Os Noivos, de Artur Azevedo - BEMaior
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que chegaram a <strong>de</strong>senterrar os cadáveres 7 . As nações e os naturalistas <strong>de</strong>viam formar uma i<strong>de</strong>ia assaz agigantada<br />
do tamanho dos gatos portugueses que <strong>de</strong>senterravam cadáveres, e das boas avenças dos nossos cães com os<br />
referidos gatos na obra da exumação dos mortos, e não menos se espantariam da familiarida<strong>de</strong> dos javalis que<br />
vinham do Gerês colaborar com os cães e gatos naquela mineração das carnes podres das terras <strong>de</strong> Lanhoso. A<br />
origem pois da insurreição nacional <strong>de</strong> 1846 está <strong>de</strong>finida nos fastos da Europa revolucionária. Foi ama reacção,<br />
uma batalha social à canzoada e gataria confe<strong>de</strong>radas com o focinho profanador <strong>de</strong> porco-montês. E daí proce<strong>de</strong>u<br />
escreverem os jornalistas da Alemanha, um país sério, que a revolução do Minho era o . <strong>Os</strong> cadáveres servidos nos<br />
banquetes ilegais e nocturnos dos javalis, com a convivência <strong>de</strong> gatarrões a rosnarem com o lombo eriçado, e<br />
molossos <strong>de</strong> colmilhos ensanguentados foi caso que impressionou gran<strong>de</strong>mente as raças tu<strong>de</strong>scas, por ser um acto<br />
proibido pela Carta Constitucional. Quer fossem os setembristas <strong>de</strong> Braga, quer a alcateia das feras coligadas, o<br />
certo é que a insurreição do Alto Minho tabu esta província e a transmontana, <strong>de</strong>vastando as papeletas impressas e<br />
os vinhos das tascas sertanejas. A guerra motivada pelos gatos ë seus cúmplices fez sofrer ao capital do país ama<br />
diminuição <strong>de</strong> 77 milhões e meio <strong>de</strong> cruzados, segundo o cálculo do ministro da Fazenda Franzini, muito retrógrado,<br />
mas um génio no algarismo.<br />
O Zeferino das Lamelas, às primeiras comoções do vulcão popular, nos arredores <strong>de</strong> Guimarães, preparouse;<br />
e assim que ouviu repicar a rebate em Ronfe, cheio <strong>de</strong> ciúmes como o sineiro <strong>de</strong> Notre Dame, agarrou-se à corda<br />
do sino, reuniu no adro os jornaleiros e vadios <strong>de</strong> três freguesias, e pegou a dar morras aos Cabrais com aplauso<br />
universal. Depois, explicou o que era o cadastro, confundindo este expediente estatístico com canastro: – que os<br />
Cabrais e os seus empregados andavam a tomar as terras a rol para empenharem Portugal à Inglaterra; que esses réis<br />
estavam nos cartórios das administrações e em casa dos regedores; que era preciso queimar as papeletas e matar os<br />
cabralistas.<br />
Em seguida, invadiram a administração <strong>de</strong> Santo Tirso, quebraram as vidraças dos cartistas fugitivos e<br />
queimaram os impressos e quantos papéis acharam, no Campo da Feira. Depois, abalaram para Famalicão. Zeferino<br />
nomeara-se chefre da gentalha embriagada nas a<strong>de</strong>gas arrombadas dos cabralistas, e alvitrou que se pren<strong>de</strong>ssem os<br />
regedores que topassem. Dizia que o Joaquim <strong>de</strong> Vilalva, nas eleições do ano anterior, muito socadas, cascara no<br />
povo e mais os cabos, na assembleia <strong>de</strong> Landim, cacetada brava. A bebe<strong>de</strong>ira dos ouvintes <strong>de</strong>ra à pérfida aleivosia<br />
do pedreiro vingativo o valor <strong>de</strong> facto histórico. O plano <strong>de</strong> Zeferino era abrir oportunida<strong>de</strong> a que José Dias fosse<br />
assassinado ou, pelo menos, preso e <strong>de</strong>gredado como cabralista.<br />
Vilalva ficava-lhes a jeito, no caminho <strong>de</strong> Famalicão. O amante <strong>de</strong> Marta ouvira gran<strong>de</strong> alarido e vira ao<br />
longe a multidão que galgava um outeiro turbulentamente. Viase <strong>de</strong>sfraldado no ar, em oscilações largas, o pano<br />
escarlate <strong>de</strong> uma ban<strong>de</strong>ira: era um pedaço do velho estandarte que servia nas procissões <strong>de</strong> Santa Maria <strong>de</strong> Aba<strong>de</strong>.<br />
José pediu ao pai que fugisse. O regedor disse que não – que nunca tinha feito mal a ninguém, nem sequer pren<strong>de</strong>ra<br />
um refractário: que o mais que podiam fazer era tirar-lhe o governo.<br />
José Dias tinha medo às cobar<strong>de</strong>s ameaças do Zeferino; diziam-lhe que o pedreiro jurara matá-lo, e já<br />
constava que era ele o chefe da guerrilha, em que se alistaram todos os ladrões e assassinos conhecidos na comarca.<br />
A mãe empurrava-o pela porta fora – que fugisse para Cal<strong>de</strong>las; que não fosse o Diabo armar-lhe alguma trempe por<br />
causa da Marta, da tal bebedinha que não <strong>de</strong>ra cavaco ao pedreiro. Ele <strong>de</strong>itou o selote à égua e fugiu a galope; mas o<br />
regedor, com a sua consciência ilibada, esperou os revoltosos com o Zeferino à frente, brandindo a espada do pai,<br />
que não se <strong>de</strong>sembainhara <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ataque a Santo urso.<br />
– Está você preso por cabralista! – intimou o pedreiro, <strong>de</strong>itando-lhe a mão à lapela da véstia; e voltado para<br />
a turba: – Rapazes, cercai<strong>de</strong> a casa; tudo que estiver, preso!.<br />
– <strong>Os</strong> meus filhos saíram; mas entrem, busquem à vonta<strong>de</strong> – disse o regedor; e, olhando para o pedreiro,<br />
ironicamente: – Ah seu Zeferino, seu Zeferino, você não veio aqui para me pren<strong>de</strong>r a mim... É outra história que<br />
você lá sabe. Isto <strong>de</strong> mulheres são os nossos pecados, mestre Zeferino...<br />
– Não me cante! – bradou o das Lamelas com furiosos arremessos. – Está preso, e mexa-se já para a ca<strong>de</strong>ia.<br />
– Você não po<strong>de</strong> pren<strong>de</strong>r-me, mestre Zeferino – contrariou a autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da lei. – Vá buscar primeiro<br />
unia or<strong>de</strong>m do meu administrador ou do governador civil.<br />
– Já não há governador civil! – explicou o caudilho. – Agora são outros governos, seu asno! Quem reina é o<br />
Sr. D. Miguel I. E você não me esteja aí a fanfar, que eu já não o enxergo. An<strong>de</strong> lá para a ca<strong>de</strong>ia, com <strong>de</strong>z milhões<br />
<strong>de</strong> diabos!<br />
O regedor entrou em Vila Nova <strong>de</strong> Famalicão na onda <strong>de</strong> alguns milhares <strong>de</strong> homens e rapazes que davam<br />
vivas a D. Miguel, às leis novas, à santa religião e morras aos cabralistas. Quando queimavam os papéis, um<br />
brasileiro setembrista, o Sá Miranda, disse ao comandante que não convinha por enquanto aclamar D. Miguel; que<br />
<strong>de</strong>ssem morras ao governo e vivas à religião. Nesta barafunda, o regedor preso entre meia dúzia <strong>de</strong> jornaleiros que<br />
discutiam as leis velhas e as novas na taverna do Folipo, compreen<strong>de</strong>ra um aceno do taverneiro e fugira pelos<br />
quintais. Meteu-se ao caminho <strong>de</strong> Braga, on<strong>de</strong> estava o general con<strong>de</strong> das Antas. O José Dias, receando que o<br />
perseguissem em Cal<strong>de</strong>las, refugiara-se também em Braga e alistou-se no batalhão dos serezinos comandado pelo<br />
cónego Monte Alverne.<br />
7 Carta dirigida ao cavalheiro José Hume. Versão <strong>de</strong> António Pereira dos Reis, 1847, pág. 99.