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O Avarento II - ESEC

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O AVARENTO<br />

de<br />

Molière<br />

Tradução de Alexandra Moreira da Silva<br />

2009<br />

1


O AVARENTO<br />

Comédia<br />

Representada pela primeira vez em Paris,<br />

no Teatro do Palais Royal,<br />

no dia 9 do mês de Setembro de 1668<br />

pela Companhia do Rei.<br />

2


PERSONAGENS<br />

HARPAGÃO, pai de Cleanto e de Elisa, pretendente de Mariana.<br />

CLEANTO, filho de Harpagão, apaixonado por Mariana.<br />

ELISA, filha de Harpagão, apaixonada por Valério.<br />

VALÉRIO, filho de Anselmo, apaixonado por Elisa.<br />

MARIANA, apaixonada por Cleanto, pretendida por Harpagão<br />

ANSELMO, pai de Valério e de Mariana.<br />

FROSINA, alcoviteira.<br />

MESTRE SIMÃO, corretor<br />

MESTRE TIAGO, cozinheiro e cocheiro de Harpagão.<br />

FLECHA, criado de Cleanto.<br />

SENHORA CLÁUDIA, criada de Harpagão.<br />

PÉDAVEIA E BACALHAU, lacaios de Harpagão<br />

COMISSÁRIO E O SEU AJUDANTE<br />

A cena é em Paris.<br />

3


ACTO I<br />

CENA I<br />

VALÉRIO, ELISA<br />

VALÉRIO. – Então? encantadora Elisa, vejo-vos melancólica, depois das generosas<br />

promessas de amor que tivestes a bondade de me fazer? Suspirais, e eu sou todo alegria.<br />

Será pena, dizei-me, por me terdes feito feliz, arrependeis-vos deste compromisso a que<br />

tereis sido levada pelo fogo da minha paixão?<br />

ELISA. – Não, Valério, como poderia eu arrepender-me de tudo o que faço por vós.<br />

Sinto-me arrastada por um doce poder, e nem sequer tenho força para desejar que nada<br />

disto tivesse acontecido. Mas, na verdade, preocupa-me o que daqui possa advir; e<br />

receio bem amar-vos um pouco mais do que deveria.<br />

VALÉRIO. – Que podeis recear, Elisa, nos sentimentos que tão docemente me dedicais?<br />

ELISA. – Ai de mim! Cem coisas ao mesmo tempo: a fúria de um pai, a reprovação de<br />

uma família, a censura de todos; mas mais do que tudo, Valério, a mudança no vosso<br />

coração, e a frieza criminosa com que os do vosso sexo pagam, quase sempre, as<br />

declarações demasiado ardentes de um amor inocente.<br />

VALÉRIO. – Ah! Não me façais a injustiça de me julgardes pelos outros. Desconfiai de<br />

tudo, Elisa, menos de faltar ao que vos devo: amo-vos demasiado, e o meu amor por vós<br />

será tão longo quanto a minha vida.<br />

ELISA. – Ah, Valério! Os homens dizem todos o mesmo. As palavras aproximam-nos;<br />

só as acções os diferenciam.<br />

VALÉRIO. – Visto que só as acções dão a conhecer quem realmente somos, aguardai<br />

ao menos que as minhas vos permitam julgar o meu coração, e não tenteis encontrar<br />

razões para me acusardes nos injustos receios de tão lamentável prudência. Não me<br />

assassineis, peço-vos, com os dolorosos golpes de uma ultrajante suspeita, e dai-me<br />

tempo para vos convencer, através de mil e uma provas, da sinceridade da minha paixão.<br />

ELISA. – Ai! Como é fácil deixarmo-nos convencer pelas pessoas que amamos! Sim,<br />

Valério, acredito que o vosso coração é incapaz de me enganar. Sinto que me amais de<br />

um amor verdadeiro e que me sereis fiel; disso não quero duvidar, e limito o meu<br />

desassossego ao receio da desaprovação que poderei ter de enfrentar.<br />

VALÉRIO. – Mas porquê essa inquietação?<br />

4


ELISA. – Nada teria a recear, se toda a gente vos visse com os meus olhos, e no vosso<br />

modo de ser encontro a razão das coisas que faço por vós. O meu coração, e é em sua<br />

defesa que o digo, reconhece todo o vosso mérito, ajudado por uma gratidão para<br />

convosco a que o Céu insistentemente me conduz. Revivo a cada instante o terrível<br />

perigo que no início nos entregou aos olhares um do outro; a generosidade<br />

surpreendente que vos fez arriscar a vida para resgatar a minha da fúria das ondas; os<br />

ternos cuidados de que me rodeastes depois de me terdes retirado das águas, e as<br />

constantes provas deste amor ardente que nem o tempo nem as dificuldades<br />

conseguiram desencorajar, que faz com que os vossos passos se detenham nestas<br />

paragens, que por mim disfarceis a vossa condição, esquecendo pais e pátria, e que para<br />

me poderdes ver, vos reduziu ao simples ofício de secretário de meu pai. Tudo isto<br />

produz em mim um maravilhoso efeito; aos meus olhos, é mais do que suficiente para<br />

justificar o compromisso em que pude consentir; mas talvez não baste para o justificar<br />

aos outros, não estou certa de que partilhem dos meus sentimentos.<br />

VALÉRIO. – De tudo o que acabais de dizer, só o meu amor permite que eu pretenda<br />

merecer algo da vossa parte; e quanto aos vossos escrúpulos, o vosso pai encarrega-se<br />

de os justificar perante todos; o excesso de avareza e a vida austera que impõe aos seus<br />

filhos poderiam autorizar coisas bem mais estranhas. Perdoai-me, encantadora Elisa, se<br />

assim falo perante vós. Sabeis que sobre esta matéria não podemos dizer bem. Mas<br />

enfim, se eu conseguir, como espero, encontrar os meus pais, não será difícil obter o seu<br />

acordo. Espero notícias impacientemente, e eu próprio irei buscá-las se tardarem em<br />

chegar.<br />

ELISA. – Ah! Valério, não partais, peço-vos; pensai unicamente em cair nas boas<br />

graças de meu pai.<br />

VALÉRIO. – Bem vedes como me esforço, e como foi necessário pôr em prática as<br />

mais astutas complacências para ser admitido ao seu serviço; sob que máscara de<br />

simpatia e de redobradas atenções me disfarço para lhe agradar, e que personagem<br />

represento diariamente para conseguir o seu afecto. Tenho feito progressos admiráveis;<br />

e bem vejo que para cativar os homens, não há melhor via do que reverenciar as suas<br />

preferências, fingir que concordamos com as suas sentenças, louvar os seus defeitos, e<br />

aplaudir tudo o que fazem. Não precisamos de ter medo de exagerar na complacência; e<br />

ainda que a forma como troçamos deles seja bem visível, ficam completamente cegos,<br />

mesmo os mais espertos, quando se trata de lisonja. A sinceridade fica um pouco<br />

abalada neste ofício que exerço: mas quando precisamos dos homens, temos de nos<br />

ajustar a eles; e como esta é a única forma de os conquistarmos, a culpa não é de quem<br />

lisonjeia, mas de quem gosta de ser lisonjeado.<br />

ELISA. – Mas porque não tentais, também, conquistar a confiança do meu irmão, não<br />

vá a criada vir a revelar o nosso segredo?<br />

VALÉRIO. – Não podemos tratar dos dois ao mesmo tempo; o espírito do pai e o do<br />

filho são de tal forma opostos, que é difícil fazer coincidir as duas confidências.<br />

Procurai vós, pela vossa parte, agir junto do vosso irmão, e servi-vos da amizade que<br />

vos une para que se torne nosso aliado. Aí vem ele, retiro-me; aproveitai este momento,<br />

falai-lhe e não lhe reveleis do nosso assunto senão o que julgardes conveniente.<br />

5


ELISA. – Não sei se terei coragem para lhe fazer tal confidência.<br />

CENA <strong>II</strong><br />

CLEANTO, ELISA<br />

CLEANTO. – Muito me alegra encontrar-vos sozinha, minha irmã; desejava<br />

ardentemente falar-vos, para vos confiar um segredo.<br />

ELISA. – Aqui me tendes pronta para vos ouvir, meu irmão. Que desejais dizer-me?<br />

CLEANTO. – Muitas coisas, minha irmã, contidas numa só palavra: amo.<br />

ELISA. – Amais?<br />

CLEANTO. – Sim, amo. Mas antes de ir mais longe, sei que dependo de um pai, e que a<br />

minha condição de filho me submete à sua vontade; que não devemos fazer promessas<br />

sem o consentimento de quem nos deu o ser; que o Céu os fez mestres dos nossos<br />

desejos, e que deles devemos dispor somente sob o seu conselho, que não estando<br />

disponíveis para o fogo da paixão, estão menos sujeitos a errar do que nós e vêem<br />

melhor o que nos convém; que devemos acreditar mais na luz da sua prudência do que<br />

na cegueira da nossa paixão; e que os arrebatamentos da juventude nos conduzem<br />

frequentemente a deploráveis abismos. Digo-vos tudo isto, minha irmã, para evitar que<br />

sejais vós a dizê-lo; porque o meu amor nada quer ouvir, e peço-vos, não me façais<br />

reparos.<br />

ELISA. – Estais comprometido, meu irmão, com aquela que amais?<br />

CLEANTO. – Não, mas estou decidido a fazê-lo; e rogo-vos uma vez mais que não<br />

tenteis dissuadir-me apresentando-me as vossas razões.<br />

ELISA. – Serei eu, meu irmão, tão estranha pessoa?<br />

CLEANTO. – Não, minha irmã; mas vós não amais: ignorais a doce violência que um<br />

amor terno exerce sobre nos nossos corações, por isso temo a vossa sensatez.<br />

ELISA. – Ai, meu irmão! Não falemos da minha sensatez. Não há ninguém que a não<br />

tenha perdido pelo menos uma vez na vida! e se vos abrir o meu coração, talvez seja,<br />

aos vossos olhos, bem menos sensata do que vós.<br />

CLEANTO. – Ah, provera aos Céus que a vossa alma, tal como a minha…<br />

ELISA. – Terminemos primeiro o vosso assunto, dizei-me quem é aquela que amais.<br />

6


CLEANTO. – Uma jovem que veio há pouco tempo morar para a vizinhança, e que<br />

parece ter nascido para despertar o amor em todos aqueles que a vêem. Nunca, minha<br />

irmã, a natureza criou nada de tão gracioso; senti-me transportado logo que a vi.<br />

Chama-se Mariana e vive acompanhada pela sua velha mãe, que está quase sempre<br />

doente, e a quem esta filha adorável dedica invulgares sentimentos de amizade. Serve-a,<br />

acarinha-a, e consola-a com uma ternura que vos comoveria a alma. Tudo o que faz é<br />

com tal encanto que vemos brilhar mil graças em todas as suas acções: uma doçura<br />

repleta de charme, uma bondade verdadeiramente sedutora, uma honestidade<br />

adorável…Ah! minha irmã, como gostava que a tivésseis visto!<br />

ELISA. – Já vejo bastante, meu irmão, nas coisas que me dizeis; e para perceber como<br />

ela é, basta-me saber que a amais.<br />

CLEANTO. – Em segredo, descobri que não vivem com desafogo, e que apesar de uma<br />

conduta discreta, os recursos de que dispõem dificilmente cobrem todas as suas<br />

necessidades. Imaginai, minha irmã, a alegria de poder modificar a sorte da pessoa que<br />

amamos, de acudir delicadamente às modestas necessidades de uma família honesta; e<br />

avaliai o meu desgosto ao perceber que a avareza de um pai me impede de saborear esta<br />

alegria, e de revelar à bem- amada uma prova do meu amor.<br />

ELISA. – Sim, avalio bem, meu irmão, o quanto deveis sofrer.<br />

CLEANTO. – Ah! minha irmã, sofro mais do que se possa imaginar. Haverá algo mais<br />

cruel do que esta severa poupança que sobre nós é exercida, do que esta estranha<br />

penúria em que nos obrigam a esperar em vão? E de que nos servirá ter fortuna, se só<br />

nos vier ter às mãos quando já não estivermos em idade de a aproveitarmos, se para me<br />

manter sou agora obrigado a endividar-me por todos os lados, e se, como vós, estou<br />

condenado a recorrer todos os dias à ajuda dos comerciantes para me vestir<br />

convenientemente? Enfim, quis falar-vos para me ajudardes a sondar meu pai sobre os<br />

meus actuais sentimentos; e se ele se opuser, estou resolvido a ir para outras paragens<br />

com esse delicado ser, e a aproveitar a sorte que o Céu nos quiser destinar. Mandei<br />

indagar por todo o lado a possibilidade de um empréstimo para o meu intento; e se as<br />

vossas preocupações, minha irmã, são idênticas às minhas, e se o nosso pai tiver de se<br />

opor aos nossos desejos, abandoná-lo-emos os dois e libertar-nos-emos desta tirania em<br />

que a sua insuportável avareza nos mantém há demasiado tempo.<br />

ELISA. – É bem verdade que, em cada dia que passa, ele nos dá mais motivos para<br />

lamentarmos a morte da nossa mãe, e que…<br />

CLEANTO. – Ouço a sua voz. Afastemo-nos um pouco para acabarmos as nossas<br />

confidências; depois, uniremos forças para atacarmos a dureza do seu temperamento.<br />

7


CENA <strong>II</strong>I<br />

HARPAGÃO, FLECHA<br />

HARPAGÃO. – Fora daqui imediatamente, e nada de barafustar. Vamos, toca a<br />

desandar grão-mestre da ladroeira, verdadeiro réu de corda ao pescoço.<br />

FLECHA. – Nunca vi ninguém tão malvado como este maldito velho e creio bem, com<br />

o devido respeito, que tem o diabo no corpo.<br />

HARPAGÃO. – Estás a falar entre dentes?<br />

FLECHA. – Porque me escorraçais?<br />

HARPAGÃO. – É mesmo teu, malandro, pedires-me satisfações; sai depressa antes que<br />

dê cabo de ti.<br />

FLECHA. – O que é que eu vos fiz?<br />

HARPAGÃO. – Fizeste-me que quero que saias.<br />

FLECHA. – O meu Senhor, vosso filho, ordenou-me que esperasse por ele.<br />

HARPAGÃO. – Vai esperar por ele na rua, não fiques aqui, em minha casa especado<br />

como uma estaca, a observar tudo o que se passa para depois usares em teu benefício.<br />

Não quero ter um espião dos meus assuntos permanentemente à minha frente, um<br />

tratante, cujos malditos olhos controlam todas as minhas acções, devoram tudo o que<br />

tenho, e vasculham em tudo quanto é sítio para verificarem se não há nada que possa ser<br />

roubado.<br />

FLECHA. – Como dianho quereis vós que vos roubem? Sereis vós um homem roubável,<br />

vós, que fechais tudo e ficais de sentinela noite e dia?<br />

HARPAGÃO. – Fecho aquilo que muito bem me apetece, e fico de sentinela quando<br />

quero. Não é que andam por aí uns espiões, atentos a tudo o que fazemos?<br />

Tremo só de imaginar que ele possa desconfiar de alguma coisa sobre o meu dinheiro.<br />

Não serias homem para andar por aí a espalhar o boato de que tenho dinheiro escondido<br />

em casa?<br />

FLECHA. – Tendes dinheiro escondido?<br />

HARPAGÃO. – Não, tratante, não disse isso. (Aparte.) Que raiva. Pergunto se, por<br />

maldade, não andarias por aí a espalhar esse boato.<br />

FLECHA. – Oh! que importância tem que o tenhais ou não, se para nós é a mesma coisa?<br />

8


HARPAGÃO. – Estás a armar em esperto. Eu já te dou a esperteza pelas orelhas abaixo.<br />

(Levanta a mão para lhe dar uma bofetada). Sai daqui, já te disse.<br />

FLECHA. – Pois bem, saio!<br />

HARPAGÃO. – Espera. Não levas nada contigo?<br />

FLECHA. – Que havia eu de levar?<br />

HARPAGÃO. – Anda cá, quero ver. Mostra-me as mãos<br />

FLECHA. – Aqui estão.<br />

HARPAGÃO. – As outras.<br />

FLECHA. – As outras?<br />

HARPAGÃO. – Sim.<br />

FLECHA. – Aqui estão.<br />

HARPAGÃO. – Não meteste nada aí dentro?<br />

FLECHA. – Procurai vós.<br />

HARPAGÃO. – (Apalpando-lhe as perneiras dos calções) Estes calções, assim largos,<br />

são apropriados para se tornarem receptadores das coisas que alguns desviam; bem<br />

gostaria que tivessem mandado pendurar algum deles.<br />

FLECHA. – Ah! um homem assim bem merecia o que receia! e que prazer eu teria em<br />

roubá-lo!<br />

HARPAGÃO. – Hã?<br />

FLECHA. – O quê?<br />

HARPAGÃO. – O que é que estás para aí a dizer de roubar?<br />

FLECHA. – Digo que estais a procurar bem por todo o lado para ver se vos roubei.<br />

HARPAGÃO. – É o que eu quero fazer.<br />

(Procura nos bolsos de Flecha)<br />

FLECHA. – Que a peste leve a avareza e os forretas com ela!<br />

HARPAGÃO. – O quê? Que dizes tu?<br />

FLECHA. – O que digo?<br />

9


HARPAGÃO. – Sim: o que é que estás para aí a dizer da avareza e dos forretas?<br />

FLECHA. – Digo que a peste leve a avareza e os forretas com ela.<br />

HARPAGÃO. – De quem queres tu falar?<br />

FLECHA. – Dos forretas.<br />

HARPAGÃO. – E quem são esses forretas?<br />

FLECHA. – Uns miseráveis e uns unhas-de-fome.<br />

HARPAGÃO. – Mas a quem é que te queres referir?<br />

FLECHA. – Em que é que isso vos aflige?<br />

HARPAGÃO. – Aflige-me no que tem de me afligir.<br />

FLECHA. – Achais que estou a falar de vós?<br />

HARPAGÃO. – Acho o que acho; mas quero que me digas com quem falas quando<br />

dizes isso.<br />

FLECHA. – Falo… falo com os meus botões.<br />

HARPAGÃO. – E eu poderia muito bem abotoar-te a língua.<br />

FLECHA. – Quereis impedir-me de amaldiçoar os forretas?<br />

HARPAGÃO. – Não; mas impedir-te-ei de falares pelos cotovelos e de seres insolente.<br />

Cala-te.<br />

FLECHA. – Eu não disse o nome de ninguém.<br />

HARPAGÃO. – Dou-te uma tareia, se continuas a falar.<br />

FLECHA. – A quem servir a carapuça que a enterre.<br />

HARPAGÃO. – Vais calar-te?<br />

FLECHA. – Que remédio.<br />

HARPAGÃO. – Ah!<br />

FLECHA. – (Mostrando-lhe um dos bolsos do colete) Vede, tenho aqui mais um bolso;<br />

estais satisfeito?<br />

HARPAGÃO. – Vamos, passa para cá isso, não me obrigues a procurar.<br />

10


FLECHA. – O quê?<br />

HARPAGÃO. – O que me tiraste.<br />

FLECHA. – Não vos tirei coisíssima nenhuma.<br />

HARPAGÃO. – De certeza?<br />

FLECHA. – De certeza.<br />

HARPAGÃO. – Adeus, vai para o diabo.<br />

FLECHA. – Fui bem despachado.<br />

HARPAGÃO. – Vê, ao menos, se pões a mão na consciência. Aqui está um tratante de<br />

um criado que me incomoda profundamente, e não me agrada nada ver por cá este cão<br />

manco.<br />

CENA IV<br />

ELISA, CLEANTO, HARPAGÃO<br />

HARPAGÃO. – Na verdade, não é nada fácil esconder em casa uma grande quantia de<br />

dinheiro; feliz daquele que tem toda a sua fortuna bem guardada, e só conserva consigo<br />

o necessário para as suas despesas. É uma grande preocupação inventar um esconderijo<br />

seguro em casa; para mim, os cofres-fortes são suspeitos, não me fio neles: vejo-os<br />

justamente como um isco fácil para ladrões, e é sempre a primeira coisa que vão atacar.<br />

No entanto, não sei se fiz bem em enterrar no meu jardim os dez mil escudos que recebi<br />

ontem. Dez mil escudos em ouro em nossa casa, é uma quantia bastante…<br />

(Neste momento, surgem os dois irmãos conversando em voz baixa)<br />

Oh, Céus! Ter-me-ei traído a mim próprio: deixei-me levar pelo entusiasmo, e creio ter<br />

falado alto ao reflectir sozinho. O que há?<br />

CLEANTO. – Nada, meu pai.<br />

HARPAGÃO. – Estais aí há muito tempo?<br />

ELISA. – Acabámos de chegar.<br />

HARPAGÃO. – Ouvistes…<br />

CLEANTO. – O quê, meu pai?<br />

11


HAPAGÃO. – Aqui…<br />

ELISA. – O quê?<br />

HARPAGÃO. – O que acabei de dizer.<br />

CLEANTO. – Não.<br />

HARPAGÃO. – Ouvistes, ouvistes.<br />

ELISA. – Perdoai-me.<br />

HARPAGÃO. – Bem vejo que ouvistes algumas palavras. Estava a falar comigo mesmo<br />

sobre a dificuldade que há hoje em dia para arranjar dinheiro, e, dizia eu, que é bem<br />

feliz aquele que pode ter dez mil escudos em casa.<br />

CLEANTO. – Nós estávamos hesitantes, não nos queríamos aproximar com receio de<br />

vos interromper.<br />

HARPAGÃO. – Ainda bem que vos posso dizer isto, não fosseis entender as coisas ao<br />

contrário e imaginar que era eu quem tinha os dez mil escudos.<br />

CLEANTO. – Nós não nos metemos nos vossos negócios.<br />

HARPAGÃO. – Provera a Deus que eu os tivesse, dez mil escudos!<br />

CLEANTO. – Não creio…<br />

HARPAGÃO. – Seria um bom negócio para mim.<br />

ELISA. – São coisas…<br />

HARPAGÃO. – Bem falta me fazem.<br />

CLEANTO. – Penso que…<br />

HARPAGÃO. – Facilitavam-me a vida.<br />

ELISA. – Vós estais…<br />

HARPAGÃO. – E não me lamentaria, como o faço agora, dos tempos miseráveis que<br />

correm.<br />

CLEANTO. – Por Deus! meu pai, não tendes razão para vos lamentardes, todos sabem<br />

que a vossa fortuna é suficiente.<br />

HARPAGÃO: - Como? a minha fortuna é suficiente! Quem diz isso, mente. Não há<br />

nada de mais falso; foi algum malandro que fez correr por aí esse boato.<br />

ELISA. – Nos vos zangueis.<br />

12


HARPAGÃO. – É estranho que os meus próprios filhos me traiam e se tornem meus<br />

inimigos!<br />

CLEANTO. – É ser vosso inimigo, dizer que tendes fortuna suficiente!<br />

HARPAGÃO. – Sim, discursos como esse e os gastos que fazeis serão motivo para que<br />

um dia destes me entre alguém pela casa dentro e me corte o pescoço, pensando que<br />

estou a nadar em dinheiro.<br />

CLEANTO. – Quais são os grandes gastos que faço?<br />

HAPAGÃO. – Quais? Haverá escândalo maior do que os sumptuosos trajos com que<br />

vos pavoneais pela cidade? Ainda ontem repreendia a vossa irmã; mas vós sois ainda<br />

pior. É de bradar aos Céus; e se olharmos para vós dos pés à cabeça, há aí que chegue<br />

para uma boa renda. Já vos repeti umas vinte vezes, meu filho, todos os vossos<br />

comportamentos me desagradam profundamente; dais-vos ares de marquês; e para<br />

andardes assim vestido, de certeza que me defraudais.<br />

CLEANTO. – Defraudar-vos, eu? Como?<br />

HARPAGÃO. – Sei lá! Onde ides vós buscar o que vos permite manter a condição que<br />

vestis?<br />

CLEANTO. – Eu, meu pai? Eu jogo; e como tenho muita sorte, ponho no corpo todo o<br />

dinheiro que ganho.<br />

HARPAGÃO. – Fazeis muito mal. Se tendes sorte ao jogo, deveríeis aproveitar, e pôr a<br />

render o dinheiro que ganhais para que mais tarde vos possa servir. Bem gostaria de<br />

saber, já para não falar no resto, para que servem esses laçarotes todos com que vos<br />

enfeitais da cabeça aos pés, e se não bastaria uma meia dúzia de atilhos para segurar um<br />

par de calções? Será mesmo necessário gastar dinheiro em perucas, quando podemos<br />

usar o nosso próprio cabelo, que é de graça. Posso apostar que em perucas e laçarotes,<br />

trazes aí pelo menos umas vinte moedas de ouro; ora, vinte moedas de ouro rendem por<br />

ano dezoito libras, seis soldos e oito dinheiros, mesmo a um juro baixo de um dinheiro<br />

por doze.<br />

CLEANTO. – Tendes razão.<br />

HARPAGÃO. – Deixemos isso, e falemos de outro assunto. (Apercebendo-se de que<br />

Cleanto e Elisa fazem sinais um ao outro) Hã? (Baixo, aparte) Acho que estão a fazer<br />

sinais um ao outro para me roubarem a bolsa. (Alto) O que significam esses gestos?<br />

ELISA. – Eu e o meu irmão, estamos a tentar decidir quem fala primeiro; temos ambos<br />

algo a dizer-vos.<br />

HARPAGÃO. – E eu tenho algo a dizer a ambos.<br />

ELISA. - É de casamento, meu pai, que desejamos falar-vos.<br />

HARPAGÃO. – E é também de casamento que quero conversar convosco.<br />

13


ELISA. – Ah! meu pai.<br />

HARPAGÃO. – Qual a razão desse grito? É a palavra, minha filha, ou o assunto, que<br />

vos assusta?<br />

CLEANTO. – O casamento pode bem assustar-nos aos dois, a maneira como vós o<br />

entendeis; e receamos que os nossos sentimentos não coincidam com a vossa escolha.<br />

HARPAGÃO. – Um pouco de paciência. Não vos alarmeis. Eu sei o que convém a cada<br />

um de vós; e nenhum dos dois terá motivo para se lamentar de tudo o que pretendo fazer.<br />

E para começar por uma ponta: dizei-me, tereis visto uma jovem chamada Mariana, que<br />

mora não muito longe daqui?<br />

CLEANTO. – Sim, meu pai.<br />

HAPAGÃO. – E vós?<br />

ELISA. – Já ouvi falar dela.<br />

HARPAGÃO. – O que pensais dessa rapariga, meu filho?<br />

CLEANTO. – Uma pessoa encantadora.<br />

HARPAGÃO. – A sua fisionomia?<br />

CLEANTO. – Pura, e cheia de graciosidade.<br />

HARPAGÃO. – O seu ar e os seus modos?<br />

CLEANTO. – Admiráveis, sem dúvida nenhuma.<br />

HARPAGÃO. – Não vos parece que uma rapariga assim mereceria que alguém<br />

pensasse nela?<br />

CLEANTO. – Sim, meu pai.<br />

HARPAGÃO. – Que seria um partido desejável?<br />

CLEANTO. – Muito desejável.<br />

HARPAGÃO. – Que tem todo o ar de alguém com quem podemos viver em harmonia?<br />

CLEANTO. – Sem dúvida.<br />

HARPAGÃO. – E que faria feliz qualquer marido?<br />

CLEANTO. – Seguramente.<br />

14


HARPAGÃO. – Há uma pequena contrariedade: receio bem que não me traga toda a<br />

fortuna que seria desejável.<br />

CLEANTO. – Ah! meu pai, quando se trata de casar com uma pessoa honesta, a fortuna<br />

não deve ser tida em consideração.<br />

HARPAGÃO. – Perdoai-me, perdoai-me. Mas a única coisa que há a dizer é; se não nos<br />

traz toda a fortuna que seria desejável, trataremos de recuperá-la de outra maneira.<br />

CLEANTO. – É evidente.<br />

HARPAGÃO. – Pois bem, apraz-me saber que concordais com os meus sentimentos; já<br />

que o seu comportamento honesto e o seu ar doce conquistaram a minha alma, e estou<br />

resolvido a desposá-la, contando que aí possa encontrar um ou outro bem.<br />

CLEANTO. – Hã?<br />

HARPAGÃO. – Como?<br />

CLEANTO. – Estais resolvido, dizeis…?<br />

HARPAGÃO. – A desposar Mariana.<br />

CLEANTO. – Quem, vós? Vós?<br />

HARPAGÃO. – Sim, eu, eu, eu. O que quer isso dizer?<br />

CLEANTO. – De repente, senti uma tontura, tenho de me retirar.<br />

HARPAGÃO. – Isso não há-de ser nada. Ide depressa à cozinha beber um grande copo<br />

de água pura. Ora vejam só estes vidrinhos de cheiro, são mais fracos do que galinhas<br />

chocas. Isto, minha filha, foi o que resolvi para mim. Quanto ao teu irmão, destino-lhe<br />

uma certa viúva de quem me vieram falar esta manhã; e no que te diz respeito, dou-te ao<br />

senhor Anselmo.<br />

ELISA. – Ao senhor Anselmo?<br />

HARPAGÃO. – Sim, um homem maduro, prudente, sensato, que não tem mais de<br />

cinquenta anos, e do qual se diz ter grandes riquezas.<br />

ELISA. (Fazendo uma vénia) – Não me quero casar, meu pai, por favor.<br />

HARPAGÃO. (Retribuindo a vénia) – E eu, minha filhinha minha queridinha, quero<br />

que vos caseis, por favor.<br />

ELISA. – Peço perdão, meu pai.<br />

HARPAGÃO. – Peço perdão, minha filha.<br />

15


ELISA. – Sou uma humilde criada do senhor Anselmo; mas, com a vossa permissão,<br />

não penso desposá-lo.<br />

HARPAGÃO. – Sou vosso humilde criado; mas, com a vossa permissão, desposá-lo-eis<br />

esta mesma noite.<br />

ELISA. – Esta mesma noite?<br />

HAPAGÃO. – Esta mesma noite.<br />

ELISA. (Voltando a fazer a vénia) – Assim não será, meu pai.<br />

HARPAGÃO. (Fazendo o mesmo que Elisa) – Assim será, minha filha.<br />

ELISA. – Não.<br />

HARPAGÃO. – Sim.<br />

ELISA. – Não, já vos disse.<br />

HARPAGÃO. – Sim, já vos disse.<br />

ELISA. – É algo a que não me ireis constranger.<br />

HARPAGÂO. – É algo a que te irei constranger.<br />

ELISA. – Prefiro matar-me a desposar um tal marido.<br />

HARPAGÃO. – Não te vais matar, e vais desposa-lo. Ora vejam só que atrevimento! Já<br />

alguma vez se viu uma filha falar deste modo a seu pai?<br />

ELISA. – Mas já alguma vez se viu um pai casar deste modo a filha?<br />

HARPAGÃO. – É um partido relativamente ao qual não há nada a dizer; e aposto que<br />

todos aprovarão a minha escolha.<br />

ELISA. – E eu aposto que nenhuma pessoa sensata a aprovará.<br />

HARPAGÃO. – Vem ali Valério: queres que ele sirva de juiz, entre nós, neste assunto?<br />

ELISA. – Aceito.<br />

HARPAGÃO. – Submeter-te-ás ao seu julgamento?<br />

ELISA. – Sim, farei o que ele disser.<br />

HARPAGÃO. – Assunto arrumado.<br />

16


CENA V<br />

VALÉRIO, HARPAGÃO, ELISA<br />

HARPAGÃO. – Vem cá, Valério. Elegemos-te para nos dizeres quem tem razão, a<br />

minha filha ou eu.<br />

VALÉRIO. – Sois vós, Senhor, incontestavelmente.<br />

HARPAGÃO. – Sabes do que estávamos a falar?<br />

VALÉRIO. – Não; mas vós não poderíeis estar errado, vós sois a própria razão.<br />

HARPAGÃO. – Pretendo dar-lhe como esposo, esta mesma noite, um homem tão rico<br />

quanto sábio; e a malandra diz-me na cara que não quer saber dele para nada. O que<br />

dizes tu a isto?<br />

VALÉRIO. – O que digo eu a isso?<br />

HARPAGÃO. – Sim.<br />

VALÉRIO. – Hum, hum.<br />

HARPAGÃO. – O quê?<br />

VALÉRIO. – Digo que no fundo sou da vossa opinião; e é impossível que não tenhais<br />

razão. Mas ela também não está completamente errada, e…<br />

HARPAGÃO. – Como? o senhor Anselmo é um partido considerável; é um fidalgo que<br />

é nobre, afável, ponderado, sábio, e muito bem acomodado, e que já não tem nenhum<br />

filho do primeiro casamento. Poderia ela encontrar melhor?<br />

VALÉRIO. – Lá isso é verdade. Mas ela poderia dizer-vos que talvez seja precipitar um<br />

pouco as coisas, e que seria necessário pelo menos algum tempo para ver se a sua<br />

inclinação se poderá acomodar a…<br />

HARPAGÃO. – É uma oportunidade que é preciso agarrar com unhas e dentes. Vejo<br />

aqui uma vantagem que não encontrarei noutro lado, ele compromete-se a recebê-la sem<br />

dote.<br />

VALÉRIO. – Sem dote?<br />

HARPAGÃO. – Sim.<br />

VALÉRIO. – Ah! então não digo mais nada. Estais a ver? Aqui está uma razão<br />

totalmente convincente; temos de nos render à evidência.<br />

17


HARPAGÃO. – Para mim, é uma poupança considerável.<br />

VALÉRIO. – Certamente, nada há a refutar. É verdade que a vossa filha pode<br />

argumentar que o casamento é um assunto mais sério do que se imagina; que dele<br />

depende sermos felizes ou infelizes durante toda a nossa vida; e que um compromisso<br />

que deve durar até à morte, não deve nunca ser assumido sem as devidas precauções.<br />

HARPAGÃO. – Sem dote.<br />

VALÉRIO. – Tendes razão: aí está o que resolve tudo, naturalmente. Pessoas há que<br />

vos poderiam dizer que em ocasiões como esta a inclinação de uma filha é algo que<br />

talvez deva ser tido em conta; e que a grande diferença de idades, de disposição e de<br />

sentimentos, torna um casamento sujeito a incidentes desagradáveis.<br />

HARPAGÃO. – Sem dote.<br />

VALÉRIO. – Ah! Perante isso, não há objecção possível: bem o sabemos; quem diabo o<br />

pode negar? Não quer dizer que não haja muitos pais que prefeririam garantir a<br />

felicidade das filhas ao dinheiro que poderiam poupar; que não as sacrificariam ao seu<br />

interesse e que, acima de tudo, procurariam garantir ao casamento essa doce afinidade<br />

que permite manter constantes a honra, a tranquilidade e a alegria, e que…<br />

ELISA. – Sem dote.<br />

VALÉRIO. – É verdade: isso deixa-nos de boca fechada, sem dote. Como resistir a um<br />

argumento destes?<br />

HARPAGÃO. (Olhando para o jardim) – Olá! Parece-me ouvir um cão a ladrar.<br />

Andará alguém à procura do meu dinheiro? Esperai aqui, eu venho já.<br />

ELISA. – Estais a brincar, Valério, ao falar-lhe dessa maneira?<br />

VALÉRIO. – É para não o irritar, e para melhor atingir o meu intento. Contrariar<br />

frontalmente os seus sentimentos é a melhor maneira de deitar tudo a perder; há certos<br />

espíritos que só conseguimos agarrar de viés, temperamentos inimigos de toda e<br />

qualquer contradição, naturezas obstinadas, a quem a verdade vira do avesso, que ficam<br />

empedernidos perante o caminho directo da razão, e a quem só com muitos rodeios<br />

conseguimos pôr do nosso lado. Procurai fingir que consentis no que ele quer, atingireis<br />

melhor os vossos fins, e…<br />

ELISA. – Mas este casamento, Valério?<br />

VALÉRIO. – Procuraremos impedi-lo por outras vias.<br />

ELISA. – Mas que havemos de inventar, se ele se realiza esta noite?<br />

VALÉRIO. – Teremos de pedir um adiamento, e simular uma doença qualquer.<br />

ELISA. – Mas se chamarem os médicos, vão descobrir a mentira.<br />

18


VALÉRIO. – Estais a brincar? Eles percebem alguma coisa disso? Vá lá, podeis ter a<br />

doença que quiserdes, eles encontrarão explicações para o vosso mal.<br />

HARPAGÃO. – Não é nada, graças a Deus.<br />

VALÉRIO. – Enfim, o nosso último recurso, é a fuga que nos porá a coberto de tudo; e<br />

se o vosso amor, bela Elisa, é capaz de uma firmeza… (Vê Harpagão) Sim, uma filha<br />

deve obedecer a seu pai. Não deve preocupar-se com o aspecto do marido, e quando o<br />

argumento sem dote se impõe, deve estar pronta a aceitar tudo o que lhe é destinado.<br />

HARPAGÃO. – Muito bem, isso é que é falar.<br />

VALÉRE. – Senhor, peço-vos que me perdoeis se me exaltei um pouco e se ouso falarlhe<br />

deste modo.<br />

HARPAGÃO. – Como? estou contentíssimo, e quero que passes a ter sobre ela um<br />

poder absoluto. Sim, bem podes tentar fugir. Dou-lhe a autoridade que o Céu me dá<br />

sobre ti, e exijo que faças tudo o que ele te disser.<br />

VLAÉRIO. – Depois disto, tentai resistir às minhas repreensões. Senhor, vou<br />

acompanhá-la, para continuar com as lições que lhe estava a dar.<br />

HARPAGÃO. – Sim, fico-te muito grato. Por certo…<br />

VALÉRIO. – Convém manter-lhe a rédea curta.<br />

HARPAGÃO. – Lá isso é verdade. É preciso…<br />

VALÉRIO. – Não vos preocupeis. Creio que conseguirei atingir o meu intento.<br />

HARPAGÃO. – Isso, isso. Vou dar uma volta pela cidade, e volto daqui a pouco.<br />

VALÉRIO. – Sim, o dinheiro é o que há de mais precioso no mundo, e deveis dar<br />

garças aos Céus pelo homem honrado e distinto que tendes por pai. Ele sabe o que é a<br />

vida. Quando alguém se oferece para receber uma filha sem dote, não devemos olhar<br />

para trás. Tudo se confina a isto, e sem dote passa a querer dizer beleza, juventude,<br />

honra, sabedoria e probidade.<br />

HARPAGÃO. – Ah! Que magnífico rapaz! Isto é que é falar como um oráculo. Feliz de<br />

quem pode ter um criado como este!<br />

19


ACTO <strong>II</strong><br />

CENA I<br />

CLEANTO, FLECHA<br />

CLEANTO. – Ah! traidor, onde é que te enfiaste? Não te tinha dado ordens…<br />

FLECHA. – Sim, Senhor, e vim até aqui, e aqui pensava ficar de pedra e cal à vossa<br />

espera; mas o Senhor vosso pai, o mais descortês dos homens, pôs-me na rua contra a<br />

minha vontade, e por pouco não me bateu.<br />

CLEANTO. – Como vai o nosso negócio? As coisas são mais urgentes do que nunca; e<br />

desde a última vez em que estive contigo, descobri que o meu pai é meu rival.<br />

FLECHA. – O vosso pai apaixonado?<br />

CLEANTO. – Sim. E passei as maiores aflições para lhe esconder a perturbação que<br />

esta notícia me causou.<br />

FLECHA. – Meter-se em amores, ele? Como diabo se atreve? Está a fazer pouco das<br />

pessoas? E será que o amor foi feito para gente da laia dele?<br />

CLEANTO. – E logo, para mal dos meus pecados, se lhe havia de meter esta paixão na<br />

cabeça.<br />

FLECHA. – Mas, por que razão fazeis tal mistério do vosso amor?<br />

CLEANTO. – Para que ele não desconfie, e assim garantir, se necessário for, vias mais<br />

desafogadas para impedir este casamento. Que resposta te deram?<br />

FLECHA. – Por minha fé, Senhor! são bem infelizes aqueles que precisam de pedir<br />

emprestado; e têm de engolir muitos sapos vivos quando, como vós, são obrigados a<br />

passar pelas mãos dos sanguessugas.<br />

CLEANTO. – Já não se faz o negócio?<br />

FLECHA. – Perdoai-me. O corretor que nos indicaram, o nosso Mestre Simão, homem<br />

eficaz e cheio de cuidados, diz que mexeu por vós todos os cordelinhos; e garante que o<br />

vosso rosto conquistou de imediato a sua simpatia.<br />

CLEANTO. – Terei os quinze mil francos que peço?<br />

20


FLECHA. – Sim; mas com algumas pequenas condições, que tereis de aceitar, se<br />

desejais que o negócio se faça.<br />

CLEANTO. – Pôs-te em contacto com quem empresta o dinheiro?<br />

FLECHA. – Ah! na verdade, as coisas não se fazem bem assim. Ele tem ainda mais<br />

cuidado em esconder-se do que vós, são mistérios bem maiores do que podeis supor.<br />

Não querem dizer o seu nome de forma nenhuma, e hoje mesmo, numa casa emprestada,<br />

chegaremos à fala com ele, para ser informado, pela vossa própria boca, sobre os vossos<br />

haveres e a vossa família; e não tenho dúvidas de que o simples nome do vosso pai<br />

facilitará as coisas.<br />

CLEANTO. – E principalmente a herança que me pertence por morte da nossa mãe, da<br />

qual ninguém me pode privar.<br />

FLECHA. – Aqui estão algumas cláusulas que ele próprio ditou ao nosso intermediário,<br />

para que vos fossem mostradas, antes de avançarmos com o que quer que seja:<br />

Admitindo que o prestamista obtenha todas as garantias e que o devedor seja maior e<br />

de uma família de ampla fortuna, sólida, segura, limpa, e livre de encargos, far-se-á um<br />

contrato legal e exacto perante o notário, o mais honrado que se possa encontrar, e que,<br />

para este efeito, será escolhido pelo prestamista, a quem mais importa que o acto seja<br />

devidamente instruído.<br />

CLEANTO. – Não há nada a dizer.<br />

FLECHA. – O prestamista, para não sobrecarregar a sua consciência com escrúpulos,<br />

pretende emprestar o seu dinheiro ao juro de cinco e meio por cento.<br />

CLEANTO. – Cinco e meio por cento! Por Deus! Aqui está uma pessoa honesta. Não<br />

há razão para nos queixarmos.<br />

FLECHA. – Lá isso é verdade.<br />

Mas como o dito prestamista não tem em sua casa a soma em questão, e que para<br />

satisfazer o devedor, se vê ele próprio obrigado a pedi-la emprestada a outrem, ao juro<br />

de vinte por cento, convirá que o dito primeiro devedor pague este juro, sem prejuízo<br />

do resto, tendo em conta que é apenas para lhe ser prestável que o dito prestamista se<br />

compromete a contrair este empréstimo.<br />

CLEANTO. – Que diabo quer isso dizer? que Judeu, que Árabe me está este a sair?<br />

Quer vinte e cinco por cento de juros?<br />

FLECHA. – É verdade; foi o que eu disse. Tendes de pensar bem.<br />

CLEANTO. – Que queres tu que eu pense? Preciso de dinheiro; tenho de aceitar tudo.<br />

FLECHA. – Foi a resposta que eu dei.<br />

CLEANTO. – Há mais alguma coisa?<br />

21


FLECHA. – Apenas uma cláusulazinha.<br />

Dos quinze mil francos que lhe são pedidos, o prestamista só dispõe de doze mil libras<br />

em dinheiro, e para os mil escudos restantes, deverá o devedor receber roupas, móveis<br />

e jóias que constam da lista anexa, e aos quais o dito prestamista atribuiu, de boa fé, o<br />

mais módico preço que lhe foi possível.<br />

CLEANTO. – Que quer isso dizer?<br />

FLECHA. – Escutai a lista.<br />

Primeiro, uma cama de quatro pés, com barras de ponto húngaro, elegantemente<br />

aplicadas sobre tecido verde-azeitona, com seis cadeiras e folho do mesmo tecido, tudo<br />

muito bem acabado e debruado com um pequeno tafetá azul e vermelho.<br />

Mais um dossel de bom tecido de Aumle rosa seco, com galão e franjas em seda.<br />

CLEANTO. – Que quer ele que eu faça com isso?<br />

FLECHA. – Esperai.<br />

Mais um jogo de tapeçarias com os amores de Gombaut e de Macée.<br />

Mais uma mesa grande em nogueira, com doze colunas ou pilares torneados, que se<br />

pode abrir dos dois lados, e guarnecida com os seus seis escabelos.<br />

CLEANTO. – Diabos me levem, que tenho eu a ver…?<br />

FLECHA. – Um pouco de paciência.<br />

Mais, três grandes mosquetes guarnecidos a madrepérola, com os três garfos a<br />

condizer.<br />

Mais, um forno em tijolo com duas retortas e três recipientes muito úteis aos amadores<br />

da arte de destilar.<br />

CLEANTO. – Que raiva.<br />

FLECHA. – Calma.<br />

Mais, um alaúde de Bolonha, com todas as suas cordas, ou quase.<br />

Mais, um jogo de bilhar, e um tabuleiro de damas, com um jogo do ganso à maneira<br />

grega, ideais para passar tempo quando não se tem nada para fazer.<br />

Mais uma pele de crocodilo de três pés e meio, repleta de palha, curiosidade agradável<br />

para pendurar no tecto de um quarto.<br />

O todo mencionado valendo legalmente mais de quatro mil e quinhentas libras, e<br />

reduzido, por condescendência do prestamista, ao valor de mil escudos.<br />

CLEANTO. – Que a peste o estrangule mais a sua condescendência, traidor, carrasco, é<br />

o que ele é! Onde é que já se viu semelhante usura? E não está satisfeito com o juro<br />

mirabolante que exige, ainda tem de me obrigar a ficar, por três mil libras, com os todos<br />

os trastes velhos que apanha por aí? Não conseguirei sequer duzentos escudos por<br />

aquilo tudo; e no entanto, tenho de me resignar e aceitar o que ele quer; porque está em<br />

posição de me fazer aceitar tudo, e sabe, o celerado, que me tem entre a espada e a<br />

parede.<br />

22


FLECHA. – Não vos zangueis, Senhor, mas vejo-vos seguir precisamente o mesmo<br />

caminho que levou Panurge à ruína, pedindo dinheiro adiantado, comprando caro,<br />

vendendo barato, e acabando por vender as uvas na parreira.<br />

CLEANTO. – Que queres tu que eu faça? Eis ao que chegam os mais novos por culpa<br />

da maldita avareza dos pais; e depois espantam-se que os filhos lhes desejem a morte.<br />

FLECHA. – Temos de confessar que o vosso é capaz de incitar contra a sua vilania o<br />

homem mais calmo do mundo. Graças a Deus, eu não tenho qualquer intenção de ir<br />

parar à forca; e relativamente aos meus companheiros sempre envolvidos em negócios<br />

escuros, sei muito bem sair de fininho quando me cheira a esturro, e desembaraçar-me<br />

com toda a prudência de todas as cortesias que possam trazer escadote no bico; mas,<br />

para vos dizer a verdade, ao ver como procede, a tentação de o roubar é grande; e penso<br />

que se o fizesse, praticaria uma acção meritória.<br />

CLEANTO. – Dá-me cá essa lista, deixa-me olhar para ela outra vez.<br />

CENA <strong>II</strong><br />

MESTRE SIMÃO, HARPAGÃO, CLEANTO, FLECHA<br />

MESTRE SIMÃO. – Sim, Senhor, trata-se de um jovem que precisa de dinheiro. Os<br />

negócios apressam-no a arranjá-lo, e aceitará tudo o que vós prescreverdes.<br />

HARPAGÃO. – Mas achais, mestre Simão, que não há aqui nada de periclitante? e<br />

conheceis o nome, a fortuna e a família daquele por quem tomais a palavra?<br />

MESTRE SIMÃO. – Não, não posso informar-vos com exactidão, e foi apenas por<br />

acaso que o mandaram vir ter comigo; mas vereis tudo esclarecido pelo próprio; e o<br />

homem que o acompanha garantiu-me que ficareis contente quando o conhecerdes.<br />

Tudo o que vos posso dizer é que pertence a uma família muito rica, que já não tem mãe<br />

e que, se assim o desejardes, vos pode assegurar que o pai estará morto dentro de oito<br />

meses.<br />

HARPAGÃO. – Isso já é qualquer coisa. A caridade, mestre Simão, obriga-nos, quando<br />

podemos, a fazer o bem às pessoas.<br />

MESTRE SIMÃO. – É evidente.<br />

FLECHA. – Que quer isto dizer? O nosso mestre Simão está a falar com o vosso pai.<br />

CLEANTO. – Alguém lhe terá dito quem eu sou? Ter-me-ias tu traído?<br />

23


MESTRE SIMÃO. – Ah! Ah! estais com pressa! Quem vos disse que era aqui? Não fui<br />

eu, Senhor, quem lhes deu a conhecer o vosso nome e a vossa casa; mas, na minha<br />

opinião, não há nisso grande mal. São pessoas discretas, e podeis explicar-vos<br />

mutuamente.<br />

HARPAGÃO. – Como?<br />

MESTRE SIMÃO. – Este Senhor é a pessoa que vos quer pedir emprestadas as quinze<br />

mil libras de que vos falei.<br />

HARPAGÃO. – O quê, meu patife? és tu quem se entrega a estes condenáveis excessos?<br />

CLEANTO. – O quê, meu pai? sois vós quem se entrega a estas vergonhosas acções?<br />

HARPAGÃO. – És tu quem quer arruinar-se com tão condenáveis empréstimos?<br />

CLEANTO. – Sois vós quem procura enriquecer com tão condenáveis usuras?<br />

HARPAGÃO. – Depois disto, ainda ousas aparecer à minha frente?<br />

CLEANTO. – Depois disto, ainda ousais apresentar-vos aos olhos do mundo?<br />

HARPAGÃO. – Não tens vergonha, diz-me, de chegares a uma tal devassidão? De te<br />

precipitares em despesas exorbitantes? E de fazeres uma dissipação vergonhosa da<br />

fortuna que os teus pais conseguiram juntar com o suor do rosto?<br />

CLEANTO. – Não vos cora o rosto por desonrardes a vossa condição com os negócios<br />

sujos que fazeis? por sacrificardes glória e reputação ao desejo insaciável de empilhar<br />

escudo sobre escudo, e por ultrapassardes, em matéria de juros, as mais infames<br />

subtilezas que os mais célebres usurários se dignaram alguma vez inventar?<br />

HARPAGÃO. – Sai da minha vista, malvado! sai da minha vista!<br />

CLEANTO. – Quem, na vossa opinião, é mais criminoso, aquele que compra o dinheiro<br />

de que precisa, ou aquele que rouba o dinheiro que não lhe faz falta?<br />

HARPAGÃO. – Sai, já te disse, e não me faças perder a paciência.<br />

Até nem estou aborrecido com este incidente; e é um aviso para mim, agora mais do que<br />

nunca, devo ter todas as suas acções debaixo de olho.<br />

FROSINA. – Senhor…<br />

CENA <strong>II</strong>I<br />

FROSINA, HARPAGÃO<br />

24


HARPAGÃO. – Esperai um momento; já venho falar-vos.<br />

Convém que eu vá dar uma voltinha pelo meu dinheiro.<br />

CENA IV<br />

FLECHA, FROSINA<br />

FLECHA. – O incidente é divertidíssimo. Ele deve ter algures um imenso armazém de<br />

trastes; porque não reconhecemos nada do que vinha na lista.<br />

FROSINA. – Ah! És tu, meu pobre Flecha! A que se deve este encontro?<br />

FLECHA. – Ah! ah! és tu, Frosina. Que fazes tu por aqui?<br />

FROSINA. – O que faço em todo o lado: entremeter-me em negócios, mostrar-me útil<br />

às pessoas, e aproveitar, o melhor possível, os pequenos talentos de que sou dotada.<br />

Bem sabes que neste mundo só se vive com habilidade, e para além da intriga e da<br />

astúcia, outra renda o Céu não deu a pessoas como eu.<br />

FLECHA. – Tens algum negócio com o dono da casa?<br />

FROSINA. – Sim, estou a tratar-lhe de uma pequeno assunto, de que espero<br />

recompensa.<br />

FLECHA. – Dele? Ah, por minha fé, Frosina, bem esperta serás se conseguires<br />

arrancar-lhe alguma coisa; e aviso-te já que o dinheiro aqui é coisa cara.<br />

FROSINA. – Há certos serviços que cativam maravilhosamente.<br />

FLECHA. – Sou um vosso criado, e tu ainda não conheces o senhor Harpagão. O<br />

senhor Harpagão é de todos os humanos o humano menos humano, de todos os mortais<br />

o mortal mais duro e mais agarrado. Não há serviço nenhum que mereça o seu<br />

reconhecimento a ponto de o fazer abrir os cordões à bolsa. Elogios, estima, palavras<br />

generosas e toda a amizade que quiseres; mas dinheiro, nem pensar. Não há nada de<br />

mais seco e de mais árido do que as suas atenções e afectos; e é tal a aversão que sente<br />

pela palavra dar, que nunca diz: Dou-vos os bons dias, mas: Presto-vos os bons dias.<br />

FROSINA. – Por Deus! eu cá conheço a arte de espremer os homens; tenho o segredo<br />

de os enternecer, de lhes afagar o coração, de lhes tocar nas cordas sensíveis.<br />

FLECHA. – Bagatelas. Desafio-te a enternecer, no que a dinheiro diz respeito, o homem<br />

de quem falamos. Nisso, é um Turco, mas de uma turquidez, que leva toda a gente ao<br />

desespero; e podíamos estar ali a morrer que ele não mexia uma palha. Numa palavra,<br />

ama o dinheiro, acima da reputação, da honra e da virtude; e mal avista um pedinte fica<br />

25


com convulsões. É feri-lo no ponto mortal, é perfurar-lhe o coração, é arrancar-lhe as<br />

entranhas; e se… Mas ei-lo que chega; retiro-me.<br />

HARPAGÃO. – Está tudo em ordem.<br />

Então que há, Frosina?<br />

CENA V<br />

HARAPAGÃO, FROSINA<br />

FROSINA. – Ah, por Deus! que bom aspecto tendes! parece que vendeis saúde!<br />

HARPAGÃO. – Quem, eu?<br />

FROSINA. – Nunca vos vi com uma tez tão fresca e tão viçosa.<br />

HARPAGÃO. – A sério?<br />

FROSINA. – O quê? Nunca em vossa vida estivestes tão jovem quanto agora; e<br />

conheço muita gente de vinte e cinco anos que parece mais velha do que vós.<br />

HARPAGÃO. – E no entanto, Frosina, já lá vão sessenta bem contados.<br />

FROSINA. – Ora! e o que é isso, sessenta anos? Qual bem contados! Estais na flor da<br />

idade, e entrais agora na melhor estação da vida de um homem.<br />

HARPAGÃO. – Lá isso é verdade; mas uns vinte anos a menos não me fariam mal<br />

nenhum, creio eu.<br />

FROSINA. – Estais a brincar? Não precisais disso, e sois da mesma massa dos que<br />

atingem os cem anos.<br />

HARPAGÃO. – Achas mesmo?<br />

FROSINA. – Com toda a certeza. Tendes todos os sinais disso. Não vos mexais. Ora<br />

aqui está, entre os vossos dois olhos, uma marca de longa vida!<br />

HARPAGÃO. – Percebes disso, tu?<br />

FROSINA. – Claro. Mostrai-me a vossa mão. Ah, por Deus! que linha de vida!<br />

HARPAGÃO. – Como?<br />

FROSINA. – Pois não vedes até onde vai esta linha, aqui?<br />

26


HARPAGÃO. – E então, o que é que isso quer dizer?<br />

FROSINA. – Por minha fé! Eu dizia cem anos; mas ultrapassareis os cento e vinte.<br />

HARPAGÃO. – Será possível?<br />

FROSINA. – Só se vos matarem, é o que eu vos digo; ainda haveis de enterrar os vossos<br />

filhos e os filhos dos vossos filhos.<br />

HARPAGÃO. – Ainda bem. Como vai o nosso negócio?<br />

FROSINA. – É preciso perguntar? já alguém me viu meter-me num assunto e dele sair<br />

sem ter atingido o meu intento? Sobretudo para os casamentos tenho um talento<br />

maravilhoso; não há no mundo partido a quem eu não consiga arranjar par em pouco<br />

tempo; e acho mesmo que, se me desse na cabeça, conseguiria casar o Grão-Turco com<br />

a República de Veneza. Claro que o vosso assunto era bem menos complicado. E como<br />

frequento a casa delas, tenho-lhes falado, a uma e a outra, acerca de vós, e informei a<br />

mãe das vossas intenções a respeito de Mariana, desde que a vistes passar na rua e<br />

tomar ar à janela.<br />

HARPAGÃO. – E ela respondeu…<br />

FROSINA. – Recebeu a proposta com alegria; e quando lhe comuniquei que muito<br />

gostaríeis que a filha assistisse esta noite ao contrato de casamento da vossa, ela<br />

consentiu sem hesitação, e confiou-a aos meus cuidados.<br />

HARPAGÃO. – É que vou ser obrigado, Frosina, a dar de jantar ao Senhor Anselmo; e<br />

teria muito gosto que ela estivesse presente no banquete.<br />

FROSINA. – Tendes razão. Depois de almoço, ela virá visitar a vossa filha, daí tenciona<br />

ir dar uma volta pela feira, para regressar à hora do jantar.<br />

HARPAGÃO. – Muito bem! Empresto-lhes o meu coche e poderão ir juntas.<br />

FROSINA. – Assim se fará.<br />

HARPAGÃO. – Mas, Frosina, conversaste com a mãe sobre os bens que pode dar à<br />

filha? Disseste-lhe que era preciso que ajudasse um pouco, que fizesse um esforço, que<br />

se sacrificasse numa ocasião como esta? Porque ninguém casa com uma rapariga que<br />

não traga alguma coisa.<br />

FROSINA. – O quê? É uma rapariga que vos trará doze mil libras de renda.<br />

HARPAGÃO. – Doze mil libras de renda!<br />

FROSINA. – Sim. Primeiro, foi criada e educada com grande poupança de boca; é uma<br />

rapariga habituada a viver de salada, leite, queijo e maçãs e a quem, por consequência,<br />

não será necessário nem mesa farta, nem caldos especiais, nem contínuas orchatas, nem<br />

outras delicadezas que qualquer outra mulher exigiria. Ora, isto não representa assim tão<br />

pouco, rondará no mínimo uns três mil francos por ano. Para além disto, a única coisa a<br />

27


que aspira é ao asseio em toda a sua simplicidade, não gosta nada de roupas caras, nem<br />

de jóias valiosas, nem de móveis sumptuosos, coisas que qualquer outra no seu lugar<br />

desejaria ardentemente; e esta cláusula vale mais de quatro mil libras por ano. A<br />

acrescentar a isto, tem uma horrível aversão ao jogo, o que não é nada habitual nas<br />

mulheres nos dias que correm; conheço uma que mora aqui na vizinhança que este ano<br />

perdeu vinte mil francos às cartas. Mas façamos contas apenas a um quarto. Cinco mil<br />

francos ao jogo, por ano, e quatro mil francos em roupas e jóias, são nove mil libras;<br />

mais mil escudos para a alimentação, não teremos aqui os vossos doze mil francos bem<br />

contados?<br />

HARPAGÃO. – Sim, não é mau; mas essas contas não têm nada de palpável.<br />

FROSINA. – Perdão. Não será palpável trazer-vos em dote uma grande sobriedade, a<br />

herança de um grande amor pela simplicidade, e a aquisição de um ódio profundo ao<br />

jogo?<br />

HARPAGÃO. – É uma piada de mau gosto, apresentar-me como dote todas as despesas<br />

que ela não fará. Não vou passar recibo daquilo que não recebo; é preciso que eu apalpe<br />

qualquer coisa.<br />

FROSINA. – Por Deus! não vos faltará que apalpar; e elas falaram-me de uma certa<br />

terra onde têm bens dos quais sereis dono e senhor.<br />

HARPAGÃO. – Só vendo. Mas, Frosina, há ainda algo que me preocupa. A rapariga é<br />

jovem, como sabes; e normalmente a gente nova gosta de gente nova, é essa a<br />

companhia que procuram. Receio bem que um homem da minha idade não seja do seu<br />

agrado; e que isso venha a provocar em minha casa certas pequenas agitações que não<br />

me deixariam nada satisfeito.<br />

FROSINA. – Ah! como a conheceis mal! É outra particularidade de que vos queria falar.<br />

Ela tem uma terrível aversão a tudo o que é gente nova, e só os mais velhos lhe agradam.<br />

HARPAGÃO. – Ela?<br />

FROSINA. – Sim, ela. Gostaria que a tivésseis ouvido falar sobre isso. Nem à vista<br />

suporta um homem mais novo; mas fica encantada, diz ela, com a presença de um velho<br />

bem parecido com uma majestosa barba. Para ela, quanto mais velho mais encantador, e<br />

aviso-vos já que não tenteis fingir-vos mais novo do que aquilo que sois. Ela quer, no<br />

mínimo, um sexagenário; e ainda não há quatro meses, estando prestes a casar-se,<br />

rompeu imediatamente o noivado, só porque o noivo lhe fez saber que tinha apenas<br />

cinquenta e seis anos, e que nem sequer precisava de óculos para assinar o contrato.<br />

HARPAGÃO. – Só por isso?<br />

FROSINA. – Sim. Ela diz que cinquenta e seis anos não é idade que a satisfaça; e<br />

sobretudo, adora narizes com óculos.<br />

HARPAGÃO. – Realmente, estás a dar-me uma grande novidade.<br />

28


FROSINA. – E ainda vai mais longe do que imaginais. No seu quarto, podemos ver<br />

alguns quadros e algumas gravuras; mas, que pensais vós que representam? Adónis,<br />

Céfalos, Paris ou Apolos? Não: são belos retratos de Saturno, do rei Príamo, do velho<br />

Nestor, e do bom pai Anquises aos ombros de seu filho.<br />

HARPAGÃO. – Isso é admirável! Nunca teria imaginado tal coisa; e agrada-me muito<br />

saber que ela está nessa disposição. Na verdade, se eu tivesse sido mulher, não me<br />

teriam agradado os homens novos.<br />

FROSINA. – Acredito bem. São como a droga, os rapazes novos, não vejo razão para<br />

nos apaixonarmos por eles! Não passam de uns grandes ranhosos, de uns belos<br />

fanfarrões, não percebo como podem ser tão desejados; ainda gostava de saber que<br />

tempero lhes encontram.<br />

HAPAGÃO. – Eu cá não consigo perceber; e nem sei como é que há mulheres que<br />

gostam tanto deles.<br />

FROSINA. – É preciso ser-se doida varrida. Achar a juventude agradável! Isso é ter<br />

juízo? São lá homens, esses miúdos loiraços? Pode lá a gente afeiçoar-se a bichos<br />

desses?<br />

HAPAGÃO. – É o que eu digo todos os dias; com aquela voz de galinha esganiçada, e<br />

três pêlos de barba arrebitados como bigodes de gato, as perucas de estopa, os calções<br />

descaídos, e as camisas desbarrigadas.<br />

FROSINA. – Ai! isso está muito bem visto, muito longe de uma pessoa como vós. Isto<br />

sim, é um homem. Há com o que encher a vista; e é assim que é preciso ser e andar<br />

vestido para despertar o amor.<br />

HAPAGÃO. – Achas que estou bem?<br />

FROSINA. – Como? estais magnífico, e a vossa figura é digna de ser pintada. Dai uma<br />

voltinha, por favor. Não se pode pedir melhor. Caminhai um pouco para que eu vos veja.<br />

Ora aqui está um corpo bem talhado, livre e desenvolto como deve ser, e que não mostra<br />

nenhuma maleita.<br />

HAPAGÃO. – Não tenho nada de grave, graças a Deus. A não ser este catarro que me<br />

ataca de vez em quando.<br />

FROSINA. – Isso não é nada. O catarro não vos assenta nada mal, e tendes graça<br />

quando tossis.<br />

HAPAGÃO. – Diz-me cá: a Mariana ter-me-á visto alguma vez? Não terá ela reparado<br />

em mim por acidente?<br />

FROSINA. – Não; mas temos conversado muito sobre vós. Fiz-lhe um retrato da vossa<br />

pessoa; e não deixei de enaltecer o vosso mérito, e de lhe mostrar como seria vantajoso<br />

para ela ter um marido como vós.<br />

HAPAGÃO. – Fizeste bem, e agradeço-te que o tenhas feito.<br />

29


FROSINA. – Eu teria, Senhor, um pequeno pedido a fazer-vos. (Harpagão assume um<br />

ar sério.) Estou em risco de perder um processo por falta de algum dinheiro; e vós<br />

poderíeis facilmente ajudar-me a ganhar o dito processo, se acedêsseis a conceder-me<br />

um pouco da vossa generosidade. (Harpagão assume um ar de satisfação) Não podeis<br />

imaginar o prazer que vai ser para ela encontrar-vos. Ah! Como lhe ireis agradar! E<br />

como o vosso colarinho de pregas à moda antiga terá no seu espírito um efeito<br />

estonteante! Mas sobretudo, ficará encantada com os vossos calções, apertados ao colete<br />

com atilhos: vai ficar doidinha por vós; e um noivo atado com atilhos terá para ela um<br />

temperozinho especial.<br />

HAPAGÃO. – Realmente, encantas-me com o que me dizes.<br />

FROSINA. – (Harpagão retoma o ar sério.) Na verdade, Senhor, este processo é muito<br />

importante para mim. Ficarei arruinada, se o perder; e uma pequena ajuda bastaria para<br />

me recompor os negócios. (Harpagão retoma o ar de satisfação) Só queria que tivésseis<br />

visto o êxtase em que ficava quando me ouvia falar de vós. A alegria saltava-lhe dos<br />

olhos quando lhe evocava as vossas qualidades; e por fim deixei-a morta de impaciência<br />

por ver concluído o casamento.<br />

HAPAGÃO. – Deste-me uma grande alegria, Frosina; e devo confessar que te estou<br />

infinitamente agradecido.<br />

FROSINA. – (Harpagão retoma o seu ar sério) Imploro-vos, Senhor, que me deis a tal<br />

ajudinha que vos peço. Com isso endireito a minha vida, e ficar-vos-ei eternamente<br />

grata.<br />

HAPAGÃO. – Adeus. Vou acabar de despachar a minha correspondência.<br />

FROSINA. – Asseguro-vos, Senhor, de que o vosso alívio não poderia surgir em melhor<br />

momento.<br />

HAPAGÃO. – Darei ordem para que o meu coche esteja pronto para vos levar à feira.<br />

FROSINA. – Não vos importunaria, se a isso me não forçasse a necessidade.<br />

HARPAGÃO. – Terei o cuidado de providenciar para que o jantar seja servido cedo,<br />

não quero que ninguém fique doente.<br />

FROSINA. – Não me recuseis a graça que vos solicito. Não podeis imaginar, Senhor, o<br />

prazer que…<br />

HARPAGÃO. – Vou-me embora. Estão a chamar-me. Até logo.<br />

FROSINA. – Que a febre te estrangule, maldito cão dos infernos! O ladrão resistiu a<br />

todos os meus ataques; mas ainda assim não abandonarei a negociação; e de qualquer<br />

forma, ainda tenho o outro lado, onde estou certa de ir buscar uma boa recompensa.<br />

30


ACTO <strong>II</strong>I<br />

CENA I<br />

HARPAGÃO, CLEANTO, ELISA, VALÉRIO,<br />

SENHORA CLÁUDIA, MESTRE TIAGO<br />

PÉDAVEIA, BACALHAU<br />

HARPAGÃO. – Ora venham cá todos, quero dar-vos as ordens para logo e fixar uma<br />

função a cada um. Aproximai-vos, senhora Cláudia. Comecemos por vós. (Ela tem na<br />

mão uma vassoura). Bem, já estais de arma em punho. Encarrego-vos da limpeza geral;<br />

e tende cuidado, sobretudo, de não esfregar os móveis com muita força, receio que<br />

fiquem gastos. Para além disto, durante o jantar, ficareis responsável pela gestão das<br />

garrafas; e se alguma for desviada ou se se partir alguma coisa, é convosco que irei ter e<br />

descontá-lo-ei no vosso salário.<br />

MESTRE TIAGO. – Castigo de político.<br />

HARPAGÃO. – Podeis ir. Vós, Pédaveia, e vós, Bacalhau, ficais com o encargo de<br />

passar os copos por água, e dar de beber, mas apenas quando alguém tiver sede, e não<br />

de acordo com os hábitos de alguns lacaios impertinentes, que vão provocar as pessoas,<br />

incitá-las a beber quando isso já nem sequer lhes passa pela cabeça. Esperai que vos<br />

peçam mais de uma vez, e lembrai-vos sempre de trazer muita água.<br />

MESTRE TIAGO. – Sim: o vinho puro sobe à cabeça.<br />

BACALHAU. – Tiramos os aventais, Senhor?<br />

HARPAGÃO. – Sim, quando as pessoas começarem a chegar; e cuidai de não<br />

estragardes os vossos fatos.<br />

PÉDAVEIA. – Bem sabeis, Senhor, que a parte da frente do meu colete tem uma<br />

enorme nódoa de óleo de candeeiro.<br />

BACALHAU. – E que eu, Senhor, tenho os meus calções todos furados na parte de trás,<br />

e que se me vê, com a vossa licença…<br />

HARPAGÃO. – Paz. Virai isso com jeito para o lado da parede, e apresentai-vos<br />

sempre de frente para as pessoas. (Harpagão põe o chapéu em cima do seu próprio<br />

colete, para mostrar a Pédaveia como fazer para esconder a nódoa de óleo.) E vós,<br />

colocai sempre o vosso chapéu assim, enquanto servis. Quanto a vós, minha filha, deitai<br />

o olho ao que sobra e cuidai que não haja desperdícios. Isso é tarefa para as raparigas.<br />

31


Mas, no entanto, preparai-vos para receberdes bem a minha noiva, que deve vir visitarvos<br />

e levar-vos com ela até à feira. Estais a ouvir o que vos digo?<br />

ELISA. – Sim, meu pai.<br />

HARPAGÃO. – E vós, meu filho, o galã a quem tenho a bondade de perdoar a história<br />

de há pouco, não penseis em mostrar-lhe má cara.<br />

CLEANTO. – Eu, meu pai, má cara? E por que razão?<br />

HARPAGÃO. – Por Deus! todos sabemos como tendem a comportar-se os filhos dos<br />

pais que voltam a casar, e com que olhos costumam ver aquela a quem chamamos<br />

madrasta. Mas se quereis que eu apague a recordação da vossa última estroinice,<br />

recomendo-vos vivamente que mostreis boa cara a essa pessoa, e que a recebais da<br />

melhor maneira possível.<br />

CLEANTO. – Para vos dizer a verdade, meu pai, não posso prometer-vos que ficarei<br />

contente por ela se tornar minha madrasta: mentiria, se vos dissesse tal coisa; mas<br />

quando a recebê-la bem, e a mostrar-lhe boa cara, prometo obedecer-vos à letra nesse<br />

capítulo.<br />

HARPAGÃO. – Tomai cuidado, ao menos.<br />

CLEANTO. – Vereis que não tereis razão para vos lamentardes.<br />

HARPAGÃO. – Comportai-vos com juízo. Valério, ajuda-me aqui. Ah, Mestre Tiago,<br />

aproximai-vos, guardei-vos para o fim.<br />

MESTRE TIAGO. – É ao vosso cocheiro ou ao vosso cozinheiro, Senhor, que desejais<br />

falar? porque eu sou um e outro.<br />

HARPAGÃO. – É aos dois.<br />

MESTRE TIAGO. – Mas a qual deles em primeiro lugar?<br />

HARPAGÃO. – Ao cozinheiro.<br />

MESTRE TIAGO. – Esperai, então, por favor.<br />

(Tira a casaca de cocheiro, e aparece vestido de cozinheiro.)<br />

HARPAGÃO. – Que diabo de cerimónia é essa?<br />

MESTRE TIAGO. – Já podeis falar.<br />

HARPAGÃO. – Comprometi-me a servir um jantar logo à noite, Mestre Tiago.<br />

MESTRE TIAGO. – Que grande milagre!<br />

HARPAGÃO. – Ora diz-me lá, és capaz de nos preparar uma boa refeição?<br />

MESTRE TIAGO. – Sim, se vós me derdes dinheiro para isso.<br />

32


HARPAGÃO. – Que diabo, sempre dinheiro! Parece que não sabem dizer mais nada:<br />

«Dinheiro, dinheiro, dinheiro.» Ah! é a única palavra que têm na boca: «Dinheiro.»<br />

Sempre a falar de dinheiro. É o ai-jesus deles, dinheiro!»<br />

VALÉRIO. – Nunca vi resposta tão impertinente como esta. Qual é o espanto de se<br />

conseguir preparar uma boa refeição com muito dinheiro: é a coisa mais fácil do mundo,<br />

e não há pobre de espírito que não seja capaz de o fazer; mas para se mostrar um<br />

homem habilidoso, terá antes de falar em preparar uma boa refeição com pouco dinheiro.<br />

MESTRE TIAGO. – Uma boa refeição com pouco dinheiro!<br />

VALÉRIO. – Sim.<br />

MESTRE TIAGO. – Por minha fé, Senhor secretário, ireis ter a amabilidade de nos<br />

mostrar esse segredo, e de assumir o meu ofício de cozinheiro; até porque também<br />

gostais de ser o faz-tudo nesta casa.<br />

HARPAGÃO. – Calai-vos. Do que vamos precisar?<br />

MESTRE TIAGO. – Está aí o Senhor secretário, que vos preparará uma boa refeição<br />

com pouco dinheiro.<br />

HARPAGÃO. – Mau! quero que me respondas.<br />

MESTRE TIAGO. – Quantas pessoas serão à mesa?<br />

HARPAGÃO. – Umas oito ou dez; mas só precisa de contar com oito; quando há de<br />

comer para oito, também há para dez.<br />

VALÉRIO. – É evidente.<br />

MESTRE TIAGO. – Ora bem, serão necessárias quatro sopas grandes, e cinco entradas.<br />

Sopas… entradas…<br />

HARPAGÃO. – Que diabo! Isso dá para tratar uma cidade inteira.<br />

MESTRE TIAGO. – Um assado…<br />

HARPAGÃO. (Tapando-lhe a boca com a mão) – Ah, tratante, parece que queres<br />

comer todos os meus haveres.<br />

MESTRE TIAGO. – Saladas e afins…<br />

HARPAGÃO. – Mais?<br />

VALÉRIO. – Quereis fazer rebentar toda a gente? Por acaso o Senhor, nosso amo, terá<br />

convidado as pessoas para as assassinar com tal comezaina? Ide mas é ler alguns dos<br />

preceitos para uma vida saudável, e perguntar aos médicos se comer em excesso não é a<br />

coisa mais prejudicial que existe para a saúde.<br />

33


HARPAGÃO. – Ele tem razão.<br />

VALÉRIO. – Aprendei, mestre Tiago, vós e os da vossa laia, que uma mesa cheia de<br />

carnes é um verdadeiro matadouro; que para nos mostrarmos amigos dos nossos<br />

convidados, a frugalidade deve reinar nas refeições que oferecemos; e que, seguindo um<br />

ditado antigo, devemos comer para viver, e não viver para comer.<br />

HARPAGÃO. – Ah! Como tudo isso é bem dito! Chega-te cá, deixa-me abraçar-te por<br />

essa frase. Eis a mais bela sentença que alguma vez ouvi em toda a minha vida.<br />

Devemos viver para comer, e não comer para vi… Não, não é nada disto. Como foi que<br />

disseste?<br />

VALÉRIO. – Que devemos comer para viver, e não viver para comer.<br />

HARPAGÃO. – Isso mesmo. (A Mestre Tiago. 1734) Estás a ouvir? (A Valério. 1734)<br />

Quem foi o grande homem que disse isso?<br />

VALÉRIO. – Não me lembro do seu nome.<br />

HARPAGÃO. – Não te esqueças de me escrever essa frase: quero mandá-la gravar a<br />

letras de ouro sobre a lareira da sala.<br />

VALÉRIO. – Não me esquecerei. E quanto ao vosso jantar, deixai isso por minha conta:<br />

eu tratarei de tudo como deve ser.<br />

HARPAGÃO. – Faz então como entenderes.<br />

MESTRE TIAGO. – Tanto melhor: menos trabalho terei.<br />

HARPAGÃO. – Convém servir dessas coisas que não dão muita vontade de comer e<br />

que enchem logo: um feijão com chispe e carnes gordas, com um paté qualquer em<br />

terrina, bem guarnecido com castanhas.<br />

VALÉRIO. – Confiai em mim.<br />

HARPAGÃO. – E agora, Mestre Tiago, é preciso limpar o meu coche.<br />

MESTRE TIAGO. – Esperai. Isso agora é com o cocheiro. (Volta a vestir a casaca).<br />

Dizeis…<br />

HARPAGÃO. – Que é preciso limpar o meu coche, e ter os cavalos prontos para ir à<br />

feira.<br />

MESTRE TIAGO. – Os vosso cavalos, Senhor? Por minha fé, não estão em condições<br />

de andar. Não vos direi que não se levantam da palha, os pobres bichos nem palha têm,<br />

e é melhor nem tocar no assunto; mas vós fazei-los passar por jejuns tão austeros, que<br />

mais parecem ideias ou fantasmas, ou hipóteses de cavalos.<br />

HARPAGÃO. – Estão, de facto, muito doentes: não fazem nada.<br />

34


MESTRE TIAGO: E por não fazerem nada, Senhor, nada devem comer? Pobres<br />

animais, seria melhor trabalharem muito para muito poderem comer. Despedaça-me o<br />

coração, vê-los assim extenuados; pois sinto tão grande ternura pelos meus cavalos, que<br />

julgo tratar-se de mim próprio, quando os vejo sofrer. Todos os dias roubo à boca para<br />

lhes dar; é preciso ser-se muito duro, Senhor, para não sentir compaixão pelo próximo.<br />

HARPAGÃO. – Irem até à feira, não será grande trabalho.<br />

MESTRE TIAGO. – Não, Senhor, não terei coragem de os levar e sentiria remorsos se<br />

os chicoteasse no estado em que estão. Como quereis que puxem um coche, se nem a<br />

eles se conseguem puxar?<br />

VALÉRIO. – Senhor, eu pedirei ao vizinho Picard para se encarregar de os conduzir:<br />

tanto mais que Mestre Tiago nos vai fazer falta para preparar o jantar.<br />

MESTRE TIAGO. – Seja: prefiram que morram às mãos de outro do que às minhas.<br />

VALÉRIO. – Mestre Tiago faz muito bem de pessoa responsável.<br />

MESTRE TIAGO. – O Senhor secretário faz muito bem de pessoa indispensável.<br />

HARPAGÃO. – Paz!<br />

MESTRE TIAGO. – Senhor, eu não suporto bajuladores; e vejo bem que o que ele faz,<br />

o constante controlo sobre o pão e o vinho, a lenha, o sal, e a candeia é apenas para vos<br />

escovar e para vos fazer a corte. Fico furioso, e irrito-me todos os dias, quando ouço o<br />

que dizem de vós. Enfim, porque apesar de tudo, sinto por vós alguma ternura; e depois<br />

dos meus cavalos, sois a pessoa de quem mais gosto.<br />

HARPAGÃO. – Podereis vós dizer-me, Mestre Tiago, o que dizem de mim?<br />

MESTRE TIAGO. – Sim, Senhor, se eu tivesse a certeza de que isso não vos deixaria<br />

irritado.<br />

HARPAGÃO. – Não, de forma nenhuma.<br />

MESTRE TIAGO. – Perdoai-me: sei muito bem que vos deixaria num verdadeiro<br />

estado de fúria.<br />

HARPAGÃO. – De modo nenhum: bem pelo contrário, é um prazer, e ficarei muito<br />

satisfeito por saber o que se diz de mim.<br />

MESTRE TIAGO. – Senhor, já que assim quereis, digo-vos, com toda a franqueza, que<br />

troçam de vós por toda a parte; que chovem coisas mordazes de todos os lados a vosso<br />

respeito; e que nada lhes dá mais gozo do que vos pisar o rabo e inventar<br />

constantemente histórias sobre a vossa sovinice. Um diz que mandais imprimir os<br />

vossos próprios calendários com as têmporas e as vésperas duplicadas para aproveitar os<br />

jejuns que obrigais toda a família a respeitar. Outro, que tendes sempre uma queixa<br />

debaixo da manga contra os vossos criados por altura da consoada ou quando deixam de<br />

35


estar ao vosso serviço, de forma a arranjardes um pretexto para não lhes pagardes. Este<br />

conta que uma vez apresentastes queixa contra o gato de um dos vossos vizinhos por<br />

vos ter comido o resto de uma perna de carneiro. Aquele, que uma noite vos<br />

surpreenderam a roubar a aveia dos vossos próprios cavalos; e que o vosso cocheiro,<br />

aquele que aqui esteve antes de mim, vos deu, às escuras, um enxerto de porrada de que<br />

nunca vos queixastes. Enfim, quereis que vos diga a verdade? Não há lugar nenhum<br />

onde não se ouça dizer coisas e loisas a vosso respeito; sois a anedota e o motivo de riso<br />

de toda a gente; e nunca se fala de vós com outro nome que não seja o de avarento,<br />

mesquinho, vilão e unhas-de-fome.<br />

HARPAGÃO. (Batendo-lhe) – Sois um imbecil, um patife, um malandro, e um<br />

desavergonhado.<br />

MESTRE TIAGO. – Pois bem! Eu não dizia? Não quisestes acreditar em mim: eu bem<br />

vos disse que a verdade vos deixaria irritado.<br />

HARPAGÃO. – Aprendei a falar.<br />

CENA <strong>II</strong><br />

MESTRE TIAGO, VALÉRIO<br />

VALÉRIO. – Pelo que pude ver, Mestre Tiago, pagam mal a vossa franqueza.<br />

MESTRE TIAGO. – Com mil demónios! Não é da vossa conta, Senhor recém-chegado<br />

que armais em importante. Troçai das pauladas que haveis de apanhar, e não das que eu<br />

apanho.<br />

VALÉRIO. – Ah! Senhor mestre Tiago, por favor, não vos zangueis.<br />

MESTRE TIAGO. – Pia baixinho. Vou fazer-me de duro e, se for tolo a ponto de ter<br />

medo de mim, dou-lhe uma boa esfrega. Não sabeis, Senhor engraçado, que eu não acho<br />

graça nenhuma? e que se me chega a mostarda ao nariz, faço-vos dizer umas graças de<br />

outra maneira? (Mestre Tiago empurra Valério até ao fundo do teatro, ameaçando-o)<br />

VALÉRIO. – Ei! devagar.<br />

MESTRE TIAGO. – Devagar, o quê? Eu cá não gosto de brincadeiras.<br />

VALÉRIO. – Por favor.<br />

MESTRE TIAGO. – Sois um impertinente.<br />

VALÉRIO. – Senhor mestre Tiago…<br />

36


MESTRE TIAGO. – Qual Senhor mestre Tiago, qual carapuça. Se apanho um cacete,<br />

dou-vos cabo da importância.<br />

VALÉRIO. – Com que então um cacete, hã? (Valério obriga-o a recuar como ele<br />

próprio tinha feito)<br />

MESTRE TIAGO. – Ei! Não estava a falar disso.<br />

VALÉRIO. – Sabereis por acaso, Senhor imbecil, que sou homem para dar cabo de vós?<br />

MESTRE TIAGO. – Não duvido.<br />

VALÉRIO. – Que não passais de um cozinheiro de meia-tigela?<br />

MESTRE TIAGO. – Bem sei.<br />

VALÉRIO. – – E que não ainda não me conheceis bem?<br />

MESTRE TIAGO. – Perdoai-me.<br />

VALÉRIO – Então, dais cabo de mim, não é?<br />

MESTRE TIAGO. – Estava a brincar.<br />

VALÉRIO. – E a mim, não me agradam nada as vossas brincadeiras. (Batendo em<br />

Mestre Tiago) Ficai a saber que sois um péssimo brincalhão.<br />

MESTRE TIAGO. – Maldita seja a sinceridade! é um mau ofício. De agora em diante,<br />

acabou-se, nunca mais digo a verdade. Que o meu amo me bata, ainda vá que não vá,<br />

sempre tem algum direito; mas, quanto a este Senhor secretário, só não me vingo se não<br />

puder.<br />

CENA <strong>II</strong>I<br />

FROSINA<br />

MARIANA, MESTRE TIAGO<br />

FROSINA. – Sabeis dizer-me, mestre Tiago, se o vosso amo está em casa?<br />

MESTRE TIAGO. – Sim, está, está, que eu bem o senti.<br />

FROSINA. – Dizei-lhe, por favor, que já chegámos.<br />

37


CENA IV<br />

MARIANA, FROSINA<br />

MARIANA. – Ah! Frosina, que estranha situação a minha! e para vos dizer o que sinto,<br />

apreendo este encontro.<br />

FROSINE. – Mas porquê, e qual é a vossa inquietação?<br />

MARIANA. – Ai, ainda perguntais? Não imaginais o temor de uma pessoa que estás<br />

prestes a conhecer o suplício a que a querem acorrentar?<br />

FROSINE. – Bem sei que, para uma morte agradável, Harpagão não é propriamente o<br />

suplício que gostaríeis de abraçar; e percebo, pela vossa cara, que ainda pensais no<br />

rapaz loiraço de que me falastes.<br />

MARIANA. – Sim, Frosina, e é algo de que não me quero defender; e as visitas<br />

respeitosas que fez a nossa casa, tiveram, confesso, algum efeito na minha alma.<br />

FROSINE. – Mas chegastes a saber quem ele é?<br />

MARIANA. – Não, não sei nada dele; mas sinto que foi feito para ser amado; que se me<br />

fosse dado a escolher, preferi-lo-ia a qualquer outro; e que contribui bastante para que<br />

eu veja neste esposo que me querem dar um verdadeiro tormento.<br />

FROSINE. – Por Deus! todos esses loiraços são agradáveis à vista, falam bem e<br />

convencem melhor, mas, na sua grande maioria, não têm onde cair mortos; é melhor<br />

para vós arranjar um marido velho e ter fortuna garantida. Devo confessar-vos que os<br />

sentidos não encontram grande satisfação no que acabo de dizer, e que há algumas<br />

pequenas repugnâncias a suportar ao lado de tal esposo; mas isso tem os dias contados,<br />

e, acreditai em mim, a sua morte permitir-vos-á, muito em breve, arranjar outro mais<br />

aprazível que vos compensará de tudo.<br />

MARIANA. – Por Deus! Que coisa tão estranha, Frosina, ter de desejar ou de esperar<br />

pela morte de alguém para se ser feliz, e a morte nem sempre segue os planos que<br />

fazemos.<br />

FROSINE. – Estais a brincar? Só casais com ele na condição de vos deixar viúva em<br />

breve; e esta deverá ser uma das cláusulas do contrato. Seria muito impertinente da sua<br />

parte não morrer nos próximos três meses. Ei-lo em pessoa.<br />

MARIANA. – Ah! Frosina, que figura!<br />

38


CENA V<br />

HARPAGÃO, FROSINA, MARIANA<br />

HARPAGÃO. – Não leveis a mal, minha querida, se vos apareço com óculos. Sei que<br />

os vossos encantos saltam bem à vista, que são por si mesmos bem visíveis, e que não<br />

são necessários óculos para os descobrir; mas enfim, é com lentes que observamos os<br />

astros, e eu afirmo e garanto que vós sois um astro, mas um astro o mais belo astro que<br />

existe no país dos astros. Frosina, ela não diz nada, e não dá sinais, ao que parece, de<br />

sentir algum prazer em ver-me.<br />

FROSINE. – É que ainda está surpreendida; e depois, as raparigas novas têm sempre<br />

vergonha de mostrar logo o que lhes vai na alma.<br />

HARPAGÃO. – Tens razão. Aqui está, bela formosa, a minha filha que vos vem<br />

cumprimentar.<br />

CENA V<br />

ELISA, HARPAGÃO, MARIANA,<br />

FROSINA<br />

MARIANA. – Senhora, chego tarde para cumprir a minha visita.<br />

FROSINE. – Fizestes, Senhora, o que eu deveria ter feito, cabia-me a mim ter sido a<br />

primeira a chegar.<br />

HARPAGÃO. – Vedes como ela está crescida; mas erva ruim não a cresta a geada.<br />

MARIANA. – (Baixo, a Frosina) Oh, que homem tão desagradável!<br />

HARPAGÃO. – O que diz a formosa?<br />

FROSINE. – Que vos acha admirável.<br />

HARPAGÃO. – É muita honra que me fazeis, adorável formosura.<br />

MARIANA. – Que animal!<br />

HARPAGÃO. – Estou-vos muito grato por esses sentimentos.<br />

39


MARIANA. – Não aguento mais.<br />

HARPAGÃO. – Aqui está também o meu filho que vos vem saudar.<br />

MARIANA. (A Frosina) – Ah! Frosina, que encontro! É precisamente aquele de quem<br />

te falei.<br />

FROSINE. (A Mariana) – A coincidência é maravilhosa.<br />

HARPAGÃO. – Vejo que estais espantada por eu ter filhos tão crescidos; mas<br />

brevemente estarei livre quer de um quer de outro.<br />

CENA V<strong>II</strong><br />

CLEANTO, HARPAGÃO, ELISA<br />

MARIANA, FROSINA<br />

CLEANTO. – Senhora, para vos falar verdade, esta é uma coincidência que de forma<br />

alguma esperava; e fiquei bastante surpreendido quando há pouco me informou dos seus<br />

intentos.<br />

MARIANA. – Posso dizer o mesmo. É um encontro imprevisto que me surpreendeu<br />

tanto quanto a vós; e não estava nada preparada para tal coincidência.<br />

CLEANTO. – É verdade, Senhora, que meu pai não podia ter feito melhor escolha, e<br />

que a honra de vos ver me enche de profunda alegria; mas ainda assim, não posso dizervos<br />

que me regozijo do desígnio que vos transformará em minha madrasta. Tal cortesia,<br />

devo confessar-vos, é-me demasiado difícil; e é um título que, com a vossa permissão,<br />

vos não desejo. Este discurso pode parecer brutal aos olhos de alguns; mas tenho a<br />

certeza de que sois pessoa para o entenderdes como deve ser entendido; que, como<br />

podeis imaginar, Senhora, é um casamento pelo qual sinto repugnância; que não<br />

ignorais, sabendo quem sou, como ofende os meus interesses; e por fim, se quereis que<br />

vos diga, com a permissão de meu pai, se as coisas dependessem de mim, este enlace<br />

(himeneu) nunca se realizaria.<br />

HARPAGÃO. – Mas que cumprimento tão impertinente: que bela confissão tinhas para<br />

lhe fazer!<br />

MARIANA. – E eu, para vos responder, digo-vos que as coisas são muito iguais; e se<br />

vos repugna ter-me por madrasta, muito menos me agrada ter-vos por enteado. Não<br />

acrediteis, peço-vos, que é por minha vontade que vos deixo nesta inquietação; custarme-ia<br />

bastante causar-vos tal desagrado; e se não me visse forçada a fazê-lo por um<br />

40


poder absoluto, dou-vos a minha palavra de que nunca consentiria neste casamento que<br />

tanto vos entristece.<br />

HARPAGÃO. – Ela tem razão: um cumprimento imbecil merece uma resposta a<br />

condizer. Peço-vos desculpa, minha querida, pela impertinência do meu filho. É um<br />

jovem imbecil, que ainda não mede as consequências do que diz.<br />

MARIANA. – Garanto-vos que nada do que disse me ofendeu; bem pelo contrário,<br />

agradou-me tê-lo ouvido explicar assim os seus verdadeiros sentimentos. Gosto que me<br />

tenha feito tal confissão; e se me tivesse falado de outra maneira, tê-lo-ia apreciado<br />

bastante menos.<br />

HARPAGÃO. – É muita bondade vossa, perdoar-lhe assim as suas faltas. O tempo<br />

torná-lo-á mais sensato, e vereis que mudará de sentimentos.<br />

CLEANTO. – Não, meu pai, não sou capaz de mudar, e peço insistentemente a esta<br />

Senhora que acredite em mim.<br />

HARPAGÃO. – Mas vejam só que absurdo! continua e cada vez é pior.<br />

CLEANTE. – Queríeis que traísse o meu coração?<br />

HARPAGÃO. – Mais? Não quereis mudar de discurso?<br />

CLEANTO. – Pois bem! Já que quereis que fale de outra maneira, permiti, Senhora, que<br />

tome o lugar de meu pai, e que eu vos confesse que jamais havia visto criatura mais<br />

encantadora do que vós; que não concebo nada que se iguale ao prazer de vos agradar, e<br />

que o título de vosso esposo é uma glória, uma felicidade que eu não trocaria pelos<br />

destinos dos príncipes mais poderosos da terra. Sim, minha Senhora, a felicidade de vos<br />

possuir, é aos meus olhos a mais bela de todas as riquezas; é nela que concentro toda a<br />

minha ambição; não há nada que eu não possa fazer por tão preciosa conquista, e os<br />

mais poderosos obstáculos…<br />

HARPAGÃO. – Devagar, meu filho, por favor.<br />

CLEANTO. – É um cumprimento que faço, em vosso nome, a esta Senhora.<br />

HARPAGÃO. – Por Deus! tenho boca para falar, e não preciso de vos ter como<br />

procurador. Vá, tragam as cadeiras.<br />

FROSINA. – Não; é melhor irmos já à feira, para podermos voltar mais cedo e termos<br />

tempo para conversar.<br />

HARPAGÃO. – Que atrelem, então, os cavalos ao coche. Peço-vos que me desculpeis,<br />

minha querida, por não ter pensado em oferecer-vos algo antes da partida.<br />

CLEANTO. – Tomei providências nesse sentido, meu pai, e mandei trazer algumas<br />

bandejas com laranjas da China, limões doces e frutas cristalizadas, que mandei buscar<br />

em vosso nome.<br />

41


HARPAGÃO. (baixo, a Valério) – Valério!<br />

VALÉRIO. (a Harpagão) – Perdeu o juízo.<br />

CLEANTO. – Achais que não chega, meu pai? A Senhora fará o favor de ter a bondade<br />

de nos desculpar.<br />

MARIANA. – Não era preciso nada.<br />

CLEANTO. – Já alguma vez havíeis visto, Senhora, diamante mais puro do que aquele<br />

que vedes no dedo de meu pai?<br />

MARIANA. – É verdade que brilha muito.<br />

CLEANTO. (tirando o anel do dedo de seu pai e dando-o a Mariana) – Deveis vê-lo de<br />

perto.<br />

MARIANA. – É muito bonito, sem dúvida, e cintila como estrelas.<br />

CLEANTO. (Pondo-se em frente de Mariana, que quer devolver o anel) – Ná, está nas<br />

mais belas mãos, Senhora. É um presente que meu pai vos quis oferecer.<br />

HAPAGÃO. – Eu?<br />

CLEANTO. – Não é verdade, meu pai, que desejais que a Senhora o guarde como prova<br />

do vosso amor?<br />

HARPAGÃO. (baixo a seu filho) – O quê?<br />

CLEANTO. – Belo pedido! Está a fazer-me sinais para que vos convença a aceitá-lo.<br />

MARIANA. – Eu não quero…<br />

CLEANTO. – Estais a brincar? Ele não pretende voltar a pô-lo.<br />

HARPAGÃO. – Que raiva!<br />

MARIANA. – Seria…<br />

CLEANTO. (continuando a impedir Mariana de devolver o anel) – Não, já vos disse,<br />

isso seria ofendê-lo.<br />

MARIANA. – Por favor…<br />

CLEANTO. – Nem pensar.<br />

HARPAGÃO. (baixo) – Que a peste…<br />

CLEANTO. – Vede como se escandaliza com a vossa recusa.<br />

42


HARPAGÃO. (baixo, a seu filho) – Ah! traidor!<br />

CLEANTO. – Bem vedes que desespera.<br />

HARPAGÃO. (baixo, a seu filho, ameaçando-o) – Ah, meu verdugo!<br />

CLEANTO. – Meu pai, eu não tenho culpa. Faço o que posso para a obrigar a ficar com<br />

ele; mas é obstinada.<br />

HARPAGÃO. (baixo, a seu filho, exaltando-se) – Patife!<br />

CLEANTO. – Dais motivos, Senhora, a que meu pai se zangue comigo.<br />

HARPAGÃO. (baixo, a seu filho, com os mesmos trejeitos) – Canalha!<br />

CLEANTO. – Ides pô-lo doente. Por favor, Senhora, não resistais mais.<br />

FROSINA. – Por Deus! tanta cerimónia! Ficai com o anel, já que o Senhor assim o<br />

deseja.<br />

MARIANA. – Por enquanto, fico com ele, para não vos aborrecer mais; e procurarei<br />

outra ocasião para vo-lo devolver.<br />

CENA V<strong>II</strong>I<br />

HARPAGÃO, MARIANA, FROSINA<br />

CLEANTO, PEDAVEIA, ELISA<br />

PÉDAVEIA. – Senhor, está lá fora um homem que vos quer falar.<br />

HARPAGÃO. – Diz-lhe que agora não posso, que volte noutra altura.<br />

PÉDAVEIA. – Ele diz que vos traz dinheiro.<br />

HARPAGÃO. – Peço perdão. Volto já.<br />

43


CENA IX<br />

HARPAGÃO, MARIANA, CLEANTO,<br />

ELISA, FROSINA, BACALHAU<br />

BACALHAU. (entra a correr e faz cair Harpagão) – Senhor…<br />

HARPAGÃO. – Ai! Morri.<br />

CLEANTO. – Que foi isso, meu pai? Estais magoado?<br />

HARPAGÃO. – De certeza que este traidor recebeu dinheiro dos meus devedores para<br />

me partir o pescoço.<br />

VALÉRIO. – Não há-de ser nada.<br />

BACALHAU. – Peço perdão, Senhor, julguei que fazia bem em vir depressa.<br />

HARPAGÃO. – Que vens tu cá fazer, verdugo?<br />

BACALHAU. – Dizer-vos que os vossos cavalos não estão ferrados.<br />

HAPAGÃO. – Levem-nos imediatamente ao ferrador.<br />

CLEANTO. – Enquanto esperamos que os ferrem, vou fazer as honras da casa por vós,<br />

meu pai, e acompanhar a Senhora ao jardim, onde mandarei que nos sirvam a merenda.<br />

HARPAGÃO. – Valério, fica de olho nisto tudo; e, peço-te, trata de salvar o mais que<br />

puderes, para depois eu devolver ao vendedor.<br />

VALÉRIO. – Não precisais de dizer mais nada.<br />

HARPAGÃO. – Ó filho desnaturado, quererás arruinar-me?<br />

44


ACTO IV<br />

CENA I<br />

CLEANTO, MARIANA ELISA, FROSINA<br />

CELANTO. – Voltemos para aqui, estaremos bem melhor. Já não há ninguém suspeito<br />

à nossa volta, e podemos falar à vontade.<br />

ELISA. – Sim, minha Senhora, o meu irmão confidenciou-me a paixão que sente por<br />

vós. Conheço os sofrimentos e os desgostos que contrariedades como estas podem<br />

causar; e é, garanto-vos, com uma enorme ternura que me interesso pelo vosso caso.<br />

MARIANA. – É uma doce consolação ter do nosso lado uma pessoa como vós; e<br />

suplico-vos, Senhora, que conserveis por mim essa generosa amizade, capaz de<br />

amenizar as crueldades do destino.<br />

FROSINA. – Por minha fé, que desgraçados sois, um e outro, por não me terdes<br />

advertido do que entre vós se passava, antes de tudo isto acontecer. Ter-vos-ia,<br />

seguramente, poupado este desassossego, e não teria conduzido as coisas até este ponto.<br />

CLEANTO. – Que queres? Foi a minha má sorte que assim o determinou. Mas, bela<br />

Mariana, que decisões haveis tomado?<br />

MARIANA. – Ai de mim! Terei eu poder para tomar decisões? E nesta dependência em<br />

que me encontro, poderei formular algo mais do que desejos?<br />

CLEANTO. – Não há para mim, no vosso coração, outro apoio senão simples desejos?<br />

Nem complacente piedade? nem caridosa bondade? nem diligente afeição?<br />

MARIANA. – Que posso eu dizer-vos? Ponde-vos no meu lugar e vede o que posso<br />

fazer. Sugeri, ordenai vós mesmo: entrego-me nas vossas mãos, e julgo-vos<br />

suficientemente sensato para não exigirdes de mim mais do que me é permitido pela<br />

honra e pelo decoro.<br />

CLEANTO. - Ai de mim! Fico bem limitado, se me remeteis apenas para o que me<br />

podem permitir os incómodos sentimentos de uma rigorosa honra e de um escrupuloso<br />

decoro.<br />

MARIANA. – Mas que quereis vós que eu faça? Mesmo que pudesse passar por cima<br />

de um certo número de exigências a que o nosso sexo está obrigado, teria sempre de<br />

respeitar a minha mãe. Sempre cuidou de mim com imensa ternura, e jamais seria capaz<br />

45


de lhe causar desgosto. Fazei, agi vós junto dela, utilizai todos os vossos recursos para<br />

conquistardes o seu espírito: podeis fazer e dizer tudo o que quiserdes, dou-vos toda a<br />

liberdade; e se for preciso interceder a vosso favor, consentirei de boa vontade em<br />

confessar-lhe tudo o que sinto por vós.<br />

CLEANTO. – Frosina, minha pobre Frosina, quererás tu ajudar-nos?<br />

FROSINA. – Por minha fé! é preciso perguntar? ajudo-vos de alma e coração. Bem<br />

sabeis que sou por natureza bastante humana; o Céu não me talhou uma alma de bronze,<br />

e é com toda a ternura que sirvo aqueles que se amam com bondade e virtude. Que<br />

poderíamos nós fazer com tudo isto?<br />

CLEANTO. – Por favor, pensa um pouco.<br />

MARIANA. – Vê se consegues iluminar-nos.<br />

ELISA. – Tenta inventar algo que possa desfazer o que fizeste.<br />

FROSINA. – Isso não é nada fácil (A Mariana) No que à vossa mãe diz respeito, ela<br />

não é propriamente uma pessoa insensata, e talvez conseguíssemos conquistá-la, e<br />

convencê-la a passar para o filho o que queria dar ao pai. (A Cleanto) Mas o mal de tudo<br />

isto é que o vosso pai é vosso pai.<br />

CLEANTO. – É evidente.<br />

FROSINA. – Quero eu dizer que se lhe dermos a entender que o rejeitamos, vai sentirse<br />

despeitado; e não estará na disposição de consentir no vosso casamento. Melhor seria,<br />

para que as coisas corressem bem, que a recusa partisse dele, e tentarmos arranjar<br />

maneira de o fazer desencantar-se com a vossa pessoa.<br />

CLEANTO. – Tens razão.<br />

FROSINA. – É claro que tenho razão, bem o sei. É isto que precisamos de fazer, mas o<br />

dianho é conseguir encontrar meios para tal. Esperai: se arranjássemos uma mulher já<br />

entrada na idade, que tivesse o meu talento, e fosse capaz de se fazer passar por uma<br />

grande senhora, com acessórios arranjados à pressa, e um apelido pomposo de marquesa,<br />

ou de viscondessa, supostamente vinda da Baixa Bretanha, eu teria suficiente habilidade<br />

para convencer o vosso pai de que se tratava de uma pessoa rica, com cem mil escudos<br />

em dinheiro, para além das casas; que estaria perdidamente apaixonada por ele, e<br />

desejava tornar-se sua mulher, a ponto de lhe doar todos os seus bens por contrato de<br />

casamento; e não duvido que ele ouvisse atentamente a minha proposta; porque, enfim,<br />

sei bem que ele gosta muito de vós; mas gosta um pouco mais de dinheiro; e quando,<br />

ofuscado com este engodo, ele tivesse consentido no que vos interessa, pouco<br />

importaria que depois se desenganasse quando quisesse passar a pente fino as grandezas<br />

da nossa marquesa.<br />

CLEANTO. – Tudo isso é muito bem pensado.<br />

FROSINA. – Deixai o caso comigo. Acabo de me lembrar de uma das minhas amigas<br />

que é a pessoa que nos convém.<br />

46


CLEANTO. – Se conseguires o teu intento, Frosina, podes estar certa do meu<br />

reconhecimento. Mas, peço-vos, encantadora Mariana, comecemos por conquistar a<br />

vossa mãe: não será coisa simples, romper este casamento. Rogo-vos que façais, pela<br />

vossa parte, todos os esforços que estiverem ao vosso alcance; servi-vos de todo o poder<br />

que sobre ela vos dá a amizade que por vós sente; mostrai sem reserva a eloquente<br />

graciosidade, os poderosos encantos que o Céu fixou nos vossos olhos e na vossa boca,<br />

e, por favor, não esqueçais as palavras ternas, os pedidos meigos, e o carinho<br />

comovedor perante os quais, estou certo, nada se pode recusar.<br />

MARIANA. – Farei tudo o que puder e nada esquecerei.<br />

CENA <strong>II</strong><br />

HARPAGÃO, CLEANTO, MARIANA,<br />

ELISA, FROSINA<br />

HARPAGÃO. – Olá! O meu filho a beijar a mão da sua futura madrasta, e a sua futura<br />

madrasta não parece oferecer-lhe grande resistência. Andará por aqui algum mistério?<br />

ELISA. – Vem aí o meu pai.<br />

HARPAGÃO. – O coche está pronto. Podeis partir quando vos aprouver.<br />

CLEANTO. – Como vós não ides, meu pai, irei eu acompanhá-las.<br />

CENA <strong>II</strong>I<br />

HARPAGÃO, CLEANTO<br />

HARPAGÃO. – Olha lá, pondo de lado o interesse como madrasta, que tal te parece<br />

esta pessoa?<br />

CLEANTO. – Que me parece?<br />

HARPAGÃO. – Sim, o seu ar, a sua figura, a sua beleza, o seu espírito?<br />

CLEANTO. – Assim, assim.<br />

HARPAGÃO. – E então?<br />

47


CLEANTO. – Para vos falar verdade, não é bem como eu a tinha imaginado. Tem um ar<br />

completamente leviano; a sua figura é bastante desproporcionada, a sua beleza muito<br />

medíocre, e o seu espírito dos mais comuns. Não penseis, meu pai, que digo isto para<br />

vos desencantardes; porque madrasta por madrasta, tanto me faz esta como outra<br />

qualquer.<br />

HARPAGÃO. – E no entanto, há pouco dizias-lhe…<br />

CLEANTO. – Disse-lhe algumas gentilezas em vosso nome, mas era para vos agradar.<br />

HARPAGÃO. – É então verdade que não tens nenhuma inclinação por ela?<br />

CLEANTO. – Eu? absolutamente nenhuma.<br />

HARPAGÃO. – Isso aborrece-me: porque contraria uma ideia que me tinha vindo à<br />

cabeça. Quando a vi aqui, comecei a reflectir sobre a minha idade; e pus-me a pensar no<br />

que se poderá dizer por aí se me virem casado com uma pessoa tão jovem. Esta<br />

consideração fez-me desistir do meu intento; e como já a havia mandado pedir, e já<br />

tinha dado a minha palavra, ter-ta-ia dado, se não tivesses por ela tanta aversão.<br />

CLEANTO. – A mim?<br />

HARPAGÃO. – A ti.<br />

CLEANTO. – Em casamento.<br />

HARPAGÃO. – Em casamento.<br />

CLEANTO. – Escutai; é verdade que ela não é muito do meu agrado; mas para vos ver<br />

satisfeito, meu pai, aceitarei casar com ela, se assim o desejais.<br />

HARPAGÃO. – Eu? Sou mais sensato do que tu pensas: não quero, de forma alguma,<br />

forçar a tua inclinação.<br />

CLEANTO. – Perdoai-me, farei esse esforço pelo amor que vos tenho.<br />

HARPAGÃO. – Não, não; onde não há inclinação, não há casamento feliz.<br />

CLEANTO. – É algo, meu pai, que talvez surja mais tarde; e diz-se que o amor é muitas<br />

vezes fruto do casamento.<br />

HARPAGÃO. – Não: do lado do homem, nunca se deve correr esse risco, estou bem<br />

livre de me sujeitar às consequências desagradáveis que daí podem advir. Se sentisses<br />

alguma inclinação por ela, em boa hora a terias desposado em meu lugar; mas assim não<br />

sendo, levarei avante o meu primeiro intento, e eu mesmo a desposarei.<br />

CLEANTO. – Pois bem! meu pai, já que as coisas se apresentam dessa forma, vou<br />

abrir-vos o meu coração, e revelar-vos o nosso segredo. A verdade é que eu a amo,<br />

desde um certo dia em que a vi quando passeava; que ainda há pouco, a minha intenção<br />

48


era pedir-vos que ma désseis por esposa; e que só a declaração dos vossos sentimentos,<br />

e o medo de vos desagradar me detiveram.<br />

HARPAGÃO. – Já a tínheis visitado?<br />

CLEANTO. – Sim, meu pai.<br />

HARPAGÃO. – Muitas vezes?<br />

CLEANTO. – Bastantes, contando que nos conhecemos há pouco tempo.<br />

HARPAGÃO. – Receberam-vos bem?<br />

CLEANTO. – Muito bem, mas sem saberem quem eu era; e a isso se deveu há instantes<br />

a surpresa de Mariana.<br />

HARPAGÃO. – Declarastes-lhe a vossa paixão, e a intenção de a desposardes?<br />

CLEANTO. – Sem dúvida; cheguei mesmo a abordar o assunto com a sua mãe.<br />

HARPAGÃO. – E ela ouviu a vossa proposta em nome da filha?<br />

CLEANTO. – Sim, com toda a cortesia.<br />

HARPAGÃO. – E a filha corresponde intensamente ao vosso amor?<br />

CLEANTO. – A julgar pelas aparências, meu pai, estou convencido de que terá por<br />

mim alguma afeição.<br />

HARPAGÃO. – Estou bem contente por ter descoberto um tal segredo; aí está<br />

justamente o que eu queria saber. Ora bem! Meu filho, sabeis o que há a fazer? tereis de<br />

pensar, se fazeis o favor, em abdicar da vossa paixão; em acabar com todas as investidas<br />

junto de uma pessoa que pretendo para mim; e em casar-vos, dentro de pouco tempo,<br />

com aquela que vos está destinada.<br />

CLEANTO. – Ah! meu pai, utilizais-me desta forma! Pois bem! já que as coisas<br />

chegaram a este ponto, declaro-vos que nada me fará abdicar da minha paixão por<br />

Mariana, que estou disposto a chegar aos maiores extremos para vos disputar a sua<br />

conquista, e que se tendes do vosso lado o consentimento de uma mãe, eu terei talvez<br />

outros recursos prontos a combater por mim.<br />

HARPAGÃO. – O quê, meu malandro! Atreves-te a copiar-me os passos?<br />

CLEANTO. – Sois sós quem copia os meus; eu cheguei primeiro.<br />

HARPAGÃO. – Não serei eu teu pai? Não me deverás tu respeito?<br />

CLEANTO. – Nestas coisas, os filhos não são obrigados a ceder aos pais; e o amor com<br />

amor se paga.<br />

49


HARPAGÃO. – Quem te dá o pagamento sou eu, com umas boas pauladas.<br />

CLEANTO. – As vossas ameaças não servem de nada.<br />

HARPAGÃO. – Vais renunciar a Mariana.<br />

CLEANTO. – Nem pensar.<br />

HARPAGÃO. – Tragam-me cá um pau, já imediatamente.<br />

CENA IV<br />

MESTRE TIAGO, HARPAGÃO<br />

CLEANTO<br />

MESTRE TIAGO. – Hei, hei, hei, Meus Senhores, que vem a ser isto? perdestes a<br />

cabeça?<br />

CLEANTO. – Quero lá saber.<br />

MESTRE TIAGO. – Ah! Senhor, devagar.<br />

HARPAGÃO. – Falar-me com tal insolência!<br />

MESTRE TIAGO. – Ah! Senhor, por favor.<br />

CLEANTO. – Não vou renunciar.<br />

MESTRE TIAGO. – O quê? a vosso pai?<br />

HARPAGÃO. – Deixa que eu trato dele.<br />

MESTRE TIAGO. – O quê? do vosso filho? Ainda se fosse de mim.<br />

HARPAGÃO. – Quero que sejas juiz neste assunto, Mestre Tiago, para mostrar como<br />

tenho razão.<br />

MESTRE TIAGO. – Aceito. (a Cleanto) Afastai-vos um pouco.<br />

HARPAGÃO. – Eu amo uma rapariga que pretendo desposar; e este patife tem a<br />

insolência de a amar comigo, e de ser seu pretendente apesar das minhas ordens.<br />

MESTRE TIAGO. – Ah! Ele não tem razão.<br />

50


HARPAGÃO. – Não é uma coisa horrível, um filho querer competir com o pai? e não<br />

deve ele, por respeito, abster-se de tocar nas minhas inclinações?<br />

MESTRE TIAGO. – Tendes razão. Deixai-me falar com ele, e aguardai aqui. (vai ter<br />

com Cleanto ao outro extremo do palco)<br />

CLEANTO – Pois bem! sim senhor, já que ele te quer escolher como juiz, eu não vou<br />

dizer que não; pouco me importa quem possa ser, e também aceito entregar-me a ti<br />

neste diferendo, Mestre Tiago.<br />

MESTRE TIAGO. – É uma grande honra que me dais.<br />

CLEANTO. – Estou apaixonado por uma jovem e sou correspondido, ela recebe<br />

carinhosamente as provas da minha devoção; e meu pai atreve-se a perturbar o nosso<br />

amor mandando pedi-la em casamento.<br />

MESTRE TIAGO. – Ele não tem razão, claro.<br />

CLEANTO. – Não terá ele vergonha, com a idade que tem, de pensar em casar-se?<br />

achas que lhe fica bem o papel de apaixonado? e não seria seu dever deixar essa<br />

ocupação para os mais novos?<br />

MESTRE TIAGO. – Tendes toda a razão, anda a brincar. Deixai-me dar-lhe uma<br />

palavrinha. (vai ter com Harpagão) Pois bem! vosso filho não é assim tão estranho<br />

como dizeis, e decidiu render-se à sensatez. Diz estar consciente do respeito que vos<br />

deve, que se terá deixado levar pela exaltação do momento, e que de modo algum<br />

recusará submeter-se à vossa vontade, desde que o trateis melhor do que até aqui, e o<br />

deixeis casar com alguém de seu agrado.<br />

HARPAGÃO. – Ah! Mestre Tiago, diz-lhe que se assim for, poderá contar comigo; e<br />

que, à excepção de Mariana, lhe dou a liberdade de escolher quem ele quiser.<br />

MESTRE TIAGO. – Deixai-o comigo. (vai ter com Cleanto) Pois bem! vosso pai não é<br />

assim tão insensato como vós o fazeis; e revelou-me que foi a vossa exaltação que o<br />

deixou furioso; que apenas embirra com a vossa maneira de agir, e que está na total<br />

disposição de vos conceder o que desejais, desde que façais as coisas de uma forma<br />

delicada, e o tratais com a deferência, o respeito, e a submissão que todo o filho deve a<br />

seu pai.<br />

CLEANTO. – Ah! mestre Tiago, podes assegurar-lhe que, se me conceder Mariana, terá<br />

em mim, para sempre, o mais submisso dos homens; e nada farei, nunca, que não seja<br />

de sua vontade.<br />

MESTRE TIAGO. (a Harpagão) – Está feito. Consente no que dizeis.<br />

HARPAGÃO. – Então corre tudo às mil maravilhas.<br />

MESTRE TIAGO. (a Cleanto) – Assunto arrumado. Ficou satisfeito com as vossas<br />

promessas.<br />

51


CLEANTO. – Graças aos Céus!<br />

MESTRE TIAGO. – Meus Senhores, agora só vos resta conversar: conseguistes pôr-vos<br />

de acordo; e quase vos desentendíeis por falta de vos ouvirdes.<br />

CLEANTO. – Meu pobre Mestre Tiago, ser-te-ei grato toda a vida.<br />

MESTRE TIAGO. – Não há de quê, Senhor.<br />

HARPAGÃO. – Deste-me muita alegria, mestre Tiago, e isso merece uma recompensa.<br />

Vai, garanto-te que jamais o esquecerei (puxa o lenço do bolso, o que faz Mestre Tiago<br />

acreditar que ele lhe vai dar alguma coisa).<br />

MESTRE TIAGO. – Beijo-vos as mãos.<br />

CENA V<br />

CLEANTO, HARPAGÃO<br />

CLEANTO. – Peço-vos perdão, meu pai, pela forma como deixei transparecer a minha<br />

exaltação.<br />

HARPAGÃO. – Já lá vai.<br />

CLEANTO. – Asseguro-vos que sinto todos os remorsos do mundo.<br />

HARPAGÃO. – E eu, todas as alegrias do mundo por te ver com essa sensatez.<br />

CLEANTO. – Que bondade a vossa, tereis esquecido tão depressa o meu erro!<br />

HARPAGÃO. – Esquecemos facilmente os erros dos filhos, quando eles reconhecem as<br />

suas obrigações.<br />

CLEANTO. – O quê? Não guardais nenhum ressentimento de todas as minhas<br />

extravagâncias?<br />

HARPAGÃO. – É algo a que me obrigas ao decidires honrar a submissão e o respeito<br />

que me deves.<br />

CLEANTO. – Prometo-vos, meu pai, que até à morte, conservarei no meu coração a<br />

lembrança da vossa bondade.<br />

HARPAGÃO. – E eu prometo-te que não haverá nada, que de mim não possas obter.<br />

52


CLEANTO. – Ah! meu pai, não vos peço mais nada; e já muito me destes vós ao darme<br />

Mariana.<br />

HARPAGÃO. – Como?<br />

CLEANTO. – Digo, meu pai, que estou muito contente convosco e que encontro tudo o<br />

que poderia pedir-vos na bondade que tivestes em conceder-me Mariana.<br />

HARPAGÃO. – Quem é que falou em conceder-te Mariana?<br />

CLEANTO. – Vós, meu pai.<br />

HARPAGÃO. – Eu!<br />

CLEANTO. – Claro.<br />

HARPAGÃO. – Como? tu é que prometeste renunciar a Mariana.<br />

CLEANTO. – Renunciar, eu?<br />

HARPAGÃO. – Sim.<br />

CLEANTO. – Nem pensar.<br />

HARPAGÃO. – Não desististe da tua pretensão?<br />

CLEANTO. – Pelo contrário, estou mais determinado do que nunca.<br />

HARPAGÃO. – O quê? patife, outra vez?<br />

CLEANTO. – Nada me pode fazer mudar.<br />

HARPAGÃO. – Deixa estar que eu trato disso, traidor.<br />

CLEANTO. – Podeis fazer tudo o que vos apetecer.<br />

HARPAGÃO. – Proíbo-te de me voltares a ver.<br />

CLEANTO. – Em boa hora.<br />

HARPAGÃO. – Abandono-te.<br />

CLEANTO. – Abandonai.<br />

HARPAGÃO. – Repudio-te como filho.<br />

CLEANTO. – Seja.<br />

HARPAGÃO. – Deserdo-te.<br />

53


CLEANTO. – Tudo o que quiserdes.<br />

HARPAGÃO. – E dou-te… a minha maldição.<br />

CLEANTO. – Quero lá saber dos vossos dons.<br />

CENA VI<br />

FLECHA, CLEANTO<br />

FLECHA. (saindo do jardim com um bauzinho.) – Ah! Senhor, ainda bem que vos<br />

encontro! Segui-me, depressa.<br />

CLEANTO. – Que se passa?<br />

FLECHA. – Segui-me, fazei o que vos digo: estamos com sorte.<br />

CLEANTO. – Como?<br />

FLECHA. – Aqui está o que pretendíeis.<br />

CLEANTO.– O quê?<br />

CLEANTO. FLECHA. – Estive o dia todo a espionar isto.<br />

CLEANTO. – O que é isso?<br />

FLECHA. – O tesouro do vosso pai, que eu apanhei.<br />

CLEANTO. – Como é que fizeste?<br />

CLEANTO. – Já vos conto tudo. Fujamos, ouço-o gritar.<br />

54


CENA V<strong>II</strong><br />

HARPAGÃO<br />

HARPAGÃO. (Vem a gritar agarra que é ladrão desde o jardim, e sem chapéu) –<br />

Agarra que é ladrão! Agarra que é ladrão! Assassino! Homicida! Justiça, justo Céu!<br />

estou perdido, fui assassinado, cortaram-me o pescoço, roubaram-me o dinheiro. Quem<br />

pode ter sido? Para onde terá ido? Onde está? Onde se esconde? Que hei-de fazer para o<br />

encontrar? Para onde hei-de correr? Para onde não hei-de correr? Não está aí? Não está<br />

aqui? Quem é? Agarra. Devolve-me o meu dinheiro, malandro… (agarra o seu próprio<br />

braço.) Ah! Sou eu. O meu espírito está perturbado, e ignoro onde estou, quem sou, e o<br />

que faço. Ai de mim! meu pobre dinheiro, meu pobre dinheiro, meu querido amigo.<br />

Privaram-me da tua companhia; e como me foste levado, perdi o meu amparo, a minha<br />

consolação, a minha alegria; está tudo acabado para mim, nada mais tenho a fazer neste<br />

mundo: sem ti, é-me impossível viver. Acabou-se, não posso mais; estou a morrer, estou<br />

morto, estou enterrado. Não há ninguém que me queira ressuscitar, devolvendo-me o<br />

meu querido dinheiro, ou dizendo-me quem o levou? Hem? Que dizeis? Não é ninguém.<br />

Quem quer que seja que o tenha feito, teve de escolher o momento com muito cuidado;<br />

e escolheu justamente a altura em que eu estava a falar com o tratante do meu filho. O<br />

melhor é sair. Quero ir queixar-me à justiça e mandar fazer um interrogatório à casa<br />

toda: às criadas, aos criados, à filha, ao filho, e a mim próprio. Tanta gente junta! Não<br />

estou a ver ninguém que não me levante suspeitas, e tudo me parece o meu ladrão. Ei!<br />

Do que é que estão a falar, aí? De quem me roubou? Que barulho é este lá em cima?<br />

Será que é o meu ladrão que lá está? Por favor, se tiverdes notícias do meu ladrão,<br />

suplico-vos que me digais. Não estará por aí escondido, no vosso meio? Estão todos a<br />

olhar para mim, e desataram a rir. Às tantas tomaram parte no roubo que me fizeram.<br />

Vamos, depressa, comissários, sargentos, oficiais de justiça, juízes, reclusos,<br />

instrumentos de tortura, forcas e carrascos. Quero mandar enforcar toda a gente; e se<br />

não encontrar o meu dinheiro, enforco-me eu a seguir.<br />

55


ACTO V<br />

CENA I<br />

HARPAGÃO, O COMISSÁRIO,<br />

O SEU AJUDANTE<br />

O COMISSÁRIO. – Deixai isto comigo: graças a Deus, conheço o meu ofício. Não foi<br />

propriamente ontem que me meti nisto de descobrir roubos; e só queria ter tantos sacos<br />

de mil francos como pessoas que mandei para a forca.<br />

HARPAGÃO. – É do interesse de todos os magistrados tomarem este caso em mãos; e<br />

se não me ajudarem a encontrar o meu dinheiro, mandarei que se faça justiça à própria<br />

justiça.<br />

O COMISSÁRIO. – Será preciso proceder a todas as diligências necessárias. Dizíeis<br />

que havia nesse bauzinho …?<br />

HARPAGÃO. – Dez mil escudos bem contados.<br />

O COMISSÀRIO. – Dez mil escudos!<br />

HARPAGÃO. – Dez mil escudos.<br />

O COMISSÁRIO. – O roubo é considerável.<br />

HARPAGÃO. – Não há suplício suficientemente grande para a enormidade deste crime;<br />

e se ficar impune, já nem sequer as coisas mais sagradas estarão em segurança.<br />

O COMISSÁRIO. – Em que moeda estava essa quantia?<br />

HARPAGÃO. – Em magníficos luíses de ouro e dobrões com peso de lei bem pesado.<br />

O COMISSÁRIO. – Quem suspeitais que possa ter cometido este roubo?<br />

HARPAGÃO. – Toda a gente; e quero que mandeis prender a cidade inteira e os<br />

arredores.<br />

56


O COMISSÁRIO. – Se confiais em mim, o melhor é não espantar ninguém, e tentar<br />

recolher algumas provas sem muito alarido, a fim de se proceder depois, pela força, à<br />

restituição dos dinheiros que vos foram roubados.<br />

CENA <strong>II</strong><br />

MESTRE TIAGO, HARPAGÃO,<br />

O COMISSÁRIO, O SEU AJUDANTE<br />

METRE TIAGO, (no fundo da cena, virando-se para o lado de onde saiu) Já vou e já<br />

volto. Tratem de me cortar esse pescoço, chamusquem-me esses pés, enfiem-mo em<br />

água quente, e que mo pendurem no tecto.<br />

HARPAGÃO. – A quem? ao que me roubou?<br />

MESTRE TIAGO. – Estou a falar de um leitão que o vosso secretário acabou de me<br />

mandar, e que vos quero preparar à minha maneira.<br />

HARPAGÃO. – Não se trata disso, agora; aqui está o Senhor a quem terás de falar de<br />

outro assunto.<br />

COMISSÁRIO. – Não vos assusteis. Não sou homem para vos causar desagravos, e as<br />

coisas far-se-ão calmamente.<br />

MESTRE TIAGO. – Este Senhor também vem jantar?<br />

O COMISSÁRIO. – Neste caso, meu caro amigo, não deveis esconder nada ao vosso<br />

amo.<br />

MESTRE TIAGO. – Por Deus! mostrarei tudo quanto sei fazer, Senhor, e tratar-vos-ei o<br />

melhor que puder.<br />

HARPAGÃO. – Não é disso que se trata.<br />

MESTRE TIAGO. – Se a mesa que vos apresentar não for tão boa quanto gostaria, a<br />

culpa é do Senhor nosso secretário que me cortou as asas com a tesoura da sua<br />

economia.<br />

HARPAGÃO. – Traidor, não é do jantar que se trata mas de outro assunto; e quero que<br />

me dês notícias do dinheiro que me levaram.<br />

MESTRE TIAGO. – Levaram-vos dinheiro?<br />

57


HARPAGÃO. – Sim, malandro; e se tu não mo devolves, mando-te já enforcar.<br />

O COMISSÁRIO. – Meu Deus! não o maltrateis. Vejo, pela sua cara, que se trata de um<br />

homem honesto, e nem será preciso metê-lo na prisão, ele dir-vos-á o que quereis saber.<br />

Sim, meu amigo, se nos confessardes o que aconteceu, não vos acontecerá mal nenhum,<br />

e sereis devidamente recompensado pelo vosso amo. Alguém lhe roubou, hoje, o seu<br />

dinheiro e é impossível que não saibais qualquer coisa sobre este assunto.<br />

MESTRE TIAGO. – Ora aqui está justamente aquilo de que preciso para me vingar do<br />

nosso secretário: desde que aqui entrou, é o favorito, só ouvem os seus conselhos; e<br />

ainda trago no peito as cacetadas de há pouco.<br />

HARPAGÃO. – Que estás para aí a ruminar?<br />

O COMISSÁRIO. – Deixai-o estar: prepara-se para vos aprazer, bem vos tinha dito que<br />

se tratava de um homem honesto.<br />

MESTRE TIAGO. – Senhor, se quereis que vos diga o que sei, creio que foi o Senhor<br />

vosso querido secretário quem deu o golpe.<br />

HARPAGÃO. – Valério?<br />

MESTRE TIAGO. – Sim.<br />

HARPAGÃO. – Ele, que parece tão fiel?<br />

MESTRE TIAGO. – Ele mesmo. Creio que foi ele quem vos roubou.<br />

HARPAGÃO. – Crês, e em que é que te baseias?<br />

MESTRE TIAGO. – Em quê?<br />

HARPAGÃO. – Sim.<br />

MESTRE TIAGO. – Creio… baseado no que creio.<br />

O COMISSÁRIO. – Mas é necessário referir os indícios que tendes.<br />

HARPAGÃO. – Viste-o rondar o local onde eu tinha escondido o meu dinheiro?<br />

MESTRE TIAGO. – Vi, claro. Onde estava o vosso dinheiro?<br />

HARPAGÃO. – No jardim.<br />

MESTRE TIAGO. – Justamente: vi-o rondar o jardim. E o dinheiro estava dentro de<br />

quê?<br />

HARPAGÃO. – De um bauzinho.<br />

MESTRE TIAGO. – É isso mesmo: vi-o com um bauzinho.<br />

58


HARPAGÃO. – E como é esse bauzinho? Já vou ver se se trata do meu.<br />

MESTRE TIAGO. – Como é?<br />

HARPAGÃO. – Sim.<br />

MESTRE TIAGO. – É… é exactamente como um bauzinho.<br />

O COMISSÁRIO. – Isso é evidente. Mas descreve-o um pouco, para ver.<br />

MESTRE TIAGO. – É um bauzinho grande.<br />

HARPAGÃO. – O que me roubaram é pequeno.<br />

MESTRE TIAGO. – Pois claro! é pequeno se o quisermos ver por esse lado; mas<br />

chamo-lhe grande pelo que contém.<br />

O COMISSÁRIO. – E de que cor é?<br />

MESTRE TIAGO. – De que cor?<br />

O COMISSÁRIO. – Sim.<br />

MESTRE TIAGO. – É cor de… de uma certa cor… não poderíeis ajudar-me a dizer?<br />

HARPAGÃO. – Hã?<br />

MESTRE TIAGO. – Não é vermelho?<br />

HARPAGÃO. – Não, cinzento.<br />

MESTRE TIAGO. – Pois claro! cinzento-avermelhado: era o que eu queria dizer.<br />

HARPAGÃO. – Não há duvida nenhuma: é ele seguramente. Escrevei, Senhor, escrevei<br />

o seu depoimento. Céus! em quem confiar doravante? Não podemos pôr as mãos no<br />

fogo por ninguém; e depois disto, até já acredito que sou homem para me roubar a mim<br />

mesmo.<br />

MESTRE TIAGO. – Senhor, ei-lo que volta. Ao menos não lhe digais que fui eu quem<br />

vos fez descobrir tudo isto.<br />

59


CENA <strong>II</strong>I<br />

VALÉRIO, HARPAGÃO<br />

O COMISSÁRIO, O SEU AJUDANTE<br />

MESTRE TIAGO<br />

HARPAGÃO. – Aproxima-te: vem confessar a acção mais negra, o atentado mais<br />

horrível que alguma vez foi cometido.<br />

VALÉRIO. – Que desejais, Senhor?<br />

HARPAGÃO. – O quê, traidor, o teu crime não te faz corar?<br />

VALÉRIO. – De que crime quereis falar?<br />

HARPAGÃO. – De que crime quero falar, infame! Como se não soubesses o que quero<br />

dizer. De nada te serve disfarça-lo: o caso foi descoberto, e acabaram de me dar conta<br />

de tudo. Como é possível abusar assim da minha bondade, e introduzir-se de propósito<br />

na minha casa para me trair? Para me pregar uma partida desta natureza?<br />

VALÉRIO. – Senhor, já que vos revelaram tudo, não quero estar com rodeios nem<br />

negar-vos os factos.<br />

MESTRE TIAGO. – Olá! Teria eu adivinhado sem querer?<br />

VALÉRIO. – Era meu intento falar-vos disto, e queria para tal esperar por conjunturas<br />

mais favoráveis; mas já que assim é, peço-vos que não vos zangueis e que vos digneis<br />

escutar as minhas razões.<br />

HARPAGÃO. – E que belas razões podes tu apresentar-me, ladrão infame?<br />

VALÉRIO. – Ah! Senhor, não creio ter merecido esses nomes. É verdade que cometi<br />

uma ofensa contra vós; mas, no fundo, a minha falta é perdoável.<br />

HARPAGÃO. – Perdoável, como? Uma cilada? Um assassínio desta natureza?<br />

VALÉRIO. – Por favor, não vos exalteis dessa maneira. Quando me tiverdes ouvido,<br />

vereis que o mal não é tão grave como o apresentais.<br />

HARPAGÃO. – O mal não é tão grave como o apresento! O quê? o meu sangue, as<br />

minhas entranhas, patife?<br />

VALÉRIO. – O vosso sangue, Senhor, não caiu em más mãos. Pertenço a uma condição<br />

que não o ofende, e não há nada em tudo isto que eu não possa reparar.<br />

HARPAGÃO. – É isso que pretendo exigir, e que me restituas aquilo que me<br />

arrebataste.<br />

60


VALÉRIO. – A vossa honra, Senhor, será inteiramente respeitada.<br />

HARPAGÃO. – A honra não é para aqui chamada. Mas, diz-me lá, quem é que te levou<br />

a cometer um tal acto?<br />

VALÉRIO. – Ó, Senhor, deveras mo perguntais?<br />

HARPAGÃO. – Sim, pergunto-to deveras.<br />

VALÉRIO. – Um deus que traz consigo as desculpas de tudo quanto nos faz fazer: o<br />

Amor.<br />

HARPAGÃO. – O Amor?<br />

VALÉRIO. – Sim.<br />

HARPAGÃO. – Que rico amor, que rico amor, por deus! O amor dos meus luíses de<br />

ouro.<br />

VALÉRIO. – Não, Senhor, não foram as vossas riquezas que me tentaram; não foi isso<br />

que me fascinou, e declaro nada pretender de todos os vossos bens, desde que me<br />

confieis aquele que já possuo.<br />

HARPAGÃO. – Isso nunca, com mil diabos! Jamais to confiarei. Mas vejam só que<br />

insolência, querer ficar com aquilo que me roubou!<br />

VALÉRIO. – Chamais a isto um roubo?<br />

HARPAGÃO. – Se chamo a isso um roubo? Um tesouro como aquele!<br />

VALÉRIO. – É um tesouro, é verdade, e o mais precioso que tendes, sem dúvida; mas,<br />

confiar-mo não será perdê-lo. É de joelhos que vos peço, esse tesouro cheio de encantos;<br />

e para bem-fazer, deveis conceder-mo.<br />

HARPAGÃO. – Não farei nada disso. Mas o que quer isto dizer?<br />

VALÉRIO. – Fizemos promessas de amor um ao outro e jurámos nunca mais nos<br />

separarmos.<br />

HARPAGÃO. – O juramento é admirável e a promessa encantadora!<br />

VALÉRIO. – Sim, comprometemo-nos a ser um do outro para sempre.<br />

HARPAGÃO. – Tudo farei para o impedir, podem ter certeza<br />

VALÉRIO. – Só a morte poderá separar-nos.<br />

HARPAGÃO. – É estar completamente possesso pelo meu dinheiro.<br />

61


VALÉRIO. – Já vos disse, Senhor, que não foi o interesse que me levou a fazer o que<br />

fiz. O meu coração não agiu pelos impulsos que imaginais, e um motivo mais nobre<br />

inspirou a minha decisão.<br />

HARPAGÃO. – Quereis ver que é por caridade cristã que quer ficar com o meu tesouro;<br />

mas eu ponho já tudo em ordem; e a justiça, meu patife descarado, dar-me-á toda a<br />

razão.<br />

VALÉRIO. – Fazei dela o uso que bem entenderdes, eis-me pronto a suportar todas as<br />

violências que vos aprouver: mas peço-vos que ao menos acrediteis que se algum dano<br />

houve, só eu devo ser acusado, e que a vossa filha não tem em tudo isto culpa alguma.<br />

HARPAGÃO. – Nisso acredito eu, certamente; seria muito estranho que a minha filha<br />

tivesse mergulhado neste crime. Mas quero reaver o que me interessa, e que tu me<br />

confesses para que lugar o levaste.<br />

VALÉRIO. – Eu? levar? mas se ainda está em vossa casa.<br />

HARPAGÃO. – Ó, meu querido bauzinho! Não saiu de minha casa?<br />

VALÉRIO. – Não, Senhor.<br />

HARPAGÃO. – Ah! Diz-me cá uma coisita: não lhe tocaste?<br />

VALÉRIO. – Eu, tocar-lhe? Ah! Como sois injusto, tanto com um como com o outro; o<br />

fogo ardente que em mim despertou não podia ser mais puro e respeitador.<br />

HARPAGÃO. – Fogo ardente pelo meu bauzinho?<br />

VALÉRIO. – Preferia morrer a deixar-lhe transparecer algum pensamento ofensivo: a<br />

sua sensatez e a sua honestidade não o permitiriam.<br />

HARPAGÃO. – A honestidade do meu bauzinho!<br />

VALÉRIO. – Todos os meus desejos se limitaram a usufruir da sua presença; e nenhum<br />

crime profanou a paixão que os seus belos olhos me inspiraram.<br />

HARPAGÃO. – Os belos olhos do meu bauzinho! Fala como falaria um apaixonado da<br />

sua amada.<br />

VALÉRIO. – A Senhora Cláudia conhece a verdade deste acaso, Senhor, e poderá<br />

testemunhar-vos…<br />

HARPAGÃO. – O quê? A minha criada é cúmplice neste caso?<br />

VALÉRIO. – Sim, Senhor, foi testemunha do nosso compromisso; e só depois de ter<br />

reconhecido a honestidade da minha paixão, me ajudou a persuadir vossa filha a dar-me<br />

o seu amor e a receber o meu.<br />

62


HARPAGÃO. – Hã? Será que o medo da justiça o faz delirar? Que embrulhada nos<br />

estás para aí a fazer com a minha filha pelo meio?<br />

VALÉRIO. – Estou a dizer, Senhor, que sofri todas as penas do mundo para conseguir<br />

que o seu pudor consentisse no que o meu amor reclamava.<br />

HARPAGÃO. – O pudor de quem?<br />

VALÉRIO. – De vossa filha; e só ontem conseguiu tomar a decisão de assinar uma<br />

promessa mútua de casamento.<br />

HARPAGÃO. – A minha filha assinou-te uma promessa de casamento!<br />

VALÉRIO. – Sim, Senhor, eu também lhe assinei uma.<br />

HARPAGÃO. – Ó Céus! outra desgraça!<br />

MESTRE TIAGO. – Escrevei, Senhor, escrevei.<br />

HARPAGÃO. – Mal redobrado! Desespero acrescido! Vamos, Senhor, cumpri o vosso<br />

dever, e instrui-lhe um processo como ladrão e sedutor.<br />

VALÉRIO. – São nomes que de modo algum me são devidos; e quando se souber quem<br />

sou….<br />

CENA IV<br />

ELISA, MARIANA, FROSINA, HARPAGÃO<br />

VALÉRIO, MESTRE TIAGO,<br />

O COMISSÁRIO, O SEU AJUDANTE<br />

HARPAGÃO. – Ah! filha desalmada! Filha indigna de um pai como eu! é assim que te<br />

serves das lições que eu te dei? Deixas-te seduzir por um ladrão infame, e fazes-lhe<br />

promessas de amor sem o meu consentimento? Mas estais muito enganados, um e outro.<br />

Quatro paredes bem altas responder-me-ão pela tua conduta; e quanto à tua audácia,<br />

uma boa forca far-me-á justiça.<br />

VALÉRIO. – Não será a vossa fúria o juiz deste caso; e antes de me condenarem, hãode<br />

pelo menos escutar-me.<br />

HARPAGÃO. – Enganei-me quando falei em forca, serás supliciado vivo.<br />

ELISA. (de joelhos a Harpagão) – Ah! meu pai, peço-vos, sede um pouco mais humano<br />

nos vossos sentimentos, e não leveis as coisas até à violência extrema do poder paternal.<br />

Não vos deixeis arrastar pelos primeiros impulsos da vossa fúria, e concedei-vos algum<br />

63


tempo para reflectirdes sobre o que quereis fazer. Tende a bondade de olhar melhor para<br />

a pessoa de quem vos queixais: é bem diferente do que parece aos vossos olhos; e<br />

achareis menos estranho que a ele me tenha entregado quando souberdes que, sem ele,<br />

ter-me-íeis perdido há muito tempo. Sim, meu pai, foi ele quem me salvou do grande<br />

perigo que, como bem sabeis, corri nas águas, e a quem deveis a vida desta filha que…<br />

HARPAGÃO. – Nada disso tem importância; e para mim, mais valia que ele te tivesse<br />

deixado afogar do que fazer-me o que fez.<br />

ELISA. – Meu pai, rogo-vos, pelo poder paternal, que me…<br />

HARPAGÃO. – Não, não, não quero ouvir mais nada; e é preciso que a justiça cumpra<br />

o seu dever.<br />

MESTRE TIAGO. – Vais pagar-me as cacetadas que me deste.<br />

FROSINA. – Mas que grande imbróglio.<br />

CENA V<br />

ANSELMO, HARPAGÃO, ELISA,<br />

MARIANA, FORSINA, VALÉRIO,<br />

MESTRE TIAGO, O COMISSÁRIO<br />

O SEU AJUDANTE<br />

ANSELMO. – Que aconteceu, Senhor Harpagão, vejo que estais transtornado.<br />

HARPAGÃO. – Ah? Senhor Anselmo, tendes à vossa frente o mais desgraçado dos<br />

homens; e há muita perturbação e muita desordem à volta do contrato que vindes fazer!<br />

Assassinam-me na fortuna e assassinam-me na honra; aqui tendes o traidor, o celerado,<br />

que violou os direitos mais sagrados, que se introduziu em minha casa disfarçado de<br />

empregado, para me desviar o dinheiro e me subornar a filha.<br />

VALÉRIO. – Quem pensa no vosso dinheiro, com que me não parais de me atazanar<br />

nesta embrulhada?<br />

HARPAGÃO. – Sim, eles fizeram um ao outro, uma promessa de casamento. Esta<br />

afronta diz-vos respeito, Senhor Anselmo, deveis dar-vos como lesado e usar todos os<br />

recursos da justiça, para vos vingardes da sua insolência.<br />

64


ANSELMO. – Não é meu intento forçar alguém a desposar-me, e nada pretendo de um<br />

coração que já pertence a outrem; mas quanto aos vossos interesses, estou pronto a<br />

abraça-los como se fossem meus.<br />

HARPAGÃO. – Este Senhor é um honesto comissário, que, tal como me assegurou, não<br />

esquecerá nenhuma das obrigações do seu ofício. Carregai-o bem, Senhor, e pintai as<br />

coisas bem criminosas.<br />

VALÉRIO. – Não vejo em que crime possam transformar a paixão que sinto pela vossa<br />

filha; e o suplício a que pretendeis condenar-me pelo nosso compromisso, quando se<br />

souber quem sou…<br />

HARPAGÃO. – Não quero saber dessas histórias para nada; e o mundo está hoje cheio<br />

desses gatunos de nobreza, desses impostores, que sempre viveram na sombra, e que<br />

entretanto aproveitam para vestir insolentemente o primeiro nome ilustre que se atrevem<br />

a apanhar.<br />

VALÉRIO. – Sabei que tenho um coração demasiado honesto para me apropriar de algo<br />

que me não pertença, e que Nápoles inteira pode testemunhar a minha condição.<br />

ANSELMO. – Calma! tende cuidado com o que ides dizer. Arriscais neste assunto bem<br />

mais do que podeis imaginar; e estais a falar perante um homem que conhece Nápoles<br />

inteira, e que pode facilmente avaliar a clareza da história que nos ides contar.<br />

VALÉRIO. (pondo orgulhosamente o chapéu) – Não sou homem para ter medo, e se<br />

conheceis Nápoles inteira, deveis saber quem era Dom Tomás d’Alburcy.<br />

ANSELMO. – Sem dúvida que sei; e poucas pessoas o conheceram melhor do que eu.<br />

HARPAGÃO. – Não quero saber nem de Dom Tomás, nem de Dom Martinho.<br />

ANSELMO. – Por favor, deixai-o falar, já veremos o que nos quer dizer.<br />

VALÉRIO. – Quero dizer que foi ele quem me deu a vida.<br />

ANSELMO. – Ele?<br />

VALÉRIO. – Sim.<br />

ANSELMO. – Então; estais a brincar. Inventai outra história, que vos assente melhor, e<br />

não tenteis escapar a coberto desta impostura.<br />

VALÉRIO. – Pensai no que dizeis antes de falar. Não é uma impostura; e nada adianto<br />

que não possa facilmente justificar.<br />

ANSELMO. – O quê? Ousais dizer-vos filho de Dom Tomás d’Alburcy?<br />

VALÉRIO. – Sim, ouso; e estou pronto a sustentar esta verdade contra quem quer que<br />

seja.<br />

65


ANSELMO. – A audácia é uma coisa maravilhosa. Ficai sabendo, para vosso<br />

desconcerto, que o homem de quem nos falais, pereceu no mar com os filhos e com a<br />

mulher, há pelo menos dezasseis anos, quando tentava salvar as suas vidas das cruéis<br />

perseguições que se seguiram aos tumultos de Nápoles, e que obrigaram ao exílio várias<br />

famílias nobres.<br />

VALÉRIO. – Sim; mas ficai sabendo, vós, para vosso desconcerto, que o filho, de sete<br />

anos, foi salvo desse naufrágio, juntamente com um criado, por um navio espanhol, e<br />

que esse filho salvo é este que vos fala; ficai sabendo que o capitão desse navio, tocado<br />

pelo meu infortúnio, tomou-se de amizade por mim; educou-me como se fosse seu filho,<br />

e segui a carreira das armas assim que a idade mo permitiu; que soube há pouco que, ao<br />

contrário do que sempre tinha pensado, o meu pai não estava morto; que ao passar por<br />

aqui quando o procurava, o acaso, com a protecção do Céu, fez-me ver a encantadora<br />

Elisa; que essa visão fez de mim escravo da sua beleza; e que a violência do meu amor,<br />

e a severidade de seu pai, me levaram à decisão de me introduzir em sua casa, e de<br />

enviar outra pessoa em busca de meus pais.<br />

ANSELMO. – Mas que outros testemunhos, para além das vossas palavras, nos podem<br />

garantir que não se trata de uma fábula construída sobre uma verdade?<br />

VALÉRIO. – O capitão espanhol; um sinete de rubis que pertencia a meu pai; uma<br />

pulseira de ágata que minha mãe me havia colocado no braço; o velho Pedro, o criado<br />

que comigo se salvou do naufrágio.<br />

MARIANA. – Ai de mim! às vossas palavras posso eu acrescentar que em nada mentis;<br />

e tudo o que dizeis me faz reconhecer claramente que sois meu irmão.<br />

VALÉRIO. – Vós, minha irmã?<br />

MARIANA. – Sim. O meu coração comoveu-se desde o momento em que a vossa boca<br />

se abriu; e a nossa mãe, que ireis encher de alegria, falou-me mil vezes das desgraças da<br />

nossa família. O Céu também não permitiu que perecêssemos naquele nesse triste<br />

naufrágio; mas salvou-nos a vida em troca da nossa liberdade; e eram corsários os que<br />

nos recolheram, a mim e a minha mãe, de um dos destroços do nosso navio. Após dez<br />

anos de escravatura, um feliz acaso devolveu-nos a liberdade, e regressamos a Nápoles,<br />

onde verificamos que todos os nossos bens haviam sido vendidos, e onde não<br />

conseguimos saber notícias de nosso pai. Passámos por Génova, onde a minha mãe<br />

conseguiu reunir alguns restos miseráveis de uma herança desbaratada; e de lá, fugindo<br />

à bárbara injustiça dos seus parentes, veio para este lugar, onde a sua vida pouco mais<br />

tem sido do que sofrimento.<br />

ANSELMO. – Ó Céu! assim são os desígnios do teu poder! e como nos sabes provar<br />

que só tu podes fazer milagres ! Abraçai-me, meus filhos, deixai que as vossas emoções<br />

se unam à do vosso pai.<br />

VALÉRIO. – Sois vós o nosso pai?<br />

MARIANA. – Sois vós por quem minha mãe tanto chorou?<br />

66


ANSELMO. – Sim, minha filha, sim, meu filho, eu sou Dom Tomás d’Alburcy, que o<br />

Céu salvou das ondas com todo o dinheiro que levava, e que, pensando-vos mortos ao<br />

longo de mais de dezasseis anos, se preparava, depois de longas viagens, para procurar<br />

no enlace com uma pessoa delicada e sensata o conforto de uma nova família. A pouca<br />

segurança que senti quando regressei a Nápoles fez com que tivesse decidido renunciar<br />

para sempre a essa cidade; e tendo encontrado um meio de vender o que lá tinha, fui-me<br />

deixando ficar por aqui, onde, sob o nome de Anselmo, quis afastar de mim os<br />

sofrimentos desse outro nome que tantos desaires me trouxe.<br />

HARPAGÃO. – Aquele é vosso filho?<br />

ANSELMO. – É.<br />

HARPAGÃO. – Vou processar-vos para que me pagueis dez mil escudos que ele me<br />

roubou.<br />

ANSELMO. – Roubou-vos, ele?<br />

HARPAGÃO. – Ele mesmo.<br />

VALÉRIO. – Quem vos disse isso?<br />

HARPAGÃO. – Mestre Tiago.<br />

VALÉRIO. – Disseste tal coisa?<br />

MESTRE TIAGO. – Bem vedes que não digo nada.<br />

HARPAGÃO. – Sim: aqui está o Senhor Comissário que recebeu o seu depoimento.<br />

VALÉRIO. – Podereis vós achar-me capaz de uma acção tão cobarde?<br />

HARPAGÃO. – Capaz ou não, eu quero é reaver o meu dinheiro.<br />

CENA IV<br />

CLEANTO, VALÉRIO, MARIANA, ELISA,<br />

FROSINA, HARPAGÃO, ANSELMO,<br />

MESTRE TIAGO, FLECHA<br />

O COMISSÁRIO, O SEU AJUDANTE<br />

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CLEANTO. – Não vos atormenteis mais, meu pai, e não acuseis ninguém. Tenho<br />

novidades sobre o vosso assunto, e venho aqui para vos dizer que, se vos decidirdes a<br />

deixar-me casar com Mariana, o vosso dinheiro ser-vos-á devolvido.<br />

HARPAGÃO. – Onde está?<br />

CLEANTO. – Não vos preocupeis: respondo pelo lugar onde está guardado, e tudo<br />

depende apenas de mim. Deveis agora dizer-me a que estais determinado; e podeis<br />

escolher, ou dar-me Mariana, ou perder o vosso bauzinho.<br />

HARPAGÃO. – Não tiraram de lá nada?<br />

CLEANTO. – Absolutamente nada. Vede então se é vosso propósito subscrever este<br />

casamento, e juntar assim o vosso consentimento ao de sua mãe, que lhe dá a liberdade<br />

de escolher entre nós dois.<br />

MARIANA. – Mas vós ainda não sabeis que não basta esse consentimento, e que o Céu,<br />

com um irmão que aqui vedes, acaba de me devolver um pai de quem tereis de obter<br />

permissão.<br />

ANSELMO. – O Céu, meus filhos, não me traz até vós para contrariar os vossos desejos.<br />

Senhor Harpagão, como deveis imaginar, a escolha de uma jovem há-de recair sobre o<br />

filho e não o sobre o pai. Vamos, não me obrigueis a dizer o que não é necessário ouvir,<br />

e consenti, tal como eu, neste duplo enlace.<br />

HARPAGÃO. – Para decidir, terei de ver o meu bauzinho.<br />

CLEANTO. – Vê-lo-eis são e salvo.<br />

HARPAGÃO. – Não tenho dinheiro nenhum a dar em casamento aos meus filhos.<br />

ANSELMO. – Pois bem! tenho eu para eles; que isso não vos inquiete mais.<br />

HARPAGÃO. – Comprometeis-vos a assumir todas as despesas destes dois casamentos?<br />

ANSELMO. – Sim, comprometo-me; estais satisfeito?<br />

HARPAGÃO. – Sim, desde que para a boda me mandeis fazer um fato novo.<br />

ANSELMO. – Assim será. Vamos então desfrutar das alegrias que este dia afortunado<br />

nos oferece.<br />

O COMISSÁRIO. – Alto lá, Senhores, alto lá! mais devagarinho, se fazem o favor:<br />

quem é que vai pagar as minhas escrituras?<br />

HARPAGÃO. – Não precisamos das vossas escrituras para nada.<br />

O COMISSÁRIO. – Sim! Mas, eu se as fiz, de alguma coisa precisava.<br />

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HARPAGÃO. – Como pagamento, tendes ali aquele homem que vos ofereço para a<br />

forca.<br />

MESTRE TIAGO. – Ai de mim! Afinal, o que devo fazer? Se digo a verdade, dão-me<br />

pancada, se minto, querem enforcar-me.<br />

ANSELMO. – Senhor Harpagão, temos de lhe perdoar esta impostura.<br />

HARPAGÃO. – E pagareis então ao Comissário?<br />

ANSELMO. – Seja. Vamos depressa partilhar a nossa alegria com a vossa mãe.<br />

HARPAGÃO. – E eu, ver o meu querido bauzinho.<br />

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