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Os Noivos, de Artur Azevedo - BEMaior

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lhe não herdassem as quintas. Sabia-se nesse tempo que o Dr. Adolfo da Silveira era juiz <strong>de</strong> Direito nos Açores e<br />

tinha consigo uma formosa amante com três meninos.<br />

A única i<strong>de</strong>ia com que o Cerveira contribuiu para a redacção da carta foi que escrevesse: – Vossa<br />

Majesta<strong>de</strong> precisa <strong>de</strong> dinheiro, diga o que quer, que eu até on<strong>de</strong> chegarem as minhas posses está tudo às or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong><br />

el-rei meu senhor.<br />

O padre Rocha não se esquivou a colaborar na endrómina, dizia ele a D. Andresa – porque .<br />

A carta ia pomposa, a ponto <strong>de</strong> Cerveira pedir comentários, explicações. Que estava uma obra profunda –<br />

dizia o fidalgo, instruído enfim nas obscurezas do estilo.<br />

E, tirando seis pintos do bolso do colete:<br />

– Aí tem para o seu rapé, merece-os.<br />

O capelão não aceitou; pediu que os aplicasse por sua intenção às necessida<strong>de</strong>s do Sr. D. Miguel.<br />

– É um realista às direitas, padre, um gran<strong>de</strong> realista! – E, guardando os seis pintos, abraçou-o<br />

efusivamente e ofereceu-lhe um cálice <strong>de</strong> 1817.<br />

– Eu <strong>de</strong>sejaria muito ver a resposta <strong>de</strong> Sua Majesta<strong>de</strong> – dizia o padre Rocha.<br />

– Isso é logo que ela chegar, padre! pois então? Cá entre nós não há segredos; e, se o amigo quiser, no caso<br />

que el-rei me man<strong>de</strong> ir, vai comigo, e po<strong>de</strong> logo vir <strong>de</strong>spachado. Pois então?<br />

– Está dito! – e o padre com um regozijo muito cómico, e o cálice aromático <strong>de</strong>baixo do nariz: – Quem<br />

sabe se eu ainda serei arcebispo, ó Sr. Tenente-Coronel!<br />

– Ora! como dois e dois são quatro! Há-<strong>de</strong> ser arcebispo, não tenha dúvida. Isto vai tudo mudar! – E<br />

carregava-lhe forte no 1817. – Arre! estou aqui metido há doze anos nestes montes, que me tem levado os diabos!<br />

Tenho 49 anos: mas este punho ainda po<strong>de</strong> com a espada! Há-<strong>de</strong> haver pancadaria <strong>de</strong> criar bicho! Olé! Eu dizia às<br />

vezes ao meu amigo D. Miguel quando o Sedvém, e o Mata e o Miguel Alcai<strong>de</strong> davam cacetada nos malhados que<br />

aquilo não era bonito. Pois agora, padre Rocha, hei-<strong>de</strong> dizer-lhe:<br />

O Cerveira começava a gaguejar, a cambalear, e entornava o cálice. O padre<br />

<strong>de</strong>spediu-se.<br />

VI<br />

Na residência do aba<strong>de</strong> Marcos Rebelo, em São Gens <strong>de</strong> Calvos, havia uma sala com alcova e janelas sobre<br />

uma horta arborizada. As pereiras, macieiras e abrunheiros principiavam a florir. Era no começo <strong>de</strong> Abril. Ali,<br />

naquelas frígidas alturas, sopram as ventanias mor<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> Barroso, do Gerês, e gelam a seiva nos troncos filtrados<br />

da neve e das cristalizações glaciais. Fazia frio. Na saleta caiada, muito excrementícia <strong>de</strong> moscaria, com tecto <strong>de</strong><br />

castanho esfumaçado e o pavimento lurado do caruncho, havia a um lado duas caixas <strong>de</strong> cereais, no outro algumas<br />

ca<strong>de</strong>iras velhas <strong>de</strong> nogueira <strong>de</strong> diversos feitios, esfarpeladas no assento; nas pare<strong>de</strong>s duas litografias – o retrato <strong>de</strong> D.<br />

João VI, com o olho velhaco e o beiço belfo, e o marquês <strong>de</strong> Pombal, sentado com o <strong>de</strong>creto da expulsão dos<br />

jesuítas, apontando parlapatonamente para a barra on<strong>de</strong> alvejam panos <strong>de</strong> navios que levam os expulsos. Na velha<br />

cal esburacada e emporcalhada <strong>de</strong> escarros secos <strong>de</strong> antigas catarrais, <strong>de</strong>stacavam molduras <strong>de</strong> carvalho com dois<br />

painéis a óleo cheios <strong>de</strong> gretas, S. Jerónimo no <strong>de</strong>serto, com uma cara aflita, <strong>de</strong> tique doloroso, e Santo António <strong>de</strong><br />

Pádua, num sadio en bon point, um bom sorriso ingénuo, com o Menino Jesus sentado, muito nutrido, numa bola<br />

que os hagiólogos diziam ser o globo terráqueo. No centro da quadra estava uma banca <strong>de</strong> pinho pintada a ocre, com<br />

uma coberta <strong>de</strong> cama, <strong>de</strong> chita vermelha, com araras, franjada <strong>de</strong> requifes <strong>de</strong> lã variegada. Ao lado da banca, uma<br />

ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> sola, com espaldar em relevo e pregaria amarela com ver<strong>de</strong>te; do outro lado havia um fogareiro <strong>de</strong> ferro<br />

com brasas e uma cesta <strong>de</strong> verga cheia <strong>de</strong> carvão. Entre as duas pequenas janelas <strong>de</strong> rótulas interiores e cachorros <strong>de</strong><br />

pedra, trabalhava estrondosamente um relógio <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>, com os frisos do mostrador sem vidro, cheios <strong>de</strong> moscas<br />

mortas, penduradas por uma perna, <strong>de</strong> ventres brancos muito inchados e as asas abertas.<br />

Dez horas. Abriu-se então a porta da alcova, que rangeu ligeiramente na couceira <strong>de</strong>sengonçada, e saiu um<br />

sujeito <strong>de</strong> mediana estatura, ombros largos, barba toda com raras cãs, olhos brilhantes, pálido-trigueiro, um nariz<br />

adunco. Representava entre trinta e seis e quarenta anos. Sentou-se à braseira e preparou um cigarro, vagarosamente,<br />

que acen<strong>de</strong>u na aresta chamejante <strong>de</strong> uma brasa. Com o cigarro ao canto dos lábios e um olho fechado pelo contacto<br />

agro do fumo, foi abrir uma das vidraças, e pôs fora a mão a sondar a temperatura. Coxeava um pouco. Recolheu a<br />

mão com <strong>de</strong>sagrado e fechou a janela. Vinha subindo a escada <strong>de</strong> comunicação com a cozinha uma mulher idosa,<br />

em mangas <strong>de</strong> camisa, meias azuis <strong>de</strong> lã e ourelos achinelados. Pediu licença para entrar, fez uma mesura <strong>de</strong> joelhos<br />

sem curvar o tronco, e perguntou:<br />

– Vossa Majesta<strong>de</strong> passou bem?<br />

– Optimamente, Senhorinha, passei muito bem.<br />

– Estimo muito, Real Senhor. O Senhor Aba<strong>de</strong> foi chamado às oito horas para confessar uma freguesa que<br />

está a morrer <strong>de</strong> uma queda, e <strong>de</strong>ixou dito que pusesse o almoço a Vossa Majesta<strong>de</strong>, se ele não chegasse às nove e<br />

meia.<br />

– Quando quiser, Senhorinha, quando quiser, visto que o aba<strong>de</strong> <strong>de</strong>u essas or<strong>de</strong>ns e quem manda aqui é ele.<br />

Da cozinha vaporava um perfume <strong>de</strong> salpicão frito com ovos. Sua Majesta<strong>de</strong> farejava com as narinas<br />

anelantes num forte apetite. A criada voltou com toalha, guardanapo, louça da índia, talheres <strong>de</strong> prata, e uma

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