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Os Noivos, de Artur Azevedo - BEMaior

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D. Teresa sentia-se mal, num embaraço quase ridículo, naquele meio. Marta não a largava, parecia uma<br />

criança espavorida, agarrada ao vestido da mãe, assim que ouvia os passos do tio. Ele, muito carinhoso, com o<br />

monóculo no olho direito, a oferecer-lhe castanhas <strong>de</strong> ovos, toucinho do céu, a pegar-lhe da mão e a fazer-lhe festas<br />

no rosto muito corado <strong>de</strong> pudor. D. Teresa discretamente <strong>de</strong>ixou-os sozinhos. A Marta ficou a olhar para a porta por<br />

on<strong>de</strong> a amiga se evadira, e fazia uns gestos <strong>de</strong> quem meditava raspar-se; mas o marido tinha-a segura pelas mãos<br />

mimosas, beijando-lhas ambas com uma sensualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>licada, um pouco babada, mas muito comedida, esten<strong>de</strong>ndo<br />

os beijos quentes e húmidos até aos pulsos lácteos e redondinhos. Marta, numa impassibilida<strong>de</strong>, não se recusava às<br />

carícias, e pareceu mesmo inclinar um pouco o rosto quando o esposo com um bom sorriso do amor dos quinze anos<br />

lhe pediu um beijinho, que foi mais <strong>de</strong>morado do que era <strong>de</strong> esperar da sua candura e da inexperiência <strong>de</strong> tais<br />

<strong>de</strong>lícias. Estavam ambos rosados; mas o rubor <strong>de</strong> Marta era carminado <strong>de</strong> mais e nos seus olhos havia uma rutilação<br />

vaga pela extensão da gran<strong>de</strong> sala. Ela via a sombra <strong>de</strong> José Dias: era o José Dias em pessoa, dizia ela <strong>de</strong>pois a D.<br />

Teresa, quando recuperou os sentidos, e não sabia como a transportaram para a cama da sua amiga. Apenas se<br />

lembrava <strong>de</strong> que o tio, <strong>de</strong>pois que a beijara no rosto, a levara pelo braço e entrara com ela no seu quarto, apertando-a<br />

muito ao peito, levantando-a nos braços com muita força, não a <strong>de</strong>ixando fugir e sufocando-lhe os suspiros com os<br />

beijos. Não se lembrava <strong>de</strong> mais nada. E D. Teresa, quanto cabia na sua alçada, contava-lhe o resto imperfeitamente;<br />

isto é, que o marido a fora chamar ao laranjal, um pouco aflito, dizendo que a sua esposa estava na cama sem<br />

sentidos; e pedia vinagre para lhe chegar ao nariz.<br />

Padre <strong>Os</strong>ório veio jantar e buscar a irmã. Observou no aspecto do brasileiro uma irradiação <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, o<br />

júbilo <strong>de</strong> uni homem que se sentia impavidamente completo, na integrida<strong>de</strong> da sua missão filogínica. Foi então que<br />

o padre assentou as suas teonas um pouco flutuantes acerca das vantagens da castida<strong>de</strong> em benefício das impurezas<br />

alheias.<br />

O Feliciano, quando o cirurgião chegou à tar<strong>de</strong>, contou-lhe com pouco recato <strong>de</strong> pudicícia conjugal as<br />

circunstâncias, particularida<strong>de</strong>s ocasionadas no , dizia ele. O facultativo, um velho patusco, disse que não se<br />

admirava, porque a Srª D. Marta era muito nervosa, imperfeita ainda na sua organização, e que as impressões<br />

<strong>de</strong>sconhecidas e um pouco violentas nas constituições fracas produziam extraordinárias perturbações; mas que não<br />

se assustasse, que não era nada; que as segundas naturezas se faziam com o hábito.<br />

– Banhos <strong>de</strong> mar – aconselhava – bife na grelha e vinho do Porto, quanto mais choco melhor. O que se quer<br />

cá fora é um rapaz; não há como um filho para fortalecer a compleição <strong>de</strong> uma mulher débil; um filho, quando sai<br />

do ventre da mãe, traz consigo para fora os maus nervos, e acabam os chiliques. An<strong>de</strong>-me com um rapagão para a<br />

frente!<br />

Na ausência <strong>de</strong> D. Teresa, a melancolia <strong>de</strong> Marta cerrava-se <strong>de</strong> dia para dia. O governo da casa era-lhe <strong>de</strong><br />

todo indiferente, como se fosse hóspeda. O marido não a compelia a interessar-se nesses arranjos <strong>de</strong> que, dizia o<br />

Simeão, ela nunca quisera saber em Prazins. O barão do Rabaçal mandara-lhe do Porto cozinheira e governanta.<br />

Marta saía raras vezes <strong>de</strong> uma saleta on<strong>de</strong> tinha um oratório que trouxera <strong>de</strong> casa. Confessavase mensalmente a Frei<br />

Roque, o irmão da sua mestra, e professor do <strong>de</strong> Vilalva, e <strong>de</strong>morava-se no confessionário com perguntas<br />

<strong>de</strong>svairadas a respeito da alma <strong>de</strong> José Dias, porque dizia ela ao padre-mestre que o via muitas vezes em corpo e<br />

alma, e até o ouvia falar e lhe sentia as mãos no seu corpo. O fra<strong>de</strong>, sem revelar o sigilo da confissão, dizia à irmã<br />

que a Marta dava em doida como a mãe.<br />

O Feliciano ficou espavorido quando a mulher, num dos paroxismos epilépticos, se pôs a rir para ele com<br />

os olhos espasmódicos e a chamar-lhe José, seu Josezinho. Passada a nevrose, quando ela imergia num torpor físico<br />

e mental, o marido contou-lhe o caso <strong>de</strong> lhe chamar Josezinho. Ela parecia esforçar-se muito para recordar-se, e<br />

dizia que não se lembrava <strong>de</strong> nada. Vinha o cirurgião a miúdo: – que era histerismo, e consolava o marido com a<br />

esperança no tal rapagão, esperanças bem fundadas, segundo as confidências do pai; mas, consultado pelo padre<br />

<strong>Os</strong>ório, o Pedrosa, um gran<strong>de</strong> clínico, dizia que a brasileira não tinha simplesmente a gota coral; que havia ali<br />

epilepsia complicada com <strong>de</strong>lírio, alienação mental intermitente, um estado <strong>de</strong> inconsciência ou consciência<br />

anormal, e que verda<strong>de</strong>iramente se não podiam <strong>de</strong>terminar bem quais eram os seus actos <strong>de</strong> luci<strong>de</strong>z intercorrente.<br />

– Ela está grávida – observou o vigário <strong>de</strong> Cal<strong>de</strong>las. – Parece que este facto <strong>de</strong>nota uma tal ou qual<br />

normalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consciência, uma concepção racional dos <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> esposa...<br />

– Não <strong>de</strong>nota nada – refutou o médico. – Faça <strong>de</strong> conta que é uma sonâmbula. E, como a sua <strong>de</strong>mência é<br />

funcional e não orgânica, não há <strong>de</strong>sorganizações físicas que a estorvem <strong>de</strong> ser mãe. O meu colega que lhe assistiu à<br />

última vertigem disse-me que, alguns minutos antes do ataque, ela, numa gran<strong>de</strong> irritabilida<strong>de</strong>, lhe dissera que fugia<br />

para Vilalva, que queria ver o José Dias... O marido felizmente fora nessa ocasião prover-se <strong>de</strong> vinagre à <strong>de</strong>spensa.<br />

Eu consi<strong>de</strong>ro-a perdida, a menos que se lhe não dê uma pronta e completa diversão ao espírito, e nem assim se<br />

consegue senão temporariamente <strong>de</strong>serdar os <strong>de</strong>sgraçados que tiveram mãe e avó como esta Marta. Eu assisti ao<br />

primeiro e ao último período <strong>de</strong> Genoveva. Repetiram-se as vertigens, veio a <strong>de</strong>cadência gradual da razão, <strong>de</strong>lírios,<br />

i<strong>de</strong>ias confusas, concepção difícil, nevroses vesânicas e, por fim, suicidou-se já num estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>mência epiléptica,<br />

que os especialistas consi<strong>de</strong>ram a mais incurável. Este me parece o itinerário da Mana, e casála com o tio <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><br />

ser um acto imoral para ser um estúpido arranjo <strong>de</strong> fortuna por lado do pai e <strong>de</strong> luxúria por parte do marido. Esta<br />

pequena tinha <strong>de</strong> vir a isto, e há-<strong>de</strong> ir a <strong>de</strong>mência, mesmo sem drama nem paixão. Tem o cérebro <strong>de</strong>feituoso assim<br />

como podia ter a espinha vertebral raquítica. Como se faz a perda da vista? Pela paralisia dos nervos ópticos; pois a

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