Miguel Burnier: o lugar em fragmentação - UFMG
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS<br />
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS – DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA<br />
MIGUEL BURNIER: O LUGAR EM FRAGMENTAÇÃO<br />
FERNANDO ROGÉRIO DE LIMA CAMPOS<br />
15/JANEIRO/2012<br />
CONSELHEIRO LAFAIETE
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS<br />
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS – DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA<br />
MIGUEL BURNIER: O LUGAR EM FRAGMENTAÇÃO<br />
FERNANDO ROGÉRIO DE LIMA CAMPOS<br />
15/JANEIRO/2012<br />
CONSELHEIRO LAFAIETE<br />
Monografia apresentada na<br />
disciplina Trabalho de<br />
Conclusão de Curso II do<br />
Curso de Graduação <strong>em</strong><br />
Geografia (bacharelado) à<br />
Distância, da <strong>UFMG</strong>, sob<br />
Orientação do<br />
Prof. Dr. Claudinei Lourenço<br />
avaliada pelos Professores:
Resumo<br />
A localidade de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>, distrito de Ouro Preto, constituiu-se<br />
outrora <strong>em</strong> um importante entroncamento ferroviário do interior mineiro, por lá<br />
transitavam cargas e passageiros com destinos variados. Do Rio de Janeiro era<br />
alcançada pela “linha do centro”, primeira linha construída pela então Estrada de<br />
Ferro Dom Pedro II, a qual a partir de 1889 passou a se chamar Estrada de Ferro<br />
Central do Brasil, constituindo-se à época na espinha dorsal de todo o seu sist<strong>em</strong>a<br />
ferroviário; a partir daí ela se bifurcava, sendo que uma linha seguia <strong>em</strong> direção a<br />
Ouro Preto e a outra <strong>em</strong> direção a Belo Horizonte. Em <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> dava-se a<br />
“baldeação” dos passageiros que se dirigiam para o ramal de Ouro Preto, pois<br />
nesta direção a linha mudava de bitola, sendo necessária a mudança de tr<strong>em</strong>,<br />
enquanto os d<strong>em</strong>ais passageiros permaneciam no primeiro tr<strong>em</strong>. Atualmente o<br />
local está praticamente abandonado, contando com uma população diminuta<br />
(971pessoas, sendo que somente 382 resid<strong>em</strong> na área urbana do distrito), vivendo<br />
<strong>em</strong> um <strong>lugar</strong> <strong>em</strong> franca decadência, <strong>em</strong> casas <strong>em</strong>poeiradas, ruas toscamente<br />
pavimentadas, falta de assistência <strong>em</strong> todos os setores, enfim <strong>em</strong> condições de<br />
abandono. O presente trabalho t<strong>em</strong> por objetivo pesquisar o papel desta localidade<br />
neste importante capítulo do desenvolvimento do país, firmado na história da<br />
ferrovia e da siderurgia <strong>em</strong> Minas Gerais, <strong>em</strong> seus primórdios, passando pelo<br />
apogeu do transporte ferroviário, sua substituição pelo transporte rodoviário e o<br />
declínio do mesmo <strong>em</strong> função da desativação ou baixa utilização de seus ramais<br />
ferroviários.<br />
Palavras-chave: Espaço; <strong>lugar</strong>; ferrovia; desenvolvimento; contradições.
Abstract<br />
The settl<strong>em</strong>ent of <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>, district of Ouro Preto, formerly<br />
constituted an important railway junction in the countryside of Minas Gerais.<br />
There, loads and passengers used to transit to various destinations. From Rio de<br />
Janeiro it was reached by “linha do centro”, the first built railway by Estrada de<br />
Ferro Dom Pedro II, that as from 1889 was renamed Estrada de Ferro Central do<br />
Brasil, which at that time was placed in the backbone of the whole railroad<br />
syst<strong>em</strong>, from this point on it branched off to the directions of Ouro Preto and Belo<br />
Horizonte. The passengers who were going to the railroad branch line of Ouro<br />
Preto used to make a change in <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> since in this direction the line<br />
changed the gauge being necessary the train transfer, while the others r<strong>em</strong>ained on<br />
the first train. Nowadays the place is almost abandoned, with a small population<br />
(971 people, only 382 reside in the urban area of the district) living in a decaying<br />
place, in dusty houses, on roughly paved streets, with lack of assistance in all<br />
sectors, in short, in dereliction. This study aims to examine the role of this district<br />
in this important chapter in the development of the country, signed in the history<br />
of the railway and steel industry in Minas Gerais, in its beginnings, through the<br />
heyday of the rail syst<strong>em</strong>, its substitution for the highway network and its own<br />
decline due to the deactivation and poor use of the railway lines.<br />
Keywords: Space, place, railway, development, contradictions.
Sumário<br />
Lista de tabelas .................................................................................................. 6<br />
Lista de figuras .................................................................................................. 7<br />
Lista de siglas e abreviaturas ........................................................................... 8<br />
Apresentação ...................................................................................................... 9<br />
Metodologia ...................................................................................................... 11<br />
Estrutura do trabalho ..................................................................................... 11<br />
Introdução. ....................................................................................................... 12<br />
Cap. 1. A localidade de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> e sua posição privilegiada no<br />
contexto ferroviário. ........................................................................................ 24<br />
1.1. História de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> ..................................................................... 30<br />
1.2. A abertura do ramal do Paraopeba, o começo do fim para a linha do<br />
centro? .............................................................................................................. 32<br />
1.3. O quadro atual .......................................................................................... 33<br />
Cap. 2. O vapor, energia que tornou possível o surgimento das ferrovias. 39<br />
2.1. . O surgimento da ferrovia e seu desenvolvimento gerador de impacto<br />
no mundo moderno. ........................................................................................ 40<br />
Cap. 3. Mãos e mentes que forjaram uma ferrovia. .................................... 41<br />
Cap. 4. A ferrovia como fator de integração e geração de progresso no<br />
interior do país. ................................................................................................ 46<br />
4.1. A chegada dos trilhos ao interior mineiro. ............................................ 47<br />
Cap.5. O incentivo à industria automobilística e ao sist<strong>em</strong>a rodoviário <strong>em</strong><br />
detrimento do ferroviário nos anos 1950. ...................................................... 49<br />
5.1. Ideias, propostas, possibilidades. ............................................................ 50<br />
Considerações finais. ....................................................................................... 54<br />
Referências bibliográficas. .............................................................................. 59<br />
Anexos ..................................................................... Erro! Indicador não definido.
Lista de tabelas<br />
Tabela 1: Evolução da população de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> a partir de 1950, tabela<br />
elaborada a partir dos dados do IBGE.<br />
6
Lista de figuras<br />
Figura 1: Gráfico de geração de <strong>em</strong>pregos diretos e indiretos no setor ferroviário.<br />
Figura 2: Esqu<strong>em</strong>as das linhas da EFCB no estado de Minas Gerais <strong>em</strong> 1965.<br />
Figura 3: Pátio da estação de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> nos anos 1970.<br />
Figura 4: Pátio da estação de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> atualmente.<br />
Figura 5: Localização do distrito de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> no estado de Minas Gerais.<br />
Figura 6: Localização do Distrito de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> dentro do Município de Ouro<br />
Preto.<br />
Figura 7: Fotografia da estação de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> atualmente.<br />
Figura 8: Fotografia da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, <strong>em</strong> <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>.<br />
Figura 9: Localização do c<strong>em</strong>itério de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>, antes e depois da chegada<br />
da Gerdau.<br />
Figura 10: Fotografia da Vila operária construída pela Usina Wigg, hoje<br />
d<strong>em</strong>olida.<br />
Figura 11: Fotografia da estação ferroviária de Juiz de Fora <strong>em</strong> 1885.<br />
Figura 12: Rota de circulação dos trens carregados de calcário e ferro gusa.<br />
Figura 13: Corredor exclusivo para os trens vazios que segu<strong>em</strong> para os pontos de<br />
carregamento.<br />
Figura 14: Possíveis rotas do tr<strong>em</strong> turístico para <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> e Ouro Preto.<br />
Figura 15: Mapa das ferrovias de carga no Brasil <strong>em</strong> 2011. ANTF<br />
Figura 16: Detalhe do mapa das ferrovias de carga no Brasil <strong>em</strong> 2011.<br />
7
Lista de siglas e abreviaturas<br />
ALL: América Latina Logística.<br />
ANTF: Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários.<br />
EFCB: Estrada de Ferro Central do Brasil.<br />
EFDP II: Estrada de Ferro Dom Pedro II<br />
EFL: Estrada de Ferro Leopoldina.<br />
FCA: Ferrovia Centro Atlântica<br />
GE: General Eletric<br />
NAMISA: Nacional Minérios S.A.<br />
PPGH/ <strong>UFMG</strong>: Programa de Pós Graduação <strong>em</strong> História da Universidade Federal<br />
de Minas Gerais.<br />
RFFSA: Rede Ferroviária Federal S.A.<br />
TGV: Train à Grand Vitasse ( Tr<strong>em</strong> de alta velocidade, <strong>em</strong> francês).<br />
8
Apresentação<br />
Conviver com a atual situação de abandono da malha ferroviária brasileira<br />
e consequent<strong>em</strong>ente com a decadência de muitas localidades ao longo de seu leito,<br />
logicamente nos impulsiona a tentar realizar algo no intuito de tentar entender o<br />
porquê de tal situação, analisar possibilidades de reversão do presente quadro,<br />
<strong>em</strong>itir opiniões, enfim compreender a realidade, não deixando de lado,<br />
obviamente, a chance de resgatar todo um passado de relevante importância. Os<br />
constantes acidentes rodoviários com milhares de vítimas todos os anos, os<br />
inúmeros congestionamentos <strong>em</strong> nossa malha rodoviária e todas as mazelas<br />
advindas disto, também nos r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> a pensar o porquê da desarticulação de todo<br />
um sist<strong>em</strong>a ferroviário que poderia ser ampliado e modernizado, revertendo todo<br />
este quadro negativo. Além destas razões, devo admitir que motivos pessoais<br />
foram de fundamental importância no presente <strong>em</strong>preendimento, visto que nasci<br />
às margens da ferrovia, meu avô e meu pai foram maquinistas, enfim convivi<br />
s<strong>em</strong>pre com a ferrovia e mantenho l<strong>em</strong>branças vívidas na m<strong>em</strong>ória, pelo menos<br />
do final da era áurea da ferrovia como modal de transporte de passageiros, nos<br />
anos 1970, quando minhas viagens por ferrovia para <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> e Ouro Preto<br />
eram uma constante, por questões econômicas.<br />
Chegávamos à estação b<strong>em</strong> cedo, afinal mineiro não perde tr<strong>em</strong>, após a<br />
compra dos bilhetes de passag<strong>em</strong>, ou melhor, da requisição dos mesmos, visto que<br />
meu pai era maquinista e <strong>em</strong> época de férias escolares entrava com requerimento<br />
junto a RFFSA solicitando passe livre para nossas viagens, nos acomodávamos<br />
nos vagões de madeira da segunda classe já que o tr<strong>em</strong> que utilizávamos não<br />
possuía vagões de primeira classe. A expectativa da partida era grande, quando o<br />
chefe da estação, após tocar o sino da mesma, anunciava pelo rústico sist<strong>em</strong>a de<br />
auto-falantes: “vai partir o tr<strong>em</strong> com destino à Esperança”! Ficava imaginando<br />
que <strong>lugar</strong> seria este, que cidade seria esta, afinal o nosso local de destino ficava<br />
aquém de tal estação, descíamos três estações antes da estação final. No meu<br />
imaginário idealizava Esperança como um <strong>lugar</strong> paradisíaco, perfeito, um<br />
verdadeiro xangri-lá, afinal o nome era bastante sugestivo; contudo anos mais<br />
tarde fiquei decepcionado ao descobrir que Esperança estava muito distante de<br />
minha idealização, pois n<strong>em</strong> sequer tratava-se de uma cidade, era na realidade<br />
9
uma parada do tr<strong>em</strong>, no final da linha de bitola larga na cidade de Itabirito.<br />
Esperança era o nome da usina siderúrgica instalada no local, a primeira usina de<br />
ferro a ser instalada no Brasil.<br />
Nosso destino final era <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>, mais conhecida por meu pai como<br />
São Julião, antigo nome da localidade até 1948, quando então se adotou o nome<br />
da estação ferroviária para designar a localidade. A viag<strong>em</strong> partindo da estação de<br />
Conselheiro Lafaiete transcorria de forma bastante harmônica e divertida; os<br />
bancos de madeira dos vagões permitiam uma movimentação no sentido de ser<strong>em</strong><br />
virados uns de frente para os outros, com isso a família viajava <strong>em</strong> um ambiente<br />
informal e descontraído, onde dividíamos lanches trazidos de casa; desta forma a<br />
viag<strong>em</strong> prosseguia com o vislumbre de belas paisagens e dos “morros azuis” que<br />
eu observava ao longe e julgava ser<strong>em</strong> realmente desta cor, mas os morros azuis<br />
nunca chegavam, pois ao nos aproximarmos dos mesmos eles se tornavam verdes<br />
como quaisquer outros; ainda não entendia a ilusão de óptica proporcionada pela<br />
atmosfera terrestre quando observamos paisagens ao longe. Várias eram as<br />
paradas no trajeto, começando <strong>em</strong> Gagé, depois Murtinho, Lobo Leite, Chockatt<br />
de Sá e finalmente <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>, onde o tr<strong>em</strong> efetuava uma parada de alguns<br />
minutos para então seguir pela linha do centro <strong>em</strong> direção a Itabirito e Esperança,<br />
o final da linha.<br />
Desse contato direto com o passado da localidade, comparando-o com as<br />
atuais condições de abandono, seja da população, seja do patrimônio ferroviário,<br />
surgiu a ideia de desenvolver o presente trabalho. Entretanto não pod<strong>em</strong>os nos<br />
deixar levar por saudosismos que certamente tenderão a distorcer o conteúdo de<br />
nosso trabalho, podendo nos fazer enveredar por caminhos equivocados; torna-se,<br />
portanto, b<strong>em</strong> mais prudente agir como recomenda a pesquisadora do PPGH/<br />
<strong>UFMG</strong> Maria Eliza Linhares Borges, quando escreve que:<br />
T<strong>em</strong>os que utilizar as raras oportunidades para o<br />
confronto, s<strong>em</strong>pre salutar, porque analítico, entre a<br />
tentação de romantizar o passado e a necessidade de<br />
promover sua constante dessacralização. Afinal, é<br />
exatamente no exercício de resistir ao poder sacralizador<br />
da m<strong>em</strong>ória que se encontra a possibilidade de criar um<br />
mundo novo, livre dos efeitos coléricos ou entusiásticos do<br />
que ficou, no presente, das m<strong>em</strong>órias do passado. (LIMA,<br />
2009, pag. 13)<br />
10
Metodologia<br />
A metodologia utilizada na pesquisa serviu-se principalmente da consulta<br />
à bibliografia concernente ao assunto, bibliografia esta que constituiu-se de títulos<br />
diversos, periódicos e informativos de âmbito federal, estadual e municipal;<br />
visitas a museus e consultas à internet. Visitas ao local foram de suma importância<br />
para reconhecimento, obtenção de material fotográfico, elaboração de croquis e<br />
principalmente para tomar contato com a população local com o intuito de<br />
recolher suas impressões, resgatar suas m<strong>em</strong>órias, conhecer suas necessidades,<br />
anseios e sonhos. Neste contato optou-se por utilizar uma metodologia baseada<br />
<strong>em</strong> entrevistas, contudo não se trataram de entrevistas previamente elaboradas<br />
com a apresentação de um questionário pré-formatado (entrevista não estruturada)<br />
e sim de abordagens espontâneas que tinham por intuito deixar o entrevistado o<br />
mais à vontade possível; o mesmo foi feito com alguns ex-moradores do distrito<br />
que atualmente resid<strong>em</strong> <strong>em</strong> Conselheiro Lafaiete.<br />
Estrutura do trabalho<br />
À partir da análise da metodologia <strong>em</strong>pregada no presente trabalho e<br />
visando um melhor entendimento tanto do momento atual do quadro descrito,<br />
quanto dos fatores que levaram a ele, passando por uma cronologia e<br />
historiografia necessárias ao conjunto, partindo do presente pra então r<strong>em</strong>ontar ao<br />
passado, dividi o trabalho da seguinte forma:<br />
A introdução apresenta uma revisão bibliográfica destinada a fornecer um<br />
<strong>em</strong>basamento teórico acerca do t<strong>em</strong>a, b<strong>em</strong> como um direcionamento específico do<br />
objeto de estudo, passando pela apresentação, onde exponho as razões que me<br />
levaram a escolher o presente t<strong>em</strong>a para esta monografia, chegando finalmente a<br />
metodologia <strong>em</strong>pregada para se atingir a finalidade desejada.<br />
No capítulo 1 começo explanando sobre a localização estratégica da<br />
localidade <strong>em</strong> foco e de sua importância dentro da malha ferroviária da época,<br />
passando por sua história e chegando ao quadro atual de abandono.<br />
No capítulo 2 julguei necessário r<strong>em</strong>ontar um pouco às origens da ferrovia,<br />
tomando como base a energia do vapor, que tornou possível tal realização,<br />
11
passando por uma breve história do impacto causado <strong>em</strong> todo mundo pelo advento<br />
da ferrovia no século XIX.<br />
O capítulo 3 apresenta um movimento regressivo <strong>em</strong> direção à gênese e<br />
desenvolvimento da ferrovia no Brasil.<br />
No capítulo 4 o papel des<strong>em</strong>penhado pela ferrovia no interior do país<br />
como geradora de progresso e fator de integração é apresentado, tendo como<br />
pormenor a chegada da ferrovia ao nosso estado.<br />
O capítulo 5 d<strong>em</strong>onstra como o incentivo ao transporte rodoviário nos<br />
anos 1950 se constituiu <strong>em</strong> um fator agravante da desarticulação do sist<strong>em</strong>a<br />
ferroviário no país e apresenta possibilidades de reversão e/ou atenuação do<br />
quadro de abandono no trecho ferroviário abordado no trabalho.<br />
Nas considerações finais apresento um panorama geral do transporte<br />
ferroviário, tanto no segmento de cargas quanto no de passageiros, traçando um<br />
comparativo do nosso país com países da América do Norte e Europa, ressaltando<br />
as diferenças e principalmente relatando o desconhecimento da real situação de<br />
nossa malha ferroviária no presente.<br />
Introdução.<br />
Ao analisarmos as múltiplas implicações relativas à busca de<br />
entendimento da realidade do transporte ferroviário no país, passando pelo apogeu<br />
e queda do mesmo, assim como pela modificação urbana operada pela sua<br />
implantação e posterior desarticulação chegamos à conclusão que inúmeras são as<br />
facetas disponíveis para o desvendamento e possível entendimento da realidade de<br />
nosso objeto de estudo, levando-nos a um necessário direcionamento à<br />
interdisciplinaridade envolvida e a interdependência constatada, mesmo <strong>em</strong> uma<br />
análise inicial do probl<strong>em</strong>a. As inúmeras possibilidades r<strong>em</strong>et<strong>em</strong>-nos aos diversos<br />
enfoques da pesquisa <strong>em</strong> Geografia, pod<strong>em</strong>os partir da necessária superação da<br />
divisão entre Geografia Física e Geografia Humana; como afirma Christofoletti<br />
(1985): “pode-se relacionar a Geografia Física com a Geografia Humana, a<br />
12
primeira, representando o conjunto do meio geográfico e a segunda,<br />
representando as atividades humanas”. Não há como efetuarmos uma divisão do<br />
que é a natureza física e do que é a natureza humana; Marx, que elaborou uma<br />
teoria não-sist<strong>em</strong>ática da natureza, nos oferece uma alternativa unificada e não-<br />
contraditória da mesma. Essa teoria, elaborada como crítica à economia política<br />
clássica é comumente chamada de materialismo histórico e considera a natureza<br />
<strong>em</strong> dois momentos, sendo que a transição entre ambos se dá através do processo<br />
de apropriação e transformação realizado pelo hom<strong>em</strong> ao longo da história; para<br />
Marx (2000) "A história pode ser considerada de dois lados, dividida <strong>em</strong> História<br />
da Natureza e História dos Homens. No entanto, esses dois aspectos não se<br />
pod<strong>em</strong> separar”. A construção de uma ferrovia e o consequente desenvolvimento<br />
de cidades ao longo de seu leito nos r<strong>em</strong>ete a ideia de apropriação e transformação<br />
da natureza operada por uma sociedade que da mesma forma se transforma<br />
constant<strong>em</strong>ente, e se desenvolve com fins específicos. Para Marx a ferrovia se<br />
constituía na supr<strong>em</strong>a realização da economia industrial, pensamento corroborado<br />
por Hobsbawm (2009) que considera o surgimento da ferrovia como “o marco<br />
que dá início à revolução dos transportes”, considerando que a entrada <strong>em</strong> cena<br />
da ferrovia provoca um enorme impacto sobre a economia capitalista com a<br />
expansão do mercado, tornando o mundo inteiro parte desta economia.<br />
A burguesia, através de sua exploração do mercado<br />
mundial, deu um caráter cosmopolita para a produção e o<br />
consumo <strong>em</strong> todos os países. (...) Em <strong>lugar</strong> das antigas<br />
vontades, satisfeitas pela produção do país, encontramos<br />
novas vontades, exigindo para satisfazê-las produtos de<br />
terras distantes. No <strong>lugar</strong> da antiga reclusão e autosuficiência<br />
local e nacional, t<strong>em</strong>os conexões <strong>em</strong> todas as<br />
direções, uma interdependência universal das nações.<br />
A burguesia, pelo aperfeiçoamento rápido de todos os<br />
instrumentos de produção, pelos meios de comunicação<br />
imensamente facilitados, arrasta todas as nações, até a<br />
mais barbárica, para a civilização. (...) Compele-as a<br />
introduzir o que chama de civilização no seu meio, ou<br />
seja, a tornar<strong>em</strong>-se burguesas. Resumindo, cria um mundo<br />
à sua imag<strong>em</strong>.<br />
(ENGELS e MARX, 2000)<br />
O fato de tratar-se a questão dos investimentos <strong>em</strong> ferrovias ao redor do<br />
mundo e particularmente <strong>em</strong> nosso país, como um mero negócio, um mero<br />
instrumento capitalista na acumulação de riquezas, não é algo novo, muito pelo<br />
13
contrário, pois desde a implantação do transporte ferroviário no Brasil, a visão que<br />
se tinha por parte dos investidores era plenamente capitalista, contrastando com o<br />
idealismo do Imperador Pedro II, como afirma Caldeira aludindo ao Barão de<br />
Mauá, o maior <strong>em</strong>preendedor brasileiro da época do império:<br />
Mauá não fazia <strong>em</strong>presas apenas porque gostava de trens<br />
ou lampiões; essas novidades eram apenas instrumentos<br />
para um outro fim, os lucros”. Ele só tocava para frente<br />
seus projetos após avaliar as possibilidades dos<br />
resultados financeiros e, depois de implantados, julgava<br />
seu valor pelas entradas no caixa. (CALDEIRA, 2010,<br />
pag. 30)<br />
O desenvolvimento de cidades e mesmo a sua criação por meio da ferrovia<br />
foi um fato bastante corriqueiro no interior do Brasil nas últimas décadas do sec.<br />
XIX e início do XX. No caso das ferrovias destinadas aos interesses estratégicos a<br />
criação destas cidades foi levada a termo pela própria companhia ferroviária.<br />
Estações eram criadas <strong>em</strong> pontos chave, muitas vezes no meio da mata, e daí por<br />
diante as mesmas definiam o direcionamento do arruamento e a ocupação urbana<br />
tendo por base a ferrovia. Entretanto o modelo mais comum de ocupação do<br />
interior ligado diretamente à ferrovia foi aquele no qual se observava antes de<br />
tudo o interesse por cargas e fluxos rentáveis, mesmo que se tratass<strong>em</strong> no<br />
momento de meras lavouras incipientes, contudo o poder transformador da<br />
chegada do tr<strong>em</strong> era tão avassalador que certamente traria, na maioria dos casos, o<br />
aumento da produção assim como a valorização das terras por onde passava.<br />
Apesar deste fato, o desenvolvimento das cidades ao longo do leito da ferrovia<br />
não podia ser considerado uma constante, visto que n<strong>em</strong> todas as cidades que<br />
eram atravessadas pela ferrovia se desenvolviam conforme o esperado, pois<br />
muitas das vezes as perspectivas eram exageradas <strong>em</strong> relação às possibilidades,<br />
entretanto não ter a ferrovia passando por suas terras era algo que nenhum<br />
proprietário ou mesmo cidadão comum desejava, pois esta possibilidade poderia<br />
significar o atraso, o abandono, o esquecimento, como atestam as palavras de<br />
Monteiro Lobato <strong>em</strong> seu livro Cidades Mortas:<br />
A cidadezinha onde moro l<strong>em</strong>bra soldado que fraqueasse<br />
na marcha e, não podendo acompanhar o batalhão, à<br />
beira do caminho se deixa ficar, exausto e só, com os<br />
olhos saudosos pousados na nuv<strong>em</strong> de poeira erguida<br />
além. Desviou-se dela a civilização. O telégrafo não a põe<br />
à fala com o resto do mundo, n<strong>em</strong> as estradas de ferro se<br />
14
l<strong>em</strong>braram de uni-la à rede por intermédio de humilde<br />
ramalzinho... (LOBATO, apud GHIRARDELLO, 2008,<br />
pag. 27)<br />
Desta forma o desenvolvimento da malha ferroviária pelo interior do país<br />
constituía-se <strong>em</strong> um eficiente instrumento de urbanização, fazendo surgir muitas<br />
cidades <strong>em</strong> áreas antes desertas e alavancando sobr<strong>em</strong>aneira o desenvolvimento<br />
de núcleos pré-existentes. As pequenas vilas recebiam a ferrovia como uma<br />
verdadeira dádiva, pois nela eram depositadas suas esperanças de crescimento, ela<br />
era o aval para os investimentos privados no setor de urbanização, pois agora o<br />
retorno era seguro, garantido. Esta necessidade de ter a ferrovia fazia com que na<br />
maioria das vezes estas localidades aceitass<strong>em</strong> o traçado imposto pelas<br />
companhias ferroviárias, mesmo que isto implicasse <strong>em</strong> uma cisão das mesmas,<br />
pois o traçado era escolhido de forma a se evitar o máximo possível a necessidade<br />
de construção de obras de arte 1 , que encareciam a obra; desta forma muitas vezes<br />
a ferrovia cortava a cidade ao meio, fazendo nascer dois núcleos distintos que<br />
muitas das vezes modificava o status das pessoas que lá residiam. À beira da linha<br />
eram construídas as residências dos invejados funcionários da ferrovia,<br />
constituindo-se de casas b<strong>em</strong> construídas, principalmente aquelas destinadas aos<br />
chefes de estação que tinham uma posição privilegiada <strong>em</strong> relação às d<strong>em</strong>ais, pois<br />
tratava-se de um cargo de extr<strong>em</strong>a importância reconhecido e respeitado até<br />
mesmo pelos não funcionários que viam no chefe de estação uma figura <strong>em</strong>inente.<br />
Tamanha era a necessidade de ter a ferrovia cortando sua cidade que<br />
muitos políticos chegavam ao ponto de usar sua influência no intuito de mudar os<br />
planos do traçado da linha, como no caso ocorrido com o município de Sete<br />
Lagoas, onde a linha férrea não passaria, visto que seguindo os planos originais, a<br />
mesma seguiria a planície do Rio das Velhas, portanto bastante distante do sítio<br />
urbano da cidade.<br />
Munido de um arrojado projeto, mas baseado <strong>em</strong><br />
argumentos geográficos e econômicos essencialmente,<br />
bastante lógicos, o doutor João Antônio de Avelar,<br />
patrono de uma das mais influentes famílias locais, parte<br />
para o Rio de Janeiro <strong>em</strong> busca do atendimento de seus<br />
1 A denominação “obras de arte” <strong>em</strong> uma ferrovia abrange todo o conjunto de construções<br />
necessárias a infraestrutura das mesmas como pontes, viadutos, túneis, aterros, dentre outras.<br />
15
interesses, os quais afinal, beneficiariam grand<strong>em</strong>ente a<br />
cidade. Esse importante m<strong>em</strong>bro da elite local, que foi<br />
várias vezes vereador, prefeito, deputado estadual e o<br />
primeiro médico que a cidade conheceu, era um político<br />
muito inteligente e perspicaz que, utilizando-se de três<br />
argumentos, conseguiu que eles foss<strong>em</strong> considerados pela<br />
comissão responsável pela expansão da Estrada de Ferro<br />
Central do Brasil. (NOGUEIRA, 2006, pag. 115)<br />
Contudo, atualmente parece haver uma verdadeira aversão à ferrovia <strong>em</strong><br />
nosso país, com muitos municípios desejando de forma bastante intensa a retirada<br />
das linhas férreas do sítio urbano, decisão compartilhada pela maioria da<br />
população que vê na ferrovia um meio de transporte anacrônico que só interfere<br />
<strong>em</strong> suas atividades diárias, entretanto é preciso ponderar que a ferrovia<br />
des<strong>em</strong>penhou e ainda des<strong>em</strong>penha um importante papel na economia do país,<br />
porém <strong>em</strong> uma sociedade baseada na cultura do automóvel, tal atitude é até<br />
esperada. Em muitos municípios o plano diretor dos mesmos chega ao ponto de<br />
sugerir a retirada das linhas férreas, para <strong>em</strong> seu <strong>lugar</strong> promover a construção de<br />
avenidas. No final do séc. XIX ferrovia era sinônimo de progresso,<br />
desenvolvimento e integração econômica, e principalmente des<strong>em</strong>penhava seu<br />
mais importante papel, podia proporcionar o encolhimento do mundo, como atesta<br />
Yves Lacoste ao afirmar que:<br />
É uma perfeita banalidade dizer, nos dias de hoje, que<br />
tudo aquilo que está longe sobre a carta é b<strong>em</strong> perto com<br />
determinado meio de circulação. A proporcionalidade do<br />
t<strong>em</strong>po e do espaço percorrido, durante séculos, ao ritmo<br />
do pedestre (ou a passo de cavalo, para os poderosos)<br />
começou a se romper no século XIX, <strong>em</strong> certos eixos, onde<br />
a estrada de ferro diminuiu dez vezes as distâncias.<br />
(LACOSTE, 2009, pag.48)<br />
Parece que hoje esta visão foi esquecida, pelo menos no Brasil, e<br />
substituída por uma visão que elegeu o automóvel como senhor absoluto, já que o<br />
automóvel não é limitado na sua movimentação, ao contrário da ferrovia pode-se<br />
ir a qualquer <strong>lugar</strong> com o automóvel, conferindo liberdade total ao seu feliz<br />
proprietário e principalmente ele é um b<strong>em</strong> privado e não público como, <strong>em</strong><br />
alguns casos, a ferrovia, o que só faz aumentar o seu fascínio. A coletividade<br />
involuntária imposta pelo tr<strong>em</strong> é na realidade uma oposição ao capitalismo, apesar<br />
da ferrovia nos seus primórdios se constituir <strong>em</strong> seu principal produto, desta<br />
16
forma o que se vê são seres humanos profundamente estranhos entre si que<br />
eleg<strong>em</strong> o dinheiro e a capacidade de poder fazer e obter tudo, como seus ícones.<br />
Esta estranha colocação da relação social parece se transformar de certa forma <strong>em</strong><br />
uma relação ameaçadora, o que foi denominado por Marx de “estranhamento”,<br />
enquanto Jean Paul Sartre a desenvolveu partindo do princípio de que: “ o inferno<br />
são os outros”. Hoje o papel do automóvel tornou-se tão importante na vida<br />
moderna que seu usuário não se dá conta da relação da evolução do mesmo e da<br />
evolução dos trens, pois basicamente o automóvel desde os t<strong>em</strong>pos de Henry Ford<br />
muito pouco se modificou, trata-se apenas do aperfeiçoamento do primitivo<br />
modelo “T”, criado por Ford, muito famoso <strong>em</strong> sua época, que atualmente é<br />
mitificado pela mídia e elevado a condição de tecnologia máxima, mas ao<br />
contrário dos modernos trens, o mesmo ainda depende da atenção e do bom senso<br />
de seu condutor, o menor descuido na direção e as conseqüências pod<strong>em</strong> ser<br />
terríveis. As locomotivas dos trens atuais por outro lado, pouco l<strong>em</strong>bram as<br />
pioneiras locomotivas à vapor e <strong>em</strong> relação à tecnologia, ocorreu uma<br />
significativa evolução tanto no que tange à segurança quanto <strong>em</strong> relação ao meio<br />
de propulsão que não ficou, como o automóvel, apegado somente à utilização de<br />
motores de combustão interna, ganhando com isso <strong>em</strong> eficiência energética como<br />
também na relação b<strong>em</strong> mais amistosa com o meio ambiente.<br />
Atualmente nos países desenvolvidos a ferrovia constitui-se num dos<br />
principais meios de transporte, seja no seguimento de cargas, seja no de<br />
passageiros, este último um grande ex<strong>em</strong>plo da evolução deste meio de transporte,<br />
com ex<strong>em</strong>plos significativos, tais como o tr<strong>em</strong> bala japonês, com sua eficiência e<br />
pontualidade, e o TGV europeu, que trafegam a elevadas velocidades e extr<strong>em</strong>a<br />
segurança. A Europa encontra-se totalmente interligada por ferrovias, sendo este<br />
tipo de transporte preferido pela população, com ligações rápidas e eficientes<br />
entre as principais cidades e capitais do velho mundo. Obras magníficas de<br />
engenharia são executadas na atualidade com o intuito de melhor servir à<br />
população no tocante à ligação ferroviária, como o Eurotúnel, sob o canal da<br />
mancha que permitiu a ligação rápida entre Londres e Paris, evitando-se a lenta, e<br />
n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre tranquila travessia, efetuada pelos “ferry boats” entre as cidades de<br />
Dover, do lado inglês do canal e Calais do lado francês.<br />
17
Países como a Suíça possu<strong>em</strong> legislações específicas que têm por<br />
finalidade fomentar o transporte ferroviário, se constituindo talvez no único país<br />
do mundo onde a Constituição determina que o sist<strong>em</strong>a ferroviário tenha<br />
prioridade absoluta no transporte de cargas. Em seu artigo 84, a Carta Magna<br />
suíça ainda apresenta a proibição expressa de aumento da capacidade das rodovias<br />
nas regiões dos Alpes, que constitu<strong>em</strong> dois terços do território suíço. Nações<br />
como a China apostam na ferrovia como solução para o transporte atual e futuro,<br />
construindo ferrovias como a que liga a capital Pequim à Lhasa, capital da<br />
província do Tibet, obra considerada impossível anos atrás, mas que graças a<br />
engenhosidade dos chineses, se tornou realidade; contudo aqui a construção de<br />
uma ferrovia tomou conotações de Geopolítica, visto que <strong>em</strong>butidas no<br />
<strong>em</strong>preendimento estão explícitas as intenções chinesas de consolidar sua<br />
ocupação do território tibetano, invadido na década de 1950.<br />
Contudo, n<strong>em</strong> só nos países desenvolvidos encontramos ex<strong>em</strong>plos da<br />
máxima utilização da ferrovia como meio principal de transporte; entre os países<br />
<strong>em</strong> desenvolvimento pod<strong>em</strong>os citar a Índia, que t<strong>em</strong> hoje neste modal a base de<br />
sua estrutura de transporte, o que ocorre desde os t<strong>em</strong>pos <strong>em</strong> que este país era<br />
uma colônia britânica. A ferrovia Indiana é o maior legado do domínio britânico<br />
na índia que se estendeu por quase duzentos anos; os britânicos instalaram os<br />
primeiros trilhos <strong>em</strong> 1850 com a intenção de interconectar as diferentes regiões de<br />
sua mais rica colônia. Após a independência o crescimento da ferrovia continuou<br />
estendendo sua malha por centenas de quilômetros no interior do país interligando<br />
territórios <strong>em</strong> todas as direções e sentidos, que se fundiram <strong>em</strong> uma única ferrovia<br />
que possui atualmente cerca de 60 mil quilômetros de extensão, com mais de 7<br />
mil estações (National Geographic Society, 1995), constituindo-se desta forma na<br />
maior ferrovia do mundo sob uma única administração. Na Índia viajam<br />
diariamente mais de 11 mil trens, com expressos que faz<strong>em</strong> diversas conexões,<br />
possuindo rotas de longas distâncias e trens famosos que viajam por todo o<br />
comprimento do país conduzindo os indianos a qualquer parte de seu território por<br />
menos de sete dólares. A ferrovia constitui-se verdadeiramente na linha de vida da<br />
Índia, país que soube conservar o legado dos britânicos e continuar a utilizar suas<br />
ferrovias no século XXI, fazendo com que a rotina de interligação entre as mais<br />
r<strong>em</strong>otas localidades e vilas permanecesse como nos t<strong>em</strong>pos coloniais, fazendo<br />
18
com que o tr<strong>em</strong> continuasse a fazer parte do cotidiano do povo indiano com todo<br />
seu significado, quase sagrado para a grande maioria.<br />
Já <strong>em</strong> nosso país o transporte ferroviário é incipiente, visto que atualmente<br />
é subutilizado, limitando-se somente ao transporte de cargas na maioria do que<br />
resta de sua malha. Mesmo <strong>em</strong> trechos de grande industrialização, como no caso<br />
de Rio de Janeiro e São Paulo, onde a ferrovia seria a opção mais viável, não só<br />
na economia de combustível como também no volume transportado, a ferrovia<br />
utiliza somente uma ínfima parte da capacidade de transporte, chegando a<br />
ociosidade a 66%. Aqui impera a modalidade rodoviária de transporte, sendo que<br />
90% do transporte de passageiros e 60% do de cargas é efetuado por este modal<br />
(ANTF, 2011); um clássico ex<strong>em</strong>plo dos países subdesenvolvidos, onde os<br />
automóveis e as motocicletas se constitu<strong>em</strong> nos principais meios de transporte<br />
utilizados, com elevados índices de acidentes, poluição atmosférica e sonora,<br />
baixa fluidez no trânsito aliados a um elevado consumo de combustível <strong>em</strong><br />
relação ao volume transportado.<br />
Atualmente no país, após a colocação <strong>em</strong> prática da privatização<br />
neoliberal do setor ferroviário, iniciada nos anos 1990, o que se observa<br />
claramente é que o que ocorreu foi simplesmente a perpetuação do sério probl<strong>em</strong>a<br />
da falta de investimentos no setor, visto que apesar do aumento significativo da<br />
produção, esta produção permaneceu restrita a pequenos nichos do mercado e<br />
nenhuma expansão significativa da malha ferroviária foi efetivada, muito pelo<br />
contrário, visto que <strong>em</strong>presas como a ALL efetuaram a transposição de cerca de<br />
8000 quilômetros de trilhos de ramais economicamente inviáveis para ramais de<br />
interesse da mesma. Como aponta José Messias Bastos, Geógrafo da UFSC;<br />
O transporte ferroviário é um importante nó de<br />
estrangulamento da atual estrutura produtiva e logística<br />
brasileira que s<strong>em</strong> explicação plausível ficou, nas últimas<br />
décadas praticamente fora de pauta dos estudos de<br />
Geografia e de Economia. (SILVEIRA, 2007)<br />
Indiscutivelmente, o volume de cargas transportadas pelas ferrovias após<br />
ser<strong>em</strong> entregues ao setor privado aumentou consideravelmente na maioria das<br />
concessionárias, é claro que exist<strong>em</strong> exceções, contudo o tipo de carga que escoa<br />
por estes corredores trata-se na maioria das vezes de produtos originados pelas<br />
19
<strong>em</strong>presas que compõ<strong>em</strong> os grupos de acionistas do grupo detentor da concessão;<br />
pod<strong>em</strong>os citar neste caso o cimento, os produtos siderúrgicos e principalmente o<br />
minério de ferro, que se constitui no carro chefe deste transporte, transformando<br />
estas malhas ferroviárias <strong>em</strong> verdadeiros “minerodutos”, visto o grande volume<br />
transportado e seu caráter ininterrupto. Tal situação, apesar do “enxugamento”<br />
inicial, que gerou muitas d<strong>em</strong>issões, visto que as concessionárias consideraram<br />
que o número de pessoal <strong>em</strong>pregado nas malhas era excessivo, criou um quadro<br />
atual de geração de <strong>em</strong>pregos diretos e indiretos no setor ferroviário bastante<br />
significativo, com uma d<strong>em</strong>anda constante por mão-de-obra qualificada, como<br />
também da não qualificada, seja diretamente na operação ou nas atividades de<br />
suporte e logística. O quadro da figura 1 retrata b<strong>em</strong> a evolução desta d<strong>em</strong>anda no<br />
período que se seguiu à concessão das malhas ao setor privado.<br />
Figura 1: Geração de <strong>em</strong>pregos diretos e indiretos no setor ferroviário.<br />
Fonte: ANTT e Associados ANTF<br />
Além da geração de <strong>em</strong>pregos, outras benesses advieram destas<br />
concessões, visto que outros setores do mercado estão evoluindo<br />
significativamente após o período de privatização das ferrovias e aumento da<br />
d<strong>em</strong>anda pelo transporte ferroviário, principalmente os fornecedores de material<br />
ferroviário, seja ele de infra ou de superestrutura; também os fornecedores de<br />
material rodante e principalmente de locomotivas, como é o caso da GE, que<br />
desde os anos 1970 não fabricava locomotivas de grande porte no Brasil,<br />
limitando-se somente a reformas de locomotivas usadas e à fabricação de<br />
20
locomotivas de manobra. Atualmente este quadro se inverteu consideravelmente<br />
com o retorno da fabricação <strong>em</strong> território brasileiro com a instalação de sua<br />
fábrica na cidade de Contag<strong>em</strong>, onde são produzidas locomotivas de grande<br />
capacidade, como os modelos C-44 EMI e AC-44 I, de última geração, que<br />
possu<strong>em</strong> potência de 4400 HP e peso de 190 toneladas. A d<strong>em</strong>anda por<br />
locomotivas é significativamente alta, sendo que a fábrica da GE trabalha com um<br />
cronograma extr<strong>em</strong>amente apertado, tendo que entregar <strong>em</strong> alguns contratos, até<br />
onze locomotivas por mês, como no caso do contrato firmado com a<br />
concessionária MRS logística S/A (MRS/divulgação). Outro fabricante de<br />
locomotivas, a norte-americana Caterpillar já anunciou a instalação de sua fábrica<br />
na cidade de Sete Lagoas, onde fabricará o modelo SD-70 de 4300 HP; é a<br />
primeira fábrica deste tipo de locomotiva a ser instalada fora da América do<br />
Norte, disto se deduz o real crescimento e os bons prognósticos do transporte<br />
ferroviário no país (Revista Ferroviária, 25/07/2011).<br />
Contudo este boom no setor ferroviário é na realidade um mero<br />
atendimento às necessidades de grupos e corporações específicos, ratificando o<br />
que afirmou Marx que a “ferrovia se constituía na supr<strong>em</strong>a realização da<br />
economia industrial”. Portanto o que se vê é um investimento restrito, direcionado<br />
aos interesses capitalistas, s<strong>em</strong> qualquer interesse social, apesar de o contrato<br />
firmado com as concessionárias no ano de 1996 incluir uma cláusula que obrigava<br />
as mesmas a implantar linhas regulares destinadas ao transporte de passageiros,<br />
uma providência bastante racional, relevante e oportuna, que levou <strong>em</strong> conta<br />
interesses do povo brasileiro, entretanto após quase quinze anos da entrega da<br />
malha ferroviária à iniciativa privada nenhuma das concessionárias cumpriu tal<br />
exigência, deixando a população carente de um transporte seguro, barato e<br />
eficiente, como nos moldes dos países desenvolvidos.<br />
Para as gerações mais antigas a ferrovia constitui-se outrora <strong>em</strong> um<br />
importante meio de transporte, assim como <strong>em</strong> uma verdadeira referência<br />
histórico-cultural arraigada no imaginário popular, influenciando a população <strong>em</strong><br />
geral nas mais diversas manifestações, desde as expressões da língua, passando<br />
pela literatura, onde pod<strong>em</strong>os destacar passagens como trechos da obra “Grande<br />
Sertão Veredas”, de João Guimarães Rosa: “Riobaldo fala: Por tudo réis-coado,<br />
21
fico pensando, gosto, melhor, para a ideia se b<strong>em</strong> abrir, é viajando <strong>em</strong> tr<strong>em</strong>-de-<br />
ferro. Pudesse, vivia para cima e para baixo dentro dele” (ROSA, 2001); até as<br />
artes, principalmente a música, onde pod<strong>em</strong>os ver sua inserção de uma forma<br />
bastante ampla, indo do clássico, com a imortal “o trenzinho do caipira” de<br />
autoria de Heitor Villa Lobos, que a compôs sob forte influência de suas viagens<br />
de tr<strong>em</strong> pelo interior do país, até a música popular brasileira, com autores de<br />
renome como Milton nascimento e Fernando Brant, <strong>em</strong> sua mundialmente<br />
conhecida “encontros e despedidas”, dentre outros. Durante um grande período da<br />
história dos transportes no Brasil a ferrovia desenvolveu papel preponderante,<br />
tanto no transporte de cargas, quanto no de passageiros, sendo que neste último a<br />
mesma se imortalizou mitificando profissões como a do maquinista e do chefe de<br />
tr<strong>em</strong>, que permaneciam cercadas de glamour e importância.<br />
A relação do mineiro com a ferrovia, outrora, era algo bastante intrínseco,<br />
o tr<strong>em</strong> estava presente <strong>em</strong> seu cotidiano, o mesmo se dava com a profissão de<br />
ferroviário, que se constituía <strong>em</strong> algo muito b<strong>em</strong> visto pela população que a via<br />
como sinônimo de segurança profissional; uma vez ferroviário, podia-se contar os<br />
anos para a aposentadoria, s<strong>em</strong> se preocupar com d<strong>em</strong>issões e mercado de<br />
trabalho, ingressava-se na rede ferroviária e ali se trabalhava durante toda a vida.<br />
A escritora mineira Adélia Prado <strong>em</strong> uma passag<strong>em</strong> de seu livro Filandras traduz<br />
melhor esta visão que se tinha do ferroviário de então, quando fala <strong>em</strong> seu livro,<br />
sobre um artefato que a mesma observava constant<strong>em</strong>ente <strong>em</strong> casas de<br />
ferroviários na cidade de Divinópolis: “Talvez daquele aparador de arame me<br />
nasceu a idéia de só casar com moço da rede ferroviária, minha garantia de<br />
solidez e conforto”(PRADO, 2001, pág. 37). A escritora tinha razão, pois por<br />
parte da maioria das moças das cidades onde a ferrovia possuía instalações e<br />
principalmente naquelas que sediavam os “depósitos” 2 , havia um grande interesse<br />
pelos funcionários da ferrovia, interesse este que se estendia também e<br />
principalmente, ao comércio local que via no ferroviário um consumidor <strong>em</strong><br />
potencial, com a garantia de pagamento <strong>em</strong> dia e a pequena chance de calote.<br />
2 Os depósitos eram locais destinados a abrigar as locomotivas que não se encontravam <strong>em</strong> serviço<br />
no momento, b<strong>em</strong> como as oficinas destinadas a manutenção das mesmas. Sua localização<br />
dependia de vários fatores, dentre eles a importância da cidade <strong>em</strong> relação à ferrovia e a distância<br />
entre as mesmas, garantindo um espaçamento adequado que atendesse às necessidades do tráfego.<br />
22
Atualmente tal visão não passa de mera nostalgia na l<strong>em</strong>brança das pessoas que<br />
vivenciaram o apogeu da ferrovia no país e particularmente <strong>em</strong> nosso estado, nas<br />
cidades cortadas pela estrada de ferro onde o tr<strong>em</strong> era sinônimo de avanço e<br />
prosperidade, sendo diretamente associado à ideia de progresso e modernidade.<br />
A ferrovia des<strong>em</strong>penhava, além do papel de meio de<br />
transporte para todo o tipo de produção, a função não<br />
menos importante de promover o desenvolvimento da<br />
cidade que a abrange, como também de formadora de<br />
cidades. (GHIRARDELLO, 2002, p. II, apud BOTARO,<br />
2010)<br />
Neste passado citado as estações ferroviárias se constituíam no centro das<br />
atenções nas cidades do interior, por ela passavam pessoas importantes, por ela<br />
chegava grande parte das mercadorias comercializadas na região, enfim por ela<br />
chegavam as novidades, ali a cidade se inseria no mundo, se comunicava com o<br />
exterior; era um local permeado por sonhos e esperanças, tanto das pessoas que<br />
partiam quanto daquelas que chegavam, como pod<strong>em</strong>os observar nos versos de<br />
Milton Nascimento e Fernando Brant:<br />
Todos os dias é um vai-e-v<strong>em</strong><br />
A vida se repete na estação<br />
T<strong>em</strong> gente que chega pra ficar<br />
T<strong>em</strong> gente que vai pra nunca mais<br />
T<strong>em</strong> gente que v<strong>em</strong> e quer voltar<br />
T<strong>em</strong> gente que vai e quer ficar<br />
T<strong>em</strong> gente que veio só olhar<br />
T<strong>em</strong> gente a sorrir e a chorar.<br />
(Encontros e despedidas, 1985, Milton Nascimento e<br />
Fernando Brant.)<br />
De arquitetura geralmente imponente e diferenciada, nos moldes ingleses<br />
da época, principalmente utilizando-se de caracteres inspirados na “arte nouveau”,<br />
com trabalhos de serralheria de grande beleza, o prédio da estação com todo o<br />
conjunto arquitetônico ao seu redor se destacava nestas localidades, tornando-se<br />
verdadeira referência de toda pequena cidade mineira cortada pela ferrovia. Tal<br />
era a importância da estação ferroviária nestes locais que chegava ao ponto de no<br />
correr do t<strong>em</strong>po modificar o nome da localidade, como é o caso de muitas cidades<br />
mineiras, particularmente da localidade objeto de estudo deste trabalho, o Distrito<br />
de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>, e da cidade de Conselheiro Lafaiete; ambas possuíam outras<br />
denominações e à partir da chegada da ferrovia, a mesma criou uma cisão nestas<br />
23
localidades tendo a linha férrea como delimitadora desta divisão onde um núcleo<br />
permanecia com o nome original e o outro, criado a partir e <strong>em</strong> torno da estação<br />
ferroviária, adotava o nome da mesma. Com o passar dos anos a influência da<br />
ferrovia se tornava tão intensa que o núcleo criado ao redor da estação se<br />
consolidava como o dominante adotando definitivamente seu nome para designar<br />
a localidade.<br />
Cap. 1. A localidade de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> e sua posição privilegiada no<br />
contexto ferroviário.<br />
A importância da localização da estação de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> dava-se pelo<br />
fato de a mesma efetuar importantes conexões, sendo dando continuidade à linha<br />
que seguia <strong>em</strong> direção à Belo Horizonte, prosseguindo até o Norte do estado,<br />
sendo prosseguindo <strong>em</strong> direção à cidade de Ouro Preto e posteriormente à Ponte<br />
Nova, onde este ramal da EFCB terminava, entroncando-se então com a Estrada<br />
de Ferro Leopoldina, que de Ponte Nova seguia para o Leste mineiro e para a<br />
Zona da Mata, até atingir o estado do Rio de Janeiro, interligando diversas cidades<br />
servidas pela EFL. Cargas e passageiros oriundos destas regiões com destino à<br />
capital mineira ou ao Rio de Janeiro e vice-versa, tinham necessariamente que<br />
passar pela estação de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>. O movimento diário de trens na estação<br />
incorporava-se ao cotidiano da população, sendo que os horários de chegada e<br />
partida dos trens de passageiros transformavam-se <strong>em</strong> uma verdadeira festa para a<br />
localidade, tamanha a movimentação.<br />
O mapa da figura 2 retrata o esqu<strong>em</strong>a de linhas da EFCB <strong>em</strong> Minas Gerais<br />
no ano de 1965, que se estendiam até a cidade de Monte Azul, no Norte do estado;<br />
na legenda do mesmo já pod<strong>em</strong>os observar explicitamente a ideia do governo<br />
militar de desativar os ramais ferroviários considerados anti-econômicos, visto<br />
que aparec<strong>em</strong> destacados e já com as indicações de tráfego suspenso, supressão<br />
programada e erradicação iniciada ou concluída; contudo, nesta época o trecho da<br />
EFCB que ligava <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> à Belo Horizonte, b<strong>em</strong> como o ramal que efetua<br />
a conexão do referido distrito com a cidade de Ouro Preto ainda não estavam<br />
incluídos neste plano de erradicação de malhas ferroviárias. Esta desativação viria<br />
a ter início nos anos 80 do século passado, começando pela erradicação dos trens<br />
24
de passageiros, os primeiros a ser<strong>em</strong> considerados antieconômicos, para<br />
posteriormente se estender aos trens de carga, que deixaram de trafegar<br />
definitivamente a partir do processo de concessão das malhas à iniciativa privada<br />
nos anos 90. Tal processo se iniciou com a desativação do trecho ferroviário<br />
compreendido entre as cidades de Ouro Preto e Cataguases, pertencentes, antes da<br />
concessão, à EFL, mas que, contudo provocou um impacto direto sobre a<br />
localidade de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>, visto que todos os trens oriundos da EFL deixaram<br />
de circular; posteriormente o trecho pertencente à RFFSA e concedido a FCA que<br />
interligava o Distrito à Belo Horizonte foi desativado por partes, sendo que a<br />
operadora MRS Logística S/A continuou a utilizar um pequeno trecho entre<br />
<strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> e a cidade de Itabirito, para o escoamento da produção de minério<br />
de ferro da Vale, extraído nas minas desta região, entretanto após a conclusão das<br />
obras de um trecho da Ferrovia do Aço, que permitiu um melhor atendimento à<br />
d<strong>em</strong>anda da produção, com maior velocidade de tráfego e confiabilidade, o<br />
respectivo trecho foi definitivamente abandonado, sendo que <strong>em</strong> alguns locais<br />
seus trilhos foram inclusive retirados. Desta forma então se concluiu o processo<br />
de isolamento por via férrea da localidade, ficando a mesma, desconectada da<br />
capital mineira, como também das cidades de Itabirito e Ouro Preto, sendo que<br />
um pequeno seguimento que a ligava a esta última, com extensão de cerca de 5<br />
quilômetros, que efetua a ligação entre <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> e a estação de Lafaiete<br />
Bandeira, continua <strong>em</strong> operação, sendo utilizado pela concessionária MRS<br />
Logística S/A para o transbordo de cargas com uma interface entre a mesma e a<br />
Vale. Por lá é escoada grande parte da produção siderúrgica do Vale do aço, que<br />
chegando pelos trens da Vale segue viag<strong>em</strong> pelas linhas da MRS Logística com<br />
destino à São Paulo e Rio de Janeiro. Contudo tal trecho só é utilizado atualmente<br />
devido a mudança de planos <strong>em</strong> relação à construção da ferrovia do aço, que faria<br />
a ligação direta do vale do aço, <strong>em</strong> uma conexão na cidade de Sabará, com os<br />
portos do Rio de Janeiro e Santos, assim como com a cidade de São Paulo.<br />
Tal conexão nunca foi efetuada, e hoje a ferrovia do aço interliga somente<br />
as minas existentes na região de Itabirito e Congonhas do campo com os terminais<br />
portuários e as siderúrgicas paulistas e cariocas; o restante do trecho, apesar de já<br />
possuir boa parte de sua infra estrutura concluída, como pontes, túneis, viadutos e<br />
terraplenag<strong>em</strong> <strong>em</strong> geral, continua s<strong>em</strong> receber um quilômetro sequer de trilhos.<br />
25
Figura 2: Esqu<strong>em</strong>as das linhas da EFCB no estado de Minas Gerais <strong>em</strong> 1965<br />
Fonte: http://vfco.brazilia.jor.br<br />
26
Figura 3: Pátio da estação de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> nos anos 1970.<br />
Fonte: Arquivo Projeto Estação Cultura.<br />
Figura 4: Pátio da estação de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> atualmente.<br />
Fonte: Arquivo Projeto Estação Cultura.<br />
Pela simples comparação das fotografias das figuras 3 e 4, obtidas do<br />
mesmo ponto de vista, pode-se ter uma ideia da atual situação da localidade <strong>em</strong><br />
relação ao abandono da malha ferroviária, que teve seus trilhos arrancados. Note-<br />
se na primeira a grande quantidade de vagões de carga e de passageiros<br />
estacionados e <strong>em</strong> manobra no local, assim como o volume de material ferroviário<br />
de reposição estocado às margens da linha.<br />
27
Figura 5: Localização do distrito de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> no estado de Minas Gerais.<br />
Fonte: Adaptado de: www.coladaweb.com<br />
O Distrito de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> localiza-se entre os municípios de<br />
Conselheiro Lafaiete e Ouro Preto (figura 5), pertencendo politicamente a este<br />
último, apesar de estar localizado b<strong>em</strong> distante da sede do município, situando-se<br />
à Oeste do centro histórico deste (figura 6). A ligação rodoviária com a sede do<br />
município se efetua de forma bastante precária através de uma estrada não<br />
pavimentada, onde a poeira e os buracos constitu<strong>em</strong>-se <strong>em</strong> fatores bastante<br />
desestimulantes para tal viag<strong>em</strong>, mencionando-se também o fato que <strong>em</strong> períodos<br />
de chuva a mesma torna-se praticamente intransitável. Devido a estes obstáculos a<br />
população geralmente opta por buscar recursos como atendimento médico,<br />
comércio e educação, não na sede do município, mas <strong>em</strong> municípios mais<br />
próximos como Conselheiro Lafaiete e Itabirito. Santos afirma que a população<br />
que efetua este tipo de viag<strong>em</strong> para adquirir bens e serviços é formada por pessoas<br />
que dispõ<strong>em</strong> de mobilidade, mobilidade esta que é negada àqueles que possu<strong>em</strong><br />
menor renda, portanto qu<strong>em</strong> não pode mover-se com certa periodicidade para<br />
obter estes bens e serviços, acaba saindo de uma vez por todas da localidade<br />
(SANTOS, 2008, pag. 62).<br />
28
Figura 6: Localização do Distrito de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> dentro do Município de Ouro Preto<br />
Fonte: Adaptado de http://www.ouropreto-ourtoworld.jor.br/distritos.htm<br />
Nas terras do Distrito se encontram as principais minas de minério de ferro<br />
da região (NAMISA, Vale, Gerdau, dentre outras), além de lavras de extração de<br />
topázio imperial; no entanto a geração de riquezas no distrito parece não<br />
contribuir para seu desenvolvimento, visto que não se observa uma reversão de<br />
fundos para investimentos na localidade, que continua perdendo sua população<br />
por falta de <strong>em</strong>pregos, saneamento, serviços médicos, públicos, comércio, dentre<br />
outras necessidades básicas.<br />
29
1.1. História de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong><br />
A região onde hoje se encontra situada a localidade de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong><br />
denominava-se na época da exploração aurífera no interior mineiro “Rodeio”,<br />
sendo constituída principalmente por fazendas que tinham na exploração mineral<br />
sua principal atividade, desenvolvida principalmente nas áreas de depressão do<br />
terreno, chamadas de caldeirões. Com o passar do t<strong>em</strong>po, as fazendas da região<br />
começaram gradativamente a diminuir a atividade mineraria, dada a exaustão das<br />
minas, dando ênfase à atividade agrícola. A partir do ano de 1880, a região<br />
começa a ganhar nova dinâmica, motivada pela notícia de que uma estrada de<br />
ferro cortaria a localidade, fato que se concretizou no ano de 1884, mais<br />
precisamente no dia 17 de junho, data <strong>em</strong> que foi inaugurada a estação ferroviária,<br />
que recebeu o nome de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> ao engenheiro <strong>Miguel</strong><br />
Noel Nascentes <strong>Burnier</strong>, então presidente da EFDP II.<br />
A chegada dos trilhos da EFDP II à região logo trouxe para a localidade a<br />
ideia de progresso, visto que agora era possível o desenvolvimento, fazendo com<br />
que muitos dos trabalhadores <strong>em</strong>pregados na construção da ferrovia passass<strong>em</strong> a<br />
residir no local, visando as futuras possibilidades, o que foi iniciado com a<br />
construção ali, da 2ª usina siderúrgica do país, a usina Wigg, <strong>em</strong>preendimento<br />
levado a cabo pelo Comendador Carlos Wigg, que adquirindo grandes extensões<br />
de terra na localidade implanta sua usina de produção de ferro. Vários fatores<br />
contribuíram para a implantação de tal <strong>em</strong>preendimento, como a proximidade com<br />
as minas de minério de ferro e calcário, que podiam desta forma chegar<br />
rapidamente pela ferrovia e logicamente, o fator mais importante, o escoamento<br />
da produção para os centros consumidores que por esta via se dava de forma fácil<br />
e barata, visto que a usina pouco distava da via férrea. Tal <strong>em</strong>preendimento fez<br />
surgir, aos poucos, um povoado nas imediações da usina, constituído pelos<br />
<strong>em</strong>pregados da mesma e por pessoas que para ali afluíram <strong>em</strong> busca de melhores<br />
oportunidades. Contudo, nesta época o nome dado à estação ainda não designava<br />
a localidade, que permanecia com a denominação de Rodeio, que permaneceu até<br />
8 de outubro de 1929, quando foi determinado que a denominação da sede do<br />
distrito seria São Julião, que designava o povoado criado nas imediações da usina<br />
siderúrgica Wigg, onde existia uma capela erigida <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> ao referido<br />
santo. Somente <strong>em</strong> 17 de dez<strong>em</strong>bro de 1948 que, por aplicação da lei nº 336, o<br />
30
distrito passa a assumir definitivamente o nome da estação e se denominar<br />
oficialmente <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>.<br />
A estação ferroviária de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>, que no passado foi capaz de<br />
exercer tamanha influência no local, atualmente não passa de uma mera edificação<br />
abandonada (figura 7), com janelas e portas quebradas e toda sorte de degradação,<br />
um quadro que não l<strong>em</strong>bra <strong>em</strong> nada o seu apogeu. À ex<strong>em</strong>plo da estação<br />
ferroviária o que se observa por toda parte, quando se transita pelo local, é um<br />
quadro de abandono total, com casas s<strong>em</strong>i destruídas, antigos comércios fechados<br />
e poucas pessoas circulando pelas suas poucas ruas; contudo o ar característico<br />
das pequenas localidades continua presente e insiste <strong>em</strong> não morrer, apesar de<br />
tudo.<br />
Figura 7: Estação de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> atualmente. Fotografia do autor.<br />
31
1.2. A abertura do ramal do Paraopeba, o começo do fim para a linha do<br />
centro?<br />
No ano de 1914 iniciou-se a construção do ramal do Paraopeba ou variante<br />
do Paraopeba, o nome do novo ramal ferroviário deveu-se ao fato de a linha<br />
margear o rio Paraopeba <strong>em</strong> praticamente toda sua extensão. A nova linha tinha<br />
seu ponto inicial na localidade de Doutor Joaquim Murtinho, que possuía <strong>em</strong><br />
relação ao Rio de Janeiro a posição quilométrica de 477, 165 Km, e seguia até a<br />
capital do estado de Minas Gerais, sendo que a mesma foi atingida <strong>em</strong> 1917. A<br />
iniciativa de se construir uma nova ferrovia interligando basicamente as mesmas<br />
regiões deveu-se a dois fatos principalmente; o primeiro relacionava-se a<br />
necessidade de se efetuar a troca de trens ao longo do percurso visto que as bitolas<br />
eram distintas ao longo do mesmo, ou seja, partia-se do Rio de Janeiro <strong>em</strong> um<br />
tr<strong>em</strong> que trafegava <strong>em</strong> uma linha de bitola larga (1,60 m é o padrão adotado no<br />
Brasil para esta bitola 3 ) até a cidade de Conselheiro Lafaiete, onde os passageiros<br />
<strong>em</strong>barcavam <strong>em</strong> outro tr<strong>em</strong> que trafegava <strong>em</strong> linhas de bitola de 1m de largura,<br />
para então prosseguir<strong>em</strong> viag<strong>em</strong>, o que certamente causava bastante incômodo aos<br />
mesmos, na viag<strong>em</strong> no sentido oposto toda a operação se repetia. Em relação aos<br />
trens de carga a situação era a mesma, sendo que os trens faziam a troca de cargas<br />
(transbordo), na localidade de Joaquim Murtinho, uma estação localizada <strong>em</strong> um<br />
bairro de Conselheiro Lafaiete; lá trabalhadores braçais efetuavam a árdua tarefa<br />
de transferir cargas entre os vagões de diferentes bitolas.<br />
O segundo motivo pelo qual se optou pela abertura de um novo ramal<br />
ferroviário foi a saturação deste corredor de transporte, na época o único meio<br />
rápido e eficiente de conectar regiões distantes, visto que as outras modalidades<br />
de transporte eram ainda incipientes, sendo o uso de animais a modalidade mais<br />
utilizada, com tropeiros transportando cargas <strong>em</strong> lombo de mulas, assim como<br />
pessoas <strong>em</strong> diligências.<br />
3 A bitola de uma ferrovia consiste na distância entre as faces internas dos boletos dos trilhos,<br />
tomada na linha normal a essas faces, 16mm abaixo do plano constituído pela superfície superior<br />
do boleto. A bitola standart ou internacional é aquela igual a 1,435m, oficialmente adotada pela<br />
conferência internacional de Berna <strong>em</strong> 1907. No Brasil ocorreu a adoção de diversas bitolas: 0,76<br />
m, 1 m, 1,435m e 1,60 m, sendo consideradas bitolas estreitas aquelas inferiores a standart e largas<br />
aquelas superiores à mesma.<br />
32
Até o ano de conclusão do ramal ferroviário do Paraopeba, a localidade<br />
experimentou uma prosperidade s<strong>em</strong> igual, sendo que anos antes, após o anúncio<br />
da construção de uma nova capital para o estado, o movimento por suas linhas<br />
férreas se intensificou devido à necessidade de se levar até a futura Belo<br />
Horizonte grande parte do material necessário a sua construção, assim como<br />
pessoal necessário às obras, como engenheiros e operários que para lá afluíam<br />
oriundos de vários <strong>lugar</strong>es. Terminada a obra do ramal do Paraopeba, grande parte<br />
dos trens passou a seguir por este ramal, visto que desta forma evitava-se o<br />
inconveniente do transbordo de cargas e passageiros, além, é claro de desafogar o<br />
intenso tráfego, contudo os trens com destino ao ramal de Ouro Preto e outros<br />
destinados à cidades localizadas às margens da linha do centro entre <strong>Miguel</strong><br />
<strong>Burnier</strong> e Belo Horizonte, continuaram fazendo o antigo percurso.<br />
1.3. O quadro atual<br />
<strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> é atualmente uma mina à céu aberto, literalmente; sendo<br />
explorada pelo grupo Gerdau, que ali alocou instalações de extração e<br />
beneficiamento de minério de ferro, causando bastante inquietude e incertezas na<br />
população local que indaga quais áreas serão mineradas no local, se poderão<br />
permanecer ali ou serão desalojados, enfim questionamentos gerais sobre seus<br />
destinos, que consideram incertos, visto a expansão da referida mineração. O chão<br />
de terra vermelha, característico do local devido à presença de óxido de ferro só<br />
reforça os t<strong>em</strong>ores dos moradores locais, visto que a presença do minério é<br />
constatada por toda a parte. Apesar de todo este quadro de incertezas, a diminuta<br />
população r<strong>em</strong>anescente não abandona seus hábitos e tradições, dando<br />
continuidade à suas vidas, no tradicional estilo interiorano mineiro.<br />
Ao contrário da vida cotidiana das cidades consideradas médias e grandes,<br />
onde ocorre um verdadeiro estranhamento entre seus habitantes, que possu<strong>em</strong> um<br />
convívio social bastante determinado, regulado e n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre espontâneo, é nos<br />
pequenos <strong>lugar</strong>ejos que t<strong>em</strong>os a chance de observar determinadas realidades,<br />
peculiaridades que os difer<strong>em</strong> sobr<strong>em</strong>aneira destes médios e grandes centros. Lá o<br />
encontro é algo espontâneo, nada é combinado; passa-se na praça e encontra-se o<br />
amigo, o parente, com qu<strong>em</strong> então se inicia uma longa conversa, ou então se<br />
33
efetua um simples cumprimento, porém amistoso, verdadeiro, todos se conhec<strong>em</strong>,<br />
todos têm que passar, na maioria das vezes pelos mesmos <strong>lugar</strong>es ao longo do dia,<br />
nenhum acontecimento local é restrito, reservado, passível de ser ocultado, enfim,<br />
ali se sociabiliza no significado exato da palavra.<br />
Eventos, sejam eles de cunho religioso, esportivo, cultural, ou outros, são<br />
compartilhados por todos, a comunidade se <strong>em</strong>penha como um todo para o êxito<br />
dos mesmos, não com interesses econômicos, mas simplesmente pelo fato de<br />
reunir seus moradores <strong>em</strong> torno de algo comum, compartilhando o espaço<br />
tangível, o social e o simbólico. Em <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>, a estação ferroviária, apesar<br />
de desativada e abandonada, ainda representa um local de realizações de eventos<br />
da comunidade, juntamente com sua igreja (figura 8).<br />
Figura 8: Igreja do Sagrado Coração de Jesus. Fotografia do autor.<br />
34
A imponente igreja do Sagrado Coração de Jesus, localizada não muito<br />
distante da mina de minério de ferro ali existente, explorada pela Gerdau, é um<br />
el<strong>em</strong>ento contrastante na paisag<strong>em</strong> decadente do <strong>lugar</strong>, retratando a religiosidade<br />
da comunidade <strong>em</strong> toda sua extensão, religiosidade esta representada<br />
principalmente por seus grupos de congado e corais. O t<strong>em</strong>plo foi erguido por<br />
iniciativa de Alice Wigg, esposa do Comendador Carlos Wigg, o <strong>em</strong>presário<br />
responsável pelo desenvolvimento da siderurgia no local, na época. Alice Wigg<br />
tinha a intenção, com tal ação de transformar o distrito <strong>em</strong> <strong>lugar</strong> destinado as<br />
peregrinações, visto que as perspectivas de crescimento para <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> eram<br />
muito grandes, mas, contudo tal prognóstico não se concretizou. Anualmente a<br />
comunidade realiza o encontro dos burnierenses ausentes, evento bastante<br />
concorrido que já está <strong>em</strong> sua 10ª edição e que conta com grande participação<br />
popular; o festival cultural também é outro evento que t<strong>em</strong> realização periódica no<br />
<strong>lugar</strong>. Com tudo isso percebe-se que as adversidades, o futuro incerto e todo tipo<br />
de incertezas não são capazes de esmorecer a população restante, que pelo que se<br />
vê ainda mantêm vivas suas crenças e seus valores.<br />
A população atual do Distrito de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>, (contag<strong>em</strong> da população<br />
2007 – agregado por Distritos – IBGE) é de 971 habitantes, sendo que destes<br />
somente 382 resid<strong>em</strong> na área urbana do mesmo. Os dados obtidos desde a década<br />
de 1950 até os dias de hoje nos mostram uma queda vertiginosa na população, que<br />
atingiu o seu apogeu nesta referida década, quando a localidade possuía 3549<br />
habitantes, o que pode ser observado claramente na tabela 1.<br />
População de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong><br />
CENSO 1950 1960 1970 1980 1991 2000 2007<br />
HABITANTES 3549 3020 2913 3066 1944 954 971<br />
Tabela 1: Evolução da população de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> a partir de 1950, tabela elaborada a partir dos<br />
dados do IBGE.<br />
Nos depoimentos colhidos com os moradores do Distrito é bastante<br />
interessante notar a diferença de opinião existente entre estes e os ex- moradores,<br />
principalmente no que tange a ocupação do local pela Gerdau; os moradores<br />
r<strong>em</strong>anescentes, <strong>em</strong> sua maioria, são à favor da implantação das instalações da<br />
Gerdau, pois ve<strong>em</strong> neste <strong>em</strong>preendimento uma possibilidade de oferta de<br />
35
<strong>em</strong>pregos e crescimento para o local, não se importando muito com a<br />
descaracterização do Distrito n<strong>em</strong> tampouco com o impacto ambiental gerado,<br />
enquanto que os ex-moradores se mostram preocupados com a manutenção das<br />
características do <strong>lugar</strong>, vivendo de saudosismos, mas infelizmente o <strong>lugar</strong>ejo, nos<br />
moldes que conheciam, não existe mais . Em conversa com a Irmã Teresa, líder<br />
espiritual do <strong>lugar</strong>, pude vislumbrar claramente que a Gerdau desenvolve um<br />
eficiente trabalho na conscientização da população no sentido de convencê-la de<br />
que suas atividades são na realidade bastante positivas para o distrito, para isto se<br />
utiliza bastante da figura da Irmã, que como líder e formadora de opinião, além de<br />
se tratar de uma figura extr<strong>em</strong>amente carismática, exerce grande influência sobre<br />
a população. A Irmã Teresa pode ser considerada como um verdadeiro ícone da<br />
localidade; radicada ali há quarenta anos <strong>em</strong> seu trabalho religioso, ela é a<br />
responsável pela manutenção da religiosidade no <strong>lugar</strong>, b<strong>em</strong> como pelo serviço de<br />
informações à população, efetuado através de um sist<strong>em</strong>a de auto falantes<br />
instalados na torre da igreja; por ele são passadas notícias, recados, comunicados,<br />
enfim toda sorte de informações que se deseja direcionar à população. Quando de<br />
uma das visitas ao Distrito, perguntei a Irmã Teresa se poderia produzir<br />
fotografias no interior da igreja, o que ela permitiu s<strong>em</strong> maiores probl<strong>em</strong>as, no<br />
entanto ressaltou que eu não deveria fotografar para o lado do antigo s<strong>em</strong>inário 4 ,<br />
anexo à igreja, pois o mesmo agora pertence à Gerdau que o adquiriu da<br />
Arquidiocese de Mariana para transformá-lo <strong>em</strong> uma extensão administrativa da<br />
<strong>em</strong>presa, e que os seguranças não permit<strong>em</strong> que seja fotografado. No espaço<br />
compreendido entre a parte de trás da igreja e a casa da Irmã Teresa, praticamente<br />
encostado na igreja, existe agora um estacionamento da Gerdau, algo que destoa<br />
totalmente da paisag<strong>em</strong> do local.<br />
Para se ter acesso à igreja é preciso antes parar na portaria da <strong>em</strong>presa e<br />
comunicar qual a sua intenção, para só então se dirigir à mesma, com a<br />
recomendação expressa da segurança: “só até a igreja”, desta forma pod<strong>em</strong>os<br />
seguir <strong>em</strong> frente sob os olhares atentos dos seguranças para garantir que não<br />
4 O anexo da igreja de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> abrigava originariamente um s<strong>em</strong>inário para a formação de<br />
padres, sendo transformado posteriormente <strong>em</strong> um orfanato que abrigava 40 meninas, coordenado<br />
pela Irmã Teresa; após este período funcionou ali uma casa de encontros e retiro espiritual da<br />
igreja católica, para finalmente ser adquirido pela Gerdau.<br />
36
vamos extrapolar os limites pré determinados. A ferrovia e a siderurgia, outrora<br />
motivos de orgulho para a comunidade, hoje já não têm nenhum significado, visto<br />
que a primeira praticamente inexiste no local e a segunda, através da exploração<br />
mineral, se instalou de maneira inadequada, descaracterizando totalmente o <strong>lugar</strong><br />
com as modificações impostas. A reativação da ferrovia para o escoamento da<br />
produção mineral da Gerdau já é uma hipótese descartada pela <strong>em</strong>presa, que<br />
anunciou a construção de uma correia transportadora entre a unidade de<br />
beneficiamento e a Usina Presidente Arthur Bernardes, localizada no município<br />
de Ouro Branco. Locais de livre trânsito dos moradores agora são restritos, como<br />
o c<strong>em</strong>itério (figura 9) que, após a instalação da Gerdau, ficou praticamente dentro<br />
das instalações de beneficiamento do minério de ferro; o campo de futebol onde<br />
se enfrentavam as equipes locais do Siderantim e Estrela Azul, <strong>em</strong> sua tradicional<br />
festa de 7 de set<strong>em</strong>bro, além de receber times de outros <strong>lugar</strong>es, hoje foi<br />
transformado no almoxarifado da <strong>em</strong>presa. Pelo que se observa a Gerdau não<br />
opera no local no sentido de proporcionar urbanização como o fizeram no passado<br />
a EFCB, a RFFSA e Usina Wigg, que tinham a preocupação de proporcionar a<br />
seus <strong>em</strong>pregados, moradores do distrito, todo o equipamento urbano necessário ao<br />
b<strong>em</strong> estar dos mesmos.<br />
37
Figura 9: Localização do c<strong>em</strong>itério de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> (destacado pelos retângulos vermelhos),<br />
antes e depois da chegada da Gerdau.<br />
Fonte: Adaptado de Google Earth e Divulgação Gerdau.<br />
38
Ao se chegar atualmente <strong>em</strong> <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> o que se observa é que a parte<br />
alta da localidade, onde fica situada a igreja, não mais existe como estrutura<br />
urbana, não há moradores, n<strong>em</strong> sequer moradias; as “casas da companhia”,<br />
pequena Vila operária construída pela Usina Wigg (figura 10) foi d<strong>em</strong>olida, e o<br />
que se vê no local é somente um amontoado de terra e a portaria improvisada da<br />
Gerdau; a imag<strong>em</strong> que se tinha no passado do <strong>lugar</strong>, agora só existe <strong>em</strong><br />
fotografias e na l<strong>em</strong>brança.<br />
Figura 10: Vila operária construída pela Usina Wigg, hoje d<strong>em</strong>olida.<br />
Fotografia do autor.<br />
Cap. 2. O vapor, energia que tornou possível o surgimento das ferrovias.<br />
Não resta a menor dúvida que o advento do vapor como força motriz<br />
produziu toda uma revolução <strong>em</strong> nível mundial, s<strong>em</strong> ele a revolução industrial,<br />
iniciada na Inglaterra, estaria fadada ao fracasso; o vapor foi a mola mestra de<br />
toda uma era e não poderia ser diferente <strong>em</strong> relação as ferrovias. O sist<strong>em</strong>a de<br />
deslocar carros sobre trilhos, originariamente feitos de madeira e posteriormente<br />
confeccionados com ferro já era conhecido antes do advento das ferrovias,<br />
contudo tratava-se de um sist<strong>em</strong>a extr<strong>em</strong>amente rústico, normalmente tracionado<br />
por força humana ou animal; tal sist<strong>em</strong>a foi bastante utilizado nas minas de carvão<br />
39
da Al<strong>em</strong>anha e da Inglaterra durante um longo t<strong>em</strong>po. Mas foi com o<br />
aperfeiçoamento levado a cabo por James Watt da primeira máquina movida a<br />
vapor de água, criada a partir de um sist<strong>em</strong>a idealizado pelo francês Denis Papin 5<br />
que toda uma revolução mundial pode se concretizar, aplicando-se inicialmente a<br />
indústria e posteriormente às ferrovias nascentes. Agora todo um novo sist<strong>em</strong>a de<br />
transporte podia ser movido inteiramente por uma força que ultrapassava os<br />
limites do ser humano e dos animais; enquanto uma carruag<strong>em</strong> puxada por<br />
cavalos podia se mover <strong>em</strong> velocidades relativamente baixas, além de possuír<strong>em</strong> o<br />
inconveniente de ter que se proceder a troca dos cavalos quando estes se<br />
cansavam, um tr<strong>em</strong>, ao contrário podia correr velozmente por centenas de<br />
quilômetros alimentado por carvão e água. Desta forma a locomotiva a vapor era<br />
incomparavelmente mais poderosa e tornava-se então o símbolo de toda uma era,<br />
sendo diretamente relacionada ao progresso e a ideia de civilização da sociedade<br />
ocidental. À partir do advento da locomotiva à vapor o progresso das ferrovias foi<br />
vertiginoso e a evolução dos meios de tração como também dos vagões de carga e<br />
de passageiros experimentou um progresso s<strong>em</strong> igual, sendo que estes últimos se<br />
tornaram <strong>em</strong> muitos casos veículos altamente luxuosos que marcaram época,<br />
principalmente nos trens expressos, sendo que no Brasil t<strong>em</strong>os o célebre ex<strong>em</strong>plo<br />
do “tr<strong>em</strong> de prata”, que fazia a conexão Rio de Janeiro/Belo Horizonte e Rio de<br />
Janeiro/São Paulo. Tamanha foi a evolução das locomotivas que rapidamente se<br />
chegou a outros meios de propulsão como os motores à diesel e elétricos, e<br />
finalmente ao sist<strong>em</strong>a mais utilizado atualmente, que incorpora as duas últimas<br />
modalidades, o sist<strong>em</strong>a diesel/elétrico.<br />
2.1. . O surgimento da ferrovia e seu desenvolvimento gerador de impacto no<br />
mundo moderno.<br />
O começo da era das ferrovias deu-se no ano de 1814, mais precisamente a<br />
25 de julho deste ano, na Inglaterra, quando o inglês George Stephenson produz a<br />
primeira locomotiva à vapor, denominada “Blucher”; Stephenson faz com que sua<br />
locomotiva percorra uma distância de 13 Km entre as localidades de<br />
Killingsworth e Hetton, transportando 30 toneladas de carvão. O advento da<br />
5 Em 1679 o físico francês Denis Papin concebeu uma máquina, denominada “marmita de<br />
Papin”que utilizava o vapor d’água como gerador de força.<br />
40
ferrovia foi, s<strong>em</strong> dúvida um dos grandes impulsionadores do progresso do século<br />
XIX, século extr<strong>em</strong>amente profícuo <strong>em</strong> desenvolvimento tecnológico, sendo que<br />
se constituiu no primeiro meio de transporte capaz de desenvolver grandes<br />
velocidades, tornando então possível de realização o grande sonho de integração<br />
de todo o planeta, encurtando as distâncias e tornando-se no imaginário popular<br />
um verdadeiro ícone do progresso.<br />
Tamanho era o impacto causado pela ferrovia na cultura mundial que a<br />
mesma tornou-se constant<strong>em</strong>ente t<strong>em</strong>a da literatura, das artes, da fotografia, da<br />
pintura, onde particularmente pod<strong>em</strong>os citar a obra do pintor WilliamTurner <strong>em</strong><br />
sua famosa tela “chuva, vapor e velocidade”, que retrata um tr<strong>em</strong> de ferro, um dos<br />
mais avançados da época atravessando a ponte de Maidenhead, perto de Londres ,<br />
visto que Turner era um admirador dos novos avanços tecnológicos de sua época,<br />
e assim como muitos via na ferrovia a coroação tecnológica de uma época. A<br />
ferrovia era vista como o símbolo da era industrial e principalmente como imag<strong>em</strong><br />
da civilização e da modernidade. Júlio Verne, o famoso escritor francês de ficção<br />
científica também se deixa levar pelo fascínio exercido pela ferrovia <strong>em</strong> sua<br />
época, retratando seus personagens <strong>em</strong> viagens de tr<strong>em</strong>, <strong>em</strong> passagens de seu<br />
clássico “A Volta ao Mundo <strong>em</strong> Oitenta Dias”, onde o metódico inglês Phileas<br />
Fogg atravessa a Índia e os Estados Unidos a bordo de trens.<br />
Cap. 3. Mãos e mentes que forjaram uma ferrovia.<br />
Ilustres e desconhecidos, brasileiros e estrangeiros, trabalhadores<br />
qualificados e braçais, assim era composta a força de trabalho recrutada para a<br />
construção da grande ferrovia que interligaria o Brasil de Norte a Sul, tendo à sua<br />
frente o grande entusiasta do progresso, o próprio Imperador Pedro II, que visitava<br />
as obras periodicamente conforme avançavam.<br />
Apesar da longa distância que separava o Brasil da Europa e da dificuldade<br />
de comunicação e transportes então existentes na segunda metade do século XIX,<br />
a ferrovia, considerada a grande novidade da época, não tardou a chegar ao país<br />
por iniciativa do Imperador Dom Pedro II, entusiasta das inovações tecnológicas.<br />
O <strong>em</strong>presário Irineu Evangelista de Souza, futuro Barão de Mauá e o engenheiro<br />
mineiro Christiano Benedicto Ottoni se destacaram como os principais<br />
41
esponsáveis pela construção daquela que seria a mais importante ferrovia<br />
brasileira. Dom Pedro II, além de um grande estadista era também um visionário e<br />
um apaixonado por tecnologia e ciência, ressaltando-se o fato de que foi ele o<br />
fundador e mantenedor do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, assim como<br />
da Escola de Minas de Ouro Preto, do Observatório Nacional do Rio de Janeiro,<br />
dentre outras importantes instituições científicas do país. O Imperador Pedro II<br />
mantinha <strong>em</strong> seu circulo de relacionamentos muitas figuras do mundo cientifico<br />
da época como o filósofo Nietzsche, o astrônomo francês Camille Flammarion, o<br />
cientista e médico Jean Charcot, dentre outros. Em suas viagens ao exterior o<br />
Imperador trazia consigo planos e ideias com vistas à modernização do Brasil, e<br />
viu na ferrovia um dos <strong>em</strong>preendimentos capazes de modernizar o país e<br />
equipará-lo as grandes nações da época, como Inglaterra e Estados Unidos, que já<br />
tinham na ferrovia, apesar do pouco t<strong>em</strong>po de existência, seu principal propulsor<br />
progressista. “Importar tecnologia ferroviária, e assim ‘queimar etapas’ no<br />
processo de industrialização, parecia ser o motor do progresso no caso<br />
brasileiro” (LIMA, 2009, pag. 16); desta forma <strong>em</strong> outubro de 1835 o governo<br />
brasileiro resolve abrir a primeira concessão para a construção de uma ferrovia<br />
com a finalidade de interligar a Corte e as províncias da Bahia, Rio Grande do Sul<br />
e Minas Gerais. Três <strong>em</strong>preendedores, os deputados Bernardo Pereira de<br />
Vasconcelos, José Floriano Figueiredo da Rocha e Manuel Paranhos da Silva<br />
Veloso apresentaram um projeto conjunto que tinha como mote a construção de<br />
estradas de ferro que fariam a ligação entre a cidade do Rio de Janeiro às capitais<br />
das províncias representadas pelos mesmos: Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do<br />
Sul, ideia que teve boa receptividade por parte do Parlamento brasileiro que a<br />
aprovou rapidamente, sendo que a lei que versava sobre tal projeto foi sancionada<br />
<strong>em</strong> 31 de outubro do mesmo ano pelo regente Feijó, através do decreto nº 100<br />
(VASQUEZ, 2007, pag. 42). Apesar da iniciativa pioneira, do arrojo e da<br />
<strong>em</strong>polgação para a rápida concretização do <strong>em</strong>preendimento, o mesmo só<br />
começaria a se tornar realidade no ano de 1855, com o início das obras do<br />
primeiro trecho de linha que ligaria a cidade do Rio de Janeiro à localidade de<br />
Queimados, o que aconteceu menos de três anos depois, sendo que o percurso<br />
inaugurado perfazia um total de 48,21 km, deixando perplexos os pessimistas que<br />
não acreditavam que tal façanha fosse possível para o Brasil da época. Contudo a<br />
aventura brasileira na era das ferrovias já havia começado um pouco antes, <strong>em</strong><br />
42
1852, pelas mãos de um ousado <strong>em</strong>preendedor, Irineu Evangelista de Souza, que<br />
recebeu do Imperador Pedro II a concessão para a construção de uma pequena<br />
ferrovia ligando o Porto da Estrela, na baía de Guanabara à estação de Fragoso, na<br />
raiz da serra da Estrela, numa extensão de 14 km, sendo que o referido trecho de<br />
ferrovia foi inaugurado <strong>em</strong> 30 de abril de 1854, contando com a presença do<br />
Imperador, que entusiasmado viu um tr<strong>em</strong> puxado por uma locomotiva à vapor<br />
efetuar o referido percurso <strong>em</strong> 23 minutos, numa média de 35 km/hora. Irineu<br />
Evangelista de Souza recebeu no mesmo dia, por intermédio do Imperador o título<br />
de Barão de Mauá e a locomotiva que tracionou a primeira composição férrea no<br />
Brasil foi batizada de Baronesa, <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> a esposa de Irineu.<br />
Mauá era um <strong>em</strong>presário extr<strong>em</strong>amente dinâmico, possuindo um estaleiro<br />
para construção de barcos à vapor, uma companhia de iluminação à gás, um<br />
banco, dentre outros inúmeros <strong>em</strong>preendimentos e como não poderia deixar de ser<br />
foi dele o aval para o prosseguimento das obras da EFDP II, sendo um de seus<br />
principais financiadores e sócio. Mauá é considerado o pioneiro no sist<strong>em</strong>a<br />
intermodal no Brasil, pois sua <strong>em</strong>presa transportava passageiros e cargas<br />
<strong>em</strong>barcados no vapor Guarani, no píer da praça Mauá e os des<strong>em</strong>barcava no local<br />
denominado Guia de Pacobaíba, localizado ao fundo da baía, para prosseguir<strong>em</strong><br />
então, pela ferrovia, até a raiz da serra.<br />
No ano <strong>em</strong> que se com<strong>em</strong>ora 200 anos do nascimento de Christiano<br />
Benedicto Ottoni, pod<strong>em</strong>os afirmar que a maior parte das pessoas que trafegam<br />
pela BR 040 e passam ao largo da cidade de mesmo nome sequer têm a noção de<br />
qu<strong>em</strong> foi a ilustre figura que <strong>em</strong>prestou seu nome à mesma. A pequena cidade de<br />
Cristiano Otoni situada na micro região de Conselheiro Lafaiete, com sua modesta<br />
população, não retrata <strong>em</strong> nada a grandeza do grande idealizador das ferrovias<br />
brasileiras; lá atualmente, à ex<strong>em</strong>plo de várias outras cidades do interior de Minas<br />
Gerais, a ferrovia não mais existe, sendo que os trilhos que cortavam a cidade<br />
foram desviados no ano de 1942 devido à construção de uma variante para maior<br />
eficiência no transporte de cargas, à Leste da cidade, visto que no traçado original<br />
a subida era muito íngr<strong>em</strong>e e muito t<strong>em</strong>po era perdido para superá-la. Os trens de<br />
passageiros, no entanto permaneceram circulando pelo antigo traçado até o final<br />
dos anos 1960, quando então a linha foi definitivamente abandonada, condenando<br />
mais uma cidade mineira ao abandono e à paralisação de seu desenvolvimento.<br />
43
O engenheiro mineiro Christiano Benedicto Ottoni foi o primeiro diretor<br />
da EFDP II, e foi sob sua administração que a ferrovia brasileira abriu caminho<br />
pelo interior, superando obstáculos de maneira engenhosa e com um pensamento<br />
quase profético sobre a evolução das ferrovias, construindo, segundo ele ferrovias<br />
para o Brasil do futuro. Quando assumiu a direção da EFDP II, Ottoni entrou <strong>em</strong><br />
conflito com o engenheiro inglês Edward Price, que havia sido contratado<br />
anteriormente para iniciar as obras da ferrovia no pequeno trecho que interligaria<br />
o Rio de Janeiro até a localidade de Belém (atual Japerí, ainda no estado do Rio<br />
de Janeiro), na raiz da serra. Para a subida da Serra do Mar, Price defendia a ideia<br />
da utilização de planos inclinados ou cr<strong>em</strong>alheiras 6 , com o qual Ottoni não<br />
concordava, pois de acordo com ele:<br />
Eu não construo Estrada para o Brasil de hoje, mas para<br />
o Brasil do futuro. Não pod<strong>em</strong>os dividir os trens. É<br />
preciso que os trens que corr<strong>em</strong> na baixada galgu<strong>em</strong> a<br />
Serra para correr no planalto; senão não haverá<br />
desenvolvimento econômico possível para as províncias<br />
de Minas e de São Paulo. (VASQUEZ, 2007, pag. 57)<br />
Desta forma Ottoni acabou destituindo Price e contratando engenheiros<br />
dos Estados Unidos para dar prosseguimento as obras nos seus moldes, visto que<br />
os americanos já possuíam experiência adquirida na construção da ferrovia que<br />
subiu as Montanhas Rochosas <strong>em</strong> seu país, onde utilizaram, como desejado por<br />
Ottoni, o sist<strong>em</strong>a de “Simples Aderência” 7 , que permitia que os trens<br />
mantivess<strong>em</strong> a continuidade do tráfego tanto na planície quanto no planalto, s<strong>em</strong> a<br />
necessidade de seccioná-los. À partir desta mudança radical de sist<strong>em</strong>a a ferrovia<br />
prosseguiu seu caminho, subindo a serra e chegando até a cidade de Barra do<br />
Piraí, onde se daria a bifurcação da mesma. Ottoni deixou, desta maneira seu<br />
6 O sist<strong>em</strong>a de planos inclinados ou cr<strong>em</strong>alheira consiste <strong>em</strong> efetuar o reboque das composições<br />
férreas <strong>em</strong> trechos de serra por meio de cabos de aço, no primeiro caso, ou por meio de uma<br />
locomotiva dotada de uma engrenag<strong>em</strong> que se encaixa <strong>em</strong> uma cr<strong>em</strong>alheira disposta no centro da<br />
via férrea, possuindo ambos os sist<strong>em</strong>as pouquíssima capacidade de carga e grande morosidade no<br />
processo, pois nesse processo os trens têm que ser divididos para então subir a serra <strong>em</strong> pequenas<br />
parcelas.<br />
7 O sist<strong>em</strong>a de simples aderência consiste <strong>em</strong> vencer aclives utilizando-se somente da capacidade<br />
de tração e aderência das rodas das locomotivas, necessitando para isto da construção de um<br />
traçado mais suave nas subidas, que não exceda 4% de rampa.<br />
44
nome gravado na história ferroviária brasileira, pois foi capaz de sugerir e<br />
implantar um sist<strong>em</strong>a que seria fundamental para o desenvolvimento das ferrovias<br />
brasileiras e principalmente daquela que seria considerada a principal artéria de<br />
nosso sist<strong>em</strong>a ferroviário, a EFDP II, futura EFCB.<br />
Considerando-se o fato de a EFDP II ter iniciado suas obras <strong>em</strong> pleno<br />
Brasil império, <strong>em</strong> uma sociedade ainda dominada pela mão-de-obra escrava, é<br />
bastante interessante o fato de não existir<strong>em</strong> relatos da utilização da mesma <strong>em</strong><br />
sua construção. Esta obra foi s<strong>em</strong> dúvida a primeira real oportunidade de trabalho<br />
oferecida aos homens livres vivendo <strong>em</strong> uma sociedade escravocrata, mesmo<br />
sendo o trabalho nas obras da ferrovia considerado árduo e inferior, visto que as<br />
ferramentas com que os trabalhadores contavam eram apenas pás, picaretas e<br />
pólvora. O trabalho básico na construção da ferrovia, como derrubada da mata,<br />
nivelamento do terreno, abertura de cortes e túneis não exigia do trabalhador<br />
habilidades específicas, sendo os mesmos contratados por <strong>em</strong>preiteiros que<br />
repassavam seus serviços às companhias ferroviárias. A proibição do tráfego de<br />
escravos <strong>em</strong> 1850 e a aprovação da Lei Rio Branco <strong>em</strong> 1871 (Lei do Ventre<br />
Livre) constituíram-se <strong>em</strong> fatores determinantes para a não utilização da mão-de-<br />
obra escrava nas obras da ferrovia, já que os grandes senhores que a utilizavam<br />
t<strong>em</strong>iam a falta de “braços” para seus <strong>em</strong>preendimentos e desta forma queriam<br />
manter a todo custo seus trabalhadores além de buscar mão-de-obra alternativa<br />
para suas propriedades. A necessidade de mão-de-obra na <strong>em</strong>preitada da ferrovia<br />
era grande, não só no trabalho não especializado, mas também nas atividades<br />
qualificadas e s<strong>em</strong>iqualificadas como as exercidas por engenheiros e técnicos. De<br />
acordo com Lamounier (1988), exist<strong>em</strong> vários registros da presença de<br />
trabalhadores imigrantes nas obras de construção das ferrovias; ingleses, italianos,<br />
portugueses, al<strong>em</strong>ães, chineses e outros. Entretanto, o maior contingente de<br />
trabalhadores engajados na obra efetivamente, que se ocupava das tarefas mais<br />
árduas, era de nacionalidade brasileira.<br />
Geralmente dividia-se a construção da linha <strong>em</strong> seções, ficando cada seção<br />
a cargo de um engenheiro que se responsabilizava pelas obras <strong>em</strong> um trecho com<br />
uma extensão entre 6 e 9 Km. Dentro desta seção todos os trabalhadores eram<br />
seus subordinados e avançavam com a obra <strong>em</strong> condições geralmente muito<br />
difíceis, enfrentando chuvas torrenciais, mosquitos, doenças; atravessando<br />
45
pântanos, vencendo a difícil topografia do interior do país, dentre outras<br />
dificuldades, o que tornava a construção da ferrovia uma verdadeira epopeia e<br />
transformava seus construtores <strong>em</strong> legítimos “homens de ferro”.<br />
Cap. 4. A ferrovia como fator de integração e geração de progresso no<br />
interior do país.<br />
O papel da ferrovia no Brasil é algo indiscutível, sendo que <strong>em</strong> seus<br />
primórdios foi a grande responsável pelo desenvolvimento de regiões distantes e<br />
inexploradas, trazendo o progresso, fazendo surgir povoações e cidades ao longo<br />
de seu trajeto. Muitos ramais foram construídos, <strong>em</strong> diferentes bitolas e com<br />
diferentes finalidades, às vezes até s<strong>em</strong> uma finalidade específica, no caso de<br />
locais onde a produção e o movimento de passageiros era incipiente, contudo seus<br />
idealizadores tinham, na realidade uma visão de futuro, o que <strong>em</strong> muitos casos<br />
não se concretizou, vindo a ocorrer o abandono de muitos destes ramais<br />
posteriormente. Centrarei minha discussão naquele que foi o primeiro trecho<br />
realmente importante da estrada de ferro a ser construído no Brasil, naquele que<br />
foi considerado “a espinha dorsal de todo o sist<strong>em</strong>a ferroviário brasileiro”, o<br />
famoso trecho da “linha do centro”, pertencente a então recém criada “Estrada de<br />
Ferro Dom Pedro II”. Terceira ferrovia do país, a Estrada de Ferro D. Pedro II foi<br />
inaugurada <strong>em</strong> 29 de março de 1858 (CAMPOS, 2008), neste momento já<br />
existiam <strong>em</strong> funcionamento a Imperial Companhia de Navegação a vapor e<br />
Estrada de Ferro de Petrópolis, conhecida como Estrada de Ferro de<br />
Mauá, inaugurada <strong>em</strong> 30/04/1854, e a Estrada de Ferro Recife ao São Francisco,<br />
de 09/02/1858, contudo as mesmas possuíam quilometragens pequenas, sendo que<br />
a primeira se estendia por apenas 14,5 km de linhas, enquanto a segunda possuía<br />
um total de 31,7 km (CAMPOS, 2008).<br />
A Estrada de Ferro Dom Pedro II tinha como finalidade a arrojada<br />
proposta de integrar o país, partindo do Rio de Janeiro e chegando à Belém do<br />
Pará, rasgando literalmente o interior do país, atravessando muitas vezes regiões<br />
inóspitas, ou seja, o sertão ainda pouco conhecido e parcamente ocupado por uma<br />
população incipiente. A linha do centro tinha desta forma, a priori, a finalidade<br />
específica de penetrar e conquistar o território brasileiro, s<strong>em</strong> uma destinação<br />
econômica para o momento; tratava-se de um <strong>em</strong>preendimento voltado para os<br />
moldes das ferrovias transcontinentais Norte Americanas de então, que não<br />
46
visavam a exploração comercial e o lucro, direcionando-se somente à melhoria do<br />
transporte de então com a intenção de proporcionar mais rapidez ao mesmo, assim<br />
como às comunicações no interior do país.<br />
4.1. A chegada dos trilhos ao interior mineiro.<br />
Saindo da cidade do Rio de Janeiro e após vencer a Serra do Mar os trilhos<br />
da EFDP II seguiram <strong>em</strong> direção a cidade de Barra do Piraí, onde se daria a<br />
bifurcação para o Sul <strong>em</strong> direção a São Paulo e para o Norte rumo a então<br />
província de Minas Gerais que foi atingida <strong>em</strong> 1869, mais precisamente no<br />
povoado de Santo Antônio dos Crioulos (atual localidade de Chiador, pertencente<br />
ao município de Mar de Espanha) na Zona da Mata mineira, que se situava no<br />
Ramal de Porto Novo da Cunha; daí <strong>em</strong> diante a Linha do Centro da EFDP II<br />
prosseguiu vencendo sérios obstáculos como a transposição da Serra da<br />
Mantiqueira e se estendendo pelo território mineiro, alcançando a cidade de Juiz<br />
de Fora (figura 11 ) no ano de 1875, quando então se deu a conexão com a<br />
rodovia União e Indústria, estrada aberta seis anos antes que efetuava sua ligação<br />
com o Rio de Janeiro; a cidade de Palmira (atual Santos Dumont) foi atingida no<br />
ano de 1877, seguida por Barbacena <strong>em</strong> 1880 até alcançar Queluz (atual<br />
Conselheiro Lafaiete) no ano de 1883. Este trecho da ferrovia foi construído <strong>em</strong><br />
bitola de 1,60m, visto que a construção inicialmente a cargo de ingleses adotara<br />
esta bitola para a obra.<br />
47
Figura 11: Estação ferroviária de Juiz de Fora <strong>em</strong> 1885. Fotografia de Marc Ferrez. Coleção<br />
Gilberto Ferrez, Instituto Moreira Sales. Fonte: Nos Trilhos do Progresso, A Ferrovia no Brasil<br />
Imperial Vista Pela Fotografia, pag. 19.<br />
A partir da cidade de Queluz (atual Conselheiro Lafaiete) a ferrovia<br />
continuava seu progresso <strong>em</strong> direção Norte, margeando o Rio das Velhas, e pouco<br />
mais de vinte anos após o início das obras a mesma já contava com cerca de 502<br />
quilômetros de trilhos <strong>em</strong> plena utilização. Seguindo os planos de construção ao<br />
chegar à localidade de São Julião (atual <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>) a linha se bifurcava,<br />
seguindo a principal <strong>em</strong> direção a cidade de Itabirito e o ramal <strong>em</strong> direção a então<br />
capital da província, Ouro Preto, visando interligá-la ao sist<strong>em</strong>a ferroviário, fato<br />
que se deu no ano de 1888. Desta forma a primeira parte do grande sonho do<br />
Imperador Pedro II havia se concretizado, pois agora as três principais capitais<br />
estavam interligadas por ferrovia, uma vez que a bifurcação que seguia <strong>em</strong> direção<br />
ao Sul também já havia atingido a cidade de São Paulo. A linha principal<br />
prosseguiu até atingir a “Cidade de Minas” (atual Belo Horizonte) <strong>em</strong> 1895, dois<br />
anos antes desta se tornar capital do estado, agora com a ferrovia já denominada<br />
EFCB, visto que os republicanos queriam apagar todas as marcas do império e<br />
desta forma renomearam a estrada de ferro uma s<strong>em</strong>ana após a proclamação da<br />
república.<br />
48
Cap.5. O incentivo à industria automobilística e ao sist<strong>em</strong>a rodoviário <strong>em</strong><br />
detrimento do ferroviário nos anos 1950.<br />
Durante o governo do Presidente Juscelino Kubitschek (1956 – 1961) a<br />
economia brasileira experimentou uma extraordinária expansão, com a produção<br />
industrial crescendo cerca de 80%, sendo que as indústrias de aço cresceram<br />
100%, as indústrias mecânicas 125%, as indústrias de material elétrico e de<br />
comunicações 380% e as indústrias de equipamentos de transporte chegaram a<br />
marca de 600% (SKIDMORE, 1976, apud SILVEIRA, 2007, pag. 42.), sendo que<br />
fortes investimentos externos, principalmente na indústria automobilística,<br />
fizeram com que este setor se torna-se auto-suficiente, chegando a produzir <strong>em</strong><br />
torno de 100.000 veículos por ano ao final de 1961, o que consequent<strong>em</strong>ente<br />
fortaleceu outros seguimentos do mercado, como as indústrias de autopeças. O<br />
presidente, com sua política de metas arrojadas prontificou-se a executar um<br />
Plano Rodoviário Nacional e um Plano Ferroviário Nacional, ambos aprovados<br />
pela lei 2975, de 27 de nov<strong>em</strong>bro de 1956, sendo que <strong>em</strong> seu artigo 20 a mesma<br />
previa a construção de algumas ferrovias, mas as construções rodoviárias eram as<br />
dominantes. Somente algumas das linhas ferroviárias propostas pela lei foram<br />
construídas, sendo que os principais troncos foram deixados de lado, enquanto<br />
que no plano rodoviário o governo de Kubitschek foi altamente <strong>em</strong>preendedor, o<br />
que abriu caminho para o aumento da d<strong>em</strong>anda por transporte rodoviário e o<br />
consequente sucateamento da malha ferroviária nos anos seguintes, mesmo com a<br />
criação da RFFSA.<br />
Apesar da criação da RFFSA no governo de Juscelino Kubitschek, a<br />
situação das ferrovias não melhorou muito, sendo que o que se concretizou de<br />
melhorias foram a redução dos déficits, a padronização e modernização da malha<br />
encampada, a redução de despesas e o aumento de cargas transportadas; fatores<br />
que apenas retardaram um pouco a inevitável decadência do setor, que caminhou<br />
para a redução contínua de sua malha, principalmente após a década de 1970. Em<br />
1970 a malha rodoviária brasileira contava com 50298 km de rodovias<br />
pavimentadas e 1079492 km não pavimentados, contra 32052 km de linhas<br />
férreas, praticamente o quantitativo existente na década de 1930, o que agravou<br />
sobr<strong>em</strong>aneira sua decadência (BRASIL, vários números, apud SILVEIRA, 2007,<br />
pag. 45). Entretanto um fator que merece ser ressaltado após a criação da RFFSA<br />
49
foi que a <strong>em</strong>presa, através de sua subsidiária, a Urbanizadora Ferroviária S/A,<br />
possibilitou a construção, nas cidades, de habitações para os ferroviários,<br />
cumprindo assim um outro papel, visto que <strong>em</strong> seu projeto original a <strong>em</strong>presa<br />
tinha como mote ser dinâmica, além de melhorar as condições logísticas e<br />
gerenciais.<br />
5.1. Ideias, propostas, possibilidades.<br />
Reativar, reutilizar, diversificar e investir, certamente são estas as palavras<br />
que farão a diferença na reestruturação do transporte ferroviário brasileiro, com<br />
atuações que pod<strong>em</strong> ser de curto, médio e longo prazo; atendendo d<strong>em</strong>andas e<br />
captando e/ou redirecionando cargas e passageiros, o setor ferroviário brasileiro<br />
possui grande possibilidade de virar o jogo. À seguir apresento algumas<br />
alternativas, passiveis de execução, específicas para impl<strong>em</strong>entação na malha<br />
ferroviária que corta a localidade que representa meu objeto de estudo, mas que<br />
garantidamente beneficiarão outros locais.<br />
A reativação de trechos de ferrovia que passam por <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong><br />
poderia ser uma solução relativamente pouco onerosa para resolver os probl<strong>em</strong>as<br />
relacionados aos entraves representados pela saturação dos corredores de<br />
exportação operados hoje pelas concessionárias MRS logística, FCA e Vale,<br />
sendo que inúmeras são as possibilidades de aproveitamento destes trechos<br />
abandonados. O transporte interno também poderia se beneficiar desta reativação,<br />
visto que muitas cargas que hoje chegam a terminais, principalmente da MRS<br />
logística para ser<strong>em</strong> <strong>em</strong>barcados nas composições férreas poderiam transitar<br />
somente por ferrovia, retirando das estradas um número significativo de<br />
caminhões, e contribuindo, é claro para uma economia substancial de combustível<br />
e para um menor lançamento de poluentes na atmosfera. Um ex<strong>em</strong>plo claro disso<br />
é o transporte de ferro gusa e calcário oriundos das cidades de Sete Lagoas e<br />
Pedro Leopoldo, que parte destas cidades <strong>em</strong> caminhões trafegando até a<br />
localidade de Joaquim Murtinho, um bairro de Conselheiro Lafaiete, para então<br />
ser <strong>em</strong>barcado <strong>em</strong> vagões no pátio da estação ferroviária da referida localidade,<br />
percorrendo cerca de 160 quilômetros de rodovia.<br />
50
Com a reativação da linha que vai de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> à General Carneiro<br />
seria possível a conexão com a cidade de Sete Lagoas, interligando um trecho<br />
pertencente à FCA com outro pertencente à MRS logística, que outrora<br />
compunham uma única ferrovia, originariamente EFCB e posteriormente RFFSA,<br />
que no ano de 1996 foram desm<strong>em</strong>bradas e entregues à iniciativa privada. Desta<br />
forma todo o transporte destes produtos poderia ser feito por via férrea (figura 12).<br />
Figura 12: Rota de circulação dos trens carregados de calcário e ferro gusa.<br />
Esqu<strong>em</strong>a do autor.<br />
Outra possibilidade de aproveitamento de trechos ociosos se refere à<br />
possibilidade de redirecionar os trens de minério de ferro, vazios, operados pela<br />
MRS logística, que retornam dos portos do Rio de Janeiro e Santos, como também<br />
daqueles que retornam de Volta Redonda e de São Paulo, quando destinados aos<br />
pontos de carregamento situados na chamada “Frente Norte da Ferrovia do Aço”,<br />
fazendo com que os mesmos sigam pela linha do centro até a cidade de Itabirito e<br />
51
se efetue uma conexão com os respectivos pontos de carregamento de minério de<br />
ferro da Vale que pouco distam desta cidade (figura 13). Desta forma os trens<br />
carregados retornariam <strong>em</strong> um corredor exclusivo, desafogando o tráfego que<br />
atualmente se dá <strong>em</strong> ambos os sentidos na referida malha.<br />
Figura 13: Corredor exclusivo para os trens vazios que segu<strong>em</strong> para os pontos de carregamento.<br />
Esqu<strong>em</strong>a do autor.<br />
O turismo e a cultura também poderiam ser cont<strong>em</strong>plados pela iniciativa<br />
de reativação de trechos ferroviários; no caso da localidade de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong><br />
poderia se criar um centro cultural abrangendo todo o conjunto arquitetônico<br />
ferroviário local que compreende a estação, a antiga caixa d’água de fabricação<br />
inglesa, o alojamento de maquinistas, dentre outras obras; estendendo-se esta<br />
visitação àquela que foi a segunda usina siderúrgica instalada no Brasil, a Usina<br />
Wigg, que pouco dista da estação ferroviária. Turistas poderiam conhecer todo<br />
este acervo histórico viajando para lá <strong>em</strong> trens que poderiam partir da cidade de<br />
Conselheiro Lafaiete, <strong>em</strong> uma linha já ativa, ou de Belo Horizonte, caso se<br />
reativasse o trecho de linha compreendido entre as localidades de General<br />
Carneiro e <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>. A cidade de Ouro Preto também poderia ser<br />
cont<strong>em</strong>plada pelos trens turísticos, bastando para isso efetuar-se a reativação,<br />
52
além do trecho acima citado, do trecho de ferrovia que a liga a localidade de<br />
Lafaiete Bandeira, que por sua vez possui conexão com <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>; desta<br />
forma um tr<strong>em</strong> turístico poderia sair de Belo Horizonte, circular até <strong>Miguel</strong><br />
<strong>Burnier</strong>, e de lá atingir Ouro Preto (figura 14), proporcionando ao viajante um<br />
deslumbrante espetáculo das paisagens mineiras, serpenteando as montanhas e<br />
vales, como um retorno aos t<strong>em</strong>pos áureos desta modalidade de transporte.<br />
Figura 14: Possíveis rotas do tr<strong>em</strong> turístico para <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> e Ouro Preto.<br />
Esqu<strong>em</strong>a do autor.<br />
53
Todas estas possibilidades tornam viável, é claro, o desenvolvimento do<br />
distrito de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>, onde poderão ser instalados restaurantes, pousadas,<br />
enfim toda uma estrutura que vise fornecer apoio à atividade turística, fazendo<br />
com que os habitantes do distrito tenham opções de lá continuar, visto que<br />
<strong>em</strong>pregos serão gerados e com eles certamente haverá investimentos no local por<br />
meio do poder público, como estruturação do equipamento urbano, criação de<br />
escolas, melhoria no atendimento médico, dentre outros serviços básicos; o que<br />
consequent<strong>em</strong>ente atrairá outros investimentos privados para o <strong>lugar</strong>.<br />
Os projetos sugeridos foram apresentados a alguns moradores e ex-<br />
moradores para que os apreciass<strong>em</strong> e oferecess<strong>em</strong> seu parecer, sendo que a grande<br />
maioria ouvida se mostrou bastante favorável aos mesmos, visto que certamente<br />
trariam melhorias para o Distrito, contudo se mostraram bastantes descrentes <strong>em</strong><br />
relação a realização dos mesmos, porque, conforme relataram, várias notícias<br />
anteriores referentes à restauração da estação e seu entorno e reativação dos<br />
ramais ferroviários, já foram veiculadas e nada de concreto foi feito. A descrença<br />
dos moradores locais, principalmente os mais idosos, é bastante fundamentada,<br />
pois <strong>em</strong> minhas pesquisas me deparei com diversos artigos de jornais que<br />
alardeavam mudanças significativas para a localidade no tocante a reativação dos<br />
ramais ferroviários e à restauração das edificações da ferrovia; ressaltando que<br />
uma s<strong>em</strong>ana antes de minha primeira visita ao Distrito o jornal Correio da Cidade,<br />
de Conselheiro Lafaiete estampava <strong>em</strong> sua página de rosto uma manchete<br />
referente à restauração da estação ferroviária de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong>.<br />
Considerações finais.<br />
Ao contrário do senso comum, no qual se pensa que a realidade da<br />
erradicação de ramais ferroviários deficitários trata-se de um probl<strong>em</strong>a<br />
exclusivamente brasileiro, pod<strong>em</strong>os afirmar, após verificarmos os dados<br />
disponíveis para países da América do Norte e Europa, principalmente, que o<br />
mesmo se deu para estes países. No caso dos Estados Unidos a erradicação<br />
eliminou milhares de quilômetros, sendo que atualmente sua malha é muito menor<br />
do que era <strong>em</strong> 1917, ano do apogeu da ferrovia americana <strong>em</strong> se tratando de<br />
quilometrag<strong>em</strong> de trilhos, contudo a rede ferroviária americana soube se<br />
modernizar, adequando-se a realidade s<strong>em</strong> deixar de atender sua população <strong>em</strong><br />
54
elação ao transporte de passageiros, visto que mesmo com a ênfase dada ao<br />
transporte <strong>em</strong> massa de carga, essa população não ficou desassistida. Para isto foi<br />
efetuada uma separação entre as modalidades do transporte ferroviário com a<br />
criação da Amtrack, <strong>em</strong>presa destinada exclusivamente a explorar o transporte de<br />
passageiros, s<strong>em</strong> promover muitas interferências no transporte de cargas,<br />
utilizando para isto, <strong>em</strong> muitas das vezes, de vias exclusivas destinadas a esta<br />
modalidade; contudo os Estados Unidos são considerados como o país<br />
desenvolvido que t<strong>em</strong> o menor uso de linhas férreas para o transporte de<br />
passageiros no mundo. No Canadá fato s<strong>em</strong>elhante se deu, com o país possuindo<br />
atualmente menos quilometrag<strong>em</strong> de trilhos que outrora; o mesmo pôde ser<br />
verificado <strong>em</strong> alguns países da Europa. Porém o que se observa nestes países é<br />
que a população que dependia desta modalidade de transporte não foi esquecida,<br />
pois vários quilômetros de estradas secundárias, devidamente pavimentadas,<br />
foram construídos concomitant<strong>em</strong>ente com a desativação dos ramais considerados<br />
anti econômicos, modelo que não foi seguido <strong>em</strong> nosso país.<br />
O que se conclui disso é que outrora o transporte ferroviário era a única<br />
opção de transporte que conseguia agregar rapidez, confiabilidade e capacidade de<br />
carga; atualmente este quadro se inverteu devido principalmente à d<strong>em</strong>anda<br />
capitalista por velocidade. “Just in time” tornou-se a palavra de ord<strong>em</strong> no mundo<br />
globalizado, o que na maioria das vezes não pode ser atendido pela ferrovia; o<br />
transporte de pequenos volumes não é adequado ao modal ferroviário que se<br />
limita praticamente ao chamado “heavy haul” 8 . Contudo muitos países, ao<br />
contrário do Brasil, souberam investir <strong>em</strong> sua malha ferroviária r<strong>em</strong>anescente,<br />
adequando-a e modernizando-a para que se mantivesse competitiva <strong>em</strong> relação as<br />
d<strong>em</strong>ais modalidades de transporte, garantindo um nicho bastante significativo<br />
dentro deste universo, com capacidade para captar uma ampla gama de cargas,<br />
com diferentes valores agregados, destinadas a várias localidades, tanto de curta<br />
como de longas distâncias. Em nosso país predomina o transporte de cargas de<br />
baixo valor agregado e grandes volumes, no sist<strong>em</strong>a heavy haul, que pouco<br />
contribui para a expansão do setor, visto que se limita praticamente aos corredores<br />
de exportação para escoamento de matérias primas.<br />
8 O termo heavy haul é utilizado para designar o transporte de grandes volumes e fluxo constante<br />
de determinado tipo de carga.<br />
55
A própria ANTF, entidade que t<strong>em</strong> por fim promover o desenvolvimento e<br />
o aprimoramento do transporte ferroviário no país desconhece a realidade de<br />
nossa malha, visto que <strong>em</strong> seu mapa ferroviário de 2011 (figura 15), mais<br />
especificamente no detalhe “A” (figura 16) 9 , constam como existentes trechos de<br />
ferrovia que tiveram seus trilhos arrancados, particularmente os operados pela<br />
concessionária FCA, atualmente sob administração da Vale; desta forma pod<strong>em</strong>os<br />
observar que n<strong>em</strong> mesmo um órgão criado exclusivamente para fomentar o<br />
desenvolvimento do transporte ferroviário no país t<strong>em</strong> a real noção do<br />
sucateamento da malha ferroviária brasileira. Os ramais que tiveram seus trilhos<br />
arrancados compreend<strong>em</strong> os trechos entre Lafaiete Bandeira e Ouro Preto 10 e<br />
entre <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> e Rio Acima (ver anexos A e B), interrompendo desta forma<br />
o tráfego para a cidade de Ponte Nova e para Belo Horizonte, respectivamente. Ao<br />
longo do leito desativado o que se observa é uma série de irregularidades como<br />
invasão da faixa de domínio da ferrovia, com construções irregulares, roubo do<br />
que resta de material ferroviário, enfim toda uma sorte de probl<strong>em</strong>as que só<br />
reforçam o descaso com nossas ferrovias.<br />
9 Na figura 16 as linhas representadas <strong>em</strong> azul pertenc<strong>em</strong> a MRS logística S.A., <strong>em</strong> vermelho, à<br />
FCA e <strong>em</strong> amarelo à Vale.<br />
10 Entre as cidades de Ouro Preto e Mariana circula atualmente um tr<strong>em</strong> turístico, <strong>em</strong> um pequeno<br />
trecho restaurado da ferrovia, operado pela concessionária FCA.<br />
56
Figura 15: Adaptado de Mapa das ferrovias de carga no Brasil <strong>em</strong> 2011. Fonte: ANTF.<br />
Figura 16: Detalhe A. Adaptado de Mapa das ferrovias de carga no Brasil <strong>em</strong> 2011.<br />
Fonte: ANTF.<br />
57
Inúmeras cidades mineiras cresceram e se desenvolveram ao longo da via<br />
férrea, entretanto a forte ligação histórico/cultural do estado com trens e estações<br />
não foi capaz de impedir o abandono, o esquecimento, o descaso. Na melhor das<br />
hipóteses, nas estações e antigas edificações ferroviárias que ainda se encontram<br />
de pé, funcionam atualmente bibliotecas, museus, centros comunitários, postos de<br />
saúde, dentre outros usos, que n<strong>em</strong> de longe l<strong>em</strong>bram o apogeu da era das<br />
ferrovias no interior do país. Estas utilizações secundárias não passam de um<br />
mero paliativo para o aproveitamento das referidas edificações, o que na realidade<br />
todos desejam ver é o país novamente nos trilhos, a volta por cima, a retomada<br />
rumo ao tão sonhado e cada vez mais distante para nós, desenvolvimento, que<br />
como mostrou a história passa obrigatoriamente pelos caminhos de ferro <strong>em</strong> se<br />
tratando de um país de dimensões continentais como o nosso.<br />
58
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62
Anexos<br />
Anexo A. Interrupção do trecho ferroviário entre Itabirito e Rio Acima.<br />
Ligação ferroviária entre as cidades de Itabirito e Rio Acima interrompida no perímetro urbano de<br />
Itabirito. Fotografia do autor.<br />
A fotografia acima, obtida <strong>em</strong> 04/08/2011, retrata a situação de um trecho<br />
da “Linha do Centro” compreendido entre as cidades de Itabirito e Rio Acima.<br />
Aqui v<strong>em</strong>os que onde antes existia o leito da ferrovia, agora existe uma rua no<br />
centro de Itabirito; contudo de acordo com o “Mapa das ferrovias de carga no<br />
Brasil <strong>em</strong> 2011” o trecho está <strong>em</strong> condições de uso e consta como operacional.<br />
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Anexo B. Interrupção do trecho ferroviário entre <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> e Ouro Preto.<br />
Ligação ferroviária entre as localidades de Lafaiete Bandeira e Ouro Preto, interrompida <strong>em</strong><br />
Lafaiete Bandeira. Fotografia do autor.<br />
A linha localizada à esquerda na fotografia, pertencente ao “Ramal de<br />
Ponte Nova” fazia a ligação entre a localidade de <strong>Miguel</strong> <strong>Burnier</strong> e a cidade de<br />
Ouro Preto. Esta fotografia foi obtida <strong>em</strong> 30/10/2011, próximo a antiga estação de<br />
Lafaiete Bandeira, e como se vê claramente os trilhos terminam aqui, contrariando<br />
novamente o observado no “Mapa das ferrovias de carga no Brasil <strong>em</strong> 2011”, que<br />
considera o respectivo trecho como ativo e operacional.<br />
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