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Aristofanes - A Cidade - ESEC

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A CIDADE<br />

Uma colagem de cenas de Aristófanes<br />

(Excertos de Os Acarnenses, Lisístrata, Paz, Pluto, As mulheres que celebram as<br />

Tesmofórias, As Nuvens, os Cavaleiros, As Mulheres no Parlamento e As Aves)<br />

Tradução: Maria de Fátima Sousa e Silva, Custódio Magueijo (As Nuvens)<br />

Adaptação e colagem: Luis Miguel Cintra<br />

7ªversão<br />

(com cortes retirados do texto)


1. Prólogo (ACARNENSES)<br />

2. O mercador vende as filhas (ACARNENSES)<br />

Distribuição de Personagens<br />

Velho 1Luis Miguel Cintra<br />

Velho 1Luis Miguel Cintra<br />

MercadorNuno Lopes<br />

Filha 1Rita Durão<br />

Filha 2Carolina Villaverde Rosado<br />

3. As mulheres preparam-se para a greve (LISÍSTRATA)<br />

Velho 1Luis Miguel Cintra<br />

MercadorNuno Lopes<br />

LisístrataRita Loureiro<br />

CaloniceMaria Rueff<br />

LâmpitoLuísa Cruz<br />

MírrinaMarina Albuquerque<br />

Mulher de CorintoSofia Marques<br />

Mulher da Beócia e Isménia Márcia Breia<br />

Outra Mulher e uma criadaTeresa Madruga<br />

4. Ataque a Cinésias (LISÍSTRATA)<br />

LisístrataRita Loureiro<br />

CaloniceMaria Rueff<br />

LâmpitoLuísa Cruz<br />

MírrinaMarina Albuquerque<br />

Mulher de CorintoSofia Marques<br />

Mulher da Beócia e Isménia Márcia Breia<br />

Cinésias e SoldadoDuarte Guimarães<br />

Escravo com criança ao coloBruno Nogueira<br />

Velho 1Luis Miguel Cintra<br />

Arauto EspartanoGonçalo Waddington<br />

5. O desenterro da Paz (A PAZ)<br />

CinésiasDuarte Guimarães<br />

Coro de SoldadosBruno Nogueira, Nuno Lopes, Dinarte Branco e Dinis Gomes<br />

Trigeu-oficialRicardo Aibéo<br />

PazMárcia Breia<br />

FolgançaCarolina Villaverde Rosado<br />

Deusa dos FrutosRita Durão<br />

HermesGonçalo Waddington<br />

6. O deus dinheiro (PLUTO)<br />

7. A defesa de Eurípides (TESMOFÓRIAS)<br />

8. A velha quer moço (PLUTO)<br />

9. Eurípides desmascarado (TESMOFÓRIAS)<br />

CrémiloLuís Lima Barreto<br />

PlutoJosé Manuel Mendes<br />

Velho 1Luis Miguel Cintra<br />

EurípidesDinarte Branco<br />

ParenteNuno Lopes<br />

ÁgatonDinis Gomes<br />

ÁgatonDinis Gomes<br />

Velha dos DocesMárcia Breia<br />

CrémiloLuís Lima Barreto<br />

JovemBruno Nogueira<br />

2


1ª MulherTeresa Madruga<br />

2ª MulherRita Durão<br />

Coro de MulheresLuísa Cruz, Rita Loureiro, Sofia Marques, Maria Rueff e Marina Albuquerque<br />

Velha dos DocesMárcia Breia<br />

ParenteNuno Lopes<br />

EurípidesDinarte Banco<br />

Homem 2Duarte Guimarães<br />

GuardaRicardo Aibéo<br />

FolgançaCarolina Villaverde Rosado<br />

Final da Primeira Parte<br />

Coro de HomensLuis Miguel Cintra, José Manuel Mendes, Luis Lima Barreto, Bruno Nogueira,<br />

Gonçalo Waddington, Dinis Gomes e Duarte Guimarães<br />

Coro de MulheresTeresa Madruga, Rita Durão, Luísa Cruz, Rita Loureiro, Sofia Marques, Maria<br />

Rueff e Marina Albuquerque<br />

10. Praxágora prepara-se para atacar (AS MULHERES NO PARLAMENTO)<br />

11. A educação dos jovens (NUVENS)<br />

PraxágoraMaria Rueff<br />

EstrepsíadesLuís LimaBarreto<br />

SócratesJosé Manuel Mendes<br />

FidípedesBruno Nogueira<br />

Raciocínio JustoRicardo Aibéo<br />

Raciocínio InjustoGonçalo Waddington<br />

12. 1 As mulheres disfarçam-se (AS MULHERES NO PARLAMENTO)<br />

PraxágoraMaria Rueff<br />

Primeira MulherLuísa Cruz<br />

Segunda MulherTeresa Madruga<br />

Clinareta, Mulher de CerítadesRita Loureiro<br />

SóstrataSofia Marques<br />

FilénataMarina Albuquerque<br />

GliceRita Durão<br />

12.2 Os homens vencidos (AS MULHERES NO PARLAMENTO)<br />

BléfiroLuis Miguel Cintra<br />

Homem vizinhoDuarte Guimarães<br />

CremesLuís Lima Barreto<br />

12.3 Mudança de regime (AS MULHERES NO PARLAMENTO)<br />

Coro de MulheresLuísa Cruz, Teresa Madruga, Rita Loureiro, Sofia Marques, Marina Albuquerque e<br />

Rita Durão<br />

PraxágoraMaria Rueff<br />

BléfiroLuis Miguel Cintra<br />

CremesLuís Lima Barreto<br />

Homem 3Gonçalo Waddington<br />

Mulher ArautoRita Loureiro<br />

Cortejo de HomensBruno Nogueira e Duarte Guimarães<br />

SócratesJosé Manuel Mendes<br />

12. 4 As mulheres à caça dos homens (AS MULHERES NO PARLAMENTO)<br />

Primeira VelhaLuísa Cruz<br />

MoçaSofia Marques<br />

MoçoDinis Gomes<br />

Segunda VelhaTeresa Madruga<br />

Segunda VelhaMárcia Breia<br />

Mulheres à janelaRita Durão, Maria Rueff e Carolina Villaverde Rosado<br />

EscravaMarina Albuquerque<br />

3


13. Os dois candidatos (CAVALEIROS)<br />

DemóstenesDinarte Branco<br />

SalsicheiroNuno Lopes<br />

Velho 1Luis Miguel Cintra<br />

PaflagónioRicardo Aibéo<br />

CoroRita Durão, Maria Rueff, Rita Loureiro, Marina Albuquerque, Gonçalo Waddington,<br />

Bruno Nogueira, Duarte Guimarães e Sofia Marques<br />

14. A fuga para o céu (AS AVES)<br />

EvélpidesJosé Manuel Mendes<br />

PisteteroLuís Lima Barreto<br />

PoupaLuísa Cruz<br />

CoroNuno Lopes, Dinis Gomes, Duarte Guimarães, Márcia Breia, Teresa Madruga, Rita Loureiro,<br />

Sofia Marques, Maria Rueff, Carolina Villaverde Rosado, Rita Durão e Marina Albuquerque<br />

PoetaGonçalo Waddington<br />

ArquitectoBruno Nogueira<br />

Vendedor de DecretosRicardo Aibéo<br />

InspectorDinarte Branco<br />

15. Epílogo (ACARNENSES)<br />

Velho 1Luis Miguel Cintra<br />

4


A cena é uma praça onde desembocam várias ruas. Portas e janelas.<br />

1ª PARTE<br />

Quando o público entra um velho cidadão ateniense está em cena à espera. Talvez algum elemento<br />

do cenário esteja ainda por montar. Ouve-se um toque de alvorada ou um solo de metal melancólico.<br />

1.<br />

Velho 1<br />

(Olhando com desalento uma Pnix deserta. Fala ao público.) Quantos desgostos tenho eu tido a roerme<br />

a alma! Lá alegrias, essas, são poucas, bem poucas mesmo, uma meia dúzia, se tanto! Mas<br />

aflições!... Às centenas, como de areias tem o mar. Mas a verdade é que nunca, desde que tomo<br />

banho, os olhos me arderam tanto com o sabão como agora, quando, num dia de assembleia<br />

regular, de manhãzinha, venho aqui encontrar a Pnix vazia, enquanto a malta fica a palrar na ágora,<br />

num vaivém de cá para lá…A paz e o modo de a conseguir é o que menos os preocupa.<br />

Ai cidade, cidade! Pelo que me toca, sou sempre o primeirinho a chegar à assembleia e a sentar-me.<br />

E enquanto estou só, vou suspirando, abro a boca, espreguiço-me, dou uns traques, fico sem saber<br />

que fazer, traço uns rabiscos, arranco pêlos, deito contas à vida. Lá me ponho a contemplar o meu<br />

campo, desejoso de paz.<br />

Tenho horror à cidade, e saudades da minha terra, que nunca me disse: «Compra carvão», nem<br />

vinagre, nem azeite; lá não se usava essa coisa do «compra». Era ela que me dava tudo. Por isso<br />

aqui estou eu desta vez decidido — e bem decidido! — a berrar, a intervir, a insultar os oradores, se<br />

algum falar de outro assunto que não seja a paz.<br />

Ouve-se uma banda de música a ensaiar off ao longe. O Velho afasta-se para o fundo. Chega um<br />

mercador da província com um grande saco às costas e atrás as suas duas jovens filhas. Vem da<br />

plateia.<br />

2.<br />

Mercador<br />

Biba, mercado de Atãnas! Que choidades eu tinha de ti! Por Zeus, chenhor da amijade, choidades<br />

que nem de uma mãe! Bamos, povres filhinhas de um pai desgrachado; chubam para aqui, para ber<br />

che arranjam um naco de pão, se entxergam algum. Oicham lá, dêem-me cá atenchão, barriguinhas<br />

vajias. O que é que vochês proferem? Cherem bendidas ou arrebentarem de fome?<br />

Filhas<br />

Chermos bendidas! Chermos bendidas!<br />

Mercador<br />

Tamém chou da mesma opinião. Mas quem cheria achim tam vurro, que vos foche cumprar a<br />

vochês?! Um prejuíjo, tá-se mesmo a ber!. Chim, co‘o raio, que che eu bos bolto a lebar pra caja por<br />

bender, atão é que habeis de esprementar o que é larica. Bamos, enfiem-che aqui p'ró chaco. (As<br />

raparigas entram no saco.) Icho mesmo! E agora toca a grunhir e a fajer coí. (O Velho volta. Vê o<br />

Mercador.) Amigo, queres cumprar umas porquinhas?<br />

Velho 1<br />

O que vem a ser isto? Um tipo de Mégara aqui?<br />

Mercador<br />

Biemos ao mercado.<br />

Velho 1<br />

E então, como têm passado por lá?<br />

Mercador<br />

Arrebentemos de fomaça ao canto da lareira. Quando eu de lá chaí e meti pernas ao caminho,<br />

andavam os do conchelho a rejorber as coijas da chidade.<br />

5


Velho 1<br />

E que mais há lá por Mégara? A como está o trigo?<br />

Mercador<br />

Lá na minha terra está de se lhe tirar o chapéu, que nem aos deujes.<br />

Velho 1<br />

É sal que trazes aí?<br />

Mercador<br />

Não. A eche não lhe deitaram vochês a unha?<br />

Velho 1<br />

Então, são alhos?<br />

Mercador<br />

Alhos? Aquais?<br />

Velho 1<br />

Mas afinal o que é que trazes aí?<br />

Mercador<br />

Umas porquinhas, é o que eu trago.<br />

Velho 1<br />

Muito bem! Mostra lá!<br />

Mercador<br />

(Abrindo o saco.) Chão mesmo uma beleja. Ora bê lá o pêjo desta, che queres. Gordinha, uma<br />

beleja.<br />

Velho 1<br />

(Depois de apalpar.) Mas o que vem a ser isto?<br />

Mercador<br />

Uma porquinha, ora essa.<br />

Velho 1<br />

Que é que estás tu a dizer? De que terra é ela, esta porca?<br />

Mercador<br />

De Mégara. Mas atão, isto aqui achim não é uma porquinha?<br />

Velho 1<br />

A mim não me parece nada.<br />

Mercador<br />

Echa é boa! Ora bejam bem, uma dúbida achim! Diz ele atão que isto não é uma porquinha. Pois,<br />

che quijeres, aposta comigo uma medida de tomilho com chal… Olha, queres ouvi-la tchiar?<br />

Velho 1<br />

Pelos deuses, se quero!<br />

Mercador<br />

Grunhe lá deprecha, porquinha! Queres ou não queres? Ficas calada? Um raio que te parta! Torno-te<br />

a lebar pra caja, — pocha —, ai icho torno.<br />

Filha<br />

Coí! Coí!<br />

6


Mercador<br />

É uma porquinha ou não é?<br />

Velho 1<br />

Agora sim, parece uma porquinha. E, quando for grande, há-de ser passarinha.<br />

Mercador<br />

Mais uns chinco anos — fica-te com esta! —, há-de cher a mãe tchapada. Quando engordar e che<br />

entcher de pêlo, há-de cher uma porquinha que é uma beleja, pra chacrificar a Afrodite.<br />

Velho 1<br />

Onde é que já se viu sacrificar porquinhas a Afrodite?!<br />

Mercador<br />

Não se chacrificam porquinhas a Afrodite? Homessa! É mesmo chó a ela, dos deujes todos! E mais,<br />

a carne destas porquinhas é um regalo, achadinha no espeto.<br />

Velho 1<br />

Já estão na altura de comerem sem a mãe?<br />

Mercador<br />

Chim, claro, e chem o pai tamém.<br />

Velho 1<br />

E o que é que esta come melhor?<br />

Mercador<br />

Tudo o que lhe deres. Ora pergunta-lhe tu.<br />

Velho 1<br />

Porquinhas! Porquinhas!<br />

Filhas<br />

Coí! Coí!<br />

Velho 1<br />

Será que são tomates que vocês comem?<br />

Filhas<br />

Coí! Coí! Coí!<br />

Velho 1<br />

Ah, sim ? E uns figuinhos?<br />

Filhas<br />

Coí! Coí!<br />

Velho 1<br />

(Dirigindo-se à outra) E tu, então? É figos que tu comes, tu aí?<br />

Filha<br />

Coí! Coí!<br />

Velho 1<br />

Venham daí uns figos para estes amores de porquinhas. (Vai dentro da casa e traz figos. As filhas<br />

deitam a cabeça de fora saco. O Velho volta e dá figos às moças.) Ena pá! Que ranger de queixadas.<br />

De que terra são estas porquinhas? Da Papagónia, está-se mesmo a ver. Co‘a breca, que par de<br />

bichinhos bonitos tu aqui tens!... Por quanto me vendes estas porquinhas? Diz lá.<br />

Mercador<br />

7


Esta aqui por uma réstia de alhos, e aquela, che também a quijeres, por uma litrada de chal, nem<br />

mais nada.<br />

Velho 1<br />

Negócio arrumado. Ora espera lá! (Entra em casa.)<br />

Mercador<br />

Ora pronto. Por Hermes, deus do comérchio, oxalá eu concheguisse bender achim a minha mulher…<br />

e até a minha mãejinha!...<br />

Entram várias mulheres ao mesmo tempo de vários sítios. O Mercador e as filhas ficam pasmados a<br />

olhá-las. Volta o Velho 1 com a réstia de alhos e o litro de sal. As raparigas, curiosas, entram em<br />

casa. O Velho 1 também fica a olhar para as várias mulheres que entram.<br />

3.<br />

Lísistrata entra com Calonice. Entra pelo lado oposto Lâmpito acompanhada de Mírrina, e outra, de<br />

Corinto. Chega também sozinha outra da Beócia. A roupa que usam deixa-lhes o corpo em boa parte<br />

a descoberto.<br />

Lisístrata<br />

Minha querida Lacónia! Viva, Lâmpito! Que pedaço de mulher tu estás, meu amor! Que cor<br />

magnífica! Que forma atlética! Estavas capaz de estrangular um touro.<br />

Lâmpito<br />

(Com um a forte marca dialectal.) Realmante, pelos dois deujes, acho que chim! É que me farto de<br />

fajer ginástica e de bater com os calcanhares no trajeiro com os chaltos que dou.<br />

Calonice<br />

(A apalpá-la.) Que par de mamas fantásticas que tu tens!<br />

Lâmpito<br />

(Incomodada.) Vochemechês apalpam-me que nem que eu foche uma bítima para o chacrifichio!<br />

Lisístrata<br />

(A apontar para Isménia, a Mulher da Beócia.) E aquela moça ali, de onde é que ela é?<br />

Lâmpito<br />

Bem a reprejentar a Beóchia, pelos dois deujes! Ora aí está.<br />

Mírrina<br />

(A espreitar-lhe por debaixo da túnica.) Realmente, uma Beócia de truz! Só a planície que ela ali tem!<br />

Calonice<br />

Lá isso é. E que bem lhe tosaram o mato!<br />

Lisístrata<br />

(Designando agora a Coríntia.) E aquela outra miúda?<br />

Lâmpito<br />

Echa, pelos dois deujes, pertenche a uma gente de muita linha. É de Corinto que ela vem.<br />

Calonice<br />

(A espreitar-lhe o corpo.) Linhas realmente é o que lhe não falta, tanto quanto se pode ver pela frente<br />

e por trás!<br />

Lâmpito<br />

Mas afinal, quem é que convocou esta achembleia de mulheres?<br />

Lisístrata<br />

8


Fui eu.<br />

Lâmpito<br />

Bem, atão conta lá o que é que queres da gente.<br />

Calonice<br />

Isso, minha querida! Conta lá.<br />

Lisístrata<br />

Dos pais dos vossos filhos vocês não têm saudades, quando estão mobilizados em campanha? Que<br />

eu bem sei que todas vocês têm o marido fora.<br />

Calonice<br />

Isso é verdade. O meu homem, coitado, há cinco meses que está ausente, lá para a Trácia, de<br />

sentinela ao Comandante.<br />

Mírrina<br />

E o meu, já lá vão sete meses completos, em Pilos.<br />

Lâmpito<br />

O meu, mal está de volta do regimento, lá deita outra vez mão ao escudo e põe-che a andar.<br />

Lisístrata<br />

E nem mesmo amantes nos sobra um para amostra. Que desde o princípio da guerra nem sequer<br />

uma coçadeira de coiro de dois palmos de comprido eu vi, que nos desse ao menos um triste<br />

consolo. Será que vocês estariam dispostas, a juntarem-se a mim para acabar com a guerra?<br />

Calonice<br />

Bolas, eu estava! Nem que tivesse de pôr no prego a fralda da camisa e enfiar o dinheiro pela goela<br />

abaixo, no próprio dia.<br />

Mírrina<br />

Eu também! Nem que tivesse de me partir ao meio que nem uma solha, e de prescindir de metade da<br />

minha pessoa.<br />

Lâmpito<br />

Ai eu, até ao chimo do Taígeto eu chubia, che de lá concheguisse enxergar a paz!<br />

Lisístrata<br />

Pois minhas senhoras, o que temos a fazer, se quisermos obrigar os nossos maridos a negociarem a<br />

paz, é abstermo-nos...<br />

Calonice<br />

De quê? Diz lá.<br />

Lisístrata<br />

E vocês, fazem?<br />

Calonice<br />

Claro que fazemos, nem que seja preciso morrer.<br />

As outras manifestam também uma adesão entusiástica.<br />

Lisístrata<br />

Bem, então, temos de nos abster...do coiso. (Ao vê-las desanimadas, a afastarem-se.) Mas porque é<br />

que vocês desandam? Onde é que vão? Ei vocês, porque é que ficam de beiça e abanam a cabeça?<br />

Porque empalideceram? Que lágrimas são essas? Fazem greve ou não fazem?<br />

Calonice<br />

Eu não faço. A guerra que continue!<br />

9


Mírrina<br />

E eu também não. A guerra que continue!<br />

Lisístrata<br />

Que conversa é essa, ó Dona Solha? Ainda agora mesmo dizias que te deixavas esquartejar ao meio<br />

e que prescindias de metade da tua pessoa!<br />

Calonice<br />

Outra coisa está bem, o que quiseres. Se preciso for caminhar sobre brasas, eu caminho. É melhor<br />

isso...que o coiso. Que ele, minha querida Lisístrata, não há nada que o valha!<br />

Lisístrata<br />

(À mulher de Corinto) E tu?<br />

Mulher de Corinto<br />

Eu também prefiro caminhar sobre brasas.<br />

Lisístrata<br />

Isto é que é um putedo franciscano, este nosso sexo! Não há uma que escape!! (A Lâmpito.) A<br />

verdade, minha querida Lacónia, é que, mesmo que fosses tu a única a ficar do meu lado, ainda tudo<br />

poderia salvar-se. Portanto, vota comigo.<br />

Lâmpito<br />

É difichil para as mulheres — pelos dois deujes! — irem pra cama sojinhas, sem a picha. Mas enfim,<br />

seja! A paz está em primeiro lugar.<br />

Lisístrata<br />

Ah meu amor, és a única mulher a sério de todas que aqui estão.<br />

Calonice<br />

Mas imagina que, na medida do possível, nos abstínhamos daquilo que tu disseste — que Deus nos<br />

livre e guarde! Seria por aí que se conseguia fazer a paz?<br />

Outra mulher, uma criada, aparece à porta .Ouve.<br />

Lisístrata<br />

Claro, olha que dúvida! Porque se ficássemos em casa, todas aperaltadas, nuas em pêlo por baixo<br />

das nossas camisinhas transparentes, de triângulo depilado, e quando os nossos maridos viessem<br />

de mastro içado, em pulgas por nos darem um atracão, nós nos recusássemos e não lhes déssemos<br />

entrada, aí era vê-los a fazer as tréguas a toda a pressa. Não tenho a menor dúvida.<br />

Lâmpito<br />

Icho foi como o Menelau: quando fisgou os marmelos da Helena ao natural, acho eu que até largou a<br />

espada da mão.<br />

Calonice<br />

Mas olha lá, meu amor! E se os nossos maridos nos mandam à fava?<br />

Lisístrata<br />

Aí já estou como o outro… (Faz um gesto sugestivo.)<br />

Calonice<br />

E se eles nos agarrarem e nos arrastarem à força para o quarto?<br />

Lisístrata<br />

Segura-te às portas.<br />

Calonice<br />

E se nos cascarem?<br />

10


Lisístrata<br />

Aí temos de nos prestar à coisa, mas de má vontade. Porque coisas dessas, quando se fazem à<br />

força, não dão gozo. O que é preciso é fazer-lhes a vida num inferno. E não te preocupes, que bem<br />

depressa eles se vão fartar. Porque a felicidade para um homem não existe, se não estiver de bem<br />

com a mulher.<br />

Calonice<br />

(Para Lisístrata e Lâmpito.) Bem, se vocês as duas são a favor, nós também estamos de acordo. (As<br />

restantes fazem sinal de assentimento.)<br />

Lisístrata<br />

Ouve lá, Lâmpito. Porque é que não nos havemos de ligar, desde já, por um juramento formal, para o<br />

nosso compromisso se tornar inviolável?<br />

Calonice<br />

Lisístrata, a que juramento nos vais tu obrigar?<br />

Lisístrata<br />

(De repente inspirada.) Põe aí uma taça negra, que seja grande, virada para cima. Degola-se um<br />

odre de vinho de Tasos e jura-se que, na taça, nunca se há-de deitar água.<br />

A criada que estava a ouvir entra em casa para ir buscar a taça.<br />

Lâmpito<br />

Porrêro! Nem há palavras para te felichitar por eche juramento!<br />

Lisístrata<br />

Que alguém traga lá de dentro uma taça e um odre.<br />

A criada volta logo com a taça e o odre.<br />

Mírrina<br />

(Eufórica.) Queridas amigas! Que taçona de truz!<br />

Calonice<br />

(Que pega na taça com as duas mãos.) Uma taça assim, só de pegar nela já é um gozo!<br />

Lisístrata<br />

(A Calonice que obedece.) Pousa a taça (Em tom solene.) Persuasão soberana, e tu, Taça da<br />

Amizade, aceita este sacrifício e sê favorável às mulheres. (Deitam o vinho do odre na taça.)<br />

Calonice<br />

Que rica cor tem este sangue! E se escorre bem!<br />

Lâmpito<br />

E que rico cheirinho, deus me valha!<br />

Mírrina<br />

(A empurrar as companheiras.) Deixem-me ser a primeira a jurar, amigas.<br />

Calonice<br />

Nem penses, caramba! Só se ficares em primeiro lugar no sorteio.<br />

Lisístrata<br />

Lâmpito, estendam todas a mão sobre a taça. (Todas obedecem.) E que uma só, em nome de todas<br />

vós, repita o que eu vou dizer, palavra por palavra. (Calonice avança.) As outras assumem o<br />

compromisso depois. (Todas aprovam em silêncio.) Nenhum homem no mundo, nem amante, nem<br />

marido...<br />

11


Calonice<br />

Nenhum homem no mundo, nem amante, nem marido...<br />

Lisístrata<br />

... se há-de abeirar de mim, de mastro içado. (A Calonice que hesita.) Repete lá.<br />

Calonice<br />

... se há-de abeirar de mim, de mastro içado. Ai, ai! Até os joelhos me fraquejam, Lisístrata.<br />

Lisístrata<br />

(Implacável.) Vou passar a vida em casa, sem homem...<br />

Calonice<br />

Vou passar a vida em casa, sem homem...<br />

Lisístrata<br />

... toda nos trinques e bem maquilhada...<br />

Calonice<br />

... toda nos trinques e bem maquilhada…<br />

Lisístrata<br />

... para o meu marido morrer de amores por mim.<br />

Calonice<br />

... para o meu marido morrer de amores por mim.<br />

Lisístrata<br />

Mas nunca, de bom grado, me hei-de entregar ao meu marido.<br />

Calonice<br />

Mas nunca, de bom grado, me hei-de entregar ao meu marido.<br />

Lisístrata<br />

E se, mesmo contra vontade, ele me forçar...<br />

Calonice<br />

E se, mesmo contra vontade, ele me forçar...<br />

Lisístrata<br />

... não colaboro, nem salto com ele.<br />

Calonice<br />

... não colaboro, nem salto com ele.<br />

Lisístrata<br />

Nem me ponho de... solas para o ar.<br />

Calonice<br />

Nem me ponho de solas para o ar.<br />

Lisístrata<br />

Nem me vou agachar que nem leoa.<br />

Calonice<br />

Nem me vou agachar que nem leoa.<br />

Lisístrata<br />

Se me mantiver fiel à palavra dada, que beba desta pinga!<br />

12


Calonice<br />

Se me mantiver fiel à palavra dada, que beba desta pinga!<br />

Lisístrata<br />

Se a infringir, que esta taça se encha de água!<br />

Calonice<br />

Se a infringir, que esta taça se encha de água!<br />

Lisístrata<br />

(A todas as outras mulheres.) E vocês todas, assumem também este juramento?<br />

Todas<br />

(Pouco entusiasmadas.) Assumimos.<br />

Lisístrata<br />

(Levando a taça à boca.) Então vou fazer a consagração desta taça.<br />

Calonice<br />

(Que reage com urgência.) Só a tua parte, minha cara.<br />

Quando Lisístrata bebe e se prepara para passar a taça, ouve-se ao longe uma banda que toca uma<br />

marcha militar.<br />

Lâmpito<br />

Que gritaria vem a cher esta?<br />

Lisístrata<br />

As mulheres estão a ocupar a cidadela da deusa. Ei, Lâmpito, põe-te a mexer e trata de arranjar as<br />

coisas pela vossa parte.<br />

Lâmpito sai aos pulos. A criada leva para dentro a taça e desaparece.<br />

Mírrina<br />

Não te parece que, não tarda nada, os homens vão acudir à situação, em pé de guerra contra nós?<br />

Lisístrata<br />

Estou-me nas tintas para eles.<br />

Saem as mulheres. Ficam a da Beócia e a Coríntia que olham cobiçosas para o Velho e o Mercador.<br />

Velho 1<br />

(Para o Mercador.) Quantas surpresas uma vida longa nos não reserva, meu Deus! A quem poderia<br />

passar pela cabeça ouvir dizer que as mulheres, que nós sustentamos em nossas casas — um<br />

flagelo tremendo! —, haviam de deitar mão à estátua sagrada, de se apoderar da minha Acrópole, e<br />

de, com ferrolhos e trancas, fechar os Propileus?<br />

Sai o Velho 1 para dentro de casa e o Mercador, distraído com as mulheres, fica sem alhos nem sal e<br />

vai-se de novo para a plateia. Lisístrata volta de capacete, escudo e espada (parece Palas Atena).<br />

Patrulha. Cleonice e Mírrina espreitam-na meio escondidas. A da Beócia e a de Corinto escondemse.<br />

4.<br />

Acode Lisístrata com espada, lança e capacete ao som da música.<br />

Lisístrata<br />

Fiquem a saber, pelas duas deusas, que também nós contamos com quatro batalhões de mulheres<br />

aguerridas e armadas até aos dentes. Mulheres, companheiras de armas, acorram aí de dentro,<br />

vendedeiras de legumes-puré-e-hortaliças, de alhos-e-pão, estalajadeiras! Em frente! Arrepelem,<br />

13


atam, esmurrem, insultem! Não façam cerimónia!<br />

Ei, ei, mulheres! Cheguem aqui ao pé de mim! Depressa!<br />

As outras mulheres acorrem.<br />

Calonice<br />

Que é? Diz lá, que gritaria é essa?<br />

Lisístrata<br />

(A apontar para longe.) Um homem, estou a ver um homem que acolá vem, de cabeça perdida,<br />

apanhado pelos golpes de Afrodite.<br />

Calonice<br />

Onde está ele, seja quem for?<br />

Aparece um soldado Cinésias de pau feito, acompanhado de um escravo com uma criança ao colo. A<br />

banda calou-se.<br />

Lisístrata<br />

Ora olhem lá! Alguma de vocês o conhece?<br />

Mírrina<br />

Sim, claro, conheço eu. É o meu marido, o Cinésias.<br />

Lisístrata<br />

Pois então cabe-te a ti pô-lo em brasas, fazê-lo rabiar, fintá-lo, fazer e não fazer amor com ele, darlhe<br />

tudo o que ele quiser menos... o que a taça bem sabe.<br />

Mírrina<br />

Fica descansada que eu trato do assunto.<br />

Lisístrata<br />

Pois bem, eu estou por aqui e ajudo-te a fintá-lo, a cozê-lo em lume brando. Vocês, ponham-se a<br />

andar.<br />

As mulheres, à excepção de Lisístrata, retiram-se, contrariadas, claro. Lisístrata faz a ronda. Mírrina<br />

finge estar distraída.<br />

Cinésias<br />

(Com os seus botões.) Ai que desgraça a minha, que espasmos, que convulsões eu sinto! É como se<br />

me estivessem a torturar na roda.<br />

Lisístrata<br />

(Para Mírrina mas para Cinésias ouvir.) Quem é aquele sujeito aí perfilado, já dentro da zona de<br />

segurança?<br />

Cinésias<br />

Sou eu.<br />

Lisístrata<br />

(Avança para Cinésias.) Um homem?<br />

Cinésias<br />

(A apontar para o falo.) Sim, um homem.<br />

Lisístrata<br />

Ora fazes o favor de te pôr a andar daqui para fora!<br />

Cinésias<br />

E tu quem és, para me despachares desta maneira?<br />

14


Lisístrata<br />

A sentinela de dia.<br />

Cinésias<br />

Por amor de Deus, vai-me chamar a Mírrina.<br />

Lisístrata<br />

Essa é boa, vou-te chamar a Mírrina! Mas quem és tu?<br />

Cinésias<br />

O marido dela, Cinésias da Penis... ónia.<br />

Lisístrata<br />

(Com efusão.) Ora viva, meu caro amigo! Tens um nome bem badalado e famoso entre nós. A tua<br />

mulher anda sempre com ele na boca. Se pega num ovo ou numa maçã, diz logo: 'Pelo meu<br />

Cinésias!‘<br />

Cinésias<br />

Ai, valha-me Deus!<br />

Lisístrata<br />

É assim mesmo, podes crer. Se a conversa cai nos maridos, a tua mulher sai-se logo a dizer: ‗Tudo o<br />

mais é léria, em comparação com o meu Cinésias‘.<br />

Cinésias<br />

Anda, vai lá chamá-la.<br />

Lisístrata<br />

(Depois de uma pausa.) E que é que tu me dás?<br />

Cinésias<br />

(A apontar para o falo.) Eu? Dou-te isto, olha, se tu quiseres. É o que eu tenho, e quem dá o que tem<br />

a mais não é obrigado.<br />

Lisístrata<br />

Está bem, eu vou chamá-la.<br />

Lisístrata sai.<br />

Cinésias<br />

Vê se te despachas. Porque não encontro na vida encanto algum, desde que a minha mulher saiu de<br />

casa. Até lá entrar me dá engulhos. Tudo me parece vazio. Mesmo a comida que como perdeu o<br />

sabor. Porque estou com um tesão danado.<br />

Entra Lisístrata a puxar por Mírrina.<br />

Mírrina<br />

Eu adoro-o. É o amor da minha vida. Mas ele não corresponde ao amor que lhe tenho. Não me<br />

peças para ir ter com ele.<br />

Cinésias<br />

(A chamá-la.) Mirrininha, minha doçura. Porque ficas assim? Anda, vem cá.<br />

Mírrina<br />

Não vou aí, não vou, não vou.<br />

Cinésias<br />

Não vens? Quando sou eu que te chamo, Mírrina?<br />

15


Mírrina<br />

Chamas-me mas não queres saber de mim para nada.<br />

Cinésias<br />

Não quero saber de ti para nada? Diz antes que estou a morrer por ti.<br />

Mírrina<br />

Vou-me embora. (Finge que se vai.)<br />

Cinésias<br />

Não vás. Ao menos dá ouvidos ao teu filho. (Pega na criança dos braços do escravo.) E tu,<br />

pequenino, não chamas a mamã?<br />

Bebé<br />

(De braços estendidos.) Mamã! Mamã! Mamã!<br />

Mírrina fica impávida.<br />

Cinésias<br />

Ei! Que se passa contigo? Não tens pena da criança, que há seis dias que não toma banho nem<br />

mama?<br />

Mírrina<br />

Claro que dela tenho pena. Mas o pai desmazelado que ela tem!<br />

Cinésias<br />

Vem cá, meu amor, ver o teu filho. (Ao escravo.) Aos meus olhos ela parece que rejuvenesceu um<br />

bom par de anos. E que meiguice no olhar! É aquele mau humor e o desprezo que ela me tem que<br />

me consomem de paixão.<br />

Mírrina<br />

É o que faz ser mãe! Que se há-de fazer? (Dirige-se à criança, que põe ao colo e acarinha,<br />

desconhecendo a presença de Cinésias.) Meu querido filhinho, de um pai que é uma peste. Deixame<br />

dar-te um beijinho, bombonzinho da mamã. (Beija a criança.)<br />

Cinésias<br />

Ah sua mazona, pregares-me uma partida destas, feita Maria vai com as outras ! Fazes- me sofrer e<br />

afliges-te a ti também. (Tenta acariciá-la.)<br />

Mírrina<br />

(Que lhe recusa as carícias.) Chega para lá essas manápulas.<br />

Cinésias<br />

E as nossas coisas lá em casa, minhas e tuas, deixas tudo ao Deus dará.<br />

Mírrina<br />

Quero lá saber.<br />

Cinésias<br />

Nem queres saber do teu tricot que anda de rastos nas patas das galinhas?<br />

Mírrina<br />

Não, pouco me importa.<br />

Cinésias<br />

E os ritos de Afrodite que não tens praticado há tanto tempo! Não queres voltar para casa?<br />

Mírrina<br />

Eu não. A não ser que vocês queiram fazer tréguas e ponham fim à guerra.<br />

16


Cinésias<br />

Pois bem, se for o caso, havemos de tratar disso.<br />

Mírrina<br />

Pois bem, se for o caso, também eu para lá hei-de voltar. Mas por enquanto jurei que não voltava.<br />

Cinésias<br />

Mas então, ao menos vem para a cama comigo, depois de tanto tempo.<br />

Mírrina<br />

Ai isso é que eu não vou! Ainda que não possa dizer que não gosto de ti.<br />

Cinésias<br />

Gostas de mim? Então porque não vens para a cama, Mirrininha?<br />

Mírrina<br />

Essa tem graça. Diante do cachopo?<br />

Cinésias<br />

Diante do cachopo não, claro. (Tira-lhe a criança e dá-a ao escravo, para que a leve para casa.)<br />

Manes, leva-o para casa. (O escravo sai. A Mírrina.) Pronto, com a criança já não há problema.<br />

Vamos então para a cama?<br />

Mírrina<br />

Mas eu fiz uma jura. E agora vou faltar à minha palavra, valha-me Deus?<br />

Cinésias<br />

Deixa a culpa por minha conta. Não te preocupes com juramentos.<br />

Mírrina<br />

Está bem. Vou arranjar uma cama para nós.<br />

O escravo aparece à porta sem criança. Ouve-se a criança chorar.<br />

Cinésias<br />

Não é preciso. O chão serve muito bem.<br />

Mírrina<br />

Ai não, isso não… (Esboço de saída. Volta para trás.) Pronto. Vamos, deita-te lá, enquanto eu me<br />

dispo. (Cinésias apressa-se a deitar-se no chão, enquanto Mírrina se vai despindo. Mas de<br />

repente...) Ora bolas, mesmo uma peste como tu és, não te deixo deitar no chão. O colchão! Tenho<br />

de ir buscar um.<br />

Cinésias<br />

Um colchão para quê? Por mim não é preciso. Dá cá um beijinho.<br />

Mírrina<br />

(Acedendo.) Toma lá. (Mas desaparece por uma das portas.)<br />

Cinésias<br />

Ai, ai! Volta depressa.<br />

A um janela aparece uma das filhas do mercador.<br />

Mírrina<br />

(Que regressa com o colchão.) Cá está o colchão. Deita-te, que eu já me dispo. (Cinésias deita-se<br />

outra vez e Mírrina continua a despir-se. Mas logo...) Ora bolas, não tens travesseiro.<br />

Cinésias<br />

Mas eu não preciso.<br />

17


Mírrina<br />

Mas preciso eu! (Volta lá para dentro.)<br />

Cinésias<br />

Tratas aqui do meu coiso que nem que fosse um Hércules!<br />

À janela aparece outra das filhas do Mercador.<br />

Mírrina<br />

(De volta com o travesseiro.) Levanta-te lá, vamos. (Cinésias ergue-se e ela acomoda-lhe o<br />

travesseiro.) Não me falta mais nada?<br />

Cinésias<br />

Claro que não te falta mais nada. Vamos, minha jóia, deita-te aqui.<br />

Mírrina<br />

Estou a tirar o soutien. Não te esqueças, não me vás roer a corda na questão das tréguas.<br />

Cinésias<br />

Caramba, diabos me levem se me esqueço!<br />

Mírrina<br />

(De repente.) Não tens lençol.<br />

Cinésias<br />

Mas não preciso. O que eu quero é fazer amor.<br />

Mírrina<br />

Não te preocupes que já fazes. Eu volto logo. (Vai lá dentro outra vez.)<br />

Cinésias<br />

Esta criatura dá cabo de mim com a história da roupa de cama.<br />

Aparece à janela o Velho 1.<br />

Mírrina<br />

(De regresso com um lençol.) Levanta-te lá.<br />

Cinésias<br />

(De pé, para que Mírrina estenda o lençol.) Olha para aqui. (Aponta para o falo.) Este já está bem<br />

levantado.<br />

Mírrina<br />

Queres que eu te ponha perfume?<br />

Cinésias<br />

Eu?! Deus me livre, não quero.<br />

Mírrina<br />

Mas eu vou-te perfumar, olaré, quer queiras quer não. (Volta lá para dentro.)<br />

Cinésias<br />

Valha-me Deus! Oxalá que o raio do perfume se entornasse todo!<br />

O Velho 1 sai da janela.<br />

Mírrina<br />

(De volta com um frasco de perfume.) Toma lá este tubo.<br />

18


Cinésias<br />

(A apontar para o falo.)<br />

Não preciso, já tenho este. Anda, deita-te lá, malandra. Não me tragas mais nada.<br />

Mírrina<br />

É o que vou fazer, pronto. Estou só a tirar os sapatos. Mas vê lá, meu querido, se vais votar pelas<br />

tréguas.<br />

Cinésias<br />

Vou pensar nisso. (Tenta abraçar Mírrina, mas entretanto ela escapa-se-lhe lá para dentro. De um<br />

salto ele levanta-se. Diz a Lisístrata que esteve a olhar a cena.) Acabou comigo, a fulana, deu cabo<br />

de mim. (Diz ao público.) Além do mais, depois de me esfolar a pele, pôs-se a mexer. (Em tom<br />

trágico.) Que é que hei-de fazer, pobre de mim? Quem hei-de foder, se a mais bela de todas me<br />

fintou? (O escravo volta para casa. Ao falo.) Como é que eu vou tratar deste menino? Contratem-me<br />

uma ama para ele.<br />

Aparece o Velho 1.<br />

Velho 1<br />

Terrível sofrimento o teu, infeliz! Que rins poderiam resistir, que coração, que tomates, que costados,<br />

que pendureza, se manteriam assim tesos, sem uma boa fodidela matinal?<br />

Aparecem a mulher Coríntia e a da Beócia a espreitar.<br />

Cinésias<br />

(Quase exangue.) Ó Zeus, que espasmos terríveis!<br />

Velho 1<br />

Essa maldita dessa mulher!<br />

A Mulher Coríntia<br />

Esse anjo de mulher, essa doçura!<br />

Lisístrata leva-a para fora. Desaparecem as duas. As filhas do mercador saem da janela.<br />

Cinésias<br />

Ai, Zeus, Zeus! Oxalá que tu, como um feixe de palha, com um grande vendaval e um tornado, a<br />

erguesses no ar, a fizesses girar, rodopiar, que ela caísse do céu aos trambolhões, e, de repente, se<br />

me enfiasse no espeto!<br />

Entra um arauto espartano, com um chumaço bem saliente por debaixo da túnica.<br />

Arauto<br />

(A Cinésias.) Onde fica o Chenado de Atenas? Trago notíchias pra eles.<br />

Cinésias<br />

(Que lhe regista a erecção, recuando.) O que és tu? Uma criatura humana ou um demónio?<br />

Arauto<br />

Chou um arauto, meu rapaz, pelos dois deujes. Venho de Esparta pra fajer uma reconchiliachão.<br />

Cinésias<br />

(A apontar-lhe para a túnica.) Foi então por isso que cá vieste de espada em riste, por baixo da<br />

túnica?<br />

Arauto<br />

(A procurar esconder a saliência.) Não, não, não trago nada, não.<br />

Cinésias<br />

Estás-te a virar para onde?<br />

19


Arauto<br />

(Que começa a ficar irritado.) O gajo é maluco, por Castor.<br />

Cinésias<br />

Ah grande estupor! Tu estás mas é com um tesão dos diabos!<br />

Arauto<br />

Não estou nada, não chenhor! Não digas disparates.<br />

Cinésias<br />

Então o que é isso que tens aí?<br />

Arauto<br />

É uma moca de Esparta.<br />

Cinésias<br />

(A apontar para o próprio falo.) Está bem, está. Só se isto aqui também for uma moca de Esparta. Diz<br />

a verdade. Como é que estão as coisas entre vós.<br />

Arauto<br />

Esparta inteira alevantou-che em pejo e os nochos aliados, todinhos, pujeram-che em pé de guerra.<br />

Chó nos falta a bachi…na.<br />

Cinésias<br />

Como é que essa doença vos caiu em cima?<br />

Arauto<br />

Foi a Lâmpito, acho eu, que comechou.<br />

Cinésias<br />

E como é que vocês se aguentam?<br />

Arauto<br />

Em chima de brasas. Andamos pela chidade dobrados pra frente, como che leváchemos uma vela<br />

acheja. Que as sujeitas nem nos deixam pôr-lhes a mão na fruta, antes de nós todos, num acordo<br />

geral, fajermos a paz com a Gréchia inteira.<br />

Cinésias<br />

Isto é uma conspiração armada pelas mulheres, em toda a parte. Corre a dizer à tua gente que<br />

mande cá delegados com plenos poderes, para negociarem uma trégua. Que eu, cá por mim, vou ao<br />

conselho, exponho... aqui o meu coiso, e digo-lhes que arranjem outros delegados que nos<br />

representem.<br />

Arauto<br />

Vou num chalto. Que a rajão está toda do teu lado. (Sai apressado.)<br />

Velho 1<br />

Não há fera mais perigosa do que a mulher, nem braseiro, nem pantera com um tal desplante.<br />

Entra em casa. E Mirrina sai da sua porta, já vestida, para se juntar às grevistas. Entra por outro lado<br />

uma banda de música a tocar uma marcha festiva e muitos soldados com enchadas, pás e cordas, e<br />

também de pau feito que vêm desenterrar a paz.<br />

5.<br />

Um oficial (Trigeu) conduz o grupo.<br />

Trigeu<br />

(Para a cidade.) Este é o momento, Helenos, safos como estamos de questões e de lutas, de<br />

20


libertarmos essa Paz tão querida de todos. (Para a cidade.) Vamos, lavradores, comerciantes,<br />

artesãos, operários, emigrantes, estrangeiros, ilhéus! Venham cá, todos, o povo inteiro, depressa!<br />

Tragam pás, alavancas e cabos! É altura de erguermos a taça à nossa boa estrela.<br />

Lisístrata e a Coríntia espreitam.<br />

Coro de Homens (Para a cidade.)<br />

Bruno - Para aqui, todos, venham cá.<br />

Dinarte - Ânimo!<br />

Dinis - Direitos à salvação.<br />

Nuno - Gregos, unidos libertemo-la, agora ou nunca.<br />

Dinarte - (Em aparte para o público.) Uma coisa é certa: não estou disposto a arrancar hoje daqui<br />

sem tirar cá para fora, para a luz do dia, essa deusa, a primeira entre todas, a grande protectora das<br />

nossas vinhas.<br />

Cinésias<br />

(Para o público.) É só eu apanhá-la nos meus braços. Olaré! (E junta-se ao grupo de soldados.<br />

Começa a cavar sozinho arrancando a pá a um dos outros.)<br />

Trigeu<br />

Ah, senhores! Ou vocês acabam com essa balbúrdia, ou é agora que me mandam desta para<br />

melhor. Às tantas, a Guerra desponta por aí e vira tudo de pernas para o ar, à biqueirada.<br />

Os homens começam a arregaçar as mangas.<br />

Coro de Homens<br />

Dinarte - (Que não faz nenhum.) Pois pode revolver, arrasar, revirar tudo que quiser. Não é hoje que<br />

consegue pôr fim à nossa alegria.<br />

Os homens do Coro de Homens começam a dançar levados pelo estado em que estão.<br />

Trigeu<br />

(Ao Coro.) Mas que bicho vos mordeu? Que loucura é essa que vos passou pela cabeça, meus<br />

senhores? Ah, não! — por quem sois — não deitem a perder uma luta tão nobre, com a vossa<br />

bailação.<br />

Coro de Homens<br />

Bruno - Não é por minha vontade. Com o entusiasmo, mesmo sem me mexer, as pernas puxam-me<br />

para a dança.<br />

Trigeu<br />

Mais não! Já chega! Pára! Basta de dança!<br />

Coro de Homens<br />

Nuno e Dinis - Pronto!<br />

Bruno - Já parei, vês?<br />

Trigeu<br />

Isso é o que tu dizes, mas não paraste coisa nenhuma.<br />

Coro de Homens<br />

Bruno - Só mais um! Deixa-me dar só mais este passinho e pronto!<br />

Trigeu<br />

Vá lá, só mais esse! Mas depois acabou a dança, nem mais nada.<br />

Coro de Homens<br />

Nuno - Não dançamos, pronto... se tens assim tanto empenho.<br />

Trigeu<br />

21


Mas afinal como é? Ainda não acabaram com isso?!<br />

Coro de Homens<br />

Bruno - Só mais este, caramba!<br />

Dinarte - Mais um passinho à direita e acabou.<br />

Trigeu<br />

Por mim, façam o que quiserem... desde que não me chateiem mais.<br />

Coro de Homens<br />

Bruno - E outro à esquerda. É superior às minhas forças!! (Em aparte para o público.) Estou eufórico,<br />

alvoroçado, e dou traques, e rio, por me ter visto livre de espadas e escudos.<br />

Trigeu<br />

(Enervado.) Por agora, acabou-se a alegria! (A banda pára de tocar.) Ainda não há nada seguro.<br />

Quando a tivermos na mão, então sim, alegrem-se, gritem, riam à vontade. Nessa altura, já vocês<br />

podem meter-se ao mar, ficar em terra, fazer amor, ferrar no sono, andar por festas, ir a banquetes,<br />

viver à sibarita, dar gritos de hurra.<br />

Coro de Homens<br />

Bruno - Ainda me hás-de ver manso como um cordeiro e remoçado. É só apanhar-me livre desta<br />

balbúrdia!<br />

Dinarte - Já chega de nos matarmos uns aos outros, e de nos esfalfarmos em correrias.<br />

Trigeu<br />

Ao trabalho, meus senhores! Vamos, depressa! Pá em punho, e toca a retirar essas pedras.<br />

Os soldados começam finalmente a desenterrar a Paz. Juntam-se a Cinésias. Entra Hermes vindo da<br />

plateia. Parece uma estátua como a de Eros em Picadilly Square.<br />

Hermes<br />

(Para o público.) Rezemos para que este dia seja, para todos os Gregos, o princípio de uma longa<br />

felicidade. E que todo aquele que, com alma e coração, empunhar estes cabos, não volte nunca mais<br />

a empunhar o escudo.<br />

Trigeu<br />

Sim, caramba! E que possa viver a sua vida em paz, com a amante a seu lado, a atiçar-lhe... as<br />

brasas.<br />

Hermes<br />

E, pelo contrário, todo aquele que preferir a guerra — ah, Dionísio, meu senhor! — que não pare<br />

nunca...<br />

Trigeu<br />

... de arrancar, dos cotovelos, pontas de lança.<br />

Hermes<br />

E se um fabricante de lanças ou um vendedor de escudos, na mira de grandes negociatas, desejar a<br />

guerra...<br />

Trigeu<br />

... que caia na mão de meia dúzia de salteadores e, para mastigar, não tenha mais que uma côdea<br />

de pão negro.<br />

Hermes<br />

E que a nós tudo nos corra pelo melhor. Vivó! Hurra! Vivó!<br />

A banda começa a tocar um rufo à maneira do circo enquanto puxam pela estátua.<br />

Hermes<br />

22


Puxem todos! Arrastem-na com os cabos.<br />

Coro de Homens<br />

U-upa!<br />

Hermes<br />

U-upa! Vamos! Força!<br />

Coro de Homens<br />

U-upa!<br />

Hermes<br />

U-upa! Vamos! Força!<br />

Coro de Homens<br />

U-upa! U-upa!<br />

Trigeu<br />

Mas que é isto? Estes homens não puxam todos por igual. E se vocês acertassem o passo?!<br />

Hermes<br />

U-upa!<br />

Trigeu<br />

U-upa!<br />

Coro de Homens<br />

Dinarte - (Sempre a fingir que faz.) Vamos, toca a puxar!<br />

Nuno - (A Hermes e a Trigeu.) E vocês os dois também, vamos lá!<br />

Trigeu<br />

O que é que eu estou a fazer senão puxar, de corda na mão, com todas as minhas forças, a dar-lhe<br />

duro?<br />

Coro de Homens<br />

Nuno - Mas então porque é que o trabalho não avança? (Trigeu, contrariado, também vai puxar.)<br />

Hermes<br />

Assim não vamos lá, meus senhores! Todos à uma! Ao trabalho, outra vez!<br />

Coro de Homens<br />

U-upa!<br />

Hermes<br />

U-upa! Força!<br />

Coro de Homens<br />

U-upa!<br />

Hermes<br />

U-upa! Caramba!<br />

Coro de Homens<br />

Dinarte – (Para Hermes.) Já estamos a dar um jeitinho.<br />

Hermes<br />

U-upa!<br />

Trigeu<br />

U-upa!<br />

23


Coro de Homens<br />

Nuno - Cá entre nós sempre há cada ovelha ranhosa!<br />

Trigeu<br />

(Ao público.) Ao menos, vocês, os que torcem pela paz, toca a puxar! Coragem!<br />

Coro de Homens<br />

Força! Força! Todos!<br />

Hermes<br />

Já está quase!<br />

Coro de Homens<br />

Dinis - (Que desiste.) Nada de fraquezas! Mais força! Mais! Coragem!<br />

Hermes<br />

Isso mesmo! Vamos!<br />

Coro de Homens<br />

U-upa! U-upa! Todos! U-upa! U-upa! U-upa! U-upa! U-upa! Todos!<br />

Pára a banda quando a Paz, que sai lentamente do chão, aparece toda enxovalhada. A Banda<br />

começa a tocar nova música festiva. Saltam do chão a Deusa dos Frutos e a Folgança (bailarina em<br />

trajes levíssimos). A Paz imóvel. A Folgança dança. A Deusa dos Frutos tira cestas de uvas do<br />

buraco e distribui cachos de uvas.<br />

Trigeu<br />

(Para a Paz.) Ó deusa, protectora das vinhas, que posso dizer-te neste momento? Onde hei-de ir<br />

arranjar uma palavra de mil canadas para te saudar? (Recolhe o seu cacho de uvas.) Viva, Deusa<br />

dos Frutos! (Comendo uvas.) Viva, Folgança! Que palminho de cara, Folgança! Que bafo suave o teu<br />

para o meu coração! Ó doçura das doçuras!<br />

Trigeu persegue a Folgança dançando e disputando-a com o soldado Cinésias, que já ficou fixado<br />

nela.<br />

Coro de Homens (Todos às uvas. Menos Dinarte que se faz à Paz.)<br />

Bruno - Salve! Salve!<br />

Dinarte - Que alegria ter-te de volta, minha querida amiga!<br />

Nuno - Ando morto de saudades, uma vontade sobre-humana a puxar-me para os campos.<br />

Dinarte - (Tentando fazer um discurso) Eras para nós a maior das riquezas, saudosa amiga, para<br />

todos quantos trabalhávamos na terra. Eras o nosso único amparo. Para os camponeses eras o pão<br />

e a salvação. Por tudo isto, os vinhedos, as figueiras ainda tenras, a natureza inteira te hão-de<br />

receber em festa, com o seu melhor sorriso.<br />

A Paz sai finalmente do sítio, farta da conversa, acompanhada sempre por Dinarte, e vai-se. A banda<br />

vai atrás. O Coro dos Homens sai a dançar com a Folgança e a Deusa dos Frutos e segue-os<br />

Lisístrata, que já é Palas Atena. Fica um soldado em cena, a comer o seu cacho.<br />

Um Soldado do Coro de Homens<br />

Dinis - (Para o público.) Que alegria, que alegria ver-me livre do elmo, do queijo e das cebolas!<br />

Guerras não me cheiram! Mas dou o cavaquinho por ficar à lareira, a emborcar uns copos com os<br />

amigos; faço uma fogueira e toca a grelhar umas ervilhinhas, a assar uns bagos de faia, e a arrancar<br />

um beijo à Trata, enquanto a minha mulher está no banho.<br />

Nada há mais agradável do que, feitas as sementeiras, ver o deus a mandar chuvinha, e dizer a um<br />

vizinho: ‗Apetece-me uma boa pinga.‘ ‗Anda, mulher, assa-me aí três medidas de feijão e arranja-nos<br />

uns figos e quatro pedaços de lebre, se é que o gato, de noite, se não safou com eles.‘ ‗Dêem aí um<br />

berro ao Carínades para vir beber um copo connosco…‘ No tempo em que a cigarra entoa o seu<br />

doce canto, todo me delicio a passar em revista os meus vinhedos e a ver crescer os figos. Depois,<br />

quando ficam maduros, meto-lhes o dente com gozo, sempre a decantar: ‗Ah! Rica estação!‘ E é<br />

24


assim que eu me ponho um pipo na altura do verão!<br />

O Velho 1 aparece à porta. O soldado sai na direcção em que saiu a banda. Aparece um Homem<br />

(Crémilo) arrastando um cego que não quer ir. O Velho 1 aproxima-se, espantado.<br />

6.<br />

Crémilo<br />

Eu, que sou um sujeito temente aos deuses e amigo da justiça, levava um raio de uma vida, afogada<br />

na miséria.<br />

Velho 1<br />

Eu sei.<br />

Crémilo<br />

Riqueza era para os outros, para essa gente da política — uns vigaristas — para delatores e para<br />

velhacos.<br />

Velho 1<br />

Tens razão.<br />

Crémilo<br />

Vai daí, fui consultar o deus e pôr-lhe um problema. Que a minha vida de pobre já tinha dado o que<br />

tinha a dar, sabia eu. Mas o meu filho, que por acaso é o único que tenho: devia mudar de sistema e<br />

virar um velhaco, um patife, e estar-se nas tintas para a virtude? Porque virtude, pensava eu, é só<br />

aquilo que permite tocar a vida para a frente.<br />

Velho 1<br />

«E o que é que proclamou Febo, lá do alto das grinaldas?»<br />

Crémilo<br />

Já vais saber. Disse-me o deus o seguinte, assim, preto no branco: que nem por nada deixasse<br />

escapar o primeiro que encontrasse, logo à saída do templo — foram as ordens que deu — e que o<br />

convencesse a acompanhar-me a casa.<br />

Velho 1<br />

E quem foi o primeiro que encontraste?<br />

Crémilo<br />

Este tipo aqui!<br />

Velho 1<br />

E não entendeste o que o deus queria dizer, meu grande pedaço de asno?! Pois está mesmo na<br />

cara: que educasses o teu filho como se usa cá na terra!<br />

Crémilo<br />

E como chegaste tu a semelhante conclusão?<br />

Velho 1<br />

Porque a coisa é tão clara que até um cego lá chega! No ponto em que as coisas andam, estar-se<br />

nas tintas para a virtude é o que está a dar.<br />

Crémilo<br />

Não é possível que seja aí que o oráculo quer chegar. A coisa é maior que isso. Se este indivíduo<br />

nos disser quem é, o que o trouxe cá e ao que veio, ficaremos a saber o que o oráculo para nós<br />

significa.<br />

Velho 1<br />

(Para o cego, ameaçador.) Olha lá! Dizes quem és, ou passo à etapa seguinte? Fala lá, bem e<br />

depressa.<br />

25


Pluto<br />

Vai para o raio que te parta, é o que te digo!<br />

Velho 1<br />

Estás a ver quem diz ele que é?<br />

Crémilo<br />

É contigo que ele está a falar, não é comigo. Foste tu que o interrogaste sem jeito, sem cortesia. (A<br />

Pluto.) Se é de um homem de palavra que te fias, diz-mo a mim.<br />

Pluto<br />

Vai-te lixar, é o que eu te digo!<br />

Velho 1<br />

(Para Crémilo.) Olha, mete-o em casa, — não te esqueças — a ele mais ao oráculo do deus.<br />

Crémilo<br />

(Para Pluto.) Não te vais ficar a rir, ai isso não! Se não falas…<br />

Velho 1<br />

… vais ver como elas te cantam!<br />

Pluto<br />

Meus caros, deixem-me em paz!<br />

Crémilo<br />

Nem te passe pela cabeça!<br />

Velho 1<br />

O melhor que há a fazer ainda é aquilo que eu digo: lixa-se este tipo e pronto! Levo-o para um<br />

precipício, deixo-lo lá e vou-me embora. E ele manda-se cá abaixo e dá cabo do cachaço.<br />

Crémilo<br />

OK. Pega nele e põe-te a andar!<br />

Pluto<br />

Não, não!<br />

Crémilo<br />

Então, falas ou não falas?<br />

Pluto<br />

É que se vocês souberem quem eu sou, vão-me dar cabo da paciência, tenho a certeza, e não me<br />

deixam partir.<br />

Crémilo<br />

Deixamos sim, palavra de honra, se é isso que tu queres.<br />

Pluto<br />

Para começar, tirem-me de cima as manápulas.<br />

Crémilo<br />

Pronto, está bem.<br />

Pluto<br />

Oiçam os dois, então, já que, pelos vistos, tenho de vos dizer o que pretendia calar. Eu sou Pluto – o<br />

Dinheiro.<br />

Velho 1<br />

26


Ah seu valente estupor! És o Dinheiro e calavas-te!<br />

Crémilo<br />

Tu, Pluto? Com esse aspecto miserável! Ó Febo Apolo, ó deuses, ó génios, ó Zeus, que dizes tu? Tu<br />

és… ele, de certeza?<br />

Pluto<br />

Sou.<br />

Crémilo<br />

Ele mesmo?<br />

Pluto<br />

Ele mesmíssimo!<br />

Crémilo<br />

(A apontar-lhe para os olhos cegos.) E essa doença, como a arranjaste? Vamos, fala.<br />

Pluto<br />

Foi Zeus que ma arranjou, danado com a Humanidade. Era eu ainda um rapaz, e fiz voto de ficar do<br />

lado dos justos, dos sábios e dos honestos. E vai ele faz-me cego, para que eu os não soubesse<br />

distinguir. Tal é o ódio que tem pela gente séria.<br />

Crémilo<br />

E isto quando é só pela gente séria e honesta que ele é honrado!<br />

Pluto<br />

Concordo contigo.<br />

Crémilo<br />

Se voltares a ver como dantes, manténs-te a milhas dos sacanas, daqui para a frente?<br />

Pluto<br />

Está prometido.<br />

Crémilo<br />

Pões-te do lado dos justos?<br />

Pluto<br />

Claro! Pois de há muito que os não vejo.<br />

Velho 1<br />

(Apontando os espectadores.) Olha que grande habilidade! Se nem eu que tenho olhos os vejo!<br />

Pluto<br />

Deixem-me agora ir embora, já que vos disse tudo o que havia para dizer.<br />

Crémilo<br />

Ah não vais não! Que agora é que te vamos filar com unhas e dentes!<br />

Pluto<br />

Eu não dizia que vocês me iam meter em sarilhos?<br />

Crémilo<br />

E tu, por favor, faz mas é o que te digo e não me abandones. Porque nem de vela acesa descobres<br />

um sujeito com melhor carácter do que eu.<br />

Pluto<br />

Isso é o que todos dizem. Mas quando se apanham comigo na mão e ficam ricos, tornam-se uns<br />

velhacos de bradar aos céus.<br />

27


Crémilo<br />

Tem calma, amigo, se alguma coisa brilhante, bela e agradável há nesta vida, é graças a ti que ela<br />

acontece. Está tudo sob a pata do dinheiro. Diz-se para aí que as putas de Corinto, quando um<br />

pobretana anda atrás delas, se fazem desentendidas. Sai-lhes um tipo com massa, e logo lhe dão o<br />

cu.<br />

Velho 1<br />

E a rapaziada não faz o mesmo? E não é por amor, não, é por dinheiro.<br />

Crémilo<br />

Foi graças a ti que a Humanidade descobriu tudo quanto são artes e manhas: é um sentado a<br />

remendar sapatos, outro que é ferreiro, outro carpinteiro, outro ourives, com o ouro que tu lhe dás …<br />

Velho 1<br />

Outro gatuno, caramba, outro arrombador…<br />

Crémilo<br />

… outro tintureiro...<br />

Velho 1<br />

… outro lavador de peles...<br />

Crémilo<br />

… outro curtidor…<br />

Velho 1<br />

… outro vendedor de cebolas…<br />

Crémilo<br />

Outro que é apanhado em adultério e, graças a ti, leva no pêlo.<br />

Pluto<br />

Deus me valha! E eu sem me dar conta de nada, durante anos e anos!<br />

Velho 1<br />

E o Xá da Pérsia, não é por causa desse gajo que arma aos cágados? E a Assembleia, não é por<br />

causa dele que reúne?<br />

Crémilo<br />

Não é por tua causa que seja o que for acontece? És tu, de tudo, o autor em exclusivo, do bem e do<br />

mal, fica a saber.<br />

Velho 1<br />

É como na guerra, vencem os que o têm do seu lado, esses e só esses.<br />

Pluto<br />

Eu, sozinho, sou capaz de tanta coisa?<br />

Crémilo<br />

É, e sabe-se lá mais de quê! De tal modo que nunca ninguém julga ter o quanto baste. De tudo o<br />

mais nos saciamos: de amor...<br />

Velho 1<br />

… de pão...<br />

Crémilo<br />

… de cultura…<br />

Velho 1<br />

28


… de guloseimas…<br />

Crémilo<br />

… de glória…<br />

Velho 1<br />

… de bolachas...<br />

Crémilo<br />

… de coragem...<br />

Velho 1<br />

… de figos secos...<br />

Crémilo<br />

… de ambição...<br />

Velho 1<br />

… de papas...<br />

Crémilo<br />

… de comandos militares...<br />

Velho 1<br />

… de sopa de lentilhas...<br />

Crémilo<br />

Só de ti ninguém se farta. Recebe um tipo treze talentos, e só lhe aumenta a vontade de receber<br />

dezasseis. Ganha dezasseis, quer quarenta ou diz que a vida não merece ser vivida.<br />

Pluto<br />

E a essa força que vocês dizem que eu tenho, como é que lhe deito a mão?<br />

Crémilo<br />

Vamos, Pluto, a mais poderosa de todas as divindades, vem cá para dentro comigo! Esta é a casa<br />

que, hoje mesmo, seja com justiça ou sem ela, tu tens de encher do que é bom.<br />

Pluto<br />

Hum, não sei… Se entro em casa de um sujeito que deita contas à vida, a pressa dele é enterrar-me<br />

debaixo da terra. Mas se, pelo contrário, entro em casa de um doido qualquer, dado a putas e ao<br />

jogo, em menos de nada põe-me à porta, e completamente depenado.<br />

Crémilo<br />

Vamos, entra, que te quero apresentar a minha mulher e o meu filho, o único que tenho, a menina<br />

dos meus olhos, depois de ti, naturalmente.<br />

Pluto<br />

Não duvido!<br />

Crémilo<br />

Para quê faltar à verdade? (Crémilo entra em casa com Pluto.)<br />

O Velho 1 entra para outra porta quando vê chegar Eurípides, apressado, com um parente barbudo.<br />

7.<br />

Parente<br />

(Que pára, extenuado da caminhada.) Ó Zeus, será que algum dia as andorinhas acabarão por<br />

chegar? Dá cabo de mim, este fulano, numa aflição desde manhãzinha. Posso saber, antes que deite<br />

os bofes pela boca, para onde me levas, Eurípides?<br />

29


Eurípides<br />

Não há necessidade de ouvires tudo aquilo que vais já ver com os teus próprios olhos.<br />

Parente<br />

Como dizes? Repete lá isso outra vez! Não preciso ouvir?<br />

Eurípides<br />

Não, aquilo que vais já ver.<br />

Parente<br />

Nem preciso de ver?<br />

Eurípides<br />

Não, aquilo que tens de ouvir. São aliás duas coisas distintas por natureza.<br />

Parente<br />

O quê? Nem ouvir, nem ver?<br />

Eurípides<br />

Podes ter a certeza!<br />

Parente<br />

Não descobrir eu, para além destas maravilhas, a maneira de aprender a ser coxo das duas pernas!<br />

Eurípides<br />

Chega-te cá e presta atenção!<br />

Parente<br />

Pronto!<br />

Eurípides<br />

(Que aponta para a casa de Ágaton.) Vês ali aquela portinha?<br />

Parente<br />

Sim, claro, pelo menos penso que sim.<br />

Eurípides<br />

Então está calado.<br />

Parente<br />

Pronto, guardo segredo sobre a portinha.<br />

Eurípides<br />

Ouve cá!<br />

Parente<br />

Sou todo ouvidos e guardo segredo sobre a portinha.<br />

Eurípides<br />

Acontece que é aqui que vive o célebre Ágaton, o poeta trágico.<br />

Parente<br />

Qual Ágaton? Há um Ágaton... Não será um moreno, fortalhaço?<br />

Eurípides<br />

Não, é outro.<br />

Parente<br />

Então nunca o vi. Ou então um fulano assim barbudo?<br />

30


Eurípides<br />

Nunca o viste?<br />

Parente<br />

Não, raios, nunca na vida, pelo menos que eu saiba.<br />

Eurípides<br />

(Que quer esconder-se com o Parente.) E olha que já o espetaste, embora talvez não saibas. Mas<br />

toca a agacharmo-nos longe daqui! (Escondem-se. Suspira.) Ai meu deus, o que é que tencionas<br />

fazer hoje de mim?<br />

Parente<br />

Caramba, eu quero saber que história é esta. Porque gemes? Porque te irritas? Não deves fazer<br />

caixinha comigo, já que és meu parente.<br />

Eurípides<br />

As mulheres andam a cozinhar uma grande trama contra mim. E hoje vão reunir-se para discutir o<br />

meu caso. Vai ser a minha morte!<br />

Parente<br />

Porquê?<br />

Parente<br />

Ora essa! É o que estás mesmo a pedir! E então, tens algum plano para escapar?<br />

Eurípides<br />

Convencer o Ágaton, o poeta trágico, a ir à reunião.<br />

Parente<br />

Fazer o quê? Diz-me lá!<br />

Eurípides<br />

Para tomar parte na discussão, no meio das mulheres, e, se for preciso, dizer uma palavra em meu<br />

favor.<br />

Parente<br />

Às claras ou disfarçado?<br />

Eurípides<br />

Disfarçado, vestido com roupa de mulher. (Ágaton aparece à porta.) Cala-te!<br />

Parente<br />

O que é?<br />

Eurípides<br />

O Ágaton vem a sair.<br />

Parente<br />

Mas onde é que ele está?<br />

Eurípides<br />

Onde é que ele está? É aquele que ali vem a rolar cá para fora.<br />

Parente<br />

Estou cego ou quê? Cá por mim não vejo aqui homem nenhum!<br />

Ágaton<br />

(Fazendo de Coro.) Empunhai, donzelas, a tocha consagrada às deusas infernais e, de coração<br />

liberto, executai a vossa dança ao som dos brados…<br />

31


Parente<br />

(Interrompe-o.) Que doçura de canto, a saber a mulher, lascivo como um beijo, sensual! Até já sinto<br />

cócegas nos fundilhos. (Parente mostra-se.) Donde vens tu, meu maricas? Qual é a tua terra? Onde<br />

me foste arranjar essa fatiota? Que trapalhada de vida é esta? Será que és mesmo homem? Então<br />

onde está o teu membro? E o teu manto? E os sapatos? Ou és mulher? Mas então onde tens as<br />

maminhas? O que dizes? Porque te calas? Será que vou ter de investigar, pelo teu canto, quem tu<br />

és, já que tu próprio não mo queres dizer.<br />

Ágaton<br />

O poeta tem de actuar de acordo com as peças que compõe: fazem-se peças com mulheres, é<br />

preciso que o corpo participe dessa natureza. Fazem-se peças com homens, tem-se no corpo essa<br />

característica. E aquilo que não se possui, consegue-se pela imitação.<br />

Parente<br />

Então quando fizeres sátiros, chama por mim, para eu te possuir, com o meu tesão.<br />

Eurípides<br />

(Aproximando-se também.) Ágaton, eu fui atingido por uma desgraça inaudita e por isso aqui venho<br />

ter contigo como suplicante.<br />

Ágaton<br />

O que é que tu queres?<br />

Eurípides<br />

As mulheres vão dar cabo de mim hoje, porque digo mal delas.<br />

Ágaton<br />

E nós, que podemos fazer por ti?<br />

Eurípides<br />

Tudo. Se te instalares no meio das mulheres, às escondidas, e disseres uma palavra em meu favor,<br />

de certeza que me salvas. És o único capaz de dizer qualquer coisa digna de mim. Tens um<br />

palminho de cara, és pálido, bem barbeado, com voz de falsete, franzino, uma estampa.<br />

Ágaton<br />

Eurípides...<br />

Eurípides<br />

O que é?<br />

Ágaton<br />

A má sorte não é com artifícios que se aguenta, é com paciência.<br />

Parente<br />

Portanto tu, meu invertido, se tens o rabo largo, não é das palavras, é da paciência.<br />

Eurípides<br />

Mas porque é que tens medo de lá ir?<br />

Ágaton<br />

Ainda havia de ter um fim pior do que tu.<br />

Eurípides<br />

Como assim? Ai, que desgraça a minha! Estou perdido!<br />

Parente<br />

Eurípides, meu caro amigo, meu parente, não te dês por vencido.<br />

Eurípides<br />

32


Então o que é que eu hei-de fazer?<br />

Parente<br />

Esse fulano aí, manda-o à fava! Aqui me tens. Faz de mim o que quiseres.<br />

Eurípides<br />

Bom, já que te pões à minha disposição, tira essa roupa.<br />

Parente<br />

(Despindo-se.) Já está no chão. Mas o que é que tu me vais fazer?<br />

Eurípides<br />

Fazer-te a barba aqui e queimar-te por baixo.<br />

Parente<br />

Tudo bem, se te parece. Ou eu não devia ter-me posto à tua disposição.<br />

Eurípides<br />

Ágaton, empresta-nos uma navalha. (Ágaton dá-lhe uma navalha que traz consigo ou que vai buscar<br />

a casa.) És muito amável. (Ao Parente.) Senta-te. (O Parente senta-se.) Sopra a bochecha direita.<br />

(Começa a fazer-lhe a barba.)<br />

Parente<br />

Ai, ai!<br />

Eurípides<br />

Porque é que estás a gritar? Enfio-te já um batoque, se não te calas.<br />

Parente<br />

Ai, ai! Ai, ai!<br />

Eurípides<br />

(Ao Parente que foge a correr.) Ei, tu aí! Para onde vais a correr?<br />

Parente<br />

Para o templo das deusas sagradas. Não vou ficar aqui à espera que me partam aos bocados.<br />

Eurípides<br />

Não te sentes ridículo assim, com metade da cara rapada?<br />

Parente<br />

Pouco me importa.<br />

Eurípides<br />

Não, por quem és, não me abandones. Anda cá.<br />

Parente<br />

(Voltando.) Que azar o meu!<br />

Eurípides<br />

(Recomeçando a fazer-lhe a barba.) Não te mexas, levanta a cabeça. Para onde te estás a virar?<br />

Parente<br />

Mu, mu!<br />

Eurípides<br />

Que mu é esse? Está pronto. Óptimo!<br />

Parente<br />

Isto é que é uma desgraça! Vou para o combate desarmado!<br />

33


Eurípides<br />

Levanta-te para eu te queimar. (Ágaton vai buscar uma vela acesa.) Põe-te para a frente.<br />

Parente<br />

(Vergando-se.) Pobre de mim! Vou ficar um leitãozinho.<br />

Eurípides<br />

(Ágaton já vem com uma vela acesa.) Põe-te para baixo. Cautela lá com a ponta do rabiosque!<br />

Parente<br />

Cautela? Cautela tenho eu! (Eurípides queima-lhe os pêlos.) Estás-me a queimar. Ai, ai! Água, água,<br />

vizinhos, antes que me arda o cu.<br />

Eurípides<br />

Coragem!<br />

Parente<br />

Qual coragem! Estou a assar.<br />

Eurípides<br />

Pronto, pronto, já passou. O pior está feito.<br />

Parente<br />

Puf! Que chamusco! Tenho o rabo todo a arder.<br />

Eurípides<br />

Não te preocupes. O Sátiro passa-te aí uma esponja.<br />

Parente<br />

Ainda se há-de arrepender, se me vem lavar o traseiro.<br />

Eurípides<br />

Ágaton, ao menos empresta-nos um manto e um corpete, para este tipo vestir. Não me vais dizer que<br />

não tens.<br />

Ágaton<br />

(Despe-se.) Peguem lá! Sirvam-se à vontade!<br />

Eurípides<br />

Ora deixa ver! Primeiro esta túnica cor-de-rosa... pega, veste-a.<br />

Parente<br />

(Vestindo a túnica.) Ah caramba, que rico cheirinho à...coisa! Aperta-ma! Vamos!<br />

Eurípides<br />

Toma!<br />

Parente<br />

Vá, arranja-me isso aí à volta da cabeça. Fica-me bem?<br />

Eurípides<br />

Bolas, uma maravilha! Faltam os sapatos.<br />

Ágaton<br />

(Tira os seus sapatos.) Aqui tens os meus, toma!<br />

Parente<br />

(Experimentando os sapatos.) Ficam-me bem? Estou a ver que não gostas deles largos.<br />

34


Ágaton<br />

Tu lá sabes!<br />

Eurípides<br />

Cá temos o nosso homem com ar de mulher. Vamos, põe-te a mexer.<br />

Parente<br />

Não, pá, se não me jurares...<br />

Eurípides<br />

O quê?<br />

Parente<br />

Que me salvas de qualquer maneira, se eu estiver em apuros…<br />

Eurípides<br />

Juro pelos deuses todos que há nos céus.<br />

Entra uma velha gaiteira com um prato de doces. Interrompe saída de Eurípides e Parente. Ágaton<br />

esconde-se atrás deles.<br />

8.<br />

Velha<br />

Meus velhos amigos, será que esta é mesmo a casa desse tal novo deus? Ou será que nos<br />

enganámos no caminho?<br />

Parente e Eurípides fogem. Ágaton fica atrapalhado e tenta tapar-se.<br />

Ágaton<br />

Não, não há engano nenhum, mocinha, é essa a porta mesmo! Olha para ti, armada em menina!<br />

(Ágaton fecha-se em casa.)<br />

Velha<br />

Ah, muito bem! Vou chamar alguém lá de dentro.<br />

Crémilo<br />

(Que aparece, abrindo a porta.) Não é preciso. Aqui me tens. Diz lá, tintim por tintim, ao que vieste.<br />

Velha<br />

Fui vítima de ofensas terríveis, de atentados contra a lei, querido amigo! Desde que esse deus<br />

recuperou a vista, fez-me a vida num inferno.<br />

Crémilo<br />

Como assim?<br />

Velha<br />

Eu tinha um namorado, rapaz novo, pobretana é certo, mas com boa pinta, bem parecido e boa<br />

praça. Precisasse eu de alguma coisa, estava sempre ao meu dispor, com simpatia e boa vontade. E<br />

eu, pela minha parte, satisfazia-lhe todos os desejos.<br />

Crémilo<br />

E, em geral, o que é que ele te pedia?<br />

Velha<br />

Nada de importância, porque tinha por mim uma verdadeira adoração. Pedia-me, por exemplo, em<br />

dinheiro, vinte dracmas para um manto e oito para uns sapatos. Insistia para que eu comprasse, para<br />

as irmãs, uma tunicazita e um casaquito para a mãe; ou, por exemplo, quatro rasas de trigo.<br />

Crémilo<br />

35


Nada de mais, realmente, pelas tuas contas. Está-se a ver que fazia cerimónia contigo.<br />

Velha<br />

Sem dúvida! E fazia questão de deixar claro que não era por ganância que pedia, era por dedicação,<br />

para se lembrar de mim, quando usava o casaco que lhe dei.<br />

Crémilo<br />

É de facto um amante apaixonado.<br />

Velha<br />

Só que agora o descarado deixou de fazer o que fazia, foi uma mudança radical. Mandei-lhe um bolo<br />

e este prato de doces, dando a entender que aparecia por lá ao fim da tarde...<br />

Crémilo<br />

E ele? Diz lá.<br />

Velha<br />

Ele mandou-mos de volta, mais o queque de noivado, com a recomendação de que não voltasse a<br />

pôr lá os pés.<br />

Crémilo<br />

Vê-se bem que é um tipo de princípios. Apanhou-se com uns patacos na algibeira, e já torce o nariz a<br />

um prato de lentilhas. Dantes, quando andava teso, comia de tudo.<br />

Velha<br />

A verdade é que, até hoje, todos os dias me rondava a porta.<br />

Crémilo<br />

Para ir ao teu enterro, não?<br />

Velha<br />

Qual quê! Porque tinha saudades de ouvir a minha voz.<br />

Crémilo<br />

Para te apanhar uns patacos, melhor dito!…<br />

Velha<br />

E então, se me via triste, era só ternuras: ‗minha patinha‘, ‗minha pomba‘.<br />

Crémilo<br />

Antes de te pedir dinheiro para uns sapatos…<br />

Velha<br />

Só porque alguém ficou a olhar para mim quando passei de carro, deu-me uma sova que durou o dia<br />

inteiro. Era ciumento, o rapazinho.<br />

Crémilo<br />

Queria ser ele só a meter a mão no prato, está na cara.<br />

Velha<br />

Mais, dizia que eu tinha as mãos perfeitas...<br />

Crémilo<br />

Principalmente quando lhe estendiam vinte dracmas.<br />

Velha<br />

Louvava-me o cheiro da pele...<br />

Crémilo<br />

Com certeza, quando lhe servias uma pinga de Tasos.<br />

36


Velha<br />

… e a ternura dos meus lindos olhos!<br />

Crémilo<br />

(À parte.) Não era peco o sujeito, não senhor! Sabia muito bem papar os carcanhóis a uma megera<br />

com cio...<br />

Velha<br />

Mas, meu caro, não está certo que o deus proceda assim, à pala de socorrer as vítimas de injustiça.<br />

Crémilo<br />

Que há-de ele fazer então? Diz lá e assim será feito.<br />

Velha<br />

Justo é, meu Deus, que ele obrigue um homem que eu sempre tratei tão bem a pagar-me na mesma<br />

moeda. Se não, o sujeito não merece ter um gosto na vida.<br />

Crémilo<br />

Como assim? Não te retribuiu ele já, cada noite?<br />

Velha<br />

Só que ele dizia que, enquanto eu fosse viva, nunca me havia de deixar.<br />

Crémilo<br />

Muito bem. Se calhar pensa que já não vives.<br />

Velha<br />

Foi a dor, meu querido, que me arrasou!<br />

Crémilo<br />

Que te arrasou? Que te apodreceu, queres tu dizer!<br />

Entra um jovem com um grande ramo de flores da mão.<br />

Velha<br />

Olha, lá vem o rapazinho de quem eu me estava a queixar. Tem ar de quem vai para a festa.<br />

Crémilo<br />

Tem ar disso, tem.<br />

Jovem<br />

(Para Crémilo.) Ora viva!<br />

Velha<br />

(Para Crémilo também.) Que diz ele?<br />

Jovem<br />

(Ao reparar nela.) Minha velha amiga, quantos cabelos brancos, pelos céus! Assim de um dia para o<br />

outro!<br />

Velha<br />

Ora toma! Ainda por cima lhe tenho de engolir os insultos!<br />

Crémilo<br />

Até parece que há muito tempo te não vê.<br />

Velha<br />

Qual muito tempo, qual quê! Se ainda ontem passou lá por casa!<br />

37


Jovem<br />

Queres brincar comigo?<br />

Velha<br />

Onde, meu querido?<br />

Jovem<br />

Aqui mesmo. Toma as nozes.<br />

Velha<br />

Para brincar a quê?<br />

Jovem<br />

Àquela do ―quantos dentes tens na boca‖.<br />

Crémilo<br />

Ora deixa-me adivinhar. Uns três ou quatro, por junto.<br />

Jovem<br />

Pagas tu! Não tem mais do que um molar.<br />

Velha<br />

Ah, maldito, não estás no teu juízo, a lavar roupa suja diante desta gente toda.<br />

Jovem<br />

(Para a Velha.) Olha que só tinhas a ganhar com uma barrela em forma.<br />

Crémilo<br />

Mas se se lhe tira essa camada de cal, ficam-lhe as brechas à mostra. E ouve lá, rapazinho, não<br />

consinto que ofendas aqui a moça.<br />

Jovem<br />

Mas se eu estou louco por ela!<br />

Crémilo<br />

Só que ela tem queixas de ti.<br />

Jovem<br />

Queixas de mim? Essa é boa!<br />

Crémilo<br />

Diz que tu foste atrevido.<br />

Jovem<br />

Por ela, não quero brigas contigo.<br />

Crémilo<br />

Como assim?<br />

Jovem<br />

Por consideração pela tua idade! Nunca eu consentiria tal coisa fosse a quem fosse. Mas pronto, vá<br />

lá, pega na moça e põe-te a andar. Que te faça bom proveito!<br />

Crémilo<br />

O que tu queres sei eu! Já te não cheira o namoro!<br />

Jovem<br />

E quem me pode obrigar? O que tenho eu a ver com uma fulana em pedaços, com mais de mil anos<br />

em cima....<br />

38


Crémilo<br />

Bem, já que lhe chupaste o vinho, bebe-lhe também a borra.<br />

Jovem<br />

Borra velha e da rançosa!<br />

Crémilo<br />

Nada que um filtro não coe. Vá, anda lá para dentro.<br />

Jovem<br />

Está bem, eu vou, para consagrar ao deus esta coroa que aqui trago.<br />

Velha<br />

Pois eu, pela minha parte, tenho uma coisa a dizer-lhe.<br />

Jovem<br />

Nesse caso já não entro.<br />

Crémilo<br />

Coragem, não tenhas medo! Obrigar-te ela não pode!<br />

Jovem<br />

Tempo demais já eu perdi a calafetar-lhe o casco!<br />

Velha<br />

Anda lá, que eu vou atrás. (O jovem entra e fecha a porta.)<br />

Crémilo<br />

(Para o público.) Deus meu! Com que gana a boa da velha se colou ao rapazinho! Que nem lapa a<br />

rochedo!<br />

Entra um grande grupo de mulheres com muita algazarra, que regressam da reunião. A Velha dos<br />

doces fica a ouvi-las.<br />

9.<br />

Primeira Mulher<br />

Não foi por ambição — Deus me livre! — que me levantei para falar, amigas. Mas há tempos já que<br />

eu — ai de mim! — fervo de nos ver enxovalhadas por Eurípides, esse filho de uma hortaliceira, e de<br />

ouvir toda a casta de injúrias. Haverá insulto com que esse tipo nos não tenha brindado? E calúnias?<br />

Seja onde for, tenha ele meia dúzia de espectadores, actores e coro, lá começa a chamar-nos<br />

levianas, doidas por homens, bêbadas, traidoras, tagarelas, uns zeros, a desgraça completa dos<br />

maridos. De tal maneira que eles, mal saem do teatro, põem-se a olhar para nós, desconfiados, e<br />

logo a ver se descobrem algum amante escondido em casa. Já não podemos fazer nada do que<br />

fazíamos dantes, tais foram as misérias que esse fulano ensinou aos nossos maridos. Os velhos que<br />

dantes se casavam com raparigas, difamou-os, de maneira que nenhum velho quer casar com uma<br />

mulher por causa deste verso: ‗Velho que de amores se abrasa, patroa tem em casa.‘ E mais: por<br />

causa desse fulano agora põem ferrolhos e trancas nos quartos das mulheres, para nos guardarem,<br />

e, pior ainda, criam cães. Enfim, isso ainda passa. Mas tudo aquilo que nos competia antigamente,<br />

governar a casa, ir à dispensa buscar a farinha, o azeite, o vinho, já não nos é permitido. Temos de<br />

arranjar maneira de dar cabo do fulano, seja lá como for, ou com veneno ou por qualquer outro<br />

processo que arrume com ele. Era isto que eu queria dizer publicamente.<br />

Entra o Parente vestido de Mulher com Eurípides que se esconde.<br />

Segunda Mulher<br />

Eu vou dizer apenas algumas palavras. Tudo o mais já ela o expôs e muito bem. Mas o que eu<br />

própria sofri, é isso que vos quero contar. Morreu-me o marido em Chipre e deixou-me cinco filhos<br />

pequenos, que eu lá ia sustentando, como podia, a fazer coroas no mercado das flores. Mas agora<br />

esse fulano, o que trabalha em tragédias, convenceu os homens de que os deuses não existem. De<br />

39


maneira que já não vendemos nem metade. É por isso que neste momento quero recomendar e dizer<br />

a todas que há razões de sobra para se dar um castigo a esse cavalheiro.<br />

Parente<br />

Mulheres! Que vocês, depois destas barbaridades que ouvimos, estejam irritadas de sobra contra<br />

Eurípides, a ferver até, não é de admirar. Pela minha parte — pela felicidade dos meus filhos! —<br />

detesto esse tipo, só se me passasse alguma pela cabeça. No entanto, temos de trocar impressões<br />

umas com as outras. Estamos sós, nem uma palavra sai daqui. Como é que vamos acusar o sujeito<br />

e ficar irritadas, lá porque disse duas ou três das nossas patifarias, quando ele bem sabe que as<br />

fazemos aos milhares? Eu própria, em primeiro lugar, para não falar de mais ninguém, bem conheço<br />

as minhas tratantadas que são muitas. Há uma então que é a pior de todas: estava eu casada há três<br />

dias e o meu marido dormia ao meu lado. Mas eu tinha um amante, que me tinha violado aos sete<br />

anos. Com o desejo, veio-se-me pôr à porta e começou a esgadanhar. Dei logo por ela. Saltei da<br />

cama pé ante pé e o meu marido perguntou: ‗Onde vais?‘ ‗Onde vou? Estou com uma dor de barriga,<br />

homem, sinto-me mal. Vou dar um salto à retrete.‗ ‗Vai lá, vai.‘ Eu deitei água nos ferrolhos e fui ter<br />

com o meu amante. Então plantei-me à beira do altar ao pé da porta, e curvei-me, encostada ao<br />

loureiro. E isso, vejam bem, nunca o disse Eurípides. Nem que nos entregamos a escravos e<br />

almocreves, quando não temos outra coisa. Nem que, quando andámos a noite inteira na pândega<br />

com um qualquer, de manhã nos pomos a mastigar alho, para o marido, quando voltar da sentinela,<br />

não desconfiar pelo cheiro que tivéssemos feito nada de mal. Isto, vejam bem, também ele não disse.<br />

E outra mulher conheço eu que, durante dez dias, andou a dizer que estava com dores de parto, até<br />

comprar um miúdo. O marido dava voltas a ver se encontrava qualquer coisa para acelerar o parto.<br />

Uma velha lá o trouxe, o miúdo, numa panela, com uma rolha de cera na boca para não gritar. A um<br />

sinal da velha que o trazia, a mulher põe-se a berrar: ‗Sai daqui, sai daqui, homem, depressa! Parece<br />

que vou dar à luz.‘ É que o miúdo tinha dado um pontapé no bojo da panela. Ele sai a correr todo<br />

contente e ela vá de tirar a rolha de cera da boca do miúdo, que começou a gritar. Logo o estafermo<br />

da velha, que tinha trazido a criança, corre para o marido, toda sorridente, e diz-lhe: ‗É um leão, é um<br />

leão que te nasceu! E o teu retrato chapado! Até a pilinha é parecida com a tua, redonda como uma<br />

pinha‘. Não fazemos nós estas patifarias? Sim, claro que fazemos. E depois viramo-nos contra<br />

Eurípides, quando não estamos a levar mais do que merecemos.<br />

Coro de Mulheres<br />

Marina - Isto é de pasmar!<br />

Rita Loureiro - Onde é que se foi desencantar semelhante coisa?<br />

Sofia - Em que terra terá nascido uma atrevida assim?<br />

Rueff - Dizer coisas destas — a safada! — em público! É o cúmulo do descaramento!<br />

Luísa - Pior do que as mulheres descaradas por natureza, não há nada, mesmo nada, a não ser a<br />

própria mulher.<br />

Primeira Mulher<br />

(Desconfiada.) Vamos nós mesmas arranjar, em qualquer lado, umas cinzas para lhe tirar os pêlos<br />

do coiro para aprender, já que é mulher, a não dizer mal das mulheres daqui em diante.<br />

Parente<br />

Isso não, o coiro não, mulheres! Se há liberdade de expressão, se todas nós, cidadãs aqui presentes,<br />

podemos falar, mereço que vocês me arranquem os pêlos de castigo?<br />

Primeira Mulher<br />

Não mereces um castigo? Penélope, nunca Eurípides escreveu nenhuma, só porque parecia ser uma<br />

mulher sensata.<br />

Parente<br />

Querem que eu diga mais? Que uma outra matou o marido à machadada. Isso também ele não<br />

disse. Nem que outra enlouqueceu o marido com mezinhas, nem que, uma vez, debaixo da<br />

banheira...<br />

Primeira Mulher<br />

Raios te partam!<br />

Parente<br />

40


… uma Acarnense enterrou o pai.<br />

Primeira Mulher<br />

Pode-se aturar uma coisa destas? (Ameaçadora.) Raios me partam se me não pagas o que estás<br />

para aí a dizer.<br />

Parente<br />

Não, não, não me pões a mão em cima.<br />

Primeira Mulher<br />

(Batendo no Parente.) Então toma!<br />

Parente<br />

Experimenta só tocar-me, e, palavra, eu...<br />

Segunda Mulher<br />

Deixem-se de insultos!<br />

Passa um Homem apressado.<br />

Homem 2<br />

Minhas senhoras, caras amigas, estejam atentas e vigilantes.<br />

Coro de Mulheres<br />

Luísa - O que é, rapaz?<br />

Homem 2<br />

Diz-se que Eurípides mandou cá um parente dele.<br />

Coro de Mulheres (Travam-no.)<br />

Luísa - Para fazer o quê?<br />

Rita Loureiro - Com que intenção?<br />

Homem 2<br />

Para espiar, nos vossos discursos, as vossas decisões e deliberações.<br />

Segunda Mulher<br />

E como é que ele, um homem, conseguiu passar despercebido no meio das mulheres?<br />

Homem 2<br />

Foi Eurípides que o chamuscou e depilou e que, depois, o vestiu de mulher.<br />

Primeira Mulher<br />

Mulheres, o que é preciso é não ficar de braços cruzados.<br />

O Parente tenta escapar-se.<br />

Homem 2<br />

Tem de se passar revista a todas. Tu, primeiro, quem és tu?<br />

Parente<br />

Estou feito!<br />

Primeira Mulher<br />

Sou a mulher do Cleónimo.<br />

Homem 2<br />

Vocês conhecem esta mulher?<br />

Coro de Mulheres<br />

41


Todas - Conhecemos.<br />

Teresa Madruga - Inspecciona as outras.<br />

Parente<br />

(Que tenta afastar-se.) Estou perdido!<br />

Homem 2<br />

Tu aí, onde é que vais? Espera lá! O que é que tens?<br />

Parente<br />

(Que se afasta, seguido de Homem 2.) Deixa-me ir fazer chichi. Atrevido!<br />

Homem 2<br />

Bem, vai lá. Fico aqui à espera.<br />

Coro de Mulheres<br />

Rueff - Espera, espera e de olho bem aberto.<br />

Parente faz chichi.<br />

Homem 2<br />

Muito tempo demoras tu a fazer chichi.<br />

Parente<br />

Pois é, sabes, tenho retenção de urinas. É que ontem pus-me a comer agriões.<br />

Homem 2<br />

(Agressivo, a empurrar o Parente.) Que história é essa dos agriões? E se tu viesses aqui ao pé de<br />

mim?<br />

Parente<br />

Porque é que me empurras? Não vês que estou doente?<br />

Homem 2<br />

Diz-me lá! Quem é o teu marido?<br />

Parente<br />

É o meu marido que queres saber? É um fulano… tu conhece-lo.<br />

Homem 2<br />

Um fulano? Qual?<br />

Parente<br />

É um fulano, que uma vez com outro fulano, filho de outro fulano...<br />

Homem 2<br />

Não dizes uma que se aproveite.<br />

Primeira Mulher<br />

Sai daí! Quem lhe vai fazer um interrogatório em forma sou eu!<br />

Parente<br />

(À parte.) Ai que estou frito.<br />

Primeira Mulher<br />

Despe-o!<br />

Parente<br />

Então vocês vão despir assim uma mãe de nove filhos?<br />

42


Homem 2<br />

Desaperta esse corpete, depressa! Sempre é preciso ter lata!<br />

Primeira Mulher<br />

(Que olha o Parente despido) Que mulher forte! Que atleta! Mas, olha, não tem maminhas como nós.<br />

Parente<br />

É que sou estéril, nunca estive grávida.<br />

Primeira Mulher<br />

Ai, agora!!! Ainda há pouco eras mãe de nove filhos.<br />

Homem 2<br />

Põe-te direito! Onde é que metes o coiso aí em baixo?<br />

Primeira Mulher<br />

(Espreita-lhe debaixo das saias.) Olha-o ali a espreitar! E que linda cor que ele tem, coitadinho!<br />

Homem 2<br />

Onde é que está? (Espreita também do outro lado.)<br />

Primeira Mulher<br />

Escapou-se outra vez cá para a frente.<br />

Homem 2<br />

Deste lado não está.<br />

Primeira Mulher<br />

Cá está ele outra vez aqui.<br />

Parente<br />

Ai pobre de mim! Em que sarilhos eu me vim meter!<br />

Homem 2<br />

(Antes de se retirar.) Esse tipo, guardem-no bem, para ele não se escapar daqui.<br />

O Homem sai. O Parente tenta fugir atrás dele para lhe ir bater.<br />

Primeira Mulher<br />

(Ao Parente que tenta fugir.) Ei! Para onde te vais sumir?<br />

Coro de Mulheres<br />

Luísa - Se Deus quiser, talvez te não fiques a rir dos teus insultos e blasfémias.<br />

Rueff - Às tuas impiedades havemos de dar resposta, como é justo.<br />

Parente<br />

(Para Luísa.) Pela tua morte, minha menina, acusa uma única mulher: a tua mãe. Ó mulheres<br />

danadas, sois a felicidade dos taberneiros, e a nossa desgraça, e a desgraça da casa e do tear.<br />

Coro de Mulheres<br />

Sofia - Se somos uma peste, porque é que vocês se casam connosco?<br />

Rueff - Porque é que nos proíbem de sair, de pôr o nariz de fora?<br />

Rita Loureiro - Se passamos a noite em casa de uma amiga, cansadas de uma festa, não há quem<br />

não venha passar revista às camas, à procura da peste.<br />

Luísa - Se nos debruçamos à janela, lá andam vocês a tentar ver a peste; e se, por vergonha, nos<br />

metemos para dentro, ainda mais desejosos ficam todos de ver a peste debruçar-se outra vez.<br />

Rita Durão - Cá pelo nosso lado, ainda vamos conservando por enquanto o tear, a travessa, os<br />

cestinhos, a sombrinha.<br />

Luísa - Mas a muitos dos nossos maridos, que aqui estão, desapareceu de casa a travessa junto<br />

com a lança.<br />

43


Sofia - E muitos outros, nas campanhas, deixaram cair dos ombros a sombrinha.<br />

Fanfarra ao longe. Entra um Guarda façanhudo. As mulheres, com medo, saem disfarçando. Fica a<br />

Velha dos bolos, interessada.<br />

Parente<br />

(Quando vê o Guarda.) Saiu-me o negócio furado!<br />

Velha<br />

(Para o Parente que está atrapalhado.) Tu aí, porque baixas a cabeça? (Para o Guarda.) Leva-o lá<br />

para dentro, guarda, e amarra-o; depois fica de atalaia; não deixes que ninguém se aproxime. Usa<br />

mesmo o chicote, rapaz, se alguém se aproximar.<br />

Parente<br />

(Para o Guarda.) Pela tua mão direita que bem gostas de estender aberta a quem te dá dinheiro, fazme<br />

um favorzinho, mesmo que eu tenha de morrer.<br />

Velha<br />

Favorzinho? Que favorzinho?<br />

O Guarda começa a amarrar o Parente.<br />

Parente<br />

(Para a Velha.) Dá ordem ao guarda que me deixe nu em pêlo antes de me amarrar, para eu não<br />

fazer rir os corvos a quem vou servir de almoço.<br />

Guarda<br />

(Amarra o Parente.) Aqui agora tu poder gritar prós céus!<br />

Parente<br />

Ó guarda, por favor…<br />

Guarda<br />

Tu não pedir favores a mim.<br />

Parente<br />

Ai, ai! Ai, ai! Um raio que te parta!<br />

Guarda<br />

Cala-te, maldito!<br />

Aparece Eurípides.<br />

Parente<br />

Ó estrangeiro, tem piedade de mim, da minha desgraça! Liberta-me destas cadeias.<br />

Guarda<br />

Nem um pio, tu! Maldito, atrever-te a piar agora que bais morrer?<br />

Eurípides<br />

Ó donzela, sinto piedade ao ver-te aí suspensa.<br />

Guarda<br />

Não, donzela não, aldrabice, ladrão, trafulha.<br />

Eurípides<br />

Que disparate, ó Guarda.<br />

Guarda<br />

Olha-lhe para o coiso! Achas que é piqueno?<br />

44


Eurípides<br />

(Que se aproxima do Parente e lhe estende a mão.) Dá-me a tua mão, donzela, deixa-me apertá-la.<br />

Fraquezas, todos os homens as têm. A minha é estar apaixonado por esta miúda.<br />

Guarda<br />

Não invejar tu! Se ele virasse o rabo para lá, não tenho dúbidas tu fazer amor com ele.<br />

Eurípides<br />

Porque não me deixas libertá-la, Guarda, e deitar-me com ela no leito nupcial?<br />

Guarda<br />

(Ameaçador.) Eu dou-te com o chicote.<br />

Eurípides<br />

(Decidido.) Pouco me importa. É o que vou fazer. (Não faz.)<br />

Guarda<br />

Esse caveça, eu estoirar-te com ele, com este espada aqui. (Eurípides foge.) Raposa malvada, a<br />

armar-se em macaco comigo! (O Guarda deita-se para dormir. Ouve-se música. Reprise da fanfarra<br />

anterior.) Que barulha é esta? Um cortejo me vir acordar?<br />

Entra a banda. Volta Eurípides, fazendo de velha e, acompanhado de uma bailarina, a Folgança.<br />

Eurípides<br />

(Fazendo de velha.) A garota vai ensaiar, guarda. É que ela tem de dar um show aí para uns tipos.<br />

Guarda<br />

(Que aprecia a bailarina a dançar.) Dançar, ensaiar, eu não empatar. (Senta-se a ver a Bailarina<br />

dançar.) É lebe como uma pena.<br />

Eurípides<br />

(Para a Rapariga.) Vamos, filha, tira-me essa roupa! Senta-te nos joelhos do Senhor Guarda e dá cá<br />

os pés para eu te descalçar.<br />

Rapariga fica meio despida. E senta-se.<br />

Guarda<br />

Sim, senta, senta, sim, sim, filhinha. Ui, que peitinho duro que nem um nabo. Linda rabinho! Raios te<br />

partam, se não ficas lá dentro! Está no ponto aqui a pilinha!<br />

Eurípides<br />

(À bailarina.) Pronto. Pega na roupa. Está na altura de nos irmos embora.<br />

Guarda<br />

Tu não dar beijo a eu primeiro?<br />

Eurípides<br />

Claro! Dá-lhe um beijo.<br />

Guarda<br />

Ai, ai, ai! Que doce o teu língua! Porque não vens para a cama comigo?<br />

Eurípides<br />

(Tirando a Bailarina do colo do Guarda.) Adeus, guarda. Isso é que não pode ser.<br />

Guarda<br />

Sim, sim, velhinha, fazer-me esse faborzinho tu.<br />

Eurípides<br />

45


E tu dás-me uma dracma?<br />

Guarda<br />

Sim, sim, eu dar.<br />

Eurípides<br />

Então passa para cá a massa. (O Guarda dá a dracma.)<br />

Guarda<br />

Bamos lá, filhinha. (Para Eurípides.) E tu, vigia aqui esta homem, velhinha. Como é que te chamas?<br />

Eurípides<br />

Artemísia.<br />

Guarda<br />

Lembrar-me bem do nome: Artamúxia. (Sai levando a bailarina.)<br />

Eurípides<br />

(Para o Parente enquanto o desamarra.) Tu, mal te apanhes solto, raspa-te o mais depressa<br />

possível, sem hesitações, e desanda para casa, para junto da tua mulher e dos teus filhos. Escapa-te<br />

antes que o guarda volte e te apanhe.<br />

Parente<br />

É isso mesmo que vou fazer. (Eurípides sai a correr para o outro lado mas volta para espreitar. Para<br />

o Público.) Que a minha filha, que tem uma passarinha de truz, arranje um marido rico, e mais,<br />

estúpido e parvo, e que eu tenha tento e juízo na pilinha. (Sai a correr para outro lado.)<br />

Guarda<br />

(Que volta com a bailarina, a abotoar-se.) Ó velhinha, que mocinha maravilhosa tu ter, arisca não,<br />

muito amável. (Não vê Eurípides que espreita, escondido.) Onde está o velhinha? (Não vê Parente,<br />

só as cordas no chão.) Ai de mim! Estar perdido! Onde estar a que estava aqui? (Corre como louco<br />

pelas ruas.) Ó velhinha, ó velha! Isto não está bem, velhinha. Artamúxia! Pregou- ma, a velha. (Ouvese<br />

a banda. A bailarina dança.) Desaparece daqui, tu, depressa! (A Velha dos bolos vem oferecer<br />

bolos ao Guarda. Que nem vê.) Ai de mim! Que fazer? Onde se raspar o velhinha? Artamúxia! (Sai a<br />

correr.)<br />

FINAL DA 1ª PARTE<br />

Começa a entrar o Coro de Homens atrás da banda. Ficam encantados a ver dançar a Folgança. A<br />

Velha fica a comer os bolos e a ver a banda passar. Pelo outro lado entra um grande grupo de<br />

mulheres. Cantam os dois grupos em oposição.<br />

Homens<br />

Um homem livre, o que o fazem sofrer!<br />

Mulheres<br />

Está na letra da lei, é o que tens de fazer.<br />

Aparece Eurípides.<br />

Eurípides<br />

Velho que de amores se abrasa<br />

patroa tem sempre em casa.<br />

Mulheres<br />

Dou-te ostras e filetes,<br />

raia, congro,e bom soufflé<br />

miolos com silfio e queijo<br />

melros, pombas e borrachos.<br />

46


Homens<br />

Dá-me galos, dá-me lebre,<br />

Dá-me tordos e pipis<br />

E dá-me bolinhos<br />

Demolhados em vinho<br />

E cheinhos de mel.<br />

Mulheres<br />

Dá-nos riqueza e saúde,<br />

alegria, e danças<br />

paz, e juventude.<br />

Luísa Cruz (Para Luís Miguel.)<br />

A nossa cidade,<br />

de uma ponta à outra,<br />

tu a puseste num rebuliço.<br />

Luís Miguel (Que lhe responde.)<br />

Ah! Se eu dormisse com a minha amada,<br />

E não fosse dormir com uma pencuda e escalavrada!<br />

Luísa Cruz<br />

Dormir, vais dormir, doa a quem doer!<br />

Está na letra da lei, é o que tens de fazer.<br />

Mulheres<br />

Já não é tempo de Carixenas!<br />

se ainda há democracia em Atenas!<br />

Homens<br />

Um homem livre, o que o fazem sofrer!<br />

Mulheres<br />

Está na letra da lei, é o que tens de fazer.<br />

INTERVALO<br />

47


10.<br />

2ª PARTE<br />

Mesma praça. É de noite.<br />

Entra uma mulher (Praxágora, mulher de Bléfiro) de lamparina na mão e com roupas de homem na<br />

mão.<br />

Praxágora<br />

(Olha em volta.) Ó minha lamparina bem torneada, obra primorosa de uma mão de artista, envia,<br />

com o teu brilho, os sinais combinados. A ti só o podemos confiar; porque, na intimidade do quarto,<br />

ali estás a nosso lado; e, na hora em que os corpos se dobram no amor, o teu olho lá fica de plantão.<br />

Ora esta! Ainda cá não está nenhuma das que ficaram de vir. E é que está a fazer-se dia e vão<br />

sendo horas para o início da assembleia. Porquê tanta demora? Faltam-lhes as barbas … Ou então<br />

viram-se em apuros para bifarem as roupas dos maridos.<br />

Olá! Estou a ver uma luz que se aproxima. Bom, o melhor é dar meia-volta não vá acontecer que seja<br />

um homem que lá vem.<br />

Praxágora esconde-se. Começa a amanhecer. Um Velho aparece com uma lanterna, acompanhado<br />

por Sócrates. Alguns metros atrás o Filho Fidipedes de MP3 nos ouvidos.<br />

11.<br />

Estrepsíades<br />

Não faças caso, Sócrates, trata de o ensinar, que o moço, no fundo, é esperto: era ainda catraio,<br />

assim tamanhinho, e já moldava casinhas, esculpia barquinhos, construía carrinhos, e das cascas de<br />

romãs fazia rãs, que era um encanto vê-lo. Por isso, faz que ele aprenda aqueles dois raciocínios, o<br />

mais forte, ou lá o que é, e o mais fraco, o tal que pega numa causa injusta e manda abaixo o mais<br />

forte. Mas se não puderem ser os dois, pelo menos o injusto, dê por onde der.<br />

Sócrates<br />

Pois o moço vai receber lições de ambos os Raciocínios em pessoa… Bem, vou indo.<br />

Entra em casa. O Velho senta-se. Já há luz. Apaga a lanterna. De casa de Sócrates saem os dois<br />

Raciocínios. O Justo um Velho. O Injusto Novo. Vêm na sequência de uma discussão.<br />

Raciocínio Justo<br />

(Dirige-se ao Raciocínio Injusto) Salta para aqui! Se tens assim tanta coragem, mostra-te aos<br />

espectadores.<br />

Raciocínio Injusto<br />

Onde quiseres. Com muita gente a assistir, ainda me é mais fácil dar cabo de ti.<br />

Raciocínio Justo<br />

Dar cabo de mim... tu? Mas quem julgas tu que és?<br />

Raciocínio Injusto<br />

Um Raciocínio.<br />

Raciocínio Justo<br />

Sim, mas o mais fraco.<br />

Raciocínio Injusto<br />

Pois venço-te na mesma, lá por te gabares de ser mais forte.<br />

Raciocínio Justo<br />

E com que artimanhas?<br />

Raciocínio Injusto<br />

48


Inventando cá umas ideias novas.<br />

Raciocínio Justo<br />

Tais processos estão muito na moda, graças a cretinos como esses aí. (Aponta para os<br />

espectadores.)<br />

Raciocínio Injusto<br />

Cretinos, não: gente atilada.<br />

Raciocínio Justo<br />

Vou dar cabo de ti, miserável.<br />

Raciocínio Injusto<br />

E como, não me dizes?<br />

Raciocínio Justo<br />

Expondo o que é justo.<br />

Raciocínio Injusto<br />

E eu contradigo-te e mando-te abaixo... Para já, afirmo a pés juntos que não existe justiça.<br />

Raciocínio Justo<br />

Afirmas que não existe?!…<br />

Raciocínio Injusto<br />

Senão vejamos: onde existe ela?<br />

Raciocínio Justo<br />

No seio dos deuses.<br />

Raciocínio Injusto<br />

És um velho imbecil.<br />

Raciocínio Justo<br />

E tu és um panasca.<br />

Raciocínio Injusto<br />

Isso para mim… são rosas.<br />

Raciocínio Justo<br />

És muito atrevido.<br />

Raciocínio Injusto<br />

E tu muito antiquado.<br />

Raciocínio Justo<br />

Por tua culpa, nenhum moço quer ir à escola. Mas deixa estar... Tempo virá em que os Atenienses<br />

tomarão consciência das patacoadas que tu ensinas aos parvos.<br />

Raciocínio Injusto<br />

Ah! Que sabedoria!...<br />

Raciocínio Justo<br />

(Cortando-lhe a frase.) Ah! Que desatino!... esse teu, mas também da cidade que te alimenta, ó<br />

corruptor da mocidade!<br />

Raciocínio Injusto<br />

(Voltando ao tema principal.) Seja como for, não instruirás este moço! (Dirigindo-se a Fidípides.)<br />

Vamos, chega-te para aqui e deixa mas é o tipo malucar. (Tenta pegar no braço de Fidípides.)<br />

49


Raciocínio Justo<br />

(Avançando ameaçador.) Ai de ti, se te atreves a tocar-lhe com um dedo.<br />

Sócrates aparece à Janela.<br />

Sócrates<br />

Deixem-se de brigas e de insultos, e exponha cada um de vós o que pensa — (Dirige-se ao<br />

Raciocínio Justo.)... tu o que ensinavas as gerações passadas, e tu (Ao Raciocínio Injusto.) a nova<br />

pedagogia, para que o moço, depois de escutar as alegações de cada um, tire as suas conclusões.<br />

Estrepsíades<br />

Então, vejamos: quem vai falar em primeiro lugar?<br />

Raciocínio Injusto<br />

Dou-lhe a prioridade.<br />

Sócrates<br />

(À janela. Ao Raciocínio Justo.) Tu, que coroaste os nossos antepassados com tantos e tão belos<br />

princípios morais, solta a tua voz a teu gosto e fala.<br />

Raciocínio Justo<br />

Naqueles velhos tempos em que eu florescia pugnando pela justiça, quando a moderação era de<br />

norma... Para já, não era habitual ouvir-se um puto murmurar sequer uma palavra. Quando se<br />

dirigiam para a escola de música, marchavam nas ruas em boa ordem, cada grupo de seu bairro,<br />

sem manto e em formatura, ainda que nevasse como farinha. Aí, o professor obrigava-os a manter as<br />

pernas afastadas e fazia-os decorar cantigas. E se algum deles se fazia de engraçado ou ensaiava<br />

uns requebros esquisitos, como, hoje em dia está em moda, apanhava logo uma valente coça, por<br />

atentado às Musas… Por outro lado, na aula de ginástica, os moços tinham de estar sentados com<br />

as pernas estendidas, não fossem os mirones topar alguma parte obscena; e depois, ao levantaremse,<br />

deviam alisar o terreno, evitando deixar aos apaixonados alguma marca de virilidade... Naquele<br />

tempo, nenhum moço se atreveria a perfumar-se abaixo do umbigo. E nenhum homem se<br />

aproximava sequer do seu apaixonado com falinhas mansas e olhos de carneiro mal morto… E quem<br />

é que se atrevia, à mesa, a servir-se da cabeça do rabanete, a gamar a erva-doce ou o aipo dos mais<br />

velhos, a alambazar-se, a rir às gargalhadas, a cruzar as pernas?<br />

Raciocínio Injusto<br />

Velharias, tudo isso.<br />

Raciocínio Justo<br />

Pois sim, mas foi com essa nossa pedagogia que se formaram os heróis de Maratona, ao passo que<br />

tu ensinas a geração actual a abafar-se nos mantos logo de manhã, que até me falta o ar, quando<br />

vejo algum com o escudo descaído à altura da pichota. (Dirige-se a Fidípides.) Portanto, meu<br />

rapazinho, escolhe-me, com toda a confiança, a mim, o Raciocínio Mais Forte, e aprenderás a<br />

detestar a ágora e a evitar os balneários; a envergonhar-te das poucas-vergonhas; e, se alguém te<br />

censurar, a ficar todo corado; a levantar-te do assento e ceder o teu lugar aos mais velhos que por ali<br />

apareçam; a não seres torto com o teu pai; a não armar uma bronca que te encha a cara de<br />

vergonha; a não te atirares a alguma bailarina, arriscando-te a que uma putéfia qualquer te apanhe<br />

assim feito basbaque, e te lance uma maçã de amor.<br />

Raciocínio Injusto<br />

Meu rapazinho: se dás trela a esse tipo, caramba, mereces que te chamem «menino da mamã».<br />

Raciocínio Justo<br />

Pois sim, mas também é certo que passarás o tempo nos ginásios, nédio e viçoso, em vez de andar<br />

pela ágora cacarejando monstruosidades bicudas que nem cardos, como a malta de agora. Pelo<br />

contrário, irás lá abaixo à Academia e, por entre alas de oliveiras sagradas, praticas a corrida, e na<br />

companhia dum rapaz da tua idade, mocito ajuizado, a cheirar a rosmaninho, desfrutando da estação<br />

da Primavera, quando o plátano sussurra com o ulmeiro... (Em tom mais rápido.) Se fizeres o que te<br />

digo, se prestares atenção aos meus conselhos, ganharás para sempre um peito vigoroso, uma tez<br />

luzidia, ombros largos, língua curta, cu avantajado, pichota pequena. Se, pelo contrário, procederes<br />

50


como a malta de agora, ganharás, para começar, uma cor amarelenta, ombros estreitos, peito<br />

enfezado, língua comprida, um cu pequeno e uma picha grande.... Mais: este fulano até te<br />

convencerá a considerar bom o que é mau, e mau o que é bom. E para cúmulo de tudo isto, há-de<br />

conspurcar-te com o vício dos panascas.<br />

Raciocínio Injusto<br />

(A Fidípides.) Abre bem os olhos e vê como eu vou refutar essa tal pedagogia em que aqui o<br />

cavalheiro está tão confiado. Em primeiro lugar, afirma ele que não permitirá que tomes banho de<br />

água quente… (Ao Raciocínio Justo.) Ora bem: em que é que te fundamentas para assim censurares<br />

os banhos quentes?<br />

Raciocínio Justo<br />

Muito simplesmente por se tratar duma prática nefasta, que amolece os homens.<br />

Raciocínio Injusto<br />

Alto aí, que já te apanhei na gaiola, já não me podes fugir. Ora diz-me cá: de entre os filhos de Zeus,<br />

qual deles te parece possuir uma alma mais viril? Vá, diz lá, e também qual deles afrontou maior<br />

quantidade de provações?<br />

Raciocínio Justo<br />

Cá por mim, não creio que exista alguém mais valoroso que Héracles.<br />

Raciocínio Injusto<br />

E então? Já viste alguma vez «termas de Héracles» serem frias? E no entanto, quem houve mais viril<br />

que Héracles?<br />

Raciocínio Justo<br />

Sim, é isso, é isso mesmo que faz que o balneário esteja sempre apinhado de moços a dar ao<br />

taramelo todo o santo dia, ao passo que as palestras se encontram às moscas.<br />

Raciocínio Injusto<br />

Reporto-me agora à questão da língua, a qual, segundo aqui o cavalheiro, os jovens não devem<br />

exercitar — o que eu contesto. E mais sustenta que devem ser bem comportados — dois males, qual<br />

deles o maior. Sim, onde já viste alguma vez o bom comportamento trazer benefício a alguém? Vá,<br />

fala, diz de tua justiça, rebate a minha posição.<br />

Raciocínio Justo<br />

Casos desses são às porções...<br />

Raciocínio Injusto<br />

(A Fidípides.) E tu, chavalito, toma bem sentido nas chatices que o bom comportamento implica, de<br />

quantos prazeres da vida irias ficar privado: rapazinhos, mulheres, jogos de amor, petiscadas,<br />

pinguinha, gargalhadas... Sim, para que queres tu a vida, se te vês privado desses prazeres?... Mas<br />

adiante... Passemos às fatalidades da natureza humana. Por exemplo: pecaste, ficaste apaixonado,<br />

deste em cima de uma mulher casada… enfim, foste apanhado em flagrante. Pronto, tás feito... e<br />

tudo por falta de lábia. Pelo contrário, se te juntares a mim, vai gozando da natureza, pula, ri, e não<br />

cuides das conveniências. E se porventura fores surpreendido em adultério, replicarás ao marido que<br />

não fizeste nada de mal. Depois, atira com as culpas para cima de Zeus... que também ele se deixou<br />

vencer pelo amor e pelas mulheres...Portanto, como é que tu, simples mortal, poderias ser mais forte<br />

que um deus?<br />

Raciocínio Justo<br />

O quê? Então e se ele, quer dizer, o tal da fulana casada, por te ter dado ouvidos, for «enrabanado»<br />

lhe queimarem os pêlos do cu com cinza quente? Terá o desgraçado algum argumento para dizer<br />

que não é... rabicho?<br />

Raciocínio Injusto<br />

E que tem que seja rabicho? Que mal lhe virá daí? Diz-me cá uma coisa: aonde é que vão buscar os<br />

magistrados do Ministério Público?<br />

51


Raciocínio Justo<br />

Aos rabichos.<br />

Raciocínio Injusto<br />

Certo. E os tragediógrafos, aonde é que os vão buscar?<br />

Raciocínio Justo<br />

Aos rabichos.<br />

Raciocínio Injusto<br />

Dizes bem. E os oradores, vão buscá-los aonde?<br />

Raciocínio Justo<br />

Aos rabichos.<br />

Raciocínio Injusto<br />

Portanto, reconheces que não tens razão, não é?...E já agora, entre os espectadores, quais<br />

constituem a maioria? Olha bem.<br />

Raciocínio Justo<br />

Estou a olhar.<br />

Raciocínio Injusto<br />

E que vês tu?<br />

Raciocínio Justo<br />

Que... Ena pá!... São de longe mais numerosos os rabichos. Por exemplo, este aqui, que eu<br />

conheço... e aquele acolá... e esse aí de grande trunfa…<br />

Raciocínio Injusto<br />

E então, que tens a dizer?<br />

Raciocínio Justo<br />

(Aos espectadores.) Ó gente debochada! Perdemos a partida…. (Virando-se para a casa de<br />

Sócrates.) Pelos deuses! Tomem lá o meu manto, que me passo já para o vosso lado. (Entra na<br />

escola.)<br />

Raciocínio Injusto<br />

(ao Velho que teve dificuldade em seguir a cena.) E agora? Queres levar o teu filho contigo, ou<br />

preferes que to ensine a exprimir-se?<br />

Estrepsíades<br />

Sim, ensina-o, chega-lhe nos lombos, e sobretudo não te esqueças de lhe afiar bem a língua, de<br />

modo que, dum lado, fique apto para os processozitos de chacha, e, do outro, que fique com a<br />

queixada bem afiada para coisas mais grossas.<br />

Raciocínio Injusto<br />

Não te dê isso cuidado, hás-de levá-lo daqui feito um sofista refinado.<br />

Fidípedes<br />

(À parte.) Pois sim...macilento e miserável, estou mesmo a ver...<br />

Sócrates<br />

(Aos Raciocínios.) Retirai-vos… (Os Raciocínios voltam a entrar em casa de Sócrates com o rapaz.<br />

Estrepsíades vai-se. Para Estrepsíades, mas sem que este oiça.) E tu... desconfio que ainda te vais<br />

arrepender. (Fecha a janela.)<br />

Vão entrando várias Mulheres, às escondidas, acabando de se vestir com trajos masculinos e com<br />

chapéus e bengalas.<br />

52


12. 1<br />

Primeira Mulher<br />

(Mulher de Lâmias às companheiras: Filénata e Glice) É mais que tempo de ir andando, que ainda<br />

agora o arauto, vínhamos nós a chegar, fez cocoricó pela segunda vez.<br />

Praxágora<br />

(Aparecendo por outro lado já vestida de Homem e de barbas e bengala na mão.) E eu que fiquei de<br />

atalaia, à vossa espera, a noite inteira! (Encaminha-se para a porta ao lado e raspa com cuidado na<br />

porta.)<br />

Segunda Mulher<br />

(Mulher de Filodoreto que sai de casa.) Já estava a enfiar os sapatos quando ouvi o arrascanhar dos<br />

teus dedos. É que não preguei olho. O meu marido, menina levou a noite inteirinha a manobrar-me,<br />

debaixo das mantas, de modo que só agora pude deitar mão a este casaco dele.<br />

Chegam Rita Loureiro e Sofia.<br />

Praxágora<br />

Lá vêm elas ! (Às recém-chegadas.) Ora fazem favor de se despachar!<br />

As mulheres tentam acabar de se mascarar de homens.<br />

Segunda Mulher<br />

(Falando com Praxágora de uma que vem ao longe.) Olha a mulher do Esmicítion, a Melística! Aquilo<br />

é que ela dá à perna nos tamancos! Também é a única, julgo eu, que não tem problemas com o<br />

marido. Lá por ele pode sair à vontadinha!<br />

Primeira Mulher<br />

Vem ali a mulher do taberneiro, de tocha em punho.<br />

Praxágora<br />

E a do Filodoreto, e a do Cerétades, lá vêm elas, e uma multidão de outras mulheres, a fina-flor da<br />

cidade.<br />

Primeira Mulher<br />

Cá por mim, minha cara amiga, foi um bico-de-obra para me pôr ao fresco. É que o meu marido toda<br />

a noite tossiu. com uma empanturradela de anchovas que levou ontem.<br />

Praxágora<br />

(Para todas.) Pois então façam favor de se sentar, para eu me certificar, se todas cumpriram o que<br />

ficou assente entre nós.<br />

Primeira Mulher<br />

Eu cumpri. Para já tenho os sovacos peludos que nem uma mata, como ficou combinado. E mais, de<br />

cada vez que o meu marido saía para a ágora, eu untava-me da cabeça aos pés e pespegava-me o<br />

dia inteiro ao sol, a torrar.<br />

Segunda Mulher<br />

Também eu. A primeira coisa que fiz foi atirar com a navalha porta fora para ficar coberta de pêlos e<br />

não parecer mulher.<br />

Praxágora<br />

E barbas, vocês têm aquelas barbas que nós assentámos ter todas, quando nos reuníssemos?<br />

Primeira Mulher<br />

Ora essa! Claro que sim! Olha só esta beleza de barba que eu aqui tenho! (Abre a cueca.)<br />

Segunda Mulher<br />

E eu também tenho uma que não fica a dever nada ao mais barbudo.<br />

53


Praxágora<br />

(Às restantes,pouco convencidas.) E vocês, têm alguma coisa a dizer?<br />

Primeira Mulher<br />

Estão a dizer que sim com a cabeça.<br />

Praxágora<br />

Bom, quanto ao resto estou a ver que cumpriram tudo à risca. Têm sapatos, bengalas, roupas de<br />

homem, tal qual como combinámos. Vamos lá! Temos de decidir o que é preciso fazer, enquanto<br />

ainda há estrelas no céu.<br />

Segunda Mulher<br />

(Que exibe o cesto do trabalho de mãos.) Eu vim de cesto — ora pois então! — para ir tricotando<br />

enquanto se enche a assembleia.<br />

Praxágora<br />

Como 'enquanto se enche', sua pateta-alegre?!<br />

Segunda Mulher<br />

E isso que tem? Oiço pior por estar a tricotar ao mesmo tempo?.. Se os pobres dos meus filhos nem<br />

roupa têm!<br />

Praxágora<br />

Ora vejam só! (As mulheres põem as barbas postiças.) Havia de ser bonito! Com a assembleia<br />

repleta, e uma fulana, pela escada acima, levantar a saia e deixar ver o … Barbaças! Se formos as<br />

primeiras a arranjar lugar, ninguém vai reparar que nos enfiámos nestes casacos. E quando<br />

pusermos as barbas direitinhas como deve ser, quem é que, lá na assembleia, ao olhar para nós, vai<br />

pensar que não somos homens? Temos de arriscar este golpe, a ver se conseguimos tomar as<br />

rédeas do governo e fazer alguma coisa por esta cidade. Que como está agora já lá não vai nem à<br />

mão de Deus padre!<br />

Primeira Mulher<br />

E como é que uma assembleia do sexo fraco pode dirigir a palavra ao povo?<br />

Praxágora<br />

É voz corrente que a rapaziada que melhor se deixa... espetar, é a que tem a língua mais pronta. E,<br />

graças a Deus, essa é a nossa especialidade!<br />

Segunda Mulher<br />

(Que se atrasou a pôr a barba.) Pode ser, mas a falta de experiência é um grande senão.<br />

Praxágora<br />

Vamos, põe-me lá essa barba. (Todas ajustam as barbas e experimentam o andar de homens.)<br />

Primeira Mulher<br />

Chega cá, Praxágora, minha querida! (Demonstra as poses dos homens.) Olha, filha, isto está de<br />

partir o coco.<br />

Praxágora<br />

Que é que está de partir o coco? (Imitando o arauto.) Toca a andar em frente. Acaba com a<br />

conversa! (Para a Primeira Mulher.) Tu, senta-te ai nesse lugar! (Para todas.) Quem quer tomar a<br />

palavra? (Todas se vão sentar a correr, porque não querem.)<br />

Segunda Mulher<br />

Falar?!... Antes de beber?<br />

Praxágora<br />

Beber?! E esta, hem? (A Segunda Mulher avança para falar.) Desanda daqui! Põe-te a mexer! Se era<br />

na assembleia, já nos tinhas deixado ficar mal.<br />

54


Segunda Mulher<br />

Como assim? Por acaso eles não bebem também, lá na assembleia?<br />

Praxágora<br />

Essa é boa! Eles bebem, dizes tu!...<br />

Segunda Mulher<br />

Homessa! E pinga de primeira! É por isso que os decretos que lá fazem, quando se olha para eles<br />

com olhos de ver… Mais, injúrias não faltam, como entre gente que lhe entorna bem.<br />

Praxágora<br />

(Já impaciente.) Vamos, desanda para o teu lugar. Não dás uma pra caixa!<br />

Segunda Mulher<br />

(Que se retira da tribuna para se sentar.) C‘os diabos! Melhor fora não ter barba! Estou que ainda vou<br />

mirrar de sede.<br />

Praxágora<br />

Há mais alguém que queira usar da palavra?<br />

Primeira Mulher<br />

(Que se levanta.) Eu!<br />

Praxágora<br />

Despacha-te, que a coisa vai de vento em popa.<br />

A Primeira Mulher aproxima-se, pronta a fazer o discurso.<br />

Primeira Mulher<br />

Dadas as circunstâncias, não posso permitir — julgo eu! — que qualquer taberneiro armazene<br />

canecos cheios de… água. Isso não me parece justo, pelas duas deusas!<br />

Praxágora<br />

Pelas duas deusas, desgraçada?! Onde é que tens a cabeça?<br />

Primeira Mulher<br />

Pois é, por Apolo!<br />

Praxágora<br />

Cala-me essa boca que é melhor! Que eu não meto pernas ao caminho para a assembleia sem antes<br />

pôr tudo em pratos limpos. (Rita Loureiro levanta-se para falar amuada.) Põe-te a mexer daqui para<br />

fora, tu também! Vai para o teu lugar. O que tenho a fazer é encarregar-me, eu, da vossa defesa.<br />

(Ensaia.) Aos deuses suplico que levem a bom termo os nossos projectos. Esta terra é tanto minha<br />

como vossa. E aflige-me, dá-me engulhos, ver a podridão que vai por essa cidade. O mal está em<br />

que a vejo sempre deitar mão a governantes da pior espécie. Se, por um dia que seja, aparece um<br />

que se aproveite, ao fim de dez fica igual ao anterior. Confia-se noutro, é pior a emenda que o<br />

soneto. Sem dúvida que é difícil abrir os olhos a gente cabeçuda como esta: dos que vos são<br />

dedicados, vocês têm medo; dos que não querem nada convosco, andam atrás deles que nem<br />

cordeirinhos.<br />

Segunda Mulher<br />

Por Afrodite! Isso é que é falar!<br />

Praxágora<br />

Ah, safada! Juraste por Afrodite?! Arranjava-la bonita, se te saías com essa na assembleia.<br />

Segunda Mulher<br />

Saía agora!<br />

55


Praxágora<br />

(Retomando o discurso.) E são vocês, meu povo, os culpados de tudo. Quando recebem, em salário,<br />

os fundos do Estado, só pensam no vosso próprio interesse. É ver quem se enche mais! E o Estado,<br />

lá vai tem-te-não-caias. Mas se acreditarem no que vos digo, ainda se podem salvar. É às mulheres,<br />

na minha opinião, que se deve confiar a cidade. Tanto mais que, nas nossas casas, é a elas que<br />

confiamos a administração.<br />

Todas<br />

Rita Durão e Sofia - Muito bem! Muito bem!<br />

Marina - Apoiado!<br />

Sofia - Ah valente, isso é que é falar!<br />

Praxágora<br />

Que os hábitos delas são melhores que os nossos é o que passo a demonstrar. Para começar,<br />

mergulham a lã em água quente, à moda antiga, todas elas, e não se vê que estejam dispostas a<br />

mudar. Ao passo que a cidade de Atenas não se julga a salvo, se não engendrar qualquer inovação.<br />

Fazem os seus grelhados sentadas, como dantes; trazem fardos à cabeça, como dantes; cozem<br />

bolos, como dantes; estafam os maridos, como dantes; metem amantes em casa, como dantes;<br />

compram gulodices, como dantes; gostam de uma boa pinga, como dantes; pelam-se por fazer amor,<br />

como dantes. Por isso é a elas, meus senhores, que temos de confiar a cidade, sem mais discussão,<br />

sem sequer nos preocuparmos com o que pensam fazer. Demos-lhes carta branca para governarem.<br />

Consideremos apenas estes pontos: primeiro, que, se são mães, vão dar tudo por tudo para<br />

salvarem os soldados; segundo, no que respeita à comida quem mais solicito que uma mãe para<br />

reforçar uma ração? Ninguém mais furão que uma mulher para arranjar umas massas; no poder, não<br />

há quem lhes faça o ninho atrás da orelha, porque a fazer o ninho atrás da orelha quem é que lhes<br />

leva a palma?! Bom, adiante! Vão pelo que vos digo, que ainda hão-de levar uma vidinha regalada.<br />

Primeira Mulher<br />

Muito bem, minha querida Praxágora! Perfeito!<br />

Segunda Mulher<br />

Bom, tudo isto é ponto assente. Mas há um outro problema que ainda não considerámos: como é<br />

que nos havemos de lembrar de levantar o braço, se estamos habituadas a levantar a perna?<br />

Praxágora<br />

Seja como for, é preciso votar de braço levantado, com a manga arregaçada. Despachem-se!<br />

Apoiem-se nas bengalas e ponham-se a caminho.<br />

Primeira Mulher<br />

Dizes bem. Nós vamos à frente.<br />

Praxágora<br />

Vá, mexam-se, senão já sabem o que acontece lá na assembleia.<br />

Praxágora sai, juntamente com as Primeira e Segunda Mulheres, para a Pnix. As outras seguem-nas<br />

fazendo muitas tentativas para serem homens. Bléfiro sai de casa vestido de mulher à procura da<br />

sua mulher.<br />

12.2<br />

Bléfiro<br />

Que história é esta? Onde se terá metido a minha mulher? Está a ser dia e ela nada de aparecer. E<br />

eu na cama, há uma data de tempo, aflito da barriga, à procura no escuro dos sapatos e da camisa.<br />

Por mais que apalpasse, não havia meio de os encontrar. Às tantas já o cagaçal batia à porta, e de<br />

que maneira, eu agarro no xaile da minha mulher e enfio as chinelas dela nos pés.<br />

E agora onde se arranja um canto para arrear a carga, não me dizem? De noite em qualquer lado<br />

serve. Isto é que foi um azar, um homem da minha idade arranjar mulher. Uma boa carga de pau era<br />

o que eu estava a pedir! Porque uma coisa é certa: se ela saiu, para boa coisa não foi. Bem, dê lá<br />

por onde der, eu tenho de fazer. (Agacha-se.)<br />

56


Um vizinho assoma à janela em troco nu. Vem também ver se enxerga a mulher na rua. Vê Bléfiro<br />

em baixo.<br />

Homem<br />

Quem está aí? (Reconhece o vizinho.) Diz-me cá uma coisa: Que ideia foi essa?<br />

Bléfiro<br />

Fui eu que me embrulhei, antes de sair de casa, neste xaileco que a minha mulher costuma trazer.<br />

Homem<br />

A minha mulher desapareceu com o casaco que eu trazia. E não é isso que me chateia. É que levou<br />

também os sapatos. E tu estás a fazer um cordame ou quê? São horas de ir andando para a<br />

assembleia.<br />

Bléfiro<br />

Também lá hei-de ir ter, quando acabar de fazer. Deve ser alguma pêra que me está a entupir. (O<br />

vizinho fecha a janela. Bléfiro fica sozinho.) Para já é só o incómodo, mas quando voltar a comer,<br />

onde é que vou meter o resto da merda? Ó sagrada Ilitia, padroeira dos partos, não me deixes<br />

rebentar, nem morrer empachado. Que eu não acabe feito penico de comédia!<br />

Bléfiro faz menção de se levantar, quando chega Cremes, outro vizinho, já de regresso da<br />

assembleia.<br />

Cremes<br />

Ei, que estás a fazer? Não me digas que estás a cagar.<br />

Bléfiro<br />

(Que se levanta.) Eu? Estava, mas já não estou. Vou-me levantar.<br />

Cremes<br />

Então agora andas com a roupa da tua mulher?<br />

Bléfiro<br />

Foi o que consegui encontrar lá dentro. Mas afinal, de onde é que tu vens?<br />

Cremes<br />

Da assembleia.<br />

Bléfiro<br />

Já acabou?<br />

Cremes<br />

Já, e logo pela manhã, vê tu!<br />

Cremes<br />

Havia para lá gente aos montes. Olhava-se para eles, tinham todos cara de sapateiros, fazes lá ideia!<br />

Palavra, era de pasmar.<br />

Bléfiro<br />

Mas o que havia assim de tão importante?<br />

Aparece à porta o Homem vizinho também vestido de mulher. Fica a ouvir a conversa.<br />

Cremes<br />

É que decidiram pôr à discussão a salvação da cidade. Que mais havia de ser? Logo o remeloso do<br />

Neoclides, sem mais aquelas, vem de gatas por ali fora. E o povo a clamar com quanta força tinha:<br />

'Já é preciso ter topete! Vem este tipo para o povo, com conversa fiada, quando está em causa a<br />

salvação da cidade?! Um fulano que nem os próprios olhos soube pôr a salvo!' A seguir, pediu a<br />

palavra o Evéon, um espertalhão da primeira apanha, que me deixou a impressão, e a boa parte dos<br />

presentes, de vir em pelota. Mas ele estava convencido de que trazia roupa. E arrancou com um<br />

57


paleio demagógico: ‗Como estão a ver, ninguém mais do que eu precisa de meia dúzia de patacos<br />

para me tirar de apuros. Apesar disso, é da salvação da cidade e dos cidadãos que vos vou falar.‘<br />

Bléfiro<br />

Muito bem! Apoiado!<br />

Cremes<br />

Bem, depois um rapazola bem parecido, claro de pele, saltou do lugar para usar da palavra. E pôs-se<br />

a dizer que se devia confiar às mulheres o governo da cidade. Armou-se uma barafunda dos<br />

demónios, com a malta dos sapateiros a gritar: 'Bravo! Bravo!' Entre a gente do campo levantou-se<br />

um coro de murmurações.<br />

Bléfiro<br />

E tinham carradas de razão, ora essa!<br />

Cremes<br />

Pois é, mas estavam em minoria. O tipo armou um berreiro desgraçado, a passar os maiores elogios<br />

às mulheres. A ti deixou-te sem conserto.<br />

Bléfiro<br />

Cagando! Mas que é que ele disse, afinal?<br />

Cremes<br />

Logo para começar, que és um cretino.<br />

Bléfiro<br />

E tu?<br />

Cremes<br />

Guarda essa pergunta para depois. E um ladrão.<br />

Bléfiro<br />

Só eu?<br />

Cremes<br />

Mais ainda, poça! E um bufo.<br />

Bléfiro<br />

Só eu?<br />

Cremes<br />

Tu, pois, e essa cambada toda que aí está! (Aponta para o público.)<br />

Bléfiro<br />

E quem diz o contrário?<br />

Cremes<br />

Que a mulher — dizia ele — é um modelo de bom-senso, que só traz fortuna. Que não anda por aí a<br />

badalar aos quatro ventos, enquanto tu e eu, quando estamos no conselho, não fazemos outra coisa.<br />

Bléfiro<br />

Quanto a isso, verdade seja dita, não mentiu. E que é que se decidiu?<br />

Cremes<br />

Confiar-lhes a cidade. Parece que essa foi a única tentativa que ainda se não fez nesta terra.<br />

Bléfiro<br />

Mas foi mesmo decretado?<br />

Cremes<br />

58


Foi, pois, estou-te a dizer.<br />

Bléfiro<br />

E foi-lhes confiado tudo aquilo que dantes competia aos cidadãos?<br />

Cremes<br />

Sem tirar nem pôr.<br />

O vizinho volta a entrar em casa.<br />

Bléfiro<br />

Então eu não vou mais ao tribunal, vai a minha mulher?<br />

Cremes<br />

Nem sustentas mais a família: isso agora é com a tua mulher.<br />

Bléfiro<br />

E também não é mais da minha conta o sofrimento de levantar da cama logo pela manhã?<br />

Cremes<br />

Nem por sombras: isso passou a ser tudo com as mulheres. Tu ficas regalado da vida, em casa, na<br />

sorna.<br />

Bléfiro<br />

Mas há um perigo a temer para tipos da nossa idade: e se elas deitam mão às rédeas do governo, e<br />

passam a obrigar-nos, à força.<br />

Cremes<br />

A quê?<br />

Bléfiro<br />

A fodê-las.<br />

Cremes<br />

E se já não tivermos forças para tanto?<br />

Bléfiro<br />

Não nos dão de comer.<br />

Cremes<br />

Pois então arranja-te como puderes.<br />

Bléfiro<br />

Não há nada pior que ser obrigado.<br />

Cremes<br />

Mas se a cidade concordar com a ideia, não há outra coisa a fazer. Quanto ao mais, como dizia um<br />

ditado dos nossos avós: ‗Enquanto houver língua e dedo, da mulher não tenho medo.' Oxalá assim<br />

seja, por Palas soberana e pelos deuses! Bom, vou andando. Felicidades!<br />

Bléfiro<br />

Igualmente, Cremes!<br />

Cremes e Bléfiro entram em casa. Aparece um grupo de mulheres, às escondidas, ainda em trajo<br />

masculino.<br />

12.3<br />

Coro de Mulheres<br />

Rita Loureiro - Em frente, vamos!<br />

59


Rita Durão - Não virá por ai algum fulano atrás de nós?<br />

Marina -Vira a cabeça, dá uma olhadela, põe-te a pau — safardanas não faltam! — não vá que<br />

alguém, à socapa, esteja a espiar as nossas atitudes.<br />

Sofia - Olha, lá vem a nossa chefe, de regresso da assembleia.<br />

Rita Loureiro - Vamos, despachem-se! Já chega de barbas penduradas no queixo.<br />

Aparece Praxágora com duas mulheres que a acompanham, ainda vestidas de homens.<br />

Praxágora<br />

Ora pronto, minhas senhoras, assunto arrumado. E em boa hora, porque tudo se resolveu como<br />

tínhamos previsto. Não há tempo a perder. (A todas.) Desenvencilhem-se das bengalas. Por minha<br />

parte, vou-me esgueirar lá para dentro, antes que o meu marido me veja.<br />

Coro de Mulheres<br />

Teresa - Pronto.<br />

Luísa - Mulher mais decidida que tu, nunca eu encontrei em dias da minha vida!<br />

No momento em que Praxágora faz menção de entrar em casa, sai Bléfiro vestido de mulher. Vão-se<br />

embora as outras mulheres pé ante pé.<br />

Bléfiro<br />

Ei, Praxágora, de onde vens?<br />

Praxágora<br />

O que é que tens com isso, meu amigo?<br />

Bléfiro<br />

O que é que tenho com isso?! Essa não está má!<br />

Praxágora<br />

Não vais dizer que venho de casa de algum amante...<br />

Bléfiro<br />

De um só?... Decerto que não!<br />

Praxágora<br />

Pois bem, podes tirar a prova, se quiseres.<br />

Bléfiro<br />

Como?<br />

Praxágora<br />

Ora vê lá se a minha cabeça cheira a perfume.<br />

Bléfiro<br />

Homessa! Será que, sem perfume, uma mulher não faz amor?<br />

Praxágora<br />

Não faz, não, meu filho. Eu, pelo menos, não faço.<br />

Bléfiro<br />

Então porque é que te raspaste de madrugada, à socapa, e com o meu casaco ainda por cima?<br />

Praxágora<br />

Durante a noite, uma mulher, uma amiga minha, mandou-me chamar, porque estava de parto.<br />

Bléfiro<br />

E depois?! Não me podias avisar antes de sair?<br />

Praxágora<br />

60


Sem me ralar com uma amiga de parto, numa hora daquelas, meu querido marido? E eu sou<br />

franzina, tenho uma saúde delicada. Foi por isso, para ir agasalhada, que me embrulhei no teu<br />

casaco. A ti, meu velho, deixei-te no quente, debaixo dos cobertores.<br />

Bléfiro<br />

E os sapatos, levaste-os para quê? E a bengala? Já pensaste bem que perdeste uma rasa de trigo,<br />

que era o que eu havia de receber na assembleia?<br />

Praxágora<br />

Deixa pra lá! Foi um rapaz que lhe nasceu!<br />

Bléfiro<br />

A quem? À assembleia?<br />

Praxágora<br />

Olha o disparate! À amiga que eu fui assistir. E a assembleia, fez-se?<br />

Bléfiro<br />

Fez, pois. E claro, não sabes o que se decidiu.<br />

Praxágora<br />

Não, não faço a menor ideia.<br />

Bléfiro<br />

Pois bem, agora vais ficar nas tuas sete quintas. É a vocês — é o que se diz por aí — que foi<br />

confiada a cidade.<br />

Praxágora<br />

Para quê? Para tecermos?<br />

Bléfiro<br />

Nada disso! Para governarem.<br />

Praxágora<br />

Governarmos o quê?<br />

Bléfiro<br />

Todos os assuntos da cidade. Todinhos!<br />

Praxágora<br />

Ah meu Deus! Que feliz esta cidade vai ser daqui por diante!<br />

Bléfiro<br />

Ora! Porquê?<br />

Praxágora<br />

Razões não faltam! A partir de agora, não vai ser permitido a essa cambada que para aí anda fazer<br />

dela gato-sapato, depor em tribunal, andar com denúncias, isso acabou.<br />

Bléfiro<br />

Oh não, por quem és, não faças isso! É a minha vida que estás a arruinar.<br />

Cremes, outro vizinho, vem a chegar a casa. Pára a ouvir.<br />

Cremes<br />

Diacho de homem, deixa falar a tua mulher!<br />

Praxágora<br />

E acabou-se a roubalheira, a inveja dos vizinhos, as andanças em pêlo por aí, na pedincha, seja o<br />

tipo quem for.<br />

61


Cremes<br />

Caramba! Isso é que era um achado, se fosse verdade!<br />

Praxágora<br />

Deixa-me explicar, e estou certa de que te vais passar para o meu lado. É preciso que todos<br />

entreguem os seus bens para um fundo comum, para onde cada um contribua com a sua parte e de<br />

onde retire a subsistência. Não mais há-de haver ricos e pobres; nem uns a cultivarem propriedades<br />

enormes, e outros sem terem onde cair mortos; nem uns a terem ao serviço batalhões de escravos, e<br />

outros nem sequer um criado. O que eu quero estabelecer é um padrão único de vida em comum,<br />

igual para todos.<br />

Bléfiro<br />

Comum a todos... como?<br />

Praxágora<br />

Levas o tempo a interromper-me. Ora dizia eu que a terra, antes de mais, vou torná-la um bem<br />

comum a todos; e também o dinheiro; e tudo que é propriedade privada. É deste fundo comunitário<br />

que nós, as mulheres, vos vamos sustentar. É a nós que compete administrá-lo com economia e<br />

bom-senso.<br />

Bléfiro<br />

E quem não for proprietário de terras, mas possuir dinheiro e ouro, bens que se não vêem?<br />

Praxágora<br />

Tem de os pôr no monte.<br />

Bléfiro<br />

E se não puser?<br />

Praxágora<br />

Incorre em perjúrio.<br />

Bléfiro<br />

Ora, ora! Já foi assim que eles os ganharam!<br />

Praxágora<br />

Mas seja como for, também não lhes servem para nada.<br />

Bléfiro<br />

Como assim?<br />

Praxágora<br />

Por necessidade, ninguém mais precisa de se mexer. Toda a gente vai ter tudo: pão, peixe, bolos,<br />

casacos, vinho, coroas, grão-de-bico. Qual a vantagem de se não entregar os bens? Ora diz lá, se<br />

fores capaz!<br />

Bléfiro<br />

O certo é que, hoje em dia, são aqueles a quem não falta nada, os que mais roubam.<br />

Cremes<br />

Isso era dantes, meu amigo, quando vivíamos no tempo da outra senhora! Mas agora — com a tal<br />

história do fundo comum —, que é que se ganha em não entregar?<br />

Bléfiro<br />

Se um tipo vê uma moça e fica pelo beicinho no ar por ir para a cama com ela, pode levá-la de<br />

empréstimo; depois dorme com a garota e fica tudo por conta do fundo comum.<br />

Praxágora<br />

Nada disso! Pode até dormir com ela de borla! Porque eu vou pô-las em comum para todos os<br />

62


homens; quem quiser pode ir para a cama com elas e fazer-lhes um filho.<br />

Bléfiro<br />

E se vão todos atrás dos borrachinhos, mortos por fazerem amor com eles? Como há-de ser?<br />

Praxágora<br />

As feionas e narigudas põem-se ao lado das beldades. E, quem quiser uma lasca, tem de se haver<br />

primeiro com um camafeu.<br />

Bléfiro<br />

E nós, os velhos? Como é? Se formos para a cama primeiro com as feias, será que o coiso não nos<br />

deixa ficar mal, antes de chegarmos a essa fase de que estás a falar?<br />

Praxágora<br />

Elas não vão fazer questão. Fica descansado.<br />

Bléfiro<br />

Questão, porquê?<br />

Praxágora<br />

Por não dormires com elas. Nisso estás cheio de sorte.<br />

Bléfiro<br />

Que a coisa bate certo do vosso lado isso bate. Nem um buraquinho fica vazio. Mas os homens, que<br />

vai ser deles? Elas vão fugir dos jarretas — está-se mesmo a ver! —, para andarem atrás dos<br />

bonitões.<br />

Praxágora<br />

Qual quê! Os feios vão vigiar os galãs, quando eles se levantarem da mesa, e estar de olho neles<br />

nos lugares públicos. Porque é proibido às mulheres dormirem com os pinocas e desempenados,<br />

antes de irem para a cama com os trambolhos e com os tacos-de-pia.<br />

Bléfiro<br />

Agora é que a nariganga do Lisícrates vai fazer um vistaço!<br />

Praxágora<br />

Ora nem mais! E a ideia é democrática. Ainda muito nos havemos de rir desses fidalgotes, cheios de<br />

pergaminhos, quando um borra-botas qualquer lhes chapar com esta na cara: 'Vai aguentando, até<br />

eu chegar ao fim. Depois passo-te a pasta.‘<br />

Bléfiro<br />

Mas como é que, num sistema de vida desses, cada um pode reconhecer os próprios filhos?<br />

Praxágora<br />

E que vantagem há nisso? As crianças vão considerar como pais todos os mais velhos, conforme a<br />

sua idade.<br />

Bléfiro<br />

Nada mal, isso que dizes! Mas imagina que o Epicuro vinha ao meu encontro, ou o Leucólofo, e me<br />

chamava papá… Essa era dura de roer!<br />

Cremes<br />

Mais duro era ainda se...<br />

Bléfiro<br />

Se quê?<br />

Cremes<br />

Se o Aristilo te pespegava uma beijoca e te chamava paizinho.<br />

63


Bléfiro<br />

Era só o que faltava! Ele ia ver como elas lhe mordiam!<br />

Praxágora<br />

O que vale é que o tal fulano nasceu antes do decreto; portanto, não há perigo de que te pespegue<br />

uma beijoca.<br />

Bléfiro<br />

Senão era o fim da macacada! Lá isso era! E a terra, quem a cultiva?<br />

Praxágora<br />

Os escravos. Tu só tens de te preocupar, lá para o meio da tarde, em ires, de ponto em branco, para<br />

a mesa.<br />

Bléfiro<br />

Só mais uma pergunta: e se um tipo perde uma demanda em tribunal? Onde arranja dinheiro para<br />

pagar as despesas? No fundo comum? Isso não é justo.<br />

Praxágora<br />

Para já, não vai haver processos.<br />

Bléfiro<br />

Essa é uma ideia que te vai sair cara.<br />

Cremes<br />

Também sou da mesma opinião.<br />

Praxágora<br />

E porque havia de haver processos, meu caro amigo?<br />

Bléfiro<br />

Ora, razões não faltam! Antes de mais, por esta com certeza: por um devedor negar uma dívida.<br />

Praxágora<br />

Onde é que o credor vai arranjar que emprestar, se tudo é propriedade comum? Um ladrão refinado<br />

é o que é esse credor, está-se mesmo a ver!<br />

Cremes<br />

É isso mesmo: tens carradas de razão!<br />

Bléfiro<br />

E gatunos, vão acabar?<br />

Praxágora<br />

Como é que se pode roubar o que também nos pertence? Isso era dantes! Porque agora toda a<br />

gente vai ter de que viver. Se alguém te quiser roubar o casaco, tu até lho dás de mão beijada. Para<br />

quê resistir? Vai-se ao fundo comum e tira-se outro, melhor ainda que o primeiro.<br />

Bléfiro<br />

E os homens, não jogam mais aos dados?<br />

Praxágora<br />

Jogar para ganhar o quê?<br />

Bléfiro<br />

Qual é o regime que tencionas estabelecer?<br />

Praxágora<br />

Uma vida em comum, para todos. Vou fazer da cidade uma habitação única. Paredes, vão todas<br />

abaixo, para podermos passar da casa de uns para a dos outros.<br />

64


Bléfiro<br />

E o almoço, onde vai ser servido?<br />

Praxágora<br />

Tribunais e pórticos, vou transformá-los todos em salões de convívio.<br />

Bléfiro<br />

E a tribuna, para que vai servir?<br />

Praxágora<br />

Para pousar as garrafas e as canecas, e para pôr as crianças a cantarem os valentes na guerra, de<br />

modo que os cobardes se envergonhem e percam o apetite.<br />

Bléfiro<br />

Fantástico, caramba!<br />

Praxágora<br />

Havemos de proporcionar a todos tudo que lhes for necessário, com fartura. As mulheres, nas ruas,<br />

vão abordar os que vêm da comezaina, para lhes dizer: 'Vem a minha casa. Temos lá uma moça que<br />

é um encanto.' 'E em minha casa', salta outra lá do andar de cima, 'há uma que é uma perfeição. E<br />

que pele! De uma brancura! Só que, antes dela, vais ter de dormir comigo primeiro.‘ Mas nessa<br />

altura, na peugada dos janotas, os velhos jarretas vão-lhes cantar esta: ‗Onde pensas que vais? Diz<br />

o decreto que são os macacões e os estafermos quem faz amor primeiro.‘ E vocês têm mas é de se<br />

agarrar aos bagos e irem fazendo festinhas à porta. Que acham deste projecto? Ora digam lá! Estão<br />

ambos de acordo?<br />

Bléfiro e Cremes<br />

Absolutamente!<br />

Começa a ouvir-se a banda ao longe.<br />

Praxágora<br />

Bom, tenho de ir andando para a ágora, para receber as coisas à medida que forem dando entrada.<br />

É preciso organizar as refeições colectivas, de maneira que possam ter o vosso primeiro banquete<br />

ainda hoje.<br />

Bléfiro<br />

Já vamos ter um banquete?<br />

Praxágora<br />

É o que vos digo. Depois, as putas vão fechar a loja, por minha ordem. E não há excepções.<br />

Bléfiro<br />

Porquê?<br />

Cremes<br />

Está-se mesmo a ver. Para as outras apanharem a fina-flor da rapaziada.<br />

Praxágora<br />

As escravas a mesma coisa. Lá porque se aperaltam todas, hão-de rapinar os prazeres às mulheres<br />

livres? Era só o que faltava! Que se arranjem com os escravos!<br />

Bléfiro<br />

Sabes que mais? Vou mas é contigo, colado às tuas saias, para todos olharem para mim e dizerem:<br />

'Aquele é o marido da nossa chefe. Ponham ali os vossos olhos.‘<br />

Praxágora e Bléfiro entram em casa.<br />

Cremes<br />

65


Pois eu vou dar uma arrumação nas minhas coisas e fazer um inventário do que hei-de levar para a<br />

ágora. (Entra em casa e começa a tirar as suas coisas para a rua.) Anda, minha peneirinha, vem cá<br />

para fora, coisinha mais bonita de tudo o que possuo. Avança, como uma canéfora enfarinhada,<br />

tantos foram os sacos de farinha que me peneiraste. E a cadeira, onde é que está? Panelinha, chega<br />

aqui! Caramba, que enfarruscada tu estás! Põe-te ao lado dela, vem cá, dama de honor, caneca,<br />

menina, põe aí. O mel, as caçarolas e o resto da tralha, vamos lá.<br />

A banda deixa de tocar. Passa um homem na rua. Talvez vá ao ginásio.<br />

Homem 3<br />

(Para o público.) Eu, entregar o que me pertence? Só se fosse tolo ou me tivesse passado alguma<br />

pela cabeça! Foda-se, isso nunca! Primeiro vou pesar bem a situação e depois logo se vê. Suei<br />

muito, fiz muitas economias, e não é assim do pé para a mão que vou jogar tudo fora, armado em<br />

parvo! Antes tenho de saber por miúdo como é que as coisas se passam. (Para Cremes que começa<br />

a trazer as coisas para fora.) Eh, amigo, que querem dizer esses tarecos todos que aí tens? Andas<br />

em mudanças ou vais pô-los no prego?<br />

Cremes<br />

Nem uma coisa nem outra.<br />

Homem 3<br />

Então porque é que os puseste assim, em fila? Não me digam que os vão levar em procissão ao<br />

leiloeiro.<br />

Cremes<br />

Não, não é isso. Vou levá-los para a ágora e entregá-los ao Estado, conforme o que ficou decretado.<br />

Homem 3<br />

Vais entregá-los?<br />

Cremes<br />

Claro!<br />

Homem 3<br />

És mesmo burro chapado, valha-nos Deus!<br />

Cremes<br />

Como assim?<br />

Homem 3<br />

Como assim? Ainda perguntas?!<br />

Cremes<br />

E então? Não tenho de obedecer à lei?<br />

Homem 3<br />

Que lei, seu pateta alegre?<br />

Cremes<br />

À lei em vigor.<br />

Homem 3<br />

Em vigor? Isso é que tu és um asno, hã!<br />

Cremes<br />

Asno, eu?<br />

Homem 3<br />

E não és? O maior paspalhão deste mundo e arredores!<br />

66


Cremes<br />

Só porque cumpro o que está estabelecido?<br />

Homem 3<br />

E o que está estabelecido é para ser cumprido por quem tenha dois dedos de testa?<br />

Cremes<br />

Por esse mais que por nenhum outro!<br />

Homem 3<br />

Por pategos, isso sim!<br />

Cremes<br />

E tu, não estás disposto a entregar as tuas coisas?<br />

Homem 3<br />

Eu ponho-me na retranca, pelo menos até que a maioria decida.<br />

Cremes<br />

E que mais poderão decidir senão prepararem-se para entregar o que lhes pertence?<br />

Homem 3<br />

É ver para crer.<br />

Cremes<br />

Pelo menos é o que se diz aí pelas ruas.<br />

Homem 3<br />

Pois, dizer, dizem!<br />

Cremes<br />

Afirmam mesmo que vão carregar com tudo às costas.<br />

Homem 3<br />

Pois! Afirmar, afirmam!<br />

Cremes<br />

Pões-me os nervos em franja, a desconfiares de tudo.<br />

Homem 3<br />

Pois! Desconfiar, desconfiam!<br />

Cremes<br />

Ora um raio que te estoire!<br />

Homem 3<br />

Ah! Estoirar, eles estoiram! Ou tu pensas que um tipo no seu perfeito juízo vai entregar o que tem?<br />

Receber está bem.<br />

Cremes<br />

Sabes que mais, meu caro? Deixa-me mas é tratar da minha vida, que ainda tenho de amarrar esta<br />

tralha toda. Onde é que estão as correias?<br />

Homem 3<br />

Quer dizer que a vais mesmo levar?<br />

Cremes<br />

Vou pois, já disse!<br />

Homem 3<br />

67


Isto é que é descoco, hem! Sem antes veres o que é que os outros fazem... Essa malta, conheço-a<br />

eu de ginjeira! Estão sempre no ar para usarem o voto; mas aprova-se uma lei e ninguém cumpre.<br />

Cremes<br />

Ora um raio que te parta!<br />

Homem 3<br />

E se um raio me partir, como é?<br />

Cremes<br />

Um alívio, é o que é!<br />

Homem 3<br />

Mas tu estás mesmo decidido a entregar?<br />

Cremes<br />

Estou, pois! E já lá vejo os meus vizinhos a fazerem o mesmo.<br />

Homem 3<br />

(À parte.) Deitar fora o que lhe pertence, é o que este fulano vai fazer.<br />

Cremes<br />

Vê lá como falas!<br />

Homem 3<br />

Como falo, o quê? Como se se não visse todos os dias saírem cá para fora decretos semelhantes.<br />

Cremes<br />

Não tem nada a ver uma coisa com a outra, meu caro amigo. Dantes eramos nós a governar, agora<br />

são as mulheres.<br />

Homem 3<br />

Deus me livre delas, não vá que ainda me caguem em cima!<br />

Cremes<br />

Buzina à vontade, que eu estou-me nas tintas!<br />

Volta a ouvir-se a banda off. Entra uma Mulher-Arauto.<br />

Mulher-Arauto<br />

(Para Cremes e o outro Homem.) Cidadãos, apressem-se, todos — agora é assim! —, vão ter com a<br />

nossa chefe, para tirarem à sorte o lugar onde cada um vai jantar. As mesas estão prontas, cheias de<br />

tudo quanto é bom. Sobre os leitos há pilhas de cobertores e mantas. Está-se a misturar o vinho nas<br />

taças, as vendedeiras de perfumes já fazem fila. As postas de peixe estão a grelhar, as lebres estão<br />

no espeto, os bolos no forno. Estão-se a entrelaçar as coroas, e a fritar umas guloseimas. As<br />

mocinhas mais novas encarregam-se do puré de legumes. O moço do pão já está no seu posto.<br />

Vamos lá, toca a dar às queixadas! (Sai.)<br />

Homem 3<br />

Se é assim, também vou. Que fico eu aqui plantado a fazer, se são essas as ordens do governo?<br />

Cremes<br />

Vais aonde, se ainda não entregaste o que te pertence?<br />

Homem 3<br />

Para o jantar.<br />

Cremes<br />

Só se tiveres levado primeiro a tua parte. (Volta ao seu trabalho de levar coisas de casa.) Toca a<br />

alombar com esta cangalhada toda.<br />

68


Homem 3<br />

(Prestável.) Deixa estar que eu ajudo.<br />

Cremes<br />

(Que o afasta.) Nem pensar! Receio bem que, na frente da chefe, ainda te armes em dono das<br />

minhas coisas.<br />

Sai o homem, de rabo entre as pernas. Cremes continua a carregar. Entra a banda de música com<br />

cortejo de homens levando coisas. Cremes segue-os. Aparecem mulheres às várias janelas ouvindo<br />

a música.<br />

12. 4<br />

Primeira Velha<br />

(Debruçada da janela.) Então os homens não aparecem? Já são mais que horas! E eu aqui à espera,<br />

de braços cruzados, coberta de pó de arroz e toda emperiquitada. (Prepara-se para cantar.) A ver se<br />

pesco um desses fulanos que aí passam… Musas, venham cá, poisem nos meus lábios, inspirem-me<br />

uma dessas cançonetas.<br />

Moça<br />

(Que assoma a outra janela.) Desta vez passaste-me a perna, sua carcaça! Já pendurada na janela,<br />

hã!... Julgavas tu que, na minha ausência, eram favas contadas. Que caçavas algum com a<br />

cantiguinha! Queres música? Então eu também tas canto!<br />

Primeira Velha<br />

(Fazendo um gesto obsceno.) Olha, vai-te lixar! Põe-te na alheta! (Canta.)<br />

Quem quiser saber o que é bom<br />

venha comigo para a reinação.<br />

Essa não é arte de jovens criaturas,<br />

mas vocação de mulheres maduras.<br />

Ninguém, como eu, saberia amar,<br />

o homem a quem me entregar.<br />

Moça<br />

Não invejes o viço das moças.<br />

A paixão está guardada<br />

no veludo das coxas,<br />

floresce na doçura do peito.<br />

Mas tu, velha carcaça,<br />

Sem pêlo e bem caiada<br />

só à morte dás proveito.<br />

Aparece à janela Rita Durão a ver o que se passa.<br />

Primeira Velha<br />

Que a coisa te rebente,<br />

caia a cama no chão,<br />

quando te entregas ao calor da paixão.<br />

E. no teu leito, abraçada contigo,<br />

esteja a serpente,<br />

quando julgas enlaçar o teu amigo.<br />

Moça<br />

(À parte recitado.)<br />

Infeliz, que sorte será a minha?<br />

O meu amor não vem!...<br />

Pobre de mim, que aqui fico sozinha!<br />

(Cantando de novo.)<br />

69


Os meus prazeres, matá-los,<br />

tu? Não pode ser!<br />

Os verdes anos, arrasá-los e roubá-los,<br />

tu? Não, não vai acontecer.<br />

Primeira Velha<br />

Canta à tua vontade! Podes mesmo pôr-te à coca que nem um gato. Uma coisa é certa: ninguém vai<br />

ter contigo, antes de passar primeiro cá por casa.<br />

Moça<br />

Só se for para o funeral! Sua velha caquéctica!<br />

Primeira Velha<br />

Nem por sombras! O que se pode dizer a uma mulher madura que seja novidade? Não é decerto a<br />

minha velhice que te vai fazer mossa!<br />

Moça<br />

O quê então? O rouge e o pó-de-arroz, se calhar!<br />

Primeira Velha<br />

Mas porque é que falas comigo?<br />

Moça<br />

E tu, porque te penduras da janela?<br />

Primeira Velha<br />

Espera para veres. Porque não tarda nada que ele me venha bater à porta. Olha, ai o tens!<br />

Moça<br />

Contigo não quer ele conversa, seu grande estupor!<br />

Primeira Velha<br />

Ai não que não quer!<br />

Moça<br />

Vais ver como é, seu pau de virar tripas! (Desaparece no interior da casa.)<br />

Moço<br />

(Que aparece na rua a cantar.)<br />

Ah! Se eu pudesse dormir com a minha amada,<br />

Sem ter de dormir com uma qualquer<br />

Pencuda, escalavrada!<br />

(Falado.)<br />

Um homem livre, o que o fazem sofrer!<br />

Rueff aparece à janela a ver o rapaz.<br />

Primeira Velha<br />

Dormir, vais dormir, doa a quem doer!<br />

Isto agora não é tempo de Carixenas!<br />

Está na letra da lei, é o que tens de fazer,<br />

se ainda há democracia em Atenas!<br />

(À parte, recitado.)<br />

Vou mas é espreitar o que o fulano vai fazer.<br />

Recolhe-se para dentro de casa.<br />

Moça<br />

(Que reaparece à janela. Canta.)<br />

Vem cá, vem cá, meu querido.<br />

70


Chega aqui, fica comigo,<br />

fica, amor, a noite inteira.<br />

Terrível me revolve a paixão<br />

pelos anéis da tua cabeleira.<br />

Desenfreado, o desejo no meu peito<br />

entrou, para dominar meu coração.<br />

Sê-me propício, Amor, dá permissão,<br />

deixa que ele venha para o meu leito.<br />

Moço<br />

Vem cá, vem cá, meu amor.<br />

(Rueff e Rita Durão saem das janelas, desiludidas.)<br />

Corre. Abre-me a porta, por favor.<br />

Se não a abres, caio, exausto, no chão.<br />

Estou ansioso por pousar no teu peito<br />

e debater-me nos ardores da paixão.<br />

És tu a causa de todo o meu sofrer.<br />

Ó minha jóia, em ouro cinzelada,<br />

rebento de Cipris, das Musas abelha,<br />

ai-jesus das Graças, da Paixão centelha,<br />

abre-me a porta, prende-me num abraço.<br />

És tu a causa de todo o meu sofrer.<br />

A Banda pára de tocar off.<br />

Primeira Velha<br />

(Que aparece à porta, em atitude de provocação amorosa.) Eh, rapaz, bateste? Vens à minha<br />

procura?<br />

Moço<br />

Era só o que faltava!<br />

Primeira Velha<br />

Atiraste-te à porta com uma força!<br />

Moço<br />

Diabos me levem, palavra que não!<br />

Primeira Velha<br />

De que andas tu à procura?<br />

Moço<br />

Não é o Fod... erico, não, de quem tu, se calhar, estás à espera.<br />

Primeira Velha<br />

Ah caramba, mas és tu, quer queiras quer não... (Agarra-o pelo braço.)<br />

Moço<br />

Para já estamos a despachar as de menos de vinte.<br />

Primeira Velha<br />

Isso era no tempo da outra senhora, meu menino. Agora é a nós que a lei manda avançar primeiro.<br />

Moço<br />

Isso fica ao gosto de cada um… (Já impaciente.) Não entendo nada do que queres dizer. Só sei que<br />

é a esta porta aqui que tenho de bater. (Faz menção de se dirigir à porta da rapariga.)<br />

Primeira Velha<br />

(Interpondo-se.) Só depois de teres batido à minha primeiro.<br />

71


Moço<br />

Por enquanto não é de uma peneira que ando à procura.<br />

Primeira Velha<br />

Eu sei que tu me amas. Só que estás pasmado de me encontrares cá fora. Vá, dá cá essa boquinha.<br />

Moço<br />

O estafermo da velha! Não estás boa do toutiço!<br />

Primeira Velha<br />

Ora lérias! Vou mas é arrebanhar-te para vale-de-lençois. Tens de vir e tens mesmo. Que eu pélo-me<br />

por fazer amor com moços da tua idade.<br />

Moço<br />

Pois a mim, gente da tua idade dá-me vómitos. E não vou na cantiga, nem que te mates. (A Primeira<br />

Velha tira da carteira umas fotocópias. Moço finge desconhecê-lo.) Que raio de coisa é essa?<br />

Primeira Velha<br />

Um decreto, segundo o qual tens de vir para minha casa.<br />

Moço<br />

Ora lê lá, para eu saber do que se trata.<br />

Primeira Velha<br />

Está bem, eu leio: ―Eis o que foi decretado pelas mulheres: se um rapaz novo pretende uma rapariga,<br />

não pode possui-la sem se ter primeiro...atracado a uma velha. Mas se não quiser espetá-la primeiro,<br />

e em vez disso continuar a pretender a rapariga, é permitido às mulheres mais velhas, sem qualquer<br />

sanção, arrastá-lo pelo... cacete.‖<br />

Moço<br />

Ai que sarilho! Será que ainda vou virar hoje Zé-do-Espeto?<br />

Primeira Velha<br />

Não há outro remédio. As leis são para se cumprir.<br />

Moço<br />

E uma escusa sob juramento, não pode ser?<br />

Primeira Velha<br />

Nada de golpes baixos!<br />

Moço<br />

Que é que hei-de fazer então?<br />

Primeira Velha<br />

Vires comigo aqui, para minha casa.<br />

Moço<br />

Não tenho mesmo outra saída?<br />

Primeira Velha<br />

Não, é fatal como o destino.<br />

A rapariga sai de casa.<br />

Moça<br />

(Dirigindo-se à Velha.) Para onde levas esse rapaz?<br />

Aparece à janela Carolina.<br />

72


Primeira Velha<br />

Para minha casa.<br />

Moça<br />

Não estás boa do miolo. Ele não tem idade para dormir contigo. Moço como é! Mais pareces mãe<br />

dele que mulher! Enchem a terra de Édipos se vão para a frente com uma lei dessas.<br />

Primeira Velha<br />

Ah, seu grande estupor! O que te faz falar é a dor de cotovelo!<br />

A Velha entra em casa mas fica a espreitar. Rita Durão, Rueff e Carolina saem das janelas.<br />

Moço<br />

Co‘a breca, livraste-me de boa! Ah meu amor, salvaste-me das garras dessa velha. Como<br />

recompensa do favor que me fizeste, faço questão de te retribuir, esta noite, com língua de palmo.<br />

Prepara-se para seguir a rapariga, quando surge a Segunda Velha de outra porta.<br />

Segunda Velha<br />

(À rapariga) Eh tu, onde é que levas o moço? É assim que a lei manda? É comigo — é o que lá diz,<br />

preto no branco —, que ele tem de dormir primeiro.<br />

Moço<br />

Ai que desgraça a minha! Como é que me cais aqui do céu aos trambolhões, peste maldita?! Esta<br />

então é uma praga pior ainda que a anterior.<br />

Segunda Velha<br />

(Que procura arrastá-lo.) Vamos, anda cá!<br />

Moço<br />

(À rapariga, suplicante.) Não deixes que ela me leve de rastos, por tudo te peço.<br />

Segunda Velha<br />

Não sou eu quem te leva de rastos, é a lei. Vem daí, coisinha fofa, toca lá para dentro. E bico calado.<br />

Moço<br />

Vai tu andando. Deixa-me ir, antes de mais nada, à casa de banho, a ver se tomo alento. Se não,<br />

ainda faço, aqui mesmo, uma valente borrada.<br />

Segunda Velha<br />

Aguenta-te e toca a andar. Fazes depois lá dentro.<br />

Moço<br />

Receio bem é ter de fazer mais do que aquilo que quero...<br />

A Segunda Velha procura arrastá-lo para casa, quando aparece uma terceira rival vinda de uma rua.<br />

Terceira Velha<br />

Eh tu, onde é que vais com essa velha?<br />

Moço<br />

(Sem ter ainda atentado nela.) Não vou, levam-me de rastos. Bem, sejas tu quem fores, que os céus<br />

te cubram de bênçãos, que me safaste de uma boa alhada! (Repara na recém-chegada.) Ó Hércules!<br />

Ó Pã! Ó Coribantes! Ó Dioscuros! Aqui está outra peste ainda pior que as anteriores. Mas afinal que<br />

raio de criatura é esta, um macaco coberto de pó-de-arroz, ou uma carcaça?<br />

Terceira Velha<br />

(Que o arrasta pelo braço.) Deixa-te de gracinhas! Vamos, por aqui!<br />

Segunda Velha<br />

73


(Que o puxa pelo outro braço.) Qual quê? Por aqui é que é!<br />

Terceira Velha<br />

Largar-te é que não te largo! Isso nunca!<br />

Segunda Velha<br />

Nem eu! Querias, hã!<br />

Moço<br />

Vocês vão-me fazer em pedaços!<br />

Segunda Velha<br />

É comigo que tu tens de vir, segundo a lei.<br />

Terceira Velha<br />

Não é não, se aparecer uma velha ainda mais feia.<br />

Moço<br />

(Resignado.) Bem, qual é das duas a que eu tenho de foder primeiro?<br />

Terceira Velha<br />

(Que o agarra com violência.) Ainda perguntas? Tens de vir aqui.<br />

Moço<br />

Só se esta me largar.<br />

Segunda Velha<br />

(Que puxa, por sua vez, com toda a força.) Não, vens mas é para aqui, para minha casa.<br />

Moço<br />

Se esta me largar.<br />

Terceira Velha<br />

Mas eu não largo, dê lá por onde der!<br />

Segunda Velha<br />

Nem eu.<br />

Moço<br />

Como é que hei-de manobrar as duas?<br />

Terceira Velha<br />

É fácil. (Arrasta-o de novo.)<br />

Moço<br />

Não, em nome dos santos! Antes uma peste só que duas!<br />

Terceira Velha<br />

C‘os diabos, quer queiras, quer não...<br />

Moço<br />

Que desgraça a minha! É preciso ter azar!<br />

É arrastado pelas duas velhas. A Primeira sai da porta em que estava e também quer entrar mas e a<br />

moça aparece e mete-se à frente e fecha-lhe a porta na cara. Passa a banda de música outra vez.<br />

Vem uma escrava de Praxágora, já embriagada a dançar sozinha. Várias mulheres aparecem à<br />

janela (Rita Durão, Rueff e Carolina).<br />

Escrava<br />

Ó povo feliz, terra afortunada, e minha senhora também ela uma felizarda! E todas vocês, aqui<br />

74


paradas à nossa porta, todos os nossos vizinhos e a gente cá do bairro, e eu também, a criada, com<br />

o cabelinho a cheirar que é um regalo, a perfume... e do bom! (A uma serva imaginária.) Serve o<br />

vinho sem mistura. (Às Mulheres.) Mas, ó mulheres, o patrão...o marido da minha senhora, onde é<br />

que ele está?<br />

Coro de Mulheres<br />

Rueff - Espera aí.<br />

Rita Durão.- Vais ver que já o encontras.<br />

Bléfiro sai de casa aperaltado.<br />

Escrava<br />

Olha, lá vem ele para o jantar. (A Bléfiro, oferecendo-se.) Ah patrão, que sorte, hem! Seu felizardo!<br />

Bléfiro<br />

Quem? Eu?<br />

Escrava<br />

Tu, pois, quem havia de ser! Mais que ninguém. (Bléfiro foge-lhe.) Onde vais? Onde vais?<br />

Bléfiro<br />

Vou jantar.<br />

Escrava<br />

Sobrou vinho de Quios e petiscos não faltam. (Aos espectadores.) E os espectadores que estiverem<br />

do nosso lado, há de tudo para eles também.<br />

Bléfiro<br />

Sê generosa, convida velhos, rapazes, meninos. Porque o jantar está pronto e dá para todos, sem<br />

excepções, desde que cada um desande para sua casa.<br />

Escrava<br />

Ora se tu, em vez de perderes tempo, te pusesses a mexer e levasses as moças contigo!<br />

(Canta.)<br />

Dou-te ostras e filetes,<br />

raia, congro,e bom soufflé<br />

miolos com silfio e queijo<br />

melros, pombas e borrachos.<br />

(A Bléfiro) E tu, vamos, bate-me esse pé, à moda de Creta.<br />

Bléfiro<br />

(Que começa a dançar.) É o que estou a fazer.<br />

(Canta.)<br />

Dá-me galos, dá-me lebre,<br />

Dá-me tordos e pipis<br />

E dá-me bolinhos<br />

Demolhados em vinho<br />

E cheinhos de mel.!<br />

Escrava<br />

(Apontando as mulheres à janela.) E essas mulheres aí, de barriguinha a dar horas, trata de as pôr a<br />

mexer, em ritmo de dança. (Mulheres fecham as janelas.) O serviço está prestes a começar: ostras,<br />

filetes, raia, congro, soufflé de miolos temperado com silfio e queijo, tordos com molho de mel,<br />

melros, pombas, borrachos, galos, alvéolas no churrasco, pombos bravos, lebre, e uns bolinhos, em<br />

forma de asa, com calda de vinho. E tu, corre, voa, vai buscar um prato. Depois mexe-te, arranja um<br />

purezinho … se não quiseres ficar sem jantar.<br />

Bléfiro<br />

(Canta e dança.)<br />

75


Ah! Se eu dormisse com a minha amada,<br />

E não fosse dormir com uma pencuda e escalavrada!<br />

Passa a Mulher Arauto com uma pilha de louça suja. As mulheres que entraram com o rapaz<br />

aparecem todas ao mesmo tempo e cantam. A Mulher-Arauto assusta-se e deixa cair tudo ao chão.<br />

Mulheres<br />

(Aparecendo à porta Luísa Cruz, Márcia, Teresa Madruga e Sofia)<br />

Dormir, vais dormir, doa a quem doer!<br />

Está na letra da lei, é o que tens de fazer<br />

Aparecem à porta Rueff, Rita Durão e Carolina. Cantam todas.<br />

Já não é tempo de Carixenas!<br />

se ainda há democracia em Atenas.<br />

Bléfiro foge assustado.<br />

Coro de Mulheres<br />

(Que deixa a cena em ritmo de dança.) Toca a saltar, oh, oh! Vamos jantar, oh, oh, oh, oh! Pra<br />

festejar, oh, oh, oh, oh!!!<br />

Dá-nos riqueza e saúde,<br />

alegria, e danças<br />

paz, e juventude.<br />

Sai a banda com todos atrás. Quando a cena fica vazia, de uma das portas sai Demóstenes, meio<br />

escondido. Vem de uniforme de general. Vê na plateia o Salsicheiro de avental de talhante e cesta de<br />

carnes com muitas salsichas. Dinis sai da porta sozinho, visivelmente abatido, e vai também na<br />

direcção em que saiu a banda.<br />

13.<br />

Demóstenes<br />

O oráculo diz que para começar aparece um negociante de estopas, que será o primeiro a<br />

administrar a cidade. Depois dele, em segundo lugar, é a vez de um mercador de gado. Governa até<br />

que apareça um outro fulano mais safado. Nessa altura leva sumiço. Depois vem o Paflagónio,<br />

vendedor de curtumes, gatuno, grasnador. E ainda há mais um que há-de correr com este. (Aparece<br />

o Salsisheiro.) Ei, Salsicheiro, seu felizardo! Anda cá, anda cá, meu amigo, chega aqui acima. Foi a<br />

salvação da cidade e a nossa, a tua vinda.<br />

Salsicheiro<br />

(Que se aproxima.) O que há? O que é que vocês me querem?<br />

Demóstenes<br />

Ó soberano da feliz Atenas!<br />

Salsicheiro<br />

Olha, amigo, porque me não deixas lavar as tripas e vender os chouriços em paz, em vez de te pores<br />

a mangar comigo?<br />

Demóstenes<br />

Ó seu palerma! Tripas?!... Quais tripas, qual carapuça! Olha ali. (Aponta para o anfiteatro.) Estás a<br />

ver essas filas de gente?<br />

Salsicheiro<br />

Estou.<br />

Demóstenes<br />

Pois é de todos eles que tu vais ser rei e senhor. E da ágora, e dos portos, e da Pnix. Conselho,<br />

76


calca-lo aos pés; generais, cortas-lhes as vazas; pões algemas, mandas para a prisão; e no<br />

banquete à pala do Estado tu... fornicas.<br />

Salsicheiro<br />

Mas diz-me cá uma coisa: como é que eu, um salsicheiro, me vou tomar num «senhor»?<br />

Demóstenes<br />

Mas é precisamente nisso que está a tua grandeza: em seres um canalha, um vagabundo e um<br />

valdevinos.<br />

Salsicheiro<br />

Pois eu não me julgo digno de tamanho poder. Instrução não tenho nenhuma. Conheço as primeiras<br />

letras; e, mesmo essas, mal e porcamente.<br />

Demóstenes<br />

Ora aí está o teu único senão, que as conheças, por mal e porcamente que seja. A política não é<br />

assunto para gente culta e de bons princípios; é para os ignorantes e velhacos. Não me desprezes o<br />

que os deuses te concedem nos seus oráculos.<br />

Salsicheiro<br />

Mas admira-me como vou ser capaz de governar o Povo.<br />

Demóstenes<br />

É muito simples. Continua a fazer aquilo que já fazes: misturas os negócios públicos, amassa-los<br />

todos juntos, numa pasta. O Povo, conquista-lo quando quiseres, com umas palavrinhas delicodoces,<br />

lá da tua especialidade. Tudo o mais necessário à demagogia tem-lo tu de sobra, voz de safado,<br />

baixa condição, ar de valdevinos. Tens tudo o que é preciso para a governação. As profecias e o<br />

oráculo de Apolo estão de acordo. Vamos, põe a coroa e faz uma libação à... estupidez.<br />

O Velho 1 ia a sair de casa mas vê quem aí vem e volta a esconder-se em casa.<br />

Velho 1<br />

Deus nos acuda! Aí vem o Paflagónio.<br />

Entra muita gente a perseguir Paflagónio, de blazer e gravata. O Salsicheiro foge espavorido.<br />

Demóstenes<br />

Ei, tiozinho! Porque te escapas? (O Salsicheiro pára.)<br />

Coro<br />

Duarte - Dá-lhe, dá nesse patife, nesse cobrador de impostos.<br />

Bruno - (Ao general.) Um poço sem fundo, a Caríbdis do rapinanço.<br />

Rita Loureiro - (Ao general.) Um patife — e que patife! —, posso repeti-lo mil vezes, porque patife era<br />

ele mil vezes cada dia.<br />

Rita Durão - Vamos, dá-lhe para baixo, persegue-o, atormenta-o, chateia-o, detesta-o — como nós o<br />

detestamos —, cai-lhe em cima em grande grita.<br />

Paflagónio<br />

(Queixando-se a Demóstenes.) É uma conspiração! Estão-me a desancar!<br />

Gera-se discussão.<br />

Coro<br />

Rita Durão - É muito bem feito, já que tu papas os bens do Estado, como quem devora figos.<br />

Marina - Apertas os magistrados na prestação de contas, a ver os que estão verdes, ou maduros..<br />

Rita Loureiro - … ou para amadurecer.<br />

Sofia - E pões-te à coca a ver se entre os cidadãos aparece um cordeirinho, rico, sem maldade,<br />

tímido nos negócios. Porque se sabes de algum que seja inexperiente e bronco, deitas-lhe as unhas,<br />

passas-lhe uma rasteira, torces-lhe o costado, e pões o tipo K. O.<br />

77


Paflagónio<br />

Ó cidade! Ó Povo! São como feras à murraça ao meu bandulho. (A apontar para o Salsicheiro.) Este<br />

fulano aqui, quero denunciá-lo: posso garantir que ele exporta, para as trirremes do Peloponeso...<br />

caldo de carne.<br />

Salsicheiro<br />

Caralho! Pois eu acuso esse gajo de correr para o banquete público com a barriga a dar horas, e de<br />

sair de lá com ela a abarrotar.<br />

Demóstenes<br />

Ai não! E de trazer cá para fora comida de contrabando, pão, carne, peixe — coisa de que nem<br />

mesmo Péricles se podia gabar.<br />

Paflagónio<br />

Vocês os dois, vou acabar convosco, e é para já.<br />

Salsicheiro<br />

E eu vou berrar três vezes mais que tu.<br />

Paflagónio<br />

E eu abafo os teus gritos com os meus.<br />

Salsicheiro<br />

E eu os teus guinchos com os meus.<br />

Paflagónio<br />

Hei-de difamar-te, quando fores general.<br />

Salsicheiro<br />

Moo-te o lombo de pancada que nem um cão.<br />

Paflagónio<br />

Hei-de fazer-te o cerco com imposturices.<br />

Salsicheiro<br />

E eu corto-te a retirada.<br />

Paflagónio<br />

(Que o fixa de perto, cara a cara.) Olha-me de frente, sem pestanejar.<br />

Salsicheiro<br />

Foi no mercado que também eu me criei.<br />

Paflagónio<br />

Parto-te às postas, se dás um pio.<br />

Salsicheiro<br />

E eu cubro-te de merda, se abres o bico.<br />

Paflagónio<br />

Confesso que sou um ladrão. Tu, nem por sombras!<br />

Coro (Em fúria contra Paflagónio.)<br />

Rueff - Ah, patife! Grulha malvado!<br />

Waddington - Lata tens tu que chegue para atulhar a terra inteira, a assembleia de fio a pavio, os<br />

impostos, os processos, os tribunais.<br />

Marina - Para remexer na lama, estás por aí três vezes!<br />

Rita Durão - A nossa cidade, de uma ponta à outra, puseste-a num rebuliço.<br />

Paflagónio<br />

78


Mas dás-me licença?<br />

Salsicheiro<br />

Não, caramba!<br />

Paflagónio<br />

Sim, caramba!<br />

Salsicheiro<br />

Caralhos me fodam, se eu não der tudo por tudo para ser o primeiro a falar!<br />

Paflagónio<br />

Ora uma destas! Estou tramado!<br />

Salsicheiro<br />

Isso era preciso que eu deixasse!<br />

Demóstenes<br />

Deixa-o lá, c‘os diabos! Deixa-o lá tramar-se à vontade!<br />

Paflagónio<br />

Mas afinal o que te dá tanta certeza de estares à altura de discutir comigo?<br />

Salsicheiro<br />

É que, para discutir, sou tão mestre como tu. E, para armar um estrugido, também.<br />

Paflagónio<br />

E eu caio de rajada em cima do Conselho e viro-o de cangalhas.<br />

Salsicheiro<br />

E eu moo-te esse cu que nem uma morcela!<br />

Paflagónio<br />

E eu arrasto-te lá para fora pelos fundilhos, de cabeça para baixo!<br />

Demóstenes<br />

Então, raios, se o arrastares a ele, arrasta-me também a mim.<br />

Paflagónio<br />

(Afastando-se.) Macacos me mordam, se te não ponho na canga.<br />

Salsicheiro<br />

Vou-te acusar de cobardia.<br />

Paflagónio<br />

Esse teu coiro ainda há-de levar uma boa esticadela.<br />

Salsicheiro<br />

E o teu, arranco-to e faço um saco... para a roubalheira.<br />

Paflagónio<br />

Prego-te ao chão, escanchado de pés e mãos.<br />

Salsicheiro<br />

Pois eu faço-te em picado.<br />

Paflagónio<br />

Essas pestanas, vou-te a elas e arranco-tas.<br />

Salsicheiro<br />

79


E esse teu papo, ainda to estripo.<br />

Paflagónio<br />

És um trapaceiro.<br />

Salsicheiro<br />

E tu filho da puta.<br />

Demóstenes<br />

Chega-lhe! Força!<br />

O Salsicheiro atira-se ao adversário, logo seguido de Demóstenes.<br />

Paflagónio<br />

Ai, ai! Estão-me a cascar. São conspiradores.<br />

Demóstenes<br />

Chega-lhe! Força! Mais! Manda-lhe um soco no bandulho! Agarra nas tripas e nos enchidos e dá-me<br />

uma ensinadela nesse fulano.<br />

Paflagónio foge. Salsicheiro agarra no cesto da carne e sai para a plateia outra vez.<br />

Coro<br />

Sofia - (Para o Salsicheiro.) Ah homem de fêvera!<br />

Saem todos para a plateia atrás do Salsicheiro. Ouve-se a banda tocar mais uma vez a fanfarra.<br />

Demóstenes ri-se. E sai. Desfaz-se o cenário que representava a praça. Entram dois Velhos atrás de<br />

um gaio a voar. Um deles traz na mão uma gralha.<br />

14.<br />

Evélpides<br />

(Para o gaio.) É em frente que dizes, na direcção daquela árvore que se vê além?<br />

Pistetero<br />

(À gralha que traz consigo.) Um raio que te parta! (Ao companheiro.) Lá está a fulaninha a grasnar<br />

outra vez, para voltar para trás.<br />

Evélpides<br />

O quê? De que nos serve, meu pobre amigo, corrermos por montes e vales?<br />

Pistetero<br />

E dizer que eu — pobre de mim! —, para fazer a vontade a uma gralha, dei uma volta de mais de mil<br />

estádios.<br />

Evélpides<br />

E que eu — triste sina a minha! —, para fazer a vontade a um gaio gastei as unhas dos pés.<br />

Pistetero<br />

Mas afinal em que canto do mundo estamos nós?<br />

Evélpides<br />

(Aos espectadores.) É que, aqui onde nos vêem, senhores que nos escutam, nós, que nos honramos<br />

de pertencer a uma tribo e de ter um nome de família, de sermos cidadãos entre os cidadãos, sem<br />

que ninguém nos espantasse, pusemo-nos a voar da nossa terra a sete pés. Não é que nos não<br />

agrade essa cidade, por não ser grande, feliz ou aberta a todos... quando se trata do pagamento de<br />

impostos. A verdade é que, se as cigarras lá cantam, durante um mês ou dois, nos ramos das<br />

figueiras, os Atenienses levam o tempo a cantar, a vida inteira, em cima dos processos. Foi por isso<br />

que metemos pernas ao caminho. Erramos por aí, à procura de um sítio tranquilo, onde nos<br />

possamos fixar e viver.<br />

80


Pistetero<br />

Eh lá!<br />

Evélpides<br />

Que é?<br />

Pistetero<br />

Há já um bocado que aqui a gralha me indica qualquer coisa lá em cima.<br />

Evélpides<br />

Olha! O gaio também! Bico aberto, a apontar para o alto, como se me quisesse mostrar qualquer<br />

coisa. Não há dúvida, aqui deve haver pássaros. Já o vamos saber, se fizermos barulho. (Aparece<br />

uma Poupa.) Raios! Que bicho é este agora? Uma plumagem assim?! E uma crista de três penas. És<br />

ave ou... pavão armado?<br />

Poupa<br />

Sou ave. E vocês os dois? Quem são vocês? Digam lá.<br />

Evélpides<br />

Nós?<br />

Pistetero<br />

Somos mortais.<br />

Evélpides<br />

Somos mortais.<br />

Poupa<br />

E qual é o assunto que vos traz a estas paragens?<br />

Evélpides<br />

Viemos suplicar-te se podes indicar-nos uma cidade feita de boa lã, onde nos possamos estender<br />

como numa manta bem fofinha.<br />

Pistetero<br />

Tratem de fundar uma cidade.<br />

Poupa<br />

E que cidade havemos nós, as aves, de fundar?<br />

Pistetero<br />

Essa é boa! Que disparate de pergunta! Olha lá para baixo.<br />

Poupa<br />

Pronto! Estou a olhar.<br />

Pistetero<br />

E agora, olha para cima.<br />

Poupa<br />

Estou a olhar.<br />

Pistetero<br />

Viste alguma coisa?<br />

Poupa<br />

Vi. Nuvens e céu.<br />

Pistetero<br />

81


E então? Não é essa a «orbe» das aves? Colonizem-na, fortifiquem-na com muralhas, e de «orbe»<br />

vai passar a chamar-se «urbe». De tal forma que vocês vão andar em cima dos homens como de<br />

gafanhotos. E quanto aos deuses, dêem cabo deles à fome.<br />

Poupa<br />

Popopoi, popoi, popopoi, popo, ió, ió, ito, ito! Aqui, venham aqui, companheiros da raça alada!<br />

Venham todos vocês, que bicam os campos bem semeados dos lavradores, raças mil de<br />

devoradores de sementes, de papadores de grão, céleres no voo, suaves nos trinados.<br />

Vocês também, quantos nos sulcos, em torno das glebas, costumam galrear assim, num tom vivo e<br />

alegre: tio, tio, tio!; e aqueles que, nos jardins, encontram alimento nos ramos da hera; os das<br />

montanhas, os papa-oleastros e os traga-medronheiros, acorram em voo ao som da minha voz, trio,<br />

trio, tobobrix! Todos quantos, nos vales pantanosos, caçam mosquitos de tromba aguçada; vocês<br />

que habitam nas regiões húmidas e nos belos prados de Maratona; tu, ave de asas matizadas,<br />

francolim, francolim, e as espécies que sobrevoam a vaga alterosa do mar, lado a lado com as<br />

alcíones, venham cá ouvir a boa nova. Para aqui convocamos todas as raças de aves de pescoço<br />

comprido. Porque está entre nós um velho engenhoso, perspicaz de espírito e dado a empresas<br />

revolucionárias. Vá, venham cá todos para uma assembleia, todos, aqui, aqui, aqui, tototorotix,<br />

quicabau, quicabau, tototorolililix!<br />

Ainda invisível, o Coro faz-se ouvir à distância.<br />

Pistetero<br />

Vês algum pássaro?<br />

Evélpides<br />

Caramba, nem um! Apesar de ficar embasbacado a olhar para o céu.<br />

Ouve-se alguma ave: Totorix, totorix! Os dois velhos vêem o que nós imaginamos.<br />

Pistetero<br />

Olá, meu menino! Desta vez é uma ave que lá vem.<br />

Evélpides<br />

É mesmo, bolas! É uma ave. Qual será? Pavão não é, pois não?<br />

Pistetero<br />

Que pássaro é aquele ali?<br />

Poupa<br />

É uma ave lacustre.<br />

Evélpides<br />

Bolas! É lindo! De um vermelho flamejante!<br />

Poupa<br />

Aí está! Por isso é que lhe chamam flamingo.<br />

Evélpides<br />

(A Pistetero.) Ei, tu! Olha!<br />

Pistetero<br />

Que gritaria é essa?<br />

Evélpides<br />

Lá vem outra ave, ali!<br />

Pistetero<br />

É mesmo! Lá vem outra. E esta deve vir de terras distantes. Lá vem outro! E este arranjou uma<br />

crista, o passarinho!<br />

82


Evélpides<br />

Ena pá! Outro pássaro, e de cores vivas, este agora. (À Poupa.) Como é que lhe chamam?<br />

Poupa<br />

Este é o papa-jantares. Vive nas cristas dos montes.<br />

Pistetero<br />

C‘os demónios! Estás a ver que bando infernal de passarada lá vem!<br />

Evélpides<br />

Raios, que nuvem!<br />

Pistetero<br />

Aquela ali é uma perdiz.<br />

Evélpides<br />

E aquela outra um francolim.<br />

Pistetero<br />

Esta um ganso.<br />

Evélpides<br />

Aquela uma alcíone. E atrás dela, que pássaro é aquele?<br />

Pistetero<br />

Ora essa! É um barbudo!<br />

Evélpides<br />

Então também há pássaros que têm a ver com barbudos?<br />

Poupa<br />

Aquela ali é uma coruja. Uma pega, uma rola, uma calhandra, um roxinol-dos-caniços, uma<br />

hipotímide, uma pomba, um nerto, um falcão, um torcaz, um cuco, um fuselo, um pintarroxo, uma<br />

galinha-d'água, um francelho, um mergulhão, um pássaro-das-vinhas, um xofrango, um pica-pau.<br />

Pistetero<br />

Ena pá! Que passarada!<br />

Evélpides<br />

Ena pá! Tantos melros!<br />

Os actores vão fazendo off a imitação do ruído dos pássaros.<br />

Pistetero<br />

Como eles pipilam! Que correrias! É quem mais crocita! Que as aves habitem uma única cidade.<br />

Além disso, que o céu inteiro, em volta, e todo este espaço intermédio seja fortificado com grandes<br />

muralhas, de tijolo, como na Babilónia.<br />

Coro das Aves (Ou seja, do grupo de actores, com maior ou menor disfarce de aves.)<br />

Sofia - Ó meu querido e suave rouxinol! Ó mais amado de entre todas as aves, companheiro de<br />

todos os meus cantos, querido amigo! Vieste, vieste ao meu encontro, com a doçura da tua voz.<br />

Rita Loureiro - Vá, ser humano, por natureza condenado às trevas, semelhante às folhas, criatura<br />

impotente modelada em barro, fantasma vago como uma sombra, ser efémero carecido de asas,<br />

pobre mortal, homem igual a um sonho, volta o teu espírito para nós, os imortais, os eternos, os<br />

celestes, para quem a velhice não existe, mentores nas questões universais.<br />

Rueff - Para já, somos nós que vos indicamos as estações, a Primavera, o Inverno, o Outono: que é<br />

a época das sementeiras, quando o grou, a crocitar, toma o caminho da Líbia.<br />

Duarte - Na mesma altura, é também ele que avisa o navegante que está na hora de largar o leme e<br />

descansar, e Orestes que trate de tecer uma túnica, para, quando vier o frio, não ter de a roubar a<br />

ninguém.<br />

83


Teresa - O milhafre, por seu lado, aparece a seguir, para anunciar uma outra estação, aquela em que<br />

se tosa a lã primaveril dos carneiros.<br />

Rueff - Pois bem, se nos considerarem divindades, podem contar connosco como Musas proféticas<br />

que anunciam ventos, estações, o Inverno, o Verão, o calor moderado.<br />

Marina - E não vamos escapar-nos, para nos sentarmos lá nas alturas, cheios de nove horas, no<br />

meio das nuvens, como faz Zeus.<br />

Rita Durão - Antes, com a nossa presença, havemos de dar-vos, a vós, aos vossos filhos e aos filhos<br />

dos vossos filhos, riqueza e saúde, vida, paz, juventude, alegria, danças, festas e leite... de pássaro.<br />

Márcia - Hão-de ter fortuna até dizer basta, a tal ponto vão ser ricos, todos vós.<br />

Dinis - Ora vejamos, que nome se há-de dar à cidade?<br />

Pistetero<br />

Nefelocucolândia! Que tal?<br />

Poupa<br />

E que deus há-de ser o nosso padroeiro?<br />

Pistetero<br />

Uma ave.<br />

Coro<br />

Uma das nossas?<br />

Pistetero<br />

O mais terrível, o galo.<br />

Evélpides<br />

(Irónico.) Ora viva Sua Excelência o galo!<br />

Pistetero<br />

(Para Galo.) Tu, anda lá, sobe ao céu e dá uma ajuda aos construtores: carrega com o cascalho, tira<br />

a camisa e faz a massa, leva a gamela, manda-te abaixo da escada, distribui as sentinelas, mantém<br />

o fogo sempre aceso, faz as rondas de campainha na mão e ferra-te lá a dormir. Manda um arauto lá<br />

acima, à morada dos deuses, e outro lá abaixo, à dos homens. Depois vem cá ter comigo.<br />

Galo faz cócórocó. É interrompido pela chegada do poeta.<br />

Poeta<br />

(Vem da plateia.) Canta, ó Musa, a Nefelocucolândia, essa cidade bem-aventurada, com a melodia<br />

dos teus hinos.<br />

Pistetero<br />

De onde é que nos caiu aqui este tropeço? (Ao poeta.) Diz-me lá, quem és tu?<br />

Poeta<br />

Eu? Um cantor de versos doces como o mel, «servo diligente das Musas», como diz Homero.<br />

Compus, em honra da vossa Nefelocucolândia, uma série de ditirambos encantadores.<br />

Pistetero<br />

Como, se ainda agora, neste preciso momento, estou a dar-lhe o nome, como a uma criança?<br />

Poeta<br />

É veloz a palavra das Musas, tal o galope faiscante dos cavalos.<br />

Pistetero<br />

Toma e põe-te a mexer!<br />

Entra um arquitecto (Méton), também da plateia, com desenhos réguas e esquadros.<br />

Méton<br />

84


Aqui estou eu na vossa cidade...<br />

Pistetero<br />

Outro! Mais sarilhos! Afinal que vieste tu cá fazer? Qual é a tua intenção? Que ideia é essa? Qual o<br />

objectivo — e o coturno — desta viagem?<br />

Méton<br />

Venho para tirar medidas ao céu e dividi-lo em talhões.<br />

Pistetero<br />

E essa tralha que aí tens, o que é? Diz-me lá!<br />

Méton<br />

Réguas para medir o céu.<br />

Pistetero<br />

E se fosses tirar as tuas medidas para outra parte?<br />

Méton põe-se em fuga e chega um Inspector, também da plateia.<br />

Inspector<br />

(Muito seguro de si.) Os serviços de acolhimento? Onde posso encontrá-los?<br />

Pistetero<br />

E este Sardanapalo agora, quem será ele?<br />

Inspector<br />

Vim cá, à Nefelocucolândia, porque fui designado inspector.<br />

Pistetero<br />

Não quererás tu receber a massinha, sem mais chatices, e pores-te a mexer?<br />

Inspector<br />

Se quero! Tanto mais que precisava de ficar em casa para ir à assembleia.<br />

Entra da plateia um Vendedor de Decretos a ler a lei.<br />

Vendedor de Decretos<br />

―E se a gente da Nefelocucolândia causar dano aos Atenienses…‖<br />

Pistetero<br />

E este safado agora, de livrinho e tudo, quem será ele?<br />

Vendedor de Decretos<br />

Sou um Vendedor de Decretos, e estou aqui para vos vender as novas leis.<br />

Pistetero<br />

Desapareces daqui com essas leis ou quê?<br />

Bate-Ihe e o Vendedor de Decretos foge. Foge também o Inspector.<br />

Coro das Aves<br />

Rita Durão - Feliz a raça alada das aves; no Inverno não se envolvem em casacos; nem no Verão,<br />

quando o calor aperta, o raio de sol, que brilha ao longe, nos esquenta.<br />

Sofia - É nos prados floridos e na sombra da folhagem que eu habito, no tempo em que a cigarra<br />

divina, louca de sol, no calor escaldante do meio-dia, entoa o seu canto estridente.<br />

Dinis - O Inverno, passo-o no côncavo das grutas, em festa com as Ninfas das montanhas.<br />

Duarte - Na Primavera, comemos as bagas virginais do mirto branco e os frutos do jardim das<br />

Graças.<br />

Rueff - Num belo dia em que andem de fatinho branco, será o momento da nossa vingança: toda a<br />

85


passarada vos há-de cagar em cima.<br />

A Poupa sobe no ar a cantar: Popopoi, popoi, popopoi, popo, ió, ió, ito, ito! Todos riem e saem.<br />

Fogem os dois Velhos presentes. Fica o Velho 1 do início do espectáculo que entrou sem se dar por<br />

isso, já como actor. Ouve-se solo melancólico de instrumento off.<br />

15.<br />

Velho 1<br />

Desde que dirige coros de comédia, nunca o nosso poeta se apresentou perante o público para<br />

gabar o talento que possui. Mas como foi acusado pelos inimigos perante os Atenienses, sempre<br />

prontos a tomar decisões, de, nas comédias, maltratar a nossa cidade e o seu povo, ele sente a<br />

necessidade de hoje, aqui, responder a esses ataques perante os Atenienses, sempre prontos a<br />

mudar de decisões. Afirma o poeta ter-vos prestado muitos e bons serviços, ao impedir que vocês<br />

fossem redondamente enganados por discursos de estrangeiros, que se deixassem levar por<br />

lisonjas, que se tornassem nuns cabeças-de-vento. Quem quer que fosse que, para vos espicaçar a<br />

vaidade, chamasse «lustrosa» a Atenas, conseguia tudo com esse «lustrosa», por vos dar um epíteto<br />

próprio de sardinhas. Foi este um dos muitos serviços que vos prestou o poeta, além de ter provado<br />

o valor da democracia para os povos das cidades.<br />

Por isso, vocês não o deixem partir, porque nas comédias há-de sempre defender a justiça. Diz ele<br />

que vos há-de ensinar muitas coisas boas, como atingir a felicidade, por exemplo, sem vos lisonjear,<br />

sem vos prometer aumentos, sem vos ludibriar, sem trafulhices nem catadupas de elogios. Mas que<br />

vos há-de ensinar onde está o bem. (Cala-se o instrumento.)<br />

Nós, os velhos, os antigos, temos uma censura a fazer à cidade. Não encontramos junto de vós, na<br />

velhice, o tratamento devido a quem combateu no mar.<br />

Volta o solo. Se possível vê-se o mar, com mais horizonte que a terra, e menos barulhento que o<br />

céu.<br />

FIM<br />

86

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