ÉLIDA GRAZIANE PINTO - CLAD
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
POR UMA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (GERENCIAL OU NÃO) MAIS<br />
ACCOUNTABLE NO BRASIL: ENTRE OUTRAS COISAS, UMA QUESTÃO DE<br />
RESPEITO ÀS SALVAGUARDAS CONSTITUCIONAIS<br />
Elida Graziane Pinto<br />
_____________________________<br />
Mención honorífica<br />
“Guardadas estas distinções [limitação supra-individual, às gerações presentes e futuras,<br />
sendo não só auto-limitação, mas também limitação às correntes vencidas no embate constituinte],<br />
a imagem de Ulisses atado ao mastro de sua embarcação, por vontade própria, com a finalidade de<br />
se autopreservar [em relação ao canto mortal das sereias], é paradigmática dos sistemas<br />
constitucionais democráticos, em que a sociedade, através de um instrumento constitucional rígido,<br />
restringe seu próprio poder de decisão, objetivando perpetuar sua liberdade de decidir. Sua<br />
autonomia. Nos dois casos a possibilidade de ação por parte do indivíduo ou do corpo político é<br />
bloqueada com o objetivo de auto-preservação.”<br />
Oscar Vilhena Vieira (1997, p. 55)<br />
“Como a apropriação, o controle e a transferência dos recursos públicos e a prerrogativa<br />
de concessão de estímulos, quotas e subsídios sempre consistem numa formidável fonte de poder, é<br />
a preocupação com risco de eventuais arbítrios que, nos períodos de transição e consolidação<br />
democrática, leva os juristas a se converterem nos profissionais dos procedimentos, dos prazos e<br />
das argumentações lógico-formais – numa palavra, nos guardiães da legalidade.”<br />
José Eduardo Faria (1993, p. 39)<br />
“... quem quiser reformas ou justiça social articuladas com a democracia terá de propôlas,<br />
articulá-las e, provavelmente, realizá-las, porque o sistema democrático não as realiza por si<br />
só, embora faça algo imprescindível, isto é, garanta o terreno onde elas podem se realizar.”<br />
José Álvaro Moisés (1989, p. 61)<br />
“Nada resolve o problema, nada é suficiente. A administração, seja pública ou privada, é<br />
um processo de aperfeiçoamento constante e de correção permanente de rumos. Eu sempre digo<br />
que administrar alguma coisa é consertar hoje o que foi desmanchado ontem. Porque não existe<br />
vôo de cruzeiro na administração pública. A burocracia pensa que existe, que você faz uma lei e<br />
ela significa um vôo de cruzeiro. Mas não existe.”<br />
Luiz Carlos Bresser Pereira (1998, p. 23),<br />
em resposta à pergunta sobre o preparo do alto escalão do governo para lidar com os “novos<br />
mecanismos” introduzidos pela EC n.º 19/98 e para resolver os problemas atuais da Administração<br />
Pública brasileira.<br />
Apresentação<br />
Perante o diagnóstico de uma Administração Pública constitucionalmente normatizada<br />
demais e tida como verdadeiro “retrocesso burocrático” 1 pelos governantes que deveriam<br />
implementá-la, foram lançados, nesta última década, no Brasil, temas de reforma do Estado<br />
francamente controversos.<br />
1 É este um dos principais argumentos do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE, 1995)<br />
para estimular e angariar apoio às propostas de emenda constitucional levadas a cabo na discussão sobre o<br />
modelo de administração estatal adotado no Brasil, até que, de fato, veio a Emenda Constitucional n.º 19/98,<br />
que, segundo Bresser Pereira (1998), “acabou representando a opção pela administração gerencial”.
XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
Temas como a dispensa de servidores estáveis pela insuficiência de desempenho e pelo<br />
excesso de comprometimento da receita com folha de pagamento; a retirada do Estado da prestação<br />
de serviços sociais tidos, pela própria CR/88, como deveres dele; ou ainda a mera ênfase no<br />
controle de resultados de entes que gerem verbas públicas, vieram a mitigar, além da alcunha de<br />
“cidadã” 2 da Constituição de 88, o próprio respeito à ordem constitucional estatuída, na medida em<br />
que frustraram um considerável número de direitos e garantias teoricamente intangíveis.<br />
Nesse sentido, em se repassando o muito que se disse no país sobre uma “crise de<br />
governabilidade” tão paralisante que demandava um Executivo cada vez mais forte e programas de<br />
reformulação impostos em bloco, de maneira cada vez mais incisiva (Diniz, 1997), há de se<br />
perceber na “reforma” do Estado brasileiro um claro caráter experimentalista 3 . Tal<br />
“experimentação” reformadora se deu testando medidas, por vezes, inconstitucionais para crises ad<br />
hoc, sem maiores contrapontos democráticos e, por isso, sem coerência política, já que faltava aqui<br />
uma necessária responsabilidade política estendida 4 . (Stark & Bruszt, 1998)<br />
Emergiram, então, programas econômicos, muitas das vezes, intocados sequer pela menor das<br />
tentativas de controle de constitucionalidade (Arantes, 1997). E, sem negociar pactos duradouros<br />
para grandes e imprevisíveis mudanças, só se fez pensar na espiral inflacionária em curtíssimo<br />
prazo, independentemente de garantias e valores constitucionais de referência democrática (Diniz,<br />
1997).<br />
Uma vez controlada a problemática da inflação, voltaram-se os Executivos – então,<br />
legisladores inquestionáveis da crise 5 – para o necessário redimensionamento da dívida pública e<br />
daí emergiu, com grande força, na agenda política nacional, a pauta da reforma dos mecanismos de<br />
gestão da coisa pública, do papel que o Estado deveria desempenhar e do tamanho que ele deveria<br />
ter.<br />
Ora, esteve-se e ainda se está lidando aqui com a premência do princípio da eficiência e a<br />
retirada massiva do Estado (mínimo?) de núcleos onde é imprescindível salvaguardar alguns dos<br />
mais caros princípios ao modelo de Estado democrático fundado na ordem constitucional vigente,<br />
como o da indisponibilidade do interesse público pela Administração, o da continuidade do serviço<br />
2<br />
Adjetivo deveras simbólico dado por Ulysses Guimarães, presidente da Assembléia Nacional Constituinte,<br />
por ocasião da sua promulgação, em 5.10.1988, à Constituição da República hoje vigente.<br />
3<br />
Eli Diniz (1996, p. 10-11) tece uma crítica, sobre tal aspecto “voluntarista” das medidas reformadoras do<br />
governo, que aqui se mostra deveras pertinente:<br />
“... o vonlutarismo da elite estatal não afeta apenas a esfera parlamentar [gerando um comportamento<br />
irresponsável e populista do Congresso], senão que seus efeitos perversos atingem o próprio Governo, já que,<br />
a longo prazo, a credibilidade de seus atos tende a ser abalada. É preciso considerar que o excesso de poder<br />
discricionário abre o caminho para práticas de experimentação irrestrita, dada a inexistência de freios<br />
institucionais, favorecendo uma política errática, de avanços e recuos, ensaio e erro, mudanças bruscas nas<br />
regras do jogo, na tentativa de corrigir erros no percurso ou de reduzir resistências, sem os percalços da<br />
negociação.”<br />
4<br />
É importante explicar aqui a crucial dimensão de tal conceito a partir da própria pesquisa empírica realizada<br />
pelos citados sociólogos, em análise dos processos de reestruturação político-econômica ocorridos, durante a<br />
década de 90, na Alemanha, Hungria e República Tcheca.<br />
Ao defenderem a hipótese de que autoridade (capacidade de implementar medidas de governo) e<br />
responsabilidade (constrangimentos institucionais) não são incompatíveis, Stark & Bruszt chegam à inóspita,<br />
mas crucial conclusão de que “expondo as políticas a maior vigilância, a responsabilidade política estendida<br />
reduz as possibilidades de os executivos cometerem enormes erros de cálculo em políticas extremas e sem<br />
consideração para com outros atores.” (1998, p. 26)<br />
Daí a fundamental perspectiva de que “as deliberações estendidas não tornaram as políticas mais ‘fracas’: elas<br />
amenizaram as políticas, tornando-as mais duráveis por serem mais elásticas. A responsabilidade política<br />
estendida não comprometeu os políticos: tornou suas visões mais pragmáticas.” (p. 27)<br />
5<br />
Trata-se ainda hoje de uma das maiores rupturas com o Estado Democrático delineado na CR/88 o abuso<br />
das medidas provisórias, alçando o Executivo à condição de legislador por excelência.<br />
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público e o da estrita legalidade a que se encontra submetida a Administração Pública.<br />
Note-se que a estrita legalidade, por seu turno, encontra-se performada, na seara do direito<br />
administrativo, em institutos outros como o de licitação (que é um inafastável controle – burocrático<br />
– de processos) na contratação com verbas públicas; o de dispensa de servidores através do devido<br />
processo legal – seja por insuficiência de desempenho, seja por excesso da folha de pagamento<br />
como a EC n.º 19/98 previu –; o de contratação de pessoal mediante concurso público, entre outros.<br />
Todos esses institutos comungam de uma mesma importante diretriz, a de que há de haver uma<br />
submissão do Poder Público à estrita legalidade porque não cabe ao gestor da coisa pública dispor<br />
subjetiva e arbitrariamente do interesse público (Mello, 1999; 2000).<br />
Assim sendo, ao proclamar uma Administração mais autônoma e permeada pela<br />
discricionária lógica de mercado, na qual só os resultados bastam 6 , estaria a se prescindir de<br />
controles de um devido processo legal na gestão do interesse público. Em outras palavras, estaria se<br />
perdendo de vista mecanismos de controle de um Executivo cada vez mais forte (quiçá mais<br />
absoluto) para imprimir uma eficiência que, por si só, não dá conta das garantias constitucionais<br />
estatuídas na ordem político-jurídica instaurada em 88 e até os dias atuais (ainda) vigente.<br />
Daí é que se lança o risco incomensurável de que, a uma Administração Pública “gerencial”,<br />
não se possa contrapor uma estrita legalidade, sob pena de se estar “retrocendendo” ao modelo<br />
burocrático de gestão. E eis que, fora dos limites da legalidade, a preciosa autonomia gerencial não<br />
haverá de responder pela mais ancilar das garantias do Estado de Direito, porque, no limite, o risco<br />
é de que somente haja uma discricionária avaliação pessoal do administrador, a dizer sobre a<br />
“eficiência” das suas decisões e sobre um interesse público marcado unicamente pelo princípio de<br />
mercado.<br />
Para o tratamento de tal feixe de problemas, primeiramente será traçado um conjunto de<br />
ponderações gerais sobre o contexto em que a Constituição da República Federativa do Brasil de<br />
1988 emergiu tanto como ponto culminante no processo de redemocratização nacional, quanto<br />
como diretriz político-jurídica inafastável do desenho institucional de Estado que se quer.<br />
Em um segundo momento, cumpre tratar sobre como foi delineado, no Brasil, o diagnóstico<br />
da crise do Estado, quais as implicações desta no processo de consolidação democráticoconstitucional<br />
em curso e como surgiram algumas das mais relevantes propostas de reformulação da<br />
atuação do Estado.<br />
Aqui, notadamente, há de ser retomada a discussão de como se deu a proposta de reforma<br />
introduzida pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) de 1995, no sentido de<br />
se questionar a premência de uma reforma para setores dentro do aparelho do Estado e não para<br />
todo ele, uma vez que os inúmeros jogos de redesenho institucional (Tsebelis, 1998) propostos não<br />
diziam da qualidade de Estado que se queria buscar, nem da conformação de mudanças na relação<br />
Estado-sociedade, mas tão somente do tamanho (mínimo?) que o tornaria mais eficiente...<br />
Já, em sede de avaliação específica sobre alguns dos principais pilares de mudança da dita<br />
“reforma administrativa” contemporânea, o foco da presente análise se voltará para a crítica da<br />
pretensa conformação de um “novo paradigma” (?) de gestão pública, qual seja, o da Administração<br />
Pública gerencial.<br />
Tal crítica cabe na medida em que, sob um tal modelo gerencial, vêm sendo negligenciadas,<br />
precisamente, garantias constitucionais que corroboravam a célebre alcunha de “cidadã” dada à<br />
CR/88, quando de sua promulgação. Também cabe referida crítica, uma vez que seguem sendo<br />
ultrapassadas impunemente salvaguardas primordiais da indisponibilidade do interesse público pela<br />
atuação da Administração.<br />
A partir dos elementos acima, cumpre concluir com o levantamento de alguns riscos na nova<br />
6 Segundo Bresser Pereira, “o que acontece é que esses administradores públicos, no modelo burocrático, são<br />
obrigados a administrar o Estado de acordo com a norma legal estrita, seguindo procedimentos muito rígidos,<br />
sem nenhuma liberdade para tomar decisões. O que faz a reforma gerencial é dar autonomia aos<br />
administradores públicos e aumentar suas responsabilidades.” (1998, p. 21-22)<br />
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lógica de atuação da Administração Pública, cujos limites não mais se dariam “burocraticamente”<br />
até onde a Constituição e as leis assim estipulassem, mas até onde as metas de mercado<br />
discricionariamente conduzissem, quiçá até em arbitrário desrespeito à própria Constituição.<br />
Em última instância, o que se pretende é o resgate da CR/88 – em alguns dos seus<br />
imprescindíveis dispositivos burocratizantes – como uma garantia dos administrados de que se está<br />
sob um Estado de Direito, dentro do qual a Administração não pode fugir ao império das leis, por<br />
mais que a eficiência deva ser levada em conta. Em igual medida, está a se pretender no presente<br />
estudo também o resgate da Constituição como ordem política que deve produzir interdependências<br />
não mercantis com o democrático intuito de incentivar uma cidadania inclusiva, daí que qualidade e<br />
não só tamanho do Estado é que deve ser reformulado.<br />
1. Introdução<br />
Não mais que dois anos foram necessários para que, sob os auspícios da pregação fatalística<br />
da crise do Estado a partir de 1990, a então extremamente recente Constituição da República<br />
Federativa do Brasil de 1988 passasse a ser questionada, pelos próprios governantes do país, no<br />
mérito da sua (in)capacidade de fornecer instrumentais normativos para se gerenciar<br />
“eficientemente” o aparato estatal em prol do interesse público 7 .<br />
Se, em 5.10.1988, a interpretação político-ideológica do “interesse público” acabou<br />
resultando numa nova ordem jurídica fundamental, que era entregue à sociedade brasileira, como<br />
fruto último do árduo e sinuoso caminho de redemocratização, assim o foi porque o contexto<br />
nacional fora amadurecido para aquele momento por quase toda uma década, em amplas<br />
mobilizações político-sociais ao longo dos anos 80.<br />
Contra a memória do período ditatorial, surgia uma nova Constituição mais generosa em<br />
liberdades civis, em direitos dos cidadãos e em garantias sociais, cujo objetivo no médio prazo era<br />
consolidar a transição do Estado brasileiro, então ditatorial e intervencionista, rumo a um modelo de<br />
Estado Democrático de Direito.<br />
Contudo, em 88, para além da conquista formal de uma “Constituição Cidadã”, ficara o<br />
desafio do efetivo implemento da maior parte dos ganhos sociais por ela assegurados como direitos<br />
fundamentais. Como poderia o Estado brasileiro, no início dos anos 90, ter um horizonte de<br />
investimento em todas as áreas demandadas, se economicamente envolto em questões de<br />
instabilidade monetária e deficits públicos paralisadores, e administrativamente abandonado seja a<br />
interesses clientelistas, seja a trâmites onerosa e excessivamente burocráticos?<br />
Em face de um contexto de precário planejamento institucional de governos cada vez mais<br />
reféns de suas dívidas políticas e financeiras, restaria a culpa das incapacidades em cumprir a<br />
Constituição da República para ela mesma. A Constituição de 88, sob esse âmbito de análise,<br />
passou a ser tida como uma verdadeira fonte de mais e mais burocracia e também de mais e mais<br />
ineficiência, assim como passou a figurar como causa crítica, independentemente da avaliação<br />
singularizada de governos passados e presentes, do acirramento de várias frentes de endividamento<br />
estatal (funcionalismo público, crescimento explosivo do número de municípios, maior controle por<br />
processos e não por resultados etc).<br />
Ora, segundo essa lógica e em unissonância com correntes econômicas (diz-se do ismo<br />
“neoliberal”) pela redução da intervenção e do tamanho do Estado, em 1995, o Plano Diretor da<br />
Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) lançou as bases do projeto governamental brasileiro de<br />
reestruturação do aparato estatal, não só enquanto “resposta à crise generalizada do Estado”, mas<br />
também, segundo o discurso político vigente, enquanto “forma de defendê-lo como ‘res publica’ ”,<br />
7 Segundo Olavo Brasil Jr. (1998, p. 19), “um aspecto crucial no Plano Diretor é o reconhecimento de que as<br />
tentativas de reforma no início dos anos 80 foram inteiramente abortadas pelos constituintes, que produziram<br />
uma Constituição que ‘promoveu um surpreendente engessamento do aparelho estatal’. (Plano Diretor da<br />
Reforma do Aparelho do Estado, 1995, p. 27). É com base nisto que se pode entender o amplo programa de<br />
reformas constitucionais promovido pelo governo [Cardoso] desde os seus primeiros meses de atuação.”<br />
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o que determinou, segundo o próprio Plano Diretor, o caráter “imperativo” da reforma nos anos 90.<br />
(PDRAE, 1995:19)<br />
Mal saído da ditadura militar, o povo brasileiro, em um curto intervalo de tempo (não mais<br />
que sete anos), se viu diante da propagação da idéia de que o Estado se encontrava em tal profunda<br />
crise, que o único e preciso remédio seria justamente uma gradativa e densa reestruturação daquela<br />
Constituição “cidadã”, que, de tão “generosa”, se transformara em entrave ao desenvolvimento<br />
econômico do país.<br />
É justamente embalada no discurso de que a ordem constitucional brasileira e o aparato<br />
estatal precisavam de reformas profundas e urgentes que surgiu a noção de uma “Administração<br />
Pública gerencial”.<br />
Sob um rótulo de modelo de administração pública como esse, incentivou-se, por exemplo, a<br />
consecução de contratos de gestão, na exata medida do trade-off entre maior autonomia e a<br />
correspondente assunção de maior responsabilidade por metas e resultados, sem, contudo, garantir<br />
apropriadamente a objetividade e legalidade de um tal controle de resultados. Incentivou-se a<br />
participação de camadas da sociedade presumida e potencialmente mais organizadas e eficientes<br />
que o próprio Estado; além da progressiva cobrança, junto aos servidores, de desempenhos para<br />
além de satisfatórios, ainda que pendente uma devida delimitação de instrumentos objetivos de<br />
como se avaliaria tal desempenho.<br />
Nesse mesmo diapasão, na seara da organização administrativa, privatizou-se onde se<br />
acreditava que o Estado não deveria continuar e fez-se entender que o âmbito de atuação do Estado<br />
deveria, para ser “eficiente”, restringir-se ao seu “Aparelho”.<br />
No plano orçamentário, buscou-se racionalizar o comprometimento das receitas<br />
orçamentárias com a folha de pagamentos e, em igual medida, criaram-se mecanismos para que se<br />
pudesse responsabilizar, mais rigidamente, os administradores públicos pelo crescimento<br />
desordenado das despesas e das renúncias fiscais. Em contrapartida ao reposicionamento<br />
orçamentário proposto, tentou-se, na questão tributária, pensar mecanismos de ampliação das<br />
receitas e de redefinição das competências tributárias.<br />
Por outro lado, na abordagem da relação entre a Administração Pública e o administrado/<br />
usuário de serviço público/ cidadão, mitificou-se a idéia do cidadão-cliente, justamente cliente da<br />
eficiente empresa na qual o Estado pretende se transformar. Assim como, no concernente aos<br />
servidores e empregados públicos, pregou-se o fim dos “privilégios”, a relativização da estabilidade<br />
e um menor comprometimento do sistema previdenciário especial junto ao Tesouro, além de se ter<br />
“enxugado” a máquina pública com a demissão de muitos servidores não-estáveis.<br />
Ao cabo de um elenco meramente exemplificativo e descritivo, fato é que, já no plano das<br />
práticas organizacionais de cunho eminentemente ideológico, tentou-se aplicar noções de qualidade<br />
total, de reengenharia e de gestão gerencial e empreendedora à uma Administração Pública<br />
teoricamente burocrática demais, que sequer ultrapassara algumas constantes práticas clientelistas...<br />
E reformou-se a Constituição da República, não uma, nem duas, nem uma dezena de vezes,<br />
mas outras tantas dezenas de vezes, em que o que menos se respeitou foi a alegação de que as<br />
reformas não poderiam ferir direitos adquiridos, uma vez que, de tão cidadã, a Constituição passara<br />
a ser observada como retrocesso burocrático: eis a perplexidade estrutural da presente proposta de<br />
trabalho.<br />
2. A Conquista da Constituição da República de 1988 e a Meta de Construção do Estado<br />
Democrático de Direito brasileiro<br />
2.1. Constituição e Defesa do Estado Democrático de Direito<br />
Embora surgida de uma necessidade emblemática de refutar o passado ditatorial; bem como<br />
tolhida pela dificuldade material de implementar reformas de cunho includente no curto prazo; além<br />
de francamente conciliadora de posições, por vezes, incompatíveis, a Constituição de 88 tentou<br />
instaurar uma institucionalidade democrática que carrega consigo as metas de democracia liberal e<br />
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de justiça social. E, para o cumprimento de tais metas, o Estado concorreria decisiva, ainda que não<br />
exclusivamente, haja vista a qualidade que a Constituição lhe imprimiu: Democrático de Direito.<br />
Por maiores que tenham sido e ainda sejam as críticas 8 , é ela (a Carta de 88) fruto de uma<br />
histórica expectativa de que seria possível, democraticamente, dar novos rumos para o país; daí a<br />
alcunha (utopia?) de “cidadã”; daí a inversão do seu curso em prol do homem e dos direitos deste;<br />
daí a necessidade de retomar o modelo dirigente, como se fosse possível conduzir normativamente<br />
uma reforma socializante das instituições brasileiras...<br />
Se se buscar uma fundamentação político-constitucionalista para tal papel fundante e<br />
reformador da Constituição da República de 88, será possível resgatar que constitucionalismo, no<br />
dizer de Andrew Arato, implica “elevar o patamar de aprendizado possível; ou seja, que não se tente<br />
aprender imediatamente frente às frustrações empíricas.“ (1997, p. 39) A Constituição, nesse<br />
sentido, seria um verdadeiro instrumento de “segurança” dos cidadãos sobre a regularidade<br />
democrática e a transformação social. (Faria, 1993, p. 40)<br />
Para além da garantia das “regras do jogo” (Bobbio, 1986), a Constituição brasileira trouxe<br />
consigo uma ideologia inafastável, que, se hoje a fragiliza em tempos de reforma minimalista do<br />
Estado, à época era um dos seus mais caros fundamentos de validade. Era a ideologia/tentativa de<br />
elevar o aprendizado da democracia liberal brasileira pré-64 para uma democracia substantiva e<br />
mais igualitária.<br />
Em se dando destaque a essa conotação da CR/88 de ordem reformadora para uma maior<br />
justiça social e regularidade democrática, não se pode perder de vista que, segundo Habermas (apud<br />
in Vieira, 1997, p. 61,78), as constituições, para serem válidas, devem se pautar por um fundamento<br />
que as legitime como ordem justa, devendo ser “intrinsecamente boas”, ou, em outras palavras,<br />
conter uma verdadeira “reserva de justiça”.<br />
Sob o referido marco teórico, trata-se, portanto, de elevar a exigência de que a constituição<br />
cumpra meramente determinada forma para uma outra exigência mais densa, qual seja, a de que seu<br />
fundamento de validade ( = legitimidade) se dê por meio da dignidade de seu reconhecimento como<br />
ordem justa e por meio da convicção, por parte da coletividade, de sua “bondade intrínseca”.<br />
8 Segundo Uadi Lammêgo Bulos (1999, p. 122-123):<br />
“Num esforço extraordinário, a grande meta era implantar um Estado Democrático, após vinte e cinco anos<br />
de regime militar e quase doze de abertura lenta e gradual.<br />
Enfeixaram num texto extenso, minudente, detalhista – apelidado de ‘constituição cidadã’ – uma considerável<br />
dose de utopismo, bem intencionado, porém delirante. Em contrapartida, teve a virtude de espelhar a<br />
reconquista das liberdades públicas, superando o vezo autoritário que se impusera ao País. (...)<br />
Nesse íterim, predominava: o corporativismo, dos grupos que manipulavam recursos; o ideal socialista,<br />
daqueles que queriam fazer justiça social sem liberdade econômica; o estatismo, dos que acreditavam que a<br />
sociedade não poderia prescindir de tutela; do paternalismo, daqueles que queriam que o governo tudo lhes<br />
prodigalizasse, sem a necessidade do trabalho e do esforço próprio; do assistencialismo, dos que supunham<br />
que a palavra escrita se converte, de um súbito, em benefícios imediatos; do fiscalismo, dos despreocupados<br />
com a sobrecarga tributária.<br />
Conseqüência disso:<br />
1º) implantação de um texto constitucional xenófobo, arremedo mal formulado de ‘constituição dirigente’;<br />
2º) hegemonia dos grupos de pressão de caráter proteiforme, dos lobbies e das classes corporativas;<br />
3º) superposição de minúcias írritas, totalmente impróprias para um documento equilibrado e duradouro;<br />
4º) as matérias foram prescritas de maneira reiterada, prestigiando-se uma sistematização pleonástica,<br />
desuniforme, confusa, com nítido predomínio de normas de eficácia contida e limitada, por princípio<br />
institutivo e por princípio programático. (...)<br />
Essa desconfiança com o legislador ordinário fez com que matérias de todo jaez fossem constitucionalizadas.<br />
Resultado: as constituições tornaram-se projetos inacabados, documentos pretenciosamente exaustivos,<br />
porém impossíveis de serem vividos na sua plenitude. E a única saída encontrada é apelar para o recurso<br />
instituído das reformas constitucionais, a fim de adequar o instrumento basilar superado aos influxos do fato<br />
social cambiante.”<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
(Canotilho, apud in Vieira, 1997, p. 61)<br />
Assim, a crítica de Habermas e Rawls, da qual emerge a necessidade de se pensar a<br />
Constituição pelas suas qualidades intrínsecas, é, na verdade, uma crítica ao processo de redução da<br />
normatividade e legitimidade do direito à sua própria força, por ter se revelado frustrada a<br />
proposição weberiana de que “o direito moderno seria o fruto de uma racionalização autônoma,<br />
moralmente neutra, e que constituiria a base de sua própria legitimidade”. (Vieira, 1997, p. 61, 78)<br />
Retomando já a própria Constituição de 88, há de parecer controverso o fato de que grande<br />
parte dos direitos fundamentais e dos valores de justiça social que a legitimam não sejam<br />
contrastáveis com a realidade, na medida em que somente representariam um programa a ser<br />
cumprido progressivamente 9 .<br />
Note-se que o embate entre o caráter programático da Constituição de 88 rumo a um Estado<br />
Democrático de Direito, na forma de um extenso rol de direitos e garantias cidadãs, e a dificuldade<br />
material de cumprir a pauta inclusiva ali estipulada é a principal matéria de sérios questionamentos<br />
e contrapontos sobre sua viabilidade:<br />
“grande parte da controvérsia que o texto constitucional suscitou proveio de ter ele criado,<br />
durante a sua redação, esperanças exageradas, que não poderiam ser satisfeitas pelo fiat<br />
legislativo. Não obstante, o novo texto é agora não só um documento altamente simbólico, mas<br />
também a alavanca para a implementação de uma ampla redistribuição dos recursos de poder<br />
no Brasil. Obviamente, não estamos afirmando que a estrutura do poder fica alterada<br />
imediatamente por causa disto, mas sim que mudanças nos critérios de legitimidade subjacentes<br />
a uma série de ações políticas, administrativas, judiciais e outras abrem caminho para a<br />
futura transformação das relações de poder. Vista sob este ângulo, a nova Constituição pode de<br />
fato ser considerada democrática.” (Souza & Lamounier, 1989, p. 33, grifos acrescidos ao original)<br />
Se o dito “constitucionalismo dirigente” ou o “reformismo social”, como Boaventura de<br />
Sousa Santos mesmo alerta (1998), passaram a ser tidos, a partir da década de 90, em franca<br />
derrocada como planilha de atuação de um Estado endividado e sem forças para seguir<br />
“organizando” (expressão cara a Przeworski) o capitalismo; como, então, tiveram sobrevida na<br />
Constituição de 88?<br />
Foi sonhando com o Estado de Bem-Estar, já em crise na Europa Ocidental, mas inexistente<br />
no modelo desenvolvimentista brasileiro, que a Assembléia Constituinte elevou à categoria de<br />
garantia fundamental um rol generoso de direitos sociais e trabalhistas, de participação inclusiva, de<br />
garantias públicas, entre os já tradicionais direitos de liberdade política e autonomia privada.<br />
Atrasado ou não, tal elenco de valores fundantes de justiça social na Constituição de 88 a<br />
estigmatiza como um verdadeiro desafio aos governos presentes e futuros no sentido de conseguir<br />
implementá-la.<br />
Por uma clara opção política oriunda das correlações de força e pactos possíveis ocorridos<br />
durante a Assembléia Constituinte – que, por si só, encerrara um verdadeiro jogo de múltiplas<br />
arenas (Tsebelis, 1998) para redefinir o desenho institucional da ordem política suprema –, é a<br />
Constituição de 1988, tomada por muitos como na contramão da história (Prado, 1994), uma<br />
“(...) das representantes mais típicas do constitucionalismo ‘dirigista’ ou de caráter social, que<br />
se iniciou com a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919.<br />
Diferentemente das constituições liberais, que buscavam limitar o Estado assegurando o maior<br />
espaço de liberdade para o mercado, as constituições sociais organizam um Estado que visa<br />
promover o bem estar da sociedade, sendo, portanto, necessariamente mais amplas do que as<br />
constituições liberais clássicas.” (Vieira, 1997, p. 59)<br />
9 Sobre a “ineficácia social” da Constituição de 88, Uadi L. Bulos (1999, p. 127) segue criticando: “Os dez<br />
anos de Texto Constitucional, do ponto de vista da efetividade, esbarrou-se [sic] na inação legislativa. Esse<br />
foi um dos principais fatores responsáveis pela ineficácia social de grande parte da manifestação constituinte<br />
originária de 1988, pois os constituintes eleitos em 1986 criaram, no papel, direitos constitucionais de<br />
primeiro mundo, porém não os definiu, tornando-os inoperantes.”<br />
7
XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
Muito embora a própria Constituição possa ser vista como objeto de um processo ainda não<br />
concluído (Vianna, 1999), instável e contingente 10 (Barroso, 1998), dentre seus maiores méritos<br />
encontra-se a pretensão de conformação cidadã na exata linha de confronto com o momento de crise<br />
do Welfare State 11 .<br />
Daí que a maior fragilidade da nova Constituição talvez tenha sido depositar um vasto<br />
número de dispositivos – a serem realizados e/ou cumpridos como se em um programa político<br />
estivessem – nas mãos de uma sociedade detentora de uma cultura política ainda incipiente (daí<br />
também a falta, no contexto político nacional, da noção de responsabilidade política estendida de<br />
Stark & Bruszt, e de capital social de Putnam).<br />
Justamente sobre o risco de serem pouco factíveis tais dispositivos, sem um mínimo de<br />
comprometimento e participação social, é que Souza & Lamounier (1989, p. 35) alertam para o fato<br />
de que:<br />
“a mobilização social, num contexto de desigualdades gritantes, gera necessariamente um<br />
estado de tensão entre a democracia entendida apenas como arranjo político e a democracia<br />
enquanto programa substantivo, de medidas sociais ou econômicas concretas. Por isso, mesmo o<br />
sistema democrático definido na nova Constituição pressupõe (ou requer) avanços<br />
substanciais na politização, ou seja, na capacidade de reconhecer e lidar com a complexidade, de<br />
aceitar a existência e a ação de grupos cujos objetivos frequentemente colidem com os próprios e de<br />
conviver com problemas para os quais não existem soluções imediatas. Na ausência da politização,<br />
assim entendida, os novos arranjos e avanços constitucionais podem revelar-se bastante ilusórios.”<br />
(grifo acrescido ao original)<br />
Bem ou mal, correndo o risco de ser desacreditada e tida como ilusória (como o foi por vários<br />
autores e governantes), a Constituição de 88 incorporou, em seu núcleo de cláusulas pétreas – essa<br />
verdadeira reserva de justiça –, direitos individuais e garantias públicas imutáveis (art. 60, § 4º) que,<br />
embora muitas das quais estivessem por se realizar 12 , foram deliberadas como meta devida no pacto<br />
político que tornou possível o sistema de solidariedade (questão tomada a Pizzorno), no qual ela<br />
10 Sobre o fenômeno da mutação constitucional constante, Barroso (1998, p. 24) chama a atenção para o fato<br />
de que: “A Carta de 1988 (...) não é a Constituição da nossa maturidade institucional. É a Constituição das<br />
nossas circunstâncias. Transformada em um espaço de luta política, a constituinte de 1988 produziu um<br />
documento que sofre em demasia o impacto de certas modificações conjunturais. Ao lado disso, há no Brasil<br />
uma crônica compulsão dos governantes de modificar a Constituição para fazê-la à imagem e semelhança de<br />
seus governos. Uma espécie de narcisismo constitucional.”<br />
11 Segundo Habermas (1987b, p. 97, grifo nosso), “o projeto do welfare state se tornou problemátco na<br />
consciência pública também na medida em que os meios burocráticos, mediante os quais o Estado<br />
intervencionista pretendia realizar a “domesticação social do capitalismo”, perderam sua ingenuidade. Já não<br />
é somente a monetarização da força de trabalho, mas também a burocratização do mundo da vida que é<br />
sentida como um perigo por amplos setores da população. O poder político-administrativo perdeu a aparência<br />
de neutralidade para a experiência cotidiana dos clientes das burocracias do welfare state. Estas novas<br />
atitudes são exploradas pleos neoconservadores, com o fim de vender a bem conhecida política de<br />
deslocamento dos problemas do Estado para o mercado, sob o manto das palavras de ordem<br />
“liberdade e democracia” – uma política que, sabe Deus, nada a tem a ver com democratização, que, ao<br />
contrário, promove uma crescente desvinculação da atividade do Estado da pressão legitimadora da<br />
esfera pública, e que entende por liberdade não a autonomia do mundo da vida, mas a liberdade de<br />
ação dos investidores privados.”<br />
12 Severa é a crítica de Bulos (1999, p. 134) nesse ínterim, senão veja-se o teor de sua indagação: “Haverá<br />
razões que alimentem essa esperança [do resgate de nossa sociedade]?<br />
Por um lado, não. Em um País de significativa inflação legislativa e de reformas inoportunas e<br />
despropositadas, como o Brasil, onde tudo é nivelado por baixo e o respeito ao homem é quase inexistente, os<br />
nossos legisladores ainda estão no período da programaticidade dos comandos constitucionais positivados.<br />
Fazem promessas, propõem programas de ação futura, erigem normas de eficácia contida ou limitada, sem<br />
fornecerem aos Poderes Públicos as condições para as cumprirem plenamente.”<br />
8
XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
própria (Magna Carta) se funda.<br />
Em não se pondendo contar, no médio prazo, com bons governantes 13 (em sua acepção<br />
cívico-republicana) e com uma sociedade politizada, para dar vazão ao projeto constitucional de<br />
construção de um Estado Democrático, tentou-se limitar os futuros legisladores com a preservação<br />
de um núcleo rígido, conformador da própria essência da nova ordem então estatuída. Assim o fez,<br />
de tal modo que:<br />
“Os princípios a serem protegidos do poder constituinte reformador, por intermédio de<br />
cláusulas super-constitucionais, devem constituir a reserva básica de justiça constitucional de um<br />
sistema: um núcleo básico que organize os procedimentos democráticos, como mecanismo de<br />
realização da igualdade política, e do qual possam ser derivadas as liberdades, garantias legais,<br />
inclusive institucionais, e direitos às condições materiais básicas. Mais do que isso, as cláusulas<br />
super-constitucionais seriam uma pretensiosa usurpação da autonomia de cada geração por aqueles<br />
que elaboraram o documento constitucional. Menos do que isso, essas cláusulas seriam<br />
insuficientes. Proteger as liberdades civis e políticas sem assegurar condições materiais é o mesmo<br />
que não defendê-las.” (Vieira, 1997, p. 83)<br />
Daí é que sobreleva, no presente estudo, a perspectiva de que representa, sim, uma verdadeira<br />
ruptura constitucional a ocorrência de emenda constitucional, ainda que regular, contra cláusulas<br />
pétreas 14 . (Rawls apud in Vieira, 1997, p. 69) Já que “ao retirar do âmbito de deliberação<br />
majoritária aqueles direitos, princípios e instituições que constituem a reserva de justiça da<br />
Constituição, as cláusulas super-rígidas se transformam em legítimo instrumento de preservação da<br />
democracia, paradoxalmente, ao limitá-la.” (Vieira, 1997, p. 61)<br />
2.2. Transição Política e Consolidação Democrática<br />
Nenhuma contextualização político-social melhor definiria as circunstâncias donde emergiu a<br />
Constituição da República de 88 do que a expressiva noção de conquista a partir de “pactos<br />
políticos modelados por forças históricas poderosas”. (Souza & Lamounier, 1989, p. 18)<br />
Mesmo perante um lento e tumultuado processo de “abertura”, a retomada da democracia já<br />
vinha se mostrando inafastável, fruto de um “consenso básico de que chegara a hora de mudanças<br />
profundas”, o que, por si só, restou “implícito na própria convocação de uma assembléia<br />
constituinte”. (Souza & Lamounier, 1989, p. 21)<br />
Fugindo à facilidade de uma mera avaliação a posteriori, faz-se mister retomar o andamento<br />
de tal processo desde o seu advento. Assim, tem-se que a transição política – conformada pela<br />
transformação do regime autoritário, vigente no Brasil desde o golpe militar de 1964, em direção a<br />
uma ordem político-democrática – foi iniciada na presidência do General Geisel através de um<br />
processo de distensão lenta, gradual e de alcance limitado. (Diniz, [s.d.])<br />
Segundo Eli Diniz, o caso brasileiro representou uma das mais longas transições ocorridas na<br />
História, em que o embate entre as forças de conservação e as de renovação assumiram um<br />
significado particular, sendo ora atenuado, ora exacerbado pelo movimento de liberalização<br />
controlado pela elite dirigente, a qual pretendia conter o ritmo das mudanças com a finalidade de<br />
preservação do regime e do status quo.<br />
São bastante diferenciadas as posições assumidas pelos mais diversos autores a respeito da<br />
“abertura” política no Brasil, sendo, em alguns casos, até mesmo contrárias. Em linhas gerais, pode-<br />
13 É o governo das leis e não de homens falíveis a principal garantia estabelecida pelo surgimento do Estado<br />
de Direito, até hoje preservada por ser demasiado perigoso depositar nas mãos e na boa-fé de agentes<br />
públicos cívicos o destino de toda uma sociedade. As leis, de fato, aqui significam garantia e exercício de<br />
soberania (rousseuaniana) dos cidadãos.<br />
14 Como há de ser visto que vem ocorrendo na implementação do dito “paradigma” da Administração Pública<br />
“gerencial”, através da precarização de direitos e garantias individuais, principalmente dos servidores<br />
públicos, bem como na “flexibilização” de salvaguardas de interesse público, como a dispensa indevida de<br />
licitação na celebração de contratos de gestão com as chamadas organizações sociais.<br />
9
XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
se agrupar as abordagens da transição política do país em três categorias básicas, de acordo com o<br />
tipo de explicação que propõem.<br />
A primeira interpretação enfatiza as pressões que emergem da sociedade - em decorrência<br />
principalmente de contradições econômicas - como o fator propulsor da mudança. No caso<br />
brasileiro, segundo Eli Diniz [s.d.], os fatores econômicos tiveram importância em diferentes<br />
momentos do processo de abertura, mas não foram determinantes, visto que a política de distensão<br />
teve início antes que os efeitos da crise econômica se tornassem completamente visíveis.<br />
Uma segunda corrente explicativa dá ênfase a autonomia do núcleo dirigente governamental<br />
e sua capacidade de iniciar as mudanças – antecipando-se às pressões da sociedade – como fonte<br />
dos impulsos transformadores. Neste sentido, conflitos e alianças no interior do próprio regime<br />
seriam os fatores determinantes do processo de liberalização. A abertura política brasileira refletiria,<br />
portanto, um ato de escolha das elites dirigentes do regime – fundamentalmente os militares – que<br />
formulariam a trajetória a ser seguida pelo processo.<br />
Há ainda uma terceira modalidade de interpretação – considerada mais adequada pela autora<br />
– em que a explicação do processo de abertura reside na integração (conciliadora) de duas<br />
dinâmicas básicas: uma de negociação e pacto conduzidas pelas elites e uma de pressões e<br />
demandas advindas da sociedade.<br />
O processo de abertura brasileiro deve ser entendido, segundo Eli Diniz, como um projeto de<br />
mudança política concebido pelos mentores do regime autoritário como uma maneira de recompor<br />
suas bases de apoio, desgastadas em sua legitimidade social pelas restrições políticas impostas ao<br />
país. Além disso, a estratégia distensionista não obedeceu a um programa previamente formulado,<br />
mas foi sendo gradualmente elaborada e redefinida em função das pressões e resistências sociais<br />
enfrentadas pelos governos responsáveis pela sua implementação.<br />
Dessa forma, o processo de abertura extrapolou as intenções do projeto de abertura da elite<br />
governamental. Disso resultou a não-linearidade de sua evolução, marcada por avanços, recuos e<br />
movimentos contraditórios nem sempre previsíveis. Apesar de o governo deter o controle das regras<br />
do jogo político, a distensão foi, em grande parte, uma resposta à oposição sistemática e contínua<br />
enfrentada pelo regime.<br />
O vai e vem estratégico do governo, que hora caminhava para a democratização, hora<br />
utilizava de práticas repressivas para não perder o controle do processo foi progressivamente<br />
minando a credibilidade de seu projeto de liberalização.<br />
Finalmente, chegou-se a um ponto em que a única solução para que este permanecesse no<br />
poder seria ou uma reedição da intervenção militar (que seria contra seus projetos de<br />
transformismo) ou então uma negociação com as forças oposicionistas que gerasse apoio popular.<br />
Com a eleição de um candidato oposicionista para presidente, tal dilema se encerrou, sendo<br />
necessário naquele momento somente uma consolidação (institucionalização) do processo<br />
democrático.<br />
O coroamento do referido processo veio com a CR/88, na medida em que:<br />
“Catorze anos depois de iniciada a chamada ‘abertura política’, ou seja, cerca de 2/3 do<br />
tempo total de duração do regime autoritário, o Brasil promulga uma nova Constituição. Para além<br />
do significado estritamente jurídico-formal do que deverá ser a 8ª Constituição do país (a 7ª<br />
Republicana), a nova Carta representa, mais uma vez na história, a tentativa de se criarem condições<br />
políticas e institucionais para que a sociedade possa ter ao alcande das mãos mecanismos efetivos<br />
para permitir que os distintos grupos que a compõem possam influir, através da competição eleitoral<br />
e das instituições da representação (partidos e parlamentos) na definição de seus rumos.” (Moisés,<br />
1989, p. 65)<br />
É evidente que a dinâmica da redemocratização não se esgotaria com o advento da Carta<br />
Constitucional de 88, nem se formalizaria em sua totalidade com as eleições de 89.<br />
Tanto é assim que não raros foram os alertas de que “a estratégia de construção da<br />
democracia não é uma decorrência natural do fim do autoritarismo.” (Moisés, 1989, p. 47) Ou mais<br />
10
XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
ainda de que era necessário, além de garantir liberdades políticas, instrumentalizar minimamente<br />
garantias de igualdade social:<br />
“... longe de ser linear ou racional, tal processo [de transição democrática] não se esgota com<br />
a dissolução de um regime autoritário, mediante uma simples liberação do sistema político. A<br />
elaboração teórica dos processos de ‘abertura’, especificamente aquela produzida nos anos 80,<br />
afirma que eles só se consolidam efetivamente quando o regime recém-liberalizado, além de<br />
restaurar o pleno exercício do pluralismo, restituir os direitos políticos e as garantias públicas,<br />
restabelecer institutos jurídicos abolidos ou pervertidos durante o regime autoritário e definir regras<br />
democráticas para o jogo representativo, também institucionaliza os direitos sociais e econômicos e<br />
promove reformas e mudanças estruturais.” (Faria, 1993, p. 36)<br />
Uma vez que o advento da nova Carta alimentara o anseio de que a transição política pudesse<br />
instaurar um novo quadro de instituições formal e materialmente mais democráticas, o processo de<br />
negociação durante a Assembléia Constituinte foi inflado a um patamar de agenda de desejos<br />
programáticos, o que, mais tarde, deu causa à imensa maioria das críticas sobre sua inefetividade 15 .<br />
Veja-se que:<br />
“Formulada num ambiente democrático, sob a influência de uma participação social jamais<br />
vista na história legislativa e constitucional brasileira, a Constituição de 1988 foi também<br />
impregnada pelo corporativismo da política brasileira. Constituiu-se a partir de um compromisso<br />
entre os diversos setores da sociedade e do Estado que detinham poder naquele momento. Porém, ao<br />
invés de um compromisso em torno de regras fundamentais sobre os parâmetros sob os quais se<br />
deveria desenvolver o sistema político, deu-se um comopromisso maximizador, no qual cada setor<br />
organizado da sociedade, através de um largo processo de barganha, alcançou a<br />
constitucionalização de interesses e demandas substantivas. Assim, ao lado de uma atualizadíssima<br />
carta de direitos e de uma ambígua distribuição vertical e horizontal dos poderes, o legislador de<br />
1988 constitucionalizou diversos temas que pertenciam tradicionalmente aos corpos constitucionais,<br />
mesmo que se tenha em mente constituições de Estados sociais.” (Vieira, 1997, p. 59)<br />
Aludida crítica sobre a natureza prolixa da Constituição e a dificuldade de consensos durante<br />
a Assembléia Constituinte encerra, na verdade, uma dificuldade histórica da transição política no<br />
Brasil, que se deu por continuidade, uma vez que a Nova República foi estruturada em “pactos de<br />
não-competição entre as elites políticas”. (Moisés, 1989, p. 63)<br />
Assim sendo, é de se considerar que,<br />
“no período de elaboração da nova Carta, a exigência de quorum qualificado permitiu a<br />
minorias na Constituinte obstacularizarem certas iniciativas constitucionais ou condicionarem sua<br />
aprovação a uma barganha: para que votassem favoravelmente a uma dada medida, diversas<br />
minorias parlamentares exigiam como contrapartida o apoio dos interessados na ocasião em que<br />
fosse votado um outro dispositivo, daquela feita de seu interesse. Em conjunto à inexistência de um<br />
consenso inicial mínimo – que estivesse expresso num anteprojeto constitucional, capaz de<br />
propiciar um cerne inicial à nova Carta – este outro elemento explica o caráter prolixo da<br />
Constituição brasileira. Ela acabou por se tornar o desaguadouro de uma série de reivindicações<br />
contra as quais não houvesse uma oposição minimamente consistente. Ao mesmo tempo, medidas<br />
mais arrojadas [como a questão da reforma agrária] eram postas de lado por contarem com a<br />
resistência de minorias significativas.” (Couto, 1997, p. 43-44)<br />
Ora, como não poderia deixar de ser, tamanha discussão em torno do excesso de temas e em<br />
torno das possibilidades de implementação dos dispositivos (programas) constitucionais se deu em<br />
face de um contexto já acirrado pela complexificação da questão social e do endividamento estatal<br />
deixados pelo regime autoritário.<br />
Este, por seu turno, “não foi um mero parêntesis que, por exemplo, justificasse repetir formas<br />
15 É esta a pauta de discussões do próximo capítulo, em que será reavaliada a própria consolidação<br />
democrática e o papel da Constituição de 88 na busca de soluções institucionais para a crise políticoeconômica<br />
do Estado no início dos anos 90.<br />
11
XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
de organização política e institucional próprias dos períodos históricos anteriores.” (Moisés, 1989,<br />
p. 49) Justamente porque “os regimes autoritários agravaram, até quase o paroxismo, velhos<br />
problemas estruturais dos países latino-americanos (questão social, questão nacional)” (Moisés,<br />
1989, p. 49), é que houve tanto espaço para a ilusão/encantamento de que o retorno à mera<br />
democracia formal pudesse suplantar tais problemas.<br />
Fato é que as estratégias brasileiras de crescimento econômico privilegiaram, durante a<br />
ditadura, os recursos da autoridade (estatal), acima da competição do princípio do mercado. Tal<br />
opção conferiu ao Estado o duplo encargo de tutela tanto o mercado econômico como do mercado<br />
político-social. (Reis & Cheibub, [s.d.])<br />
Descrita na literatura como “Corporativismo do Estado” ou “Modernização autoritária”, essa<br />
trajetória histórica evidenciava nítido viés conservador que restringia o significado da cidadania<br />
(acuando, até mesmo, o princípio da solidariedade) 16 e ajudava a perpetuar os mais variados tipos de<br />
privilégios sociais.<br />
Entretanto, tal padrão histórico de incorporação política associado à desigualdade social pôde<br />
se sustentar ao longo da história brasileira, devido sobretudo às altas taxas de crescimento<br />
econômico experimentadas pelo país após a 2ª Guerra Mundial e, em especial, durante o regime<br />
militar, o que permitiu ainda a manutenção de um certo grau de esperança e otimismo quanto ao<br />
futuro do país. (Reis & Cheibub, [s.d.])<br />
Infelizmente o período da redemocratização falhou em sua premissa básica de resgatar a<br />
“dívida social”, adquirida pelo Estado durante a ditadura militar. O período pós-ditadura se revelou<br />
extremamente difícil, com elevadas taxas de inflação e precário crescimento econômico, agravando,<br />
por conseguinte, tanto a crise de desigualdade social quanto a crise (fragilidade) da consolidação<br />
democrática, já que os índices de apatia e alienação política têm crescido assustadoramente,<br />
concomitantemente com o aumento da má distribuição de renda. (Reis & Cheibub, [s.d.])<br />
Propõe-se hoje, como alternativa à crise do Estado de modo geral, a sobrevalorização do<br />
princípio do mercado, advogando competição, mercados livres e eficiência como as lógicas<br />
fundamentais de todas as atividades do país, não só das produtivas como também das de caráter<br />
público-estatais. Sabe-se porém, que o princípio do mercado pouco atende às necessidades de<br />
igualdade social e melhoria da qualidade de vida do povo. (Boaventura de Sousa Santos, 1998)<br />
É importante trazer para um primeiro plano a dimensão moral da sociedade, tendo em vista o<br />
atual contexto sócio-político do Brasil. Em outras palavras: faz-se necessário que o princípio da<br />
solidariedade se destaque em relação aos demais (o da autoridade e o do mercado) e que a<br />
preocupação primordial de todos os setores e classes do Brasil seja a de consolidar um (novo)<br />
padrão de cidadania e solidariedade, explorando de maneira adequada e original os recursos do<br />
mercado e da autoridade, para assim serem superados os desafios do presente. (Reis & Cheibub,<br />
[s.d.])<br />
O Estado brasileiro hoje, dito em reforma, posicionado cada vez mais perante uma sociedade<br />
apática (apesar das “ondas” sucessivas de indignação instantânea em relação ao universo vasto de<br />
escândalos políticos) e perante um mercado cada vez mais selvagem atrás de eficiência estrita, “está<br />
entre a cruz e a espada” literalmente, já que seus dois maiores desafios são justamente reduzir sua<br />
esfera de atuação em termos de gastos e de influência direta, com o que estaria atendendo à lógica<br />
16 Nesse sentido, é célebre a crítica habermasiana ao Estado do Bem-Estar Social (Habermas, 1987), na<br />
medida em que a emergência de um verdadeiro Estado Administrativo ofuscara a própria sociedade,<br />
tornando-a meramente dependente das prestações estatais, sem lhe conferir uma livre e real possibilidade de<br />
participação democrática.<br />
Os indivíduos, sindicalizados e conformados numa estrita fronteira de direitos de seguridade social, tornaramse<br />
passivos perante o Estado, senão verdadeiros “cidadãos-clientes” daquele.<br />
Note-se que essa é uma relação de clientela diversa da proposta pelo modelo de Administração Pública<br />
gerencial, mas que merece igual crítica, na medida em que reduz a relação cidadão-Estado a um feixe<br />
mercantilizável de serviços ou valores. (Vianna, 1999)<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
do mercado e também conduzir efetivamente a realidade social brasileira a um contexto em que<br />
falar de consolidação democrática não seja um mero exercício de modificar os problemas pelo<br />
“condão” nem tão mágico assim das leis.<br />
O nexo entre crescimento econômico, democracia política e igualdade social vai ao encontro<br />
de um processo de consolidação democrática apenas iniciado na sociedade brasileira dos últimos<br />
vinte anos. Trata-se, a saber, de uma abertura que requer participação do conjunto da sociedade, seja<br />
em se tratando da prevalência necessária do princípio da solidariedade, seja porque a distensão só<br />
tomou os contornos que tomou na medida das pressões sociais.<br />
Para um Estado que atualmente se volta para um movimento de contração da sua atuação, o<br />
maior desafio e alternativa de solução primordial ao problema de conciliar mercado e solidariedade<br />
é proporcionar, na medida de um efetivo exercício da cidadania, uma base democrática consolidada.<br />
3. O Diagnóstico da Crise do Estado perante a Constituição da República de 88<br />
Contemporaneamente, não há como se falar em reforma do Estado e suas implicações, sem<br />
necessariamente se tratar da crise do Estado, mais propriamente da crise de um determinado tipo de<br />
Estado, qual seja, o que, em coerência com a perspectiva de que os mercados possuem falhas e<br />
geram grandes distorções sociais, seguia intervindo ali para promover não só uma maior eficiência<br />
mercadológica, mas também para processar intermediações não-mercantis includentes. (Boaventura<br />
de Sousa Santos, 1998; Maria da Conceição Tavares, 199-)<br />
Esse tipo de Estado – dito, em tantas acepções, social, fordista, keynesiano, reformista, do<br />
Bem-Estar, desenvolvimentista etc. – emergira sustentado pelo sentido político imprimido pelas<br />
revoluções oriundas dos movimentos operários internacionais no início do século XX e pela grande<br />
ruptura que houve no cerne do liberalismo econômico com a Crise de 29.<br />
Nesse sentido, pertinente é a análise feita por Boaventura de Sousa Santos (1998) de que o<br />
reformismo da sociedade e do mercado (como paradigma moderno de transformação social)<br />
promovido pelo Estado tinha claras tendências socializantes, ao mesmo tempo em que promovia a<br />
legitimação do capitalismo, “organizando-o” de modo a minimizar a lógica deste de exclusão e<br />
desagregação social.<br />
Contudo, no auge dos anos 70 e 80 do século passado e já diante de um processo de<br />
globalização, desde então, visualizado como inevitável, os Estados nacionais, com um aparelho<br />
inflado e à merce dos fluxos intermitentes do capital internacional, se viram sob a premência de<br />
mudança para uma melhor gestão dos recursos de que dispunham. (Diniz, 1997)<br />
Assim sendo, a dita “crise de governabilidade” (Diniz, 1997) a demandar reformas profundas<br />
no Estado por todo o mundo emergiu com grande alarde, tão logo se constatou univocamente o<br />
enfraquecimento do antigo padrão fordista de industrialização e das políticas econômicas estatais,<br />
bem como quando se evidenciou a ruptura com o sustentáculo político-ideológico (Boaventura de<br />
Sousa Santos, 1998) que mantinha as bases do intervencionismo estatal nos moldes em que ele<br />
vinha sendo instrumentalizado.<br />
Sem como seguir processando as bases da acumulação capitalista com a lógica de inclusão<br />
promovida pelo Estado-Providência nos países centrais e pelo Estado Desenvolvimentista nos<br />
periféricos, caíra (?) por terra a crença de que o capitalismo organizado poderia, de fato, ser um<br />
caminho certo e progressivo em direção à democracia e à justiça social.<br />
O Estado, então, passara a ser questionado no mérito da sua capacidade de alocação<br />
(in)eficiente de recursos – recursos esses tomados à sociedade e ao mercado –, ainda mais se se<br />
considerar que, dado o crescimento da dívida pública e da extrema dificuldade de geri-la, ele sequer<br />
(?) continuaria sendo capaz de conformar maior inclusão cidadã, tão dispendiosa e inchada que se<br />
tornara a sua máquina.<br />
Assim, segundo Eli Diniz (1997), tal “crise de governabilidade” 17 fora alçada à condição de<br />
17 Segundo a autora citada, “apontando a ingovernabilidade do país como um dos principais desafios da<br />
atualidade brasileira, o diagnóstico dominante enfatiza os efeitos perversos advindos da democratização<br />
13
XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
uma espécie de “bomba-relógio” armada contra a própria democracia reformista. Em outras<br />
palavras, estar-se-ia diante de uma explosão de demandas (questão tomada a Samuel Huntington)<br />
incentivada por um Estado mais aberto à pluralidade de reivindicações, o que, por si só, colocaria<br />
em xeque a continuidade de tal sistema, na medida em que o Estado, diante de restrições<br />
orçamentárias e institucionais, não mais conseguiria processar e responder a todas elas.<br />
Que remédio, então, dar a esse Estado enfermo – e cambiante de pernas sociais não mais<br />
factíveis – que senão o do poderosíssimo princípio de eficiência? (Reis & Cheibub, [s.d.];<br />
Boaventura Santos, 1998) E o receituário neoliberal, note-se, era de uma eficiência mercadológica<br />
porque os mecanismos do mercado seriam os únicos capazes de imprimir naturalmente e a menores<br />
custos um efetivo controle (de eficiência), sob a lógica da competição e do equilíbrio natural entre<br />
as forças da oferta e da demanda 18 .<br />
Nesse ínterim e com o retorno a todo vapor das teorias de que o mercado sempre (?) 19 aloca<br />
mais eficientemente que o Estado, notadamente insculpidas nos marcos do Consenso de<br />
Washington (1981) e da derrocada do signo socialista (último contraponto ao capitalismo?),<br />
sobrelevaram programas que simplesmente tratavam o Estado como se irreformável fosse, por ser<br />
assim uma estrutura tão ineficiente e contrapoducente. Foi, portanto, o auge das pregações pelo<br />
Estado Mínimo e pela retirada da intervenção do Estado em todas as áreas quantas e onde fosse<br />
possível, por si só, a iniciativa privada. Eis o que Bursztyn chamara de “retorno ao fetichismo de<br />
mercado”. (1998)<br />
Paradoxal, porém, como muito pertinentemente Boaventura de Sousa Santos (1998) alerta, é<br />
que tal Estado Mínimo, fraco nas intervenções para consecução de políticas públicas includentes,<br />
haveria de ser erigirido cada vez mais forte – com Executivos dotados de “hiperatividade decisória”<br />
(Diniz, 1996) – para garantir a liberdade do mercado.<br />
Aqui se mostra um ponto de especial relevo no tocante à Reforma do Estado que se quis<br />
implementar no Brasil, que, de fato, é o objeto do presente estudo. Nesse sentido, note-se que tanto<br />
era necessário robustez na atuação do Estado que o que mais se fez, no Brasil, foi argumentar que,<br />
crescente da ordem social e política. (...) Nessa linha de raciocínio, a liberação das demandas reprimidas pelos<br />
vinte anos de regime autoritário e a exacerbação das expectativas por políticas sociais mais efetivas<br />
reforçariam as restrições do Governo acossado pela multiplicidade de pressões contraditórias, gerando<br />
paralisia decisória e perda de credibilidade”. (Diniz, 1996, p. 08-09)<br />
18 Questionando essa assunção do princípio da eficiência mercadológica como único factível nos processos de<br />
Reforma do Estado, Marilena Chauí (1999) fala da intensa redução de significado que se dá com a<br />
transformação das universidades de instituições sociais em organizações: “uma organização difere de uma<br />
instituição por definir-se por uma outra prática social, qual seja, a de sua instrumentalidade: está referida ao<br />
conjunto de meios particulares para obtenção de um objetivo particular. Não está referida a ações<br />
articuladas às idéias de reconhecimento externo e interno, de legitimidade interna e externa, mas a<br />
operações definidas como estratégias balizadas pelas idéias de eficácia e de sucesso no emprego de<br />
determinados meios para alcançar o objetivo particular que a define. É regida pelas idéias de gestão,<br />
planejamento, previsão, controle e êxito. Não lhe compete discutir ou questionar sua própria existência, sua<br />
função, seu lugar no interior da luta de classes, pois isso, que para a instituição social universitária é crucial,<br />
é, para a organização, um dado de fato. Ela sabe (ou julga saber) por que, para que e onde existe”. (Grifo<br />
sublinhado nosso)<br />
19 Eis um contraponto fundamental:<br />
“O choque liberal por ele [pelo neoliberalismo] proclamado parte de um suposto engenhoso, mas falso: o de<br />
que, esgotados os modelos de enfretamento da crise pela via de intervenção estatal, teria chegado a hora do<br />
retorno à plena vigência do mercado, regulador ideal da economia capitalista. O que tal discurso desconsidera<br />
é que a projeção liberal clássica ficou sem sustentação histórica: em tempos de cartéis e monopólios, de<br />
drástica redução do número mesmo de agentes econômicos, o mercado tende a se concentrar cada vez mais e<br />
vê desaparecer no horizonte a velha competição, mecanismo pensado como perfeito que, historicamente, lhe<br />
havia até mesmo garantido a existência. O mercado plenamente desenvolvido conhece um novo tipo de<br />
competição, tem uma baixíssima capacidade de auto-regulação e só pode existir às custas do planejamento e<br />
da intervenção estatal.” (Nogueira, 1989/90, p.14-15)<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
para enfrentar tamanha crise de governabilidade, era necessário um Executivo forte, sem<br />
constrangimentos, capaz de responder rapidamente às imprevisíveis (e artimanhosas) pressões do<br />
mercado. (Diniz, 1997; Stark & Bruszt, 1998)<br />
Interessante é considerar a progressiva legitimação de um Executivo cada vez mais forte<br />
(absoluto?), inclusive legislando (!) costumeiramente mediante medidas provisórias, na proporção<br />
em que, simultaneamente, era colocada em xeque a própria necessidade das garantias estatuídas pela<br />
ordem constitucional vigente; essas, por seu turno, tidas como “engessadoras do aparelho estatal”<br />
(PDRAE, 1995, p. 27).<br />
Em tal contexto de crise, ao deslegitimar o texto constitucional de 88, o Executivo ganhava<br />
peso e capacidade para reformar 20 , sem um mínimo de coerência política e de definição de aonde se<br />
pretendia chegar, partes significativas (algumas até cláusulas pétreas) da Constituição, o que se deu<br />
em um jogo ardoroso de redesenho institucional 21 (Tsebelis, 1998), em que a própria sociedade<br />
ficou de fora, já que as reformas foram impostas, na maioria das vezes, à custa de compras de votos<br />
dos parlamentares ou de jogos de interesses superpostos (“nested games” para tomar a preciosa<br />
lição de Tsebelis) ou, quando não, pela reedição sucessiva de medida provisórias.<br />
Ao longo de incessantes (e grande parte das vezes fracassadas) tentativas de estabilização<br />
econômica, todo o poder – dado pela imensa abrangência das medidas provisórias – foi<br />
disponibilizado aos Executivos nacionais (vide medidas do Governo Collor e recentemente do<br />
Governo Cardoso).<br />
É tal fenômeno de enclausuramento das decisões políticas na alta burocracia estatal, sem<br />
transparência e debate com a sociedade, que Eli Diniz segue criticando como uma continuidade<br />
absurda das premissas do regime ditatorial, já que<br />
“ao contrário do que ocorreu em alguns países, em que políticas de ajuste dos anos 80<br />
apoiaram-se em pactos de ampla envergadura, a opção das elites estatais brasileiras privilegiou vias<br />
coercitivas de implementação, o que se traduziu pela preferência por instrumentos legais capazes<br />
de garantir a precedência do Executivo em face do Legislativo.” (1996, p. 09, grifo nosso)<br />
Tais Executivos imbuídos da “missão” de resolver a aludida crise de governabilidade, apesar<br />
de progressiva e inacreditalvemente mais fortes, somente faziam desacreditar a Constituição da<br />
República de 88 para não desacreditarem a si próprios. Nesse diapasão, também severa é a crítica de<br />
Eli Diniz:<br />
“a prioridade atribuída aos programas de estabilização econômica e o acirramento dos<br />
conflitos em torno da distribuição de recursos escassos terminaram por esvaziar importantes itens<br />
da agenda pública, sobretudo aqueles relacionados com as reformas sociais. Não só a definição de<br />
uma estratégia de crescimento econômico, como as perspectivas de atenuação das desigualdades<br />
sociais tornaram-se metas cada vez mais distantes. A urgência do controle da inflação se fez<br />
acompanhar do abandono dos projetos igualitários, tão enfatizados pela Aliança Democrática<br />
responsável pela instauração da Nova República, crescentemente avaliados sob o ângulo de<br />
sua extemporaneidade. De acordo com a nova orientação, em nome de um enfoque racional e não<br />
20 Haveria, se estivéssemos em searas, de fato, democráticas, de causar indignação a perplexidade levantada<br />
por Barroso (1998, p. 24) de que “por paradoxal que possa parecer, a reiterada sucessão de emendas revela<br />
uma preocupação nova: a de não descumprir a Constituição, de não atropelá-la, como de nossa tradição, mas<br />
reformá-la na disputa política pelo quorum qualificado. É consolo pequeno. E é preciso reconhecer que, nesse<br />
particular, o ciclo do amadurecimento institucional brasileiro ainda não se completou.”<br />
21 Acerca da intensa reformulação no desenho institucional da ordem político-jurídica brasileira, Celso<br />
Antônio Bandeira de Mello, em entrevista à Revista Caros Amigos, n.º 31, out/99, respondendo à pergunta<br />
sobre qual seria a maior característica do governo atual, dizia “teve uma obra para a qual não tem havido<br />
tanta atenção, foi uma obra normativa. Ele está desmontando aos poucos as linhas mestras da Constituição<br />
brasileira através das reformas. E está desmontando o sistema normativo infraconstitucional para ajustar o<br />
Estado brasileiro a uma concepção de Estado diferente daquela que estava na Constituição de 1988, e que<br />
ainda está na Constituição.” (Mello, 1999, p. 17)<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
populista da pauta de prioridades, a exigência de maior inflexibilidade na gestão dos recursos<br />
públicos viria a desaconselhar qualquer postura favorável ao aumento de gastos sociais. Em<br />
conseqüência, privilegiou-se uma agenda minimalista, em franco desacordo com a dinâmica<br />
democratizante, esta alargando a participação, diversificando as demandas e multiplicando os<br />
canais de vocalização à disposição dos diferentes segmentos da sociedade.” (1996, p. 08, grifos<br />
acrescidos ao original)<br />
Pela absoluta falta de responsabilidade política estendida (Stark & Bruszt, 1998) no contexto<br />
brasileiro, tais Executivos somente se preocuparam com a pretensa meta última de controle<br />
inflacionário e reformas econômicas de fundo, sem respeitar as salvaguardas constitucionais aos<br />
direitos individuais e garantias públicas. É este o mesmo alerta feito por José Eduardo Faria:<br />
“Esse bloqueio [da própria dinâmica do processo de pós-transição democrática] fica nítido<br />
quando o padrão de governabilidade imposto em nome da ‘salvação nacional’ requer uma separação<br />
autoritária entre a gestão ‘administrativa’ da economia e a formação política da ‘vontade geral’, a<br />
pretexto de neutralizar a explosão de reivindicações, e/ou exige uma ‘conciliação’ cooptadora entre<br />
diferentes setores sociais – o que perverte a transição e a consolidação democráticas ao<br />
convertê-las numa continuidade disfarçada do regime político anterior.” (1993, p. 37, grifo<br />
nosso)<br />
Como única e última baliza de controle, os brasileiros só tiveram o Judiciário para acorrer em<br />
defesa de seus direitos (Vianna, 1999), o que nem sempre foi a melhor defesa do marco<br />
constitucional democrático vigente perante as “reformas” de controle da ingovernabilidade, já que,<br />
até no STF, foi acolhida a premissa de que as MPs eram instrumentos imprescindíveis e a economia<br />
era mais nefasta que a regularidade democrática. (Arantes, 1997)<br />
Também aqui é ácida a crítica de Faria:<br />
“Por meio da ‘aplicação seletiva’ dessa ordem jurídica assimétrica e fragmentária, mediante a<br />
instrumentalização de normas numa direção distinta da que foi originariamente formulada e nãoregulamentação<br />
de certos direitos para bloquear a implementação dos benefícios que eles<br />
asseguram, o Estado subsidiário do corporativismo ‘social’ revelar-se-ia capaz de gerar um ‘efeito<br />
de distanciamento’ em relação à ordem constitucional em vigor. (...) Em outras palavras, esse efeito<br />
permite que a contínua ruptura da legalidade formal do Estado, por causa da ‘aplicação<br />
seletiva’ da lei, não seja acompanhada automaticamente pela quebra da legitimidade desse<br />
mesmo Estado.” (1993, p. 64-65, grifo acrescido ao original)<br />
Se se retomar a questão em uma perspectiva histórica, ela se mostrará justamente mais<br />
problemática, quando se lembrar que a legitimidade do sistema de solidariedade (tema caro a<br />
Pizzorno) que estatuiu a ordem política consolidada na Constituição de 88 emergira de um contexto<br />
contraditório, mas plural de reconstrução democrática.<br />
Senão veja-se que, como bem alerta Canotilho (2001, p. 13), “as Constituições dependem<br />
muito das circunstâncias em que foram feitas. A Constituição portuguesa tem a revolução dentro<br />
dela e a brasileira tem as ‘Diretas Já’ e o ‘centrão’ lá dentro. Portanto, temos que interpretá-las à luz<br />
das circunstâncias em que foram realizadas.”<br />
Justamente por serem as propostas de reforma do Estado, no Brasil, carentes de uma imersão<br />
crítica no processo maior de consolidação democrática é que elas pecam tanto pelo desrespeito à<br />
Constituição/88 e seguem alimentando a própria crise de (in)governabilidade 22 .<br />
Ainda há pouco falava-se da univocidade da percepção sobre a crise do Estado e como esta<br />
repercutiu em processos de reforma míopes (ênfase em tamanho do aparato estatal), conquanto só se<br />
22 Eli Diniz assevera que “com o advento da Nova República, tais problemas seriam agravados pelo estilo<br />
tecnocrático de gestão que se tornou dominante. Assim, a tensão entre as formas de alcançar os objetivos da<br />
nova agenda pública (estabilização econômica, reinserção internacional e institucionalização da democracia)<br />
tornou-se parte constitutiva da crise do Estado, já que os meios postos em prática para realizar as metas<br />
econômicas dificultariam o aprimoramento das instituições democráticas. Eficácia na administração da crise e<br />
consolidação democrática foram conduzidas como alvos contraditórios.” (1996, p. 11)<br />
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voltassem para o controle administrativo-financeiro da aludida crise. E é nessa linha de revaloração<br />
da situação crítica em que o país se encontra que se mostra necessário retomar a interface primordial<br />
entre a reforma do Estado e o tema da consolidação democrática, na medida em que:<br />
“tratada de maneira isolada, como ocorre com freqüência, ou exclusivamente em função dos<br />
seus aspectos administrativos, a reforma do Estado tende a ser conduzida de forma a acentuar<br />
tensões com os requisitos da institucionalização da democracia. Desta forma, o objetivo de<br />
reformar o Estado é parte intrínseca de um processo mais amplo de fortalecimento das condições de<br />
governabilidade democrática.” (Diniz, 1996, p. 05-06, grifo acrescido ao original)<br />
Ora, a dissociação entre o projeto de reforma do Estado e o fortalecimento das instituições<br />
democráticas se funda, em última instância, na própria incapacidade governamental de negociação e<br />
problematização do “processo de constituição dos fins, necessariamente múltiplos”. (Reis, apud in<br />
Diniz, 1996, p. 14)<br />
Assim, deslegitimado em sua basilar função de respeito e consolidação da “ordem justa”<br />
(Habermas, apud in Vieira, 1997), os governantes, ao se enviesarem meramente nas questões sobre<br />
estabilidade econômica, deixam de responder pelo interesse público conformado<br />
constitucionalmente, além de não conseguirem fazer valer suas deliberações normativas. É essa uma<br />
contraface perversa da crise que também assola a própria legitimidade dos Executivos.<br />
Segundo Diniz (1996, p.15-16), o ciclo de “rarefação do poder público” é gerado, desta<br />
forma, a partir da “lacuna deixada pela omissão do Estado no atendimento às necessidades<br />
fundamentais, bem como pela inexistência de políticas sociais efetivas”. Essa lacuna, por sua vez,<br />
“abre o espaço para a proliferação de práticas predatórias e a disseminação da insegurança<br />
generalizada”. E é neste contexto que “as áreas social e territorialmente periféricas criam sistemas<br />
paralelos de poder que tendem a alcançar níveis extremos de violência e arbitrariedade.”<br />
O alerta final de onde se pode chegar com uma tal crise do próprio Estado há de ser dado em<br />
face da “subversão cotidiana das normas e preceitos legais”, na medida em que, uma vez perdido o<br />
referencial último da democracia brasileira que a Constituição de 88 representa, não muito longe se<br />
estará de uma verdadeira situação de “hobbesianismo social”. (Diniz, 1996, p. 16) Daí porque é<br />
necessário ressaltar, uma vez mais, que a crise tem contornos mais graves do que a retórica<br />
governamental sobre a reforma do Estado faz crer...<br />
4. Reformando a Constituição da República de 88 rumo à Administração Pública Gerencial<br />
É, neste capítulo, que será tratada propriamente a questão da reforma do Estado que foi<br />
proposta no Brasil, a partir da década de 90, para, desde já, contrastar seus principais pilares 23<br />
(redimensionamento do aparelho estatal, controle de resultados, controle de endividamento e<br />
avaliação de desempenho) com o marco constitucional já analisado anteriormente.<br />
Tal contraste não visa meramente buscar classificar uma ou outra medida como constitucional<br />
ou não, mas antever, na promessa de uma “Administração Pública gerencial”, as possibilidades de<br />
melhoria e os riscos de precarização da atuação do Estado brasileiro – por si só, carecedor de um<br />
agregado mais amplo de reformas sérias e democratizantes.<br />
Embora a Constituição de 88 tenha deixado em aberto o próprio processo de consolidação<br />
democrática (Vianna, 1999), é importante se considerar que, com ela, fora instaurada uma<br />
23 É o próprio Bresser Pereira – grande mentor da dita “reforma administrativa” da Constituição de 88, qual<br />
seja, a EC n.º 19/98 – quem destaca os “mais importantes pontos” da mesma. Para o aludido ex-ministro do<br />
antigo MARE, “todos sabem quais são os pontos mais importantes: a flexibilização da estabilidade, a<br />
demissão por excesso de quadros, a avaliação de desempenho, o fim do regime jurídico único, a adoção de<br />
um teto e de um subteto de remuneração, a exigência de projeto de lei para a concessão de aumento de<br />
salário, a retirada da palavra isonomia do texto constitucional. Mais do que as coisas concretas que a emenda<br />
efetivamente muda, ela tem um caráter emblemático. Nós podíamos optar ou não pela administração moderna<br />
e gerencial. E a aprovação da emenda constitucional acabou representando a opção pela administração<br />
gerencial.” (1998, p. 23)<br />
17
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regularidade institucional, sob a qual, qualquer novo modelo de Administração Pública (mais ou<br />
menos “flexível”, não vem ao caso) deve respeitar e fazer respeitar os direitos e garantias ali<br />
constantes.<br />
O que importa, aqui, é a garantia de que, ao menos, seja mantido o mesmo patamar de<br />
salvaguardas constitucionais oriundo do processo de redemocratização. Para além disso, será a<br />
própria realidade cotidiana dos que virão a aderir ou não ao novo “modelo gerencial”<br />
(primordialmente, servidores e administrados) é que atestará o grau de mudança factível das<br />
promessas – elaboradas de cima para baixo – do Plano Diretor de 1995 e da EC n.º 19/98.<br />
4.1. Redimensionamento da Atuação Estatal<br />
Introduzindo uma nova forma de trabalhar os questionamentos a respeito do papel e do<br />
tamanho do Estado, sob o diagnóstico de sua crise, foi lançado, em 1995, o Plano Diretor da<br />
Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE).<br />
A mudança na forma de tratamento da crise, da forma como é justificada no Plano Diretor,<br />
pressupõe a insuficiência ou inadaptação das posturas político-ideológicas anteriores, que, em<br />
grande medida, abriram espaço, segundo o plano, para agravá-la ainda mais.<br />
Fato é que o PDRAE tentou representar uma lógica diversa da “indiferença” pós-transição<br />
democrática quanto à existência e à dimensão da crise, bem como se propôs a refutar (algo<br />
discutível) a via neoliberal (ideologia do Estado Mínimo) colocada em voga no cerne das discussões<br />
políticas brasileiras a partir do início da década de 90.<br />
Ora, o discurso governamental, à época do lançamento do plano, era pensar a crise sob o foco<br />
do desafio de sua superação, donde a noção de que havia que se “reformar”, “reconstruir” o Estado,<br />
“de forma a resgatar sua autonomia financeira e sua capacidade de implementar políticas públicas”.<br />
(PDRAE, 1995, p. 15)<br />
Relevante considerar o posicionamento governamental quanto a tal reforma: o Plano Diretor<br />
representa uma via de ação para o aparelho do Estado; distinguindo, nos níveis de dimensão e<br />
responsáveis, entre reforma do Estado e reforma do aparelho do Estado.<br />
O desafio da crise diante da necessidade de reformar o Estado é tarefa, segundo o Plano<br />
Diretor, para o conjunto de toda a sociedade, tratando-se de um “projeto amplo”, “enquanto que a<br />
reforma do aparelho do Estado tem um escopo mais restrito: está orientada para tornar a<br />
administração pública mais eficiente e mais voltada para a cidadania”. (1995, p. 17)<br />
Focando sobre a perspectiva mais ampla da reforma do Estado, o PDRAE determina que tal<br />
reforma deve ser entendida e conformada a partir do contexto da “redefinição” do seu papel.<br />
Redefinir o papel do Estado seria, segundo a lógica governamental, fazer com que ele abandonasse<br />
a responsabilidade direta pelo “desenvolvimento econômico e social pela via da produção de bens e<br />
serviços para fortalecer-se na função de promotor e regulador desse desenvolvimento”. Em termos<br />
mais claros, para o PDRAE, “reformar o Estado significa transferir para o setor privado as<br />
atividades que podem ser controladas pelo mercado”. (1995, p. 17)<br />
Neste sentido, cabe questionar o limite e as bases que regulamentam tais transferências,<br />
sabendo que todo o processo de reforma delineado no plano está pautado e intimamente marcado<br />
pela busca por eficiência, busca que vai ao encontro das duas dimensões da reforma: a política e a<br />
administrativa.<br />
Em termos de reforma política, a transferência da atuação estatal para o setor privado vai<br />
corresponder à necessidade de gerar maior capacidade de governo (“governança”), a partir da<br />
limitação dos custos e do dimensionamento a áreas “exclusivamente” estatais, bem como pretende<br />
corresponder a um aumento da legitimidade para governar (“governabilidade”) à medida que há a<br />
valorização da participação social em várias instâncias do processo de reforma e há também o<br />
objetivo de melhorar a qualidade dos serviços “tendo o cidadão como beneficiário”. (1995, p. 21)<br />
Já em se tratando de reforma administrativa (estrito senso), o principal marco de renovação<br />
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seria a proposta de implementar um novo “paradigma” 24 de organização administrativa, a saber, a<br />
“Administração Pública gerencial”, que vem introduzir a perspectiva do desenvolvimento de uma<br />
cultura gerencial nas organizações estatais.<br />
Ora, analisando os impactos e mesmo o grau de novidade/ ruptura com o modelo de gestão<br />
burocrático até então e ainda hoje adotado pela Administração Pública, o “modelo” gerencial<br />
visualizado pelo Plano Diretor como alternativa reformadora possui, em grande medida, apenas dois<br />
pilares “revolucionários”: “em suma, afirma-se que a administração pública deve ser permeável à<br />
maior participação dos agentes privados e/ou das organizações da sociedade civil e deslocar a<br />
ênfase dos procedimentos (meios) para os resultados (fins)”. (1995, p. 22, grifos nossos)<br />
Cumpre aqui trazer à tona a crítica deveras pertinente de Olavo Brasil Jr. (1998, p. 19) a essa<br />
falácia governamental de superação do modelo burocrático:<br />
“... a retórica modernizante prevalecente não leva em conta o que se me afigura como sendo<br />
da maior importância: trata-se, efetivamente, de superar a administração no que ela tem de<br />
essencial, isto é, a racionalidade e a norma? Ou não é bem isto, o que se quer é que a<br />
racionalidade e a norma atendam de forma gerencialmente superior às necessidades da população?<br />
Introduzir a administração gerencial implica que os controles essenciais, e isso apenas em certos<br />
níveis hierárquicos, devem referir-se aos resultados, substituindo-se, quando for o caso, os<br />
controles a priori típicos da administração burocrática pelo controle de resultados. Além do mais, a<br />
formulação forte que supõe a substituição da administração burocrática pela gerencial deve ser<br />
bastante relativizada, dependendo, inclusive, da natureza da burocracia que se quer reformar: um<br />
exército não deve ser a mesma coisa, quer do ponto de vista organizacional quer do ponto de vista<br />
dos resultados, que um hospital, para dar um exemplo simples.” (grifos em negrito acrescidos ao<br />
original)<br />
Diante da análise, por outro lado, sobre a necessidade do plano de romper com a<br />
Administração Pública burocrática, descobre-se que tal tentativa de superação não é recente. O<br />
embate com o modelo de gestão burocrático, no nível de “reforma” do Estado brasileiro, tem sua<br />
origem, segundo o próprio PDRAE, no Decreto-Lei 200, de 25.2.1967 que já determinava<br />
princípios de racionalidade administrativa, os quais seriam, em outras palavras, a eficiência mesma,<br />
que hoje toma ares de jargão técnico-gerencial inusitado. Igualmente criado para tentar promover a<br />
eficiência no setor público, há que se falar de outro precedente que foi o Programa Nacional de<br />
Desburocratização, lançado no início dos anos 80 também com vistas à reformulação da estrutura<br />
estatal burocrática.<br />
O Plano Diretor fez questão de colocar em evidência tal embasamento histórico justamente<br />
para conformar a noção de processo de reforma, que, em grande medida, fora interrompido,<br />
segundo ele, pela Constituição da República de 88.<br />
Diante do “retrocesso burocrático de 1988”, que resultou em “encarecimento significativo do<br />
custeio da máquina administrativa, tanto no que se refere a gastos com pessoal, como bens e<br />
serviços e um enorme aumento da ineficiência dos serviços públicos” (1995, p. 29), o PDRAE tenta<br />
significar uma retomada da lógica de mudança anterior, a partir da definição dos principais<br />
problemas, da forma de tratamento de cada qual e da divisão (segmentação) do Estado em setores<br />
que possam trabalhar em específico com os questionamentos e soluções que lhes forem cabíveis em<br />
se tratando de reforma estatal.<br />
Para enfrentar as dimensões (de problemas) institucional-legal (“obstáculos de ordem legal”),<br />
cultural (coexistência de valores patrimonialistas e burocráticos com os novos valores gerenciais) e<br />
24 O emprego de tal expressão deve ser relativizado: há uma certa distância entre paradigma e modelo de<br />
gestão que não foi considerada pelo PDRAE. A administração gerencial não ultrapassa os três tipos ideais de<br />
dominação proposto por Max Weber. Se assim fosse, haveria, além da dominação carismática, tradicional e<br />
racional-legal, uma quarta forma de conceber as relações de poder legitimamente aceitas pelos dominados. A<br />
Administração Pública gerencial é apenas uma amálgama de “receitas gerenciais” que flexibilizam e<br />
reinterpretam a racionalidade meios-fins presente nos moldes burocráticos, aplicada às organizações estatais.<br />
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gerencial (nível de práticas administrativas), o Plano Diretor estabelece a setorização do Estado de<br />
modo a redimensionar o próprio Estado, sua crise e as formas de resolução dessa crise.<br />
O Estado passa, então, a ser entendido, segundo o plano, como uma espécie de amálgama das<br />
seguintes esferas de atuação: o primeiro setor, que seria o núcleo estratégico; o segundo, que<br />
representaria o setor de atividades exclusivas do Estado; o terceiro, por sua vez, seria o setor de<br />
atuação simultânea do Estado e da sociedade civil, setor este que engloba as entidades de utilidade<br />
pública, as associações civis sem fins lucrativos, as organizações não-governamentais e as entidades<br />
da Administração Indireta que estão envolvidas com as esferas em que o Estado não atua<br />
privativamente, mas que têm um caráter essencialmente público e, finalmente, o quarto e último<br />
setor seria o menos característico em termos de intervenção “exclusiva e/ou necessária” do Estado,<br />
já que trata da produção de bens para o mercado. A reforma direcionada no PDRAE perpassa o<br />
entendimento que se tem sobre justamente o quão necessária e mesmo eficiente é a atuação estatal<br />
em cada um desses setores.<br />
Por um lado, o núcleo estratégico, que representa o governo em si (âmbito de tomada de<br />
decisões), pode prescindir relativamente da eficiência em face da efetividade. Já que, segundo o<br />
Plano Diretor, as decisões políticas, mais que eficientes, devem ser eficazes, ou seja, devem ser<br />
certas em sua legitimidade junto à população; devendo tal setor conciliar o modelo burocrático de<br />
gestão (que é um conformador de eficácia por excelência) com o gerencial.<br />
Por outro lado, “já no campo das atividades exclusivas do Estado, dos serviços não<br />
exclusivos e da produção de bens e serviços o critério eficiência torna-se fundamental. O que<br />
importa é atender milhões de cidadãos com boa qualidade a um custo baixo”. (1995, p. 53, grifos<br />
nossos) Cabe, desta forma, aos três setores em questão, seguir os rumos da Administração Pública<br />
gerencial, o que se justifica, segundo o PDRAE, a partir do fato de não ser característica basilar<br />
deles a prevalência estrita da dimensão política (enquanto âmbito de demandas e decisões políticas),<br />
mas de implementação prática do politicamente já delineado.<br />
Dimensionada sob tal espectro para esses três setores, segundo o Plano Diretor, a eficiência é<br />
não só pertinente, mas imprescindível, isto porque o setor de atividades exclusivas representa o<br />
nível de execução das decisões tomadas pelo núcleo estratégico no tocante a serviços ou agências<br />
em que se exerce o poder extroverso do Estado, bem como porque os serviços não-exclusivos são o<br />
âmbito de atuação simultânea do Estado e de instituições públicas não-estatais e privadas na<br />
prestação de serviços sociais, e mesmo porque a própria natureza do quarto setor é de produção para<br />
o mercado.<br />
Atendendo à premência de se gerar cada vez mais eficiência na abordagem introduzida pelo<br />
PDRAE sobre a organização estatal brasileira, foram constituídos, nestes dois últimos setores<br />
(atividades não exclusivas e produção para o mercado), movimentos específicos de transferência da<br />
responsabilidade direta do Estado pela prestação de serviços e pela produção de bens para a<br />
iniciativa privada, seja através de entes da sociedade organizada sem fins lucrativos no terceiro setor<br />
(a saber, o próprio processo de publicização), seja através da privatização de empresas estatais que<br />
passam para o domínio de entes do mercado.<br />
Aprofundando a análise sob uma perspectiva global, quando foi considerado, no Plano<br />
Diretor, que a reforma do Estado é tarefa para o conjunto da sociedade, tendo em vista que o papel<br />
do Estado, a partir da reforma, seria tão somente o de promover e regular o desenvolvimento<br />
econômico e social, a lógica governamental abria a discussão, junto à sociedade, de que os atores no<br />
processo de reforma não se restringem aos setores exclusivos do Estado, ou seja, a responsabilidade<br />
deve passar a ser compartilhada (e note-se que compartilhar é diferente de compartimentalizar) com<br />
a sociedade e com o mercado.<br />
Na mesma medida em que o Estado restringe sua atuação direta ao seu aparelho (núcleo<br />
estratégico + atividades exclusivas), cada vez mais a sociedade civil é chamada a fazer “parcerias”<br />
com o Estado, tomando para si os outros dois setores e tendo como apoio estatal o nível de<br />
promoção, regulação e fiscalização desses.<br />
Eis que neste ponto reside o maior risco à luz da realidade brasileira: o risco de a reforma do<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
Estado não significar uma reestruturação positiva de todos os setores, mas acabar se transformando<br />
em uma precarização das relações Estado-sociedade, o que pode ocasionar a aproximação da<br />
proposta trazida pelo PDRAE com os marcos de um Estado mínimo excludente diante de um<br />
mercado avassalador, afrontando diretamente boa parte dos mais importantes princípios<br />
constitucionais da Carta de 88.<br />
Tanto é assim que, de fato, a agenda de reformas instituída pelo Plano Diretor (1995) ao<br />
passar meramente por questões de retirada da atuação estatal, porque “excessiva e ineficiente”, o faz<br />
sem atentar para a real dimensão politíco-democrática da crise do Estado. Não é o tema, por<br />
exemplo, da privatização de estatais (quantidade de Estado) o que mais importa, mas sim o da<br />
democratização da relação Estado-sociedade. Veja-se, assim, que<br />
“seja como for, a pregação neoliberal não chega à raiz da questão: o intervencionismo<br />
econômico do Estado brasileiro não se constitui em nenhuma disfunção, mas num pressuposto<br />
básico do desenvolvimento, numa imposição da própria estrutura social. A solução da crise em que<br />
se encontra o padrão atual deste intervencionismo, portanto, não repousa no discurso contrário ao<br />
tamanho do Estado, ao seu papel na economia ou ao alegado ‘prejuízo crônico’ das empresas<br />
estatais, como se fosse viável e possível passar grossas fatias da economia a uma iniciativa privada<br />
desprovida de grandeza e refratária à chamada livre concorrência. Do que se trata é de um tema bem<br />
mais vasto e complexo, pertinente à esfera do Estado como um todo: qual seja, o de recuperar a<br />
capacidade de coordenação e planejamento do Estado, para o que é necessário tanto uma reforma<br />
da administração – de modo a adequá-la ao imperativo de prestar com eficiência serviços públicos<br />
fundamentais, adquirir plena racionalidade em seu funcionamento e dar suporte efetivo aos atos de<br />
governo – quanto, acima de tudo, uma reforma do Estado, de modo a passar em revista as<br />
práticas, as funções e as instituições estatais, bem como as relações Estado-sociedade civil,<br />
cujo padrão histórico é perverso e de baixíssima qualidade. Em outros termos, a questão é<br />
política; diz respeito à democracia, à criação de consensos nacionais mínimos, à participação<br />
da cidadania, não apenas a uma mera ‘racionalização’ administrativa.” (Nogueira, 1989/90, p.<br />
15, grifos em negrito acrescidos ao original)<br />
Pouco adianta redimensionar os “setores” do aparelho do Estado, se é o Estado inteiro que<br />
está em profunda crise, não só administrativo-financeira, mas de legitimidade. Mais do que isso, tal<br />
posicionamento minimalista só tende a agravar o contexto de desalento com o crescimento das<br />
desigualdades sociais e da violência privada.<br />
Sem viabilizar interdependências não mercantis para amenizar os conflitos oriundos da<br />
exacerbação da linha de exclusão, hoje a proposta de reforma estabelecida no Plano Diretor – que<br />
segue pregando a retirada do Estado de áreas de interesse social onde a Constituição estipula ser<br />
dever dele estar ali – nem mesmo consegue se mostrar crível, ou passível de merecer uma honesta<br />
atenção no cumprimento das finalidades globais a que veio (“reforma do Estado” para torná-lo mais<br />
eficiente e mais acessível à população), já que:<br />
“não há na argumentação proposta elementos que, ipso facto, eliminem possibilidades de<br />
mudanças alternativas. A retórica aproxima-se, assim, perigosamente da fé, exceto, é claro, quando<br />
o único objetivo é a política de fazer caixa, ou, na melhor das hipóteses, de ajudar a garantir o<br />
equilíbrio macroeconômico. Ora, retórica por retórica, há várias, e aí se estabelece a primeira base<br />
para o dissenso.” (Brasil Jr., 1998, p. 21-22)<br />
Ao adiar para uma arena indefinida e um espaço temporal longínquo a questão da reforma,<br />
propriamente dita, do Estado, o que seria “uma tarefa da sociedade em bloco” (1995, p. 17), o Plano<br />
Diretor se propôs uma restrição do seu alcance (aparelho do Estado) que ele mesmo não cumpriu,<br />
pois “alterar todos os dispositivos constitucionais que afetam a organização, a estrutura e o<br />
funcionamento da administração pública brasileira implicaria (...) reescrever a Constituição de<br />
1988”. (Carneiro, apud in Brasil Jr., 1998, p. 26, grifo nosso)<br />
A incongruência acima apontada era – e ainda é – uma questão de como definir quantidade de<br />
Estado, sem discutir com a sociedade a qualidade de Estado que se quer; sem discutir, tampouco,<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
em um foro legítimo e aberto, sobre um novo desenho institucional que passasse por um padrão<br />
mais democrático de relacionamento desse com aquela.<br />
Como Nogueira mesmo conclui, “tudo isto quer dizer que a questão da crise do Estado e da<br />
reforma administrativa – embora comporte diversas ações tópicas de caráter mais ou menos<br />
compensatório – depende sobremaneira de uma intervenção sobre a esfera pública no seu todo.”<br />
(1989/90, p. 16)<br />
Ou se busca uma reforma democrática que, inevitavelmente, passará por um maior respeito à<br />
Constituição da República em vigor e às garantias ali estatuídas, ou “fora disso, será a reafirmação<br />
de uma história já conhecida, que sempre desvalorizou a política e a democracia e, por isso,<br />
problematizou todas as esperanças.” (p. 16)<br />
4.2. Controle do Endividamento Público e dos Gastos com Folha de Pagamentos<br />
Em se repassando, um a um dos dispositivos constitucionais que tratam do regime de<br />
remuneração, contratação e exoneração dos servidores públicos que foram alterados pela Emenda<br />
Constitucional n.º 19/98, será possível visualizar, de fato, as mudanças em prol da dita<br />
“Administração Pública gerencial” e quais foram os reais impactos das mesmas.<br />
De antemão, cumpre não perder de vista que os dispositivos de controle de despesas da dita<br />
reforma administrativa à Constituição de 88, em sua grande maioria, ou estão, eles próprios, a<br />
depender de lei regulamentadora posterior 25 – para não ferir os direitos dos servidores e o próprio<br />
pacto federativo–; ou pouco alteraram, de fato, o regime que fora estatuído originalmente; afora<br />
aqueles dispositivos irremediavelmente controvertidos (ainda hoje questionados como<br />
inconstitucionais).<br />
Nesse sentido, o que se fez, com a EC n.º 19/98, foi abrir caminho para um processo mais<br />
lento e sedimentado de reestruturação financeira das administrações federal, estaduais e municipais.<br />
Em um tal processo, contudo, o maior risco, infelizmente, é o de não serem feitas as leis que<br />
deveriam vir em proteção aos servidores (regulando, por exemplo, os cargos típicos de Estado, a<br />
forma como será procedida a dispensa por insuficiência de desempenho e o teto constitucional) e<br />
em proteção a Estados e Municípios (controle facultativo do comprometimento das receitas<br />
correntes líquidas com folha de pagamentos na forma do art. 169, §1º).<br />
E, diante dessa altamente possível “omissão” legislativa, o risco há de se agravar ainda mais<br />
com a não muito rara prática do Executivo federal de ir simplesmente “trancando”<br />
administrativamente direitos e garantias ao máximo, para que somente aqueles que acorram ao<br />
Judiciário consigam fazê-los valer.<br />
Somente assim forçando a litigiosidade da garantia de direitos funcionais é que a<br />
Administração conseguiria, no médio prazo, responder às mudanças e quotas de contenção não só<br />
da Emenda, mas já da Lei de Responsabilidade Fiscal. Seria mais um abuso corriqueiro, do qual<br />
servidores, administrados e cidadãos em geral somente conseguiriam se proteger a partir do<br />
represado veio institucional que o Judiciário vem representando ultimamente. (Vianna, 1999)<br />
Afiada a crítica, é hora, sem mais delongas, de passar ao estudo dos dispositivos:<br />
4.2.1. Vedação de Equiparação Salarial<br />
25 Segundo Pereira Jr. (1999, p. 15), “teme-se que o bom humor não baste para resistir ao desânimo de ver-se<br />
a implementação dos princípios e normas da Emenda 19 depender das 31 leis específicas - complementares e<br />
ordinárias - a que seu texto se refere, vindo juntar-se às dezenas de outras que a plena consecução da CF/88 já<br />
demandava, a maioria das quais sequer projetada. Pelo menos duas dessas 31 novas promessas de<br />
incumbências legislativas já não terão sido cumpridas - as dos arts. 27 e 30 da Emenda, que mandaram, aos<br />
04.06.98, que, ’dentro de 120 dias da promulgação desta Emenda’, o Congresso Nacional elaborasse lei de<br />
defesa do usuário de serviços públicos, e que, ‘no prazo máximo de 180 dias’, o Poder Executivo remetesse<br />
ao Congresso Nacional o projeto de lei complementar a que alude o art. 163 da CF/88. Não se tem notícia, até<br />
aqui, de qualquer desses projetos.”<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
Apesar da retirada simbólica da equiparação por isonomia do texto constitucional pela EC n.º<br />
19/98, faz-se necessário considerar que o constituinte manteve, com relação aos servidores públicos,<br />
normas que visam preservar o princípio da isonomia, em termos de remuneração.<br />
Segue sendo o caso do inciso X, do art. 37, ora sob análise, que assegura a revisão geral anual<br />
da remuneração dos servidores públicos e dos subsídios, em cada nível de governo, sempre na<br />
mesma data e sem distinção de índices.<br />
Neste sentido, claro se mostra o intuito do legislador reformador, no sentido de garantir as<br />
revisões gerais anuais das remunerações dos servidores e dos subsídios, tendo por objetivo a sua<br />
atualização, de modo a acompanhar a evolução do poder aquisitivo da moeda; se assim não fosse,<br />
não haveria razão para tornar obrigatória a sua concessão anual, no mesmo índice e na mesma data<br />
para todos.<br />
Na prática, a norma sob comento se destina a todos os agentes públicos, pois, sob a expressão<br />
“remuneração e subsídios”, se incluem os subsídios, como nova forma de remuneração, ao lado do<br />
salário, próprio dos empregados públicos, e dos vencimentos em sentido estrito, próprio dos<br />
ocupantes de cargos públicos em geral.<br />
A exigência de lei para fixação e alteração de remuneração nos três Poderes encontra sua<br />
necessária ressalva, em uma interpretação sistêmica da Constituição, na fixação de subsídio para os<br />
Deputados Federais e os Senadores (art. 49, VII), do presidente e do Vice-Presidente da República e<br />
dos Ministros de Estado (art. 49, VIII), que é de competência exclusiva do Congresso Nacional,<br />
portanto sem sanção do Chefe do Poder Executivo, contudo, atendendo, em qualquer hipótese, o<br />
teto fixado no inc. XI do art. 37.<br />
Todavia, do ponto de vista jurídico, o dispositivo de que deve ser fixado o subsídio dos<br />
Ministros do STF (art. 48, XV), através de lei de iniciativa conjunta dos Presidentes da República,<br />
da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal (dirigentes máximos<br />
dos três Poderes), vem causando uma grande discussão acerca da exigência de iniciativa conjunta<br />
dos três Poderes, vez que o mesmo procedimento não fora exigido na fixação dos demais subsídios;<br />
o que, por conseguinte, acaba por tolher a independência do Poder Judiciário e a harmonia entre os<br />
Poderes (em contraste com a cláusula pétrea prevista no art. 60, §4º, III, da CR/88). É o que Celso<br />
Antônio Bandeira de Mello bem delineou como “perigosa aproximação dos três Poderes, com<br />
prejuízo para a recíproca independência, instituída como garantia básica dos cidadãos.” (1999:192)<br />
Deve ser observada a iniciativa privativa em cada caso:<br />
a) do Chefe do Executivo para os cargos, empregos e funções da administração direta,<br />
autárquica e fundacional pública deste Poder (art. 61, §1º, II, “a”, da CR/88);<br />
b) dos Tribunais para os cargos da respectiva organização judiciária (art. 96, II, “b”);<br />
c) do Procurador-Geral da República (art. 61 c/c art. 127, §2º, da CR/88), quando versar<br />
sobre os servidores do Ministério Público Federal;<br />
d) do Senado Federal (art. 52, XIII) ou da Câmara dos Deputados (art. 51, IV), conforme se<br />
trate dos serviços auxiliares de uma ou de outra Casa Legislativa.<br />
Como a maior parte das normas da Emenda são cogentes para União, Estados, Distrito<br />
Federal e Municípios, remetendo a disciplina legal à lei de cada um dos níveis de Governo, essas<br />
leis independem de alteração das Constituições estaduais e das Leis Orgânicas municipais, até<br />
porque estas não podem estabelecer nada diferente do que se contém na Emenda. (Grotti, 1998)<br />
4.2.2. Fixação de Limites de Remuneração<br />
Segundo informa Celso Antônio Bandeira de Mello (1999, p. 189), a Constituição, no art. 37,<br />
XI – com a redação que lhe deu a Emenda n.º 19/98 – não mais impõe que a lei fixe uma relação<br />
entre a maior e a menor remuneração no serviço público, conquanto a permita; tendo, contudo,<br />
mantido, ainda mais energicamente, a fixação de um teto remuneratório de abrangência nacional.<br />
No novo sistema, simplifica-se a fixação de limites de remuneração, na medida que se<br />
estabelece um teto nacional. O limite de remuneração passa a se referenciar num único valor, para<br />
os três Poderes e para as esferas federal, estadual e municipal, equivalente ao subsídio do Ministro<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
do STF, donde o Presidente da República, Governadores, Prefeitos, Ministros de Estado, Deputados<br />
Federais e Senadores não poderem receber mais do que for definido como subsídio dos Ministros do<br />
STF.<br />
Há que se ressaltar que a superação do teto nem mesmo é admitida quando resultante do<br />
acúmulo de cargos constitucionalmente permitido. Aliás, dita vedação está reiterada no inciso XVI,<br />
última parte, do mesmo art. 37.<br />
Este teto remuneratório também se aplica às empresas públicas ou sociedades de economia<br />
mista, tanto quanto a suas subsidiárias, caso recebam recursos da União, Estados, Distrito Federal e<br />
Municípios para pagamento de despesas de pessoal ou custeio em geral (art. 37, §9º).<br />
Essa norma, todavia, deve ser conjugada com as dos arts. 27, §2º, e 29, VI, que estabelecem<br />
para os Deputados Estaduais e Vereadores limite inferior para os subsídios; para os primeiros, o<br />
subsídio não pode ultrapassar o limite de 75% do estabelecido para os Deputados Federais e, para os<br />
segundos, não pode ultrapassar o limite de 75% do estabelecido para os Deputados Estaduais<br />
(subteto parlamentar). É isto o que consta da Emenda, não se podendo restringir além das hipóteses<br />
ali contempladas. (Grotti, 1998)<br />
No entender da professora Dinorá Adelaide Musseti Grotti, a norma inserta no inciso XI do<br />
art. 37 da CR/88 já seria, por si só, de eficácia plena e aplicabilidade imediata, não dependendo,<br />
portanto, de regulamentação no concernente ao teto, vez que, com a promulgação da Emenda,<br />
converter-se-ia automaticamente em subsídio a soma das parcelas percebidas pelos Ministros do<br />
STF para efeito do teto.<br />
O Supremo Tribunal Federal, no entanto, em 24.06.98, deliberou que<br />
“não são aplicáveis as normas dos arts. 37, XI, e 39, §4º, da Constituição, na redação que lhes<br />
deram os arts. 3º e 5º, respectivamente, da Emenda Constitucional n.º 19, de 4 de junho de 1998,<br />
porque a fixação do subsídio mensal, em espécie, de Ministro do Supremo Tribunal Federal – que<br />
servirá de teto – , nos termos do art. 48, XV, da Constituição, na redação do art. 7º da referida<br />
Emenda Constitucional nº 19, depende de lei formal, de iniciativa conjunta dos Presidentes da<br />
República, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal. Em<br />
decorrência disso, o Tribunal não teve por auto-aplicável o art. 29 da Emenda Constitucional n.º<br />
19/98, por depender, a aplicabilidade dessa norma, da prévia fixação, por lei, nos termos acima<br />
indicados, do subsídio do Ministro do Supremo Tribunal Federal. Por qualificar-se, a definição do<br />
subsídio mensal, como matéria expressamente sujeita à reserva constitucional de lei em sentido<br />
formal, não assiste competência ao Supremo Tribunal Federal para, mediante ato declaratório<br />
próprio, dispor sobre essa específica matéria.” (Extrato parcial da Ata da 3ª Sessão Administrativa<br />
do Supremo Tribunal Federal de 24 de junho de 1998).<br />
O STF, nessa mesma ocasião, entendeu que, até que se edite a lei definidora do subsídio<br />
mensal a ser pago aos Ministros do Supremo Tribunal Federal, prevalecerão os três tetos<br />
estabelecidos para os três Poderes da República no art. 37, XI, da Constituição, na redação anterior<br />
à que lhe foi dada pela EC n.º 19/98.<br />
4.2.3. Vencimentos do Executivo como Paradigmas para o Legislativo e o Judiciário<br />
Celso Antônio bem delimita o dispositivo do art. 37, XII, ora sob comento, como<br />
“vencimentos do Executivo como paradigmas para o Legislativo e o Judiciário”. Assim o é, porque,<br />
segundo nos assevera o aludido autor (1999, p. 191),<br />
“sempre com escopo de assegurar contenções e controles na despesa com pessoal, o inciso<br />
XII do mencionado art. 37 estatui que os vencimentos dos cargos administrativos do Legislativo e<br />
do Judiciário não poderão ser superiores aos de seus correspondentes no Executivo. Ainda que a<br />
Constituição não o haja dito expressamente, a mesma regra deverá de valer no que concerne a<br />
funções e empregos.”<br />
Em outras palavras, é o mesmo que dizer que os vencimentos pagos aos servidores do Poder<br />
Executivo servem de teto para os servidores dos demais Poderes, norma essa que não foi revogada<br />
pela Emenda. Tal dispositivo repete o que figurava no art. 98 da Carta de 1969, mas o faz de<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
maneira incompleta e defeituosa, por não ter feito referência à parte faltante, que constava do texto<br />
anterior: ”para cargos de atribuições iguais ou assemelhadas”. (Grotti, 1998)<br />
4.2.4. Impedimento de reajustes remuneratórios Automáticos<br />
Celso Antônio Bandeira de Mello também ensina que “para evitar aumentos em cadeia, o<br />
inciso XIII, do mesmo art. 37, veda a vinculação ou equiparação de quaisquer espécies<br />
remuneratórias para o efeito de remuneração de pessoal no serviço público”. (1999, p. 191) Vale<br />
dizer, não tem o servidor direito a qualquer aumento ou reajuste em sua remuneração, sob o<br />
argumento de equiparação salarial ou mesmo vinculação de funções e retribuições remuneratórias<br />
nos diferentes Poderes e esferas de governos.<br />
Na lição da professora Dinorá Grotti (1998), trata-se de uma norma moralizadora que figura<br />
no texto constitucional desde 1967 (art. 96) e que, na CR/88, constou do art. 37, XIII, da CR/88,<br />
ressalvadas, unicamente, as hipóteses previstas no próprio texto constitucional.<br />
Era o caso da isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhados<br />
dentro ou fora do mesmo Poder, prevista no art. 39, §1º, com as limitações do art. 37, XI, como era<br />
também (parcialmente) o da remuneração dos magistrados (art. 93,V), e, ainda, da disposição do art.<br />
135, complementada pelo art. 241, ambos referidos ao pessoal necessariamente dotado do título de<br />
bacharel em Direito.<br />
A proibição está destinada ao legislador ordinário, que não pode “amarrar” remunerações de<br />
diferentes servidores, de maneira a fazer com que a alteração de uma acarrete, automaticamente, a<br />
alteração de outras num processo às vezes até mesmo incontrolável.<br />
A equiparação iguala cargos, empregos ou funções com nomes e atribuições diferentes para<br />
fins de remuneração. A vinculação subordina um cargo a outro, dentro ou fora do mesmo Poder, ou<br />
a qualquer fator que funcione como índice de reajustamento automático, como o de aumento do<br />
salário mínimo, o de aumento da arrecadação ou qualquer outro.<br />
O que se visa impedir, com esse dispositivo, são os reajustes automáticos de vencimentos, o<br />
que significa que não está o legislador proibido de fixar remunerações idênticas para cargos<br />
diferentes, desde que não condicione uma à outra.<br />
Nem está o legislador ordinário proibido de estabelecer vinculações e equiparações nos<br />
cargos em que a própria Constituição da República assim autoriza ou determina.<br />
O inc. XIII do art. 37 da CR/88, com a redação dada pela EC n.º 19/98, ampliou o alcance do<br />
dispositivo, ao fazer referência a quaisquer espécies remuneratórias em lugar de vencimentos. Além<br />
disso, removeu a remissão ao art. 39, §1º, que tratava da isonomia de vencimentos para cargos de<br />
atribuições iguais ou assemelhados do mesmo Poder ou entre servidores dos Poderes Executivo,<br />
Legislativo e Judiciário, ressalvadas as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou<br />
ao local de trabalho.<br />
Embora não se possa perder de vista o princípio geral da isonomia na CR/88, a Emenda,<br />
nesse sentido, teria tentado acabar com a isonomia interna, externa e a de carreiras. Assim, poderá<br />
haver remuneração diferenciada dentro da carreira. Isto é, houve supressão do dispositivo sobre a<br />
isonomia remuneratória do texto constitucional como princípio expresso para a política<br />
remuneratória, passando a ser simples diretriz de política remuneratória.<br />
4.2.5. Proibição de Incidência Recíproca de Vantagens<br />
O regime de aumentos e acréscimos pecuniários estabelecido a partir da EC n.º 19/98 veda<br />
que novos acréscimos sejam concedidos sobre o montante dos aumentos anteriores, somente<br />
podendo ser aplicados sobre os vencimentos básicos do cargo que o servidor público ocupa (e<br />
respectivo plano de carreira), não incidindo sobre as vantagens pessoais, nem sobre as gratificações,<br />
tampouco sobre os aumentos anteriores.<br />
Tal vedação do art. 37, XIV, ao tentar minimizar o crescimento dos gastos com folha de<br />
pagamento de pessoal, em relação à exigência de revisão geral anual, gera, não obstante, sérias<br />
distorções, como a criação de cargos com vencimentos básicos extremamente achatados e um<br />
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grande número de gratificações e adicionais a ampliar o total da remuneração do servidor.<br />
Esse dispositivo teve por objetivo impedir taxativamente o cômputo de vantagens sobre<br />
vantagens, a incidência recíproca de vantagens, o chamado repique de benefícios sob o mesmo<br />
título ou idêntico fundamento que produziam um extraordinário efeito multiplicador sobre a<br />
remuneração, e que contribuiu para o surgimento da figura do “marajá”. (Grotti, 1998)<br />
A EC n.º 19/98 manteve a redação do inc. XIV, mas suprimiu a exigência de serem os<br />
acréscimos ulteriores, “sob o mesmo título ou idêntico fundamento”, que acabava por reduzir a<br />
eficácia do disposto na Constituição e permitir a gratificação em cascata.<br />
Dessa forma, foram reforçadas as restrições à concessão de parcelas ou adicionais de<br />
remuneração com incidência recíproca. Configura proibição abrangente aplicável somente aos<br />
servidores que estejam em regime de vencimentos (não subsídios), para que os acréscimos<br />
pecuniários percebidos por servidor público não sejam acumulados para fins de concessão de<br />
acréscimos ulteriores.<br />
4.2.6. Irredutibilidade de Subsídios, Vencimentos e Proventos<br />
Dentro do regime constitucional dos servidores públicos titulares de cargos e de empregos<br />
públicos, a irredutibilidade de vencimentos é uma garantia basilar, vez que a perspectiva da<br />
instabilidade política no setor público poderia precarizar a continuidade na prestação do serviço<br />
público, caso os servidores não estivessem protegidos das ingerências políticas dos governos e das<br />
mudanças neles ocorridas.<br />
Aos servidores e aos empregados públicos é assegurada a irredutibilidade de vencimentos,<br />
entendida a expressão “vencimentos” como a designação técnica da retribuição pecuniária<br />
legalmente prevista como correspondente ao cargo público.<br />
Tal garantia é ressalvada pelas reduções acaso necessárias para que não excedam ao teto<br />
remuneratório, isto é, o correspondente aos subsídios dos Ministros do STF e para que se ajustem,<br />
em sua fórmula de cálculo, ao previsto no inciso XIV (que proíbe que os acréscimos pecuniários<br />
percebidos por servidor público sejam computados para fins de concessão de acréscimos ulteriores).<br />
Ainda com relação a vencimentos, a Emenda manteve, no inc. XV do art. 37, a regra da<br />
irredutibilidade, como garantia para o servidor, que já constava da redação original, apenas<br />
modificando a redação para adaptá-la às alterações introduzidas pela EC n.º 19/98, aplicando-a ao<br />
subsídio e aos vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos.<br />
A supressão, no art. 39, §3º, da referência ao inc. VI do art. 7º, na relação de direitos<br />
aplicados aos servidores ocupantes de cargo público, constitui aperfeiçoamento de redação, posto<br />
que o inciso referido se refere a situações aplicáveis somente aos trabalhadores contratados pelo<br />
regime celetista (irredutibilidade de salários, salvo convenção ou acordo coletivo de trabalho).<br />
As ressalvas contidas na parte final do inc. XV do art. 37 (incs. XI e XIV do art. 37 e arts. 39,<br />
§4º, 150, II, 153, III, e 153, §2º, I) têm por objetivo assegurar:<br />
a) o cumprimento do teto de remuneração estabelecido num único valor para os três Poderes;<br />
b) a aplicação da norma do inc. XIV do art. 37, que prevê a suspensão de acréscimos<br />
decorrentes de incidências recíprocas entre parcelas;<br />
c) o respeito, por força da menção ao §4º do art. 39, ao disposto no art. 37, X e XI;<br />
d) a igualdade de tratamento tributário, sem discriminação em razão de ocupação profissional<br />
ou função;<br />
e) o desconto do imposto de renda e proventos de qualquer natureza.<br />
4.2.7. Planos de Cargos e Salários<br />
Com a Emenda Constitucional n.º 19/98, a delimitação dos planos de cargos e salários da<br />
Administração Pública como um todo passa a ser uma exigência estabelecida em sede<br />
constitucional, na medida que o sistema remuneratório e correlato sistema de cargos e carreiras<br />
encontrou, no dispositivo sob comento, uma diretriz-mor, no sentido de dar aos administradores<br />
públicos de cada entidade e órgão da Administração direta e indireta um rol de elementos a serem<br />
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necessariamente trabalhados, quando da fixação dos padrões de vencimentos.<br />
A observância da natureza, grau de responsabilidade e complexidade dos cargos componentes<br />
de cada carreira há de ser um plexo normativo definidor de cada cargo, de suas funções, de suas<br />
responsabilidades e das suas possibilidades de progressão e promoção ao longo de uma estrutura de<br />
carreira, em exata proporção com a complexidade das tarefas desempenhadas e as peculiaridades<br />
dos cargos, donde a perspectiva remuneratória só poder advir da confluência destes elementos.<br />
Noutro sentido, exige-se também que os planos de carreiras tratem da forma de investidura<br />
em cada cargo, pois, em sendo o plano uma lei de cunho sistêmico e geral, há de abarcar grande<br />
parte da relação Estado-servidor, desde sua entrada no serviço público, até sua perspectiva de<br />
crescimento e desenvolvimento dentro da carreira em que tiver ingressado.<br />
Tal dispositivo se destina aos administradores, que haverão de elaborar leis, nas respectivas<br />
esferas de governo, em cada Poder, criando os planos de carreira dos servidores, donde tratar-se o<br />
§1º do art. 39 de uma norma de conteúdo imperativo para outras normas, não se aplicando<br />
diretamente por si só, mas devendo ser observada e respeitada por todas as que dela se originarem.<br />
Como a organização em carreira significa que os cargos estejam encartados em uma série de<br />
“classes” (é o conjunto de cargos da mesma natureza de trabalho), escalonada em função do grau de<br />
responsabilidade e nível de complexidade das atribuições, é evidente que a remuneração<br />
correspondente a cada nível também sobe à medida que o servidor é promovido de um nível a outro;<br />
se assim não fosse, não teria sentido prever-se a organização em carreira nem a promoção.<br />
Em conseqüência, os subsídios terão de ser fixados em valores diferentes para cada nível da<br />
carreira, observada a exigência de “parcela única”. Não se pode, para diferenciar um nível de outro,<br />
conceder acréscimos pecuniários que constituam exceção à regra do subsídio como “parcela única”.<br />
4.2.8. Outros Direitos dos Servidores Públicos<br />
Segundo leciona Celso Antônio Bandeira de Mello (1999, p. 199),<br />
“também se conferem aos servidores públicos, titulares de cargos, no art. 39, §3º, vários<br />
direitos, dentre os previstos no art. 7º da Constituição em prol dos trabalhadores em geral. São os<br />
que ali se contemplam nos incisos a seguir arrolados, a saber: inciso IV: salário mínimo; VII:<br />
remuneração nunca inferior ao salário mínimo para quem perceba remuneração variável; VIII: 13º<br />
salário anual; IX: remuneração de trabalho noturno superior ao do diurno; XII: salário-família para<br />
os dependentes; XIII: duração do trabalho diário não superior a 8 horas e 44 horas semanais; XV:<br />
repouso semanal remunerado; XVI: remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo,<br />
50% ao do normal; XVII: férias anuais remuneradas com, pelo menos, 1/3 a mais do que a<br />
remuneração normal; XVIII: licença à gestante com duração de 120 dias; XIX: licença-paternidade,<br />
nos termos previstos em lei; XX: proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos<br />
específicos previstos em lei; XXII: redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de<br />
saúde, higiene e segurança; XXX: proibição de diferença de remuneração, de exercício de funções e<br />
de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil, com ressalva da adoção de<br />
requisitos diferenciados de admissão, quando a natureza do cargo o exigir.”<br />
4.2.9. Do Regime de Remuneração dos Servidores Públicos por meio de Subsídios<br />
O termo subsídio não foi utilizado originariamente pela Constituição de 1988, diferentemente<br />
da Constituição anterior, em que era previsto como forma de designar a remuneração dos agentes<br />
políticos, dividido em uma parte e uma variável, de acordo com o número e o comparecimento do<br />
titular às sessões legislativas.<br />
Com a Emenda Constitucional n.º 19/98, o vocábulo voltou, em razão da proposta do Dep.<br />
Moreira Franco, já totalmente desvinculado do seu sentido semântico original (do latim subsidium<br />
que significa reserva, reforço, auxílio), vindo a designar a importância paga, em parcela única, pelo<br />
Estado, a determinadas categorias de agentes públicos, como retribuição pelo serviço prestado. Via<br />
de conseqüência, não tem a natureza de ajuda, socorro, auxílio, mas possui caráter retribuitório e<br />
alimentar.<br />
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Dentre os agentes públicos, alguns serão necessariamente alcançados pelo regime de<br />
subsídios; outros, em caráter facultativo, a critério do legislador de cada ente federativo (art. 39,<br />
§8º).<br />
Serão obrigatoriamente remunerados por subsídios: a) todos os agentes públicos mencionados<br />
no art. 39, §4º; b) os membros do Ministério Público da União e dos Estados (art. 128, §5º, I, “c”);<br />
c) os integrantes da Advocacia Geral da União, os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal e<br />
os Defensores Públicos (art. 135); d) os Ministros do Tribunal de Contas da União, dos Estados e do<br />
Distrito Federal (art. 73, §3º, e 75); os servidores públicos policiais (art. 144, §9º). Além desses, o<br />
art. 39, §8º, prevê que os servidores públicos organizados em carreira poderão ser remunerados<br />
mediante subsídios, conforme opção do legislador de cada ente federativo.<br />
O art. 39, §4º, prevê o subsídio como parcela única, à qual não pode ser acrescida vantagem<br />
pecuniária, como “gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie<br />
remuneratória”.<br />
Segundo leciona a professora Dinorá Grotti (1998), ao vedar o acréscimo de quaisquer<br />
vantagens pecuniárias ao subsídio, buscou o legislador extinguir o sistema remuneratório<br />
tradicionalmente vigente na Administração Pública e que compreende o padrão fixado em lei mais<br />
as vantagens pecuniárias de variada natureza prevista na legislação estatutária. E, ao se referir à<br />
parcela única, proibiu a fixação dos subsídios em duas partes (uma fixa e uma variável), como<br />
adotado para os agentes políticos na vigência da CR/67.<br />
Com isso, ficam derrogadas, para os agentes que percebam subsídios, todas as normas<br />
infraconstitucionais que prevejam vantagens pecuniárias remuneratórias como parte da<br />
remuneração.<br />
Em conseqüência, também, para remunerar de forma diferenciada os ocupantes de cargos de<br />
chefia, direção, assessoramento e os cargos em comissão, terá a lei de fixar, para cada um, subsídio,<br />
composto de “parcela única”. O mesmo se diga com relação aos vários níveis de cada carreira.<br />
No entanto, a existência de vários dispositivos constitucionais não alterados pela EC n.º<br />
19/98 frustra parcialmente a intenção do legislador contida no art. 39, §4º. Como, por exemplo, as<br />
garantias do art. 39, §3º, de que se aplicam aos ocupantes de cargo público (em sentido genérico,<br />
sem fazer qualquer distinção quanto ao regime remuneratório) o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII,<br />
IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, da CR/88, diante das quais a<br />
aparente contradição com o fato de o art. 39, §4º se referir a uma parcela única, não se constituem<br />
em fator impeditivo da aplicação de um dispositivo em relação ao outro, vez que o art. 39, §3º,<br />
assegura o direito a determinadas vantagens também com suporte constitucional.<br />
As situações em que as vantagens extra-subsídio tenham natureza indenizatória também<br />
exemplificam a necessidade de compatibilização entre a determinação do dispositivo sob comento e<br />
as situações em que o agente público, que perceba subsídio, não receberá uma “parcela única”, já<br />
que se trata de compensar o servidor por despesas efetuadas no exercício do cargo.<br />
As expressões empregadas pelo art. 39, §4º, da Constituição, ao arrolar “parcelas” que não<br />
podem ser acrescidas à “parcela única” que constitui o subsídio, não têm, por si só, força definitiva,<br />
no sentido de que nenhum recebimento fica proibido pelo simples fato de ter sido denominado<br />
como “gratificação, adicional, abono, prêmio ou verba de representação”; tampouco permitido por,<br />
em esforço de criatividade, haver-se nomeado diferentemente. (Grotti, 1998)<br />
Como bem ensina a professora Dinorá Grotti, a exemplificação feita pretende, de outra parte,<br />
deixar bem fincado o sentido da enumeração contida na norma do art. 39, §4º. O que não pode ser<br />
acrescido ao “subsídio único” é uma outra parcela “remuneratória”, vale dizer, uma quantia<br />
destinada a compensar o agente pelo específico exercício do cargo em causa. Mas seria ridículo,<br />
além de inconstitucional, confundir a regra do dispositivo com a interdição, genérica e<br />
indiscriminada, ao recebimento de dinheiro estatal a qualquer título.<br />
4.2.10. Relação entre Maior e Menor Remuneração<br />
Através do dispositivo do art. 39, § 5º, há o reposicionamento, no texto constitucional, do<br />
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conteúdo do art. 37, XI, cuja redação foi alterada, pois o que antes constituía uma obrigatoriedade (a<br />
relação entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos) passou a ser uma faculdade,<br />
sempre a partir de lei ordinária e considerada a iniciativa privativa em cada caso, obedecido o limite<br />
máximo constitucional.<br />
O objetivo dessa relação é evitar discrepâncias muito acentuadas entre os que ganham mais e<br />
os que ganham menos, estabelecendo-se, assim, entre os distintos níveis de retribuição, intervalos<br />
comedidos. No caso dos servidores em geral, a lei que fixará a relação de valor não significa<br />
vinculação por força da qual todas as vezes em que se elevem as retribuições mais modestas estejam<br />
também elevadas as mais altas e vice-versa. Isto pode ou não ocorrer, dependendo da forma como a<br />
lei regule tal relação. (Grotti, 1998)<br />
4.2.11. Publicação Anual dos Valores<br />
Em norma de aplicabilidade imediata e eficácia plena, a Emenda Constitucional n.º 19/98<br />
incluiu na Constituição regra que obriga os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário a publicar<br />
anualmente os valores do subsídio e da remuneração dos cargos e empregos públicos (art. 39, § 6º).<br />
Desse modo, a sociedade deveria ficar conhecendo com toda a clareza, o quanto percebem os<br />
membros dos Poderes do Estado e os funcionários públicos.<br />
4.2.12. Faculdade de Instituir Regime de Remuneração por Subsídios<br />
Dentre os agentes públicos, alguns serão necessariamente alcançados pelo regime de<br />
subsídios; outros, em caráter facultativo, a critério do legislador de cada ente federativo (art. 39,<br />
§8º).<br />
Se, por um lado, serão obrigatoriamente remunerados por subsídios: a) todos os agentes<br />
públicos mencionados no art. 39, §4º; b) os membros do Ministério Público da União e dos Estados<br />
(art. 128, §5º, I, “c”); c) os integrantes da Advocacia Geral da União, os Procuradores dos Estados e<br />
do Distrito Federal e os Defensores Públicos (art. 135); d) os Ministros do Tribunal de Contas da<br />
União, dos Estados e do Distrito Federal (art. 73, §3º, e 75); os servidores públicos policiais (art.<br />
144, §9º).<br />
Por outro lado, por força da faculdade aberta no dispositivo sob comento (o art. 39, §8º), além<br />
dos servidores supra mencionados que, obrigatoriamente receberão mediante o regime de subsídios,<br />
prevê que os servidores públicos organizados em carreira poderão ser remunerados mediante<br />
subsídios, conforme opção do legislador de cada ente federativo.<br />
Segundo Heraldo Garcia Vitta (1999), o §8º do art. 39 é preocupante, pois permite à<br />
Administração Pública organizar o sistema de remuneração dos servidores públicos organizados em<br />
carreira mediante o pagamento de subsídios, na forma já estudada.<br />
Ora, teoricamente, em especial Estados e Municípios poderão adotar, como regra, o<br />
pagamento de subsídios a seus servidores, de maneira a passarem a receber “parcela única”, e não<br />
vencimento (padrão), mais as vantagens (gratificações, adicionais). Com o tempo, poderá ocorrer<br />
uma perigosa redução gradual da remuneração dos servidores destas administrações.<br />
4.2.13. Disponibilidade Remunerada<br />
Um dos casos de disponibilidade é a do servidor que, eventualmente, ocupava cargo, que<br />
originariamente vinha sendo ocupado por servidor que chegou a ser demitido por força de decisão<br />
administrativa e reintegrado ao cargo por força de sentença judicial, que anulou aqueloutra.<br />
No texto original da CR/88, o instituto da disponibilidade remunerada, em contraposição ao<br />
da estabilidade, correspondia à previsão da possiblidade de extinção ou da declaração de<br />
desnecessidade do cargo ocupado pelo servidor (ocupante de cargo público de provimento efetivo)<br />
e, via de conseqüência, seu direito à permanência no serviço público até o seu aproveitamento em<br />
outro cargo.<br />
Com a EC n.º 19/98, a disponibilidade remunerada, nas hipóteses constitucionais, passou a<br />
ser “proporcional” ao tempo de serviço (art. 41, §§2º e 3º), e não “integral”, como antes vinha sendo<br />
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admitido pela doutrina e pelos tribunais.<br />
A atual disciplina (após o advento da EC n.º 19/98), pertinente ao instituto da disponibilidade<br />
remunerada, não sofreu grandes alterações com relação à dicção originária da Constituição. As<br />
hipóteses em que o funcionário terá direito a ser colocado em disponibilidade continuam as<br />
mesmas.<br />
A novidade fica a cargo da definição de que a remuneração do sevidor colocado em<br />
disponibilidade passa a ser proporcional ao tempo de efetivo exercício no serviço público,<br />
colocando fim à celeuma doutrinária existente depois da promulgação da Constituição em 5.10.88.<br />
Difere o dispositivo do art. 41, § 3º do anterior apenas no tocante às hipóteses que ensejam a<br />
disponibilidade do servidor, todas que já haviam sido previstas na CR/88, vez que agora se trata da<br />
hipótese de extinção do cargo, assim como da de declaração de desnecessidade do cargo.<br />
Celso Antônio (1999, p. 201) preleciona no sentido de que<br />
“a declaração de desnecessidade, surgida ao tempo do golpe militar de 1º de abril de 1964 e<br />
consagrada constitucionalmente na Carta de 1969 (art. 100, parágrafo único) é um instituto obscuro<br />
e rebarbativo. Com efeito, se o cargo não é necessário, deve ser extinto, pura e simplesmente. Sem<br />
embargo, assim como a lei pode estabelecer termos, condições e especificações para que o Chefe do<br />
Poder Executivo extinga cargo público, já que a Constituição lhe confere a prerrogativa de ‘prover e<br />
extinguir os cargos públicos federais, na forma da lei’ (art. 84, XXV), também poderá fazê-lo, para<br />
que os declare desnecessários.”<br />
4.2.14. Obrigatoriedade de Previsão Orçamentária para Alterações na Política de Pessoal<br />
De acordo com o §1º do art. 169 da CR/88, com a redação dada pela Emenda Constitucional<br />
n.º 19/98, qualquer vantagem ou aumento de remuneração a serem concedidos, bem como a criação<br />
de empregos, funções ou cargos públicos e a admissão de pessoal de qualquer entidade ou órgão da<br />
Administração direta ou indireta haverão de ser feitas apenas e restritivamente com a previsão<br />
orçamentária (dotação orçamentária suficiente, na LOA – Lei de Orçamento Anual –, para atender<br />
às projeções de despesa de pessoal e aos acréscimos dela decorrentes) e com a respectiva previsão<br />
na Lei de Diretrizes Orçamentárias, autorizando tais mudanças na política de pessoal.<br />
No universo das entidades e dos órgãos a que se destina o dispositivo sob comento, há apenas<br />
a ressalva, no inc. II do §1º do art.169, às empresas públicas e às sociedades de economia mista, a<br />
partir do que pode se extrair o entendimento de que deverá haver, para tais entidades, a previsão na<br />
Lei Orçamentária Anual, caso sejam concedidos aumentos, vantagens ou criados cargos e<br />
empregos, assim como se houver admissão/contratação de pessoal, mas já não será exigida também<br />
a previsão de tais alterações na Lei de Diretrizes Orçamentárias. Trata-se de uma norma de eficácia<br />
plena e aplicabilidade imediata.<br />
4.2.15. Dispensa de Servidores por Excesso de Pessoal<br />
Uma das mais importantes mudanças em face do texto anterior refere-se à possibilidade<br />
(Vitta, 1999) de o Poder Público exonerar, de ofício, seus servidores estáveis, uma vez excedidos os<br />
limites de despesa estabelecidos em lei complementar (art. 169).<br />
Segundo nos informa o supra citado autor, a adoção de medidas no sentido da contenção de<br />
gastos com pessoal, determinada pelo art. 169 como um todo, é conformada constitucionalmente<br />
como uma prerrogativa discricionária da Administração, vez que, no §4º do referido artigo, é<br />
conferida ao administrador público a possibilidade de adotar ou não a alternativa de demissão do<br />
servidor estável.<br />
Assim,<br />
“ainda que adote as providências determinadas no § 3º e não consiga chegar no limite de<br />
despesas de pessoal estabelecido na lei complementar, sua discricionariedade permanecerá<br />
inalterável, inarredável.<br />
Nesta situação, ou seja, no exercício da discricionariedade (exoneração de servidores<br />
estáveis), a sanção determinada no §2º do art. 169 não se aplica: a suspensão dos repasses de verbas<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
federais ou estaduais aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios que não observarem os<br />
limites estabelecidos na referida complementar.<br />
De fato, por cuidar-se de mera opção administrativa, a exoneração do servidor estável,<br />
segundo critério do poder político competente, no qual o agente público exerça sua função, seria<br />
rematado desconchavo, incongruente mesmo, a determinação constitucional de aplicação de sanção<br />
por descumprimento de uma discrição administrativa concedida pela própria norma constitucional.<br />
Evidentemente, o Estado ou Município que tiver gastos exorbitantes com os servidores<br />
públicos, e não adotar a providência referida, mesmo em se cuidando de discrição administrativa,<br />
poderá ter problemas de ordem financeira, na medida em que a transferência voluntária de recursos<br />
e a concessão de empréstimos, inclusive por antecipação de receita, pelos Governos Federal e<br />
Estaduais e suas instituições financeiras, são vedados para pagamento de despesas com pessoal<br />
ativo, inativo e pensionista, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 167, X).<br />
Apenas a não-adoção das providências mencionadas no § 3º, a seguir analisado, levará à<br />
sanção determinada no §2º (suspensão de todos os repasses de verbas).” (Vitta, 1999)<br />
Cuida-se de dispositivo que se destina aos administradores dos Estados, do Distrito Federal e<br />
dos Municípios, cuja eficácia, apesar de ter aplicabilidade plena, é limitada pela dependência de lei<br />
complementar posterior que venha a definir os limites de gastos com pessoal, bem como os prazos<br />
em que tais parâmetros de contenção devem ser cumpridos (art. 169, caput).<br />
4.2.16. Medidas para Contenção dos Gastos com Folha de Pagamentos<br />
O § 3º do art. 169 estabelece a adoção de providências a cargo do Poder Público no sentido<br />
de cumprir os limites contidos na lei complementar. São as seguintes medidas:<br />
I - redução em pelo menos 20% das despesas com cargos em comissão e funções de<br />
confiança; e<br />
II - exoneração dos servidores não estáveis, considerados tais os admitidos na administração<br />
direta, autárquica e fundacional sem concurso público de provas ou de provas e títulos após o dia 5<br />
de outubro de 1983 (art. 33 da EC n.º 19/98) – isto porque os que ingressaram antes dessa data<br />
tornaram-se estáveis, nos termos do art. 19 do ADCT.<br />
Neste parágrafo não se inclui a exoneração dos servidores estáveis, a qual está no §4º do<br />
mesmo artigo, portanto, em destaque, separado das providências anteriores. Esta colocação<br />
topográfica não é sem sentido. (Vitta, 1999) O § 3º, ao aludir à adoção de providências (redução dos<br />
cargos em comissão e funções de confiança; exoneração dos servidores não estáveis) do Poder<br />
Público, determina-as, expressamente, de acordo com o termo “adotarão”; em seguida, no §4º,<br />
adota-se a palavra “poderá”. Sendo assim, entende-se haver discricionariedade da administração de<br />
adotar ou não a alternativa do §4º (exoneração do servidor estável).<br />
4.2.17. Dispensa de Servidores Estáveis<br />
Conforme lição de Luciano Ferraz (1999),<br />
“depois de efetivadas as medidas previstas nos incs. I e II do § 3º do art. 169 da CR/88,<br />
respectivamente, a redução em pelo menos 20% dos gastos com cargos em comissão e funções de<br />
confiança e exoneração de servidores não-estáveis, assim considerados aqueles previstos no art. 33<br />
da EC n.º 19/98, é imperativo, antes da perda do cargo por parte do servidor estável, na forma<br />
prevista no §4º do citado art. 169, a impossibilidade de alcançar o patamar previsto na Lei<br />
Complementar n.º 82/95 [LC n.º 101/2000], mediante a adoção de outras duas medidas, a saber:<br />
................................................................................................................................<br />
b) colocação em disponibilidade, com remuneração proporcional e consequente redução da<br />
folha de pagamento, dos que já tenham adquirido a estabilidade (art. 41, §3º, da CR/88).<br />
Somente após a implementação de tais medidas, caso não haja a adequação dos gastos<br />
com pessoal ao patamar da Lei Complementar n.º 82/95 [LC n.º 101/2000], tornar-se-á<br />
possível (...) a perda do cargo do servidor estável com esse fundamento, aplicando as regras<br />
dos §§ 4º, 5º e 6º do art. 169 da CR/88.” (grifo nosso)<br />
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Tem-se, portanto, que apenas se as medidas adotadas não forem suficientes, o servidor poderá<br />
perder o cargo, desde que por “ato normativo motivado”, que é o ato geral e abstrato, devidamente<br />
fundamentado, a ser editado por cada um dos Poderes, especificando a atividade funcional, o órgão<br />
ou unidade administrativa.<br />
4.2.18. Indenização pela Perda do Cargo<br />
Conforme ensinamento de Celso Antônio (1999, p. 186),<br />
“a determinação da perda dos cargos por parte dos servidores estáveis, com indenização<br />
correspondente a um mês de remuneração por ano de serviço, parece-nos inconstitucional, por<br />
superar os limites do poder de Emenda. Tal perda só poderia ocorrer com a extinção do cargo e<br />
colocação de seus ocupantes em disponibilidade remunerada, como previsto na Constituição (art.<br />
41, § 3º).”<br />
De igual maneira também expressa seu entendimento Luciano Ferraz (1999), quando<br />
assevera que deve haver a<br />
“colocação em disponibilidade de funcionários estáveis com remuneração proporcional, salvo<br />
se houver expressa opção pelo desligamento e consequente indenização, na forma do § 5º do art.<br />
169. O aproveitamento desses funcionários ocorrerá nos termos do § 3º do art. 41 da Constituição<br />
da República de 1988.<br />
O desrespeito a essa ordem poderá dar ensejo à propositura das pertinentes ações judiciais<br />
(mandado de segurança, ação ordinária) com o objetivo de compelir o Poder Público ao respeito aos<br />
direitos subjetivos dos funcionários públicos.”<br />
4.2.19. Extinção do Cargo<br />
Medida correlata à perda do cargo pelo servidor estável é a extinção desse, sendo vedada, nos<br />
próximos quatro anos subsequentes à exoneração do servidor que o ocupava, a sua recriação, assim<br />
como a de empregos ou funções iguais ou assemelhados.<br />
Trata-se de norma de eficácia limitada nos mesmos termos da carência de lei federal<br />
delimitadora das garantias dos servidores estáveis, quando da hipótese de exoneração sob comento,<br />
vez que o cargo somente será extinto após a vacância do cargo, com a exoneração.<br />
4.2.20. Competência para Dispor sobre a Exoneração do Servidor Estável<br />
O §7º do art. 169 estabelece competência privativa da União para dispor sobre as normas<br />
relativas à exoneração do servidor estável; e o art. 247, com a redação da Emenda, determina o<br />
estabelecimento de critérios e garantias especiais para a perda do cargo pelo servidor estável o qual<br />
desenvolva atividades exclusivas de Estado.<br />
Para Heraldo Garcia Vitta (1999), dois pontos de consideração são necessários: a obediência<br />
pelos Estados e Municípios, em face das normas gerais da União, apenas ocorrerá se e quando a<br />
entidade política adotar a providência de exoneração do servidor estável; noutro sentido, também<br />
haverá a prevalência da lei federal, ao dispor sobre os critérios e garantias ao servidor estável que<br />
desenvolva atividade exclusiva do Estado, vez que cabe à lei federal, de competência da União,<br />
estabelecê-los, de observância obrigatória às demais entidades políticas, excetuados os casos nos<br />
quais o Estado ou o Município, a par das normas da União, editar outras, com maiores garantias a<br />
tais servidores.<br />
4.3. Controle de Resultados e Administração Pública Gerencial<br />
Partindo do diagnóstico enviesado de que o maior problema da administração pública<br />
brasileira era a burocracia 26 , bastou a eficiência ter sido alçada à categoria de princípio<br />
constitucional expresso da Administração Pública (art. 37, caput), para se dar causa a discursos<br />
entusiásticos sobre, nada mais, nada menos, uma verdadeira emergência de algo existente há muito<br />
e já caro àquela, como se ele (o princípio da eficiência) tivesse sido reinventado – da “reforma” em<br />
26 Vide críticas em tópicos anteriores.<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
diante – sob a veste de um princípio mais imprescindível que os outros.<br />
Assim sendo, foi erigida toda uma teoria organizacional, envolvida pela insígnia desse novovelho<br />
princípio – agora, mais poderoso até do que (e perante) o ancilar princípio da legalidade –, de<br />
como conduzir a gestão da coisa pública para o mais perto possível da eficiência de mercado e dos<br />
mecanismos de gestão privados.<br />
Segundo Brunsson & Sahlin-Andersson (2000), esse processo de transformação do setor<br />
público em organizações, pautadas pela lógica de mercado, é uma tentativa que vem sendo frustrada<br />
– na consecução das propostas de reforma do Estado contemporâneas – diante da imensa<br />
dificuldade de se imprimir racionalidade (eficiência), sem correspondente autonomia (organização<br />
independente) e hierarquia (poder decisório). Mas como conferir absoluta autonomia e amplo poder<br />
decisório à Administração Pública, se ela não pode dispor do interesse público, devendo sempre<br />
atuar conforme a lei? (Mello, 2000)<br />
Tal ocorre, já que não é a Administração Pública uma “empresa” que origine e termine<br />
“organizacionalmente” em si mesma; diferentemente disso, ela necessita compartilhar de uma<br />
relação de legitimidade para com o corpo social, porque ela própria representa um agregado<br />
indispensável de instituições sociais (Chauí, 1999).<br />
Em outras palavras, ela é essencialmente política, porosa a pressões que inviabilizam aludidas<br />
autonomia e hierarquia, sob pena ou de ser tomada como “insulada burocraticamente” ou como<br />
“desvirtuada para fins privados”.<br />
Deixando um pouco de lado a Teoria Organizacional e retomando a Ciência Política, tem-se<br />
que a abordagem acerca da relação agent x principal (Przeworski, 1998) fornece subsídios<br />
importantes para a análise de que são os governantes nada mais do que “agentes”, mandatários da<br />
sociedade, que lhes conferiu poderes limitados para atingir uma finalidade estrita, qual seja, o bem<br />
comum.<br />
Sob o marco da teoria agent X principal, nesse sentido, tem-se que a questão sobre a<br />
adequação da intervenção do Estado e sobre como redimensioná-la depende do “desenho<br />
institucional” das relações entre governos e agentes econômicos privados (regulação), entre<br />
políticos e burocratas (supervisão/ acompanhamento), e entre cidadãos e governos<br />
(responsabilização), na medida em que,<br />
“(...) a tarefa de reformar o Estado consiste, por um lado, em equipá-lo com instrumentos<br />
para uma intervenção efetiva e, por outro, em criar incentivos para que os funcionários públicos<br />
atuem de modo a satisfazer o interesse público. Alguns desses incentivos podem ser gerados pela<br />
organização interna do governo, mas não bastam. Para que o governo tenha um desempenho<br />
satisfatório, a burocracia precisa ser efetivamente supervisionada pelos políticos eleitos, que, por<br />
sua vez, devem prestar contas aos cidadãos.(...) Se esses mecanismos de responsabilização<br />
(accountability) são bem concebidos, a economia de um Estado intervencionista pode obter<br />
melhores resultados que a economia de mercados livres”. (1998, p. 40, grifos nossos)<br />
Ainda sob os ensinamentos da Ciência Política, cumpre tentar definir o que vem a ser a rica<br />
expressão accountability, para seguir aprofundando na crítica à proposta estrita do “controle de<br />
resultados” feita no Plano Diretor (1995).<br />
Não é demasiado lembrar que crítica cabe a essa proposta e à própria Emenda Constitucional<br />
n.º 19/98, na medida em que elas têm sido conduzidas sem a devida preocupação com o simultâneo<br />
incremento do processo de consolidação democrática, isto é, têm se dado de maneira esvaziada em<br />
relação ao contexto político-institucional em que elas se encontram inseridas. (Nogueira, 1989/90;<br />
Diniz, 1997)<br />
Doravante, tal miopia é o que se passará a analisar mais detidamente, com a retomada do<br />
tema sobre a necessidade de instrumentalizar não só controles voltados para o estrito enfoque<br />
administrativo-financeiro da crise do Estado, mas também mecanismos de accountability<br />
democrática.<br />
O termo accountability, consagrado pela literatura política anglo-americana, não é<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
usualmente traduzido para outras línguas. De qualquer forma, pode-se dizer, segundo O’Donnell<br />
(1998) e Cunill (2000), que a idéia por detrás da noção de accountability é a de transparência, a de<br />
prestação de contas, sendo ela um atributo dos governos (e governantes).<br />
Geralmente ela é classificada em horizontal e vertical, assumindo como critério diferenciador<br />
a origem do controle, ou seja, onde se inserem os atores que demandam essa transparência, essa<br />
prestação de contas governamental.<br />
Desse modo, a accountability horizontal pode ser entendida como aquela que enfatiza a<br />
aderência das práticas governamentais aos procedimentos legais e constitucionais.<br />
Tal perspectiva está altamente interessada na operação efetiva do antigo, mas sempre atual,<br />
sistema de checks and balances (a qual implica a tradicional divisão tripartite das funções estatais),<br />
consagrada por Montesquieu no século XVIII.<br />
Essa concepção, contudo, deve ser entendida como uma noção mais clássica de<br />
accountability horizontal, uma vez que o estabelecimento, por parte do próprio Estado, de agências<br />
estatais legalmente qualificadas para o exercício do controle da atuação governamental pode ser<br />
entendido como uma dimensão mais moderna e atual desse tipo de accountability.<br />
De outro modo, uma primeira noção de accountability vertical faz referência à possibilidade<br />
de os cidadãos vocalizarem demandas sociais para os representantes públicos (eleitos ou não) e<br />
denunciá-los por atos impróprios que possam cometer.<br />
Nessa perspectiva, a accountability vertical enfatizaria os mecanismos que os cidadãos usam<br />
para controlar os resultados da atuação governamental. Os governos só seriam accountables na<br />
medida em que não apenas seguissem os preceitos constitucionais e legais, mas também agissem de<br />
acordo com as preferências dos cidadãos.<br />
A primeira idéia que comumente aparece sobre esse tipo de controle é o mecanismo eleitoral.<br />
Sem dúvida, eleições livres e diretas são o ponto de partida para a real fundação de uma poliarquia<br />
(O’Donnell, 1998), mas estão longe de garantir, por si só, o advento dessa, sem a combinação de<br />
outros mecanismos de accountability. A partir desse debate, vem ganhando mais espaço, a cada dia,<br />
na literatura política, uma “espécie” mais moderna de accountability vertical, a qual pode-se citar<br />
como accountability societária (ou societal). (Cunill, 2000)<br />
Esse novo tipo de accountability nutre íntima relação com um conjunto de associações de<br />
cidadãos, movimentos e mídia, que objetivam expor os atos legais do governo, colocando novas<br />
questões na agenda política ou influenciando a revisão das decisões governamentais.<br />
Ao contrário da accountability horizontal e do sistema eleitoral (que atuam sempre via<br />
mecanismos institucionalizados), o controle por parte da sociedade se utiliza tanto de prerrogativas<br />
institucionais (ativação de processo, supervisão, participação em arenas que monitorem políticas<br />
públicas) como não-institucionais (p. ex. denúncias públicas, atuação de ONG’s e de outros<br />
movimentos sociais).<br />
É claro que, em última instância, o “poder” de controle exercido por mecanismos não<br />
institucionais não passa de um poder simbólico, já que, como a teoria da ação comunicativa de<br />
Jürgen Habermas enfatiza, somente o “Poder Administrativo” tem real poder de atuação. Mas o<br />
“Poder Comunicativo” da sociedade (segundo ainda Habermas) não pode ser menosprezado, sendo<br />
muitas vezes decisivo para que um “gatilho” inicial seja capaz de detonar (trigger) mudanças<br />
institucionais.<br />
Ainda nesse tema, percebe-se que os mecanismos de accountability societária têm um<br />
espectro de atuação muito mais amplo que o sistema eleitoral, porque permitem um controle do<br />
governo não apenas nas eleições, mas entre elas (ou seja, passa a existir um controle contínuo do<br />
governo nos mesmos termos da noção de responsabilidade política estendida), além de<br />
possibilitarem controle não apenas dos governantes eleitos, mas também do aparato burocrático<br />
(Administração Pública). E isso é, sem dúvida, um grande avanço.<br />
Pode-se dizer, portanto, que a existência de mecanismos de accountability horizontal e<br />
vertical não é uma constatação nova, já que é possível citar a divisão tripartite das funções do<br />
Estado (checks and balances de Montesquieu) e o voto direto como exemplos tradicionais desses<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
mecanismos respectivamente.<br />
Mas, agora retomando as idéias de O’Donnell (1998), a evolução política do Estado e da<br />
sociedade demonstraram as limitações de tais controles, ante a complexificação das demandas<br />
sociais e a cada vez mais incipiente capacidade de o Estado governar de forma satisfatória<br />
(culminando numa crise de legitimidade do Estado).<br />
Novas formas de accountability vêm surgindo nessa esteira, como o estabelecimento de uma<br />
rede de agências estatais de controle (accountability horizontal) e a insurgência do controle<br />
societário, por meio de ONG’s, audiências públicas etc. (accountability vertical) na tentativa de<br />
diminuir o deficit que existe entre as (precárias) poliarquias atuais e a poliarquia ideal dahliana.<br />
Para tanto, o grande desafio, em especial no contexto latino-americano, consiste em superar<br />
as tendências políticas tão comuns nesses países (cesarismo, populismo, supremacia do Poder<br />
Executivo sobre os demais poderes, frouxo sistema partidário, ausência de efetivos planos de<br />
governo, desrespeito a prerrogativas constitucionais e a rule of law etc) e as grandes desigualdades<br />
socioeconômicas (as quais, se não entravam totalmente, no mínimo, dificultam o amadurecimento<br />
de uma atuante sociedade civil), sem o que os mecanismos de accountability não poderão operar<br />
adequadamente.<br />
Se na Ciência Política, é pródiga a doutrina sobre os mecanismos de controle da<br />
Administração Pública em prol do amadurecimento das instituições democráticas, no Direito<br />
Administrativo, também incisivos são os autores no sentido de conformar a Administração como<br />
serva do interesse público, sob o marco do Estado de Direito.<br />
Segundo, Celso Antônio Bandeira de Mello, por estar pautado estritamente pelo governo das<br />
leis, o Estado de Direito delimita que, à Administração, somente cabe o dever de cumprir os<br />
desígnios legais, situação em razão da qual “a atividade administrativa encontra na lei tanto seus<br />
fundamentos quantos seus limites”. (2000, p. 49)<br />
Assim, justamente por trazer consigo o primado das leis, conforme a tese da soberania<br />
popular, o Estado de Direito garante aos administrados que “fora da lei, portanto, não há espaço<br />
para atuação regular da Administração.” (Mello, 2000, p. 50)<br />
A lição de Celso Antônio é de que entre a atividade administrativa e a lei existe uma<br />
inafastável relação de subordinação, seja porque é a lei que, positivamente, veda e/ou permite à<br />
Administração a prática de determinados atos, seja porque, já negativamente, a Administração “não<br />
pode fazer senão o que de antemão lhe seja permitido por uma regra legal.” (2000, p.51) Vale dizer,<br />
a Administração só pode atuar secundum legem.<br />
Nesse sentido, ressalta o autor acima mencionado que “a atividade administrativa, para<br />
manter-se afinada com os princípios do Estado de Direito e com o regramento constitucional<br />
brasileiro, necessita ser exata e precisamente uma atividade pela qual se busca o atingimento dos<br />
fins pré-traçados em lei.” (p. 51)<br />
Melhor aprofundando a discussão em torno dos limites a que se encontra adstrita a<br />
Administração, Mello traz à tona a célebre distinção de Ruy Cirne Lima entre aquele que é o dono e<br />
aquele que não é proprietário, não tendo, por isso, a disposição da coisa. Veja-se que, “perante<br />
propriedade, está-se no reino da autonomia da vontade, perante administração, contrariamente, estáse<br />
no reino da finalidade, proposta como impositiva, como obrigatória. Na propriedade a vontade –<br />
dir-se-ia – é comandante; na adminstração, a vontade é serviente.” (Mello, 2000, p.52)<br />
Daí que Celso Antônio se sente autorizado a concluir que “a atividade administrativa é<br />
marcada, sobretudo, pela idéia de função.” (2000, p.53) Explica o autor, então, que “existe função,<br />
em Direito, quando alguém dispõe de um poder à conta de dever, para satisfazer o interesse de<br />
outrem, isto é, um interesse alheio.” (Mello, 2000, p.53, grifo do original)<br />
Assim se considerando, sobreleva o aviso de que os poderes conferidos, dentro da idéia de<br />
função, assim o foram para serem manejados instrumentalmente, ou seja, foram conferidos “como<br />
meios reputados aptos para atender à finalidade que lhes justificou a outorga”. (2000, p.53)<br />
Precisamente em consonância com tal lógica, o autor em questão assevera que – por somente<br />
ser útil, valoroso e justicável o poder quando servir de instrumento ao cumprimento do dever de<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
concretizar a finalidade legal – não há que se falar em poder-dever, pois o que o administrador<br />
dispõe, de fato, são deveres-poderes, na medida em que os poderes “têm destino apenas serviente”.<br />
Por essa razão é que o direito administrativo “congrega-se ao derredor da idéia de dever”. (Mello,<br />
2000, p.54)<br />
Em relevante paralelo com o desempenho de funções no Direito Privado, Celso Antônio<br />
chama a atenção para o fato de que, apesar de ser a regra no Direito Público, a idéia de função aqui<br />
nem sempre é respeitada. Nas palavras do aludido autor, tem-se que, “com alarmante freqüência, no<br />
Direito Público perde-se esta perspectiva natural [de que os poderes dados em razão do exercício de<br />
função o foram para a realização da finalidade por que foram outorgados], inobstante a todos ocorra<br />
espontaneamente adotá-la no Direito Privado, justamente onde o exercício de função é<br />
excepcional.” (Mello, 2000, p. 55) Donde este autor criticar a proliferação de teorias sobre as<br />
“prerrogativas” da Administração, os poderes dos administradores públicos, a imunidade das<br />
decisões discricionárias entre outras “deformações da mesma estirpe”. (2000, p. 56)<br />
Ainda sob esse espírito de questionamento, é que há de sobrelevar o alerta de que<br />
“nada importa: quer haja incidido em erro de Direito, ao imaginar cabível o meneio da<br />
competência para um fim só objetivável por outra competência, quer haja deliberadamente se<br />
servido de uma competência imprópria, pretendendo com isto eximir-se de embaraços, dificuldades<br />
ou demoras que o estorvariam ou retardariam – se fora utilizada a competência pertinente – haverá,<br />
do mesmo modo, incorrido em desvio de poder.” (Mello, 2000, p. 59, grifo acrescido ao original)<br />
Em ambas as situações o ato é “maculado”, porque “as competências têm (...) endereço certo,<br />
não podem ser manejadas para um fim distinto daquele a que estão legalmente preordenadas, sem<br />
que, com isto, em última instância, seja violada a própria regra de competência.” (Mello, 2000, p.<br />
60)<br />
Assim ocorre em razão da garantia intrínseca ao Estado de Direito de que os cidadãos não<br />
serão surpreendidos pelo proceder administrativo, vez que todo ele, em suas finalidades e em seus<br />
meios correspondentes àquelas, deverá sempre se encontrar adstrito ao que o “Direito<br />
antecipadamente e adrede concebeu como sendo os [meios] adequados para o atingimento de cada<br />
uma delas [finalidades].” Desta maneira, tal “endereço certo” de cada competência chega a<br />
representar uma verdadeira espécie de “tipicidade administrativa”. (Mello, 2000, p. 60)<br />
Pois bem, ao cabo de uma tal extensa explanação sobre o tema do controle democrático – seja<br />
sob o prisma da relação agent X principal e das mais variadas formas de accountability, ou seja sob<br />
o olhar atento do jurista que tenta defender as salvaguardas públicas inerentes ao Estado de Direito<br />
–, mostra-se deveras pertinente, aqui, retomar um dos questionamentos feitos logo na apresentação<br />
deste trabalho.<br />
Cumpre, portanto, questionar: não seria a mera ênfase nos resultados, prescindindo até do<br />
controle do devido processo administrativo (como a licitação por exemplo), uma perigosa<br />
prerrogativa entregue a uma Administração sequer mal habituada com o cumprimento das leis,<br />
quanto mais de metas pactuadas subjetivamente?<br />
Fato é que, do receituário privado, retirou-se o modelo “gerencial” que, guardadas algumas<br />
basilares alterações de percurso, passou a ser pregado em bloco para todo o Estado, na forma de um<br />
novo (?) “paradigma” de gestão, como se fosse possível prescindir da interface político-institucional<br />
inerente a um feixe vasto de atividades tipicamente estatais, com todas as garantias públicas a ele<br />
inerentes.<br />
Assim, como já dito anteriormente, ao conciliar um diagnóstico errático sobre as raízes da<br />
“ineficiência” estatal com uma ampla retórica de que se estava “reinventando” a Administração<br />
Pública para uma atuação mais “gerencial”, o Plano Diretor (1995) e, mais tarde, a própria EC n.º<br />
19/98 somente apresentaram, na prática, uma interessante e perigosa inovação em relação ao<br />
modelo burocrático de gestão, qual seja, a ênfase no controle de resultados.<br />
Ao prescindir de aferir o andamento de processos, padrões e procedimentos, estaria a<br />
atividade administrativa mais “solta” para responder, com a “flexibilidade” necessária, às<br />
demandas, pois o que passaria a importar seria o cumprimento de metas acordadas, cada vez mais, a<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
custos mais baixos e, em tese, com maior qualidade.<br />
Por mais instigante que seja na teoria, flagrante é o risco de se conferir maior autonomia em<br />
troca de maiores responsabilidades, no mesmo contexto em que os mecanismos normativos de<br />
controle seguem sendo demasiadamente frágeis para conseguir dar conta das garantias de que a<br />
Administração não disporá do interesse público em benefício privado.<br />
Para ficar apenas na menor das questões, retome-se, por exemplo, a confiança cega<br />
depositada nos agentes não-estatais e de mercado para gerir searas de relevante interesse social<br />
(vide questão das organizações sociais), em que a participação do Estado é exigida<br />
constitucionalmente, mas que, para o PDRAE (1995), haverá de ser transferida para ser melhor<br />
(leia-se mais eficientemente) administrada.<br />
Serão os agentes privados, ainda que organizados associativamente, capazes de imprimir<br />
maior caráter público à sua gestão do que o próprio Estado? Aliás, o “mais eficiente” diz sempre a<br />
respeito do que é de maior interesse público? Qual é a garantia político-jurídica objetiva de que<br />
esses agentes privados não se perderão em interesses pessoais ou corporativos ou de que<br />
respeitarão, de fato, minimamente direitos como o tratamento isonômico na contratação com verbas<br />
públicas e outras questões?<br />
Resgatando especificamente a questão das organizações sociais, tem-se, segundo Ramos<br />
(1997), que<br />
“Uma condição importante, portanto, é que a instância de controle social seja escolhida<br />
de forma independente, e sem a participação da administração (ou seja, da burocracia<br />
supervisada). Esse é um ponto ainda não totalmente esclarecido, por exemplo, na proposta do<br />
Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, no tocante aos contratos de gestão a serem<br />
selados com as Agências Executivas e Organizações Sociais. Eventualmente, pode ser que o<br />
conjunto de representantes da sociedade civil que preenche estas condições seja um conjunto vazio.<br />
Em todo caso, a questão do controle social é uma questão de aprendizado, e sempre há um custo<br />
associado ao aprendizado (que é o custo de errar). A sociedade deve decidir, portanto, se está<br />
disposta a pagar o preço desse aprendizado.” (1997, p. 92-93, grifos nossos)<br />
Ora, é indubitável a necessidade de haver referido controle social 27 , problema passa a ser a<br />
forma como ele será feito e em que medida tal controle poderá determinar, por exemplo, a<br />
desqualificação de uma O.S., ou, em que medida os usuários serão ouvidos 28 em suas reclamações e<br />
respeitados em seus direitos 29 .<br />
Também cabe perguntar se serão necessárias novas regulamentações para delinear, em termos<br />
de competência e de implicações, o que se pode entender, na prática, por controle social (ou<br />
público) das atividades desempenhadas pelas organizações sociais – que, nas palavras de Freitas<br />
(1998), estarão prestando “serviços de relevância pública”.<br />
Por outro lado, trazendo de volta a análise de Przeworski (1998) e O’Donnell (1998), a<br />
sociedade exerceria também uma outra espécie de controle, só que indireto e mais genérico, qual<br />
seja: na medida que os cidadãos pressionam os políticos eleitoralmente a cumprir os interesses<br />
públicos, os governos devem pressionar para que os contratos de gestão assinados em nome de tais<br />
interesses sejam cumpridos à risca. O controle político configurado pelos resultados eleitorais seria,<br />
então, uma forma de os cidadãos expressarem seu descontentamento com a linha de ação<br />
27<br />
Melhor seria dizer societal, societário ou público mesmo, para não conflitar com a noção durkheimiana de<br />
“controle social”.<br />
28<br />
Há a proposta de algumas correntes da doutrina de se adotar no Brasil a figura do “ombudsman”, no<br />
tocante à relação entre usuário e prestador dos serviços sociais. O “ombudsman” seria justamente um ouvidor<br />
capacitado a admitir as críticas da sociedade e repassá-las para a organização, tendo em vista que se pretende<br />
a constante melhoria do serviço (eficiência) atrelada à satisfação do cidadão. Seria uma forma de controle<br />
mais direta e efetiva se o “ombudsman” realmente tiver poderes para influenciar processos e práticas<br />
administrativas que geram descontentamento nos usuários.<br />
29<br />
A defesa do usuário, no Brasil, sempre foi considerada um diálogo de surdos para Mello (1999).<br />
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governamental em todos os níveis.<br />
Considerando sob a ótica da relação agent x principal, tem-se que,<br />
“Mais especificamente, os políticos devem usar a informação privada que os cidadãos têm<br />
sobre o funcionamento da burocracia para monitorar os burocratas, e os cidadãos devem ser capazes<br />
de saber quem é o responsável pelo que, e de aplicar, em cada caso, a sanção apropriada, para que<br />
os governos com bom desempenho continuem no poder e para que os demais sejam alijados.”<br />
(1998, p. 40)<br />
O controle estatal a ser exercido sobre as organizações sociais, a partir da análise de<br />
Przeworski (1998), se aproxima bastante do controle que o governo exerce sobre os burocratas,<br />
ainda que elas sejam tidas por meros “entes de colaboração com o Estado” (Santos & Pedrosa,<br />
1998) e ainda que não se possa dizer que elas executem serviços públicos delegados pelo Poder<br />
Público, porque ambos (burocratas e O.S.) são “agentes” do Estado, que, por sua vez, é “agente” da<br />
sociedade como um todo.<br />
Continuando a questionar, para além da problemática inerente ao instituto das organizações<br />
sociais – que será retomada mais de perto no tópico sobre a proposta de “contratos de gestão” –, não<br />
há como deixar de criticar a perspectiva de “cidadãos-clientes” a controlarem a atuação do Estado<br />
como se em uma mera relação competitiva/ privada de prestação de serviços estivessem.<br />
A se tratar o cidadão simplesmente desta forma, estar-se-ia incorrendo na mesma redução<br />
fatalmente prejudicial à própria cidadania já denunciada por Habermas, quando de sua crítica à<br />
relação paternalística travada entre Estado e sociedade no Welfare State.<br />
Obviamente, resultados são importantes, mas não bastam. Cidadãos devem também<br />
incorporar o grau de exigência que o mercado ensina a manejar, mas não é só de interfaces<br />
econômico-competitivas que se compõem o feixe de situações e direitos de cidadania. (Boaventura<br />
Santos, 1998)<br />
Mesmo porque ao ser meramente cliente do Estado, o indivíduo acaba renunciando à<br />
fundação política daquele. Acaba renunciando à condição que lhe conferiria um papel muito mais<br />
denso (o de vontade criadora do Estado) capaz de instaurar uma relação de prestação de<br />
contas/cobrança – anterior à de mercado – que passa pela própria legitimidade e razão de ser do<br />
Estado.<br />
Ora, é justamente nesse sinuoso tema da prestação de contas e da conformação de maior<br />
cidadania que a proposta atraente (verdadeiro canto de sereia) da “Administração Pública gerencial”<br />
mostra o seu lado mais perigoso, qual seja, o risco de atentar contra as primárias, mas fundamentais<br />
bases do Estado (Democrático) de Direito. Daí a necessidade do haver amarras constitucionais, para<br />
elevar o aprendizado democrático possível no Brasil. (Vieira, 1997; Arato, 1997)<br />
Noutra linha de questões também pertinentes aqui, paradoxal há de parecer o fato de que se<br />
tem buscado suplantar o modelo burocrático justamente onde ele é imprescindível a qualquer<br />
administração moderna: racionalidade e norma (Olavo Brasil Jr., 1998, p. 19). Mas, na prática, é<br />
possível gerar uma nova administração sem padrões mínimos de operações que processem meios<br />
para atingir determinados fins e sem uma organização interna que respeite o andamento de tais<br />
operações e processos? Quanto mais, então, no setor público brasileiro, em que foi a reforma<br />
burocrática (Dec.-Lei 200/67) a maior conformadora de legalidade e de aprimoramento em relação<br />
às práticas (que ainda hoje persistem) patrimonialistas?<br />
Em não se dependendo da confiança na boa-fé e no civismo dos gestores públicos, realmente<br />
é ilusório crer ser possível, no Brasil, conferir-lhes autonomia e cobrar-lhes metas de desempenho<br />
somente, sem se dar conta da franca possibilidade de acabar ocorrendo uma espécie de<br />
“maquiavelismo” gerencial, capaz de colocar em xeque a própria ordem constitucional, com o<br />
beneplácito da alta administração do Estado.<br />
Ou se incrementa transparência democrática em todo o processo e também se pressiona pela<br />
obtenção de resultados, ou se estará precarizando os parcos mecanismos de controle existentes.<br />
Dada a insuficiência do controle de processos e os riscos do mero controle de resultados,<br />
deve haver a democrática possibilidade de responsabilizar/ controlar a qualquer tempo o gestor da<br />
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coisa pública, forçando-o a agir com um mínimo de coerência política. Pois, como Stark & Bruszt<br />
(1998, p. 27) visualizaram na Alemanha e na República Theca,<br />
“trazer a sociedade de volta à política no momento da formulação da política significou que<br />
os administradores públicos não confrontaram a sociedade apenas no momento da implementação<br />
das políticas. Ao contrário as discussões aumentaram a compreensão dos formuladores das decisões,<br />
provendo informações críticas que os ajudaram a antecipar conseqüências econômicas, políticas e<br />
sociais futuras de suas ações. A responsabilidade política estendida, portanto, estendeu o horizonte<br />
temporal dos atores estatais chave, corrigindo erros de cálculo de antemão e os encorajando a<br />
pensar vários passos à frente nos jogos estratégicos da política de reformas. Como as deliberações<br />
os forçaram a ser mais responsáveis ex ante, as linhas de política pública resultantes já estavam<br />
delineadas de forma coesa e coerente, o que facilitou respostas rápidas e adaptações responsáveis<br />
com a alteração das circunstâncias.”<br />
De todo o exposto até agora sobre a reforma do Estado em curso no Brasil e suas<br />
possibilidades de, efetivamente, melhorar a atuação da Administração Pública nacional, pode-se<br />
inferir, em sede de primária conclusão, que é a questão da prestação de contas o seu maior núcleo<br />
frágil. Note-se que não se fala aqui apenas em uma prestação de contas de resultados, mas de um<br />
regular cumprimento da ordem democrática, compreendido na noção mesma de accountability, tão<br />
pouco difundida entre os gestores públicos e os brasileiros como um todo.<br />
Sobressai, desta forma, a questão do controle nos processos de reforma do Estado como uma<br />
problemática central, quiçá fundante da diferença entre as possíveis melhorias rumo a um Estado<br />
mais acessível e eficiente e a completa precarização do feixe de relações Estado-sociedade.<br />
4.3.1. Avaliação de Desempenho de Servidores<br />
Em resposta à pergunta sobre quem iria determinar os parâmetros para a avaliação de<br />
desempenho dos servidores, considerando as diversas (e cada qual com suas peculiaridades) tarefas<br />
hoje exercidas pelo Estado, o então ministro do antigo Ministério da Administração Federal e da<br />
Reforma do Estado, Luiz Carlos Bresser Pereira (1998, p. 23), dizia:<br />
“eu acho que esse parâmetro é uma coisa consensual. Só se vai demitir alguém se ele for<br />
realmente muito ruim. Quando todo mundo souber que aquele sujeito não serve, que deve estar fora<br />
do serviço público. Senão, ele não vai ser demitido. Só porque um servidor é fraco, tem as suas<br />
limitações, não significa que deva ser demitido. Será melhor treinado, será mais exigido, mas e só.”<br />
Nesta paradigmática fala, há dois feixes preciosos de problematização necessária acerca da<br />
controversa matéria de relativização da estabilidade do servidor público, com a perspectiva de<br />
dispensa, a partir dos resultados (suficientes ou não) da avaliação de desempenho periódica.<br />
Há que se problematizar, como dito, primeiramente, o fato de que nenhum parâmetro de<br />
desempenho poderá conter meramente uma avaliação subjetiva de se o servidor é ou não “muito<br />
ruim”, sob pena de se estar abrindo uma arbitrária e inconstitucional margem de depredação do<br />
direito do servidor de somente ser exonerado a partir de um devido processo legal. Note-se que daí<br />
para o desvio de poder seria um passo – com a dispensa de servidores estáveis, ao argumento de<br />
insuficiência de desempenho, podendo ter sido, na verdade, por perseguição política.<br />
A propósito, o tema do desvio de poder é algo que merece um maior cuidado. Senão veja-se<br />
que “o desvio de poder, com alheiamento a qualquer finalidade pública, é um vício que encontra<br />
espaço para medrar precisamente quando o agente público está no exercício de competência<br />
discricionária.” Daí que, “uma vez que esta forma de desvio de poder se manifesta através da<br />
intenção viciada, é ela que tem de ser investigada” até judicialmente, se necessário for. (Mello,<br />
2000, p. 63, grifo do original)<br />
Celso Antônio Bandeira de Mello critica o fato de que, no Brasil, inúmeros casos de exercício<br />
de competência discricionária “parecem assentar-se na concepção ingênua (...) de que as<br />
autoridades, sobretudo as investidas em cargos políticos, são como que ‘donos’ dos poderes<br />
públicos enquanto titularizam ditos cargos.” (2000, p. 68, grifo nosso)<br />
É, realmente, um temor a mais a ser considerado quando se pensar sobre de quão imenso<br />
39
XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
poder, então, não se verão investidos prefeitos e dirigentes políticos de toda sorte ao deterem a<br />
prerrogativa de exonerar, a título de “desempenho insuficiente”, servidores concursados e<br />
relativamente estáveis.<br />
Embora nem sempre, no desvio de poder, em conformidade com o aludido professor, haja um<br />
vício de intenção – ocorrendo, por vezes, um erro de direito –, quando, porém, tal vício de intenção<br />
ocorre, é porque o autor do ato tentou sobrepor seu juízo pessoal ao juízo legislativo,<br />
insurgindo-se contra o esquema de garantias do administrado e do servidor,vez que se<br />
rebelando contra os fins e meios prescritos em lei.<br />
Tal fenômeno, para Celso Antônio (2000), representaria uma “evasão à específica finalidade<br />
pública do ato” e, para o pai do autor, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, um “desnaturamento do<br />
instituto jurídico”.<br />
Aqui, na presente questão de como está a se exigir desempenho dos servidores, até mesmo<br />
relativizando o instituto da estabilidade, o maior risco é de que também esteja sendo aberta a<br />
possibilidade de um desvirtuamento em prol das perseguições políticas, do nepotismo e de outras<br />
tantas vaidades subjetivas dos avaliadores, em detrimento dos direitos do servidor.<br />
Voltando propriamente à fala de Bresser Pereira mencionada inicialmente (1998), também<br />
cabe problematizar, em um segundo momento, a interessante perspectiva de incentivar o<br />
treinamento e a profissionalização dos servidores públicos, para, somente a partir de então, passar a<br />
se exigir um nível mais elevado de desempenho. Neste aspecto sim, há de ser aplaudida essa<br />
relevante inovação em relação ao tratamento original da matéria pela Constituição de 88.<br />
Seguindo adiante, tem-se que, tal como feito na discussão sobre as mudanças constitucionais<br />
trazidas pela EC n.º 19/98 no concernente ao controle do endividamento estatal e aos gastos com<br />
folha de pagamentos, será procedida uma minuciosa análise da dimensão de referidas alterações no<br />
tocante a ambos os feixes de problematização supra citados. Senão veja-se, na ordem em que estão<br />
dispostos na própria CR/88:<br />
4.3.1.1. Escolas de Governo<br />
A demanda por escolas de formação e aperfeiçoamento de servidores públicos, no sentido de<br />
conferir maior qualidade na prestação de serviços públicos, com a maior qualificação dos<br />
servidores, reflete um avanço no que se espera de uma Administração Pública mais eficiente, pois<br />
estabelece uma diretriz de resgate do trabalho do servidor, de melhoria na sua formação<br />
profissional, bem como de valorização do servidor que se dispõe a se realizar tais cursos, o que<br />
ocorre em consonância com a previsão de que a participação em cursos de aperfeiçoamento é um<br />
dos requisitos para a promoção na carreira.<br />
Neste sentido, as escolas de governo inserem-se no aparelho estatal como um instrumento de<br />
formação e renovação profissional dos servidores e de valorização de tal esforço. Assim é de tal<br />
forma que foi aberta a possibilidade de convênios e contratos entre os entes federados para que<br />
possa haver um intercâmbio institucional, de modo que os servidores dos mais variados entes<br />
conheçam as experiências da Administração dos outros entes.<br />
Trata-se de uma norma de aplicabilidade imediata e eficácia plena, que se destina aos<br />
governantes de cada ente federado, para que criem, no seio da Administração local, as suas<br />
respectivas escolas de governo.<br />
4.3.1.2. Programas de Treinamento de Servidores e de Modernização Administrativa<br />
Já o art. 39, § 7º trata-se de dispositivo de aplicabilidade imediata e eficácia limitada, vez que<br />
ainda aguarda a existência de lei ordinária posterior, na esfera de competência de cada um dos entes<br />
federativos supra invocados, para que acarrete efeitos de ordem prática, apesar de já atuar como<br />
diretriz básica para o legislador de cada qual de tais esferas.<br />
Tal parágrafo do art. 39 traz um conteúdo mais programático que propriamente um comando<br />
normativo, no sentido de se dar vazão a um processo de reestruturação administrativa, com o<br />
implemento de programas de qualidade e produtividade, treinamento de servidores e modernização<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
da máquina estatal.<br />
4.3.1.3. Dispensa de Servidor Estável por Insuficiência de Desempenho<br />
Após a aquisição da estabilidade, o servidor poderá ser exonerado. Afora os casos de<br />
demissão já conhecidos, a Emenda Constitucional n.º 19/98 incluiu o da avaliação periódica de<br />
desempenho, na forma de lei complementar (art. 41, §1º, III).<br />
Esta lei complementar explicitará a maneira pela qual será realizada a avaliação, e também o<br />
período no qual será obrigatória. Se se provar não estar satisfatória a conduta do servidor (no<br />
sentido de não ser eficiente – art. 37, caput), perderá o cargo. Mas o art. 247, com a redação dada<br />
pela Emenda, quanto ao servidor que atue em atividade exclusiva de Estado, determina o<br />
estabelecimento de critérios e garantias especiais para a perda do cargo, a ser efetivado pela lei<br />
complementar já referida.<br />
A inserção dessa hipótese de desligamento do funcionário estável, na lição de Luciano Ferraz<br />
(1999), coaduna-se com a inclusão, no art. 37, caput, também por intermédio da EC n.º 19/98, do<br />
princípio da eficiência, que corrobora com a tendência do governo de rotular o serviço público<br />
como ineficiente e, via de conseqüência, dotar a Administração de instrumentos para a suposta<br />
transformação dessa realidade.<br />
Por se tratar de dispositivo de eficácia reduzida ou limitada, na estrita noção de Crisafulli,<br />
dependerá de lei complementar para ter eficácia, a qual deverá estabelecer critérios objetivos para a<br />
mensuração da eficiência de cada servidor, bem como a periodicidade em que se dará a avaliação.<br />
Os funcionários que, porventura, sejam cotados ao desligamento terão a possibilidade de<br />
apresentar defesa administrativa e, em caso de nulidade, poderão pleitear a reintegração judicial.<br />
4.3.1.4. Aquisição de Estabilidade<br />
A EC n.º 19/98, em dispositivo ainda carecedor de lei complementar definidora do processo<br />
de avaliação periódica de desempenho, nos termos do art. 39, §1º, III, submeteu a aquisição da<br />
estabilidade a uma condição, assim a obrigatória avaliação especial de desempenho por comissão<br />
instituída para essa finalidade, considerando não mais o prazo de dois anos, mas, sim, o de três<br />
anos.<br />
Diferentemente do que acontecia sob o regime constitucional original, em que a estabilidade,<br />
na prática, era adquirida pelo mero decurso do período de estágio probatório, apesar de necessário<br />
algum nível de avaliação; o servidor, agora, aprovado em concurso público, não mais se torna<br />
estável por inércia. Depende da avaliação obrigatória do seu desempenho. Isto significa, segundo<br />
nos informa Carlos Alberto Menezes Direito (1998), que o simples decurso do tempo não basta para<br />
que o servidor adquira a estabilidade. Assim ocorre porque o texto constitucional dado pela Emenda<br />
determina que a condição para a aquisição da estabilidade, ademais do prazo de três anos, é a<br />
avaliação especial de desempenho na forma do art. 41, §4º.<br />
4.3.2. Controle dos Resultados de Gestões: Particularidades e Riscos no Caso das<br />
Organizações Sociais<br />
Se é possível dizer que há um instrumento crucial (mais determinante que qualquer outro) a<br />
conferir autonomia aos gestores públicos, para consecução de metas de maior responsabilidade –<br />
entre e em qualquer dos setores do Estado arrolados pelo PDRAE (1995) – , eis que tal “pedra<br />
angular” seria o contrato de gestão.<br />
Por partes, começando pelo que é e donde veio, nos termos de Lima (1996), o contrato de<br />
gestão,<br />
“(...) conforme vem sendo denominado no Brasil, tem sua origem na França no final da<br />
década de 60, onde é conhecido como contrato de plano, quando aplicado a empresas públicas, e<br />
como contrato de serviços, quando aplicado a órgãos de administração pública não-empresarial<br />
(equivalente à administração direta, autárquica e fundacional brasileira). Consiste no<br />
estabelecimento periódico e sistemático de compromissos negociados e acordados entre o nível<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
local e o central acerca dos objetivos e metas para um dado período de gestão, com o intuito de<br />
induzir a uma maior participação e co-responsabilização na operacionalização dos referidos<br />
objetivos e metas em cada período. Em contrapartida, o nível central concede ao nível local maior<br />
autonomia gerencial, liberando-o do controle de meios, que passa a ser realizado somente sobre os<br />
resultados alcançados.” (1996, p. 130, grifos nossos)<br />
Quanto ao questionamento a respeito de ser o contrato de gestão uma “expressão nova no<br />
direito positivo brasileiro” (Santos & Pedrosa, 1998, p. 14), tem-se que, no Brasil, segundo Mello<br />
(1999), a introdução do contrato de gestão ocorreu no Governo Collor (1990-1992), através do<br />
Decreto n.º 137, de 27.5.91 (ato infralegal), que estabelecia a previsão de serem travados contratos<br />
de gestão entre o Poder Público e empresas estatais, o que abriu margem para que fossem feitos os<br />
primeiros contratos de gestão com a Petrobrás e com a Cia. Vale do Rio Doce. Já a primeira lei a<br />
tratar sobre o tema foi a Lei n.º 8.246, de 22.10.91 (ainda no Governo Collor), que autoriza o Poder<br />
Executivo a instituir o “Serviço Social Autônomo Associação das Pioneiras Sociais” e com ele<br />
travar contrato de gestão, “sem esclarecer o que se entenderia como tal”. (Mello, 1999, p. 146)<br />
A Emenda Constitucional nº. 19/98, para viabilizar a utilização de contratos de gestão por<br />
entidades da Administração Direta e Indireta, introduziu no art. 37 da Constituição da República de<br />
88 o § 8º, o qual apesar de, segundo Di Pietro (1999), não mencionar diretamente tal contrato,<br />
referiu-se a ele.<br />
Para Mello, “antes da possibilidade que lhes veio a ser aberta pela Emenda Constitucional n.<br />
19 e da lei que disciplinará a matéria, os “contratos de gestão” travados com pessoas da<br />
Administração Indireta, do ponto de vista jurídico, ou não existem ou, se existirem, são inválidos”<br />
(1999, p. 150).<br />
Apesar de vários decretos e leis citarem o contrato de gestão, mesmo dando-lhe bastante<br />
destaque, não existe ainda, segundo Mello (1999, p. 143), “definição legal genérica para identificar<br />
o que se pretenda abranger sob tal nomen juris”, sendo que “há, apenas, um conceito legalmente<br />
formulado para o contrato de gestão que o Poder Público trave com as organizações sociais”.<br />
O tratamento feito sobre o tema pela Lei n.º 9.637/98 perpassa desde uma conceituação<br />
específica (art. 5º), até a previsão (art. 6º) da forma como será elaborado e da matéria básica que<br />
deverá discriminar (“atribuições, responsabilidades e obrigações do Poder Público e da organização<br />
social”), bem como (art. 7º) trata da necessidade de que o contrato de gestão observe determinados<br />
princípios constitucionais essenciais (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e<br />
economicidade) e alguns preceitos específicos (inc. I: programa de trabalho proposto pela<br />
organização social, a estipulação de metas e respectivos prazos de execução, além da previsão<br />
expressa dos critérios objetivos de avaliação de desempenho, mediante indicadores de qualidade e<br />
produtividade; e inc. II: limites e critérios para despesa com remuneração).<br />
Para os efeitos da Lei das O.S.(o que delimita a especificidade da conceituação elaborada),<br />
seria contrato de gestão “o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada<br />
como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e<br />
execução de atividades relativas às áreas relacionadas no artigo 1º”, a saber, das atividades<br />
concernentes às áreas de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção do<br />
meio ambiente, cultura e saúde. (art. 5º)<br />
A definição legal acima citada não apresenta nenhum esclarecimento específico, tendo sido<br />
considerada por Mello (1999, p. 144) “lamentável do ponto de vista técnico” e “altamente<br />
imprecisa, pois não esclarece o que deverá ser entendido por “parceria”, expressão extremamente<br />
vaga e que serve para abranger quaisquer formas de colaboração entre o Poder Público e terceiro na<br />
realização de algum empreendimento”. A única elucidação a ser considerada, segundo o referido<br />
autor, é a delimitação do objeto de tal contrato com as O.S. às áreas de atuação supracitadas.<br />
Basicamente, os requisitos estabelecidos na Lei das O.S. para a qualificação de entidade<br />
como tal e para a celebração, propriamente dita, do contrato de gestão, são o registro do ato<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
constitutivo com uma série de elementos (nove alíneas ao todo 30 ) ali constantes e a “aprovação,<br />
quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social, do Ministro<br />
ou titular de órgão supervisor da área de atividade correspondente ao seu objeto social e do<br />
Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado” (inc. II do art. 2º).<br />
A maior problemática da qualificação, e consequentemente da celebração do contrato de<br />
gestão, como foi proposta na lei é justamente o nível de discricionariedade excessiva conferida ao<br />
Poder Executivo, ao qual compete a “aprovação, quanto à avaliação da conveniência e da<br />
oportunidade” na qualificação da entidade como O.S.<br />
Sob este foco, há que se ressaltar o grande risco, o “perigoso excesso de submissão a<br />
parâmetros políticos” (Freitas, 1998, p. 100), a dependência de “decisão (inteiramente livre)”<br />
(Mello, 1999, p. 155) de alguns Ministros de Estado, dentre várias outras críticas da doutrina, já<br />
esboçadas anteriormente no art.10, em relação ao preceito de que “o Poder Executivo poderá<br />
qualificar como organizações sociais...”<br />
Aberto esse espaço politicamente inseguro, unilateral, pouco controlável e bastante subjetivo,<br />
as organizações sociais passam a ser, portanto, instrumento e alvo da completa discricionariedade<br />
do governo, quanto à escolha e definição de quais instituições assim serão classificadas.<br />
Ainda neste sentido, tem-se que a Lei n.º 9.637/98 não exige idoneidade financeira, técnica<br />
ou qualificação a priori (não há um processo criterioso de análise prévia), porque basta ser pessoa<br />
jurídica de direito privado sem fins lucrativos, “contanto que a pessoa atenda a determinados<br />
requisitos formais óbvios e alguns poucos requisitos substanciais” (Mello, 1999, p. 155) e que seja<br />
“agraciada” pela aprovação discricionária do Executivo.<br />
Mais problemático ainda é que a Lei das O.S. não requer nem mesmo a comprovação de<br />
patrimônio, havendo o risco/ possibilidade de uma entidade-“fantasma” vir a pleitear e mesmo<br />
conseguir a qualificação como organização social, chegando, por tabela, a realizar o contrato de<br />
gestão com o Poder Público, e, a partir de então, recebendo verbas, patrimônio e servidores públicos<br />
cedidos às expensas do Tesouro.<br />
O despropósito e a amplitude dessa gama de problemas na Lei n.º 9.637/98 são, na análise de<br />
Mello sobre as várias inconstitucionalidades presentes nela, tratados com a devida indignação:<br />
“Enquanto para travar com o Poder Público relações contratuais singelas (como um contrato<br />
de prestação de serviços ou de execução de obras) o pretendente é obrigado a minuciosas<br />
demonstrações de aptidão, inversamente, não se faz exigência de capital mínimo nem demonstração<br />
de qualquer suficiência técnica para que um interessado receba bens públicos, móveis ou imóveis,<br />
verbas públicas e servidores públicos custeados pelo Estado...” (1999, p. 157-158)<br />
Mais que isso, segundo o referido autor, o fato de ser considerada bastante para a qualificação<br />
“a simples aquiescência de dois Ministros de Estado ou, conforme o caso, de um Ministro e de um<br />
supervisor da área correspondente à atividade exercida pela pessoa postulante ao qualificativo de<br />
‘organização social’”, trata-se de “outorga de uma discricionariedade literalmente inconcebível,<br />
até mesmo escandalosa, por sua desmedida amplitude, e que permitirá favorecimentos de toda<br />
30 Sinteticamente, o ato constitutivo registrado, para ter validade como requisito à aquisição da qualificação<br />
como O.S., deve dispor sobre: a) natureza social de seus objetivos em conformidade com a área de atuação;<br />
b) finalidade não-lucrativa (obrigatoriedade de investir seus excedentes financeiros em prol da própria<br />
atividade); c) conselho de administração e diretoria definidos nos termos do estatuto, sendo que a composição<br />
e atribuições normativas e de controle básicas daquele se encontram asseguradas na própria Lei n.º 9.637/98;<br />
d) participação no conselho de administração de representantes do Poder Público e de membros da<br />
comunidade; e) composição e atribuições da diretoria; f) obrigatoriedade de publicação anual no D.O.U. dos<br />
relatórios financeiros e do relatório de execução do contrato de gestão; g) no caso de associação civil, a<br />
aceitação de novos associados, na forma do estatuto; h) proibição de distribuição de bens ou de parcela do<br />
patrimônio líquido e i) incorporação integral de tudo que lhe tiver sido destinado, bem como dos seus<br />
excedentes financeiros, em caso de extinção ou desqualificação, ao patrimônio de outra organização social da<br />
mesma área de atuação, ou ao patrimônio dos entes da Federação na proporção dos recursos e bens por eles<br />
alocados.<br />
43
XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
espécie”. (1999, p. 158, grifos nossos)<br />
A partir deste ponto, portanto, faz-se necessário questionar a necessidade ou não (?) de<br />
processo licitatório, em face do risco de se estar ferindo o princípio constitucional de tratamento<br />
isonômico (art. 5º, CR/88).<br />
Enquanto para Santos & Pedrosa, “o que poderá determinar a dispensa de licitação será a<br />
especificidade do objeto e da finalidade” do contrato de gestão (1998, p. 15), para Mello, “a<br />
ausência de licitação é uma exceção que só pode ter lugar nos casos em que razões de indiscutível<br />
tomo a justifiquem, até porque, como é óbvio, a ser de outra sorte, agravar-se-ia o referido princípio<br />
constitucional da isonomia 31 ”.<br />
Ora, a abordagem de Mello vai ainda mais longe, quando considera que<br />
“(...) é inconstitucional a disposição do art. 24, XXIV, da lei de licitações (Lei 8.666, de<br />
21.6.93) ao liberar de licitação os contratos entre o Estado e as organizações sociais 32 , pois tal<br />
contrato é o que ensancha a livre atribuição deste qualificativo a entidades privadas, com as<br />
correlatas vantagens; inclusive a de receber bens públicos em permissão de uso sem prévia licitação.<br />
(...) A ausência de critérios mínimos que a racionalidade impõe no caso e a outorga de tal nível de<br />
discrição não são constitucionalmente toleráveis, seja pela ofensa ao cânone básico da igualdade,<br />
seja por desacato ao princípio da razoabilidade...” (1999, p. 158, grifo nosso)<br />
Há que se questionar, por outro lado, a validade do argumento de Freitas (1998) sobre o fato<br />
de a discricionariedade, ao longo da Lei n.º 9.637/98, não se restringir ao processo de qualificação<br />
como O.S., na medida que, para o referido autor, ela perpassa também todo o preceito acerca da<br />
desqualificação; discricionariedade que, nos termos do art. 16, se encontra expressa no fato de que<br />
“o Poder Executivo poderá proceder à desqualificação da entidade como organização social,<br />
quando constatado o descumprimento das disposições contidas no contrato de gestão.”<br />
Constatado o descumprimento do contrato de gestão, para Freitas,<br />
“(...) mostra-se incontornável dever – nunca uma mera faculdade –, efetuar a<br />
desqualificação, revelando-se manifesto o lapso na opção efetuada pelo legislador, que preferiu,<br />
no ponto, uma politização exacerbada do regime de tais organizações, quiçá visando a acelerar<br />
o processo de privatização, paradoxalmente publicizando uma parcela do terceiro setor...”<br />
(1998, p. 100, grifos nossos)<br />
Em termos de hermenêutica jurídica, considerando que, a declarar a inconstitucionalidade de<br />
uma norma, é preferível avaliar profundamente o significado interpretativo que ela traz à luz dos<br />
princípios constitucionais, faz-se necessário ressaltar que o cuidado de Freitas (1998) com o<br />
“poderá” do art. 16 da Lei n.º 9.637/98 é excessivo.<br />
Constitui-se tal argumento excessivo, tendo em vista que não há que se entender o dispositivo<br />
legal literalmente, mas aplicar, como é feita com várias outras disposições legais, o “poderá” com o<br />
sentido de “deverá”, justamente pelos mesmos argumentos do autor, supracitados, de adaptação e<br />
conformidade com o ordenamento jurídico (haja vista a necessária obediência aos parâmetros<br />
constitucionais), os quais ele levanta para defender a tese de inconstitucionalidade presente na<br />
faculdade “arbitrária” do processo de desqualificação das O.S. conferida ao governo federal.<br />
Não cabe faculdade ao Poder Executivo na desqualificação e é necessariamente porque a<br />
31 Antes de traçar aquela análise aqui citada, Mello considerava o grau de discricionariedade exacerbado do<br />
inciso II do art. 2º, da Lei n.º 9.637/98 “uma inconstitucionalidade manifesta”, que afronta o princípio<br />
constitucional da licitação (art. 37, XXI) e, consequentemente, o princípio constitucional da isonomia (art.<br />
5º), “do qual a licitação é simples manifestação punctual, conquanto abrangente também de outro propósito (a<br />
busca do melhor negócio).”(1999, p. 158)<br />
32 “A Lei n. 9.648, de 27-5-98, que alterou a Lei n.8.666, de 21-6-93 (lei de licitações e contratos),<br />
privilegiou as organizações sociais ao prever, entre as hipóteses de dispensa de licitação, a “celebração de<br />
contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas<br />
de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão” (art. 24, XXIV).” (Di Pietro, 1999, p. 312,<br />
grifo nosso)<br />
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desqualificação se torna um “incontornável dever” no caso de descumprimento do estabelecido no<br />
contrato de gestão, que o “poderá” só tem sentido, em termos de valor jurídico em face do<br />
ordenamento, na condição de “deverá”, sob pena de se estar, contrariada essa via de análise,<br />
efetivamente criando, então, espaço para uma inconstitucional arbitrariedade.<br />
O risco de se abrir margem à privatização, apesar do discurso publicizante, reside em vários<br />
âmbitos de indefinição deixados em aberto pela Lei n.º 9.637/98: é clara, neste sentido, a<br />
problemática da discricionariedade na qualificação e na consequente celebração de um contrato de<br />
gestão, instrumentalizadas política e legalmente para o Poder Executivo à revelia da sua<br />
conformidade com a Constituição; donde Freitas (1998) reclamar, como já citado anteriormente, por<br />
um “indispensável aperfeiçoamento do modelo federal”.<br />
Politicamente, o custo de se conferir tamanha discricionariedade na qualificação como<br />
organização social e no contrato de gestão daí decorrente é justamente a possibilidade de perda da<br />
legitimidade de tais processos junto a toda a sociedade. Ou seja, a possibilidade de perder a sua<br />
própria razão de existir, que é a de estabelecer uma efetiva e mais democrática “parceria” entre<br />
Estado e sociedade.<br />
Se são deficitárias tanto a definição legal sobre as O.S. quanto a do contrato de gestão, há que<br />
se buscar, noutro sentido, o significado adquirido por este em face daquelas junto às concepções<br />
que o envolvem em uma dimensão mais ampla que qualquer delimitação do seu conceito<br />
estabelecido ou não legalmente.<br />
Ora, diante da segmentação do Estado concebida a partir do PDRAE (1995), o contrato de<br />
gestão foi conformado como o instrumento de comunicação entre os setores do Estado, mecanismo<br />
que, além de vincular o diálogo institucional, também se propõe a outorgar maior autonomia<br />
gerencial, administrativa e financeira ao “contratado” (Mello, 1999, p. 146), bem como “lhe<br />
assegurar a regularidade das transferências financeiras previstas em contrapartida da obrigação, que<br />
este assume, de cumprir metas expressivas de maior eficiência”.<br />
Visto que maior autonomia em troca de esforço por melhores resultados e maior eficiência<br />
não chega a conformar a necessidade de um contrato em si, cabe aqui questionar a perspectiva de<br />
estarem ambos, Estado e “contratado” – seja este uma organização social, uma agência executiva,<br />
uma agência reguladora, uma universidade em busca de autonomia ou qualquer outra hipótese<br />
abrangente que o Executivo entender cabível – envolvidos com o mesmo compromisso.<br />
Obviamente, “no plano jurídico, importa esclarecer se o contrato de gestão é instrumento<br />
capaz de criar um vínculo obrigacional típico dos contratos, ou se ele se caracteriza apenas como<br />
um protocolo de intenções, como um acordo de mútua colaboração, ou seja como um convênio”<br />
(Santos & Pedrosa, 1998, p. 14).<br />
Formalmente falando, contrato de gestão não é contrato, é acordo e se aproxima muito mais<br />
da figura do convênio que da figura daqueloutro, porque, em termos de distinção, o contrato<br />
engloba duas ou mais vontades distintas que se colocam em pólos opostos na relação jurídica, à<br />
espera de um resultado jurídico que faça convergir seus interesses, sem, no entanto, representar um<br />
direcionamento comum; enquanto, no convênio, “deseja-se alcançar objetivos institucionais<br />
comuns, sem se cogitar de remuneração ou preço” (Santos & Pedrosa, 1998, p. 14).<br />
Diante das dúvidas e questionamentos a respeito da natureza jurídica do contrato de gestão, a<br />
via argumentativa presente no discurso do governo constrói a possibilidade de uma figura diversa<br />
tanto do contrato (em termos formais estritos), quanto do convênio, a saber:<br />
“O contrato de gestão não tem natureza de convênio nem de contrato administrativo. É muito<br />
mais um termo no qual a entidade matriz estabelece responsabilidades assumidas pela entidade que<br />
recebe o recurso e que se presta a determinados comportamentos. É um instrumento jurídico<br />
muito parecido com o termo assunção de responsabilidades recíprocas, porque, no contrato de<br />
gestão em si, não há repasse de recursos. O repasse de recursos ocorrerá posteriormente, por meio<br />
de dotação orçamentária. Por isso, no contrato de gestão, não há como fazer procedimento<br />
licitatório.” (Anastasia, 1998, p. 24, grifo nosso)<br />
Em grande medida, retomando a linha de questionamentos sequenciais que confrontam o<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
instituto jurídico em si com a gama de problemas e riscos a ele relacionados, há que se colocar em<br />
pauta ainda, por outro lado, o questionamento, no tocante ao contrato de gestão, feito por Freitas<br />
(1998, p. 102) sobre o lapso de tempo entre a qualificação e o estabelecimento desse, visto que, para<br />
o autor em questão, tal contrato “deveria integrar, desde logo, o rol dos requisitos específicos do art.<br />
2º, não se justificando este descompasso temporal, seja por razões operacionais, seja por razões<br />
estratégicas”.<br />
Não se tratando necessariamente de levantar uma falha e continuando a questionar o<br />
significado e a dimensão auferida pelo contrato de gestão para as inúmeras figuras criadas pela atual<br />
“reforma administrativa” brasileira (Mello, 1999), mas já apontando, por exemplo, o risco de as<br />
O.S. não conseguirem se efetivar por completo, tem-se que o contrato de gestão, como<br />
essencialmente forma de controle do Estado, implica mais ônus para as entidades da sociedade civil,<br />
que não estarão auferindo maior autonomia, na mesma medida das maiores imposições<br />
regulamentares e de controle que estarão cumprindo.<br />
Di Pietro (1999, p. 253) considera que “o contrato de gestão, quando celebrado com<br />
entidades da Administração Indireta, tem por objetivo ampliar a sua autonomia; porém, quando<br />
celebrado com organizações sociais, restringe a sua autonomia, pois, embora entidades privadas,<br />
terão que sujeitar-se a exigências contidas no contrato de gestão.”<br />
Tal risco vai de encontro à noção de que o contrato de gestão, além de ser um instrumento de<br />
fomento (e de execução) na prestação de serviços sociais, é também, revisitando a análise da<br />
perspectiva agent x principal de Przeworski (1998), um instrumento fundamental de controle,<br />
havendo mesmo a possibilidade de desqualificação (art. 16) em caso de descumprimento do que<br />
estava previsto no contrato.<br />
Nesta medida, fato é que “o contrato de gestão procura institucionalizar e estabelecer, de<br />
forma contratual, uma relação entre o governo (principal), detentor de um mandato político, e uma<br />
instituição (agent), responsável pela execução de uma determinada política pública” (Silva, 1995, p.<br />
62).<br />
Ora, o que se questionou até agora a respeito do contrato de gestão, desde a má elaboração de<br />
seu conceito, a perspectiva do que está previsto no âmbito das organizações sociais, a dimensão e<br />
natureza jurídica de tal vínculo entre Estado e entidade “contratada”, bem como os riscos e falhas<br />
em sentido abrangente, está colocado sob o prisma do questionamento maior de como o Estado está<br />
a passar a administração (não se fala aqui de transferência de propriedade) de áreas de “relevância<br />
pública”, elegendo “agentes” privados (ainda que sem fins lucrativos) para desempenhar o que, até<br />
o delinear da crise que deu ensejo ao discurso da reforma do Estado, era desenvolvido por ele<br />
mesmo.<br />
Como se transfere a prestação de serviços sociais, tomando como moeda de troca autonomia<br />
por eficiência? Como garantir que a autonomia conferida será “maximizada” para a cidadania, se os<br />
resultados controlados a posteriori importam maior confiança em quem está sendo “agente”, o que<br />
deverá ocorrer simultaneamente com um grau de responsabilização maior? Novamente ressurge a<br />
problemática de um controle mais democrático e mais efetivo e, se possível, institucionalizado.<br />
(Przeworski, 1998; O’Donnell, 1998; Cunill, 2000; Stark & Bruszt, 1998)<br />
Responsabilizar cada vez mais apenas para o cumprimento de metas de desempenho e de<br />
eficiência, ou para o respeito aos direitos do cidadão? Ou, em outras palavras, como controlar as<br />
organizações sociais, não só econômica e financeiramente, mas também em termos de promoção de<br />
cidadania?<br />
O desafio não se trata meramente de controlar índices de desempenho e de verificar o nível<br />
de cumprimento de metas ao longo de prazos determinados, mesmo porque não se pode esquecer a<br />
finalidade última de tal prestação de serviços, a saber, o bem-estar da sociedade, que nem sempre<br />
pressupõe “minimização” de custos.<br />
Por mais que a gestão contratada junto à esfera pública não-estatal leve à “otimização” dos<br />
recursos e das oportunidades, não se fomenta educação para que os níveis de repetência caiam<br />
artificialmente; nem para que a produção científica se volte apenas para as demandas do mercado,<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
esquecendo-se da formação do conhecimento basilar; nem tampouco para que a cultura seja incapaz<br />
de sair do círculo daqueles que podem oferecer retorno por ela; nem ainda para que a prestação<br />
pública de saúde passe a mensurar clientes e não mais cidadãos, dentre tantas outras esferas que só<br />
poderiam ser efetivamente públicas e conformadoras de participação social se não fossem vistas sob<br />
a ótica estrita do mercado. O público, seja estatal, seja não-estatal, no referente à políticas sociais,<br />
deve lidar com a perspectiva de investimento a fundo perdido: qualidade de vida de toda uma<br />
sociedade não pode ser restringida a um alvo de obtenção de lucro, sob pena de se chegar ao<br />
extremo da ideologia de que o mercado resolve tudo.<br />
O contrato de gestão, pautado nos princípios da legalidade, da impessoalidade, da<br />
moralidade, da publicidade e da economicidade (art. 7º da Lei n.º 9.637/98), deveria ter como<br />
diretriz última, no controle ali materializado da relação agente x principal entre entidade<br />
qualificada e Estado e entre Estado e sociedade, não o trade off entre eficiência e autonomia, mas o<br />
próprio princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.<br />
Busca-se, aqui, configurar em que medida a “parceria” proposta na reforma estatal sob o<br />
“manto” dos modelos de gestão do mercado (dos quais o contrato de gestão seria o instrumento<br />
mais paradigmático) corresponderia a uma transformação (mais eficiente seria mais pública?) da<br />
própria natureza das entidades que celebrariam um tal contrato. Haveria maior transparência em só<br />
se prestando contas das metas cumpridas ou não?<br />
Controlar uma instituição social pública de ensino superior, por exemplo, remete a bases que<br />
transcendem qualitativamente, em termos de frutos sociais universais, qualquer controle que<br />
priorize, estrito senso, a satisfação do cliente ao menor custo, como se pretende fazer numa<br />
organização social. Marilena Chauí (1999), analisando as transformações referentes à universidade<br />
pública brasileira, questiona que<br />
“(...) os critérios da produtividade são quantidade, tempo e custo, que definirão os contratos<br />
de gestão. Observa-se que a pergunta pela produtividade não indaga: o que se produz, como se<br />
produz, para que se produz ou para quem se produz, mas opera uma inversão tipicamente<br />
ideológica da qualidade em quantidade.” (Grifo nosso)<br />
Neste sentido, seria o contrato de gestão, além de instrumento paradigmático de tal inversão<br />
ideológica, um reflexo mesmo das mudanças ocasionadas por ela.<br />
Como o Estado poderia ser redimensionado em termos de controle qualitativo, em face do seu<br />
significado para a sociedade como agente promotor de, no mínimo, uma democracia que fosse<br />
sendo substantivada progressivamente, trata-se, como já dito em tópicos anteriores, de uma questão<br />
que retoma a própria noção de controle público (accountability) não para a gestão estrita da<br />
eficiência dos serviços prestados, mas de controle como conformador de legitimidade junto aos<br />
cidadãos.<br />
5. Conclusão: pela Imprescindibilidade do Respeito às Garantias Constitucionais<br />
Enquanto a Constituição de 88 e o próprio processo de consolidação democrática, aos<br />
solavancos, sobrevivem e continuam em aberto rumo à meta de construção do Estado Democrático<br />
de Direito brasileiro – e quiçá jamais poderão ser dados por encerrados –, a “reforma<br />
administrativa” do Estado, no Brasil, segue paralelamente, como se independente estivesse daquele<br />
processo maior.<br />
Até mesmo desprestigiando a ordem constitucional, que institucionalizara uma “Nova<br />
República” no país, conclamando-a como um verdadeiro “retrocesso burocrático”, o Plano Diretor<br />
da Reforma do Aparelho do Estado, seis anos já passados do seu advento, atualmente muito pouco<br />
pode comemorar, em termos de avanços na relação Estado-sociedade, acerca do seu modelo de<br />
“Administração Pública gerencial” em 1995 proposto.<br />
As grandes e realmente inovadoras pautas de mudança ao sistema anterior à Emenda<br />
Constitucional n.º 19/98 estão, ainda hoje, a esperar por “leis regulamentadoras”, como, por<br />
exemplo, a questão da dispensa de servidores estáveis por insuficiência de desempenho. (Pereira Jr.,<br />
1999) Ou mesmo apenas não se tornaram práticas cotidianas da Administração Pública brasileira,<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
como o controle de resultados e a consecução de contratos de gestão. Ou, pior, revelaram-se pura e<br />
simplesmente inconstitucionais, como a dispensa de licitação na celebração de determinados<br />
contratos de gestão.<br />
É inegável que tenha havido uma árdua caminhada de convencimento dos parlamentares de<br />
que se precisava mudar ou, pelo menos, emendar a CR/88; contudo, o mesmo não pode ser dito em<br />
relação ao processamento e à legitimação da base de alterações propostas onde ela, de fato, seria,<br />
mais tarde, conduzida cotidiamente.<br />
Vale dizer que, com servidores e administrados, o que houve e ainda persiste é “um diálogo<br />
de surdos”, para tomar a expressão de Mello (1999), no qual aqueles atores sociais ficaram e<br />
continuam sem saber dos rumos estipulados pela alta burocracia reformadora, ressalvadas, é claro,<br />
as situações em que as patentes inconstitucionalidades tiveram que mobilizar muitos para acorrerem<br />
ao Judiciário na defesa de seus direitos.<br />
Ao invés de promover foros mais abertos de participação do cidadão na administração estatal<br />
– como já vem acontecendo, no Brasil, em várias instâncias como os orçamentos participativos, as<br />
audiências públicas e as câmaras de gestão –, para que ela fosse sendo progressivamente<br />
amadurecida junto a uma sociedade cada vez mais complexa e plural; despropositadamente, o que<br />
se buscou, na “reforma administrativa” brasileira foi um recrudescimento da descrença em relação<br />
aos princípios do Estado e da comunidade. (Reis & Cheibub, [s.d.]; Boaventura Santos, 1998)<br />
Diante de uma tal opção clara pela adaptação generalizada dos entes do Estado às práticas<br />
gerenciais – ressalvados apenas o dito núcleo estratégico e o setor de atividades exclusivas –, foram<br />
sendo deixadas em segundo plano questões políticas e sociais de extrema importância, para a<br />
consolidação democrática brasileira, no médio prazo. Se a premissa inicial era conter a explosão de<br />
demandas, hoje o risco é a perda de legitimidade perante poderes paralelos ao Estado que surgem<br />
para dar conta do que este não mais sequer tangencia. (Diniz, 1996)<br />
Ora, tal redução de todo o papel do Estado e da sua lógica de atuação ao modus operandi das<br />
organizações de mercado está a desacreditar, não só a própria Administração, dita em reforma, mas<br />
também o cidadão brasileiro; este, cada vez mais entrincheirado numa linha de exclusão exacerbada<br />
e numa relação com o Estado pautada fundamentalmente pela noção de clientela.<br />
Embora tenha trazido à tona propostas boas e até mesmo necessárias para uma Administração<br />
Pública mais eficiente, mais acessível à coletividade e, por vezes, mais responsiva, a Emenda<br />
Constitucional n.º 19, de 4 de junho de 1998, paradoxalmente ao tentar resolver os males da<br />
administração burocrática, conseguiu agravar os riscos de que os gestores da coisa pública afastem<br />
ainda mais a possibilidade de controle dos cidadãos sobre a tomada de decisões no seio do Estado.<br />
Não houve a extensão da capacidade de responsabilização (accountability), mas apenas a<br />
tentativa de substituição de um modelo mais normativo e, por isso mesmo, mais objetivo (o controle<br />
de processos) por um outro, que, embora mais ágil, deposita confiança e discricionariedade demais<br />
(ênfase no controle de resultados) nos gestores públicos brasileiros – muitos desses ainda<br />
completamente imersos em um cotidiano patrimonialista e atrasado.<br />
Por essa e outras razões, o que mais se tentou priorizar, no presente trabalho, foi a defesa do<br />
respeito às mínimas salvaguardas estatuídas na ordem político-jurídica fundante da democracia<br />
brasileira em que se vive hoje. A CR/88 trata-se de um texto falho, como toda e qualquer obra<br />
humana, fruto de circunstâncias históricas peculiares, já dizia Canotilho (2001), mas também de um<br />
texto indubitavelmente merecedor da alcunha de democrático e, por que não, de cidadão.<br />
A se crer que não só a Administração Pública, mas também o Estado e a Constituição<br />
precisam ser melhorados, que o sejam de uma forma construtiva e participativamente mais<br />
democrática. Daí ser necessário se pensar um agregado de medidas pontuais, porém fecundas que<br />
sejam capazes de instaurar uma reforma pela cidadania e não pela mercantilização ou redução do<br />
papel do Estado.<br />
Nem se diga que tal processo seria possível pelo mero “aditamento” da Constituição através<br />
de Emendas impostas de cima para baixo, ou que ele passaria pela disponibilização aos cidadãos de<br />
um “disque-Estado” para formalmente controlarem a transparência da atuação deste.<br />
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XV Concurso de Ensayos del <strong>CLAD</strong> “Control y Evaluación del Desempeño Gubernamental”. Caracas, 2001<br />
A accountability democrática, de que tanto se falou como sendo uma crucial característica<br />
ainda a ser implementada no Brasil, passa pelo próprio curso a ser seguido pelo Estado que se tem<br />
hoje até o que a Constituição estipulou como devido, qual seja: o que, ao invés de “empreender”<br />
gerencial e unilateralmente cidadania, delibera-a, aberta e amplamente, como agenda mínima de<br />
construção democrática. É este o Estado Democrático de Direito por ser consolidado aqui e a cuja<br />
meta não é dado, a ninguém, furtar-se, sob pena de verdadeira ruptura constitucional.<br />
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