LISPECTOR, Clarice - Perto do Coração Selvagem.pdf - No-IP
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declarava o pai, mas se ela não se zangar te conto seus<br />
projetos. Me disse que quan<strong>do</strong> crescer vai ser herói...<br />
O homem riu, riu, riu. Parou de repente, segurou o<br />
queixo de Joana e enquanto ele segurava ela não podia<br />
mastigar:<br />
— Não vai chorar pelo segre<strong>do</strong> revela<strong>do</strong>, não é, guria?<br />
Depois falava-se sobre coisas que certamente tinham<br />
aconteci<strong>do</strong> antes dela nascer. Às vezes mesmo não eram<br />
sobre o tipo de coisas que acontecem, só palavras — mas<br />
também de antes dela nascer. Ela preferia mil vezes que<br />
estivesse choven<strong>do</strong> porque seria muito mais fácil <strong>do</strong>rmir sem<br />
me<strong>do</strong> <strong>do</strong> escuro. Os <strong>do</strong>is homens buscavam os chapéus para<br />
sair; então, ela se levantou e puxou o paletó <strong>do</strong> pai:<br />
— Fica mais...<br />
Os <strong>do</strong>is homens se entreolharam e houve um instante<br />
em que ela não sabia se eles haviam de ficar ou de ir. Mas<br />
quan<strong>do</strong> o pai e o amigo permaneceram um pouco sérios e<br />
depois riram juntos ela soube que iam ficar. Pelo menos até<br />
que ela tivesse bastante sono para não se deitar sem ouvir<br />
chuva, sem ouvir gente, pensan<strong>do</strong> no resto da casa negra,<br />
vazia e calada. Eles sentaram e fumaram. A luz começava a<br />
piscar nos seus olhos e no dia seguinte, mal acordasse, iria<br />
espiar o quintal <strong>do</strong> vizinho, ver as galinhas porque ela hoje<br />
comera galinha assada.<br />
— Eu não podia esquecê-la, dizia o pai. Não que vivesse<br />
a pensar nela. Uma vez ou outra um pensamento, como um<br />
lembrete para pensar mais tarde. Mais tarde vinha e eu não<br />
chegava a refletir seriamente. Era só aquela fisgada ligeira,<br />
sem <strong>do</strong>r, um ah! não esboça<strong>do</strong>, um instante de meditação<br />
vaga e esquecimento depois. Chamava-se... — olhou para<br />
Joana — chamava-se Elza. Me lembro que até lhe disse: Elza<br />
é um nome como um saco vazio. Era fina, enviesada — sabe<br />
como, não é? —, cheia de poder. Tão rápida e áspera nas<br />
conclusões, tão independente e amarga que da primeira vez<br />
em que falamos chamei-a de bruta! Imagine... Ela riu, depois<br />
ficou séria. Naquele tempo eu me punha a imaginar o que ela<br />
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