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macunaíma: entre a carnavalização eo fantástico - Cielli

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Universidade Estadual de Maringá – UEM<br />

Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350<br />

_________________________________________________________________________________________________________<br />

MACUNAÍMA: ENTRE A CARNAVALIZAÇÃO E O FANTÁSTICO 1<br />

Introdução<br />

Silvana Nath (PG - UNIOESTE)<br />

A análise a que se propõe neste estudo se refere à obra literária e fílmica<br />

Macunaíma que estará centrada nos pressupostos teóricos de Robert Stam, quanto ao<br />

realismo mágico que é evidenciado através da <strong>carnavalização</strong>, da antropofagia e da<br />

sátira menipéia, aspectos que são representados através da alegoria fantástica do<br />

protagonista, dos demais personagens e do espaço em que ocorre o enredo, pois os<br />

elementos que compõe as obras não apresentam identidade própria, são levados a<br />

transformações mágicas étnicas, inversões sexuais, criticas ao racismo, ao sistema<br />

político econômico vigente, à repressão militar e ao consumismo desenfreado. Para<br />

melhor compreensão de tais aspectos devem-se considerar como fundamentais o<br />

processo histórico e social no qual a obra literária e fílmica está inserida, na perspectiva<br />

de estabelecer relação <strong>entre</strong> ambas.<br />

A obra fílmica Macunaíma (1968) do diretor Joaquim Pedro de Andrade é<br />

fundamentada na obra literária de Mário de Andrade, publicada no ano de 1928, apesar<br />

de terem sido publicadas em momentos históricos diferentes, ambas apresentam uma<br />

critica radical quanto à importação ou mesmo a reprodução da cultura internacional.<br />

A obra literária Macunaíma (1928) de Mário de Andrade pertence à primeira fase do<br />

Modernismo brasileiro, cujo objetivo primordial é o rompimento com os modelos<br />

culturais internacionais e o alvo seria a construção de uma identidade cultural nacional,<br />

tipicamente brasileira voltada para o desenvolvimento de uma cultura que viesse a ser<br />

autônoma e independente. O autor pretendia criar uma obra revolucionária que<br />

desafiasse o sistema cultural vigente, ao propor uma nova linguagem literária que<br />

descrevesse a essência cultural do povo brasileiro, ao retomar fábulas, lendas, crendices,<br />

1 Baseado no artigo: O Discurso Polifônico da Obra Macunaíma: um estudo<br />

preliminar. 12ª JELL – Jornada de Estudos Lingüísticos e Literários – Diversidade<br />

lingüística, cultura e ensino. 24 a 27 de junho de 2009. ISSN:1677-3101.


Universidade Estadual de Maringá – UEM<br />

Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350<br />

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tradições de diversas regiões brasileiras, estaria rompendo com os modelos<br />

socioculturais e econômicos europeus passando a valorizar e exaltar a cultura nacional.<br />

Mário de Andrade buscou através de sua obra retratar os problemas brasileiros<br />

daquele período histórico, como: a falta de definição de um caráter nacional, o descaso<br />

para com a cultura existente em nosso país, importação dos modelos culturais e<br />

econômicos estrangeiros, <strong>entre</strong> outros, pois queria romper e desmistificar a idéia de que<br />

o Brasil não era capaz de produzir sua própria cultura. Portanto, na obra literária,<br />

segundo Stam,<br />

Macunaíma representou o auge romanesco do movimento modernista<br />

e foi um poderoso precursor do realismo mágico [...] o autor inspirouse<br />

nos elementos arcaicos da cultura indígena brasileira [...] o que<br />

Macunaíma representa é um exemplo de “(pós-modernismo arcaico”<br />

na medida em que ele utiliza mitos antigos do Amazonas [...]. A<br />

linguagem do romance é sincrética, <strong>entre</strong>meando palavras africanas,<br />

indígenas e portuguesas; é um discurso que carrega os genes<br />

lingüísticos de todos os imigrantes indígenas, africanos e europeus do<br />

Brasil (STAM, 2008, p. 415 – 416).<br />

Na obra fílmica produzida quatro décadas depois da obra literária, mantém a<br />

essência e o objetivo principal que é o rompimento com a cultura estrangeira. A ênfase<br />

desta estará centrada no período da ditadura militar, nos golpes de estado nos anos de<br />

1964 e 1968, apresentando uma critica política deste período histórico, utilizando-se da<br />

censura, da sátira e de elementos <strong>fantástico</strong>s no decorrer do enredo. Com relação à obra<br />

fílmica, Robert Stam coloca,<br />

O filme é um exercício genial de atualização política e estética de<br />

uma fonte romanesca [...] apelou para a sensibilidade anárquica do<br />

povo brasileiro, alimentando sentimentos de revolta através da<br />

festividade satírica mesmo no auge da ditadura [...] ênfase no bizarro,<br />

na falta de caráter nacional e na mistura da tradição da alta arte com a<br />

cultura de massa divulgada pela mídia [...] com o seu desejo de fazer<br />

uma critica amplamente simbólica da situação brasileira, que é<br />

compreendida com humor e destreza que conseguiram enganar até<br />

mesmo os censores do regime (STAM, 2008, p. 434).<br />

Joaquim Pedro de Andrade e Mário de Andrade utiliza-se de uma linguagem<br />

simples, mas rica de vocábulos indígenas e africanos, expressões e provérbios populares<br />

que tentam se aproximar ao máximo da oralidade popular, formando um estilo narrativo<br />

irônico de representação do povo brasileiro, na busca pela construção de uma identidade


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cultural nacional que valorizasse nossas origens, raças, crenças e lendas, possibilitando<br />

o diálogo <strong>entre</strong> os vários povos evidenciados nas obras e suas culturas, na perspectiva<br />

de fundar uma literatura independente dos modelos estrangeiros, tidos como ideais e<br />

perfeitos, conforme observa-se a seguir,<br />

A linguagem mesma do romance é sincrética, <strong>entre</strong>meando palavras<br />

africanas, indígenas e portuguesas, é um discurso imaginado que<br />

carrega , por assim dizer, os genes lingüísticos de todos os imigrantes<br />

indígenas, africanos e europeus do Brasil (STAM, 2008, p. 416).<br />

Neste sentido, os autores ressaltam as origens, raças, crenças e lendas brasileiras<br />

estabelecendo um diálogo <strong>entre</strong> os vários povos e suas culturas, na busca pela criação de<br />

uma literatura que fosse independente dos modelos internacionais, tidos como ideais e<br />

perfeitos.<br />

1. O Realismo Mágico e os Elementos do Fantástico<br />

Segundo Stam, “os modernismos latino-americanos evocados por termos como<br />

“antropofagia” e “realismo mágico”, neste sentido, trabalham a magia a partir de<br />

materiais fornecidos pelo “real” da história e da vida quotidiana, reconfigurando, assim,<br />

toda a questão do realismo” (STAM, 2008, p. 395), é exatamente isso que Mário de<br />

Andrade e Joaquim Pedro de Andrade fazem na obra literária e fílmica Macunaíma, ao<br />

buscar representar a realidade de forma alegórica, utilizando-se de forma genial de<br />

diversos elementos folclóricos do povo brasileiro, além de seus costumes, crendices,<br />

raças, lendas e de outros aspectos de nossa cultura, como o candomblé, o samba e<br />

outros, apresentando-os através do realismo mágico que manifesta o realismo<br />

maravilhoso, a antropofagia, a <strong>carnavalização</strong> de acontecimentos improváveis e<br />

mágicos, ou mesmo da sátira para criticar a sociedade naquele momento de repressão<br />

militar, de crise e indefinição política, econômica, social e cultural daquele momento de<br />

transição e definição da sociedade brasileira.<br />

Portanto, o realismo mágico e <strong>fantástico</strong> presente na obra literária e fílmica<br />

Macunaíma são evidenciados através das atitudes, da linguagem do protagonista e no<br />

desfecho do enredo, e, pode ser definido de diferentes formas, mas sempre se utilizando


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de temas mágicos e maravilhosos representados pela estética carnavalesca, pela<br />

antropofagia e a sátira menipéia presentes nas respectivas obras.<br />

Macunaíma, de Mário de Andrade, escrito em 1928 e adaptado para o<br />

cinema quatro décadas mais tarde, representou o auge romanesco do<br />

movimento modernista e foi um poderoso precursor [...] do realismo<br />

mágico [...] Mário de Andrade inspirou-se nos elementos “arcaicos”<br />

da cultura indígena brasileira [...] utiliza mitos antigos do Amazonas<br />

(STAM, 2008, p. 415).<br />

Na obra fílmica observa-se que o “realismo mágico gera anomalias” (STAM, 2008,<br />

p. 406), conforme se observa em diferentes momentos como os que seguem: na<br />

transformação racial por que passa o personagem Macunaíma; quando este se alimenta<br />

de um pedaço da perna do Ogro; representação de diferentes raças pelo mesmo<br />

personagem; inversões sexuais, onde o ator Paulo José aparece vestido de mulher dando<br />

a luz ao protagonista; a feijoada antropófaga<br />

onde as pessoas são jogadas na feijoada<br />

entrando em decomposição. Todos estes<br />

aspectos além de outros, apresentam um<br />

cunho critico e satírico dos problemas sociais<br />

daquele momento histórico no Brasil.<br />

Imagem 1: Macunaíma pede um pedaço da perna do Ogro.<br />

A obra literária e fílmica apresenta em seu contexto diversos problemas sociais,<br />

políticos e econômicos que serão visualizados de forma irônica e satírica, como:<br />

repressão política, golpes de estado, menosprezo ao trabalho voltado para o capitalismo,<br />

critica sutil ao racismo brasileiro, ascensão e declínio social. Estes aspectos são<br />

visualizados com maior clareza na obra fílmica, em que são apresentados de forma<br />

cômica e fantástica através do brilhantismo do protagonista Macunaíma, conforme será<br />

observado na seqüência.<br />

A repressão política, os golpes de estado e o menosprezo ao trabalho são<br />

visualizados através das atitudes do personagem Macunaíma, quando representa a<br />

preguiça, sinalizando a impossibilidade do herói em assumir seu destino não estando<br />

direcionado apenas ao prazer, menospreza o trabalho voltado para o capitalismo, ao não


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demonstrar interesse em executar nenhum serviço, ou seja, pode-se compreender que<br />

ele nega o sistema no qual está inserido, ou mesmo representa a acomodação mediante o<br />

sistema político, econômico e social vigente, ou seja, “o diretor transforma a<br />

antropofagia no trampolim para uma critica da repressão militar e do modelo de<br />

capitalismo predatório do efêmero “milagre econômico” brasileiro” (STAM, 2008, p.<br />

423). Neste sentido a antropofagia enquanto modo de consumismo adotado pelos povos<br />

subdesenvolvidos culminará para o desenvolvimento da nação e o auge da sustentação<br />

do capitalismo, conforme Stam cita em sua obra,<br />

As classes sociais tradicionalmente dominantes e conservadoras<br />

continuam a exercer seu controle da estrutura do poder – e nós<br />

redescobrimos o canibalismo... As atuais relações de trabalho, bem<br />

como as relações <strong>entre</strong> as pessoas – social, política e econômica –<br />

ainda são, basicamente canibalistas. Aqueles que podem, “comem”<br />

os outros através de seu consumo de produtos, ou mesmo, mais<br />

diretamente, através de relações sexuais [...] vorazmente, nações<br />

devoram seus povos. Macunaíma... é a história de um brasileiro<br />

devorado pelo Brasil (STAM, 2008, p. 424).<br />

Este aspecto antropofágico fica evidente quando as pessoas estão tão esfomeadas<br />

que chegam ao ponto de devorarem-se uns aos outros, tratam-se com violência,<br />

representando assim que essa apropriação do outro inclui não só a interiorização das<br />

diferentes culturas, mas também seu caráter e seus problemas, estes aspectos estarão<br />

presentes na obra fílmica em diferentes momentos:<br />

• Quando Macunaíma pede um pedaço da perna do Ogro para se alimentar,<br />

por estar com fome.<br />

• O protagonista vai para a cidade e encontra a guerrilheira urbana Ci que irá<br />

devorá-lo sexualmente.<br />

• Quando o herói parte em busca da pedra muiraquitã e ao se defrontar com a<br />

mulher de Pietro Pietra, esta quer comê-lo vivo.


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• Venceslau Pietro Pietra prepara<br />

uma feijoada antropófaga para<br />

comemorar o casamento de sua<br />

filha, nesta comemoração há uma<br />

loteria, onde as pessoas que são<br />

sorteadas são jogadas na piscina<br />

Imagem 2: Piscina da feijoada antropofágica.<br />

da feijoada, onde posteriormente entram em decomposição, conforme Stam<br />

cita em sua obra,<br />

Uma feijoada antropofágica em que os membros humanos substituem a lingüiça.<br />

Macunaíma induz Pietro a cair nela, e, enquanto ele está sendo devorado, o gigante que morre<br />

alegremente grita que a feijoada “precisa de mais sal” (STAM, 2008, p. 433).<br />

• No final da obra fílmica aparece a sereia devoradora de homens que atrai o<br />

protagonista para a morte.<br />

Estes aspectos antropofágicos ficam evidentes de forma satírica no decorrer da obra<br />

fílmica de forma a levar o telespectador a perceber que os mais fortes dominam os mais<br />

fracos, deixando claro que “os ricos devoram os pobres, e estes, desesperados, devoramse<br />

uns aos outros representando o canibalismo dos fracos” (STAM, 2008, p. 425).<br />

Por outro lado, ao compreender a antropofagia associada ao modernismo nos<br />

reportamos ao que Robert Stam cita em sua obra que...<br />

os “modernistas” clamavam pela “antropofagia” cultural, uma<br />

devoração das técnicas e informações dos países subdesenvolvidos<br />

para melhor combater a dominação [...] os artistas e intelectuais<br />

brasileiros deveriam digerir produtos culturais importados e explorálos<br />

como matéria-prima para uma nova síntese, dessa forma fazendo<br />

voltar ao colonizador a cultura imposta, transformada. Para os<br />

modernistas, o canibalismo era uma tradição nativa autêntica, bem<br />

como uma metáfora crucial para a independência cultural [...] o<br />

artista da cultura dominada não deveria ignorar a presença<br />

estrangeira, mas sim engoli-la, carnavalizá-la, reciclá-la para fins<br />

nacionais (STAM, 2008, p. 412).<br />

A antropofagia cultural, portanto, seria a exaustão dos modelos estrangeiros de forma a<br />

combater a dominação dos países superdesenvolvidos, explorando a matéria-prima destes para a<br />

construção de uma cultura nacional, transformada e independente, porém é inevitável o


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intercâmbio cultural <strong>entre</strong> a América Latina e os grandes centros metropolitanos<br />

impossibilitando o retorno cultural de forma pura e estática, afinal a presença do estrangeiro é<br />

inevitável, portanto esta produção passa a ser miscigenada ao aceitar a influência internacional,<br />

reciclando-a ou mesmo carnavalizando-a de forma satírica para o contexto nacional.<br />

Quanto ao termo <strong>carnavalização</strong>, este é observado em inúmeros momentos na obra<br />

fílmica, conforme os que seguem: Gênero textual rapsódia; Nascimento do<br />

protagonista; Morte alegre; Inversões sexuais; Transformações mágicas; O ato de<br />

defecar.<br />

O próprio gênero textual rapsódia<br />

remete a marcas da <strong>carnavalização</strong>, afinal<br />

tanto o cenário como o personagem<br />

Macunaíma apresentam diversas<br />

manifestações culturais através das etnias,<br />

lendas e mitos que constituiriam uma<br />

unidade cultural brasileira.<br />

Imagem 3: A mãe de Macunaíma no momento do nascimento.<br />

O nascimento do protagonista irá “sinalizar a entrada no mundo carnavalizado da<br />

comédia épica”, ou seja, o herói foi “defecado para a existência”, compreende-se o seu<br />

nascimento como a representação da<br />

imagem do carnaval brasileiro, evocando<br />

o ridículo de forma satírica, pois há o<br />

“contraste <strong>entre</strong> o velho que já está<br />

próximo da morte e dá a luz ao novo, o<br />

mundo carnavalizado é virado de cabeça<br />

para baixo” (STAM, 2008, p. 425 – 428).<br />

Imagem 4: Nascimento de Macunaíma.<br />

O realismo carnavalesco, [...] vira a estética convencional de cabeça<br />

para baixo para dar lugar a um novo tipo de beleza popular e<br />

convulsiva, que ousa revelar o caráter grotesco dos poderosos e a<br />

beleza latente do “vulgar” [...] o riso tem um profundo significado<br />

filosófico; ele constitui uma perspectiva particular da experiência,


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que não é menos profunda que a seriedade e as lágrimas (STAM,<br />

2008, p. 465).<br />

As comemorações mediante a morte são observadas quando a mãe de Macunaíma<br />

morre, onde é realizado um banquete de vigília, ou mesmo durante a festa de casamento<br />

da filha de Pietro Pietra, em que ocorre uma “loteria festiva em que os vencedores são<br />

jogados numa piscina de corpos fragmentados e peixes vorazes” (STAM, 2008, p. 433).<br />

Neste sentido, observa-se o que Stam coloca sobre os personagens na arte<br />

carnavalesca, “A arte carnavalesca [...] vê seus personagens [...] como figuras abstratas<br />

que se parecem com bonecos, ri das surras, dos desmembramentos e até da morte”<br />

(STAM, 2008, p. 420), ou seja, os personagens não apresentam sentimentos mediante<br />

situações de dor, tristeza, abandono e da morte, mas riem e se divertem com estes fatos,<br />

a ordem e o poder deixam de ser termos a ser seguidos rigorosamente partindo para a<br />

ridicularização.<br />

As inversões sexuais são comuns no carnaval e nas chanchadas, portanto estarão<br />

presentes na obra fílmica em diversos momentos, como os que seguem: primeiro – o<br />

ator Paulo José aparece vestido de mulher dando a luz ao protagonista; segundo –<br />

Macunaíma se veste de francesa na perspectiva de estabelecer um diálogo com o<br />

gigante na conquista da pedra muiraquitã (STAM, 2008, p. 433).<br />

As transformações mágicas que ocorrem com o protagonista Macunaíma representa<br />

que ele é subjugado pelo poder, portanto se transforma, ou seja, são transformações de<br />

personalidades e etnias, pois ele nasce negro de uma mãe índia, ao fumar um cigarro se<br />

transforma num príncipe branco português, ao<br />

se banhar nas águas se torna branco e quando<br />

vai em busca da muiraquitã na casa de Pietro<br />

Pietra se veste de francesa, através destas<br />

diferentes etnias são representadas diversas<br />

culturas existentes em nosso país.<br />

Imagem 5: Transformação racial de Macunaíma ao se banhar nas águas cristalinas.


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Macunaíma sofre metamorfoses raciais [...] o protagonista de Mário<br />

não tem uma identidade racial fixa. Nascido negro de uma mãe índia,<br />

ele posteriormente se transforma num príncipe branco português e até<br />

numa divorciada francesa [...] suas transformações étnicas enfatizam<br />

a natureza necessariamente sincrética do ser dentro do contexto da<br />

metrópole multiétnica (STAM, 2008, p. 418).<br />

Essas transformações étnicas que ocorrem com Macunaíma representam uma critica<br />

sutil e cínica do racismo brasileiro, que ainda fazia parte da sociedade brasileira, ao<br />

regime militar e ao milagre econômico, ao considerar que o regime militar da época<br />

poderia transformar o Brasil numa nação próspera, porém esta prosperidade não dura<br />

muito e logo irá ceder espaço para uma divida nacional recorde que dará margem para o<br />

aumento na corrupção governamental.<br />

Outro elemento mágico é a figura do personagem Venceslau Pietro Pietra, o<br />

estrangeiro que encontrou a pedra muiraquitã, este no primeiro momento representa os<br />

capitalistas, as multinacionais e por fim a burguesia nacional que se utiliza de uma<br />

tecnologia americana de segunda mão.<br />

A lógica do carnaval é que o mundo é virado de cabeça para baixo; os<br />

poderosos são escarnecidos e reis ridículos são entronados e<br />

destronados [...] a figura mais poderosa em Macunaíma – o magnata<br />

industrial ubuesco e comedor de gente Pietro Pietra – é repetidas<br />

vezes entronado e destronado [...] ele se parece muito com o<br />

burlesco Rei da Folia, o Rei Momo, que reina no carnaval brasileiro<br />

[...] a figura de Pietro Pietra é relacionada no romance aos capitalistas<br />

novos ricos italianos da década de 1920, [...] ele incorpora a<br />

burguesia nacional dependente e sua tecnologia americana de<br />

segunda mão [...] Pietro invoca gigantes econômicos<br />

“multinacionais” que devoram o Brasil e seus recursos (STAM, 2008,<br />

p. 426 – 427).<br />

O gigante Venceslau Pietro Pietra representa portanto, a iniciativa privada e a<br />

extensão de abertura econômica e internacionalização do capital nacional, ou seja, é o<br />

canibalismo não só cultural, mas social.<br />

Macunaíma luta contra o gigante Venceslau Pietro Pietra, vencendo-o, porém ao<br />

final o herói/protagonista também é destronado, desperdiçando sua conquista, seu<br />

heroísmo, renuncia a sua vitória e retorna ao seu local de origem levando consigo


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objetos que mantém relação consumista e capitalista, ou seja, o herói deixou ser levado<br />

pelo consumismo e se tornou tão egoísta e individualista quanto seu inimigo, ou seja,<br />

ele não sabe aproveitar as conquistas adquiridas, e, ao retornar acaba morrendo sozinho<br />

e abandonado no meio da mata virgem, talvez por esta razão o herói seja também<br />

denominado O herói sem nenhum caráter.<br />

O protagonista na obra representa de forma geral a voz coletiva do povo brasileiro,<br />

as raízes étnicas, qualidades e defeitos desta nação brasileira que está nascendo tendo<br />

como base outras raças, lendas, mitos, crendices, provérbios e outros aspectos culturais<br />

que darão origem ao povo brasileiro.<br />

A sátira menipéia está vinculada a <strong>carnavalização</strong>, é representada de forma<br />

fantástica durante o nascimento do protagonista, no inicio do romance e do filme, o<br />

nascimento é sinalizado pelo nascimento do herói que representa o corpo grotesco do<br />

povo, através das expressões corporais, os contrastes: mãe homem/mulher, o bebê<br />

adulto, a família branca/negra, o velho já próximo da morte que dá a luz ao novo (bebê<br />

de 50 anos), através de um parto sangrento, conforme Stam cita em sua obra...<br />

Uma improvável mulher idosa branca (representada pelo ator Paulo<br />

José), de pé, grunhe até que ela /ele deposita um “bebê” chorão,<br />

negro, de cinqüenta anos (Grande Otelo) no chão. [...] O filme<br />

apresenta ainda os “violentos contrastes” da menipéia: a “mãe”<br />

homem/mulher [...], o “bebê” adulto [...], a “familia” branca/negra.<br />

Ao mesmo tempo prodigioso e grotesco, o nascimento em si<br />

representa o que Bakthin vê como uma imagem privilegiada do<br />

carnaval: o velho, próximo à morte, através de um parto sangrento, dá<br />

à luz ao novo (STAM, 2008, p. 425).<br />

O herói, representante de nossa gente, representa um herói possessivo,<br />

individualista, considerando este último aspecto como fator preponderante do espírito<br />

capitalista que naquele momento histórico se apossava da população. Macunaíma busca<br />

apenas benefícios próprios, lucratividade, representando assim uma alegoria quanto ao<br />

cenário político-econômico do Brasil, ou seja, o protagonista apresenta todos os<br />

problemas da sociedade brasileira, mostrando que o Brasil era inocente, assim como ele.


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No final do filme, Macunaíma está decadente, desdentado, patético e solitário, acaba<br />

por ser seduzido por uma sereia Uiara que o leva a mergulhar num lago, onde será<br />

devorado por ela.<br />

Nesta perspectiva observa-se que ambos os autores utilizam-se de elementos<br />

<strong>fantástico</strong>s para explorar temas políticos, econômicos e sociais de forma satírica e<br />

cômica, causando uma reviravolta nos padrões tidos como ideais e perfeitos da cultura<br />

até aquele momento histórico, possibilitando uma revolução nas produções posteriores<br />

de forma a buscar construir uma identidade cultural nacional independente, porém esta<br />

cultura não sobrevive, assim como Macunaíma não resiste e morre sozinho, devorado<br />

pela sereia, alegoria da idéia de que o mais forte destrói o mais fraco.<br />

Considerações Finais<br />

Com o realismo mágico busca-se transformar o que era uma fraqueza em força,<br />

portanto<br />

O real maravilhoso estará baseado em práticas culturais populares e<br />

crenças coletivas típicas das populações subalternas [...], o “mágico”<br />

não se refere aos efeitos ou estratégias surreais, mas aos mitos<br />

“arcaicos”, mas que ainda perduram, de um continente [...] escritores<br />

das Américas “cuidavam de reencantar o mundo caído inspirando-se<br />

na espiritualidade nativa e nas formas do saber desconhecidas na<br />

Europa” (STAM, 2008, p. 405).<br />

Portanto, os escritores que se utilizavam do realismo mágico buscavam explorá-lo<br />

de forma intensa através das palavras, gestos, imagens paródicas e carnavalescas de<br />

representação do real vivido pela nação brasileira, e é isto que fazem os autores da obra<br />

Macunaíma, eles representam através do realismo mágico a critica à sociedade<br />

econômica, política e social da época, utilizando-se de um herói, ou anti-herói, para<br />

apresentar um povo que não tem caráter, que é herói apenas no interior do Mato<br />

Virgem, onde a cultura não é ameaçada, a partir do momento que esta entra em contato<br />

com a civilização urbana e com o progresso industrial o herói passa a ser seduzido pelas<br />

atrações do mundo moderno, renegando suas raízes e tradições, absorvendo assim a<br />

civilização, devido a sua falta de caráter. O meio urbano, as cidades e indústrias


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destroem as nações e as culturas nacionais, o herói se vende às máquinas, frustrando a<br />

tentativa de estabelecer uma cultura nacional, afinal, a urbanização e a industrialização<br />

denigrem a zona rural.<br />

Através do elemento <strong>fantástico</strong> pedra muiraquitã, que é um amuleto folclórico, os<br />

autores representam a esperança do povo brasileiro na conquista de uma cultura<br />

nacional, a freqüente busca da pedra significa a necessidade da conquista da pureza<br />

perdida, ou, a busca da identidade nacional. A muiraquitã representa para Macunaíma a<br />

lembrança de Ci, ou seja, do seu Império, a floresta, a tradição que foi roubada por um<br />

estrangeiro, sendo assim, compreende-se que para o Brasil ter um desenvolvimento<br />

próprio vai parar nas mãos do estrangeiro, que representa o roubo do desenvolvimento<br />

independente do Brasil, ou como a dominação estrangeira na industrialização dos<br />

centros urbanos, representa assim um empecilho ao desenvolvimento do nosso país.<br />

A obra Macunaíma apresenta em seu enredo, através de seus personagens e<br />

elementos diversos mágicos e <strong>fantástico</strong>s a pr<strong>eo</strong>cupação na valorização de uma cultura<br />

nacional, do nosso povo e quer que nós também possamos valorizá-lo, não deixando<br />

que nossa cultura seja massacrada por outra, podendo chegar assim, na condição de<br />

civilização.<br />

Através desta rapsódia é retratada a realidade vivida pela sociedade brasileira no<br />

começo deste século, quando Macunaíma vai para São Paulo e entra em contato com<br />

outra cultura absorvendo-a de maneira feroz, perde assim sua brasilidade, e quando<br />

acontece o afastamento das raízes, uma cultura morre. Esta decadência da cultura ocorre<br />

no ápice da industrialização, nesta fase não há mais lugar para o mítico, para o lúdico.<br />

Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, vem mostrar que o Brasil já possui uma<br />

cultura própria, riquíssima, mas que se deixou enfeitiçar pelas maravilhas que a Europa<br />

proporcionou, e assim, nossa cultura morre. O próprio índio Macunaíma que iria criar a<br />

civilização brasileira, não resistiu e morreu sozinho e inútil.<br />

Referências


Universidade Estadual de Maringá – UEM<br />

Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350<br />

_________________________________________________________________________________________________________<br />

ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte/Rio<br />

de Janeiro: Villa Rica Ed. Reunidas LTDA, 2004.<br />

STAM, Robert. A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação.<br />

Trad. De Marie-Anne Kremer e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora<br />

UFMG, 2008.<br />

Nath, Silvana. O Discurso Polifônico da Obra Macunaíma: um estudo preliminar. 12ª<br />

JELL – Jornada de Estudos Lingüísticos e Literários – Diversidade lingüística, cultura<br />

e ensino. 24 a 27 de junho de 2009. ISSN:1677-3101.

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