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LISPECTOR, Clarice - Perto do Coração Selvagem.pdf - No-IP

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como num vácuo sem apoio. Espiava as costas duras de sua<br />

tia, suas mãos — <strong>do</strong>is animais escuros pulan<strong>do</strong> sobre as<br />

teclas amarelas <strong>do</strong> piano. Ela se voltava e dizia-lhe,<br />

conceden<strong>do</strong> a frase por pura euforia, levemente, como quem<br />

joga flores:<br />

— Que é que você tem? Vou tocar uma coisa mais<br />

alegre...<br />

Vinha uma daquelas valsas de salão, ingênuas e<br />

nervosas, as quais não se lembrava de ter ouvi<strong>do</strong> mas que se<br />

uniam misteriosamente a velhos trechos em sua memória.<br />

— Isso não, tia, isso não...<br />

Era cômico demais. Ele tinha me<strong>do</strong>. Pedir perdão por<br />

não se extasiar diante de sua música, pedir perdão por achála<br />

insuportável desde pequeno com aquele seu cheiro de<br />

panos velhos, de jóias guardadas, quan<strong>do</strong> a via preparar o<br />

"seu chazinho contra <strong>do</strong>res", quan<strong>do</strong> ela lhe prometia tocar<br />

uma coisa muito bonita se ele estudasse bastante. Reviu-a<br />

sain<strong>do</strong> de casa, o pó branco e leve sobre a pele cinzenta, o<br />

grande decote re<strong>do</strong>n<strong>do</strong> descobrin<strong>do</strong> o pescoço onde as veias<br />

arquejavam, trágicas. Os sapatinhos rasos de menina, o<br />

guarda-chuva usa<strong>do</strong> com aterrorizante desenvoltura, como<br />

bengala. Pedir perdão por desejar — não, não! — que ela<br />

enfim morresse. — Estremeceu, começou a suar. Mas eu não<br />

tenho culpa! Oh! ir embora, fazer o plano <strong>do</strong> livro de direito<br />

civil, afastar-se daquele mun<strong>do</strong> horrível, repugnantemente<br />

íntimo e humano.<br />

— Então lá vai "Gorjeio da Primavera"... — disse prima<br />

Isabel.<br />

Sim, sim. Eu quero a primavera... Ajudai-me. Eu sufoco.<br />

A primavera ridícula era ainda mais primavera e alegria.<br />

— Essa música parece uma rosa azul, disse ela voltada<br />

a meio em sua direção, sorrin<strong>do</strong> levemente maliciosa. <strong>No</strong><br />

rosto seco e rugoso repentinamente, um veio d'água no<br />

deserto, os <strong>do</strong>is pequenos brilhantes tremiam de suas orelhas<br />

murchas, duas pequenas gotas úmidas, cintilantes. Ah, eram<br />

excessivamente frescas e voluptuosas... A velha possuía bens.<br />

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