13.07.2015 Views

A escrita diária de uma “viagem de instrução” *1 - Fundação Casa ...

A escrita diária de uma “viagem de instrução” *1 - Fundação Casa ...

A escrita diária de uma “viagem de instrução” *1 - Fundação Casa ...

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

To Our Sharehol<strong>de</strong>rs2013, although a transitional year, was aremarkable one for GT. Revenue for the year was$299 million, reflective of the challenging marketconditions that prevailed across our core solarand LED markets, and the strategic <strong>de</strong>cision wema<strong>de</strong> to enter the sapphire materials business,which necessitated foregoing sapphire equipmentsales opportunities.During the year, <strong>de</strong>spite industryheadwinds, we remained committedto advancing the company’s technicallea<strong>de</strong>rship, and continued to makethe investments necessary to advancethe diversification program westarted in 2010. In keeping with thesecommitments, we invested over $83million in research and <strong>de</strong>velopment,almost double our R&D levels fromtwo years ago.We also took steps to strengthen ourbalance sheet by raising approximately$290 million in cash, and retiring our$145 million term loan, providing uswith the strategic and operationalflexibility necessary to take advantageof the many growth opportunitiesthat have been i<strong>de</strong>ntified.In November, we secured a multiyearsapphire materials supplyagreement with Apple,the world’s mosthighly valuedpublic company. This is the mostsignificant customer agreement inGT’s 20-year history. We are verypleased to have such a customer,and to be in a position to leverageour proprietary know-how to supplythis versatile material to Apple andadd jobs in the U.S.While a primary focus at GTduring 2014 is to execute onour commitments to Apple, ourlong-term aim is to establish GT asan unparalleled world-class supplierof sapphire material and equipmentto a variety of customers acrossmultiple industries. The technologywe have <strong>de</strong>veloped and are <strong>de</strong>ployingas part of the Apple project, andthe supply chain strength we arebuilding, will serve us well as wemove to further penetrate significantopportunities in the LED, industrialand military markets, in partnershipwith our existing customers.The long-term growth prospectsat GT, however, are not limited toour expan<strong>de</strong>d sapphire materialsbusiness. We have invested heavilyover the last several years to diversifyour revenue streams and expandWhile a primary focusat GT during 2014is to execute on ourcommitments to Apple,our long-term aim isto establish GT asan unparalleledworld-class supplierof sapphire materialand equipment to avariety of customersacross multipleindustries.


A <strong>escrita</strong> <strong>diária</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>“viagem</strong> <strong>de</strong> <strong>instrução”</strong>18pseudoacacia, entre os americanos locust tree, […] é assaz importante Ibid., p. 355.pelo uso que tem na construção <strong>de</strong> navios”. 18 Ainda em relação à 19Ibid., p. 358hidráulica, menciona os “canaes que tem feito para evitar as cachoeirasou catadupas dos rios, e comunicar uns ribeiros com outros”;além <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar o emprego <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira na construção <strong>de</strong>ssas obras,o que simplifica e facilita a sua execução. 19Essa preocupação com o incentivo e o aperfeiçoamento <strong>de</strong> técnicas<strong>de</strong> cultivo <strong>de</strong> produtos já existentes e aclimação <strong>de</strong> novas culturasno reino foi sem dúvida nenh<strong>uma</strong> o tópico dominante daspesquisas que procediam ao “levantamento das condições naturaise econômicas do Reino e do Ultramar” 20 , muito embora a mineraçãotambém seja tema <strong>de</strong> estudo naquele momento. 21 O próprio d.Rodrigo <strong>de</strong> Sousa Coutinho chegou a se ocupar do tema ao publicarem 1790, pela Aca<strong>de</strong>mia Real das Ciências <strong>de</strong> Lisboa, <strong>uma</strong> Memóriasobre a verda<strong>de</strong>ira influência das minas dos metais preciosos na indústriadas nações que as possuem e especialmente da portuguesa. E ManoelFerreira Câmara, José Bonifácio <strong>de</strong> Andrada e Silva e Joaquim PedroFragoso dos Santos empreen<strong>de</strong>m viagem <strong>de</strong> estudos à Europa,on<strong>de</strong> <strong>de</strong>veriam fazer “um curso completo <strong>de</strong> química [...], e outro<strong>de</strong> mineralogia”; adquirir todos os conhecimentos práticos sobreo assunto; “visitar as minas <strong>de</strong> Saxônia, e Boêmia e […] outras naHungria”; passar “à Suécia , Noruega [e] Inglaterra [para] examinaremas minas <strong>de</strong> Escócia e País <strong>de</strong> Gales”. 22Consi<strong>de</strong>rando-se a pesquisa <strong>de</strong> Fernando A. Novais sobre apolítica econômica das últimas décadas do período <strong>de</strong> colonizaçãodo Brasil, po<strong>de</strong>-se relacionar a viagem <strong>de</strong> Hipólito da Costa com avonta<strong>de</strong> da Coroa portuguesa, manifestada explicitamente no “Discurso<strong>de</strong> d. Rodrigo <strong>de</strong> Sousa Coutinho”, <strong>de</strong> “aument[ar] [a] quantida<strong>de</strong>e [...] melhor[ar] [a] qualida<strong>de</strong> da produção colonial” 23 . A comissãoque lhe fora atribuída não é, portanto, <strong>de</strong> forma alg<strong>uma</strong> umfato isolado; faz parte, ao contrário, <strong>de</strong> um esforço conjunto visando“dinamizar”, “diversificar” e “aperfeiçoar” – para usar as expressões<strong>de</strong> Novais – a produção colonial, na tentativa <strong>de</strong> conquistar novosmercados e recuperar aqueles que foram perdidos. 2420NOVAIS, Fernando A. Portugal ea crise do Antigo Sistema Colonial(1777-1808), p. 225.21Sobre alguns <strong>de</strong>sses trabalhosrealizados nesse período, cf. DIAS,Maria Odila L. da Silva. Aspectosda ilustração no Brasil. In: ____.A interiorização da metrópole eoutros ensaios. São Paulo: Alameda,2005; NOVAIS, Fernando A. Acrise do antigo sistema colonial, p.225-226; MAXWELL, Kenneth. A<strong>de</strong>vassa da <strong>de</strong>vassa, p. 237-238.22PINTO, Luís <strong>de</strong> Souza. Instrução.In: MENDONÇA, Marcos Carneiro<strong>de</strong>. O inten<strong>de</strong>nte Câmara, p.26-27.23NOVAIS, Fernando A. Portugal ea crise do Antigo Sistema Colonial,p. 254.24Ibid., p. 257.21


ESCRITOS25CANABRAVA, Alice. Um capítuloda história das técnicas no Brasil:o emprego do bagaço da canacomo combustível dos engenhos.Revista da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> SãoPaulo, n. 1, p. 101-109, 1950.26PORTUGAL, Francisco José <strong>de</strong>.[Carta a d. Rodrigo Coutinho]apud CANABRAVA, Alice. Um capítuloda história das técnicas noBrasil, p. 284; grifos meus.Pesquisar novos gêneros para diversificar o que se cultivava noreino, mas também estudar tudo o que pu<strong>de</strong>sse contribuir para melhorara qualida<strong>de</strong> da produção já existente era a orientação das“instruções” a Hipólito da Costa. Ao que ele aten<strong>de</strong> enviando informaçõessobre o modo <strong>de</strong> tratar e adubar o terreno e também sobreo uso <strong>de</strong> maquinaria no beneficiamento <strong>de</strong> culturas como o fumo,o açúcar, o algodão, o linho-cânhamo e o arroz, por exemplo. Atépelo menos o fim do século XVIII, os cuidados com o processo <strong>de</strong>melhoria <strong>de</strong> cultivo <strong>de</strong> culturas agrícolas eram quase inexistentes;na indústria açucareira, por exemplo, não se tem conhecimento <strong>de</strong>“nenhum aperfeiçoamento <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m técnica que tivess[e] importânciasignificativa no aumento da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção ou <strong>de</strong>melhoria da qualida<strong>de</strong> dos produtos fabricados”. 25Nem mesmo o uso do bagaço <strong>de</strong> cana como combustível, técnicacujos resultados positivos foram alcançados pelos ingleses e francesesno mar do Caribe <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVII, teve êxito quando experimentadona Bahia no fim do século XVIII. Em carta <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> março<strong>de</strong> 1798, d. Francisco José <strong>de</strong> Portugal, governador <strong>de</strong>ssa província,assegura a d. Rodrigo Coutinho que nos escritos “que tratam <strong>de</strong>stamateria não é bastante o que elles dizem para se adoptar e dar execuçãoao referido methodo como me confessaram alguns senhores<strong>de</strong> engenho”. E, continuando o seu raciocínio, insiste que “à vista doque fica exposto, só se po<strong>de</strong>rá por em prática aquelle methodo se S.M. for servido mandar às mencionadas ilhas [das Caraíbas] h<strong>uma</strong> o<strong>uma</strong>is pessoa habeis que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> fazerem as observações necessarias e asinstruirem, venham a esta capitania introduzil-o”. 26É significativa a coincidência <strong>de</strong> datas: a carta <strong>de</strong> d. FranciscoJosé <strong>de</strong> Portugal é <strong>escrita</strong> no mesmo ano em que Hipólito da Costa éenviado aos Estados Unidos e ao México; e mais significativo aindaé o fato <strong>de</strong> o açúcar estar entre os itens <strong>de</strong> que ele mais se ocuparádurante a sua permanência nos Estados Unidos. Em carta da Filadélfia,datada do dia 13 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1779, Hipólito se referea <strong>uma</strong> “Memória” que teria remetido sobre o “acer sacharium, quecompreen<strong>de</strong> a <strong>de</strong>scrição, úteis [sic], cultura, rendimentos e <strong>de</strong>spe-22


A <strong>escrita</strong> <strong>diária</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>“viagem</strong> <strong>de</strong> <strong>instrução”</strong>sas, modo <strong>de</strong> manufaturar o açúcar que ela dá”. 27 A recorrência aesse tema em seu Diário da minha viagem para Filadélfia atesta o seuempenho em pesquisar tudo que estivesse relacionado às diversasespécies <strong>de</strong>ssa importante cultura e seus modos <strong>de</strong> produção. Nodia 25 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1799 <strong>de</strong>screve minuciosamente todas as etapasenvolvidas no processo <strong>de</strong> “manufaturar a seiva da árvore açucareira”.28 método retirado muito provavelmente da revista científicaMedical Repository, já que dias antes ele se refere a um outro artigolido sobre esse assunto no mesmo periódico. 29 Ainda em carta <strong>de</strong>24 <strong>de</strong> março do mesmo ano, dá conta da existência <strong>de</strong> <strong>uma</strong> “novaespécie <strong>de</strong> cana-<strong>de</strong>-açúcar que foi trazida da ilha Otahito [...]. Estacana, que observ[ou] na estufa <strong>de</strong> Mr. Hamilton, é tão vantajosa queren<strong>de</strong> o duplo da outra [...] e [...] o açúcar [é] <strong>de</strong> melhor qualida<strong>de</strong>,tendo, além disto a vantagem <strong>de</strong> que o bagaço <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> seco abonda[sic] para o fogo, necessário na <strong>de</strong>puração <strong>de</strong> toda a calda, que a mesmacana tem produzido”. 30Data também do fim do século XVIII o empenho da Coroa portuguesaem aclimatar no Brasil novas varieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> algodão; interesse<strong>de</strong>spertado certamente pelo aumento da procura <strong>de</strong>sse produtonos mercados europeus. Até então, o algodão nativo, já cultivadopelos índios e usado pela população na confecção <strong>de</strong> roupas maisrústicas, era a única espécie conhecida no Brasil. A experiência feitaem alg<strong>uma</strong>s comarcas da Bahia com as sementes do algodão da Pérsiavindas <strong>de</strong> Portugal no ano <strong>de</strong> 1794 não teve continuida<strong>de</strong>: houveresistência dos lavradores que não conseguiam enten<strong>de</strong>r as suasparticularida<strong>de</strong>s. 31 A lavoura algodoeira como um todo encontroumuitas dificulda<strong>de</strong>s para se expandir no Brasil sobretudo porqueo seu longo e penoso processo <strong>de</strong> cultivo exigia mais do que a disponibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> contingente <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra; segundoSérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda, ela, mais do que o açúcar ou qualqueroutro produto agrícola tropical aqui cultivado, “<strong>de</strong>pendia estreitamenteda existência <strong>de</strong> maquinismos a<strong>de</strong>quados e <strong>de</strong> métodos <strong>de</strong>elaboração mais aperfeiçoados”. 3227COSTA, Hipólito da. Copiador eregistro das cartas <strong>de</strong> ofício. In:______. Diário da minha viagempara Filadélfia (1798-1799),p. 262-263.28COSTA, Hipólito da. Diário daminha viagem para Filadélfia, p.141.29Ibid., cf. dia 13 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong>1799, p. 134.30COSTA, Hipólito da. Copiadore registro das cartas <strong>de</strong> ofício, p.234-235. Trata-se, aí, <strong>de</strong> WilliamHamilton, a quem Hipólito daCosta se refere diversas vezes emseu diário. Cf. p. 37 em diante.31Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque<strong>de</strong>. Técnicas adventícias. In:______. Caminhos e fronteiras.3. ed. São Paulo: Companhia dasLetras, 1994. p. 211-232.32Ibid., p. 215.23


ESCRITOS43ALMEIDA, Paulo Roberto <strong>de</strong>. Onascimento do pensamento econômicobrasileiro, p. 323.44COUTINHO, Rodrigo <strong>de</strong> Souza.Para Hipólito José da Costa, p.254.científicos e práticas tecnológicas que pu<strong>de</strong>ssem contribuir para oprogresso da economia nos domínios da coroa portuguesa. PauloRoberto <strong>de</strong> Almeida corrobora a minha observação ao dizer que“foi provavelmente […] [d. Rodrigo] quem inculcou em Hipólitoo gosto pelas questões econômicas”, <strong>uma</strong> vez que “ostentava <strong>uma</strong>concepção essencialmente econômica da administração pública,preocupando-se com a agricultura, o comércio, a gestão financeira eas novas práticas industriais”. 43Nas suas instruções, d. Rodrigo <strong>de</strong> Sousa Coutinho <strong>de</strong>fine precisamenteos objetos <strong>de</strong> investigação <strong>de</strong> Hipólito da Costa em suaviagem. Nos Estados Unidos, enfatiza a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ele adquirirconhecimentos sobre a preparação <strong>de</strong> diversas culturas e espéciesnão-cultivadas. Como método <strong>de</strong> trabalho sugere que <strong>de</strong>ve “procurarem primeiro lugar instruir-se com toda exacção nas culturase [suas] preparações [...] e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tomar todos os conhecimentosque se houverem publicado nesta[s] materia[s], [estudadas], <strong>de</strong>ve[…] praticamente vêr tudo, examinando também com a maior individuação[cada] planta e [...] [verificar] se hé a mesma ou outraespecie differente da que se cultiva no Brazil”.Deve ainda, prossegue o ministro, “examinar com maior individuação,e exacção, assim como a qualida<strong>de</strong> do terreno em que [...]produz melhor, e tudo isso <strong>de</strong>ve [...] recolher noticias theoricas epraticas remettendo-as [para Portugal] e que sejam taes que nada<strong>de</strong>ixem a <strong>de</strong>sejar nesta materia”. 44Realizada a missão nos Estados Unidos, Hipólito da Costa <strong>de</strong>veriapassar ao México para “instruir-se e traser as melhores Memoriassobre [...] a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Insecto, cujo germe forma a Cochonilha,e verificar se hé o mesmo que nós já temos no Rio <strong>de</strong> Janeiro e emSanta Catarina; [...] reconhecer e firmar-se bem no modo porquepreparam as diversas especies <strong>de</strong> cochonilha […] informa[ndo-se]exactamente do que ha nesta matéria […] [para] executar <strong>de</strong>poistodas as preparações; [...] examinar bem o Cactus Cochelinifer, emque se cria o insecto”.26


A <strong>escrita</strong> <strong>diária</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>“viagem</strong> <strong>de</strong> <strong>instrução”</strong>Enfim, para completar sua tarefa, Hipólito da Costa <strong>de</strong>veria obter“alg<strong>uma</strong> porção consi<strong>de</strong>rável da Semente do mesmo Insecto quepossa logo remeter-se com a Instrução [...] para o Rio <strong>de</strong> Janeiro e<strong>de</strong> que se possa immediatamente tirar-se partido”. 45Caber-lhe-ia também examinar atentamente o “estado das culturas”nos domínios espanhóis e <strong>de</strong>termina ainda o ministro que sepu<strong>de</strong>r, na viagem pelos Estados Unidos e domínios espanhóis, Hipólitoda Costa observe os trabalhos com minerais e “fa[ça] alg<strong>uma</strong><strong>de</strong>scripção dos methodos por que as Minas são trabalhadas, e dosprincipios <strong>de</strong> economia tanto publica como particular, com que sãoregidas”. 46O teor das “Instruções” <strong>de</strong> d. Rodrigo <strong>de</strong> Sousa Coutinho não<strong>de</strong>ixa margem <strong>de</strong> dúvida quanto ao caráter da missão recebida porHipólito da Costa. Trata-se <strong>de</strong> <strong>uma</strong> viagem oficial <strong>de</strong> cunho explicitamentetécnico e com vistas a <strong>uma</strong> aplicação imediata. E se alg<strong>uma</strong> hesitaçãopersistir sobre esse aspecto da viagem, basta ler o conjunto <strong>de</strong>documentos – “Copiador e registro das cartas <strong>de</strong> ofício” e “Memória”– em que se encontram registradas todas as obrigações cumpridasao longo <strong>de</strong> sua estada nos Estados Unidos, para perceber queHipólito da Costa executou rigorosamente as <strong>de</strong>terminações pr<strong>escrita</strong>snas “Instruções”. É importante notar que o <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong>Hipólito da Costa por diferentes regiões americanas é previamente<strong>de</strong>marcado <strong>de</strong> acordo com o que busca observar, embora muito dasinformações sobre alguns dos “principais objetos <strong>de</strong> [sua] missão”tenham sido adquiridas por meio <strong>de</strong> leituras ou conversas com agricultores,professores ou “curiosos <strong>de</strong> botânica” com quem mantevecontato durante o período em que esteve nas cida<strong>de</strong>s visitadas. 47A visita à Virgínia e a Maryland, por um lado, e aos estados setentrionaise à Pensilvânia, por outro, se <strong>de</strong>ve respectivamente aoexame das culturas do tabaco e do linho-cânhamo, por exemplo,dois daqueles objetos que <strong>de</strong>veriam merecer as suas observações.Executada a diligência, Hipólito redige o referido documento intitulado“Memória”, dando conta <strong>de</strong> todos os objetos <strong>de</strong> sua ocupaçãodurante a estada na América do Norte. Para cada tema observado,45Ibid., p. 255-256.46Ibid., p. 256.47COSTA, Hipólito da. Memóriasobre a viagem aos EstadosUnidos em 1789 por Hipólito daCosta, p. 252-253.27


ESCRITOS48COUTINHO, Rodrigo <strong>de</strong> Souza.Para Hipólito José da Costa, p.254.49COSTA, Hipólito da. Memóriasobre a viagem aos EstadosUnidos em 1789 por Hipólito daCosta, p. 356.50Ibid., p. 355.ele especifica a região on<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser encontrado, a varieda<strong>de</strong> das espécies<strong>de</strong> um mesmo gênero, o método <strong>de</strong> trabalho empregado pelosagricultores, a utilida<strong>de</strong> para fins industriais nos Estados Unidose a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exploração no Brasil e em Portugal. Registra,ainda, o valor <strong>de</strong> tais produtos nos mercados americano e internacional,bem como o papel do estado na administração comercial <strong>de</strong>tudo quanto foi examinado.A preocupação em tornar a viagem <strong>de</strong> Hipólito rentável do ponto<strong>de</strong> vista <strong>de</strong> <strong>uma</strong> possível aplicação imediata já está explícita nasinstruções <strong>de</strong> d. Rodrigo <strong>de</strong> Sousa Coutinho, fato que comprovaainda a hipótese <strong>de</strong> que essa viagem aos Estados Unidos e Méxicotinha a finalida<strong>de</strong> precisa <strong>de</strong> reunir dados que pu<strong>de</strong>ssem ajudar oministro no processo <strong>de</strong> reformulação administrativa do reino português,e conseqüente progresso do império. O documento <strong>de</strong>terminaque Hipólito da Costa reúna tudo quanto pu<strong>de</strong>r sobre os objetos<strong>de</strong> sua investigação e “remet[a] logo, para que Sua Majesta<strong>de</strong> possaprincipiar a tirar partido <strong>de</strong> sua Viagem, ainda antes que chegue [...][a Lisboa] <strong>de</strong> volta”. 48Sobre os prados artificiais, por exemplo, ele assegura que“conhec[e] por observação propria, que ha muitos terrenos em Portugalabsolutamente incultos, on<strong>de</strong> se podião com pouco custo plantargran<strong>de</strong>s prados, que sustentarião numerosos rebanhos e manadas”,reduzindo-se assim “a necessida<strong>de</strong> em que esta[vam] [...] <strong>de</strong>importar carnes <strong>de</strong> paizes estrangeiros”. 49 E das árvores cultivadaspelos americanos, ressalta que a província do Algarves é “propriissimapara as culturas [do Rhux ou S<strong>uma</strong>gre]”, espécies <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>utilida<strong>de</strong>, pois “é bem sabido o gran<strong>de</strong> uso que […] tem nas tinturariase cortumes”. 50Certo <strong>de</strong> que a exposição <strong>de</strong> princípios econômicos “ser[ia] agradavele interessante aos agricultores do Brasil”, Hipólito da Costa“procur[a] obter as noções que po<strong>de</strong>m conduzir ao cálculo prováveldo rendimento e <strong>de</strong>spesas” do algodão e do índigo, por exemplo.Em s<strong>uma</strong>, “em cada um dos estados”, Hipólito trata <strong>de</strong> “[se]aplic[ar] a observar mais particularmente o genero <strong>de</strong> cultura, e os28


A <strong>escrita</strong> <strong>diária</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>“viagem</strong> <strong>de</strong> <strong>instrução”</strong>artigos principais que formão a base do produto do paiz”. Tambémnão <strong>de</strong>scuidou <strong>de</strong> “entr[ar] [em] tudo quanto p[o]<strong>de</strong> nos principios<strong>de</strong> economia tanto publica como particular <strong>de</strong> cada um dos ramos;procur[ou] saber os motivos e fins do governo em todas as operaçõesmercantis, no que ach[ou] bastante que apren<strong>de</strong>r principalmentena administração das Alfan<strong>de</strong>gas, direitos <strong>de</strong> importação e tonellada,e outros regulamentos da marinha mercantil, e rendas publicas;compil[ou] para isso todos os documento authenticos que [foi] possívelobter”. 51O documento intitulado “Copiador e registro das cartas <strong>de</strong> ofício”ratifica o caráter utilitário <strong>de</strong>ssa viagem, já comprovado nas“Instruções” e na “Memória”. Esse conjunto <strong>de</strong> cartas enviadas dosEstados Unidos a d. Rodrigo <strong>de</strong> Sousa Coutinho mostra tambémque Hipólito jamais per<strong>de</strong> <strong>de</strong> vista essa dimensão <strong>de</strong> sua viagem,adquirindo conhecimento e enviando memórias até mesmo sobreassuntos não especificados nas instruções. É o caso, por exemplo,dos búfalos, cuja utilida<strong>de</strong>, resultante da “combinação <strong>de</strong>ste animalcom vacas <strong>de</strong> Portugal”, estaria na “produ[ção] <strong>de</strong> <strong>uma</strong> raça fortíssimae s<strong>uma</strong>mente adaptada para os trabalhos da agricultura”. 52A ênfase sobre a natureza pragmática não é <strong>uma</strong> exclusivida<strong>de</strong>da pesquisa <strong>de</strong> Hipólito da Costa. Outras ativida<strong>de</strong>s científicas,realizadas por luso-brasileiros, em território nacional ou em terrasestrangeiras, a mando da Coroa portuguesa, também apresentavamesse mesmo caráter; traço já percebido e apontado por SérgioBuarque <strong>de</strong> Holanda. Em sua “Apresentação” ao conjunto das“obras econômicas” do bispo José Joaquim da Cunha <strong>de</strong> AzeredoCoutinho, assinala que elas se mostram “alheias freqüentemente àespeculação <strong>de</strong>sinteressada e raramente avessas a preocupações utilitaristas”.Sobre essa inclinação, prossegue o historiador, a obra dobispo seria exemplar e representativa da <strong>de</strong>voção dos portuguesesaos estudos sobre as “realida<strong>de</strong>s práticas” e “às próprias ciênciasaplicadas”. 53 O rápido comentário sobre essa “peculiarida<strong>de</strong> cultural”do luso-português, observado por Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda,51Ibid., p. 352.52COSTA, Hipólito da. Copiadore registro das cartas <strong>de</strong> ofício, p.252.53HOLANDA, Sérgio Buarque <strong>de</strong>.Apresentação. In: COUTINHO,José Joaquim da Cunha Azeredo.Obras econômicas (1794-1804).São Paulo: Companhia EditoraNacional, 1966.29


ESCRITOS54DIAS, Maria Odila L. da Silva.Aspectos da ilustração no Brasil55Ibid., p. 41.56Ibid., p. 48.57KURY, Lorelai. Homens <strong>de</strong> ciênciano Brasil: impérios coloniais ecirculação <strong>de</strong> informação (1780-1810). História, Ciência, Saú<strong>de</strong>:Manguinhos, Rio <strong>de</strong> Janeiro:<strong>Fundação</strong> Oswaldo Cruz, <strong>Casa</strong> <strong>de</strong>Oswaldo Cruz, v. 11, p. 109-129,2004. Suplemento 1.58KURY, Lorelai. Les instructions<strong>de</strong> voyage: orienter le regard,former les gestes. In: _____.Histoire naturelle et voyagescientifique (1780-1830). Paris:L’Harmattan, 2001. p. 97-98.é retomado e ampliado por Maria Odila da Silva Dias em “Aspectosda ilustração no Brasil”. 54O exame minucioso da totalida<strong>de</strong> das ativida<strong>de</strong>s científicas dos“brasileiros” formados em universida<strong>de</strong>s européias, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1772, afaz constatar que esses estudos privilegiam o pensamento europeu<strong>de</strong> orientação utilitarista, ligado diretamente a Voltaire e aos enciclopedistasfranceses. 55 “Uma inclinação geral própria do tempo,<strong>uma</strong> política <strong>de</strong> Estado bem <strong>de</strong>terminada e a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong>ssesestudiosos brasileiros com os interesses materiais da elite rural brasileira”explicariam, a seu ver, a preferência dos “brasileiros” pelasabordagens pragmáticas das ciências e da filosofia, em <strong>de</strong>trimento<strong>de</strong> pesquisas nas “ciências puras ou exatas”. 56Uma vertente da historiografia brasileira mais recente começa,porém, a fazer <strong>uma</strong> revisão <strong>de</strong>ssa via interpretativa. A pesquisa <strong>de</strong>Lorelai Kury, por exemplo, <strong>de</strong>monstra, em dois trabalhos distintos,que o pragmatismo não é <strong>uma</strong> característica particular do iluminismoportuguês; o utilitarismo, isto é, os estudos com vistas a <strong>uma</strong>aplicação imediata foi, segundo ela, bastante <strong>de</strong>fendido durante oalto iluminismo europeu. 57 O exame das “instruções” <strong>de</strong> variadostipos <strong>de</strong> viagem, promovidas por instituições públicas, privadas ouaté mesmo por “amantes das ciências”, na França entre os anos <strong>de</strong>1780 e 1830, indica que todas elas também mostravam-se preocupadascom <strong>uma</strong> utilida<strong>de</strong> pública e social <strong>de</strong> aplicação imediata. Nessestextos, as orientações aos viajantes eram feitas consi<strong>de</strong>rando-se essemesmo fim utilitário. O que impressiona Lorelai Kury ao analisaras “Instruções do museu”, por exemplo, “é o fato <strong>de</strong> a maior partedos argumentos propostos ser estranha às preocupações que se po<strong>de</strong>riam<strong>de</strong>nominar da ‘or<strong>de</strong>m do puramente científico’ ”. 58 O estudodas instruções francesas aponta, portanto, <strong>uma</strong> estreita vinculaçãoentre as viagens, as ciências naturais e a administração do Estadofrancês. O que leva a autora a chamar a atenção, em artigo maisrecente, para <strong>uma</strong> revisão do próprio conceito <strong>de</strong> Iluminismo, que,<strong>de</strong> acordo com seu ponto <strong>de</strong> vista, não po<strong>de</strong> ser entendido “apenascomo um movimento no campo das idéias e da filosofia, mas [tam-30


A <strong>escrita</strong> <strong>diária</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>“viagem</strong> <strong>de</strong> <strong>instrução”</strong>bém] [...] como <strong>uma</strong> reunião <strong>de</strong> práticas administrativas, executadas,em geral, pelo Estado e visando racionalizar o funcionamentoda socieda<strong>de</strong>, conhecer e controlar as populações, a produção, osfluxos e os usos das mercadorias”. 59Consi<strong>de</strong>rando-se o seu estudo sobre as “Instruções”, a vinculaçãodas viagens com as ciências naturais e o funcionamento da políticaadministrativa do Estado francês em relação às suas colôniasfica bastante clara. O trabalho <strong>de</strong> elaboração e divulgação <strong>de</strong>ssesdocumentos era muitas vezes feito pelo governo e se dirigia a especialistas,mas também a não-iniciados em história natural. Encontram-se,entre as “Instruções” estudadas, alg<strong>uma</strong>s que possuemum teor didático explícito: o seu objetivo primeiro era, sem dúvidanenh<strong>uma</strong>, ajudar a instruir funcionários ou mesmo governadoresnas ciências práticas. 60 O domínio <strong>de</strong>sses procedimentos científicosera <strong>de</strong> bastante utilida<strong>de</strong> para o Estado, na medida em que chegavaa receber <strong>de</strong>sses funcionários vasto e rico material que po<strong>de</strong>riaser estudado por especialistas e usado posteriormente com <strong>uma</strong> daspossíveis estratégias <strong>de</strong> controle da produção e da população. 61A leitura das instruções <strong>de</strong> viagem para Hipólito da Costa(1798), Manoel Ferreira Câmara, José Bonifácio <strong>de</strong> Andrada eSilva e Joaquim Pedro Fragoso dos Santos (1790), por exemplo,<strong>de</strong>monstra idêntica preocupação com o caráter utilitário das ativida<strong>de</strong>scientíficas, comprovando, assim, que Portugal, a partir <strong>de</strong>sseperíodo, passava a seguir o mesmo tipo <strong>de</strong> prática administrativaimplantada pela França em suas colônias. E, para minha pesquisa,não importa que a relação das práticas científicas, iniciadas muito timidamenteno fim do século XVIII pela administração do Impérioportuguês, não tenha se estabelecido <strong>de</strong> forma plena, como propõeainda Lorelai Kury. Segundo essa autora, a utilização do conhecimentocientífico pelo Estado ocorreu aí <strong>de</strong> modo instável e <strong>de</strong>scontínuo,pois a política <strong>de</strong> incentivo ao <strong>de</strong>senvolvimento científico nãoconseguiu criar as instituições necessárias que pu<strong>de</strong>ssem promovermudanças significativas nos campos da “administração, das sociabilida<strong>de</strong>s,das instituições, da economia e da cultura”. 62 O que conta59Cf. KURY, Lorelai. Homens <strong>de</strong>ciência no Brasil, p. 110.60KURY, Lorelai. Les instructions<strong>de</strong> voyage.61Cf. KURY, Lorelai. Homens <strong>de</strong>ciência no Brasil.62Ibid., p. 125.31


ESCRITOS63COSTA, Hipólito da. Memóriasobre a viagem aos EstadosUnidos em 1789 por Hipólito daCosta, p. 350.64BRAGA, Teófilo. História daUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra. Lisboa:Tip. da Aca<strong>de</strong>mia Real <strong>de</strong> Ciência,1898. Cf. também CARVALHO,Laerte Ramos <strong>de</strong>. As reformaspombalinas da instrução pública.São Paulo: Edusp: Saraiva, 1978.65CAPÍTULO 2. Das disciplinas filosóficas;e da atenção que se ha<strong>de</strong> haver na escolha dos authores,pelos quaes se <strong>de</strong>vem ensinar. In:ESTATUTOS da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Coimbra (1772). Coimbra: Por Or<strong>de</strong>mda Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra,1972. p. 229.efetivamente para minha visada é consi<strong>de</strong>rar que esse pragmatismoconstituía um universo mais amplo que informou os projetos <strong>de</strong>reforma da Coroa portuguesa e, conseqüentemente, as instruções aserem seguidas por aqueles encarregados <strong>de</strong> realizar essas viagenscientíficas; mas, principalmente, o fato <strong>de</strong> essa perspectiva pragmáticater tido um peso enorme na formação intelectual <strong>de</strong> Hipólitoda Costa e, portanto, na sua concepção do que viria a ser reunir,produzir e transmitir conhecimento.4. Formação intelectualNas “cartas <strong>de</strong> ofício”, Hipólito da Costa <strong>de</strong>ixa claro que, <strong>de</strong>cada um dos objetos <strong>de</strong> sua missão, foram enviados separadamentememórias ou “tratados”, como ele mesmo <strong>de</strong>nomina tais documentos.O que <strong>de</strong> certa forma explica o fato <strong>de</strong> a única “Memória” a quetive acesso até agora ser tão resumida a ponto <strong>de</strong> nada registrar, porexemplo, a respeito do “modo <strong>de</strong> preparar e adubar as terras, escolheras sementes, tratar as plantas e moléstias a que são sujeitas, comcurativos que lhe são <strong>de</strong>scobertos”. 63 Nos dois tipos <strong>de</strong> documentos– cartas <strong>de</strong> ofício e memória-resumo –, exibe bem pouco os seusconhecimentos científicos, ao passo que se sabe que ele já os tinhainicialmente adquirido na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, em cujo curso sediplomou juntamente com o <strong>de</strong> Direito e o <strong>de</strong> Matemática na Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> Coimbra.Na verda<strong>de</strong>, quando Hipólito da Costa inicia a sua formaçãoacadêmica, o estudo das ciências tinha sido incluído no currículo<strong>de</strong>ssa instituição havia bem pouco tempo. Embora Teófilo Bragaacredite que os contornos <strong>de</strong> <strong>uma</strong> Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia começama ser <strong>de</strong>lineados com a introdução dos estudos filosóficos no ColégioReal dos Nobres, criado no ano <strong>de</strong> 1761, 64 foi somente com a reformapombalina <strong>de</strong> 1772 que se criou <strong>uma</strong> Faculda<strong>de</strong>, a <strong>de</strong> Filosofia,com o propósito exclusivo <strong>de</strong> lecionar a filosofia natural, cujo ensinoabrangia “todos os Ramos das Sciencias que ti[nham] por objecto acontemplação da Natureza” em seus em seus múltiplos aspectos. 65O recém-inaugurado curso, com duração <strong>de</strong> quatro anos, inicia suas32


A <strong>escrita</strong> <strong>diária</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>“viagem</strong> <strong>de</strong> <strong>instrução”</strong>ativida<strong>de</strong>s acadêmicas no ano seguinte à reforma, e, para as liçõesdas seis disciplinas que faziam parte do seu currículo, foram criadasas ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> filosofia racional e moral, história natural, física experimental,e química teórica e prática. 66 A história natural, ouvidano segundo ano, juntamente com a geometria, dividia “as suas Liçõesem três Partes, segundo a divisão dos três Reinos da Natureza,que são o Animal, o Vegetal, e o Mineral”. O seu método <strong>de</strong> ensinocompreendia, em primeiro lugar, fazer “<strong>uma</strong> Descripção exacta <strong>de</strong>cada hum dos productos da Natureza” e, em segundo, “recolher asubstância <strong>de</strong> todas as observações, que sobre eles se tem feito”. 67A introdução das novas ciências da natureza nos currículos <strong>de</strong>alguns dos mais significativos cursos da universida<strong>de</strong> (filosofia, teologia,medicina e matemática) foi <strong>de</strong> fundamental importância nopapel <strong>de</strong>sempenhado pela administração portuguesa no que diz respeitoà orientação das comissões <strong>de</strong> cunho científico voltadas paraos fins utilitários <strong>de</strong> aplicação imediata que realizaram Hipólito daCosta e aquele grupo <strong>de</strong> “brasileiros” formados em Coimbra nastrês últimas décadas do século XVIII. O Estatuto da Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> Coimbra (1772) não <strong>de</strong>ixa dúvida quanto ao aspecto utilitaristaque se espera do aprendizado das ciências naturais: do estudo dazoologia, <strong>de</strong>termina que sejam observados e <strong>de</strong>scritos “os serviçosque po<strong>de</strong>m fazer [os animais] ao Homem, com todas as s utilida<strong>de</strong>s,e commodida<strong>de</strong>s, que <strong>de</strong>lles po<strong>de</strong>m reputar: <strong>de</strong>morando-secom mais particular indagação sobre os Animaes, que pertencemao Commercio, à Agricultura e outros usos mais sensíveis, e importantesda vida h<strong>uma</strong>na”. E quanto à botânica, pe<strong>de</strong>-se que se ensine“o uso, que nellas se tem <strong>de</strong>scuberto, relativamente às artes, em queinteressa à Socieda<strong>de</strong>: <strong>de</strong>monstrando-se sempre no útil: e passandoem breve resumo o curioso”. 68Os benefícios materiais das ciências naturais são também enfatizadospor d. Francisco <strong>de</strong> Lemos, reitor <strong>de</strong> Coimbra <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a reformapombalina, ao explicitar que o seu ensino “serv[e] [para] promovera industria dos Homens, introduzir, adiantar e aperfeiçoar muitasArtes, muito necessarias, e importantes para o bem commum dos66Ibid., p. 230.67CAPÍTULO 3. Das ca<strong>de</strong>iras daFaculda<strong>de</strong>, e hora das lições. In:ESTATUTOS da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Coimbra (1772). p. 240.68CAPÍTULO 3. Das lições dosegundo ano. In: ESTATUTOS daUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra (1772).p. 242.33


ESCRITOS69FACULDADE <strong>de</strong> Filosofia. In:RELAÇÃO geral do estado daUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra (1777).Coimbra: Por Or<strong>de</strong>m da Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> Coimbra, 1980. p. 99.70FACULDADE <strong>de</strong> Teologia. In:RELAÇÃO geral do estado daUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra (1777).Coimbra: Por Or<strong>de</strong>m da Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> Coimbra, 1980. p. 99.71CARTA Régia <strong>de</strong> 24 <strong>de</strong> janeiro<strong>de</strong> 1771 apud BRAGA, Teófilo. Históriada Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra,p. 719.Estados”. 69 Acrescenta, porém, o reitor que os fins reais e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>utilida<strong>de</strong> para o Estado só seriam alcançados se fossem empregados“em todos os Ramos da Administração Publica os que tivessemaprendido na Universida<strong>de</strong> [...] os Princípios e Regras” das referidasciências. 70 É, portanto, com a reforma pombalina do ensino superiorque se começa a perceber mais claramente a função adquiridapelas ciências na elaboração <strong>de</strong> novas estratégias administrativasportuguesas em relação à exploração econômica da natureza. Fatoque se concretiza por meio da organização e da execução <strong>de</strong> expediçõesoficiais às colônias ou ao estrangeiro, com o objetivo <strong>de</strong> trazero máximo <strong>de</strong> informações coletadas sobre os elementos da naturezados lugares visitados que pu<strong>de</strong>ssem ser úteis ao <strong>de</strong>senvolvimentoeconômico do império.Mas o currículo da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia sofreria mais <strong>uma</strong>modificação em 1791, um ano antes do ingresso <strong>de</strong> Hipólito da Costanesse curso. Os traços h<strong>uma</strong>nísticos que ali se mantinham com oensino da filosofia racional foram <strong>de</strong>finitivamente apagados com aretirada da lógica <strong>de</strong> seu currículo, e em seu lugar inseridas, para“os que freqüentam aproveitar-se com maior facilida<strong>de</strong> […], as ca<strong>de</strong>irasseguintes: <strong>uma</strong> <strong>de</strong> botânica e agricultura; outra <strong>de</strong> zoologia emineralogia; outra <strong>de</strong> física; e outra <strong>de</strong> química e metalurgia”. 71 Aentrada das ciências práticas ou das “artes”, como as <strong>de</strong>finia o séculoXVIII, no currículo da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia complementariaa formação acadêmica <strong>de</strong> Hipólito da Costa e o capacitaria, aindamais, para o cumprimento <strong>de</strong> <strong>uma</strong> missão oficial cujo caráter científicoatendia aos interesses políticos e econômicos da nova orientaçãoadministrativa colonial da Coroa portuguesa, como bem comprovaa análise que faço <strong>de</strong> alguns dos documentos <strong>de</strong>ixados por ele <strong>de</strong> suaviagem aos Estados Unidos.Para <strong>uma</strong> reconstituição <strong>de</strong> sua formação intelectual, procurareii<strong>de</strong>ntificar os interlocutores implícitos e explícitos que o acompanhamdurante todo o percurso da viagem. A leitura do Diário dáalg<strong>uma</strong>s indicações que precisam ainda ser mais aprofundadas. Antes<strong>de</strong> começar a ler, observar e recolher material sobre os objetos <strong>de</strong>34


A <strong>escrita</strong> <strong>diária</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>“viagem</strong> <strong>de</strong> <strong>instrução”</strong>sua missão, Hipólito da Costa já <strong>de</strong>tém um sólido conhecimento teórico,instrumental que orientará previamente o seu modo <strong>de</strong> olhare <strong>de</strong>screver os fatos que constituem o seu quadro <strong>de</strong> preocupações einteresses. O seu ponto <strong>de</strong> vista sobre o que <strong>de</strong>spertará seu interessena viagem é informado por <strong>uma</strong> dupla orientação: as “Instruções” eo seu conhecimento da história natural.Além <strong>de</strong> estudar as disciplinas que compõem as chamadas ciênciasnaturais na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, ele dá alg<strong>uma</strong>s evidênciasno Diário <strong>de</strong> que acompanha a literatura especializada publicadanessa área. É o caso, por exemplo, do naturalista francês, GeorgesBuffon, 72 a cuja obra recorre, por exemplo, para justificar a sua incertezaquanto à constituição geológica <strong>de</strong> <strong>uma</strong>s “carreiras <strong>de</strong> montanhas”<strong>de</strong> certa região americana. E mais especificamente do botânicoe viajante sueco Thunberg – e, em menor escala, <strong>de</strong> seu mestreLineu – que parece ter efetivamente <strong>de</strong>sempenhado a função <strong>de</strong>interlocutor e ter lhe fornecido um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> narrativa, pelo menosno que diz respeito ao modo <strong>de</strong> ver a organização administrativa,social e institucional dos lugares visitados, na medida em que o viajantesueco já sabe previamente o que reconhecer diante do <strong>de</strong>sconhecido,como se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r da referência que faz Hipólito<strong>de</strong> seus escritos que surgem, então, como espécie <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo a serseguido:Tumberg [sic] nas suas viagens para <strong>de</strong>screver o Japão, traz:1º, natureza do clima, para o que lhes ajunta as observaçõestermométricas; 2º, <strong>de</strong>scrição das figuras das pessoas; 3º, gênio,caráter e disposição da Nação; 4º, linguagem e homens;5º, vestidos; 6º, arquitetura. 7372COSTA, Hipólito José da. Diárioda minha viagem para Filadélfia,p. 208.73Ibid., p. 48.Esse quadro <strong>de</strong> questões teóricas mais amplo, <strong>de</strong> que já dispunhaHipólito da Costa, é ampliado quando, nos Estados Unidos, ele<strong>de</strong>senvolve seus conhecimentos sobre as ciências naturais, relacionadosespecificamente à flora e à fauna norte-americanas, entrandoem contato direto com indivíduos que, <strong>de</strong> <strong>uma</strong> forma ou <strong>de</strong> outra,<strong>de</strong>sempenhavam função semelhante à que lhe tinha sido atribuí-35


ESCRITOSda pela Coroa portuguesa. Em seu Diário sugere conhecer a obra<strong>de</strong> Willian Bartram, autor que, segundo sua palavras, “compôs asviagens”, referindo-se certamente a Travels, narrativa das viagens<strong>de</strong> Bartram pelo su<strong>de</strong>ste dos Estados Unidos entre os anos 1773-1777; relato que contém não apenas o registro <strong>de</strong> novas espécies <strong>de</strong>plantas, mas também as primeiras <strong>de</strong>scrições das culturas dos índiosCherokee e Creek. A expedição a essas regiões selvagens e remotasfoi incentivada e financiada por John Fothergill, um cirurgião inglêscuja maior contribuição científica se <strong>de</strong>u justamente no campoda botânica; em troca, William Bartram <strong>de</strong>veria coletar sementese espécies da flora das regiões visitadas e enviá-las para Foothergill,na Inglaterra. É bom lembrar que William Bartram está dandocontinuida<strong>de</strong> a <strong>uma</strong> tradição <strong>de</strong> trabalho iniciada por seu famosopai, John Bartram, conhecido por ter sido <strong>de</strong>signado como “botânicoreal” pelo rei George III, da Inglaterra. Bartram, pai, também recebiaincentivos financeiros, conselhos e suprimentos <strong>de</strong> livros sobreassuntos ligados à história natural em troca <strong>de</strong> sementes, brotos emudas <strong>de</strong> plantas norte-americanas em troca do material que recolhiae remetia a especialistas <strong>de</strong> renome, <strong>de</strong>ntre os quais <strong>de</strong>stacam-sePeter Collinson, Philip Miller e Carl Lineu.O processo <strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong> Hipólito inclui também longasconversas com pessoas como o botânico amador John Bartram, tambémfilho <strong>de</strong> John Bartram, que herda <strong>de</strong> seu pai o jardim botânicoque este havia fundado justamente para preservar as espécies <strong>de</strong>sconhecidasque colheram em suas muitas expedições a várias regiõesdo país; em seguida à morte <strong>de</strong> seu pai, torna o irmão mais famoso,Willian Bartram, seu sócio, e, juntos, constroem a primeira estufados Estados Unidos. Ainda em parceria, publicam o primeiro catálogo<strong>de</strong> plantas norte-americanas. Em suas visitas à casa <strong>de</strong> Bartram,filho, on<strong>de</strong> estivera primeiro para comprar sementes e <strong>de</strong>pois paradar prosseguimento a longas conversas sobre plantas com o botânicoe seus filhos, Hipólito tem a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver, ainda inédito,o referido catálogo que viria a ser publicado apenas em 1807, com onome <strong>de</strong> Catalogue of trees, shrubs and herbaceous plants, indigenous36


A <strong>escrita</strong> <strong>diária</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>“viagem</strong> <strong>de</strong> <strong>instrução”</strong>to the United State of America, cultivated and disposed of by John Bartramand son at their Botanical Gar<strong>de</strong>n. 74Teve também a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer Humphry Marshall,que, como seu primo John Bartram, também adquire autodidaticamenteseus conhecimentos sobre botânica; e, ainda à semelhançadaquele, começa a trocar espécies da flora local com estudiosos <strong>de</strong>história natural <strong>de</strong> outras partes do país e da Inglaterra, recebendoem recompensa equipamento científico, livros, espécies <strong>de</strong> plantasexóticas, ajuda financeira ou mercadoria comercializável – comolinho. Marshall funda em 1772 um jardim botânico que logo se tornaria<strong>de</strong>positário <strong>de</strong> árvores e arbustos e <strong>de</strong> muitas plantas exóticasque havia adquirido <strong>de</strong> outras regiões americanas e da Europa. Emoutubro <strong>de</strong> 1799, quando Hipólito visita Marshall, já encontra “oseu jardim […] muito mal tratado, cheio <strong>de</strong> ervas”, processo iniciadoquando a sua visão começou a ficar prejudicada pela catarata. Acontribuição <strong>de</strong> Marshall no campo das ciências naturais inclui estudossobre tartarugas e agricultura, mas o seu trabalho <strong>de</strong> maior <strong>de</strong>staqueé Arbustrum Americanum: the American Grove, an AlphabeticalCatalogue of Forest Trees and Shrubs, Natives of the American UnitedStates – um catálogo que, embora seja expresso em termos da utilida<strong>de</strong>das plantas para medicina, agricultura, e disposto em or<strong>de</strong>malfabética visando a tal fim, é <strong>uma</strong> obra científica para especialistas,que utiliza a mais recente nomenclatura taxonômica, <strong>de</strong> Lineu. Ocontato inicial entre Hipólito e Marshall se <strong>de</strong>ra por carta, quandoo brasileiro lhe escreveu solicitando sementes <strong>de</strong> plantas americanasque pu<strong>de</strong>ssem ser cultivadas em Portugal e, ao que indica, a pesquisa<strong>de</strong> Robert C. Smith, a conversa por meio <strong>de</strong> correspondênciaentre ambos se prolongaria ainda por algum tempo. 75É também o interesse pela botânica que leva Hipólito da Costaa entrar em contato com William Hamilton, “um sábio apaixonado<strong>de</strong> botânica”, 76 proprietário <strong>de</strong> um extenso jardim botânico <strong>de</strong>scritopor Thomas Jefferson como o único rival americano à altura doque po<strong>de</strong>ria ser visto na Europa, tamanha a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> plantasali cultivadas vindas <strong>de</strong> toda parte do mundo, inclusive das Índias74Devo essa informação a SMITH,Robert C. A Portuguese naturalistin Phila<strong>de</strong>lphia, 1799.75Ibid., p. 73.76COSTA, Hipólito José da. Diárioda minha viagem para Filadélfia,p. 86.37


ESCRITOS77Ibid., p. 100.78Ibid., p. 135, 145.79Ibid., p. 136.80Mais <strong>uma</strong> vez me beneficio <strong>de</strong>informações dadas por Robert C.Smith em A Portuguese naturalistin Phila<strong>de</strong>lphia, 1799.81COSTA, Hipólito da. Copiadore registro das cartas <strong>de</strong> ofício, p.270.Oci<strong>de</strong>ntais, Japão, Botany Bay e Cabo da Boa Esperança. É precisamenten<strong>uma</strong> passagem do Diário relativa a Hamilton que Hipólito,graças a <strong>uma</strong> breve observação, <strong>de</strong>ixa bem claro que esses encontrosna Filadélfia não são absolutamente aleatórios. Segundo relata, teriasurpreendido seu anfitrião por saber “ao certo quantas espécies <strong>de</strong>Painço” ele cultivava, e retrucara afirmando que essa era <strong>uma</strong> informaçãoque “trazia escrit[a] <strong>de</strong> Lisboa” e que, acrescento eu, muitoprovavelmente, não era a única. 77Além dos interlocutores acima citados, vários outros elementostambém contribuíram muito para o aprendizado <strong>de</strong> Hipólito daCosta tais como: o contato com agricultores; com professores dasUniversida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Columbia e da Pensilvânia; a leitura <strong>de</strong> textoscientíficos <strong>de</strong> periódicos como Medical Repository 78 e publicações daAmerican Philosophical Society, 79 <strong>de</strong> obras sobre os Estados Unidoscomo News Travels in the United States, <strong>de</strong> Jan Pierre Brissot DeWarville, e Moreau <strong>de</strong> St. Méry’s American Journey, <strong>de</strong> Médéric-Louis-Elie<strong>de</strong> Moreau <strong>de</strong> St. Méry, 80 e dos diários <strong>de</strong> notícias Gazette ofthe United States, “que se diz um papel do governo”, e Aurora, “queé o mais bem conduzido papel do partido <strong>de</strong> oposição”, 81 do qualfoi assinante. As conversas com homens <strong>de</strong> ciências, as respostas <strong>de</strong>alguns agricultores a <strong>uma</strong> série <strong>de</strong> questões por ele formuladas porescrito, as leituras <strong>de</strong> publicações que fez no país e as suas própriasobservações formam a base <strong>de</strong> seu método <strong>de</strong> trabalho, mas tambémvão permitir a Hipólito adquirir conhecimento.5. Um <strong>de</strong>slocamento críticoPor um lado, as referências aos inúmeros interlocutores que Hipólitoda Costa priorizou durante sua permanência nos Estados Unidosreforçam ainda mais o caráter nada aleatório <strong>de</strong> sua viagem, pois a Filadélfiarepresentava naquele momento um centro intelectual em <strong>de</strong>senvolvimento,especialmente no campo das ciências naturais. Por outrolado, tal observação me permite ainda propor que essa viagem teria lheservido como um segundo “curso universitário”, dado que reforçariaminha hipótese <strong>de</strong> que a viagem à Filadélfia e a <strong>escrita</strong> do Diário já con-38


A <strong>escrita</strong> <strong>diária</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>“viagem</strong> <strong>de</strong> <strong>instrução”</strong>têm, em germe, o que será encontrado mais tar<strong>de</strong> no Correio Braziliense:<strong>uma</strong> percepção voltada para os fins utilitários e <strong>uma</strong> narrativa eminentementepedagógica como <strong>de</strong>sdobramento <strong>de</strong> seu próprio processo <strong>de</strong>aprendizado; <strong>de</strong> início, como estudante da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra e,n<strong>uma</strong> segunda instância, como observador empírico durante o períodoem que esteve na América do Norte.Se a missão oficial exigia <strong>de</strong> Hipólito da Costa <strong>uma</strong> olhar técnica, aestada nos Estados Unidos também lhe <strong>de</strong>u a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> empreen<strong>de</strong>r,paralelamente ao cumprimento das tarefas que lhe foram atribuídas,<strong>uma</strong> verda<strong>de</strong>ira viagem <strong>de</strong> pesquisa que visava, é claro, a um“aprendizado” 82 não relacionado necessariamente à sua missão oficial.Um aprendizado que se consolidava através da experiência, do contatodireto com pessoas e objetos pesquisados, mas também “ouv[indo][na Filadélfia] as lições públicas do Dr. Rush <strong>de</strong> medicina prática,[…] [freqüentando] aula <strong>de</strong> anatomia”, quando teve a oportunida<strong>de</strong><strong>de</strong> ver “a <strong>de</strong>monstração do olho muito bem feita”, 83 assistindoem Cambridge a “<strong>uma</strong> lição” sobre “natural philosophy”, 84 lendo operiódico Medical Repository, <strong>de</strong> cuja publicação se tornara inclusiveassinante e colaborador.Hipólito da Costa faz <strong>de</strong> fato <strong>uma</strong> viagem <strong>de</strong> aprendizado: aprendizadoque o habilitaria a <strong>de</strong>sconfiar do que lhe é inicialmente dado,atitu<strong>de</strong> que <strong>de</strong>fine e distingue por excelência um pesquisador <strong>de</strong> umsimples técnico. Embora não tenha visto o tabaco da Virgínia, duvida,por exemplo, da <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> sua folha feita por William Hamilton.De alg<strong>uma</strong>s questões feitas ao Dr. Mitchill, “professor <strong>de</strong> química […][no] Colégio Columbiano”, Hipólito recebe respostas que o satisfazemmuito pouco. 85 Talvez não seja <strong>de</strong>scabido propor que o aprendizadoresultante do ato <strong>de</strong> pesquisar possa ter operado, no plano simbólico,a primeira ruptura no processo pedagógico a que estivera submetido<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que iniciara sua formação intelectual na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Coimbra, na medida em que <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> apenas acumular informações epassa a se preocupar também com a produção <strong>de</strong> conhecimento.“Viagem <strong>de</strong> aprendizado”, mas também <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> conhecimento,processo que vai se <strong>de</strong>senvolvendo à medida que Hipólito vai82Estou me referindo ao conceito<strong>de</strong> <strong>“viagem</strong> <strong>de</strong> aprendizado”, usadopor Flora Süssekind para <strong>de</strong>finiro tipo <strong>de</strong> viagem feita pelosviajantes naturalistas no Brasil doséculo XIX, em O Brasil não é longedaqui, p. 104-150.83COSTA, Hipólito José da. Diárioda minha viagem para Filadélfia,p. 85.84Ibid., p. 193.85Ibid., p. 146.39


ESCRITOS86COSTA, Hipólito da. Memóriasobre a viagem aos EstadosUnidos em 1789 por Hipólito daCosta, p. 356.87Informações retiradas <strong>de</strong> DOU-RADO, Mecenas. Hipólito da Costae o Correio Braziliense, p. 79-81.88COSTA, Hipólito da. Memóriasobre a viagem aos EstadosUnidos em 1789 por Hipólito daCosta, p. 356.revendo e ampliando o seu foco <strong>de</strong> interesse. Ainda nos Estados Unidos,escreve <strong>uma</strong> “carta” para a Medical Repository – publicação <strong>de</strong>dicadaa assuntos ligados às ciências naturais – que foi, segundo ele próprio,“louvada” pelo Dr. Mitchill. Mas é sobretudo na “Memória” queHipólito manifesta a sua vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> publicar os assuntos pesquisadose documentados, <strong>de</strong> modo a tornar o seu próprio aprendizado material<strong>de</strong> aquisição <strong>de</strong> conhecimento para outros, quando escreve que “osconhecimentos que adquir[iu] neste artigo [os prados artificiais], eas idéas que sobre isso ti[nha], formão o objecto <strong>de</strong> <strong>uma</strong> pequenamemoria que far[á] publicar por meio da imprensa […]”. 86Não se tem conhecimento <strong>de</strong> que tenha chegado a publicar qualquermaterial sobre esse assunto; mas sabe-se que ainda nos EstadosUnidos ele escreve e publica as obras Descrição da árvore açucareirae Descrição <strong>de</strong> <strong>uma</strong> máquina para tocar bomba a bordo dos navios semo trabalho dos homens; e já em Portugal empreen<strong>de</strong> as traduções doinglês <strong>de</strong> Memória sobre a broncocele ou papo da América Setentrional,<strong>de</strong> Benjamin Smith Barton, e História breve e autêntica do Banco daInglaterra, <strong>de</strong> E. Fortune – ambas publicadas pela Tipografia Calcográficado Arco do Cego. 87No momento em que esclarece a d. Rodrigo <strong>de</strong> Sousa Coutinhoque seria s<strong>uma</strong>mente importante que “se imprim[isse] em folhetosbreves, e adaptados à compreensão dos […] agricultores [...] e seditribu[ísse] pelas províncias” o material pesquisado 88 , Hipólito daCosta está, na verda<strong>de</strong>, dando indicações <strong>de</strong> que o processo pedagógicoiniciado em Coimbra começa a se complementar: o que foraaprendido e pesquisado se converte agora em verda<strong>de</strong>iras “lições”,mediadas pela palavra impressa. É portanto pelo exercício da <strong>escrita</strong>do Diário, das cartas e das memórias, <strong>de</strong> manuais <strong>de</strong> conhecimentosúteis e <strong>de</strong> traduções que ele começa a <strong>de</strong>senvolver o processo pedagógicoque será consolidado nas folhas do Correio Braziliense.Antes, porém, <strong>de</strong> fundar o que é consi<strong>de</strong>rado sua obra maior, suafamiliarida<strong>de</strong> com o processo <strong>de</strong> divulgação <strong>de</strong> material científico seintensificaria com o trabalho na Oficina Tipográfica, Calcográfica eLiterária do Arco do Cego, que, sob a direção do frei Mariano da40


A <strong>escrita</strong> <strong>diária</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>“viagem</strong> <strong>de</strong> <strong>instrução”</strong>Conceição Veloso, tornar-se-ia a responsável pela política editorialdo Estado, publicando as informações acumuladas ao longo das últimasdécadas do século XVIII, inventariadas por expedições científicasoficialmente encomendadas. Nesse ponto específico, a análise<strong>de</strong> Jussara Quadros sobre esse estabelecimento editorial é bastanteesclarecedora quando assinala que o Estado, ao fundá-lo em 1799,atribuindo-lhe a função precisa <strong>de</strong> difundir os conhecimentos práticos,<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> operar como “arquivo” e se transforma em “editor”. Oque significaria <strong>uma</strong> mudança consi<strong>de</strong>rável em termos <strong>de</strong> seu papelinstitucional: o que antes era um estado-arquivo torna-se um estado-editor;estado-editor porque a ele compete, agora, a “conversãodo saber naturalista na pedagogia dos conhecimentos úteis, convertendoos relatos <strong>de</strong>scritivos <strong>de</strong> expedições e experimentos científicosnas orientações prescritivas dos manuais, os herbários botânicos empranchas ilustrativas, reproduzindo os signos <strong>de</strong> <strong>uma</strong> riqueza manipulável”para retomar a formulação da autora. 89No entanto, o trabalho realizado por Hipólito da Costa na TipografiaArco do Cego – <strong>de</strong> início como autor e tradutor e, mais tar<strong>de</strong>,como um <strong>de</strong> seus diretores, quando o estabelecimento é incorporadopela Imprensa Régia em 1801, encerraria a sua participação naexecução do programa político pensado por d. Rodrigo <strong>de</strong> SousaCoutinho, cujo fim último era a racionalização do funcionamentoeconômico e social do Império português por meio <strong>de</strong> novas práticasadministrativas.Mais do que a ruptura radical <strong>de</strong> sua relação com o po<strong>de</strong>r público– representada pelos anos passados na prisão e, posteriormente,pelo exílio voluntário em Londres –, importaria refletir sobre aruptura que se efetiva em outro nível, quando, ao editar o CorreioBraziliense na capital britânica, Hipólito vai chamar a si aquela tarefaque, como bem apontava Jussara Quadros, havia se tornadoatribuição do Estado. De agora em diante, cabe a ele converter saberem pedagogia, nas páginas <strong>de</strong> seu periódico.De viagem oficial à viagem <strong>de</strong> pesquisa; <strong>de</strong> viagem <strong>de</strong> aprendizadoà viagem <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> conhecimento; <strong>de</strong> aluno a mestre; <strong>de</strong>89QUADROS, Jussara. Estereotipias:literatura e edição no Brasilna primeira meta<strong>de</strong> do séculoXIX. Campinas, 1993. Dissertação(Mestrado em Teoria Literária)– Instituto <strong>de</strong> Estudos da Linguagem,Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong>Campinas. p. 32.41


ESCRITOSleitor a autor e, mais tar<strong>de</strong>, editor – eis o longo caminho que percorreHipólito da Costa até a fundação do Correio Braziliense, <strong>de</strong>z anos<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua expedição à Filadélfia.42

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!