou para avisar que<br />
o amigo não aparecera para o gamão <strong>do</strong> Natal e que ia sair<br />
atrás dele. Eu e Talib o procuramos <strong>por</strong> muitos lugares, <strong>do</strong>s<br />
barrancos <strong>do</strong>s Educan<strong>do</strong>s às tabernas de São <strong>Raimun<strong>do</strong></strong>,<br />
até que Talib, cansa<strong>do</strong>, intuiu que Halim não chegaria tão<br />
ce<strong>do</strong>. "Quan<strong>do</strong> uma pessoa quer se esconder, a noite dá<br />
abrigo", ele disse.<br />
Zana quis evitar um escândalo e não avisou a polícia. i,<br />
Dizia que ce<strong>do</strong> ou tarde ele voltaria para casa. "O lugar de- ;<br />
I<br />
le é aqui, perto de mim, sempre <strong>foi</strong>", ela repetia. Nas outras<br />
vezes, não se abalara com as erranças de Halim, que preferia<br />
aliviar o desconsolo longe de casa. Mas agora a ceia de Natal<br />
se aproximava, e à meia-noite nós comemos cala<strong>do</strong>s. A ceia ,<br />
triste, com poucas palavras, sem a voz de Halim e a alga-<br />
zarra <strong>do</strong>s amigos que ele convidava. Zana não tocou na<br />
comida, ia esperar mais um pouco. "Ele sabe que esta noite<br />
é im<strong>por</strong>tante para mim... Nunca deixou de vir, nunca..."<br />
Ela ficou sozinha na mesa, olhan<strong>do</strong> a cadeira na cabeceira,<br />
o lugar dele.<br />
Nós o esperamos até tarde da noite. Minha mãe e eu<br />
no nosso quarto <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s. Rânia e Zana no andar de ci-<br />
ma, deitadas, com a <strong>por</strong>ta aberta, atentas a qualquer ruí<strong>do</strong>.<br />
Deram duas horas e nada <strong>do</strong> Halim chegar. Por volta das „<br />
três, escutei o ronco de minha mãe, quase um assobio gra-<br />
ve, um sopro. Um nambuaçu piou <strong>por</strong> ali; olhei para o chão<br />
<strong>do</strong> quintal, nem sombra da ave. Depois reconheci o canto<br />
`i
de um anum, me senti melancólico, marea<strong>do</strong>. As copas<br />
,;:<br />
escuras cobriam os fun<strong>do</strong>s da casa. Um barulhinho esquisi-<br />
to riscava a noite, podia ser mucura faminta no faro de um<br />
poleiro ou morcegos morden<strong>do</strong> jambo <strong>do</strong>ce. Lembro que ',<br />
as palavras <strong>do</strong> <strong>livro</strong> que eu lia foram se apagan<strong>do</strong> e sumi-<br />
ram. O <strong>livro</strong> também <strong>foi</strong> engoli<strong>do</strong> pela escuridão. Cochilei,<br />
debruça<strong>do</strong> na mesinha. Lá pelas cinco da manhã (ou um<br />
pouco depois, <strong>por</strong>que o cortiço <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s já emitia sinais<br />
de despertar e a noite começava a perder sua treva), um<br />
ruí<strong>do</strong> me despertou. Vi uma claridade na cozinha e logo<br />
depois um vulto. Era uma mulher. A mão direita de Zana<br />
surgiu, aclarada <strong>por</strong> uma luz de vela. Ela saiu devagarinho,<br />
seguran<strong>do</strong> um alguidar, a vela acesa na outra mão. Atraves-<br />
sou a sala, e, antes de subir, parou perto da escada. Parou,<br />
virou a cabeça e deu um grito me<strong>do</strong>nho. O alguidar estilha-<br />
çou no assoalho, a vela tremia-lhe na mão. Domingas saiu<br />
<strong>do</strong> sonho e pareceu mergulhar num pesadelo: seu rosto<br />
sonolento virou uma máscara assustada. Nós <strong>do</strong>is nos apro-<br />
ximamos da sala: Halim estava ali, de braços cruza<strong>do</strong>s, sen-<br />
ta<strong>do</strong> no sofá cinzento. Zana deu um passo na direção dele,<br />
perguntou-lhe <strong>por</strong> que <strong>do</strong>rmira no sofá. Depois, menos<br />
trêmula, conseguiu iluminar seu corpo e ainda teve cora-<br />
gem de fazer mais uma pergunta: <strong>por</strong> que tinha chega<strong>do</strong> tão<br />
tarde? Então com o sotaque árabe, ajoelhada, gritou o no-<br />
me dele, já lhe tocan<strong>do</strong> o rosto com as duas mãos. Halim<br />
não respondeu.<br />
Estava quieto como nunca.<br />
Cala<strong>do</strong>, para sempre.<br />
212 ~~ 213<br />
s<br />
i<br />
1Z..-<br />
, II I II I<br />
Numa tarde de outubro, uns <strong>do</strong>is meses antes da morte I '<br />
de Halim, Omar desapareceu. Fazia um calorão dana<strong>do</strong>, o<br />
sol de outubro nos entorpece, uma sonolência mórbida<br />
nos imobiliza como uma anestesia poderosa.<br />
Omar trabalhava nesse calorão, logo ele, que não tinha I I,<br />
fibra para su<strong>por</strong>tar tanto sol. TYocou de pele várias vezes,<br />
virou bicho-homem, meio cascu<strong>do</strong>, avermelhou, amarelou<br />
e ficou acobrea<strong>do</strong> de vez. Quanto tempo ele ia brincar de `<br />
jardineiro, de faxineiro? Até quan<strong>do</strong> ia durar o autoflagelo j<br />
daquele fraco? Já estava passan<strong>do</strong> da conta, e eu torcia pa- I<br />
II'~! II<br />
ra que mergulhasse em suas noitadas sem fim, oxalá se em-<br />
briagasse de uma vez <strong>por</strong> todas e nunca mais se erguesse da<br />
rede vermelha. Mas não. Ele continuou fiel à labuta. Nem<br />
nos dias mais quentes <strong>do</strong> ano procurava sombra para mou-<br />
rejar. Mortificava-se. O corpo dele ficou empola<strong>do</strong>, a pele e<br />
os de<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s pés com crostas de impingem. Só faltou trocar<br />
os braços <strong>por</strong> asas. O querubim. O santinho da casa.<br />
I<br />
2i5 f,l<br />
Quan<strong>do</strong> Domingas sentiu a falta de Omar no meio da-<br />
quela tarde de outubro, Zana não se apoquentou. No quin-<br />
tal, ergueu a cabeça e gritou o nome <strong>do</strong> filho. Lá de cima,
onde se encafuara, ele deu sinal de vida: abriu os braços,<br />
balançou o corpo apoia<strong>do</strong> num galho grosso, soltou um<br />
alari<strong>do</strong> de pássaro.<br />
"Ele sempre gostou dessas leseiras", lembrou Zana.<br />
"Quan<strong>do</strong> era moleque, desafiava to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e subia no<br />
galho mais alto. O Yaqub se pelava de me<strong>do</strong>, coita<strong>do</strong>..."<br />
Diz que trepou na seringueira para descansar e medi-<br />
tar, ou, quem sabe, contemplar o mun<strong>do</strong> lá <strong>do</strong> alto, como<br />
fazem as divindades, as aves e os símios. Aqui no chão, o<br />
mun<strong>do</strong> era menos ameno, infesta<strong>do</strong> de formigueiros, pra-<br />
gas e vassouras-de-bruxa; os cupinzeiros cresciam <strong>do</strong> dia<br />
para a noite, esculpin<strong>do</strong> murundus escuros na cerca de ma-<br />
deira e no tronco das árvores. Omar sempre se esquecia de<br />
destruir os cupinzeiros, e eu sabia que essa tarefa ïa sobrar<br />
para mim. Ce<strong>do</strong> ou tarde, eu teria que jogar querosene nos<br />
enormes volumes marrons e atear-lhes fogo. Não me desa-<br />
gradava ver toda uma comunidade de insetos contorcer-se<br />
e perecer tostada, devorada <strong>por</strong> labaredas. A devastação<br />
não parava <strong>por</strong> aí. Eu cortava os arbustos e as plantas mor-<br />
tas e depois arrancava tu<strong>do</strong>, o caule, as raízes, tudinho. Os<br />
buracos na terra viravam fogueiras subterrâneas, e os gafa-<br />
nhotos, as saúvas com sua rainha, também estorricavam.<br />
Era um espetáculo ver em chamas essas famílias organi-<br />
zadas, como exércitos ordeiros e disciplina<strong>do</strong>s. E que prazer<br />
presenciar toda uma hierarquia de insetos virar cinzas. Por<br />
algum tempo, a terra se livrava dessa praga. Dava um alívio<br />
ver o nosso quadra<strong>do</strong> no quintal fumegar aqui e ali. Omar<br />
evïtava o contato com o fogo; tinha me<strong>do</strong>. Não su<strong>por</strong>tava a<br />
presença das cinzas, da matéria carbonizada, que nutria a<br />
vegetação sobrevivente <strong>do</strong> quintal.<br />
Não su<strong>por</strong>tou ver o pai morto em casa, senta<strong>do</strong> no sofá<br />
cinzento, de onde costumava ver o filho embriaga<strong>do</strong> ou gro-<br />
gue de sono na rede vermelha. O mesmo sofá em que Ha-<br />
lim se sentara <strong>por</strong> uns minutos, ofegante, exausto, depois de<br />
ter esbofetea<strong>do</strong> e acorrenta<strong>do</strong> o filho. Ele deve ter se lem-<br />
bra<strong>do</strong> disso, o Caçula, na noite em que despertou com o<br />
choro convulsivo das mulheres da casa. Logo que desceu a<br />
escada, Omar não entendeu, não queria entender o que aca-<br />
bara de acontecer. Viu no sofá cinzento o único homem que<br />
o desonrou com um bofete. Começou a gritar, criança incen-<br />
diada de ódio ou de algum sentimento pareci<strong>do</strong> com o ódio.<br />
Gritava, fora de si: "Ele não vai acorrentar o filho dele? Não<br />
vai passar a mão no rosto sua<strong>do</strong>? Por que ele não se mexe e<br />
fala comigo? Vai ficar aí, com esse olhar de peixe morto?".<br />
Gritos na madrugada. Os gritos <strong>do</strong> Caçula. O choro de<br />
Rânia, de Domingas. Zana cobria o rosto com as mãos; ela<br />
estava sentada no chão, no meio de cacos <strong>do</strong> alguidar, perto<br />
de Halim, talvez sem entender como tinha aconteci<strong>do</strong>. Nin-<br />
guém, naquela noite, viu o velho entrar na sala. Ele devia<br />
ter chega<strong>do</strong> no meio da madrugada, avançan<strong>do</strong> com passos<br />
imperceptíveis de velho feri<strong>do</strong> que foge de tu<strong>do</strong> e de to<strong>do</strong>s<br />
para morrer. Omar nos surpreendeu com seu gesto ira<strong>do</strong>, o<br />
de<strong>do</strong> em riste aponta<strong>do</strong> para o rosto de Halim, para os olhos<br />
quase fecha<strong>do</strong>s, sem vida, <strong>do</strong> pai cabisbaixo. Rânia ficou pa-<br />
ralisada: não sabia o que fazer, não pôde impedir o irmão<br />
de gritar, de pegar no queixo <strong>do</strong> pai e erguer-lhe a cabeça.<br />
O viúvo Talib chegou a tempo de evitar um confronto entre
ai6 ~~ 217<br />
--_ - --- ~-~~-+ _ _-~ f-~-~- ~..ï _.-_.... ~Illl<br />
çou. Gritei mais alto <strong>do</strong> que ele: que me enfrentasse de uma<br />
. ~ez,~e-___----_-- - --~- - . _ ~ -_-- _. -- - --<br />
- - - - - na ma - fi-~~t~, g~~~~antë elt-rë -ëtla várïat vP~P~ ~war-<br />
- - ---- o lËr n<br />
---- ~ --~lhar de~e-sfl aumentava a-minl~a-raiva. Ele reeuou~<br />
f3eetr -~~=-<br />
- -<br />
acocora<strong>do</strong> debaixo da velha seringueira, o rosto espanta<strong>do</strong><br />
volta<strong>do</strong> para a <strong>por</strong>ta da sala, de onde Domingas nos obser-<br />
vava. Ela me chamou, me abraçou e pediu que eu voltasse -<br />
para a sala.<br />
-„,~-<br />
As filhas de Talib abriam um lençol para cobrir o sofá -"<br />
cinzento onde estava estendi<strong>do</strong> o fina<strong>do</strong> Halim.<br />
"Não toquem no corpo dele, nem chorem perto daqui",<br />
repetiu Talïb, três vezes.<br />
Assim, deita<strong>do</strong>, enrola<strong>do</strong> num lençol branco, o pai <strong>do</strong>s ~_ -<br />
gêmeos estava pronto para deixar a casa. Zahia e Nahda<br />
levantavam a ponta <strong>do</strong> lençol e contemplavam o fïna<strong>do</strong>;<br />
que tanto aplaudira as vizinhas nas noites de festa. Elas, as<br />
- -- - - -_-dançarinas, também sabiam: Halim teria preferi<strong>do</strong><br />
morrer . ~_<br />
- ll~l) Sc~l E' ~1tl~l~Il, r? ïjtl~arlC(' t~ ~'ljllllÜ C(llltj_<br />
nuou a falar de Halim, lembran<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s versos de amor,<br />
- - - - -- - - -- , o - e e exa an o vyïy~o __a_~s naü-<br />
H~lim em algurr~ qtra~tQ-de perisãa barata freqtien~ ~r -_- . _<br />
imigrantes e marreteiros. "Ali, em mil, novecentos e vinte<br />
e pouco, morava aquele magricela, um varapau que <strong>foi</strong> en-<br />
corpan<strong>do</strong> até ficar espadaú<strong>do</strong>", disse Zana. De tanto vender 'I<br />
badulaques, acabou conhecen<strong>do</strong> meio mun<strong>do</strong>. Ele e o ami-<br />
go, o Toninho, o Cid Tannus, pobretão meti<strong>do</strong> a rico: usava<br />
um colete colori<strong>do</strong> e uma gravata de seda, fumava charutos<br />
e cigarrilhas <strong>do</strong>a<strong>do</strong>s <strong>por</strong> barões da borracha. Os <strong>do</strong>is, com a<br />
cara mais santa, apareceram no restaurante <strong>do</strong> Galib. Bem<br />
sonso, esse Tannus! Como se ninguém soubesse que ele se<br />
empoleirava na casinha das estrangeiras, ali pertinho <strong>do</strong><br />
Palácio da Justiça. Arrastava o Halim para o sobradinho das<br />
polacas. To<strong>do</strong>s sabiam disso, todas as amigas conheciam os<br />
passos <strong>do</strong> galantea<strong>do</strong>r de Zana. "Um critrã~. rP„~ dc racar I Ì<br />
.<br />
Os olhos dele seguiam a moça que ia de mesa em mesa, Poucas<br />
semanas depois <strong>do</strong> enterro ela repreendeu o<br />
até que um dia ela viu o envelope debaixo de um prato. Za- filho à<br />
queima-roupa. Ele <strong>foi</strong> pego de surpresa, e escutou<br />
na jamais contou a Halim que tinha li<strong>do</strong> os gazais, nem<br />
Galib palavras que assustam, intimidam. Ele tinha exagera<strong>do</strong> no<br />
soube disso. Ela leu os versos e entregou o envelope ao<br />
pai, trato com o pai morto, a quem dissera coisas de arrepiar.<br />
dizen<strong>do</strong>-lhe: "Aquele mascateiro esqueceu esse papel na Humilhar<br />
o esposo morto, isso Zana não admitia. Na ma-<br />
mesa dele". Então ela riu e chorou no velório. Riu soluçan- drugada<br />
em que Halim morreu, ela escutara calada o monó-<br />
<strong>do</strong>, engasgada, dizen<strong>do</strong> que tinha pensa<strong>do</strong> em jogar fora logo<br />
absur<strong>do</strong> <strong>do</strong> Caçula e não se esquecera <strong>do</strong> de<strong>do</strong> em riste<br />
aquela folha de papel, mas a curiosidade <strong>foi</strong> maior que a na cara
<strong>do</strong> fina<strong>do</strong>, nem da voz insolente, das palavras infa-<br />
apatia, maior que o desdém e a indiferença. Ainda bem que - mes<br />
contra alguém que não podia responder nem com um<br />
leu: como teria si<strong>do</strong> a vida dela sem aquelas palavras? Os gesto,<br />
nem com um olhar.<br />
sons, o ritmo, as rimas <strong>do</strong>s gazais. E tu<strong>do</strong> o que nasce<br />
dessa Encontrou-o de cócoras, meio escondi<strong>do</strong>, empunhan-<br />
mistura: as imagens, as visões, o encantamento. Jade e eter- <strong>do</strong><br />
um terça<strong>do</strong>, pronto para cortar tajás e aningas queima-<br />
nidade, alcova e amorosa, aroma e esperança. Ela espremia <strong>do</strong>s<br />
pelo sol; colinas de folhas, aqui e ali, deviam ser ensa-<br />
os lábios, recitava, curvan<strong>do</strong>-se sobre o mari<strong>do</strong> morto. Não, cadas<br />
no fim da tarde. Nas frestas da cerca <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s, a<br />
não conseguiu deixar de ler os versos, sozinha no<br />
quarto, meninada <strong>do</strong> cortiço espiava os movimentos de Omar. Es-<br />
depois das refeições. E um dia, na sala <strong>do</strong> restaurante, ela tava só<br />
de cueca, feridento, fantasia<strong>do</strong> de escravo. As crian-<br />
estremeceu ao ver o jovem pronto para recitar to<strong>do</strong>s os dís- ças<br />
começaram a assobiar; depois atiraram-lhe caroços de<br />
ticos de cor, com enlevo e segurança, como faz um ator<br />
<strong>do</strong>ta- manga, que estalavam no corpo dele. Omar correu até a<br />
<strong>do</strong> de boa memória. Repetia, dizia isso no velório e no<br />
enter- cerca, saltan<strong>do</strong> sobre montes de folhas e galhos. "Filhos<br />
du-<br />
ro <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, e continuou dizen<strong>do</strong> em casa, falan<strong>do</strong> sozinha ma<br />
égua", ele esbravejou, dan<strong>do</strong> um cotoco para a curu-<br />
enquanto colhia as vagens <strong>do</strong> jatobá espalhadas no<br />
quintal. minzada. Parou de xingar quan<strong>do</strong> a sombra <strong>do</strong> corpo da<br />
Depois da morte de Halim, a casa começou a desmoro- mãe escureceu<br />
a cerca.<br />
nar. Omar <strong>foi</strong> ao enterro, mas permaneceu distante, tão<br />
dis- "Chega de bancar o coitadinho, chega de esfolar as<br />
tante que o irmão, mesmo ausente, parecia mais próximo mãos e os<br />
braços com esse trabalho de péssimo jardinei-<br />
da despedida ao pai. Yaqub mandara entregar no cemitério ro", ela<br />
increpou com uma voz ríspida. "Agora tu não tens<br />
uma coroa de flores e um epitáfio, que Talib traduziu e<br />
leu pai... deves procurar um emprego e parar com essa mania<br />
em voz alta: Saudades <strong>do</strong> meu pai, que mesmo a distância sem- de<br />
desocupa<strong>do</strong>."<br />
pre esteve presente. Ele se voltou para a mãe, os olhos<br />
incrédulos. Zana ti-<br />
Os amigos de Halim se emocionaram. Omar, ao ver o rou o terça<strong>do</strong><br />
da mão dele e cravou-o na terra: "Vai te olhar<br />
choro da mãe, se afastou <strong>do</strong> túmulo <strong>do</strong> pai. ;' no espelho... Teu<br />
pai não su<strong>por</strong>tava te ver assim... Não<br />
t<br />
.<br />
220<br />
221<br />
agüentava ver uma vida desperdiçada... Não merecia ou-<br />
vir aquelas torpezas. . . Um homem morto...". Parou de ra-<br />
lhar e entrou na sala, soluçan<strong>do</strong>. Não quis falar com o filho<br />
quan<strong>do</strong> ele se aproximou e tentou afagá-la. Desviou a cabe-<br />
ça, deixou-o com as mãos no ar. Ele se afastou, e diante <strong>do</strong><br />
espelho viu o corpo cheio de pústulas e arranhões. Depois<br />
subiu a escada olhan<strong>do</strong> para a mãe, tentan<strong>do</strong> cativá-la nes-
sa tarde em que ela o surpreendera com palavras ríspidas e<br />
evitara seu afago.- -<br />
O Caçula não voltou mais ao quintal. Aban<strong>do</strong>nou as<br />
folhas secas, as frutas bichadas e os galhos podres. Parou de<br />
perseguir as mucuras, de matá-las a pauladas, como uma<br />
criança possuída <strong>por</strong> alguma maldade. Eu já não o via mais<br />
senta<strong>do</strong> no meio <strong>do</strong> quintal, sozinho, admiran<strong>do</strong> os saltos<br />
<strong>do</strong>s saís-azuis nas palmas <strong>do</strong>s açaizeiros, ou encantá<strong>do</strong> com<br />
o brilho encarna<strong>do</strong> <strong>do</strong>s saurás triscan<strong>do</strong> as frutinhas <strong>do</strong>ces.<br />
Antes de começar a labuta de jardineiro, ele costumava<br />
apreciar essas coisas. E passava um bom tempo assim. Às<br />
vezes sorria, quase alegre, quan<strong>do</strong> o brilho intenso <strong>do</strong> sol<br />
<strong>do</strong> equa<strong>do</strong>r cobria o quintal. Não quis usar a roupa nova<br />
que Zana lhe dera. Rânia o convi<strong>do</strong>u para trabalhar na loja,<br />
insistiu muitas vezes, até que ele abriu a boca, mostran<strong>do</strong><br />
dentes amarelos e afia<strong>do</strong>s, e soltou uma gargalhada, agra- -<br />
vada <strong>por</strong> trovões de uma bronquite crônica.<br />
"Trabalhar contigo? Não sabes dar um passo sem con-<br />
sultar o teu irmão", ele disse.<br />
Rânia sabia que a aversão de Omar à rotina e aos ho-<br />
rários de trabalho era radical e sincera; sabia que ele tinha<br />
a astúcia de abocanhar com a maior naturalidade os frutos<br />
colhi<strong>do</strong>s pela labuta <strong>do</strong>s outros. Não se esforçava para ser<br />
astucioso, nem sentia um pingo de culpa ao sugar o suor<br />
das três mulheres da casa. E assim, sem culpa, ele regres-<br />
sou à noite manauara. Quan<strong>do</strong> chegava de manhãzinha,<br />
não encontrava a mãe à sua espera. Via Zana de luto, me-<br />
lancólica, sentada no sofá cinzento, onde Halim tantas vezes<br />
a enlaçara com desejo. Ele não su<strong>por</strong>tava a quietude da<br />
mãe, o luto fecha<strong>do</strong> desde a morte de Halim, as tardes que<br />
ela começou a passar no quarto, esquivan<strong>do</strong>-se das visitas,<br />
remoen<strong>do</strong> alguma coisa. Eu a via perto <strong>do</strong> tronco <strong>do</strong> jato-<br />
bá, sentada num tamborete, o sol iluminan<strong>do</strong> a metade <strong>do</strong><br />
corpo. Saía pouco, aos <strong>do</strong>mingos levava flores ao fina<strong>do</strong><br />
Halim e voltava se lastiman<strong>do</strong>, ninguém lhe tirava um sor-<br />
riso. Mas perguntava <strong>por</strong> Omar, nunca deixou de saber a<br />
que horas o fil.ho entrara em casa, se ele estava bem. Pedia<br />
que Rânia lhe desse dinheiro, e ao meio-dia, quan<strong>do</strong> o Ca-<br />
çula acordava, ela ouvia as histórias dele. O Café Mocambo<br />
fechara, a praça das Acácias estava viran<strong>do</strong> um bazar. So-<br />
zinho à mesa, ele ia contan<strong>do</strong> suas andanças pela cidade.<br />
A novidade mais triste de todas: o Verônica, lupanar lilás,<br />
também fora fecha<strong>do</strong>. "Manaus está cheia de estrangeiros,<br />
mama. Indianos, coreanos, chineses... O centro virou um<br />
formigueiro de gente <strong>do</strong> interior... Tu<strong>do</strong> está mudan<strong>do</strong> em<br />
Manaus."<br />
"É verdade... só tu não mudas, Omar. Continuas um<br />
trapo, olha a tua roupa, o teu cabelo... A hora que tu che-<br />
gas em casa..."<br />
Falava com calma, meïo reticente, e depois encarava o<br />
filho com um olhar demora<strong>do</strong>, de tristeza calada. Ble bem<br />
que tentou cativá-la. Deixava na rede dela umas lembran-<br />
ças miúdas, catadas aqui e ali ou compradas nos quiosques<br />
Za2 :~4 223<br />
da praça <strong>do</strong>s Remédios: uma cuia com o desenho de um<br />
coraçãozinho encarna<strong>do</strong>, um colar de sementes pretas e<br />
vermelhas. Ninharia. Gravou o nome da mãe na pá <strong>do</strong> re-
mo que ele guardava. Letras grandes, que cobriam nomes<br />
de mulher. Deu um buquê de helicôneas na noite <strong>do</strong> ani-<br />
versário de Zana.<br />
"Vamos sair para comer uma peixada, só nós <strong>do</strong>is, num<br />
restaurante no meio <strong>do</strong> rio."<br />
"O que eu mais quero é paz entre os meus filhos. Que-<br />
ro ver vocês juntos, aqui em casa, perto de mim... Nem<br />
que seja <strong>por</strong> um dia."<br />
Não saíram para jantar. Ela deixou o buquê na mesa,<br />
subiu e se trancou, não quis ver ninguém. Dias assim, fa-<br />
lan<strong>do</strong> apenas com o olhar, deixan<strong>do</strong> o Caçula acua<strong>do</strong> pelo<br />
silêncio. Ele não queria ouvir falar de Yaqub, o nome <strong>do</strong> ir-<br />
mão o estouvava. Ainda ce<strong>do</strong>, clarean<strong>do</strong>, antes de eu abrir<br />
a janela <strong>do</strong> quarto, Omar resmungava apoia<strong>do</strong> ao tron-<br />
co da seringueira: "O que ela quer? Paz entre os filhos?<br />
Nunca! Não existe paz nesse mun<strong>do</strong>... ". Falava sozinho, e<br />
não sei em quem pensava quan<strong>do</strong> disse: "Devias ter fugi-<br />
<strong>do</strong>.. . o orgulho, a honra, a esperança, o país. . . tu<strong>do</strong> enter-<br />
ra<strong>do</strong>...". Não me olhou nem se mexeu quan<strong>do</strong> eu saí <strong>do</strong><br />
quarto. Continuou ali, como se tivesse caí<strong>do</strong> no chão, o<br />
olhar nos lugares onde a mãe o havia espera<strong>do</strong> desde sem-<br />
pre. Pensei que Omar ia esmorecer de vez, passar o resto<br />
da vida ali, encosta<strong>do</strong> no tronco da árvore velha. Ele co-<br />
meçou a chegar mais ce<strong>do</strong>, não fazia brincadeira com Râ-<br />
nia, nem chamava Domingas com aquele tom de voz pa-<br />
chorrento, meio cínico, que nós sempre ouvíamos no meio<br />
<strong>do</strong> dia.<br />
Então, num sába<strong>do</strong>, pouco depois <strong>do</strong> anoitecer, o Ca-<br />
çula entrou em casa acompanha<strong>do</strong> <strong>por</strong> um homem. To<strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> escutou a voz de Omar. Zana <strong>foi</strong> atraída <strong>por</strong> um<br />
sotaque estranho. O filho, tão ce<strong>do</strong> em casa, e com um des-<br />
conheci<strong>do</strong>! A conversa entre os <strong>do</strong>is <strong>foi</strong> se prolongan<strong>do</strong>,<br />
até que Zana desceu, cumprimentou a visita e <strong>foi</strong> ao quin-<br />
tal: queria que minha mãe a ajudasse a preparar um lan-<br />
che. Domingas sentia-se indisposta e implicou com o visi-<br />
tante desde que o viu senta<strong>do</strong> no sofá cinzento, o olhar<br />
ávi<strong>do</strong> no rosto pláci<strong>do</strong>. Ela não gostou de ver um intruso<br />
sentar-se no lugar de Halim. E a birra de Domingas me pa-<br />
receu uma premonição.<br />
Rochiram, o visitante, era um indiano que falava deva-<br />
gar, sussurran<strong>do</strong> em inglês e espanhol as frases que pensa-<br />
va dizer em <strong>por</strong>tuguês. Quan<strong>do</strong> abria a boca, dava a im-<br />
pressão de que ia contar um grande segre<strong>do</strong>. O Caçula se<br />
encontrara com ele no bar <strong>do</strong> Hotel Amazonas, onde os<br />
músicos <strong>do</strong> Trio Uirapuru tocavam boleros e mambos aos<br />
sába<strong>do</strong>s. Reparei com curiosidade no homenzinho moreno,<br />
nariz de filhote de tucano, calça, camisa e sapatos ordiná-<br />
rios. Mas o anel de ouro e rubi na mão direita valia mais<br />
que uma década de labuta de um homem comum. No ros-<br />
to surgia um sorriso pensa<strong>do</strong>, maquinal, e quase tu<strong>do</strong> no<br />
seu corpo contrariava a espontaneidade. Esse homem de<br />
gestos ensaia<strong>do</strong>s observoü a casa e seus recantos; notou que<br />
estava cativan<strong>do</strong> Zana, e que uma confiança mútua era<br />
possível. Então passou a freqüentar a casa, sempre acom-<br />
panha<strong>do</strong> <strong>por</strong> Omar. TYazia presentes para Zana: vasos chi-<br />
neses, bandejas de prata, estatuetas indianas. Minha mãe,<br />
mal-humorada, servia guaraná e logo se afastava <strong>do</strong> intru-
22q 225 I li<br />
so. Aos poucos, Zana saiu da clausura, destravou a língua,<br />
se interessou pelo amigo <strong>do</strong> filho. Quan<strong>do</strong> o Caçula não es-<br />
tava <strong>por</strong> perto, ela mencionava o nome <strong>do</strong> outro, mostra-<br />
va as fotografias de Yaqub: "É um grande engenheiro, um<br />
<strong>do</strong>s maiores calculistas <strong>do</strong> Brasil". Sempre disfarçava ao<br />
escutar os passos de Omar na escada: "Meu filho está me-<br />
nos desleixa<strong>do</strong>... Olha só o que uma amizade pode fazer".<br />
Depois pedia que Rochiram contasse um pouco de sua<br />
vida. O indiano falava pouco, mas saciou a curiosidade de<br />
Zana. Ele vivia em trânsito, construin<strong>do</strong> hotéis em vários<br />
continentes. Era como se morasse em pátrias provisórias,<br />
falasse línguas provisórias e fizesse amizades provisórias. O<br />
que se enraizava em cada lugar eram os negócios. Ouvira<br />
dizer que ívlanaus crescia muito, com suas indústrias e seu<br />
comércio. Viu a cidade agitada, os painéis luminosos com<br />
letreiros em inglês, chinês e japonês. Percebeu que sua<br />
intuição não falhara. Quan<strong>do</strong> Zana não compreendia a al-<br />
garavia de Rochiram, ela perguntava ao filho: "O que esse<br />
estrangeiro está queren<strong>do</strong> dizer?". O Caçula traduzia para<br />
o <strong>por</strong>tuguês, encerrava a conversa, tinha pressa de ir em-<br />
bora com Rochiram. Zana insistia para que ficassem mais<br />
um pouco, Omar recusava, ele e o indiano tinham que ir a<br />
vários lugares. Quais? Ele não revelava. Ficou páli<strong>do</strong> na<br />
manhã em que Rânia convi<strong>do</strong>u Rochiram a almoçar em<br />
casa. Durante o almoço, ele esfregava as mãos, nervoso,<br />
temen<strong>do</strong> que a mãe mencionasse o nome de Yaqub. Rânia<br />
tentava distraí-lo, e ele chegou a ser áspero com a irmã e<br />
reticente com Rochiram. Só falou, sem disfarçar o mau hu-<br />
mor, no fim da refeição, quan<strong>do</strong> o visitante comentou que<br />
queria construir um hotel em Manaus. "Estou ajudan<strong>do</strong> O<br />
seu Rochiram a encontrar um terreno perto <strong>do</strong> rio", Omar<br />
disse antes de sair da mesa, seco.<br />
Domingas não se sentia à vontade com aquele estran-<br />
geiro, mais estranho <strong>do</strong> que to<strong>do</strong>s nós juntos. Ela me dizia:<br />
"O Caçula nem parece ser ele mesmo. Está enrosca<strong>do</strong>, não<br />
sabe para onde ir...".<br />
Eu estranhei o olhar dele, estranhei que tivesse nota-<br />
<strong>do</strong> a ausência de Domingas durante o almoço. Perguntou-<br />
lhe se ela estava desconfian<strong>do</strong> de alguma coisa. Minha mãe<br />
não lhe revelou nada. Disse: "Não gosto <strong>do</strong> teu amigo. Na<br />
primeira noite que ele veio aqui, eu sonhei com Halim".<br />
Omar não quis ouvir, fugia da sombra <strong>do</strong> pai, evitava<br />
o encontro até nos sonhos <strong>do</strong>s outros. Não trouxe mais<br />
Rochiram para dentro de casa: esperava-o na calçada e saía<br />
às pressas. Escondia-se com o indiano, vivia desconfia<strong>do</strong>,<br />
olhan<strong>do</strong> de esguelha para a mãe, seguin<strong>do</strong>-lhe os passos,<br />
amoitan<strong>do</strong>-se para escutar algum segre<strong>do</strong>.<br />
Mais tarde, eu soube <strong>do</strong> que Omar desconfiava. Zana<br />
me pediu que datilografasse uma carta para Yaqub. Trouxe<br />
uma máquina de escrever para o meu quarto e começou a<br />
ditar o que tinha em mente. Falou <strong>do</strong> amigo de Omar, um<br />
magnata indiano que pretendia construir um hotel em Ma-<br />
naus. Os <strong>do</strong>is filhos podiam trabalhar juntos: Yaqub faria os<br />
cálculos <strong>do</strong> edifício, Omar poderia ajudar o indiano em<br />
Manaus. Ela mesma já havia conversa<strong>do</strong> com Rochiram,<br />
pedira-lhe segre<strong>do</strong> sobre o assunto. O seu grande sonho era
ver os filhos reconcilia<strong>do</strong>s. Ela só pensava nisso, e desde<br />
a morte de Halim acordava no meio da noite, assustada.<br />
Quem ia entender a falta que Halim lhe fazia? A <strong>do</strong>r que<br />
ele deixou. Não queria morrer ven<strong>do</strong> os gêmeos se odiarem<br />
226 . 227<br />
como <strong>do</strong>is inimigos. Não era mãe de Caim e Abel. Ninguém ticipação <strong>do</strong><br />
irmão. Terminou a carta com um abraço, sem<br />
i<br />
havia consegui<strong>do</strong> apaziguá-los, nem Halim, nem as orações, adjetivo<br />
ou aumentativo. A mãe leu em voz alta essa pa-<br />
nem mesmo Deus. Então que Yaqub refletisse, ele que era lavra e<br />
murmurou: "Eu peço perdão e ele se despede com<br />
instruí<strong>do</strong>, cheio de sabe<strong>do</strong>ria. Ele que tinha realiza<strong>do</strong> gran- um<br />
abraço".<br />
des feitos na vida. Que a per<strong>do</strong>asse <strong>por</strong> tê-lo deixa<strong>do</strong> viajar No<br />
entanto, a menção da Bí`blia deixou-a mais preocu-<br />
sozinho para o Lí1~ano. Ela não deixou Omar ir embora, pada. Ela<br />
percebeu que Omar havia afasta<strong>do</strong> Rochiram da<br />
pensava que longe dela ele morreria. casa, percebeu a suspeita<br />
<strong>do</strong> filho, sempre à espreita, ron-<br />
Zana insistiu no assunto, recorren<strong>do</strong> a circunlóquios e dan<strong>do</strong> mãe e<br />
filha. Pediu a Rânia que contasse tu<strong>do</strong> ao Ca-<br />
, reticências. Eu ouvia a voz de mãe culpada, cheia de remor- çula.<br />
A irmã mostrou-lhe a carta de Yaqub: não era uma<br />
', so, e escrevia. As vezes ela me perguntava se as<br />
palavras trama da mãe, mas uma tentativa de umr os filhos. Omar<br />
não a estavam train<strong>do</strong>. Em êxtase de mea-culpa, me olha- leu a<br />
carta e começou a rir como se estivesse caçoan<strong>do</strong> de<br />
va como se estivesse na presença de Yaqub. E durante uma to<strong>do</strong>s.<br />
Mas o tom de zombaria se desfez: "O que o sabichão<br />
pausa, parecia esperar uma resposta, temen<strong>do</strong> que o filho quer<br />
dizer com cena bíblica, hein, Rânia? O que o teu irmão<br />
silenciasse. entende de civilidade?".<br />
Assinou o nome em árabe, enviou a carta e passou os Rânia não se<br />
intimi<strong>do</strong>u, tampouco se alterou. "Não<br />
dias seguintes remoen<strong>do</strong> cada linha que havia dita<strong>do</strong>. Duvi- sei",<br />
disse ela. "Sei que vocês podem trabalhar numa cons-<br />
dava das próprias palavras, não sabia se havia descaso<br />
ou trutora..."<br />
exagero no teor da carta, se o filho ia entender o que<br />
ela "Construtora?", Omar interrompeu, enfeza<strong>do</strong>, dizen-<br />
mais havia lhe pedí<strong>do</strong>: perdão. Dei-lhe o esboço <strong>do</strong> manus- <strong>do</strong>, aos<br />
berros, que ele conhecera Rochiram, ele trouxera o<br />
crito, que ela lia em voz baixa. Numa tarde, sozinha na indiano<br />
para casa e fora atrás de um terreno para o hotel.<br />
sala, eu a vi len<strong>do</strong> a carta para um Halim imaginário. De- Parecia<br />
irrita<strong>do</strong> com a insistência da irmã, aferrada à idéia<br />
pois da leitura, perguntou: Yaqub vai entender? Vai per- de que<br />
podia apaziguar os gêmeos. Rânia queria os irmãos<br />
<strong>do</strong>ar a mãe dele? perto dela, desejava a intimidade de ambos. A<br />
intimidade<br />
Então, quase um mês depois, Rânia entregou à mãe e a compulsão pelo<br />
trabalho dariam muito mais senti<strong>do</strong> à<br />
um envelope que Yaqub enviara à loja. Era uma carta com sua vida.<br />
To<strong>do</strong> o seu empenho para acalmar Omar <strong>foi</strong> em<br />
poucas linhas. Ele não aceitou nem recusou qualquer per- vão. Ela<br />
pensava que ce<strong>do</strong> ou tarde ele ia cair de beiço nos
dão. Escreveu que o atrito entre ele e Omar era um assun- braços<br />
morenos e roliços; que os <strong>do</strong>is iam se aninhar na<br />
to <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is, e acrescentou: "Oxalá seja resolvi<strong>do</strong> com civi- rede<br />
como amantes depois de uma discussão. Ele não cedeu<br />
lidade; se houver violência, será uma cena bíblica". Mas ele ao<br />
feitiço. Nós o víamos esbanjar o dinheiro que ganhara<br />
se interessou pela construção <strong>do</strong> hotel, ignoran<strong>do</strong> a par- com a<br />
comissão de venda <strong>do</strong> terreno <strong>do</strong> hotel. As garrafas<br />
2z8 .~<br />
'~~s 1<br />
de bebida cara que ele entornava e depois jogava no quin-<br />
tal e no piso <strong>do</strong> alpendre! Os presentes que comprava para<br />
namoradas e deixava em qualquer lugar, esqueci<strong>do</strong>s, como<br />
se fossem inúteis ou como se nada disso tivesse mais im<strong>por</strong>-<br />
tância. O vesti<strong>do</strong> de linho e as duas blusas de seda chinesa<br />
que deu a Domingas, dizen<strong>do</strong>-lhe: "Agora podes jogar no<br />
lixo os trapos que te mandaram de São Paulo". Não se diri-<br />
gia às outras mulheres, e, sem mais nem meros, na presen-<br />
ça da mãe, explodia, colérico: "Uma cena bí'blica, não é? En-<br />
tão vamos ver se o sabichão conhece mesmo a Bí1~lia".<br />
Ninguém respondia às pontadas que ele dava no irmão.<br />
Mãe e filha se entreolhavam, caladas, e esse silêncio pode-<br />
roso e cúmplice prevalecia contra a cólera <strong>do</strong> Caçula. Elas<br />
o deixavam desabafar, fingiam-se indiferentes a Yaqub, e<br />
era estranho vê-las tão passivas quan<strong>do</strong> Omar exigia que<br />
nenhuma fotografia <strong>do</strong> irmão fosse vista na sala.<br />
Durante algum tempo ele se esquivou de to<strong>do</strong>s, alter-<br />
nan<strong>do</strong> desperdício e ódio.<br />
Eu estava alheio ao que vinha acontecen<strong>do</strong> nas últi-<br />
mas semanas, não conseguia escutar os cochichos entre<br />
Zana e Rânia, nem decifrar os gestos e olhares que troca-<br />
vam, mas escutei o nome de Yaqub e <strong>do</strong> hotel em que ele<br />
estava. Estranhei que se hospedasse num lugar tão modes-<br />
to, na verdade uma casa malconservada numa das áreas<br />
mais antigas de Manaus. A mesma casa que eu conhecera<br />
com Domingas, quan<strong>do</strong> ela me levava para passear na pra-<br />
ça Pedro i1, onde marinheiros estrangeiros seguiam as pu-<br />
tas que rodeavam a ilha de São Vicente. O hotel, escondi<strong>do</strong><br />
no fim de uma rua estreita, parecia longe da multidão e da<br />
zoada <strong>do</strong> centro, agora cheio de lojas que abriam da noite<br />
para o dia. Yaqub estava ali, naquela rua pacata e sinuosa,<br />
tão anônimo quanto seus mora<strong>do</strong>res assusta<strong>do</strong>s com a<br />
azáfama da cidade. Contei a Domingas e perguntei-lhe se<br />
ele ia embora sem nos visitar. Minha mãe, com voz nervosa,<br />
logo contestou: que não, que duvidava, ele viria vê-la, eu<br />
podia esperar que ele viria.<br />
To<strong>do</strong>s na casa pareciam toma<strong>do</strong>s <strong>por</strong> um mal-estar.<br />
Zana e Rânia só discutiam a <strong>por</strong>tas fechadas; perto de mim,<br />
trocavam palavras com sussurros suaves, de vôo de borbo-<br />
leta. Foram cinco ou seis dias assim, e me lembro que numa<br />
quinta-feira choveu a noite toda, e a casa amanheceu com<br />
goteiras. Do teto da sala escorriam fios grossos de água suja,<br />
e o quintal transformou-se num aguaceiro. No cortiço <strong>do</strong>s<br />
fun<strong>do</strong>s, só tumulto e aflição: as casinhas estavam inunda-<br />
das e desde ce<strong>do</strong> eu e Domingas ajudamos a escoar a água<br />
<strong>do</strong>s corre<strong>do</strong>res, a retirar a mobMia <strong>do</strong>s quartinhos enlamea-<br />
<strong>do</strong>s. Saímos <strong>do</strong> cortiço com o choro das crianças na memó-
ia e a impressão de que nossos vizinhos haviam perdi<strong>do</strong><br />
tu<strong>do</strong>. No meio da manhã um sol fraco aclarou a cidade, a<br />
folhagem esverdeou com mais brilho e uma aragem morna<br />
movia as folhas graúdas da fruta-pão. Na casa, silêncio: Za-<br />
na tinha i<strong>do</strong> confidenciar com a filha na loja. Domingas <strong>foi</strong><br />
mudar de roupa. Ao sair <strong>do</strong> quarto, usava um vesti<strong>do</strong> novo,<br />
estava perfumada, os lábios pinta<strong>do</strong>s de batom vermelho.<br />
O olhar não escondia sua apreensão. Vi seu rosto crispa<strong>do</strong><br />
volta<strong>do</strong> para a sala: Omar acabara de descer e tomava um<br />
copo de café. Era raro vê-lo de pé tão ce<strong>do</strong>. Não tocou no<br />
manjar prepara<strong>do</strong> todas as manhãs para ele. Ron<strong>do</strong>u a sala,<br />
230 23i<br />
r5.<br />
:•<br />
~~.•':'y::`.-.<br />
subiu estabana<strong>do</strong> e bateu com força na <strong>por</strong>ta <strong>do</strong> quarto de<br />
Zana. Quan<strong>do</strong> desceu, nem olhou para Domingas: avisou<br />
que não voltaria para o almoço. Saiu despentea<strong>do</strong>, malves-<br />
ti<strong>do</strong>, carrancu<strong>do</strong>. Minha mãe seguiu com o olhar aquele<br />
corpo cambaleante que pisava o assoalho como se desse<br />
patadas. Ela ficou entre o quarto e a cozinha, indecisa, até<br />
erguer a cabeça e dizer: "Esse tempo ainda está feio".<br />
Comecei a cavar valetas para drenar as poças <strong>do</strong> quin-<br />
tal e assim evitar viveiros de insetos. O chão estava cober-<br />
to de calangos e gafanhotos mortos, frutas e folhas; da fossa,<br />
ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> galinheiro inunda<strong>do</strong>, vinha um cheiro de podri-<br />
dão. Aos poucos, o mormaço <strong>foi</strong> aquecen<strong>do</strong> o quintal, e o<br />
sol, ainda ralo entre nuvens pesadas, não podia ainda apa-<br />
gar os traços da noite de chuva.<br />
Antes das onze Yaqub apareceu: não ia demorar, só<br />
uma visitinha para matar a saudade e rever a casa antes de<br />
voltar para São Paulo. Vestia uma roupa comum. O cabelo<br />
preto pentea<strong>do</strong> para trás, o corpo ereto e a expressão sau-<br />
dável o faziam bem menos envelheci<strong>do</strong> que o Caçula. Trou-<br />
xera <strong>livro</strong>s de matemática para mim e roupa para Domin-<br />
gas. Não perguntou <strong>por</strong> Zana. Disse: "Passei no cemitério,<br />
fui ver o túmulo...". Não terminou a frase. Disfarçou, olhou<br />
para a mesa cheia de frutas e quitutes <strong>do</strong> café da manhã e<br />
perguntou com uma ponta de ironia: "Th<strong>do</strong> isso só para<br />
mim?". Sentou-se, comeu o que o irmão deixara intoca<strong>do</strong>;<br />
depois me chamou, abriu uma pasta e estendeu sobre a me-<br />
sa folhas de papel com desenhos de vigas, colunas e malhas<br />
de ferro. Observou meu corpo sujo de terra e demorou o<br />
olhar em minhas mãos. O olhar dele não me intimi<strong>do</strong>u,<br />
mas não sei se eram olhos de um pai. Ele nunca respondeu<br />
ao meu olhar. Talvez sua ambição reiterasse a minha dúvi-<br />
da, ou a ambição, enorme, desmedida, não lhe permitisse<br />
olhar para mim com franqueza. Disse que havia esboça<strong>do</strong><br />
os cálculos da estrutura de um grande edifício que seria<br />
construí<strong>do</strong> em Manaus: "Não podes passar a vida limpan-<br />
<strong>do</strong> quintal e escreven<strong>do</strong> cartas comerciais para Rânia".<br />
Minha mãe escutou a frase e me olhou com uma ex-<br />
pressão de orgulho, que durou poucos segun<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong><br />
desviou os olhos de mim, seu rosto recobrou o ar antigo,<br />
meio desconfia<strong>do</strong>, meio temeroso. Os <strong>do</strong>is foram para o<br />
quintal e enquanto conversavam ele acariciava uma fruta-<br />
pão. A mão ia da fruta esférica ao queixo de Domingas, ele
ia com vontade, com ar de triunfo, e naquele momento<br />
eu o vi mais íntimo de minha mãe. Quan<strong>do</strong> a enlaçou, Do-<br />
mingas não disfarçou a apreensão: disse que ele devia ir<br />
embora. Yaqub franziu a testa: "Estou na minha casa, não<br />
vou fugir...". Minha mãe implorou: que saíssem juntos,<br />
dessem uma volta. Ele sentou na rede, chamou-a para jun-<br />
to dele, ela não quis. Agora parecia aflita, não tirava os<br />
olhos da sala, <strong>do</strong> corre<strong>do</strong>r. Não falaram mais nada. As vo-<br />
zes e os lamentos <strong>do</strong> cortiço cortavam o silêncio no fim da<br />
manhã abafada.<br />
Então eu o avistei: mais alto que a cerca, o corpo cres-<br />
cen<strong>do</strong>, se agigantan<strong>do</strong>, a mão direita fechada que nem<br />
martelo, o olhar alucina<strong>do</strong> no rosto ira<strong>do</strong>. Arfava, apres-<br />
san<strong>do</strong> o passo. Quan<strong>do</strong> gritei, Omar deu um salto, ergueu<br />
a rede e começou a socar Yaqub no rosto, nas costas, no<br />
corpo to<strong>do</strong>. Corri para cima <strong>do</strong> Caçula, tentan<strong>do</strong> segurá-lo.<br />
Ele chutava e esmurrava o irmão, xingan<strong>do</strong>-o de trai<strong>do</strong>r,<br />
de covarde. Alguns mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> cortiço encheram o quin-<br />
232 233<br />
taI e se aproximaram <strong>do</strong> alpendre. Com um gesto brusco eu<br />
agarrei a mão de Omar. Ele conseguiu se livrar de mim.<br />
Percebeu que estava cerca<strong>do</strong> <strong>por</strong> vários homens e <strong>foi</strong> se<br />
afastan<strong>do</strong> devagar, de olho na rede vermelha. Ainda o vi<br />
correr até a sala e rasgar com fúria as folhas <strong>do</strong> projeto;<br />
rasgou to<strong>do</strong>s os desenhos, jogou a louça no assoalho e de-<br />
sabalou pelo corre<strong>do</strong>r.<br />
Yaqub se contorcia na rede, não conseguia levantar. O<br />
rosto dele inchou, a boca não parava de sangrar, os lábios<br />
cheios de estrias e caroços. Ele gemia, apalpan<strong>do</strong> com a<br />
mão direita a testa, as costas e os ombros. Eu e <strong>do</strong>is mora-<br />
<strong>do</strong>res <strong>do</strong> cortiço ajudamos a tirá-lo da rede, ele mal conse-<br />
guia andar. Dois de<strong>do</strong>s de sua mão esquerda pareciam gan-<br />
chos, e o corpo, curva<strong>do</strong>, tremia. Domingas acompanhou-o<br />
a um hospital, e antes de sair me pediu para limpar a mesa,<br />
jogar no lixo a louça quebrada e pôr a rede de molho no<br />
tanque. Escondi no meu quarto as folhas rasgadas <strong>do</strong> proje-<br />
to de Yaqub.<br />
Quan<strong>do</strong> minha mãe voltou, se apressou para enxaguar<br />
a rede e estendê-la no quarto dela. Aban<strong>do</strong>nou a cozinha,<br />
não quis preparar o almoço. Disse que o esta<strong>do</strong> de Yaqub<br />
não era grave: a mão esquerdá, sim, em frangalhos, <strong>do</strong>is<br />
de<strong>do</strong>s fratura<strong>do</strong>s. Ia perder uns três dentes, o rosto estava<br />
irreconhecível, ele sentia <strong>do</strong>res terríveis nas costas e nos<br />
ombros. Pedira a Domingas que calasse o bico, que inven-<br />
tasse, dissesse a Zana: "O teu filho teve de viajar às pressas<br />
para São Paulo".<br />
Zana não engoliu as palavras de Domingas. Entrou no<br />
quarto <strong>do</strong> filho, remexeu aqui e ali, encontrou o passa<strong>por</strong>te<br />
de Yaqub que ele havia rouba<strong>do</strong>. Ficou olhan<strong>do</strong>, pensativa,<br />
a fotografia <strong>do</strong> engenheiro: o semblante sério, as sobrance-<br />
Ihas espessas, as ombreiras estreladas <strong>do</strong> umforme de ofi-<br />
cial de reserva. Percebi a vaidade da mãe, e uma pontada de<br />
remorso em seu olhar. A culpa que lhe dilacerava a cons-<br />
ciência, eu pensava. Não sabia o que fazer com o passa<strong>por</strong>-<br />
te, andava a esmo, como se o <strong>do</strong>cumento pudesse condu-<br />
zi-la a algum lugar. Sentou-se no sofá cinzento, enfiou o<br />
<strong>do</strong>cumento na blusa, e quan<strong>do</strong> ergueu a cabeça, chorava, as
mãos cruzadas no peito. Os olhos avermelha<strong>do</strong>s miraram o<br />
pequeno altar e se desviaram para o alpendre, agora vazio.<br />
Teve que viajar às pressas? Por quê? Zana repetia a per-<br />
gunta, como se da repetição fosse surgir uma resposta. Ela<br />
perguntava <strong>por</strong> Yaqub, mas buscava Omar. Mal falava com<br />
Rânia, dava coices <strong>por</strong> nada e ficava horas a meditar sobre<br />
o destino <strong>do</strong> Caçula. Agora não havia o demônio feminino,<br />
teria si<strong>do</strong> mais fácil dizer às vizinhas: "Essas loucas tiram da<br />
gente os nossos meninos, a nossa riqueza". Palavras que ela<br />
pronunciou em outras ocasiões, quan<strong>do</strong> Dália, a Mulher<br />
Prateada, dançou para to<strong>do</strong>s nós; quan<strong>do</strong> a outra, a Pau-<br />
Mulato, morou com Omar num barco velho, pensan<strong>do</strong> que<br />
ia passar a vida navegan<strong>do</strong> ao deus-dará, len<strong>do</strong> a mão de ri-<br />
beirinhos, preven<strong>do</strong> destinos promissores em vidas arruina-<br />
das. Ambos, Omar e a Pau-Mulato, farrean<strong>do</strong> a bor<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
barco ou em praias desertas, mas vigia<strong>do</strong>s <strong>por</strong> uma sombra<br />
espessa, poderosa.<br />
O sonho de Zana, desfeito: ver os filhos juntos, numa<br />
harmonia impossível. Ela relembrava o seu plano, minucio-<br />
so e sagaz. "Meus filhos iam abrir uma construtora, o Caçu-<br />
234 235<br />
la ia ter uma ocupação, um trabalho, eu tinha certeza..."<br />
Chamava minha mãe para perto dela, dizia: "O Omar perdeu<br />
a cabeça, <strong>foi</strong> traí<strong>do</strong> pelo irmão. Sei de tu<strong>do</strong>, Domingas...<br />
Yaqub se reuniu com aquele indiano, fez tu<strong>do</strong> escondi<strong>do</strong>,<br />
ignorou o meu Caçula, estragou tu<strong>do</strong>...". Domingas ouvia<br />
e se afastava, deixava a outra sozinha, maldizen<strong>do</strong> a trama<br />
de Yaqub.<br />
Poucos dias depois da briga, Rochiram <strong>foi</strong> à loja conver-<br />
sar com Rânia. Parecia um estranho, contou Rânia depois <strong>do</strong><br />
encontro. Foi breve, seco, sequer mencionou o nome <strong>do</strong>s<br />
gêmeos. Disse em espanhol: "Trouxe uma proposta para<br />
encerrar o assunto". Entregou um envelope lacra<strong>do</strong> e se<br />
despediu. Ela intuiu o teor <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento; mesmo assim,<br />
quan<strong>do</strong> leu a carta diante de mim, empalideceu. Rochiram<br />
exigia uma fortuna em troca <strong>do</strong> que havia paga<strong>do</strong> a Yaqub<br />
pela execução <strong>do</strong>s projetos de engenharia e, a Omar, pela<br />
comissão <strong>do</strong> terreno. Além disso, perdera muito tempo com<br />
esse negócio. Ameaçou-a com um processo, escreveu que já<br />
conhecia pessoas influentes, "as mais poderosas da cidade".<br />
Rânia pediu um prazo: "Alguns meses para arrumarmos a<br />
nossa vida".<br />
Contou à mãe a exigência de Rochiram. Disse que faria<br />
tu<strong>do</strong> para evitar um processo de Yaqub contra Omar.<br />
"Esse indiano é um aventureiro", disse Zana. "Um san-<br />
guessuga! A comida que eu preparei para esse ingrato... Só<br />
faltei dar na boca desse parasita amarelão! Acabou com o<br />
futuro <strong>do</strong> meu filho!"<br />
Não tingia mais o cabelo, as mechas brancas davam-<br />
lhe um ar de velhice que o rosto com poucas rugas negava.<br />
Minha mãe não quis rezar com ela, nem contar a cena da<br />
agressão de Omar. "O Yaqub não pôde reagir, não teve tem-<br />
po", ela disse. Zana olhou-a de esguelhá ~ uns olhos bem es-<br />
tranhos. Mas Domingas não se intimidPu. Sorriu, como se<br />
estivesse nas alturas e deixou a patroa perplexa perto <strong>do</strong><br />
oratório.<br />
Domingas andava preocupada coW Yaqub, esperava
notícias dele, mas ele só apareceu numã noite de pesadelo,<br />
em que minha mãe escutava os passo~ <strong>do</strong> Caçula e via o<br />
corpo alto surgir da cerca e golpear brut~lmente o irmão. A<br />
imagem <strong>do</strong> rosto desfigura<strong>do</strong> a transtonlava. Mas ela pare-<br />
cia sofrer com o desamparo de Omar. EPcostada no tronco<br />
da seringueira em que o Caçula havia trepa<strong>do</strong>, dizia: "Os<br />
<strong>do</strong>is nasceram perdi<strong>do</strong>s".<br />
a36 z37<br />
9<br />
Eu via Domingas esmorecer, cada vez mais apática ao<br />
ritmo da casa, indiferente às orquídeas que antes borrifava<br />
com delicadeza, aos pássaros que contemplava nas copas e<br />
palmas e depois esculpia. As mãos mal conseguiam tirar las-<br />
cas da madeira dura, e ela nem se animava a fazer trança-<br />
<strong>do</strong>s com fios de palmeira. Os últimos animais que havia<br />
esculpi<strong>do</strong> lembravam pequenos seres inacaba<strong>do</strong>s, fósseis de<br />
outras eras. Não parecia tão velha como tantas empregadas,<br />
que aos cinqüenta e poucos já estão acabadas. Eu lhe pedia<br />
que repousasse, mas ela só se deitava à noite; tombava na<br />
rede, queria apenas a minha presença. Não abria mais o<br />
<strong>livro</strong> muito antigo que Halim lhe dera, um <strong>livro</strong> grosso e<br />
encapa<strong>do</strong>, com gravuras de animais e plantas cujos nomes<br />
ela sabia de cor: palavras em tupi que repetira para Yaqub<br />
nas noites em que os <strong>do</strong>is ficavam sozinhos na umidade <strong>do</strong><br />
quarto dela.<br />
Nossas conversas rarearam, e, quan<strong>do</strong> ela folgava, sen-<br />
239<br />
.~~,<br />
tava no chão ou deitava na rede, inerte. Só uma vez, ao<br />
anoitecer, começou a cantarolar uma das canções que es-<br />
cutara na infância, lá no rio Jurubaxi, antes de morar no<br />
orfanato de Manaus. Eu pensava que ela havia trava<strong>do</strong> a<br />
boca, mas não: soltou a língua e cantou, em nheengatu, os<br />
breves refrões de uma melodia monótona. Quan<strong>do</strong> criança,<br />
eu a<strong>do</strong>rmecia ao som dessa voz, um acalanto que ondulava<br />
nas minhas noites.<br />
Uma tarde de <strong>do</strong>mingo, minha mãe me convi<strong>do</strong>u para<br />
passear na praça da Matriz. Perto dali, atraca<strong>do</strong>s no Manaus<br />
Harbour, os grandes cargueiros achatavam barcos e canoas,<br />
ocultan<strong>do</strong> o horizonte da floresta. No centro da praça não<br />
havia mais a multidão de pássaros que encantava as crian-<br />
ças. Agora o aviário que tanto me fascinara estava silen-<br />
cioso. Senta<strong>do</strong>s na escadaria da igreja, índios e migrantes<br />
<strong>do</strong> interior <strong>do</strong> Amazonas esmolavam. Domingas trocou pa-<br />
lavras com uma índia e não entendi a conversa; as duas se<br />
benzeram quan<strong>do</strong> os sinos deram seis badaladas. Minha<br />
mãe se despediu da mulher, entrou sozinha na igreja, rezou.<br />
Depois nós entramos no Manaus Harbour, fomos até a ex-<br />
tremidade <strong>do</strong> trapiche. O <strong>por</strong>to flutuante estava movimen-<br />
ta<strong>do</strong>, com seus estiva<strong>do</strong>res, guindastes e empilhadeiras. Um<br />
homem que andava <strong>por</strong> ali nos reconheceu e acenou. Era<br />
o Calisto, um <strong>do</strong>s vizinhos <strong>do</strong> cortiço. Descalço, só de calção,<br />
ele esperava uma ordem para descarregar caixas de produ-<br />
tos eletrônicos. Eu não sabia que ele trabalhava aos <strong>do</strong>min-<br />
gos no <strong>por</strong>to. Calisto se livrara das garras de <strong>Este</strong>lita Reino-<br />
so, mas agora tinha de agüentar outro peso.<br />
Domingas não quis ficar ali. "É muito agita<strong>do</strong>, muito
arulhento", ela reclamou, dan<strong>do</strong> as costas para o nosso<br />
,<br />
,<br />
,<br />
vizinho. A área que contorna o <strong>por</strong>to estava silenciosa. Na<br />
calçada da rua <strong>do</strong>s Barés <strong>do</strong>rmiam famMias <strong>do</strong> interior. Vi a<br />
loja fechada e apontei o depósito, onde Halim, encosta<strong>do</strong> à<br />
janelinha, contara trechos de sua vida. Minha mãe quis sen-<br />
tar na mureta que dá para o rio escuro. Ficou calada <strong>por</strong> uns<br />
minutos, até a claridade sumir de vez. "Quan<strong>do</strong> tu nasces-<br />
te", ela disse, "seu Halim me aju<strong>do</strong>u, não quis me tirar da<br />
casa.. . Me prometeu que ias estudar. Tu eras neto dele, não<br />
ia te deixar na rua. Ele <strong>foi</strong> ao teu batismo, só ele me acom-<br />
panhou. E ainda me pediu para escolher teu nome. Nael,<br />
ele me disse, o nome <strong>do</strong> pai dele. Eu achava um nome es-<br />
tranho, mas ele queria muito, eu deixei... Seu Halim. Pa-<br />
rece que a vida se entortou também para ele... Eu sentia<br />
que o velho gostava muito de ti. Acho que gostava até <strong>do</strong>s<br />
filhos. Mas reclamava <strong>do</strong> Omar, dizia que o filho tínha su-<br />
foca<strong>do</strong> a Zana." Senti suas mãos no meu braço; estavam<br />
suadas, frias. Ela me enlaçou, beijou meu rosto e abaixou<br />
a cabeça. Murmurou que gostava tanto de Yaqub.. . Desde o<br />
tempo em que brincavam, passeavam. Omar ficava enciu-<br />
ma<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> via os <strong>do</strong>is juntos, no quarto, logo que o ir-<br />
mão voltou <strong>do</strong> Líbano. "Com o Omar eu não queria...<br />
Uma noite ele entrou no meu quarto, fazen<strong>do</strong> aquela alga-<br />
zarra, bêba<strong>do</strong>, abrutalha<strong>do</strong>... Ele me agarrou com força de<br />
homem. Nunca me pediu perdão."<br />
Ela soluçava, não podia falar mais nada.<br />
Passei a rondar a rede em que minha mãe <strong>do</strong>rmia, preo-<br />
cupa<strong>do</strong> com ela. Não se deixou contaminar pela agitação<br />
de Zana, que alternava promessas de vingança com mo-<br />
mentos de melancolia, combinan<strong>do</strong> sentimentos irrecon-<br />
ciliáveis. Durante semanas, Zana misturou o passa<strong>do</strong> com<br />
240 ~ 24i<br />
o presente, as lembranças <strong>do</strong> pai e de Halim com a ausên-<br />
cia <strong>do</strong> Caçula. "Meu pai...", ela dizia, pon<strong>do</strong> as mãos na<br />
fotografia de Galib, lamentan<strong>do</strong> a distância entre o Ama-<br />
zonas e o Lí~bano. Os gazais de Abbas, que costumava ler<br />
no quarto, agora ela recitava em voz alta, e essas palavras<br />
formavam um remanso em sua loucura. Mas a imagem <strong>do</strong><br />
Caçula desapareci<strong>do</strong> a perseguia. Culpava-se <strong>por</strong> ter escrito<br />
a carta a Yaqub. Chamou-o de intratável, e o filho espan-<br />
ca<strong>do</strong> passou a ser o agressor. Rânia lhe dizia que os irmãos<br />
nunca iam conviver em casa, mas o tempo podia acalmá-<br />
los. O tempo e a separação.<br />
"Nada nesse mun<strong>do</strong> pode acalmar um homem traí<strong>do</strong>",<br />
disse Zana.<br />
"O Yaqub pode se arrepender", disse Rânia. "Não vai<br />
perseguir ninguém."<br />
A mãe olhou-a com tristeza e disse com uma voz rou-<br />
ca, mas firme:<br />
"Tu nunca conviveste com um homem, muito menos<br />
com um filho."<br />
Rânia silenciou.<br />
Agora Zana não tinha o mari<strong>do</strong> para ajudá-la, e a re-<br />
clusão de Domingas a deixava mais desamparada. As filhas
de Talib vinham visitá-la; Nahda pegava nas mãos de Zana<br />
e Zahia puxava conversa, tentan<strong>do</strong> distraí-la. O olhar per-<br />
di<strong>do</strong> de Zana desconcertava as visitantes. Na manhã em que<br />
Cid Tannus e Talib apareceram, ela disse, sem preâmbulo,<br />
que não era justo, não era justo um irmão fugir de um<br />
irmão. "Vocês têm de encontrar o meu filho, têm de trazer<br />
o Caçula para minha casa. Façam isso pelo Halim."<br />
Talib, mais íntimo da famí~ia, demorou o olhar no úni-<br />
co prato na mesa arrumada para o almoço. O prato, os ta-<br />
lheres e o copo <strong>do</strong> Caçula não haviam si<strong>do</strong> retira<strong>do</strong>s da<br />
cabeceira. O viúvo, antes de sair, murmurou: "Deus fecha<br />
uma <strong>por</strong>ta e abre outra".<br />
Num dia em que amanheceu chorosa, Zana ordenou a<br />
Rânia que tirasse tu<strong>do</strong> <strong>do</strong> cofre, tu<strong>do</strong>, toda a papelada ve-<br />
lha que Halim guardara. Chamou um carroceiro e quatro<br />
carrega<strong>do</strong>res: que levassem essa caixa de ferro dali, que jo-<br />
gassem esse cofre maldito no mato. A lembrança <strong>do</strong> filho<br />
acorrenta<strong>do</strong>.<br />
Acompanhei o carroceiro e os carrega<strong>do</strong>res até a loja,<br />
onde Rânia nos esperava. Quan<strong>do</strong> voltei para casa, Zana,<br />
imersa em más lembranças, se fechara no quarto. Era qua-<br />
se meio-dia, e minha mãe não estava na cozinha. Eu a en-<br />
contrei enrolada na rede de Omar, que ela armara em seu<br />
quartinho. A rede perdera a cor original e o vermelho, sem<br />
vibração, tornara-se apenas um hábito antigo <strong>do</strong> olhar. Vi<br />
os lábios dela ressequi<strong>do</strong>s, o olho direïto fecha<strong>do</strong>, o outro<br />
coberto <strong>por</strong> uma mecha grisalha. Afastei a mecha, vi o<br />
outro olho fecha<strong>do</strong>. Balancei a rede, minha mãe não se me-<br />
xeu. Ela não <strong>do</strong>rmia. Vi o corpo que oscilava lentamente,<br />
j comecei a chorar. Sentei no chão ao la<strong>do</strong> dela e fiquei ali,<br />
aturdi<strong>do</strong>, sufoca<strong>do</strong>. Durante o tempo que a contemplei, no<br />
vaivém da rede, rememorei as noites que <strong>do</strong>rmimos abraça-<br />
<strong>do</strong>s no mesmo quartinho que fedia a barata. Agora, outro<br />
cheiro, de madeira e resina de jatobá, era mais forte. Os bi-<br />
chinhos esculpi<strong>do</strong>s em muirapiranga estavam arruma<strong>do</strong>s<br />
na prateleira. Lustra<strong>do</strong>s, luziam ali os pássaros e as serpen-<br />
tes. O bestiário de minha mãe: miniaturas que as mãos dela<br />
haviam forja<strong>do</strong> durante noites e noites à luz de um aladim.<br />
243<br />
`<br />
As asas finas de um saracuá, o pássaro mais belo, empolei-<br />
ra<strong>do</strong> num galho de verdade, enterra<strong>do</strong> numa bacia de la-<br />
tão. Asas bem abertas, peito esguio, bico para o alto, ave<br />
que deseja voar. Toda a fibra e o ímpeto da minha mãe ti-<br />
nham servi<strong>do</strong> os outros. Guar<strong>do</strong>u até o fim aquelas pala-<br />
vras, mas não morreu com o segre<strong>do</strong> que tanto me exaspe-<br />
rava. Eu olhava o rosto de minha mãe e me lembrava da<br />
brutalidade <strong>do</strong> Caçula.<br />
Lá fora piavam pássaros e pelo vão da janela eu via<br />
galhos enverga<strong>do</strong>s e frutas maduras espalhadas no chão<br />
sujo <strong>do</strong> quintal. Parei de balançar a rede e acariciei as mãos<br />
calosas de minha mãe. Depois, a voz de Zana chaman<strong>do</strong><br />
Domingas, três, quatro gritos que vinham <strong>do</strong> alto da casa,<br />
e em seguida um barulho na escada, os passos cada vez<br />
maïs próximos, na sala, na cozinha, o ruí<strong>do</strong> de folhas no<br />
quintal, os olhos assusta<strong>do</strong>s de Zana no rosto de olhos fe-<br />
cha<strong>do</strong>s. Ela chacoalhou a rede, e, de joelhos, abraçou Do-
mingas.<br />
Eu não conseguia sair de perto de Domingas. Um curu-<br />
mim <strong>do</strong> cortiço <strong>foi</strong> entregar um bilhete a Rânia. Escrevi:<br />
"Minha mãe acabou de morrer".<br />
Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas.<br />
Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimen-<br />
to; permanecem soterradas, petrificadas, em esta<strong>do</strong> laten-<br />
te, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o<br />
desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tem-<br />
po, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só O<br />
k<br />
tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais<br />
verdadeiras, disse Halim durante uma conversa, quan<strong>do</strong><br />
usou muito o lenço para enxugar o suor <strong>do</strong> calor e da raiva<br />
ao ver a esposa enredada ao filho caçula.<br />
Pedi a Rânia para que minha mãe fosse enterrada no<br />
jazigo da família, ao la<strong>do</strong> de Halim. Ela concor<strong>do</strong>u, pagou<br />
tu<strong>do</strong> sem reclamar, e eu nunca soube quanta cumplicidade<br />
havia num ato tão generoso. Mir~ha mãe e meu avô, la<strong>do</strong><br />
a la<strong>do</strong>, debaixo da terra, haviam encontra<strong>do</strong> um destino<br />
comum. Eles que vieram de tão longe para morrer aqui.<br />
Hoje, tanto tempo depois, ainda visito o túmulo <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is.<br />
Num <strong>do</strong>mingo, cheguei a ver Adamor, o Perna-de-Sapo,<br />
no cemitério. Nós nos olhamos de relance; só pude ver o<br />
rosto dele, o resto <strong>do</strong> corpo escondi<strong>do</strong> num buraco. Mas<br />
logo ele ergueu os braços e continuou a trabalhar. Era um<br />
<strong>do</strong>s coveiros.<br />
244 ~ 245<br />
1~<br />
A casa <strong>foi</strong> se esvazian<strong>do</strong> e em pouco tempo envelhe-<br />
ceu. Rânia comprara um bangalô num <strong>do</strong>s bairros cons-<br />
truí<strong>do</strong>s nas áreas desmatadas ao norte de Manaus. Disse à<br />
mãe que a mudança era inevitável. Não revelou <strong>por</strong> quê,<br />
mas Zana increpou: nunca sairia da casa dela, nem morta<br />
deixaria as plantas, a sala com o altar da santa, o passeio<br />
matutino pelo quintal. Não queria aban<strong>do</strong>nar o bairro, a<br />
rua, a paisagem que contemplava <strong>do</strong> balcão <strong>do</strong> quarto. Co-<br />
mo ia deixar de ouvir a voz <strong>do</strong>s peixeiros, carvoeiros, cas-<br />
calheiros e vende<strong>do</strong>res de frutas? A voz das pessoas que<br />
contavam histórias logo ao amanhecer: fulano estava aca-<br />
ma<strong>do</strong>, tal político, ainda ontem um pé-rapa<strong>do</strong> qualquer,<br />
' enriquecera <strong>do</strong> dia para a noite, um grã-fino surrupiara<br />
estátuas de bronze da praça da Saudade, o filho daquele<br />
figurão da Justiça estuprara uma cunhantã, notícias que<br />
, não saíam nos jornais e que as vozes da manhã iam con-<br />
tan<strong>do</strong> de <strong>por</strong>ta em <strong>por</strong>ta, até que a cidade toda soubesse.<br />
247<br />
:.<br />
Quan<strong>do</strong> Rânia chegava da loja, a mãe se precïpitava em di- trabalhar<br />
sozinha e pensavam ser fácil seduzi-la. Ela os dei-<br />
zer: "Podes ir para o teu bangalô, eu não arre<strong>do</strong> pé daqui". xava<br />
comprar, gastar, e depois sc~rria para o próximo fre-<br />
Foi nessa época que Zana levou a primeira queda e ' àses indese<br />
áveis sumiam.<br />
guês. Quan<strong>do</strong> eu estava na loja e. j<br />
teve que engessar o braço e a clavícula esquerda. Mesmo Então ela<br />
partiu, deixou a ca~a e seu quarto. Toda ma-
engessada, ela estendia a roupa de Halim no varal, punha nhã, a<br />
caminho da rua <strong>do</strong>s Barés, visitava a mãe. Dizia-lhe:<br />
os sapatos dele no piso <strong>do</strong> alpendre, o suspensório e a ben- ~ "O<br />
bangalô está um brinco, manla. O teu quarto é o mais<br />
gala no sofá cinzento. Fazia isso nos dias ensolara<strong>do</strong>s,<br />
ao espaçoso, tem um quintalzinho pãra os animais, as plantas,<br />
entardecer recolhia tu<strong>do</strong> e sentava à mesa, no la<strong>do</strong> direi- e uma<br />
varandinha para estender a rede...".<br />
to da cabeceira onde o filho almoçava. À noite, ela cha- ~ Agora<br />
eu e Zana estávamos snzinhos, eu no quarto <strong>do</strong>s<br />
mava Domingas, eu me assustava, ia corren<strong>do</strong> até a sala e fun<strong>do</strong>s,<br />
ela na alcova <strong>do</strong> andar st~Perior. Eu podia ler e es-<br />
a encontrava de pé, perto <strong>do</strong> oratório, o terço pendura<strong>do</strong> tudar com<br />
mais folga, <strong>por</strong>que ela desistira de manter a casa<br />
na mão direita. não demoravam, afu en-<br />
em ordem. As visitas rareavam e g<br />
Rânia não su<strong>por</strong>tava mais ver a mãe conviver com fan- tadas pelos<br />
gestos intempestivos ou pela mudez. Quan<strong>do</strong><br />
tasmas. Ficava entalada só de pensar na ameaça de Rochi- <strong>Este</strong>lita<br />
Reinoso entrou na sala para contar vantagem, Za-<br />
ram e desconfiava que ce<strong>do</strong> ou tarde teria de vender a casa na não<br />
esperou a vizinha sentar-s~, <strong>foi</strong> logo dizen<strong>do</strong>: "Aque-<br />
para pagar a dívida. Queria morar longe dali, longe tam- i ron<strong>do</strong>u<br />
minha casa atrás<br />
la tua sobrinha assanhada sempr~<br />
bém <strong>do</strong> bulício no centro de Manaus. Durante um agua- <strong>do</strong>s meus<br />
filhos".<br />
ceiro, era um deus-nos-acuda no <strong>por</strong>to da Escadaria e na <strong>Este</strong>lita<br />
recuou, assustada.<br />
rua <strong>do</strong>s Barés. Enquanto eu subia ao telha<strong>do</strong> para cobri-lo ~ "Ela<br />
mesma, a Lívia, filha d~ tua irmã... Sabes muito<br />
com lona, Rânia tentava salvar a merca<strong>do</strong>ria <strong>do</strong> depósito. bem com<br />
quem se casou.. . Pescou meu filho num daqueles<br />
Na calçada os recém-chega<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s beiradões comiam as cineminhas <strong>do</strong><br />
teu <strong>por</strong>ão. Yaqub se casou como um cardeal,<br />
sobras <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong> A<strong>do</strong>lpho Lisboa. Ela lhes dava moedas sem<br />
conhecer mulher. Casou escc~ndi<strong>do</strong> em São Paulo, lon-<br />
~<br />
para afastá-los da loja, mas outros voltavam, e <strong>do</strong>rmiam ge da<br />
famMia, que nem um bicho. ~ . ~lha o que os <strong>do</strong>is fize-<br />
<strong>por</strong> ali. Às vezes, no meio de uma chuvarada, um <strong>do</strong>s anti- ram com<br />
o Omar."<br />
gos pretendentes entrava, sujava o assoalho e saía humi- A voz<br />
man<strong>do</strong>na de <strong>Este</strong>lita. ~u abri a <strong>por</strong>ta para ela ir<br />
lha<strong>do</strong> pelo desdém de Rânia. E à noite ainda batia na <strong>por</strong>ta<br />
' embora, e ri na cara dela, um riso esPera<strong>do</strong>, e <strong>do</strong>s mais im-<br />
da casa, pedia que ela descesse, ensaiava uma serenata<br />
com pertinentes, <strong>por</strong>que eu sabia que ~s Reinoso estavam sen<strong>do</strong><br />
voz de bêba<strong>do</strong> e voltava à loja na manhã seguinte, sóbrio, bani<strong>do</strong>s da<br />
alta-roda <strong>do</strong>s novos t~ mPos.<br />
disfarçan<strong>do</strong>, queren<strong>do</strong> comprar o teci<strong>do</strong> mais caro, enfeiti- ~ "Não<br />
quero ver mais ninguérn~~, dizia Zana quan<strong>do</strong> ba-<br />
ça<strong>do</strong> pelos olhos graú<strong>do</strong>s de Rânia. Outros homens a viam tiam na<br />
<strong>por</strong>ta. Só com uma visit~ ela <strong>foi</strong> paciente: a velha<br />
24g 249<br />
matriarca Emilie, que raramente passava em casa. Quan<strong>do</strong><br />
aparecia, Emilie ouvia tu<strong>do</strong>, to<strong>do</strong>s os lamentos, e depois fa-
lava em árabe, a voz alta, mas tranqüila, sem alarde. Ouvi<br />
aquela voz: os sons atraentes e estranhos de sua melodia; e<br />
vi aquela mulher, ainda tão forte no fim da vida: a atenção<br />
concentrada, as palavras cheias de sentimento, os provér-<br />
bios que vinham de um tempo remoto. Lembrei-me de Ha-<br />
lim, de suas palavras pensadas que até o fim tentaram re-<br />
conquistar Zana, livrá-la <strong>do</strong> filho caçula.<br />
Aos poucos, Zana me contou coisas que talvez poucos<br />
soubessem: o nome dela de batismo em Biblos era Zeina.<br />
No Brasil, ainda criança, ela aprendeu <strong>por</strong>tuguês e mu<strong>do</strong>u<br />
de nome. Eu soube mais de Galib e Halim, e também de mi-<br />
nha mãe. Domingas mu<strong>do</strong>u muito depois que engravi<strong>do</strong>u.<br />
Passava horas compenetrada. "Só ven<strong>do</strong>... bastante com<br />
ela mesma, até que Halim, de mansinho, abria a <strong>por</strong>ta <strong>do</strong><br />
quarto e perguntava: 'em que estás pensan<strong>do</strong>?', 'Hã? Eu?'.<br />
Tua mãe respondia assim, assustada... Ela amolava uma<br />
faquinha e pegava um pedaço de pau para fazer aqueles<br />
bichinhos. Halim me dizia: 'Essa cunhantã... Por Deus,<br />
alguma coisa aconteceu com ela...'. Como a tua mãe deu<br />
trabalho no orfanato! Era rebelde, queria voltar para aque-<br />
la aldeia, no rio dela... Ia crescer sozinha, lá no fim <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>? Então a irmã Damasceno me ofereceu a pequena,<br />
eu aceitei. Coita<strong>do</strong> <strong>do</strong> Halim! Não queria ninguém aqui,<br />
nem sombras na casa. Vivia dizen<strong>do</strong>: 'Deve ser penoso criar<br />
o filho <strong>do</strong>s outros, um filho de ninguém'. Quan<strong>do</strong> tu nas-<br />
ceste, eu perguntei: E agora, nós vamos aturar mais um<br />
filho de ninguém? Halim se aborreceu, disse que tu eras<br />
alguém, filho da casa..."<br />
Ela falava aos pedaços, e ela mesma fazia as perguntas:<br />
"No tapete? Se namoramos no tapete onde ele rezava? Ora,<br />
mil vezes... Tu não espiavas a gente, rapaz?".<br />
Eu me arrepiava quan<strong>do</strong> ela dizia isso. Eles me vigia-<br />
vam, percebiam a mìnha presença? Talvez não se incomo-<br />
dassem, nem tivessem vergonha. Deviam rir de mim. Filho<br />
de ninguém! Zana esqueceu a Domingas rebelde e evocou<br />
a outra, a empregada e cozinheira de muitos anos, a cúm-<br />
plice no momento das orações, a mulher minha mãe.<br />
Quan<strong>do</strong> silenciou, notei que a vontade de sobreviver<br />
na velhice sem o filho queri<strong>do</strong> parecia dissipar-se. "Omar,<br />
ele não vai voltar?", ela perguntava com ar de súplica, como<br />
se eu fosse capaz de dar vida ao seu sonho, antes <strong>do</strong> fim. As<br />
tardes inteiras que passou deitada na rede <strong>do</strong> filho. Ela assa-<br />
va peixe no fogareiro, beijava a fotografia de Omar, dizia:<br />
"Por que essa demora, queri<strong>do</strong>? Por quê? Os outros já fo-<br />
ram embora, agora só estamos nós em casa, nós <strong>do</strong>is...".<br />
Levava a rede para o quarto dele, e durante a noite uma voz<br />
abafada enchia a casa de <strong>do</strong>r. Ela chorava tanto, as mãos na<br />
cabeça, o rosto to<strong>do</strong> molha<strong>do</strong>, que eu prendía a respiração,<br />
pensava que ela ia morrer a qualquer momento. Não abria<br />
mais as janelas <strong>do</strong>s quartos, nem me mandava limpar o<br />
quintal nem o piso <strong>do</strong> alpendre. Osgas e besouros mortos<br />
cobriam o pequeno altar empoeira<strong>do</strong>, os azulejos da facha-<br />
da estavam encardi<strong>do</strong>s, a imagem da santa padroeira, ama-<br />
relada. Cinco semanas assim, o tempo que bastou para ofus-<br />
car a casa, para dar um ar de aban<strong>do</strong>no.<br />
Então, numa tarde de março (havia chovi<strong>do</strong> muito e<br />
Rânia me chamara para desentupir uma boca-de-lobo), um
homem encapota<strong>do</strong> parou diante da vitrine, observou o<br />
25o z5i<br />
interior da loja iluminada e entrou lentamente, deixan<strong>do</strong><br />
um rastro de lama no chão. Era Rochiram. O cabelo empas-<br />
ta<strong>do</strong> e pentea<strong>do</strong> para trás dava um ar mais sério ao rosto,<br />
agora orna<strong>do</strong> <strong>por</strong> óculos de armação <strong>do</strong>urada. As lentes<br />
esverdeadas escondiam os olhos, e esta era a grande novi-<br />
dade no rosto dele. Rânia ouviu as palavras que esperava: a<br />
dívida <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is irmãos em troca da casa de Zana. No entan-<br />
to, surpreendeu-se quan<strong>do</strong> ele acrescentou: "Seu irmão, o<br />
engenheiro, está plenamente de acor<strong>do</strong>".<br />
Poucos dias depois, um caminhão estacionou em fren-<br />
te da casa e os carrega<strong>do</strong>res fizeram a mudança para o ban-<br />
galô de Rânia. Zana passou a chave na <strong>por</strong>ta <strong>do</strong> quarto, e <strong>do</strong><br />
balcão ela viu a lona verde que cobria os móveis de sua inti-<br />
midade. Viu o altar e a santa de suas noites devotas, e viu<br />
to<strong>do</strong>s os objetos de sua vida, antes e depois <strong>do</strong> casamento<br />
com Halim. Nada restou na cozinha nem na sala. Quan<strong>do</strong><br />
ela desceu, a casa parecia um abismo. Caminhou pela sala<br />
vazia e pendurou a fotografia de Galib na parede marcada<br />
pela forma <strong>do</strong> altar. Nas paredes nuas, manchas claras assi-<br />
nalavam as coisas ausentes.<br />
Eu fazia as compras e Zana cozinhava no fogareiro, co-<br />
mo na época <strong>do</strong> restaurante <strong>do</strong> pai. Ela caminhava às tontas<br />
e hesitava em frente da <strong>por</strong>ta <strong>do</strong> quarto de Domingas. Pas-<br />
sava uns minutos assim, às vezes entrava, deitava-se na<br />
rede encardida em que Omar se esparramava no fim das<br />
noites de esbórnia. Esperava a visita que nunca veio.<br />
Zana partiu sem conhecer o desfecho. Levou para o<br />
bangalô da fïlha a rede e to<strong>do</strong>s os objetos de Omar, a foto-<br />
grafia <strong>do</strong> pai e a mobília <strong>do</strong> aposento. Deixou apenas a rou-<br />
pa de Halim pendurada numa arara de metal enferruja<strong>do</strong>.<br />
Fiquei sozinho na casa, eu e as sombras <strong>do</strong>s que aqui<br />
moraram. Ironia, ser o senhor absoluto, mesmo <strong>por</strong> pouco<br />
tempo, de um belo sobra<strong>do</strong> nas re<strong>do</strong>ndezas <strong>do</strong> Manaus Har-<br />
bour. O <strong>do</strong>no das paredes, <strong>do</strong> teto, <strong>do</strong> quintal e até <strong>do</strong>s ba-<br />
nheiros. Pensei em Yaqub, me lembrei <strong>do</strong> retrato <strong>do</strong> jovem<br />
oficial, cujo rosto altivo projetava um sorriso no futuro.<br />
Ela se ausentou <strong>por</strong> mais de uma semana; reapareceu<br />
bem cedinho num <strong>do</strong>mingo, o braço esquer<strong>do</strong> outra vez en-<br />
gessa<strong>do</strong>. Rânia me pediu que cuidasse da mãe enquanto ia<br />
ao merca<strong>do</strong>. "Chama uma dessas meninas <strong>do</strong> cortiço para<br />
fazer a faxina e não deixa a Zana ficar sozinha", ela disse.<br />
Não chamei ninguém, Zana não queria estranhos na<br />
casa. Subiu, arejou o quarto dela, pegou as calças <strong>do</strong> fina-<br />
<strong>do</strong> Halim e as pendurou na tipóia. Eu a vi ajoelhada, no<br />
meio <strong>do</strong> quarto de Omar, suplican<strong>do</strong> a Deus que o filho vol-<br />
tasse. Oran<strong>do</strong>, em êxtase de fervor, para que Omar não<br />
morresse. Vi o contorno escuro nos olhos embacia<strong>do</strong>s, alon-<br />
ga<strong>do</strong>s pelas sobrancelhas. O sofrimento de tanta saudade<br />
de Halim e <strong>do</strong> Caçula diluía a beleza <strong>do</strong> rosto dela. Não a<br />
ouvi pronunciar o nome de Yaqub. O filho distante, que<br />
abraçara um destino glorioso, fora bani<strong>do</strong> de sua fala. De-<br />
pois recusou minha ajuda para descer, disse que queria<br />
ficar sozinha no alpendre, que eu não me preocupasse com<br />
ela. Entrei no meu quarto, a leitura de um <strong>livro</strong> me distraiu.<br />
Quan<strong>do</strong> vi o rosto de Rânia na janela, percebi que Zana
havia sumi<strong>do</strong>. Vasculhei a casa toda, arrombei a <strong>por</strong>ta <strong>do</strong><br />
quarto e só fui encontrá-la num lugar esqueci<strong>do</strong> <strong>do</strong> quin-<br />
tal: o antigo galinheiro, onde Galib engordara as aves <strong>do</strong><br />
252 253<br />
cardápio <strong>do</strong> Biblos. Zana estava deitada sobre folhas secas, O 11<br />
corpo coberto com a roupa de Halim, a mão <strong>do</strong> braço enges-<br />
sa<strong>do</strong> já arroxeada. Pedi ajuda aos vizinhos para carregá-la '<br />
na minha rede. Ela esperneava, gritava: "Não quero sair<br />
daqui, Rânia... Não adianta, não vou vender minha casa,<br />
sua ingrata.. . Meu filho vai voltar". Não parou de esgoelar,<br />
irritada com a mudez da filha, furiosa com a única frase que<br />
Rânia disse com calma: "A senhora vai se acostumar com a<br />
minha casa, mãe".<br />
Ah, <strong>foi</strong> pior. Tentou se soltar de mim, <strong>por</strong> pouco não<br />
caiu da rede, e <strong>foi</strong> um deus-nos-acuda até conseguirmos<br />
colocá-la dentro <strong>do</strong> carro. Ela chorou, como se sentisse<br />
uma <strong>do</strong>r terrível. Nunca mais voltou. Deitou-se em outro<br />
quarto, longe <strong>do</strong> <strong>por</strong>to, no lar que não era para ela.<br />
Depois eu soube da hemorragia interna, e ainda a visi-<br />
tei numa clínica no bairro de Rânia. Ela me reconheceu,<br />
ficou me olhan<strong>do</strong>. Então soprou nomes e palavras em árabe<br />
que eu conhecia: a vida, Halim, meus filhos, Omar. Notei no<br />
seu rosto o esforço, a força para murmurar uma frase em<br />
<strong>por</strong>tuguês, como se a partir daquele momento apenas a lín-<br />
gua materna fosse sobreviver. Mas quan<strong>do</strong> Zana procurou<br />
minhas mãos, conseguiu balbuciar: Nael. . . queri<strong>do</strong>. . .<br />
Ela morreu quan<strong>do</strong> o filho caçula estava foragi<strong>do</strong>. Não<br />
chegou a ver a reforma da casa, a morte a <strong>livro</strong>u desse e de<br />
' outros assombros. Os azulejos <strong>por</strong>tugueses com a imagem<br />
da santa padroeira foram arranca<strong>do</strong>s. E o desenho sóbrio<br />
da fachada, harmonia de retas e curvas, <strong>foi</strong> tapa<strong>do</strong> <strong>por</strong> um<br />
a ecletismo delirante. A fachada, que era razoável, tornou-se<br />
uma máscara de horror, e a idéia que se faz de uma casa<br />
desfez-se em pouco tempo.<br />
Na noite da inauguração da Casa Rochiram, um car-<br />
naval de quinquilharias im<strong>por</strong>tadas de Miami e <strong>do</strong> Panamá<br />
encheu as vitrïnes. Foi uma festa de estron<strong>do</strong>, e na rua uma<br />
fila de carros pretos despejava políticos e militares de alta<br />
patente. Diz que veio gente im<strong>por</strong>tante de Bras~lia e de<br />
outras cidades, íntimos de Rochiram. Só não vi gente da<br />
nossa rua, nem os Reinoso. Do la<strong>do</strong> de fora, a multidão bo-<br />
quiaberta admirava as silhuetas brindan<strong>do</strong> nas salas fos-<br />
forescentes. Muitos permaneceram no sereno, esperaram o<br />
254 255<br />
amanhecer e abocanharam as sobras da festança. Manaus<br />
crescia muito e aquela noite <strong>foi</strong> um <strong>do</strong>s marcos <strong>do</strong> fausto<br />
que se anunciava.<br />
No projeto da reforma, o arquiteto deixou uma pas-<br />
sagem lateral, um corre<strong>do</strong>rzinho que conduz aos fun<strong>do</strong>s<br />
da casa. A área que me coube, pequena, colada ao cortiço,<br />
é este quadra<strong>do</strong> no quintal.<br />
"Tua herança", murmurou Rânia.<br />
A bondade tarda mas não falha? Soube depois que Ya-<br />
qub quis assim; quis facilitar minha vida, como quis arrui-<br />
nar a <strong>do</strong> irmão. Ele havia escrito uma carta para Zana, re-<br />
velan<strong>do</strong> que sentira muito a morte de Domingas, a única<br />
pessoa a quem confiara certos segre<strong>do</strong>s, a única que não se
separara dele durante a infância. Na vida <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is havia<br />
coisas em comum que Zana teimou em ignorar. Ele não<br />
explicou <strong>por</strong> que falhara a construção <strong>do</strong> hotel, apenas es-<br />
creveu que agora seria mais sensato vender a casa e uma<br />
boa parte <strong>do</strong> terreno a Rochiram. Se isso não fosse feito,<br />
Omar sofreria as conseqüências.<br />
Rânia não mostrou a carta à mãe. Ela não sabia, nunca<br />
soube se havia um acor<strong>do</strong> entre Yaqub e Rochiram. Enten-<br />
deu que a venda da casa pouparia Omar. Vi Rânia insistir<br />
para que a mãe assinasse a escritura de venda.<br />
"Estás louca? A minha casa... para um aventureiro?<br />
Olha o que ele fez com o Omar."<br />
"Assina, mama, para o bem <strong>do</strong>s teus filh.os.. . para evi-<br />
tar o pior. E o pior a gente nunca sabe..."<br />
Mas Zana só assinou na clínica, e deve ter si<strong>do</strong> a últi-<br />
ma tentativa para reconciliar os filhos.<br />
Depois Rânia soube que Yaqub, no dia em que havia<br />
si<strong>do</strong> espanca<strong>do</strong>, ia passar uma noite no hospital em Ma-<br />
naus. <strong>Este</strong>ve lá, mas <strong>foi</strong> obriga<strong>do</strong> a antecipar a viagem de<br />
volta a São Paulo. Saiu para o aero<strong>por</strong>to na boca da noite,<br />
escondi<strong>do</strong>, acompanha<strong>do</strong> <strong>por</strong> um médico. É que no meio<br />
da tarde daquele mesmo dia, o Caçula irrompeu no hospi-<br />
tal e <strong>por</strong> pouco não agrediu outra vez o irmão. Yaqub gritou<br />
ao ver Omar na enfermaria. O Caçula <strong>foi</strong> expulso <strong>do</strong> hos-<br />
pital, arrastaram-no na marra até a rua, e ele saiu camba-<br />
lean<strong>do</strong> no mormaço. Ainda o viram entrar na Cabacense<br />
para tomar um trago. Contou numa roda de homens a re-<br />
cente façanha, contou com uma voz de escárnio, embrute-<br />
cida. Depois desapareceu. Diz que ainda procurou a Pau-<br />
Mulato no <strong>por</strong>to da Escadaria, e só não o agarraram <strong>por</strong>que<br />
Rânia agiu. Subornou policiais e delega<strong>do</strong>s, ofereceu-lhes<br />
cédulas em envelopes lacra<strong>do</strong>s, dizen<strong>do</strong>: que deixassem<br />
Omar em paz, livre. Que o deixassem escapar. Cid Tannus<br />
e Talib enviaram cartas a Yaqub, pediram-lhe que per<strong>do</strong>asse<br />
Omar, ou pelo menos esquecesse tu<strong>do</strong>. Yaqub não respon-<br />
deu a ninguém. Rânia logo percebeu que o irmão, em São<br />
Paulo, contratara advoga<strong>do</strong>s e coordenava a perseguição<br />
ao Caçula. Havia testemunhas de sobra: médicos e enfer-<br />
meiras que evitaram a agressão no hospital. E também o<br />
exame de corpo de delito a que Yaqub <strong>foi</strong> submeti<strong>do</strong> antes<br />
de viajar para São Paulo.<br />
Aos poucos, ela <strong>foi</strong> descobrin<strong>do</strong> que o irmão distante<br />
havia calcula<strong>do</strong> o momento adequa<strong>do</strong> para agir. Yaqub es-<br />
perou a mãe morrer. Então, com truz de pantera, atacou. A<br />
fuga <strong>foi</strong> pior para Omar. Agora ele não tentava escapar às<br />
garras da mãe, mas ao cerco de um oficial de justiça. Pulava<br />
de jirau em jirau, pernoitan<strong>do</strong> em diferentes abrigos, tetos<br />
256 I 257<br />
~i<br />
de amigos de farra. Sabia que ia chover fogo, sabia-se em-<br />
pareda<strong>do</strong>. O que lhe dera na telha? Sem mais nem menos<br />
ele aban<strong>do</strong>nava o esconderijo e se aventurava <strong>por</strong> aí. Cid<br />
Tannus o viu num bar no alto da Colina, aonde costumava<br />
ir com a Pau-Mulato. Depois soube que ele se hospedara<br />
na Pensão <strong>do</strong>s Navegantes, dan<strong>do</strong> festinhas para meninas<br />
<strong>do</strong> interior. Rânia começou a receber visitas de <strong>do</strong>nos de<br />
pousadas e pensões. Visitas e ameaças. As dívidas de Omar,
a algazarra que fez, diziam. Ele chegava de madrugada,<br />
entrava com uma menina no colo, os <strong>do</strong>is zurravam até o<br />
amanhecer, tiravam o sono <strong>do</strong>s hóspedes. Da próxima vez,<br />
chamariam a polícia. Sumiu da Pensão <strong>do</strong>s Navegantes,<br />
sumiu de to<strong>do</strong>s os tugúrios. Rânia perdeu a pista <strong>do</strong> irmão,<br />
pensou que ele podia estar em alguina praia ou lago, aquie-<br />
ta<strong>do</strong>, esperan<strong>do</strong> que ela limpasse seu nome. Agora era pro-<br />
cura<strong>do</strong> <strong>por</strong> vários delitos, choviam queixas contra ele, <strong>por</strong>-<br />
que Rânia não podia quitar todas as dívidas <strong>do</strong> irmão. Ela<br />
sabia: tinha que poupar dinheiro para o que viria depois.<br />
12<br />
Ce<strong>do</strong> ou tarde, o tempo e o acaso acabam <strong>por</strong> alcançar<br />
a to<strong>do</strong>s. O tempo não apagara um verso de Laval pinta<strong>do</strong><br />
no piso <strong>do</strong> coreto da praça das Acácias. Alguns anos de-<br />
pois, num <strong>do</strong>s primeiros dias de abril, um lance <strong>do</strong> acaso<br />
uniu o destino de Laval ao de Omar.<br />
Eu havia prometi<strong>do</strong> entregar a Rânia um trabalho ma-<br />
çante que ela havia me encomenda<strong>do</strong>. Encontrei a loja fe-<br />
chada, ninguém soube me dizer <strong>por</strong> onde ela andava. Nos<br />
últimos dias, fechava a loja na hora <strong>do</strong> almoço e saía em<br />
busca <strong>do</strong> irmão. Naquela tarde de abril já chuviscava quan-<br />
<strong>do</strong> Rânia o avistou na praça das Acácias. Ficou paralisada.<br />
Estava magro, meio amarelão, barba de uma semana, o ca-<br />
belo crespo com jeito de juba. Os braços cheios de arra-<br />
nhões, a testa avolumada <strong>por</strong> calombos. Os olhos fun<strong>do</strong>s e<br />
acesos davam a impressão de um ser à deriva, mesmo sem<br />
ter perdi<strong>do</strong> totalmente a vontade ou a força de recuperar<br />
uma coisa perdida. Rânia não teve tempo de se aproximar<br />
259<br />
dele. Ouviu estampi<strong>do</strong>s, viu pessoas correrem, largan<strong>do</strong><br />
guarda-chuvas que quicavam nos caminhos da praça. Eram<br />
três policiaïs, e logo cinco, muitos. Uma caçada. Viu o Caçu-<br />
la agacha<strong>do</strong>, atrás <strong>do</strong> tronco de um mulateiro. Os policiais<br />
farejavam <strong>por</strong> alï, to<strong>do</strong>s de arma em punho. Os tiros ces-<br />
saram. Queriam matá-lo ou só lhe dar um susto? Agora<br />
ventava com rajadas de chuva, e a praça das Acácias era<br />
um palco só. Sabiam que Omar podia reagir. E reagiu, à<br />
sua maneira: deu uma risada na cara <strong>do</strong>s meganhas. A co-<br />
ronhada que levou no rosto antecipou sua entrada no in-<br />
ferno. Caiu de costas e <strong>foi</strong> puxa<strong>do</strong>, arrasta<strong>do</strong> até a viatura.<br />
Rânia correu ao encontro <strong>do</strong> irmão, viu no rosto dele um<br />
fio vermelho e grosso que a água não apagava. Discutiu<br />
com os policiais, quis saber aonde iam levá-lo, <strong>foi</strong> repelida<br />
brutalmente. No presídio, ele passou algumas semanas<br />
incomunicável. Ela e um advoga<strong>do</strong> tentaram falar com<br />
Omar, mas a violência foï implacável. Enviava sacolas de<br />
presentes aos carcereiros, pedia notícias <strong>do</strong> irmão e supli-<br />
cava que não o torturassem. Então ela soube que o irmão<br />
passara uns dias encarcera<strong>do</strong> no Coman<strong>do</strong> Militar, e eu<br />
intuí que a sua amizade com Laval era uma forma de con-<br />
denação política.<br />
Na manhã em que ele saiu para o Tribunal, escolta<strong>do</strong><br />
<strong>por</strong> policiais à paisana, Rânia percebeu que estava sozinha.<br />
Não pôde abraçá-lo no Tribunal, mas o ouviu relatar uma<br />
brusca descida ao inferno. Os dias eram como as noites, ca-<br />
da dia era a extensão mais sombria da noite. Quan<strong>do</strong> cho-<br />
via muito, as celas inundavam, Omar cochilava de pé, a
água suja cobria-lhe os joelhos, e os muçus, ao lhe roçarem<br />
as pernas, davam-lhe mais asco <strong>do</strong> que me<strong>do</strong>. Sentia repug-<br />
nância da pele viscosa dessas enguias-d'água-<strong>do</strong>ce, pardas,<br />
cobertas de lo<strong>do</strong>, que serpenteavam no piso da cela quan-<br />
<strong>do</strong> a água escoava. Ainda bem que não enxergava nada nos<br />
dias escuros. As vezes, na janelinha que rasga a parede, a<br />
palma de um açaizeiro balançava e ele imaginava o céu e<br />
suas cores, o rio Negro, a vastidão <strong>do</strong> horizonte, a liberdade,<br />
a vida. Tapava os ouvi<strong>do</strong>s, era insu<strong>por</strong>tável ouvir o zumbi<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s insetos, os gritos <strong>do</strong>s detentos, tu<strong>do</strong> não parecia ter fim<br />
nem começo. Ela não imaginava como o irmão vivia numa<br />
cela sórdida daquele presídio que ela costumava olhar, qua-<br />
se <strong>por</strong> distração, quan<strong>do</strong> atravessava as pontes metálicas<br />
para vender sandálias e roupa aos atacadistas <strong>do</strong>s bairros<br />
mais populosos de Manaus.<br />
Omar <strong>foi</strong> condena<strong>do</strong> a <strong>do</strong>is anos e sete meses de re-<br />
clusão. Não podia sair, não teve direito à liberdade condi-<br />
cional. "Só osso e pelanca... Meu irmão não parece huma-<br />
no", contou Rânia, choran<strong>do</strong>. Ela me disse, alterada, que ia<br />
escrever uma carta a Yaqub. "Ele traiu minha mãe, calcu-<br />
lou tu<strong>do</strong> e nos enganou." Foi corajosa: na reclusão que lhe<br />
era vital, na solidão de solteirona para sempre, escreveu a<br />
Yaqub o que ninguém ousara dizer. Lembrou-lhe que a<br />
vingança é mais patética <strong>do</strong> que o perdão. Já não se vinga-<br />
ra ao soterrar o sonho da mãe? Não a viu morrer, não sa-<br />
bia, nunca saberia. Zana havia morri<strong>do</strong> com o sonho dela<br />
soterra<strong>do</strong>, com o pesadelo de uma culpa. Escreveu que ele,<br />
Yaqub, o ressenti<strong>do</strong>, o rejeita<strong>do</strong>, era também o mais bruto,<br />
o mais violento, e <strong>por</strong> isso podia ser julga<strong>do</strong>. Ameaçou des-<br />
prezá-lo para sempre, queimar todas as suas fotografias e<br />
devolver as jóias e roupas que ganhara, caso ele não renun-<br />
ciasse à perseguição de Omar. Cumpriu à risca as ameaças,<br />
260 ~~ 26i<br />
<strong>por</strong>que Yaqub calculou que o silêncio seria mais eficaz <strong>do</strong><br />
que uma resposta escrita.<br />
Foi nessa época que eu me afastei de Rânia. Eu não<br />
queria. Gostava dela, era atraí<strong>do</strong> pelo contraste de uma mu-<br />
lher assim, tão humana e tão fora <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, tão etérea e<br />
tão ambiciosa ao mesmo tempo. As lembranças da noite que<br />
passamos juntos, o ar<strong>do</strong>r daquele encontro ainda me davam<br />
arrepios. Mas ela se ressentiu de mim, ofendeu-se com a<br />
minha omissão, com o meu desprezo pelo irmão encarce-<br />
ra<strong>do</strong>. No fun<strong>do</strong>, sabia o que eu remoía, o que me comia <strong>por</strong><br />
dentro. Devia ter conhecimento <strong>do</strong> que Omar fizera com a<br />
minha mãe, de to<strong>do</strong>s os agravos a nós <strong>do</strong>is. Parei de traba-<br />
lhar com ela, nunca mais escrevi cartas comerciais, nem saí<br />
corren<strong>do</strong> para limpar boca-de-lobo, empilhar caixas, vender<br />
coisas de <strong>por</strong>ta em <strong>por</strong>ta. Me distanciei <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> das mer-<br />
ca<strong>do</strong>rias, que não era o meu, nunca tinha si<strong>do</strong>.<br />
Omar deixou o presídio um pouco antes de cumprir a<br />
pena. Saiu à custa <strong>do</strong>s níqueis acumula<strong>do</strong>s <strong>por</strong> Rânia. Talib<br />
o encontrou uma vez, e diz que só falava na mãe. Chorou,<br />
com desespero, quan<strong>do</strong> o viúvo quis acompanhá-lo até o<br />
cemitério para visitar o túmulo de Zana.<br />
Rânia fez de tu<strong>do</strong> para se aproximar dele, mas Omar<br />
se esquivava, fugia da irmã e de to<strong>do</strong>s os vizinhos. Duran-<br />
te uns meses ainda <strong>foi</strong> visto aqui e ali, perambulan<strong>do</strong> à
noite pela cidade. Os malabarismos que Rânia fez para en-<br />
viar-lhe dinheiro, tentan<strong>do</strong> atraí-lo, reconquistá-lo. Sonha-<br />
va com a presença <strong>do</strong> irmão em sua casa, o quarto onde a<br />
mãe <strong>do</strong>rmira seria destina<strong>do</strong> a ele.<br />
T<br />
h<br />
Nas cartas em que Yaqub me enviou, nunca falava <strong>do</strong><br />
irmão nem de Rânia, sequer resvalou no assunto. Eram car-<br />
tas breves e esparsas, em que sempre me pedia que cobrisse<br />
de flores o túmulo de Halim e o de minha mãe. Perguntava<br />
se eu necessitava de alguma coisa e quan<strong>do</strong> ia visitá-lo em<br />
São Paulo. Por mais de vinte anos adiei a visita. Não quis ver<br />
o mar tão prometi<strong>do</strong>. Eu já havia joga<strong>do</strong> no lixo as folhas <strong>do</strong><br />
projeto de Yaqub que Omar rasgara com fúria. Nunca me<br />
interessei pelos desenhos da estrutura com suas malhas de<br />
ferro, tampouco pelos <strong>livro</strong>s de matemática que Yaqub ha-<br />
via me da<strong>do</strong> com tanto orgulho. Queria distância de to<strong>do</strong>s<br />
esses cálculos, da engenharia e <strong>do</strong> progresso ambiciona<strong>do</strong><br />
<strong>por</strong> Yaqub. Nas últimas cartas ele só falava no futuro, e até<br />
me cobrou uma resposta. O futuro, essa falácia que persiste.<br />
Só guardei um único envelope. Aliás, nem isso: uma foto-<br />
grafia em que ele e minha mãe estão juntos, rin<strong>do</strong>, na canoa<br />
atracada perto <strong>do</strong> Bar da Margem. Ela quase a<strong>do</strong>lescente,<br />
ele quase criança. Recortei o rosto de minha mãe e guardei<br />
esse pedaço de papel precioso, a única imagem que restou<br />
<strong>do</strong> rosto de Domingas. Posso reconhecer seu riso nas pou-<br />
cas vezes que ela riu, e imaginar seus olhos graú<strong>do</strong>s, rasga-<br />
<strong>do</strong>s e perdi<strong>do</strong>s em algum lugar <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.<br />
Lembrava - ainda me lembro - <strong>do</strong>s poucos momentos<br />
em que eu e Yaqub estivemos juntos, da presença dele no<br />
meu quarto, quan<strong>do</strong> a<strong>do</strong>eci. Mas bem antes de sua morte,<br />
há uns cinco ou seis anos, a vontade de me distanciar <strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>is irmãos <strong>foi</strong> muito mais forte <strong>do</strong> que essas lembranças.<br />
A loucura da paixão de Omar, suas atitudes desme-<br />
suradas contra tu<strong>do</strong> e to<strong>do</strong>s neste mun<strong>do</strong> não foram menos<br />
danosas <strong>do</strong> que os projetos de Yaqub: o perigo e a sordidez<br />
262<br />
de sua ambição calculada. Meus sentimentos de perda per-<br />
tencem aos mortos. Halim, minha mãe. Hoje, penso: sou e<br />
não sou filho de Yaqub, e talvez ele tenha compartilha<strong>do</strong><br />
comigo essa dúvida. O que Halim havia deseja<strong>do</strong> com tan-<br />
to ar<strong>do</strong>r, os <strong>do</strong>is irmãos realizaram: nenhum teve filhos. Al-<br />
guns <strong>do</strong>s nossos desejos só se cumprem no outro, os pesa-<br />
delos pertencem a nós mesmos.<br />
Naquela época, quan<strong>do</strong> Omar saiu <strong>do</strong> presídio, eu ain-<br />
da o vi num fim de tarde. Foi o nosso último encontro.<br />
1.<br />
O aguaceiro era tão intenso que a cidade fechou suas<br />
<strong>por</strong>tas e janelas bem antes <strong>do</strong> anoitecer. Lembro-me de que<br />
estava ansioso naquela tarde de meio-céu. Eu acabara de<br />
dar minha primeira aula no liceu onde havia estuda<strong>do</strong> e<br />
vim a pé para cá, sob a chuva, observan<strong>do</strong> as valetas que<br />
dragavam o lixo, os leprosos amontoa<strong>do</strong>s, encolhi<strong>do</strong>s de-<br />
baixo <strong>do</strong>s outizeiros. Olhava com assombro e tristeza a ci-<br />
dade que se mutilava e crescia ao mesmo tempo, afastada<br />
<strong>do</strong> <strong>por</strong>to e <strong>do</strong> rio, irreconciliável com o seu passa<strong>do</strong>.<br />
Um relâmpago havia provoca<strong>do</strong> um curto-circuito na
Casa Rochiram. O bazar indiano tornara-se um breu na<br />
' tarde sombria, coberta de nuvens baixas e pesadas. Entrei<br />
no meu quarto, este mesmo quarto nos fun<strong>do</strong>s da casa de<br />
. outrora. Trouxera para perto de mim o bestiário esculpi<strong>do</strong><br />
<strong>por</strong> minha mãe. Era tu<strong>do</strong> o que restara dela, <strong>do</strong> trabalho<br />
que lhe dava prazer: os únicos gestos que lhe devolviam<br />
durante a noite a dignidade que ela perdia durante o dia.<br />
Assim pensava ao observar e manusear esses bichinhos<br />
de pau-rainha, que antes me pareciam apenas miniaturas<br />
imitadas da natureza. Agora meu olhar os vê como seres<br />
estranhos.<br />
Eu tinha começa<strong>do</strong> a reunir, pela primeira vez, os escri-<br />
tos de Antenor Laval, e a anotar minhas conversas com Ha-<br />
lim. Passei parte da t,~rde com as palavras <strong>do</strong> poeta inédito<br />
e a voz <strong>do</strong> amante de Zana. Ia de um para o outro, e essa<br />
alternância - o jogo de lembranças e esquecimentos -<br />
me dava prazer.<br />
O toró que cobria Manaus, trégua na quentura <strong>do</strong><br />
equa<strong>do</strong>r, me aliviapa. Frutas e folhas boiavam nas poças que<br />
cercavam a <strong>por</strong>ta <strong>do</strong> meu quarto. Nos fun<strong>do</strong>s, o capim cres-<br />
cera, e a cerca de pau podre, cheia de buracos, não era mais<br />
uma fronteira com o cortiço. Desde a partida de Zana eu ha-<br />
via deixa<strong>do</strong> ao furor <strong>do</strong> sol e da chuva o pouco que restara<br />
das árvores e trepadeiras. Zelar <strong>por</strong> essa natureza significa-<br />
va uma submis~ão ao passa<strong>do</strong>, a um tempo que morria den-<br />
tro de mim.<br />
Ainda chovia, com trovoadas, quan<strong>do</strong> Omar invadiu o<br />
meu refúgio. Aproximou-se <strong>do</strong> meu quarto devagar, um<br />
vulto. Avançou mais um pouco e estacou bem perto da<br />
velha seringueira, diminuí<strong>do</strong> pela grandeza da árvore. Não<br />
pude ver com nitidez o seu rosto. Ele ergueu a cabeça para<br />
a copa que cobria o quintal. Depois virou o corpo, olhou<br />
para trás: não havia mais alpendre, a rede vermelha não O<br />
esperava. Um muro alto e sóli<strong>do</strong> separava o meu canto da<br />
Casa Rochiram. Ele ousou e veio avançan<strong>do</strong>, os pés descal-<br />
ços no aguaçal. Um homem de meia-idade, o Caçula. E já<br />
quase velho. Ele me encarou. Eu esperei. Queria que ele<br />
confessasse a desonra, a humilhação. Uma palavra bastava,<br />
uma só. O perdão.<br />
26q !1~ 265<br />
Omar titubeou. Olhou para mim, emudeci<strong>do</strong>. Assim fi-<br />
cou <strong>por</strong> um tempo, o olhar cortan<strong>do</strong> a chuva e a janela, para<br />
além de qualquer ângulo ou ponto fixo. Era um olhar à de-<br />
riva. Depois recuou lentamente, deu as costas e <strong>foi</strong> embora.<br />
266<br />
se passaram mais de trinta anos, quan-<br />
<strong>do</strong> quase to<strong>do</strong>s já estão mortos, é que<br />
o narra<strong>do</strong>r parece motiva<strong>do</strong> a olhar<br />
para eles. Mas o relato que escreve -<br />
se é corroí<strong>do</strong> pela dúvida e se dá to<strong>do</strong>s<br />
os sinais de empenho em descobrir<br />
uma verdade qualquer - não pare-<br />
ce amenizar o silêncio que o habita.<br />
O romance de Milton Hatoum im-<br />
pressiona pela verticalidade e deli-<br />
cadeza na composição <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> e<br />
<strong>do</strong>s personagens. Há um jogo minu-
cioso com a linguagem cujo resulta-<br />
<strong>do</strong> é a impossibilidade de estabelecer<br />
um senti<strong>do</strong> prévio à narrativa. Esse<br />
senti<strong>do</strong> será, aos poucos, construí<strong>do</strong><br />
no próprio ato da leitura.<br />
1~ EDIçÁO (2000] 4 reimpressões<br />
ESTA OBRA FOI COMPOSTA POR RAUL LOUREIRO EM MERIDIEN, TEVE SEUS<br />
FILMES CERADOS NO BUREAU 34 E FOI IMPRESSA PELA DONNELLEY<br />
COCHRANE<br />
GR?,FICA EDITORA DO BIZASIL EM OFF-SET SOBRE PAPEL PÓLEN SOFT<br />
DA COMPANHIA SUZANO PARA A EDITORA SCHWARCZ EM JUNHO DE 2001<br />
Milton Hatoum nasceu em Ma-<br />
naus, em 1952. É professor de litera-<br />
tura na Universidade Federal <strong>do</strong> Ama-<br />
zonas. Relato de um certo Oriente, que<br />
lançou em 1989, recebeu o prêmio Ja-<br />
buti de melhor romance e <strong>foi</strong> publi-<br />
ca<strong>do</strong> nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e em vários<br />
países da Europa.