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Os Noivos, de Artur Azevedo - BEMaior

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E começou a <strong>de</strong>senrolar o nastro gorduroso <strong>de</strong> uma carteira <strong>de</strong> couro em que tinha recibos da décima, um<br />

aviso da junta da paróquia para pagar a côngrua, uma conta <strong>de</strong> azeviche contra maus-olhados, uma oração<br />

manuscrita contra as maleitas, um oficio antigo que o nomeava regedor, <strong>de</strong> que fora <strong>de</strong>mitido pelos Cabrais, uma<br />

velha ressalva <strong>de</strong> recrutamento, uns versos que ele recitara no Natal, num Auto do Nascimento do Menino, on<strong>de</strong> ele<br />

fazia <strong>de</strong> rei mago, e finalmente o livrinho <strong>de</strong> Santa Bárbara, muito sebáceo, com um lustre azulado <strong>de</strong> graxa e a carta<br />

do Feliciano tão suja que parecia ter estado em infusão <strong>de</strong> pingue.<br />

– Você ainda não ouviu falar <strong>de</strong>sta carta!? – perguntou com sobrançaria impertinente, dando saliva aos<br />

<strong>de</strong>dos para a <strong>de</strong>sdobrar. – Não se fala noutra coisa. Toda a gente sabe que vem aí do Brasil o meu Feliciano para<br />

comprar quintas.<br />

– Já me constou – disse o pedreiro –, mas você rói a corda à conta disso, acho eu. – E como o lavrador<br />

hesitasse: – O negócio da rapariga está feito ou não está feito? <strong>Os</strong> homens conhecem-se pela palavra e os bois pelos<br />

cornos. Ponha para aí o que tem no interior.<br />

O Simeão mascava, torcia-se, metia com dois <strong>de</strong>dos a carta estafada na carteira e resmungava:<br />

– Você, enfim, isto é um modo <strong>de</strong> falar, como o outro que diz; você bem enten<strong>de</strong> que... sim...<br />

– O que eu entendo fisicamente falando é que você não me dá a rapariga.<br />

– Deixe ver, <strong>de</strong>ixe ver o que diz o meu irmão – tartamu<strong>de</strong>ava.<br />

– Sabe você que mais? – volveu iracundo o arquitecto, dando com o olho do machado num canhoto. – Você<br />

é <strong>de</strong> má casta. Não tem palavra nem vergonha nessa cara estanhada. Você é da geração dos Travessas da Serra<br />

Negra, e basta... Não lhe digo mais nada... – Alusão pungente a um tio do Simeão, o Barnabé, capitão das maltas <strong>de</strong><br />

salteadores que infestaram em 1835 aquela serra.<br />

– Veja lá como fala... – interrompeu o lavrador ferido na sua linhagem. – Você não me <strong>de</strong>ite a per<strong>de</strong>r...<br />

E o outro, num ímpeto <strong>de</strong> consciência robusta:<br />

– Você é um safado. É o que lhe eu digo. Não guarda palavra em contrato que faça. Eu já <strong>de</strong>via conhecê-lo.<br />

Faz para as matanças seis anos que você ajustou comigo uma porca por quatro moedas e foi <strong>de</strong>pois vendê-la ao<br />

António do Eido por mais um quartinho. Lembra-se, seu alma <strong>de</strong> cântaro? – E numa irritação crescente: – Se você<br />

não fosse um velho, dava-lhe com este machado na caveira. – E muito esbandalhado nos gestos, com sarcasmo: –<br />

Guar<strong>de</strong> a filha que eu hei-<strong>de</strong> achar mulher muito melhor que ela pelo preço, ouviu você? que leve o Diabo a burra e<br />

mais quem a tange, como o outro que diz. Livrei-me <strong>de</strong> boa espiga. De você não po<strong>de</strong> sair coisa boa; e mais da mãe<br />

que ela teve, que já lá está a dar contas...<br />

E o lavrador com extremada prudência e na pacatez <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> espírito <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m e paz:<br />

– Você não tem que <strong>de</strong>sfazer na minha filha, ouviu?<br />

– Ouvi, que não sou mouco. Ainda ontem a topei na bouça do Reguengo <strong>de</strong> palestra com o estudante <strong>de</strong><br />

Vilalva. Espere-lhe a volta. A songuinha, que não olha direito p'ra um home, que anda ali esmadrigada <strong>de</strong> cabeça ao<br />

lado, lá estava <strong>de</strong> mão na ilharga a dar treta ao estudante, aquele pau <strong>de</strong> encher tripas, que há-<strong>de</strong> ser mesmo um<br />

padre daquela casta! Olhe se ele lha quer para casar... Pois não quiseste? – e arregaçava a pálpebra do olho esquerdo,<br />

mostrando o interior inflamado com uns pontos amarelos, purulentos, indicativos <strong>de</strong> insuficiente lavagem, um<br />

trejeito <strong>de</strong> garotice. E continuava: – Quem lhe <strong>de</strong>ra dois pontapés, nele e mais nela! – e muito rubro <strong>de</strong> cólera dava<br />

pancadaria nas pedras, nas raízes nodosas dos castanheiros, e metia gran<strong>de</strong> terror no ânimo do Simeão quando<br />

faiscava lume nos calhaus com a percussão do machado.<br />

Esta situação prometia acabar pela fuga pru<strong>de</strong>nte do pai <strong>de</strong> Marta, se o estudante <strong>de</strong> Vilalva não assomasse<br />

ao fundo do castanhal com uma matilha <strong>de</strong> coelheiros que ladravam a um porco muito eriçado, que os esperava com<br />

o focinho <strong>de</strong> esguelha, bufando e grunhindo. O caçador chamava os cães, assobiava, fazia uma bulha convencional<br />

para que a Marta o ouvisse.<br />

Ele não tinha visto o pedreiro; os cães é que o viram e <strong>de</strong>ixaram o porco <strong>de</strong>stemido para atacarem o<br />

homem, com uma velha birra que lhe tinham. O Zeferino, noutra ocasião, segundo o seu costume, <strong>de</strong>sprezaria a<br />

arremetida da matilha; mas, naquela conjuntura <strong>de</strong> ódio ao caçador, esperou a canzoada com o machado em riste,<br />

empunhava o cabo com as mãos cabeludas, e fazia, com o corpo inclinado, avanços provocadores. José Dias<br />

chamava os cães obedientes; mas o Zeferino, muito azedo, engelhando na cara uns trejeitos <strong>de</strong> bazófia, dizia<br />

sarcástico:<br />

– Deixe-os vir, <strong>de</strong>ixe-os vir, que o primeiro que chegar faço-lhe saltar os miolos à cara <strong>de</strong> você.<br />

Que se acomodasse, conciliava pacificamente o estudante – que os cães não tinham outra fala. E o pedreiro<br />

insistente, muito arrogante: – Que venham para cá, e mais o dono, o caçador <strong>de</strong> borra! – e dizia palavradas canalhas,<br />

muito danado porque vira aparecer a Marta na varanda, a fazer meia com a cesta do novelo no braço.<br />

– Ó Sr. Zeferino, fale bem, ponha cobro na língua advertiu o José Dias, com uma serenida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mau agoiro<br />

– quando eu lhe ladrar então se fará com o machado para mim. <strong>Os</strong> cães ladraram-lhe; eu chamei-os, que mais quer<br />

você, homem? Siga o seu caminho.<br />

– O meu caminho? o meu caminho é este – disse batendo com o machado na terra. – Quer você mandar-me<br />

embora daqui? Ora não seja tolo.<br />

A presença da moça enfurecia-o; contra o seu costume, sentia-se valente. O amor, como um vinho<br />

indigesto, dava-lhe a coragem interina dos bêbedos, e berrava:<br />

– Se é homem, venha para cá! Você manda-me sair daqui, seu pedaço-<strong>de</strong>-asno? E o estudante, já amarelo:

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