Marisa Valladares - Uninove
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ZONAS DE FRONTEIRAS:<br />
entre escolas e academias, a formação docente...<br />
VALLADARES, <strong>Marisa</strong> Terezinha Rosa<br />
Professora Doutora – UFES – ES<br />
marisavalladares@terra.com.br<br />
Sala de professora – UFES – Entardecer...2007<br />
O dia parecia ter voado. Reorganizei os registros dos estudos em campo. Separei emails.<br />
Coletei, em uma pasta, cópias da legislação do estágio curricular de licenciaturas. Li num<br />
relance o desabafo de uma professora de escola sobre suas condições de trabalho que<br />
dificultam o seu bemfazer docente: a carreira estendida por mudanças na legislação,<br />
mexendo em seus planos de vida e fazendo-a sentir-se lesada em direitos presumidamente<br />
tidos como certos; o salário ruim, a falta de infraestrutura na escola... Fechei a pasta<br />
tentando fechar o assunto, mas a pasta de legislação se abriu e nas anotações sobre o<br />
contexto de reformas educacionais, se destacou, marcado com amarelo vivo: “A expansão<br />
quantitativa do sistema educativo, fenômeno inegável do ensino brasileiro e dos demais<br />
países da América Latina, fez-se à custa do profissional da educação. Os recursos escassos<br />
disponíveis foram partidos e repartidos com salários cada vez mais aviltantes para todo um<br />
conjunto de profissionais que ao longo dos últimos 30 anos, perdeu suas referências, sua<br />
memória, deixou de cultivar sua auto-estima e, pior, transformou-se em objeto de execração<br />
pública, transmitida, inclusive, por programas humorísticos de televisão, de qualidade<br />
altamente questionável.” (GARCIA, 1996, p. 157) Olhei para fora e o entardecer tinha<br />
ficado mais nostálgico. Lembrei-me da professora e do meu imenso cansaço depois de três<br />
turnos de aulas durante tantos anos, nada aliviado agora na universidade. Pela janela, vi<br />
chegando homens e mulheres para as aulas do noturno e voltei ao presente. Estou na<br />
universidade desde cedo. O almoço foi um lanche. O livro que eu queria ler, pedi<br />
emprestado. Olhei as horas. Outra turma de Estágio. Um batom, um perfume. Como arrumei<br />
os papéis, pensei que devia me arrumar também para continuar a vida na pesquisa em zonas<br />
de fronteiras: juntei meu passaporte de migrante híbrida e dei uma mexida em minha mala.<br />
Acomodei desejos de leituras para quando for possível. Inventei espaços para portfólios,<br />
bilhetes, emails; equilibrei um GPS 1 num cantinho para não ficar perdida entre tantas coisas<br />
para aprender; dobrei direitinho um mapa de minha pesquisa, guardando-o no meio do meu<br />
diário; enchi de novo meu cantil de paciência com uma fórmula potente para escuta<br />
sensível... Amarrei firme algumas promessas como mochila, nas costas, para não perder a<br />
noção de seu peso em minha vida. Preparei o despertador para chamadas pontuais: horas<br />
adiantadas para a travessia de amplidões, horas tardias para descansos entre múltiplas<br />
caminhadas. Bem escondido, no meio de tantas coisas recém-(re)arrumadas para a „viagem‟,<br />
guardei um naco grande de coragem, misturada a um bom punhado de esperanças. Achei<br />
(acho) que iria (vou) precisar muito delas...<br />
1 GPS - Global Positioning System (Sistema de Posicionamento Global). Denominação comumente<br />
atribuída a um aparelho que permite indicar a localização precisa de um objeto, de um sujeito ou de um<br />
lugar por meio do sistema que lhe dá o nome.
As redes dos currículosvividos nas zonas de fronteiras, espaçostempos do estágio<br />
curricular da licenciatura, entre escola e academia, são tramadas ao sabor de saberes,<br />
que se tecem com vivências, com práticas, com experiências. Por isto, não escapam de<br />
sua textura, os cotidianos inteiros dos sujeitos praticantes das zonas de fronteiras. Por<br />
isto, nos currículosvividos nas zonas de fronteiras dos espaçostempos desta pesquisa se<br />
incluíram a reflexão e a mirada sobre o dia corrido; minha observação empática e<br />
nostálgica dos estudantes noturnos; meus estudos e registros sobre legislações, bem<br />
como meus esforços em arrumações – pensadas, também, da forma como acontecem<br />
numa dimensão mais ampla, nos arranjos de cenários políticos, econômicos... Na trama<br />
dessas redes me entrelaço com as zonas de fronteiras do estágio curricular de<br />
licenciaturas (ECL) onde sou „catadora‟ e contadora de histórias de escola e de<br />
universidade, em Vitória (Espírito Santo), cidade onde moro e trabalho. Denuncio que<br />
as histórias não respeitam limites de tempo, porque as raízes e os galhos se expandem<br />
para além dos marcos datados, sequer mantém limites geográficos, por isso lançam-se<br />
num mundo uno, ampliado, onde nada é igual, embora tudo seja conectado. As<br />
perguntas que nascem desse imbricamento entre instituições de ensino não<br />
desconhecem suas marcas sobre a formação do professor e das sociedades: Como será o<br />
amanhã de licenciandos? Como tratarão das escolas que não são mais como aquelas em<br />
que estudaram? Como formarão os futuros professores, preparando-os para a<br />
universidade que pouco terá de similar àquela em que estudaram? Quais narrativas<br />
sobre as sociedades serão tecidas por licenciandos e professores tendo os frágeis fios do<br />
hoje tão fugaz? Que histórias estamos trançando e fiando com nossas vidas de<br />
professorar?<br />
Problematizando as zonas de fronteira, resgato alterações que transformaram a<br />
universidade brasileira, interferindo na formação de professores, marcadamente nos<br />
espaçostempos dos ECLs (nas diferentes nominações que recebeu) no decorrer da<br />
história recente das licenciaturas no Brasil, no paralelo da Universidade Federal do<br />
Espírito Santo (UFES) e das escolas parceiras, representantes do universo escolar. Neste<br />
desafio, a tessitura de lembranças de uma história coletiva de professores e de
professoras revela táticas e negociações empreendidas no trabalho pedagógico que se<br />
faz opção de investimento num modo de vida em sociedade.<br />
Essa história coletiva tem no último século como que um sobressalto. Os fios que tecem<br />
e percorrem os acontecimentos têm a dramaticidade da urgência do amanhã hoje ainda,<br />
mas têm também a dinâmica de deslizamento do hoje para o ontem que foi agorinha...<br />
Quem conta bem essa história é Santos (1997), numa narrativa que celebra nossos<br />
espantos, nossas dores e dá chão para as esperanças do que é razão da formação<br />
docente. Como Abrahão (2006) sinaliza, essa é uma narrativa biográfica de todos nós e<br />
de outros que se foram e que virão:<br />
Vivemos num tempo atônito que ao debruçar-se sobre si próprio<br />
descobre que os seus pés são um cruzamento de sombras que vêm do<br />
passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos<br />
deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já<br />
sermos, ora pensamos nunca virmos a ser.[...] E de tal modo é assim<br />
que é possível dizer que em termos científicos vivemos ainda no<br />
século XIX e que o século XX ainda não começou, nem talvez comece<br />
antes de terminar. [..] Por um lado, as potencialidades de tradução<br />
tecnológica dos conhecimentos acumulados fazem-nos crer no limiar<br />
de uma sociedade de comunicação e interactiva libertada das carências<br />
e inseguranças que ainda hoje compõem os dias de muitos de nós: o<br />
século XXI a começar antes de começar. Por outro lado, uma reflexão<br />
cada vez mais aprofundada sobre os limites do rigor científico<br />
combinada com os perigos cada vez mais verossímeis da catástrofe<br />
ecológica ou da guerra nuclear fazem-nos temer que o século XXI<br />
termine antes de começar. (SANTOS, 1997, p. 5-6)<br />
O século que acabou deixou marcas brutais na história humana, sem que os grandiosos<br />
avanços de tecnologia e de ciência pudessem sobrepujar as condições que criam a fome,<br />
a miséria, a dor, a ignorância e a violência entre os povos. Os benefícios do<br />
extraordinário desenvolvimento produtivo se desvanecem ao concentrar, intensamente,<br />
a riqueza de poucos, em detrimento de, numerosamente, muitos... Estas podem parecer<br />
marcas iguais em todos os séculos, mas, neste, parecem ter sido sua peculiaridade e<br />
foram fortes demais...Acentuam limites, abrem e fecham fronteiras com um ímpeto<br />
mais forte, mais evidente...<br />
Muitas alterações legais e muitas tentativas de produção de uma alternativa para cursos<br />
de formação de professores têm sido propostas e efetivadas no rastro de mudanças,<br />
datadas em dois períodos recentes da história brasileira e mundial, com profundas
imbricações entre si: o perturbado período das décadas de 1970-1990 e daí a 2010...<br />
Mas o que aconteceu nesse período tem raízes num tempo anterior. E de lá vem vozes<br />
que narram...<br />
As professoras que se fizeram professoras na faculdade de licenciatura do estado, nas décadas<br />
anteriores aos anos setenta, só puderam ser encontradas como mães, tias ou avós de professoras<br />
e de licenciandos de estágio hoje. Elas disseram das aulas magistrais que “assistiam” na<br />
faculdade e de como era desafiador repeti-las nos concursos para cátedra ou nas “provas” de<br />
final de curso. Falaram com orgulho dessa época, em que era melhor não se envolver<br />
explicitamente com o que se passava num entorno geográfico mais amplo do que a cidade onde<br />
estudavam. A Faculdade era um pequeno palácio, sagrado lugar de saber. As escolas eram o<br />
destino certo para elas, tão especiais quanto a promessa do lar que criavam ou que criariam. A<br />
relação escola e faculdade era hierárquica, o nível “menor” obediente ao nível “maior”. Poucas<br />
e poucos licenciandos fugiam da limitação do conhecimento específico do curso, alçando vôo<br />
em leituras mais complexas do cenário mundial ou nacional. O solene era a marca de registro do<br />
bom professor, da escola possível, da faculdade ideal.<br />
E o que disseram da escola, essas professoras que se tornaram formadoras de<br />
professores?<br />
As crianças eram muito meigas, dedicadas e amavam as professoras. Era difícil ensinar, mas<br />
muito mais fácil dar aulas. A direção das escolas era exigente e isso foi uma grande força para<br />
a formação de nós, professoras que nos tornamos professoras do curso normal: planos bem<br />
feitos, capricho, disciplina, correção no falar e no agir. Postura. Não era igual às professoras<br />
de hoje... Não, o cabelo, a roupa, o sapato, tudo impecável. Nada de folga: seriedade. Isso nos<br />
garantiu escolas bem cuidadas por muito tempo. Ninguém quebrava nada, nem sujava. Gritos e<br />
risadas? No recreio. Na sala era um clima cordial, educadíssimo... As escolas normais<br />
seguiram o modelo. E a universidade, quando nos mandou estagiários, recebeu a mesma lição<br />
de cuidado, seriedade, estudo. (Professora J., aposentada)<br />
Eu não fui professora de escola primária. Só fui professora de ginásio e de ensino médio. Eram<br />
outros tempos. Escolas limpas, inteiras. Alunos educados e submetidos a um sistema escolar<br />
rigoroso, que ensinava também para a vida. Era preciso saber a disciplina lecionada porque<br />
não havia tanto livro, revista, televisão e nem o computador. Era só nosso saber. Então,<br />
ensinávamos para os alunos, para professoras do normal e para os licenciandos da faculdade.<br />
Do mesmo jeito: com disciplina, amor, rigor, seriedade. E eles aprendiam. Como nós<br />
aprendemos. E sabemos. Até hoje. (Professora I., aposentada)<br />
Havia uma clareza nos modos de fazer e uma certeza sobre sua validade que parece não<br />
se apagar “até hoje”. Invejável clareza, talvez deplorável certeza...
Começando nos meados da década de 1960 e ganhando força nos anos de 1970, intensas<br />
mudanças paradigmáticas atingiram desde a maneira de produzir e compreender o<br />
conhecimento, até às formas como a aplicação dele afetavam a vida dos sujeitos sociais:<br />
explosão tecnológica, relações sociais, comportamentos, música, sexualidade,<br />
diferenças... Se a perspectiva crítica avançou como modo de ler o mundo, as exigências<br />
da produção, para enfrentamento da crise capitalista mundial, engendraram<br />
instrumentos para regulação da educação como uma das saídas para criação de um novo<br />
modelo de acumulação e para retomada do crescimento econômico (MAUÉS, 2006;<br />
OLIVEIRA, 2003, 2004).<br />
Os reclamos para a organização educacional, no Brasil, se referem à expansão de<br />
oportunidades de acesso à escola, na tentativa de atendimento às exigências do padrão<br />
de acumulação fordista e às ambições do ideário nacional-desenvolvimentista. No<br />
entendimento de Oliveira,<br />
[...] As reformas educacionais dos anos de 1960, que ampliaram o<br />
acesso à escolaridade, assentavam-se no argumento da educação como<br />
meio mais seguro para a mobilidade social individual ou de grupos.<br />
Apesar de serem orientadas pela necessidade de políticas<br />
redistributivas, essas reformas compreendiam a educação como<br />
mecanismo de redução das desigualdades sociais.[...] (2004, p.1124).<br />
As repercussões da precarização e da proletarização no trabalho docente se esparramam<br />
sobre a formação docente – realizada em instituições acadêmicas ou escolares, como<br />
também nas zonas de fronteiras entre ambas – em redes cujos fios se cruzam na vida<br />
fora e dentro destas instituições...<br />
Eu transitei de escolas polivalentes, tão apreciadas pela ordem e pela profissionalização de<br />
jovens, pela infraestrutura invejável (tinha até pazinha para retirar neve do telhado, numa<br />
clara demonstração de sua „brasilidade‟!!!) e pela capacitação de seu pessoal, inclusive<br />
professores... até a escola sem banheiro, sem giz, sem livro, sem vidro na janela e quase sem<br />
alunos. Eu fui „capacitada‟, com bolsa de estudo, na universidade, em estudo intensivo (o dia<br />
inteiro, a semana de segunda a sábado), com material impresso à disposição, em ensaios de<br />
teoriaprática, com direito a certificado. Eu fui esquecida no meio da multidão de professoras<br />
anônimas sem direito a atenção, a informação, a formação. O Brasil era MEC-USAID. O<br />
Brasil foi „meio-que-usado‟. Pagamentos atrasados por seis meses, correrias entre quatro ou<br />
cinco escolas para fazer salário. Eu fui a favor do programa e do treinamento oferecido. Neles,<br />
aprendi. E (felizmente), desaprend.i Vi(vi) muitas coisas para aprendera aprender, de novo, de<br />
um outro jeito: jeito de buscar nas dobras do que é tecido por muitas mãos, em diferentes<br />
sentidos, nas sociedades... jeito de professora de escola... Lendo, pensando, observando,<br />
conversando... Experimentando. De novo. Mais uma vez. E sempre...
Os padrões de regulação se estruturaram em torno de um tecnicismo pedagógico que,<br />
sob o pretexto de potencializar a ação docente, praticamente a imobilizaram ao sabor<br />
das propostas educacionais ensejadas pelo sistema governamental: currículos prescritos<br />
encharcados de normas, de detalhes, de indicações; planejamentos cercados por<br />
objetivos „tecnicamente‟ corretos e „realisticamente‟ inviáveis; ao invés de notas,<br />
conceitos correspondentes às notas... A despeito disto e, talvez, até por isto, os padrões<br />
de regulação suscitaram outras formas das professoras pensarem e agirem nas escolas e<br />
fora delas. Ainda assim, se alguém avalia o contexto a partir de uma análise da<br />
legislação da época (LDB 4024/61; a Lei 5540/68 e a Lei 5692/71 e respectivos<br />
instrumentos normativos), no que concerne à formação de professores, por certo,<br />
concordará com Alves (1998b, p. 41) que resume e anuncia: “[...] o que se fez, até<br />
agora, quanto à formação de profissionais do ensino, na lei e na legislação ou como se<br />
pode piorar o que já não é bom.” Então vamos juntos: como esses acontecimentos e<br />
legislações se desdobraram na sociedade, atingindo a formação docente?<br />
Proliferaram instituições particulares para formação acadêmica, algumas de qualidade<br />
duvidosa e que gradua(ra)m um enorme contingente de professores; distinguiu-se a<br />
categoria de especialistas da categoria professores, estimulando uma hierarquia de<br />
saberes, fazeres e poderes; promoveu-se a desarticulação dos Cursos Normais, cujos<br />
Institutos de Educação passaram a oferecer cursos profissionalizantes em 130<br />
habilitações, referendadas pelo Parecer 45/72, dentre as quais não constava a habilitação<br />
de Professor; exerceu-se um ferrenho controle sobre as universidades federais, com<br />
restrições à autonomia universitária e com o fechamento das Faculdades de Filosofia,<br />
Ciências e Letras que, em algumas universidades, foram transformadas em Centros ou<br />
Faculdades de Educação. Dentre estes e outros pontos que alimentaram a polêmica<br />
sobre a educação brasileira nos anos seguintes, ainda se destacam sérios prejuízos<br />
causados à formação de professores porque calcada numa escola, num alunado e numa<br />
ação pedagógica genérica e ilusória, desarticulada da realidade onde estavam inseridos<br />
cursos normais ou de licenciatura. (ALVES, 1998a, 1998b; WEBER, 2003; MAUÉS,<br />
2006). Então, como assegura Alves,
Realmente, milagres não aconteceram. O que vimos acontecer no<br />
período pós-64, no que se refere [...] ao setor educacional, excetuando<br />
talvez a pós-graduação, foi a destruição sistemática do que existia e a<br />
tentativa bastante fraca de implantação de modelos precários, de<br />
origem exógena, proclamados como „soluções rápidas e salvadoras,<br />
verdadeiros milagres‟. Com isto, como dissemos antes, foi possível<br />
piorar o que já não era bom. (1998b, p. 44).<br />
Todavia um milagre restou de tal situação – e eu, acredito em milagres. Apesar de todas<br />
as pressões negativas, apesar de todas as dificuldades – e (novamente, uma dúvida<br />
atroz) talvez, até por causa delas - proliferou uma dolorosa, mas teimosa insistência de<br />
reorganização dos docentes em associações, fóruns, seminários... rumo a outra<br />
dimensão em oposição, transgressão, resistência ao quadro descrito, numa lenta<br />
(re)construção de um novo cenário educacional brasileiro.<br />
Fui lecionar numa escola numa cidadezinha de Minas. Fui substituir uma professora que fora<br />
presa “por falar muito numa sala de aula”. Professora de Estudos Sociais, de Moral e Cívica.<br />
Seu nome era Luiza e eu fiquei com a enorme responsabilidade de calar ou de dar fôlego a sua<br />
voz seqüestrada à cena. Bobinha, tinha medo. Mas o olhar dos meninos sobre as carteiras era<br />
uma censura que não me atreveria a carregar pela vida...Acordei. Aprendi a dizer, com<br />
fábulas, histórias de bichos inventadas com cuidado, do que Luiza nos ensinou. Mudei.<br />
Parece-me que Oliveira compara as reformas das décadas de 1960-1970, e ao fazê-lo,<br />
me ajuda a transmitir esse meu entendimento, na década de 1990:<br />
[...] as reformas educacionais dos anos de 1990 tiveram como<br />
principal eixo a educação para a eqüidade social. Tal mudança de<br />
paradigma implica transformações substantivas na organização e na<br />
gestão da educação pública. Passa a ser um imperativo dos sistemas<br />
escolares formar os indivíduos para a empregabilidade, já que a<br />
educação geral é tomada como requisito indispensável ao emprego<br />
formal e regulamentado, ao mesmo tempo em que deveria<br />
desempenhar papel preponderante na condução de políticas sociais de<br />
cunho compensatório, que visem à contenção da pobreza. (2004,<br />
p.1124)<br />
Tais reformas são implementadas em um contexto marcado por lutas entre profissionais<br />
da educação e instâncias de poder governamental, cujos interesses oscilam do orientar<br />
ao gerenciar modos de viver nas sociedades, bem como formas de tornar esses modos<br />
acessíveis e possíveis para a população. Encaradas como modos de regulação social<br />
(SANTOS, 2006, 2007), objetivam maximizar o trabalho de profissionais docentes no<br />
sentido de alcançar metas mercantilistas e não mais educacionais
No início de 1974 a 1988, em média eram 20 alunos, pois houve ano em que haviam<br />
32 alunos (1975, 1977) por turma. Até a contratação de outro professor, eu atendia<br />
as duas práticas I e II [...] simultaneamente, por semestre [...] depois da contratação<br />
do outro professor, os alunos passavam por ele na Prática I e vinham para mim na<br />
Prática II. Depois passaram a ficar comigo na Prática I e II. A partir de 1989 até<br />
1996, passamos a ter 12 alunos por turma.<br />
(Professor A – Estágio Supervisionado – UFES)<br />
Nos anos iniciais da organização acadêmica em regime de créditos nas disciplinas,<br />
ocorreu um aumento de alunos nas turmas de Prática de Ensino, uma vez que não<br />
havia nenhum pré-requisito para ingresso dos alunos nas disciplinas pedagógicas.<br />
Assim, os alunos, estimulados pela carência de professores na educação básica,<br />
ainda nos primeiros períodos do curso, matriculavam-se na Prática de Ensino, sem<br />
nenhuma base do conhecimento geográfico e por isso causavam dificuldades no<br />
desenvolvimento da prática. Isso se tornava um fator complicador porque o espaço<br />
do estágio era o mesmo no qual havia trabalhado com alunos do ginásio e eles,<br />
muitas vezes, confrontavam o que os licenciandos desenvolviam em suas aulas com o<br />
que havia sido ensinado quando era professora do ginásio ou do ensino médio,<br />
percebendo o despreparo dos estagiários.<br />
Após afastamento para qualificação regras novas valiam para funcionamento da<br />
Prática de Ensino: as turmas já estavam estabelecidas em doze alunos; havia um<br />
convênio com a Secretaria Municipal de Vitória que propiciava como espaço de<br />
estágio as escolas da rede de ensino, em especial na Escola criada no antigo espaço<br />
da Faculdade de Engenharia, em Maruípe. À esta época, as escolas municipais e<br />
estaduais disputavam o „privilégio‟ de receber estagiários da UFES – coisa que<br />
perdurou por tempos, até a década de noventa.<br />
(Professora B – ECL – ES)<br />
Como havia um número reduzido de cursos superiores no Estado e o acesso à<br />
universidade, pelos alunos, era mais restrito, numericamente, do que é hoje, era possível<br />
acomodar, sem dificuldades, todo o grupo do ECL (licenciandos e alunos da série<br />
escolar), em um só espaço. É bom lembrar, também, que as salas de aulas, das escolas<br />
eram espaçosas, com uma média de vinte alunos por turma.<br />
Na disciplina Prática de Ensino, dividia-se o estágio na escola em três momentos<br />
distintos: observação (registros do cotidiano da turma observada), participação<br />
(desenvolvimento de atividades indicadas pela professora da turma) e regência (aulas<br />
em que o licenciando assumia a docência da turma). Esta organização ainda persiste em<br />
estágios, em várias licenciaturas, em arranjos que se coadunam com as disposições
legais ou que as escamoteiam, sinalizando táticas e estratégias de professores em grupos<br />
ou isoladamente: a situação se alterou, mas não mudou?<br />
As políticas educacionais, gestadas na aceleração do projeto globalizatório, incidiram,<br />
em especial, sobre os meios de comunicação e informação, com relações e<br />
desdobramentos diretos sobre/com as atividades econômico-financeiras, produtivas e<br />
sócio-culturais (SANTOS, M. 1997, 1999). Não é possível estabelecer um começo ou<br />
uma hierarquização entre os processos da globalização: formam uma intrincada rede,<br />
que se torna cada vez mais complexa. O mundo pulsa num diferente modo de<br />
acumulação capitalista, o socialismo real entra em crise e o mapa-múndi se<br />
metamorfoseia em diferentes novos arranjos numa rapidez que os cartógrafos mal<br />
conseguem acompanhar (HARVEY, 1998). A indústria e os serviços mantêm uma<br />
relação íntima entre si, rompendo barreiras conceituais de tipos de atividades<br />
econômicas, e com os espaçostempos: o “made in Taiwan” tornou-se tão comum quanto<br />
in Corea, in Brazil, in... e o que era o máximo ontem, hoje já é obsoleto, amanhã será<br />
outra coisa, talvez algo do século passado que, de repente, volta à tona e se torna desejo<br />
de consumo de hoje...<br />
O neoliberalismo promove desestatização e internacionalização de empresas, num<br />
processo de privatização sob a lógica do capital e na promessa de racionalização e<br />
eficiência, sinônimos de qualidade e de competência. A bandeira de democratização<br />
cede lugar à ilusão de nova modernização.<br />
...Algumas escolas do Estado já têm quadros que são mais do que os aparelhos de<br />
multimídia! Imagina, professora, nem a UFES tem...E eu lá, naquela escola horrorosa, com<br />
um quadro todo furado e no qual o giz canta desafinado...Eu que sonhei dar aula num<br />
colégio bacana. Até perto de Terra Vermelha tem escola com piscina, com laboratório de<br />
informática. Os alunos são péssimos, mas a escola tem infraestrutura parecida com o tempo<br />
que estamos vivendo. Mas eu estou lá, naquela escola: banheiro fedido, telha quebrada,<br />
esgoto no pátio... É a modernidade fingida que me dá mais raiva: porque umas com tanto e<br />
outras sem nada? Dizem que antigamente havia escolas públicas de excelência: era o<br />
Estadual, a Maria Ortiz, em lugares nobres, pra meninos de famílias de mais posses. Hoje<br />
não. Escola pública com alguma coisa pode ser em qualquer lugar e em lugar nenhum.<br />
Depende do impacto que a notícia vai dar nos meios de comunicação porque depois se<br />
estraga tudo mesmo...<br />
(Licencianda DD – Estágio Supervisionado – 2007)<br />
O Estado é a crise em países periféricos, com receitas como ajuste fiscal e estímulo à<br />
exportação para superação da dívida externa, aumento do superávit da balança
comercial e do produto interno bruto (MAUÉS, 2006). A crise estrutural que abalou<br />
todo o mundo tem implicações com novos paradigmas capitalistas de “acumulação<br />
flexível” (HARVEY, 1998); tem desdobramentos na emergência de novos padrões<br />
culturais, influenciados pelo mais frequente contato entre diferentes povos,<br />
nacionalidades e grupos sociais, além de ter imbricamentos com a revolução<br />
tecnológica, que mudou a organização do processo produtivo, sua estrutura, suas<br />
relações com trabalhadores, empresários e consumidores.<br />
Essas alterações exigiram um novo modo de se pensar e de proporcionar a formação de<br />
um trabalhador polivalente, integrado às constantes inovações tecnológicas, e, capaz de<br />
se adaptar às relações trabalhistas desta „nova ordem‟. Em consequência, nas<br />
instituições de ensino, outras formas organizacionais alteraram anteriores relações de<br />
trabalho exigindo, não apenas, que os professores se adaptassem e (sobre)vivessem com<br />
as mesmas, mas que, também, as colocassem no foco de seu fazer profissional. O<br />
Estado atuou/atua como regulador e como avaliador nesse processo, com a justificativa<br />
de „melhoria da formação‟, na maioria das vezes, apropriando-se, indevidamente, de<br />
reclamos e de produções teóricas dos próprios docentes, manipulando-as a favor de<br />
interesses mercantilistas.<br />
Conversa entre alunos numa viagem a um município do interior, para realização de oficinas:<br />
“Pois é, acho tão bacana a campanha dos „amigos da escola‟. Eu também vou participar<br />
oferecendo a oficina na escola do meu bairro. Acho graça que tem gente contra, professora,<br />
mas não é legal a sociedade ajudar na escola?” Nem me sobrou tempo, um aluno entrou na<br />
conversa: “Por isso é que professora ganha mal: por causa de má colega, como você. Isso é<br />
articulação da TV para ganhar o governo como freguês na propaganda. Não precisa ninguém<br />
bancar professor: é preciso pagar para ter professor na rede pública. Não deveria precisar da<br />
comunidade consertar a escola. O dinheiro para manutenção não poderia escapar para outras<br />
coisas, você entendeu? Professor é profissional, muito amigo da escola sim, mas é um<br />
profissional, não é agregado...” Preciso falar algo? Difícil foi viver anotando às pressas o que<br />
me falavam e o que falavam entre si. Ainda bem que desenvolvi este hábito em 1997, na<br />
escrita de um artigo 2 , andando em ônibus urbanos e nunca mais abandonei o exercício. Claro<br />
que, de certa maneira, „filtro‟ o que ouvi, mas aí me salva a metodologia das narrativas, que<br />
não castiga omissões e esquecimentos – compreende-os como parte do processo de lembrar,<br />
recortar, „arrumar‟...<br />
2 Trata-se de um artigo, A geografia no transcol – do senso comum e da sabedoria popular, escrito a partir<br />
de conversas ouvividas no decorrer de „viagens‟, realizadas em ônibus urbanos, no deslocamento entre<br />
universidade e residência, durante o meu tempo do mestrado.Ver referências.
A produção globalizada se alimenta da competitividade que estabelece entre as<br />
empresas em processos informacionais, organizacionais, produtivos, técnicos,<br />
reguladores e territorializadores. As relações estabelecidas a partir desses processos não<br />
se restringem aos aspectos empresariais ou governamentais: elas se estendem às<br />
sociedades e aos homens, em embates que, espacializados, não marcam lugares fixos.<br />
Nessa complexa rede das geografias de técnicas, tempos, razões e emoções, a natureza<br />
do espaço assim refeita, desvela que os trabalhadores são desterritorializados em seu<br />
trabalho por diferentes formas.<br />
Oliveira (2004) e Maués (2006) chamam a atenção para a perda gradativa de controle<br />
sobre o trabalho docente pelo professor, devido à centralização de decisões sobre<br />
„resultados‟ dele. A excessiva carga de atribuições paralelas ao ato pedagógico; a<br />
desvalorização da especificidade do fazer do professor; a intervenção do comunitarismo<br />
e do voluntariado na escola, de forma desintegrada e desrespeitosa ao trabalho do<br />
profissional docente; as condições difíceis de infraestrutura e de salário docente: todos<br />
esses fatores causam a proletarização e a precarização do trabalho docente.<br />
Como bem o diz a Professora N., da escola, na escola com os estagiários, quando eles<br />
pediram que ela falasse um pouco sobre a profissão professora e sobre si:<br />
“ Tenho 50 anos de idade, 31 anos de luta na profissão. Há seis anos trabalho de graça,<br />
porque quando completei o tempo para a aposentadoria, a legislação mudou: mudou a regra<br />
no meio do jogo! Já passei por tudo: salário atrasado, contas vencidas, filhos querendo<br />
coisas, eu precisando de coisas – tudo sem poder...” Nessa sua fala é perceptível que se sente<br />
lesada, sem estímulos e, por conseguinte, o que a mantém atuando no mais estreito limite do<br />
cumprimento do dever é um princípio moral que elaborou ao longo de sua vida, estendido ao<br />
campo profissional.<br />
Há sinais claros de um desfalecimento no ímpeto de seu fazer docente, mas há pistas que ela<br />
nega a desistência - “[...] tudo que é muito repetitivo se torna enjoativo. Infelizmente nosso<br />
cotidiano é repetitivo.” A repetição (re)negada, talvez o seja porque, inconscientemente, é<br />
(re)conhecida como impossível de acontecer... O que se anuncia como repetitivo, o que<br />
cansa, parece ser o exigente enfrentamento das dificuldades no dia-a-dia rotineiro - igual sem<br />
sê-lo verdadeiramente: uma retomada constante e um refazer permanente das ações docentes;<br />
um investir, um persistir em lutas pela educação tais como greves, manifestos, discussões...<br />
E, contraditoriamente, professorar é processo, não expresso claramente, que se caracteriza<br />
como irrepetível a cada momento, a cada dia, a cada tempo, em cada lugar...<br />
Também há evidências de uma „teimosia‟ na manutenção de coisas em que acredita e que a<br />
sustentam num fazer compromissado, mesmo que cansado: “Geralmente, eu faço o<br />
planejamento todo em casa, pois na escola o barulho e a agitação dos alunos me<br />
desconcentram.”<br />
O que faz a professora N. em seus horários de planejamento na escola? Fui à busca de<br />
descobrir. Encontrei com a professora conversando com alunos que se estão com
„dificuldades‟ na sua disciplina; estive com ela em conversas com professores, discutindo<br />
questões como a organização da escola, a avaliação, o desenvolvimento dos alunos, questões<br />
geográficas do mundo e do local onde se insere a escola. Pude vê-la subindo e descendo<br />
escadas com materiais para serem reproduzidos, selecionando vídeos na sala de coordenação,<br />
corrigindo provas e exercícios. Muito discreta, ela vive o seu modo de tecer conhecimento<br />
sem alardes.<br />
Seu desabafo, contudo, é um grito para os licenciandos. Não esconde as mazelas e não se<br />
incomoda de lhes jogar a „dureza‟ do magistério à cara:<br />
“O vídeo não funciona e os outros equipamentos só funcionam de vez em quando. Às vezes,<br />
queremos usar o laboratório de informática, mas não é possível, pois existem muitas turmas<br />
querendo usá-lo ao mesmo tempo. A SEDU 3 está sempre usando o laboratório ou o auditório<br />
para capacitações. Aqui tudo é imprevisto, você trabalha dentro do imprevisto. Você sai de<br />
casa com um planejamento e aqui tudo se modifica. Eu planejei trabalhar com apostila, para<br />
que os alunos formulassem os contextos. É um método que funciona bem, entretanto uma<br />
turma formulou a apostila, outra, não. Então, tem hora que você dita o conteúdo, outra hora<br />
você escreve no quadro, e cobra a cópia. Imagine no 3º ano do ensino médio, alunos que vão<br />
disputar o vestibular com alunos da escola particular, e você não tem material para<br />
trabalhar. Algumas vezes tiro do meu próprio dinheiro para passar para eles[...] Tem<br />
condições esses alunos disputarem com os de escola particular? Não tem, mesmo assim nós<br />
tivemos seis alunos que passaram na UFES o ano passado (Seus olhos estão marejados, ela<br />
fala com fúria) [...] Quem está tentando ingressar na carreira de professor já vai sabendo<br />
que vai encontrar muitos problemas pela frente. Eu, estou saindo.” (E sai mesmo, pede<br />
licença, ajeita os livros, e vai embora. Nota-se que está triste, emocionada e com vergonha<br />
por ter se „empolgado‟ – ela tão comedida, sempre!). Os alunos do grupo se mantêm em<br />
silêncio. Anotações são feitas rapidamente. Uma aluna desliga o gravador. Ninguém tem<br />
vontade de comentar nada.<br />
A importância da relação entre o vivido pelo sujeito e suas convicções, ao tecer a vida<br />
que vive em função do futuro que acredita, não se apóia num sentido de fazer sozinho,<br />
nem numa perspectiva de linearidade de progresso. É mais. Revela a teimosia de buscar<br />
saídas, de crer em ações utópicas emergenciais (SANTOS, 1996, 2006, 2007).<br />
Se não fosse assim, que importaria a história de uma vida?<br />
Estou perto de me aposentar. E não ligo mais para nada, só para os meus alunos.<br />
Também não estou morrendo de preocupação com a Geografia que os livros dizem<br />
que eles têm que aprender. Eu estou mais preocupada com eles. Por isso, sou<br />
voluntária no Conselho Tutelar. No fim de semana saio para ver se eles estão em<br />
lugares errados. Se eles têm problemas com a polícia, com o juizado, todo mundo já<br />
sabe e me liga. Eles querem dançar funk, mas a droga quer eles. Eu também quero e<br />
vigio. Todo mundo diz que sou doida, eu grito com eles, aperto eles, mas eles não<br />
largam do meu pé. Que importa a Geografia sem vida?<br />
Pode ser importante na história de uma vida: entender que os ricos dominam os<br />
pobres, por isso tem que ficar atento pra não virar massa de manobra. Tem que<br />
cuidar do planeta. Tem que passar na escola para conseguir emprego. Eu sou<br />
3 Secretaria de Estado de Educação do Estado do Espírito Santo.
professora. A Geografia só me ajuda a ser professora. Mas, está chegando a hora de<br />
parar. Fica aí pras meninas novas continuarem...<br />
(Professora O. – escola)<br />
A história de vida inclui a formação, que não se esgota no sujeito apenas, mas se projeta<br />
dele para o outro, como perspectiva de continuidade. E a escola e a academia têm um<br />
papel reconhecido no processo, num momento histórico em que a universalização do<br />
estudo formal, escolar e acadêmico, ganha cada vez mais notoriedade na sociedade.<br />
Então, o que parecem ser permanências, não serão traduções ou negociações<br />
(BHABHA, 2005) que produzem novos sentidos, que revelam movimentos engendrados<br />
no seio de práticas que deslizam, que fogem, que se metamorfoseiam em outras? Há<br />
pistas que sinalizam rupturas, movimentos...<br />
Do ano 2000 até 2002, quando as Resoluções CNE/CP 001 e 002/2002 se tornaram<br />
instrumentos legais e não mais apenas propostas. Estávamos em plena luta, avaliando o<br />
modelo de distribuição das vagas da universidade, reunindo dados, registrando<br />
cuidadosamente toda a produção de docência, de pesquisa e de extensão dos<br />
professores, assim como toda publicação, toda participação em atividade administrativa<br />
ou acadêmico-científica, como meios de melhorar nossa posição no ranking<br />
universitário... Então, chegaram as resoluções: uma num dia, outra no outro. Foi um<br />
acontecimento. Os departamentos de disciplinas específicas dos cursos começaram a<br />
reivindicar o direito de compartilhar a carga horária do estágio, das práticas... Com o<br />
passar do tempo, constatando-se que não haveria atendimento às demandas de vagas<br />
docentes como se esperava, começaram outras discussões sobre quem se<br />
responsabilizaria pela carga horária acrescida às licenciaturas. Novas negociações.<br />
...O problema é integrar as disciplinas específicas com as de formação pedagógica -<br />
como se na licenciatura todas elas não fossem formação docente! No imaginário dos<br />
alunos, quando chegam às aulas de Estágio, não é bom ser professor de escola. A<br />
sociedade ajuda a construir essa concepção: desvalorização profissional, salários<br />
repugnantes! Por isso ninguém quer ser professor: penso que, brevemente, nem de<br />
universidade! Cursos como o de Geografia servirão apenas para o „nível superior‟<br />
de concursos... A Universidade aceita isto. Um curso de Geografia não fica muito<br />
caro, não incomoda muito porque não tem „brilho‟ social e incorpora números.<br />
(Professora M. – ECL - BA)
Como acompanhar estagiários em várias escolas? Será que é importante observar<br />
aulas concomitantes, um pedaço de cada uma? Dar aula em dupla ou em trio é um<br />
bom desenvolvimento de estágio? Dar aula no estágio é uma formação inicial? Ir<br />
junto é assistencialismo, propedêutica? Como se enfrenta a violência, a indisciplina<br />
na escola, ampliada por que todo mundo sabe que são estagiários? Deixar ir só é<br />
ensinar a burlar, pelas muitas possibilidades de arranjos? Dar aulas para colegas<br />
pode ser um bom substitutivo? Como a universidade encara o problema? Eu não sei.<br />
Eu vou tentando. Um projeto aqui. Um tempo de aulas ali. Um curso alternativo na<br />
universidade acolá. Respostas? Não as tenho. Estou à procura.<br />
(Professora H – ECL –PR)<br />
...No mais vivemos as mesmas dificuldades...sala com 40 a 50 alunos, dispersão<br />
comum numa região metropolitana como a do Rio (tenho alunos que fazem estágios<br />
na Baixada, por exemplo, o que torna impossível acompanhá-los, ai conto com o<br />
relatório do professor e com as atividades em sala.)<br />
(Professor L – ECL – RJ)<br />
eu resolvo assim: faz estagio perto da minha casa ou da universidade. eu dou a<br />
autorizacao. nao tem sentido gastar tempo e grana rodando pela cidade. ou seja, eles<br />
se adaptam ao meu mapa e nao eu aos 15 alunos de estagio que eu tenho.(Professor<br />
N. – ECL – RS)<br />
As zonas de fronteiras do ECL e das práticas de ensino precisam permitir o fluxo de<br />
novos movimentos, novas criações...A despeito de complexas preocupações com o fazer<br />
docente e na contramão das múltiplas funções que precarizam e intensificam a<br />
proletarização do professor, recebi as narrativas de meus colegas, que comprovam a<br />
solidariedade que ainda vinga entre tantos professores e que não me permite, portanto,<br />
abandonar a crença na utopia de que ♪ “Sonho que se sonha só é só um sonho que se<br />
sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade...” ♫ (Raul Seixas, Prelúdio)<br />
Como professora de estágio e prática de ensino desde 1992, sinto-me ainda com o<br />
perfume de uma inocência que me fazia crer (há tão pouco tempo, parece hoje ainda...)<br />
que é(ra) preciso valorizar as práticas de ensino, tanto, tanto, que a própria educação,<br />
para a qual essas práticas deveriam focar a formação do licenciando, ficava prenhe<br />
delas...<br />
Alguns professores perdem a condição de se fazerem narradores, na concepção de<br />
Benjamin (1994), porque fazem do seu narrar um modelo que exigem ser seguido,<br />
ignorando a impossibilidade de transferir experiência ou de formação (JOSSO, 2004).<br />
Fica-me a esperança quando vejo alunos dessa „geração‟ como grandes professores,
novamente narradores, apenas mais libertos de modelos, de prescrições que aprisionam<br />
e mais produtores de propostas, de apostas que funcionam como luzes, gestadas como<br />
cintilâncias para iluminar o processo de formação como um todo, pela problematização,<br />
pela potencialização de possíveis...<br />
Continuar atenta às narrativas de outros professores acerca de modos como se efetuam<br />
estágios implica considerar que suas histórias revelam suas compreensões sobre a<br />
organização curricular, implica em não esquecer que essas narrativas correspondem às<br />
suas posições diante do que avaliam na legislação que orientou tal organização: são<br />
trajetos de suas formações no jogo de ata e desata fios que, como sujeitos em formação,<br />
nós realizamos. E, como lembra Certeau (1994, p.200): “Todo relato é um relato de<br />
viagem.”<br />
Hibridizam-se alternativas de posturas filosóficas, políticas, culturais, religiosas,<br />
pedagógicas para proclamarem<br />
[...]um convite a compartilhar desafios na construção incerta do<br />
futuro, propomos reconhecer medos e desconfianças – sem<br />
tantos compromisso de heroísmos, mas como prazer de quem<br />
deseja intensificar a vida para todos – participando desta<br />
invenção diuturna de processos de aprendizagem e ensino que se<br />
conjuguem com movimentos que – em diferentes campos de<br />
atuação humana e social – resistem às desigualdades e ao<br />
pensamento único, apropriando-se deste tempo de armar, mas<br />
também de amar.(LINHARES, 2001, p. 16)<br />
Investigar, problematizar zonas de fronteiras por meio de narrativas formativas de<br />
outrem é (re)inscrever outras narrativas formativas que se iniciam com a aproximação<br />
de outras, com o recorte para registro feitos a partir delas para nos fazer outros<br />
narradores (BENJAMIN, 1994).<br />
As pistas sinalizadas me provocam e insistem em reforçar a potência das histórias de<br />
vida: se elas nos apontam aqui os atravessamentos que cruzam as zonas de fronteiras,<br />
por que não nos valermos delas para conhecer melhor nossas perspectivas como<br />
professores de academia e de escola, assim como de nossos alunos? Como potencializar<br />
nossas trajetórias, proporcionando-nos a formação que caracteriza o narrar-se a si<br />
mesmo?<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAHÃO, M. H. M. B. Profissionalização docente e identidade – narrativas na<br />
primeira pessoa. In: SOUZA, E. C. Autobiografias, histórias de vida e formação:<br />
pesquisa e ensino. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. p. 189-206.<br />
ALVES, N. O espaço escolar e suas marcas: o espaço como dimensão material do<br />
currículo. Rio de Janeiro: DP&A, 1998 a.<br />
_________ Trajetórias e redes na formação de professores. Rio de Janeiro: DP&A,<br />
1998b.<br />
BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.<br />
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da<br />
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.<br />
BRASIL. Lei 11788, de 25 de setembro de 2008. Dispõe sobre o estágio no estudo e dá<br />
outras providências. Disponível em Acesso em: 03 de novembro de 2008.<br />
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.<br />
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (Brasil). Resolução CNE/CP 01, de 19 de<br />
fevereiro de 2002. Disponível em: <br />
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (Brasil). Resolução CNE/CP 02, de 19 de<br />
fevereiro de 2002. Disponível em: