14.04.2013 Views

A Realeza real - Fundação Casa de Rui Barbosa

A Realeza real - Fundação Casa de Rui Barbosa

A Realeza real - Fundação Casa de Rui Barbosa

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

A <strong>Realeza</strong> <strong>real</strong><br />

Paola Henrique Garcia 1<br />

Carlota abriu a janela do sobrado alviver<strong>de</strong>, o número 13 <strong>de</strong> uma silenciosa vila em<br />

Botafogo. Era dia! Mas não lhe parecia um dia comum. A vila não estava silenciosa como<br />

<strong>de</strong> costume. As senhoras cochichavam afoitas enquanto as outras crianças brincavam inspiradas.<br />

Antes que Carlota pu<strong>de</strong>sse se juntar a elas e perguntar o que estava acontecendo,<br />

Nestor chegou.<br />

— Carlota, venha! Tenho uma coisa pra te mostrar. — disse ofegante o menino rechonchudo,<br />

com os olhos arregalados <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrença. E as duas crianças puseram-se a<br />

correr pelas ruas estreitas e irregulares. — Que que há, Nestor? — indagou a menina. Mas<br />

antes <strong>de</strong> ouvir a resposta, pô<strong>de</strong> ver o que estava havendo com seus próprios olhos ; e, ao<br />

arregalá-los como nunca antes, enten<strong>de</strong>u o espanto <strong>de</strong> Nestor. Malas que mais pareciam<br />

baús, dispostas em círculo eram, cuidadosamente, carregadas por escravos, uma a uma<br />

para <strong>de</strong>ntro do sinuoso portão. Algumas damas vestidas com roupas finas e claras abanavam<br />

impacientemente seus leques tentando, em vão, fugir do calor da capital. Até que<br />

se abriu a porta <strong>de</strong> uma carruagem recém-chegada, e <strong>de</strong> lá saiu uma mulher muito bem<br />

vestida, mas com semblante <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgosto.<br />

Carlota Joaquina <strong>de</strong> Bourbon e Bragança. A esposa <strong>de</strong> D. João VI havia acabado <strong>de</strong><br />

chegar para ‘férias forçadas’ em seus novos aposentos, a Chácara <strong>de</strong> Botafogo, esquina do<br />

Caminho Velho com a Praia. E tinha cara <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgosto por ter <strong>de</strong> sair <strong>de</strong> Portugal com o<br />

marido <strong>de</strong> quem não gostava para morar em uma terra <strong>de</strong> que gostava menos ainda.<br />

— Carlota? Outra? Aqui? Mas que audácia! — disse, indignada, a menina. Nestor<br />

olhou-a sem acreditar que era essa sua primeira impressão ao saber da gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong>.<br />

Extasiados com toda aquela riqueza dividida em malas, roupas e mobília, os dois resolveram<br />

voltar à vila para contar aos outros.<br />

Carlota pensava enquanto corria. Quais seriam as diferenças e semelhanças entre<br />

ela, a Carlota <strong>real</strong> e a outra, a Carlota Real? Será que tudo aquilo que as separava, <strong>de</strong><br />

alguma forma po<strong>de</strong>ria uni-las? Perdida em seus próprios pensamentos, a menina parou,<br />

1 Aluna do Ensino Médio do Colégio Andrews – Botafogo – Rio <strong>de</strong> Janeiro.


e, enquanto observava Nestor eufórico e cada vez mais distante, resolveu voltar à Chácara<br />

<strong>de</strong> Botafogo. Quem mais po<strong>de</strong>ria ajudá-la com as respostas para todas essas perguntas se<br />

não a tal Carlota Real?<br />

Carlota se escon<strong>de</strong>u no jardim enquanto esperava uma brecha para entrar na Chácara.<br />

Quando a última mala foi posta para <strong>de</strong>ntro, parecia ser o momento <strong>de</strong> entrar e<br />

resolver todas suas dúvidas. A menina correu portão a<strong>de</strong>ntro e, quando viu, estava numa<br />

sala exageradamente ornamentada. Observou e tocou tudo que pô<strong>de</strong>. Antes que pu<strong>de</strong>sse<br />

passar para outro cômodo, ouviu um grito estri<strong>de</strong>nte:<br />

— Imprestável! — Agachada atrás <strong>de</strong> uma ca<strong>de</strong>ira dourada, Carlota assistiu a uma cena<br />

bruta, a punição <strong>de</strong> um escravo por um <strong>de</strong>scuido.<br />

— Castiguem-no! Derramou todo o chá no meu tapete!<br />

A menina fugiu assustada. “Que cruelda<strong>de</strong>!”, pensava ela, correndo <strong>de</strong>sorientada por<br />

entre as carroças no caminho para casa.<br />

Carlota viu diversas cenas como aquela. Havia dias em que Carlota Joaquina mandava<br />

chicotear transeuntes que não se ajoelhavam ao vê-la passar com seu cortejo pelas<br />

ruas recém-<strong>de</strong>limitadas do bairro. A pequena Carlota não acreditava que alguém pu<strong>de</strong>sse<br />

tratar com tanta malda<strong>de</strong> e indiferença um povo tão hospitaleiro. E o que antes era uma<br />

gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong> acabou virando apenas mais uma notícia. A vila voltou a ser silenciosa,<br />

as senhoras agora cochichavam outros assuntos, as crianças brincavam tranqüilas.<br />

Carlota sentia que algo <strong>de</strong>via ser feito. Foi então que venceu seu medo e tornou a correr<br />

rumo à Chácara <strong>de</strong> Botafogo. A<strong>de</strong>ntrou os portões <strong>de</strong>cidida, voltou à sala ornamentada,<br />

mas, <strong>de</strong>ssa vez, nem reparou na <strong>de</strong>coração. Procurava Carlota Joaquina. Encontrou-a<br />

tomando chá novamente, e, antes que pu<strong>de</strong>sse esboçar qualquer reação, a menina foi<br />

logo dizendo:<br />

— Me chamo Carlota Silva, tenho doze anos e moro na vila São José. Gostaria <strong>de</strong> dizer<br />

que a senhora não po<strong>de</strong> tratar o povo daqui com tanto <strong>de</strong>scaso. Todos ficamos encantados<br />

com a chegada da Corte, merecemos um pouco <strong>de</strong> educação ao menos. – e saiu,<br />

<strong>de</strong>ixando Carlota Joaquina boquiaberta.<br />

A jovem sorria satisfeita enquanto voltava para casa, ansiosa para contar seu feito a<br />

Nestor. Se à <strong>Realeza</strong> cabe a proteção e o bem-estar <strong>de</strong> seus súditos, quem seria, <strong>de</strong> fato,<br />

a Carlota Real?

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!