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a representação da mulher do período colonial em inés del ... - Cielli

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Universi<strong>da</strong>de Estadual de Maringá – UEM<br />

Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350<br />

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A REPRESENTAÇÃO DA MULHER DO PERÍODO COLONIAL EM INÉS DEL<br />

Introdução<br />

ALMA MÍA, DE ISABEL ALLENDE<br />

Bruna Otani Ribeiro (G-UNIOESTE/Cascavel) ∗<br />

∗<br />

Gilmei Francisco Fleck (UNIOESTE/Cascavel)<br />

No atual contexto de novas aproximações entre diferentes nações, a literatura, como<br />

meio de conhecer, explorar, aproximar-se <strong>do</strong> outro, assume um papel ain<strong>da</strong> mais forte e<br />

importante. Primeiro, porque auxilia a integração e a participação no processo e,<br />

segun<strong>do</strong>, porque é um <strong>do</strong>s meios mais sóli<strong>do</strong>s de se estabelecer vínculos, aproximar<br />

distintas culturas, de adquirir conhecimentos que possibilitam ao indivíduo a<strong>da</strong>ptar-se a<br />

uma nova reali<strong>da</strong>de e conhecer o passa<strong>do</strong> <strong>do</strong> qual, hoje, ele vive as consequências. Essa<br />

importância <strong>da</strong> literatura t<strong>em</strong>-se mostra<strong>do</strong> <strong>em</strong> especial fecun<strong>da</strong> também no tocante às<br />

questões <strong>da</strong> posição <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> e suas representações neste mun<strong>do</strong> que, até a pouco<br />

t<strong>em</strong>po, não lhe oferecia espaços de atuação. Fato que fez surgir os primeiros<br />

movimentos f<strong>em</strong>inistas também nesta área <strong>do</strong> conhecimento, numa tentativa, entre<br />

outros aspectos, de evidenciar as representações <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>, condena<strong>da</strong> a uma existência<br />

confina<strong>da</strong> ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>méstico, na arte masculina, assim como de resgatar as poucas<br />

obras escritas por <strong>mulher</strong>es <strong>em</strong> perío<strong>do</strong>s ain<strong>da</strong> <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s pela quase totali<strong>da</strong>de de<br />

escritas masculinas.<br />

Quan<strong>do</strong> tal produção escrita por <strong>mulher</strong>es envolver aspectos referentes ao mo<strong>do</strong><br />

como, <strong>em</strong> socie<strong>da</strong>des cujos valores são, <strong>em</strong> sua maioria, patriarcais, a literatura efetiva a<br />

∗ Bruna Otani Ribeiro- Acadêmica <strong>do</strong> Terceiro ano <strong>da</strong> Graduação <strong>do</strong> curso de Letras<br />

Português/Espanhol <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Estadual <strong>do</strong> Oeste <strong>do</strong> Paraná (UNIOESTE/Cascavel). Participante<br />

<strong>do</strong> curso de extensão “O Narra<strong>do</strong>r – visão e voz na narrativa”, ação <strong>do</strong> Projeto “Estu<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s teorias<br />

cont<strong>em</strong>porâneas de análise literária”, vincula<strong>do</strong> ao programa de extensão PELCA: Programa de Ensino de<br />

Literatura e Cultura.<br />

∗ ∗ Gilmei Francisco Fleck - Professor Adjunto <strong>da</strong> UNIOESTE/Cascavel nas áreas de Literatura e<br />

Cultura Hispânicas. Doutor <strong>em</strong> Letras pela UNESP/Assis. Vice-líder <strong>do</strong> grupo de pesquisa “Confluências<br />

<strong>da</strong> Ficção, História e M<strong>em</strong>ória na Literatura”. Coordena<strong>do</strong>r <strong>do</strong> PELCA: Programa de Ensino de Literatura<br />

e Cultura. E-mails: bruna_otani@hotmail.com;chicofleck@yahoo.com.br


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<strong>representação</strong> <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>, <strong>da</strong>s questões de gênero, <strong>da</strong> valorização e reconhecimento <strong>da</strong>s<br />

produções <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es neste campo <strong>da</strong> cultura <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>, por muito t<strong>em</strong>po, quase<br />

exclusivamente pelos homens, seus reflexos e efeitos serão, certamente, ain<strong>da</strong> mais<br />

abrangentes, poden<strong>do</strong> servir de elo de contato, aproximação e respeito entre homens e<br />

<strong>mulher</strong>es, assim como entre distintos povos, aproximan<strong>do</strong>-se, assim, o momento, <strong>da</strong> luta<br />

f<strong>em</strong>inista, segun<strong>do</strong> defende Oliveira (1999, p. 18), de “inaugurar relações humanas <strong>em</strong><br />

que a aceitação <strong>da</strong> diferença s<strong>em</strong> desigual<strong>da</strong>de reconcilie homens e <strong>mulher</strong>es e ponha<br />

fim ao desencontro <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es consigo mesmas”.<br />

Por outro la<strong>do</strong> cabe destacar o fato de que a literatura não foi o único espaço no qual<br />

a <strong>mulher</strong> foi excluí<strong>da</strong> por muito t<strong>em</strong>po. Para isto basta pensar na própria história – um<br />

território que, uma vez desvincula<strong>do</strong> <strong>da</strong> arte, tornou-se ain<strong>da</strong> mais inacessível à<br />

participação f<strong>em</strong>inina. É nesse espaço que as escritas híbri<strong>da</strong>s de história e ficção<br />

ganham um relevo ain<strong>da</strong> mais acentua<strong>do</strong>, já que se possibilita às <strong>mulher</strong>es, por meio <strong>do</strong><br />

romance histórico, não apenas resgatar a história de <strong>mulher</strong>es e suas condições ao longo<br />

<strong>do</strong>s séculos, mas também de reivindicar seu valor e participação nos eventos cujas<br />

representações s<strong>em</strong>pre as excluíram. Essa <strong>representação</strong> atinge não só a historici<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

luta <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> por uma integração igualitária à socie<strong>da</strong>de patriarcal que a mantinha<br />

enclausura<strong>da</strong>, confina<strong>da</strong> à vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>méstica, como pode revelar a participação ativa, e<br />

muitas vezes decisiva, de certas <strong>mulher</strong>es <strong>em</strong> eventos históricos marcantes <strong>em</strong> cujos<br />

registros oficiais destaca-se e louva-se apenas a participação de homens imortaliza<strong>do</strong>s<br />

pela bravura e corag<strong>em</strong> por meio <strong>do</strong> discurso historiográfico heg<strong>em</strong>ônico.<br />

O caso <strong>da</strong> América latina nesse contexto é singular. Entre as tantas vozes masculinas<br />

latinoamericanas que ganharam projeção mundial com os efeitos <strong>do</strong> boom dessa<br />

literatura a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 60 <strong>do</strong> século XX, encontra-se, desde o princípio, uma<br />

voz f<strong>em</strong>inina: Isabel Allende. De sua vasta produção, que na cont<strong>em</strong>poranei<strong>da</strong>de gera as<br />

mais diversas críticas, quer<strong>em</strong>os nos fixar naquelas que se voltam às leituras <strong>da</strong> história<br />

pela ficção, já que nelas há a possibili<strong>da</strong>de de se reler o passa<strong>do</strong> por meio <strong>da</strong>s visões<br />

excluí<strong>da</strong>s <strong>do</strong> discurso oficial.


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É característica deste perío<strong>do</strong> de internacionalização <strong>da</strong> literatura latinoamericana a<br />

confluência entre a ficção e a história <strong>em</strong> narrativas inova<strong>do</strong>ra que priorizam, a princípio,<br />

o experimentalismo formal e linguístico, e, num segun<strong>do</strong> momento, a junção de mo<strong>del</strong>os<br />

mais tradicionais com aqueles altamente desconstrucionistas instituí<strong>do</strong>s pelo novo<br />

romance histórico latinoamericano e as metaficções historiográficas. Diversas produções<br />

romanescas <strong>da</strong> América se utilizam dessa confluência com a finali<strong>da</strong>de de reler a união<br />

entre os povos nativos <strong>do</strong> nosso continente e os europeus que aqui chegaram. O<br />

processo de colonização, registra<strong>do</strong> na história oficial apenas pela visão européia<br />

(masculina, claro!), é ficcionalmente recria<strong>do</strong>, por diversos escritores, revelan<strong>do</strong> o<br />

ponto de vista <strong>do</strong>s excluí<strong>do</strong>s, marginaliza<strong>do</strong>s pela história, sen<strong>do</strong> alguns <strong>del</strong>es:<br />

<strong>mulher</strong>es, nativos e negros. Inseri<strong>da</strong> nos <strong>do</strong>is grandes contextos dessa produção, boom e<br />

o pós-boom, a escritora Isabel Allende ganhou o mun<strong>do</strong> com suas narrativas que<br />

colocam a <strong>mulher</strong> como grande protagonista de eventos históricos no qual os homens<br />

são, segun<strong>do</strong> a ótica <strong>do</strong> discurso historiográfico, os grandes heróis.<br />

1) Sobre a autora e a obra escolhi<strong>da</strong><br />

De nacionali<strong>da</strong>de chilena, porém, nasci<strong>da</strong> <strong>em</strong> 1942 na capital peruana, Lima, Isabel<br />

Allende, ao publicar, <strong>em</strong> 1982, a obra Casa de los espíritus, passa a ser considera<strong>da</strong> um<br />

<strong>do</strong>s grandes nomes <strong>da</strong> literatura hispanoamericana. Trabalhou como jornalista, desde os<br />

dezessete anos, <strong>em</strong> periódicos, <strong>em</strong> revistas f<strong>em</strong>ininas e na televisão antes de publicar<br />

seus livros. Durante a ditadura militar a autora obrigou-se a aban<strong>do</strong>nar o Chile,<br />

partin<strong>do</strong> para o exílio com a família. Atualmente vive na Califórnia e é considera<strong>da</strong> a<br />

mais famosa romancista cont<strong>em</strong>porânea <strong>da</strong> América Latina.<br />

Entre a sua vasta produção, escolh<strong>em</strong>os como objeto de estu<strong>do</strong> seu romance Inés <strong>del</strong><br />

alma mía. Este foi publica<strong>da</strong> <strong>em</strong> 2006, poden<strong>do</strong> ser considera<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> os estu<strong>do</strong>s de<br />

Fleck (2007, p. 161), um ex<strong>em</strong>plo de romance histórico cont<strong>em</strong>porânea de mediação, já<br />

que nele encontramos algumas <strong>da</strong>s características marcantes <strong>do</strong>s romances históricos<br />

tradicionais, relaciona<strong>da</strong>s por Márquez Rodríguez (1991, p. 22), alia<strong>da</strong>s às


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características típicas <strong>do</strong>s novos romances históricos latinoamericanos, aponta<strong>da</strong>s por<br />

Aínsa (1991) e Menton (1993).<br />

O fato de Isabel Allende produzir romances por encomen<strong>da</strong>, como ex<strong>em</strong>plo a obra El<br />

Zorro - comienza Ia leyen<strong>da</strong> (2005), faz com que, não raras vezes, seja suscita<strong>da</strong> a<br />

polêmica <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> classificação de suas obras, postas entre a arte e o merca<strong>do</strong>, pois<br />

enquanto alguns as julgam meros produtos para o merca<strong>do</strong> de consumo, outros as<br />

consideram como sen<strong>do</strong> de fato literatura por probl<strong>em</strong>atizar<strong>em</strong> questões sociais e com<br />

isso fazer com que o leitor reflita sobre sua condição humana. Deixan<strong>do</strong> a polêmica de<br />

la<strong>do</strong>, passar<strong>em</strong>os efetivamente ao estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> obra Inés <strong>del</strong> alma mía, que a nosso ver<br />

possui, de fato, valor literário, justamente por abor<strong>da</strong>r questões sociais, as quais levam<br />

o hom<strong>em</strong> a rever a forma como a história <strong>da</strong> América foi escrita, omitin<strong>do</strong>-se nela to<strong>da</strong><br />

visão não européia e, na narrativa <strong>do</strong> corpus <strong>em</strong> especial, a participação <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es<br />

<strong>em</strong> momentos históricos de grande conflito e impacto para a formação <strong>da</strong>s atuais<br />

socie<strong>da</strong>des americanas.<br />

2) Inés <strong>del</strong> alma mía (2006): uma <strong>mulher</strong> no universo <strong>colonial</strong> hispanoamericano<br />

A obra escolhi<strong>da</strong> como objeto de estu<strong>do</strong> divide-se <strong>em</strong> seis partes: 1- Europa, 1500-<br />

1537 (trata basicamente <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de Inés Suárez antes de partir ao Novo Mun<strong>do</strong>.) 2-<br />

América, 1537-1540 (narra os primeiros anos <strong>do</strong>s espanhois no continente americano.)<br />

3- Viaje a Chile, 1540-1541 (relata a dificul<strong>da</strong>de de atravessar o deserto para chegar ao<br />

sul.) 4- Santiago de la Nueva Extr<strong>em</strong>adura, 1541-1543 (versa sobre a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de de Santiago.) 5- Los años trágicos, 1543-1549 (conta como sobreviveram à<br />

escassez generaliza<strong>da</strong> de alimentos.) 6- La guerra de Chile (refere-se o perío<strong>do</strong> de<br />

maior conflito entre os espanhois e os índios <strong>do</strong> sul.)<br />

Inés <strong>del</strong> alma mía, estrutura-se como sen<strong>do</strong> o relato <strong>da</strong>s m<strong>em</strong>órias <strong>da</strong> personag<strong>em</strong><br />

Inés Suárez, configuran<strong>do</strong>-se numa narrativa autodiegética, associan<strong>do</strong>-se, pois, às<br />

narrativas de extração histórica. Com relação às escritas autobiográficas, no âmbito <strong>da</strong><br />

história, Alberti (1991, p. 75-78), ao apoiar-se nos pressupostos teóricos de Philippe


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Lejeune (1975), registra que a autobiografia “é principalmente uma narrativa, com<br />

perspectiva retrospectiva e cujo trata<strong>do</strong> é a vi<strong>da</strong> individual; e implica necessariamente<br />

a identi<strong>da</strong>de entre autor, narra<strong>do</strong>r e personag<strong>em</strong>”. A a<strong>do</strong>ção de tal perspectiva no texto<br />

ficcional implica também na busca por um pacto especial de leitura.<br />

Segun<strong>do</strong> García Gual (2002, p. 30), o romancista t<strong>em</strong> liber<strong>da</strong>de de <strong>da</strong>r a voz a<br />

qualquer um de seus personagens; porém, ao optar pela ótica <strong>do</strong> protagonista –<br />

registran<strong>do</strong> uma narrativa <strong>em</strong> primeira pessoa, exploran<strong>do</strong> a intimi<strong>da</strong>de e a m<strong>em</strong>ória <strong>da</strong><br />

personag<strong>em</strong> – os <strong>da</strong><strong>do</strong>s históricos passam por um exercício de imaginação, contu<strong>do</strong> o<br />

pacto de leitura é assegura<strong>do</strong> pela voz enuncia<strong>do</strong>ra de qu<strong>em</strong> supostamente tenha vivi<strong>do</strong><br />

a matéria narra<strong>da</strong>, buscan<strong>do</strong> “la confianza necesaria para lograr que el oyente se<br />

sienta implica<strong>do</strong> en la fantástica historia” (GARCÍA GUAL, 2002, p. 30). Para o<br />

caráter subversivo <strong>do</strong> romance histórico cont<strong>em</strong>porâneo, romper com as diferenças<br />

entre os limites <strong>do</strong> discurso autobiográfico histórico e o ficcional é um <strong>do</strong>s desafios<br />

mais recorrentes; um exercício de releituras <strong>da</strong> história pela ficção.<br />

Assim, o romance relata, <strong>em</strong> primeira pessoa, as m<strong>em</strong>órias que a personag<strong>em</strong> Inés<br />

escreveu aos 70 anos. Essas, segun<strong>do</strong> o discurso <strong>da</strong> voz enuncia<strong>do</strong>ra, foram destina<strong>da</strong>s<br />

a sua filha de criação, Isabel de Quiroga, para que sua significativa participação na<br />

conquista <strong>do</strong> Chile não fosse jamais esqueci<strong>da</strong>. Nesse senti<strong>do</strong>, a protagonista<br />

menciona: “[...] debo relatar mi versión de lo aconteci<strong>do</strong> para dejar m<strong>em</strong>oria de los<br />

trabajos que las mujeres h<strong>em</strong>os pasa<strong>do</strong> en Chile y que suelen escapar a los cronistas,<br />

por diestros que sean”. (ALLENDE, 2008, p. 80). V<strong>em</strong>os, pois, que o discurso<br />

ficcional enfrenta-se com o historiográfico, evidencian<strong>do</strong> a visão tendenciosa deste de<br />

apenas registrar a participação <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> na história, excluin<strong>do</strong> a <strong>mulher</strong> <strong>do</strong>s relatos<br />

oficiais. Cabe, pois, ao discurso ficcional a tarefa de explorar outras perspectivas sob<br />

as quais o passa<strong>do</strong> também possa ser imagina<strong>do</strong> e registra<strong>do</strong>.<br />

Ao longo <strong>da</strong> obra, o relato autobiográfico <strong>da</strong> protagonista organiza-se de acor<strong>do</strong><br />

com a ord<strong>em</strong> cronológica <strong>do</strong>s fatos e de acor<strong>do</strong> com a seleção feita por sua m<strong>em</strong>ória.<br />

Assim, ela busca na cronologia a fi<strong>del</strong>i<strong>da</strong>de aos acontecimentos e afirma: “En este<br />

relato, escrito muchos años despúes de los hechos, deseo ser lo más fiel a la ver<strong>da</strong>d


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posible, pero la m<strong>em</strong>oria es si<strong>em</strong>pre caprichosa, fruto de lo vivi<strong>do</strong>, lo desea<strong>do</strong> y la<br />

fantasia.” (ALLENDE, 2008, p. 55). Tal afirmação realça o fato de que o que chega <strong>do</strong><br />

passa<strong>do</strong> até nossos dias, segun<strong>do</strong> defende Hutcheon (1991), é apenas uma construção<br />

discursiva sobre os eventos ocorri<strong>do</strong>s, e reforça o pacto de leitura. Sob esta visão, tanto<br />

o discurso historiográfico como o ficcional são produtos de linguag<strong>em</strong>, frutos <strong>da</strong><br />

organização peculiar que um sujeito faz <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>, conhecen<strong>do</strong> o poder de<br />

<strong>representação</strong> <strong>do</strong>s signos linguísticos.<br />

A personag<strong>em</strong> Inés, nas l<strong>em</strong>branças que registra à filha, mostra-nos que foi uma<br />

<strong>mulher</strong> guerreira que rompeu com diversos paradigmas de sua época por ser<br />

aventureira e possuir ideais libertários. Contrariamente às normas impostas pela<br />

socie<strong>da</strong>de, a protagonista relata que ela perdeu sua virgin<strong>da</strong>de antes <strong>do</strong> casamento,<br />

mesmo sen<strong>do</strong> católica. A construção <strong>da</strong> personag<strong>em</strong> mostra que ela busca liber<strong>da</strong>de e<br />

autonomia ao economizar dinheiro e partir para o Novo Mun<strong>do</strong>. Não vê o sexo como<br />

um ato pecaminoso, mas sim uma forma de obter prazer, por isso ensina seus homens a<br />

satisfazê-la durante o ato sexual. Aprende a ler e a escrever. Possui participação na<br />

política ao administrar, como governa<strong>do</strong>ra, a ci<strong>da</strong>de de Santiago. É valente e consegue<br />

defender-se <strong>do</strong>s ataques de sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que a queriam como objeto sexual, o que<br />

d<strong>em</strong>onstra sua não submissão. Aprende a lutar como os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s para sobreviver e<br />

pede um hom<strong>em</strong>, Rodrigo de Quiroga, <strong>em</strong> casamento.<br />

Possivelmente, to<strong>do</strong>s esses fatos não ocorreram na vi<strong>da</strong> real, exatamente como a<br />

Inés ficcionaliza<strong>da</strong> de Isabel Allende nos conta. Mesmo assim, somente o fato de uma<br />

<strong>mulher</strong> ter vin<strong>do</strong> ao Novo Mun<strong>do</strong> (prática comum apenas entre homens), faz com que<br />

ela seja considera<strong>da</strong> uma <strong>mulher</strong> a frente de sua época. Segun<strong>do</strong> o discurso <strong>da</strong><br />

narrativa, v<strong>em</strong>os que Inés, antes de partir à América, já era inconforma<strong>da</strong>: “[…] vivia<br />

rabiosa conmigo y con el mun<strong>do</strong> por haber nasci<strong>do</strong> mujer y estar condena<strong>da</strong> a la<br />

prisión de las costumbres.” (ALLENDE, 2008, p. 28).<br />

Nesse discurso ficcional, por romper com diversos costumes e tradições, Inés foi,<br />

não raras vezes, vítima de preconceitos e diversas passagens <strong>da</strong> obra ilustram isso. No<br />

entanto, a personag<strong>em</strong> não se limita a aceitar os fatos como lhes são postos, ela luta


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para modificá-los, porta-se como um sujeito ativo que transforma a reali<strong>da</strong>de, o que<br />

não era comum às <strong>mulher</strong>es <strong>da</strong> época, pois estas eram <strong>em</strong> sua grande maioria<br />

submissas e resigna<strong>da</strong>s aos homens. Dessa forma, a construção discursiva de Inés faz<br />

com que ela se destaque como sen<strong>do</strong> uma figura de relevo <strong>em</strong> sua história por agir e<br />

não simplesmente aceitar os fatos como eles deveriam ser. Segun<strong>do</strong> a análise de<br />

Canello (2009, p. 109), pode-se depreender <strong>da</strong> leitura que Inés Suaréz representa a luta<br />

de “muitas <strong>mulher</strong>es na conquista de um espaço para sobreviver e libertar-se de muitos<br />

tabus e preconceitos que marcaram to<strong>da</strong> uma história, regi<strong>da</strong> por ver<strong>da</strong>des estabeleci<strong>da</strong>s<br />

<strong>em</strong> poderes instituí<strong>do</strong>s e tradicionalmente firma<strong>do</strong>s <strong>em</strong> uma socie<strong>da</strong>de patriarcal”.<br />

Tal afirmação v<strong>em</strong> ao encontro de nosso raciocínio, contu<strong>do</strong>, há que se atentar para<br />

o fato de que os supostos preconceitos sofri<strong>do</strong>s por Inés de Suárez, figura histórica,<br />

eram atitudes comuns e naturais para a civilização <strong>da</strong> época, uma vez que se vivia,<br />

então, sob os moldes de uma socie<strong>da</strong>de patriarcalista. Estranho seria se o preconceito<br />

não tivesse existi<strong>do</strong>. Inés, como personag<strong>em</strong> histórica, foi uma figura importante<br />

encontra<strong>da</strong> pelas pesquisas feitas por Allende pelo fato de que, já no século XV, não<br />

aceitou com resignação uma vi<strong>da</strong> de <strong>mulher</strong> obediente e isso serviu, obviamente, como<br />

motivo de assombro, já que não era comum existir<strong>em</strong>, no perío<strong>do</strong> <strong>colonial</strong>, <strong>mulher</strong>es de<br />

fortes personali<strong>da</strong>des, determina<strong>da</strong>s a lutar<strong>em</strong> por seus objetivos. Diante de uma<br />

existência minimamente <strong>do</strong>cumenta<strong>da</strong> de uma <strong>mulher</strong> com tais traços, a pena<br />

imaginativa de Allende consegue desenvolver os mais relevantes traços de ideal<br />

f<strong>em</strong>inino e de luta igualitária dessa <strong>mulher</strong> ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s grandes homens <strong>da</strong> época <strong>da</strong><br />

conquista <strong>da</strong> América, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe o devi<strong>do</strong> destaque que a história nunca lhe atribuiria.<br />

No romance de Allende, a personag<strong>em</strong> Inés Suárez ganha voz para contar sua<br />

versão <strong>do</strong>s fatos aconteci<strong>do</strong>s na conquista <strong>do</strong> Chile, pois não deseja que seja esqueci<strong>da</strong><br />

a importância <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es neste processo. Deste mo<strong>do</strong>, a personag<strong>em</strong> declara:<br />

“Pue<strong>do</strong> apuntar mis recuer<strong>do</strong>s y pensamientos con tinta y papel gracias al clérigo<br />

González de Marmolejo, quien se dio ti<strong>em</strong>po, entre su trabajo de evangelizar salvajes<br />

y consolar cristianos, para enseñarme a leer.” (ALLENDE, 2008, p. 17). O aprender a<br />

ler e escrever já caracteriza a não passivi<strong>da</strong>de de Inés, pois a detenção <strong>da</strong> escrita e <strong>da</strong>


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leitura, ou seja, <strong>do</strong> conhecimento, não pertencia às <strong>mulher</strong>es, to<strong>da</strong>via, ela ultrapassa os<br />

limites <strong>do</strong> que era comum e apropria-se <strong>do</strong> conhecimento <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>. S<strong>em</strong> exceção,<br />

as personagens f<strong>em</strong>ininas marcantes <strong>da</strong>s narrativas de Allende possu<strong>em</strong> esse traço <strong>em</strong><br />

comum: apropriar-se <strong>do</strong> conhecimento <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita para, a partir desse<br />

instrumento, torna-se livres <strong>da</strong> amarras de sua situação de submissão. Isso ocorre, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, com a personag<strong>em</strong> Eva Luna, com Elisa Sommer, de Hija de la fortuna, com<br />

Belisa Crepusculario, de “Dos palabras” e com Inés Suárez, entre outras personagens<br />

de relevo <strong>do</strong> universo ficcional de Allende.<br />

Pedro de Valdivia, que conquistou os territórios ao sul <strong>do</strong> Chile e fun<strong>do</strong>u a ci<strong>da</strong>de<br />

de Santiago, sen<strong>do</strong> por longo perío<strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r desta, é ficcionaliza<strong>do</strong> <strong>em</strong> Inés <strong>del</strong><br />

alma mía e vive, com Inés Suárez, uma intensa história de amor. Nessa configuração,<br />

espanta-se quan<strong>do</strong> ela o ensina como agir para satisfazê-la durante o ato sexual. “Una<br />

vez que Pedro comprendió que a puerta cerra<strong>da</strong> man<strong>da</strong>ba yo y que no había deshonor<br />

en ello, se dispuso a obedecerme de excelente humor. Eso d<strong>em</strong>oró algún ti<strong>em</strong>po, […]<br />

porque él creía que la entrega corresponde a la h<strong>em</strong>bra y la <strong>do</strong>minación al macho,<br />

[…].” (ALLENDE, 2008, p. 111). Enquanto a maioria <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es praticava o ato<br />

sexual com indiferença, simplesmente por ter si<strong>do</strong> ensina<strong>da</strong> a ser subordina<strong>da</strong> aos<br />

homens, Inés, na configuração que lhe atribuiu Allende, não via o sexo como<br />

obrigação, por isso, não se submetia a ter relações que não a satisfizess<strong>em</strong>.<br />

No decorrer <strong>da</strong> narrativa, vê-se que os conquista<strong>do</strong>res espanhois poderiam ter as<br />

nativas que quisess<strong>em</strong>, mas sentiam falta de ouvir palavras carinhosas sussurra<strong>da</strong>s <strong>em</strong><br />

castelhano. Desse mo<strong>do</strong>, como Inés foi, por muito t<strong>em</strong>po, a única espanhola no Chile,<br />

alguns sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s sentiram-se atraí<strong>do</strong>s por ela e chegaram a tentar violentá-la. O<br />

romance projeta essa possibili<strong>da</strong>de ao narrar que o jov<strong>em</strong> sol<strong>da</strong><strong>do</strong> Escobar foi um<br />

desses infelizes e devi<strong>do</strong> à tentativa feita é condena<strong>do</strong> por Valdivia, governa<strong>do</strong>r de<br />

Santiago e amante de Inés, a forca. Por ser jov<strong>em</strong> e atraente, Inés é vista então como a<br />

<strong>mulher</strong> tenta<strong>do</strong>ra, uma espécie de Eva que induz aos homens a transgredir<strong>em</strong> as<br />

normas. Diante dessa situação, a personag<strong>em</strong> relata: “A los ojos de los sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, la


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culpa fue mía: yo tenté al inocente muchacho, lo seduje, lo saqué de quicio y lo llevé a<br />

la muerte. Yo, la impúdica concubina.” (ALLENDE, 2008, p. 169).<br />

No entanto, ao se questionar se seria ela a ver<strong>da</strong>deira culpa<strong>da</strong> pelos ataques <strong>do</strong>s<br />

sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, a protagonista reflete: “No encuentro falta en mi, salvo ser mujer, pero eso<br />

parece ser crimen suficiente. A nosotras nos culpan de la lujuria de los hombres,<br />

[…].” (ALLENDE, 2008, p. 160). O discurso <strong>da</strong> narrativa revela, pois, que o simples<br />

fato de Inés ser uma bela <strong>mulher</strong> faz com ela seja, injustamente, vista como uma figura<br />

d<strong>em</strong>oníaca, por seduzir, tentar e induzir os homens a pecar<strong>em</strong>. Diante <strong>da</strong>s diversas<br />

tentativas <strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s de possuír<strong>em</strong> a Inés, ela passa a ser considera<strong>da</strong>, até mesmo por<br />

Valdivia um objeto sexual, como se pode observar na passag<strong>em</strong> abaixo:<br />

Nunca habíamos hecho el amor con esa violencia, me dejaba<br />

magulla<strong>da</strong> e pretendía que me gustara. Quiso que gimiera de <strong>do</strong>lor,<br />

en vista de que ya no g<strong>em</strong>ía de placer. […] Aguanté el maltrato hasta<br />

<strong>do</strong>nde me fue posible, […] pero a s<strong>em</strong>ana me acabó la paciencia y,<br />

en vez de obedecerle cuan<strong>do</strong> quise hacer conmigo como los perros, le<br />

di una sonora bofeta<strong>da</strong> en la cara. No supe como sucedió, la mano<br />

me fue sola. (ALLENDE, 2008, p. 169-170)<br />

A atitude <strong>da</strong> personag<strong>em</strong> Inés ao defender-se de seu poderoso amante Valdivia, b<strong>em</strong><br />

como de tantos outros sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, mostra, mais uma vez, que <strong>da</strong> forma como está<br />

configura<strong>da</strong> essa <strong>mulher</strong>, mesmo que tentasse, não conseguiria obedecer aos homens,<br />

como faziam as outras <strong>mulher</strong>es, pelo simples fato de estes ser<strong>em</strong> considera<strong>do</strong>s na<br />

época, superiores a elas. A Inés configura<strong>da</strong> por Allende se rebela e luta para que os<br />

homens tenham respeito por ela. Sob essa criação artística, os capitães espanhois<br />

também se chocavam quan<strong>do</strong> Inés sentava-se à mesa para jantar com eles ou<br />

participava <strong>da</strong>s reuniões que <strong>del</strong>iberavam sobre a condenação <strong>do</strong>s bandi<strong>do</strong>s. “A<br />

menu<strong>do</strong> venían los capitanes a cenar y solían llevarse la desagra<strong>da</strong>ble sorpresa de que<br />

Valdivia me invitaba a sentarme con ellos a la mesa. Es posible que ninguno hubiese<br />

comi<strong>do</strong> con una mujer en la vi<strong>da</strong>, eso no se usa en España, […].” (ALLENDE, 2008,<br />

p. 149) e quanto ao conselho que decidia o julgamento <strong>do</strong>s prisioneiros, os capitães<br />

“[...] jamás habían visto a una mujer en un consejo de guerra.” (ALLENDE, 2008, p.


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156). Nas tintas de Allende, Inés desfaz o estereótipo de que a <strong>mulher</strong> não teve<br />

participação na administração política no perío<strong>do</strong> <strong>colonial</strong>, pois mesmo manifestan<strong>do</strong><br />

sua opinião de forma vela<strong>da</strong>, Inés mantinha poder político sobre a ci<strong>da</strong>de de Santiago.<br />

O romance faz questão de mostrar o <strong>em</strong>bate entre o posicionamento <strong>do</strong>s homens e o<br />

papel des<strong>em</strong>penha<strong>do</strong> pelas <strong>mulher</strong>es para que estes obtivess<strong>em</strong> o sucesso pelo qual<br />

foram imortaliza<strong>do</strong>s na história. Um <strong>do</strong>s ex<strong>em</strong>plos disso na narrativa ocorre quan<strong>do</strong><br />

Valdivia, ao querer conquistar e fun<strong>da</strong>r muitas ci<strong>da</strong>des, é alerta<strong>do</strong> por Inés sobre a falta<br />

de condições para defender e proteger tanto as antigas como as possíveis novas<br />

ci<strong>da</strong>des. Ante tais comentários o conquista<strong>do</strong>r menciona: “Las mujeres no pueden<br />

pensar en grande, no imaginan el futuro, carecen <strong>del</strong> senti<strong>do</strong> de la Historia, sólo se<br />

ocupan de lo <strong>do</strong>méstico y lo inmediato” (ALLENDE, 2008, p. 214). Tais palavras<br />

revelam não o pensamento <strong>do</strong> amante acerca <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> ama<strong>da</strong>, mas <strong>da</strong> própria história<br />

com relação aos feitos realiza<strong>do</strong>s pelas <strong>mulher</strong>es. Na ficção contanto, cujo objetivo é<br />

justamente revelar o oposto, o conquista<strong>do</strong>r retrata-se diante de Inés, após ela relatar<br />

to<strong>da</strong>s as ações que fizera para tornar Santiago uma ci<strong>da</strong>de digna de se viver:<br />

[...] he crea<strong>do</strong> hospitales, iglesias, conventos, ermitas, santuarios,<br />

pueblos enteros […]. Los hombres sólo construyen pueblos<br />

provisorios para dejarnos allí con los hijos, mientras ellos continúan<br />

sin cesar la guerra contra los indígenas […]. Puse a las mujeres y a<br />

los cincuenta yanaconas […] a producir mesas, sillas, camas<br />

colchones, hornos, telares, vajillas de barro coci<strong>do</strong>, utensilios de<br />

cocina, corrales, gallineros, ropa, manteles, mantas y lo<br />

indispensable para una vi<strong>da</strong> civiliza<strong>da</strong>. Con el fin de ahorrar<br />

esfuerzo y víveres, establecí al principio un sist<strong>em</strong>a para que nadie<br />

se que<strong>da</strong>ra sin comer. (ALLENDE, 2008, p. 186).<br />

Revelar, no universo ficcional, essas ações de Inés e <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es <strong>em</strong> geral no que<br />

tange ao êxito no processo de colonização – ações jamais menciona<strong>da</strong>s nos<br />

compêndios <strong>da</strong> história –, é reivindicar pela arte literária que as <strong>mulher</strong>es conhec<strong>em</strong><br />

sim o senti<strong>do</strong> <strong>da</strong> História, que lutam pela sobrevivência de to<strong>do</strong> um povo, não se<br />

restringin<strong>do</strong> às preocupações imediatas. Diferent<strong>em</strong>ente <strong>do</strong>s homens, que se<br />

preocupam com a guerra, o que não raras vezes é sinônimo de silenciamento, de morte,


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as <strong>mulher</strong>es preocupam-se com a manutenção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, com a existência digna, com o<br />

futuro e não apenas com o imediato como é acusa<strong>da</strong> a personag<strong>em</strong> no romance.<br />

O romance não deixa de mencionar também o fato histórico de que no combate<br />

entre espanhois e mupuches, bravos índios <strong>da</strong> região sul <strong>do</strong> Chile, que levou a ci<strong>da</strong>de<br />

de Santiago a destruição quase total, Inés, contém o conflito assassinan<strong>do</strong> sete caciques<br />

que eram reféns de Valdivia. Ao ver a miséria <strong>da</strong> sua ci<strong>da</strong>de, a personag<strong>em</strong> vê-se,<br />

como boa parte <strong>do</strong>s espanhois, diante <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> sonho <strong>da</strong> construção de um novo reino.<br />

Mesmo configura<strong>da</strong> como sen<strong>do</strong> a <strong>representação</strong> <strong>da</strong> força de um povo, Inés desanima e<br />

chora nos braços de Valdivia: “Pedro nunca me había visto llorar, no soy mujer de<br />

lágrima fácil, […]” (ALLENDE, 2008, p. 231). Inés, a heroína que até então<br />

manifestara to<strong>da</strong> a sua fortaleza, d<strong>em</strong>onstra nesse trecho seu aspecto humano, sua<br />

fraqueza, sua fragili<strong>da</strong>de, sua sensibili<strong>da</strong>de e assim, representa a ambigui<strong>da</strong>de <strong>do</strong><br />

sujeito f<strong>em</strong>inino, um ser mormente guerreiro, corajoso e bravo e ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

frágil e sensível.<br />

Percebe-se que a personag<strong>em</strong> Inés Suárez, assim como outras grandes personagens <strong>do</strong><br />

universo ficcional de Allende, compartilha <strong>da</strong>s mesmas ideologias de sua cria<strong>do</strong>ra. Tal<br />

personag<strong>em</strong> é, novamente, o reflexo <strong>do</strong>s pensamentos de qu<strong>em</strong> lhe deu existência. Isabel<br />

Allende teve seu próprio discurso silencia<strong>do</strong> no perío<strong>do</strong> <strong>da</strong> ditadura militar e, ao ser<br />

exila<strong>da</strong>, lutou para que os fatos bárbaros aconteci<strong>do</strong>s no perío<strong>do</strong> ditatorial no Chile não<br />

foss<strong>em</strong> esqueci<strong>do</strong>s. A autora assumiu um compromisso para com a história e <strong>em</strong> boa<br />

parte de suas obras literárias manifesta aquilo que, a priori, o discurso histórico almeja<br />

que seja esqueci<strong>do</strong>. Assim, ag<strong>em</strong> também as suas heroínas, como as <strong>mulher</strong>es <strong>da</strong> saga de<br />

Casa <strong>do</strong>s Espíritos, as vende<strong>do</strong>ras de palavras, como Elisa Sommers e Belisa<br />

Crepusculario, e tantas outras personagens já imortaliza<strong>da</strong>s na mente de milhões de<br />

leitores ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Elas são <strong>em</strong> grande parte auto-retratos <strong>da</strong> autora.<br />

Conclusão: sobre o papel <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> na literatura


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Ao refletir sobre o papel <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> na socie<strong>da</strong>de, v<strong>em</strong>os que por muito t<strong>em</strong>po<br />

coube-lhe apenas o papel de educa<strong>do</strong>ra e reprodutora. Tal sist<strong>em</strong>a, portanto, afastava a<br />

<strong>mulher</strong> <strong>do</strong> acesso ao mun<strong>do</strong> exterior. Assim, ela foi instala<strong>da</strong> <strong>em</strong> uma condição de<br />

isolamento e reclusão que ve<strong>do</strong>u-lhe o acesso a qualquer esfera <strong>do</strong> poder, <strong>da</strong>s<br />

possibili<strong>da</strong>des de reflexão e atuação na história. De acor<strong>do</strong> com Lucía Guerra, “dentro<br />

de una estructura patriarcal que la limita al único papel de madre y esposa, la mujer,<br />

sin alternativas en el mun<strong>do</strong> de afuera, depende económicamente <strong>del</strong> hombre,<br />

dependencia que se extiende a la esfera de lo legal y lo <strong>em</strong>ocional. (GUERRA, 2007,<br />

p. 15). Uma situação b<strong>em</strong> diferencia<strong>da</strong> <strong>da</strong>quela <strong>do</strong>s homens que ocupavam o espaço<br />

público e nele construíam sua imag<strong>em</strong> de <strong>do</strong>minação.<br />

Em um perío<strong>do</strong> de poucas déca<strong>da</strong>s, os debates envolven<strong>do</strong> questões sobre sujeito,<br />

alteri<strong>da</strong>de e construção de identi<strong>da</strong>de começam a ganhar considerável visibili<strong>da</strong>de<br />

devi<strong>do</strong> à manifestação de novas forças políticas <strong>em</strong>ergentes. Tais forças são<br />

constituí<strong>da</strong>s pelos grupos historicamente excluí<strong>do</strong>s e marginaliza<strong>do</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

sen<strong>do</strong> alguns <strong>del</strong>es, <strong>mulher</strong>es, negros e índios.<br />

Ao longo <strong>da</strong> história, o discurso <strong>do</strong> sujeito f<strong>em</strong>inino foi silencia<strong>do</strong> e segun<strong>do</strong> Borges<br />

Teixeira,<br />

[...] a exclusão histórica <strong>da</strong> autoria f<strong>em</strong>inina no campo institucional<br />

<strong>da</strong> literatura é o resulta<strong>do</strong> de práticas políticas no campo <strong>do</strong> saber que<br />

privilegiam a enunciação <strong>do</strong> sujeito <strong>do</strong>minante <strong>da</strong> cultura, o sujeito<br />

declina<strong>do</strong> no masculino. A produção de autoria de <strong>mulher</strong>es s<strong>em</strong>pre<br />

colocou os críticos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> na defensiva, por várias razões, e<br />

dentre elas, o puro preconceito de uma socie<strong>da</strong>de atrela<strong>da</strong> a valores<br />

patriarcais, para não dizer machistas, que reservam à <strong>mulher</strong> o papel<br />

mais edificante e, a propósito, visto como mais condizente com suas<br />

capaci<strong>da</strong>des mentais, ou seja, a de reprodutora <strong>da</strong> espécie. Assim, a<br />

criação cultural <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> s<strong>em</strong>pre foi avalia<strong>da</strong> como deficitária <strong>em</strong><br />

relação à norma de realização estética instituí<strong>da</strong>, obviamente, <strong>do</strong><br />

ponto de vista masculino. (BORGES-TEIXEIRA, 2008, p. 40).<br />

Devi<strong>do</strong> ao maior engajamento político <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es na cont<strong>em</strong>poranei<strong>da</strong>de, as<br />

obras produzi<strong>da</strong>s por elas ganham maior visibili<strong>da</strong>de e ocorr<strong>em</strong> transformações no que<br />

tange à crítica referente às produções f<strong>em</strong>ininas. Neste senti<strong>do</strong>, questiona-se qual seria


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o papel <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> ao produzir uma literatura sobre a <strong>mulher</strong> e como resposta a crítica<br />

considera o papel <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> seria o de uma revolucionária, devi<strong>do</strong> ao fato de romper<br />

com as características convencionais e opressivas <strong>do</strong> pensamento masculino<br />

materializa<strong>do</strong> na linguag<strong>em</strong> literária anterior às produções f<strong>em</strong>ininas.<br />

A literatura produzi<strong>da</strong> pelo sujeito f<strong>em</strong>inino constitui-se, hoje, como sen<strong>do</strong> um<br />

“processo de reconstrução <strong>da</strong> categoria “<strong>mulher</strong>” enquanto questão de senti<strong>do</strong> e lugar<br />

privilegia<strong>do</strong> para a reconstrução <strong>do</strong> f<strong>em</strong>inino e para a recuperação de experiências<br />

<strong>em</strong>udeci<strong>da</strong>s pela tradição cultural <strong>do</strong>minante.” (BORGES-TEIXEIRA, 2008, p. 46).<br />

Percebe-se, então, que tanto a personag<strong>em</strong> <strong>do</strong> romance, Inés Suárez, quanto a sua<br />

cria<strong>do</strong>ra, Isabel Allende, ou seja, tanto a obra literária como a sua produtora contribu<strong>em</strong><br />

para o reconhecimento <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> na socie<strong>da</strong>de. O fazer literário f<strong>em</strong>inino promove uma<br />

reflexão sobre a condição humana e sobre o conceito de identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>.<br />

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