14.04.2013 Views

LISPECTOR, Clarice - Perto do Coração Selvagem.pdf - No-IP

LISPECTOR, Clarice - Perto do Coração Selvagem.pdf - No-IP

LISPECTOR, Clarice - Perto do Coração Selvagem.pdf - No-IP

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

diria: tenho cada vez mais força, estou crescen<strong>do</strong>, serei<br />

moça? Nem a eles, nem a ninguém. Porque também a<br />

nenhum poderei perguntar: diga-me, como são as coisas? e<br />

ouvir: também não sei, como o professor respondera. O<br />

professor ressurgiu à sua frente como no último instante,<br />

inclina<strong>do</strong> para ela, assusta<strong>do</strong> ou feroz, não o sabia, mas<br />

recuan<strong>do</strong>, isso, recuan<strong>do</strong>. A resposta, sentiu, não importava<br />

tanto. O que valia era que a indagação fora aceita, podia<br />

existir. Sua tia retrucaria, surpresa: que coisas? E se<br />

chegasse a entender, certamente diria: são assim, assim e<br />

assim. Com quem Joana falaria agora das coisas que existem<br />

com a naturalidade com que se fala das outras, das que estão<br />

apenas?<br />

Coisas que existem, outras que apenas estão. . .<br />

Surpreendeu-se com o pensamento novo, inespera<strong>do</strong>, que<br />

viveria dagora em diante como flores sobre o túmulo. Que<br />

viveria, que viveria, outros pensamentos nasceriam e viveriam<br />

e ela própria estava mais viva. A alegria cortou-lhe o coração,<br />

feroz, iluminou-lhe o corpo. Apertou o copo entre os de<strong>do</strong>s,<br />

bebeu água com os olhos fecha<strong>do</strong>s como se fosse vinho,<br />

sangrento e glorioso vinho, o sangue de Deus. Sim, a nenhum<br />

deles explicaria que tu<strong>do</strong> mudava lentamente... Que ela<br />

guardara o sorriso como quem apaga finalmente a lâmpada e<br />

resolve deitar-se. Agora as criaturas não eram admitidas no<br />

seu interior, nele fundin<strong>do</strong>-se. As relações com as pessoas<br />

tornavam-se cada vez mais diferentes das relações que<br />

mantinha consigo mesma. A <strong>do</strong>çura da infância desaparecia<br />

nos seus últimos traços, alguma fonte estancava para o<br />

exterior e o que ela oferecia aos passos <strong>do</strong>s estranhos era<br />

areia incolor e seca. Mas ela caminhava para frente, sempre<br />

para a frente como se anda na praia, o vento alisan<strong>do</strong> o rosto,<br />

levan<strong>do</strong> para trás os cabelos.<br />

Como entregar-lhes: é a segunda vertigem num só dia?<br />

mesmo que ardesse por confiar o segre<strong>do</strong> a alguém. Porque<br />

ninguém mais na sua vida, ninguém mais talvez haveria de<br />

lhe dizer, como o professor: vive-se e morre-se. To<strong>do</strong>s<br />

esqueciam, to<strong>do</strong>s só sabiam brincar. Olhou-os. Sua tia<br />

brincava com uma casa, uma cozinheira, um mari<strong>do</strong>, uma<br />

44

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!