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Cap 4 Sócrates e Platão

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<strong>Cap</strong> 4 SÓCRATES E PLATÃO<br />

Ramiro Marques<br />

Neste capítulo, vamos proceder à identificação das ideias<br />

pedagógicas de <strong>Sócrates</strong> e de <strong>Platão</strong>, recorrendo às seguintes obras:<br />

a "Apologia de <strong>Sócrates</strong>", "Lísis", "Parménides" e "Fedro".<br />

A Apologia de <strong>Sócrates</strong> é não só um dos mais belos textos<br />

literários da Antiguidade Clássica, como uma das defesas mais<br />

inteligentes da noção socrática de justiça. Constitui, por isso, um<br />

texto de leitura obrigatória em qualquer programa de educação ética,<br />

sendo injustificável a sua não inclusão como texto de leitura integral<br />

nos Cursos de Formação Inicial de Professores. A apresentação que<br />

dele vamos fazer, em seguida, segue a tradução de Pinharanda<br />

Gomes, para a Guimarães Editores (1) e muito deve ao seu admirável<br />

prefácio e esclarecedoras notas.<br />

O processo de <strong>Sócrates</strong> desenrolou-se em três partes. No acto<br />

1, <strong>Sócrates</strong> acusa os seus acusadores de calúnia. <strong>Sócrates</strong> não só não<br />

corrompe a juventude, como a educa. Não só não introduz novos<br />

deuses, como toda a sua vida os respeitou, dedicando o seu tempo a<br />

fazer aquilo que o oráculo de Delfos afirmou que ele fazia melhor do<br />

que todos os outros: mostrar aos que se dizem sábios que eles não<br />

só não são sábios como nem sequer se apercebem da sua ignorância.<br />

No acto 1, <strong>Sócrates</strong> é considerado culpado.<br />

No acto 2, <strong>Sócrates</strong> contrapõe ao veredicto de culpa e<br />

respectiva pena de condenação à morte, o reconhecimento da cidade<br />

pelos distintos serviços que a ela dedicou, merecendo ser alimentado<br />

no pritaneu, a expensas do Estado. O pritaneu era o edifício público<br />

onde estava o refeitório e se serviam refeições às pessoas<br />

importantes e aos vencedores dos jogos. Quanto à contraproposta<br />

que dele se espera para a pena que merece, o filósofo fixa-a numa<br />

pequena multa que os seus amigos presentes na Assembleia seriam<br />

capazes de pagar com facilidade. A contraproposta de <strong>Sócrates</strong> é<br />

encarada pelos juízes como um desafio, uma provocação e um<br />

ultraje. Repetida a votação, é condenado à morte por uma larga<br />

maioria.<br />

No acto 3, <strong>Sócrates</strong> despede-se dos seus juízes, avisando-os de<br />

que eles irão ser censurados pela posteridade por o terem condenado<br />

à morte.<br />

Pinharanda Gomes, no prefácio à edição da Apologia de<br />

<strong>Sócrates</strong>, que serve de base a este texto, divide a obra em três<br />

partes: o Prólogo (17 a -18 a), a Narrativa e Argumento (18 a - 26 a)<br />

e a Conclusão (28 a - 42 a), havendo na Conclusão, dois momentos<br />

distintos: a Súplica (35 a - 38 b) e a Despedida (38 c - 42 a).<br />

Após o veredicto, <strong>Sócrates</strong> ficou, na prisão, trinta dias, já que<br />

nenhuma condenação à morte podia ser executada enquanto o vaso<br />

sagrado ido para Delos, a ilha sagrada de Apolo, não tivesse


egressado a Atenas. Embora os seus amigos lhe oferecessem a<br />

possibilidade de fuga, <strong>Sócrates</strong> preferiu ser vítima de uma injustiça a<br />

violar as leis da cidade de Atenas.<br />

<strong>Sócrates</strong> tinha 70 anos de idade, quando recebeu a acusação<br />

formulada por Meleto, poeta, personagem do diálogo Eutífron e<br />

porta-voz dos restantes acusadores, Ânito, general e político<br />

ateniense, que lutou pela implantação da democracia e derrube do<br />

regime dos Trinta Tiranos e Lícon, orador de ascendência estrangeira,<br />

parodiado pelo poeta cómico Eupolis. Acusação: "<strong>Sócrates</strong> é um<br />

delinquente, culpado de indagar com impiedade os segredos que há<br />

sob a terra e no céu, de fazer prevalecer os argumentos nocivos e de<br />

ensinar os outros a fazer o mesmo" (2). A acusação acrescentava:<br />

"<strong>Sócrates</strong> é culpado de negar os deuses reconhecidos pela cidade e<br />

de introduzir novas divindades; é também culpado de corromper a<br />

juventude" (3).<br />

A cena passa-se, em 399 a C., era <strong>Sócrates</strong> já um ancião com<br />

70 anos, embora com dois filhos ainda pequenos e um adolescente. A<br />

acusação fora levada à Assembleia dos Heliastas, composta por<br />

quinhentos e um juízes (um deles para evitar situações de empate na<br />

votação final) que a interpretaram como uma acusação, provada, de<br />

impiedade.<br />

Apesar de Lísias, grande orador, ter oferecido os seus préstimos<br />

a <strong>Sócrates</strong>, este declinou a oferta, preferindo encarregar-se, ele<br />

próprio, da sua defesa: " era possível que Lísias, treinado nas lides<br />

forenses, conhecedor das psicologias helenísticas, mais ajustado aos<br />

modos de reagir de tais assembleias, detivesse o segredo - não<br />

necessariamente a arte de demonstrar a verdade - do ínfimo<br />

pormenor persuasivo, pelo qual fosse possível mover a comiseração<br />

dos Quinhentos e Um. No entanto, se <strong>Sócrates</strong> fosse beneficiado, o<br />

benefício iria a crédito, não da sua palavra, não da sua arte, não do<br />

seu pensamento, mas da palavra, da arte e do pensamento de um<br />

Sofista. Nesse caso, a filosofia calava-se, cedendo o lugar. Situação<br />

limite: ou <strong>Sócrates</strong> optava por uma apologia a seu modo ou recorria a<br />

outro. No primeiro caso, assumia o filosofar com todas as<br />

consequências de vida e de morte; no segundo caso, confessava<br />

implicitamente a ineficácia do seu método perante a interrogação da<br />

verdade em juízo" (4).<br />

Como não podia deixar de ser, <strong>Sócrates</strong> optou por assumir a<br />

filosofia, recusando sequer equacionar a possibilidade de obter o<br />

perdão em troca do abandono da filosofia: "se, apesar disto, me<br />

dissesseis: <strong>Sócrates</strong>, os argumentos de Ânito não nos convencem,<br />

mandamos-te em paz, na condição de que não preservarás nas tuas<br />

investigações, nem voltarás a ocupar-te da filosofia, pois, caso<br />

contrário, se reincidires, morrerás; se, insisto, me absolvesseis nessa<br />

condição, responder-vos-ia: - Atenienses, respeito-vos e estimo-vos,<br />

mas antes obedecerei ao deus do que a vós, e, enquanto me restar<br />

um sopro de vida, não deixarei de filosofar, e continuarei a exortarvos<br />

e a aconselhar-vos, e a cada um de vós direi, segundo o meu


velho costume - caro amigo, então tu, que és Ateniense, filho da<br />

maior cidade e mais famosa pelo saber e pelo poder, não te<br />

envergonhas de pensar só em riquezas, glórias e honrarias, sem que<br />

concedas o menor cuidado à sabedoria, à verdade e à perfeição da<br />

tua alma?" (4).<br />

A coragem de <strong>Sócrates</strong> era proverbial e todos conheciam a<br />

forma heróica como combateu nas guerras ao serviço da cidade de<br />

Atenas (5). Na Apologia, <strong>Sócrates</strong> terá oportunidade de, mais uma<br />

vez, identificar a cobardia com a ignorância, nomeadamente a<br />

ignorância dos que pensam saber e nada sabem: "na verdade,<br />

cidadãos, temer a morte não significa mais do que julgar-se sábio<br />

sem o ser, significa pretender saber o que se ignora. Com efeito,<br />

ninguém sabe o que é a morte, ninguém pode afirmar que ela não é<br />

a maior benção para o homem, mas os homens temem-na, como se<br />

soubessem que é o pior dos males. E não será a mais repreensível<br />

ignorância, essa de julgar conhecer o que não se conhece? Talvez<br />

que, neste assunto, cidadãos, eu seja diferente da maioria. Se algo<br />

há em que afirme ser mais sábio do que outros, é aqui: que nada<br />

sabendo de certo sobre Hades (6), eu não penso que sei. No entanto,<br />

sei que uma acção injusta, a desobediência aos superiores, sejam<br />

deus ou homem, sei que é um mal e uma desgraça. Por isso, não<br />

poderei aquiescer a temer e a tentar evitar aquilo que ignoro se é um<br />

bem, mais do que evito os males que sei serem males" (7). <strong>Sócrates</strong><br />

diz aos seus acusadores que antes a morte do que a injustiça ou a<br />

infâmia, pois a primeira não sabemos se é um bem ou um mal, mas<br />

as segundas sabemos, de ciência certa, que são um mal: "enganaste,<br />

amigo, se julgas que um homem com algum mérito, por fraco que<br />

seja, deve ter em conta o risco de viver ou de morrer, em vez de ter<br />

unicamente na ideia quando actua, se o que faz é justo ou injusto, se<br />

é digno de um homem de bem ou um malvado" (8).<br />

A defesa de <strong>Sócrates</strong> é, antes de mais, uma acusação àqueles<br />

que, achando-se sábios, não reconhecem sequer a sua ignorância. E<br />

foram esses falsos sábios, na política, nas artes e na oratória,<br />

representados pelos três acusadores, o poeta Meleto, o general e<br />

político Ânito, e o orador Lícon, que, sentindo-se ameaçados no seu<br />

desejo de honra e fama, por um <strong>Sócrates</strong> que dedicou toda a sua<br />

vida a interrogar os que se diziam sábios - mostrando que não só não<br />

eram sábios, como nem sequer reconheciam a sua ignorância -<br />

acabaram por corporizar a onda de calúnias que se avolumou em<br />

torno do filósofo. Antes de mais, custava a esses falsos sábios,<br />

sedentos de fama, glória e riquezas materiais, verem um filósofo<br />

maltrapilho, qual arreliador moscardo, afirmar em público: "por causa<br />

desta ocupação (interrogar os falsos sábios) não tenho tido vagar<br />

para me ocupar com seriedade de qualquer tarefa, já pública, já<br />

privada, e, assim, por bem servir a deus é que vivo, como se vê, na<br />

maior pobreza" (9).<br />

A missão que o deus lhe reservara, segundo a profecia do<br />

oráculo de Delfos, era a de dedicar a vida a procurar homens mais


sábios do que ele. Tudo isto porque, embora a sacerdotiza Pítia, do<br />

oráculo de Delfos, tivesse afirmado que <strong>Sócrates</strong> era o homem mais<br />

sábio, <strong>Sócrates</strong> sabia que não era sábio. Contudo, <strong>Sócrates</strong> também<br />

sabia que o oráculo de Delfos não mentia. Procurou, por isso, durante<br />

toda a sua vida, interrogar os homens que se diziam sábios, faltandolhe<br />

o tempo para tratar dos negócios públicos e privados. Essa arte,<br />

magistralmente desenvolvida por <strong>Sócrates</strong>, era a maiêutica, que<br />

aplicava, em todo o lado onde houvesse homens dispostos a escutálo<br />

e, com ele, travar um diálogo. Sendo um homem da rua, pouco<br />

dado ao cumprimento dos seus deveres de esposo e pai, <strong>Sócrates</strong><br />

passava a maior parte do seu tempo, nas ruas, praças e mercados de<br />

Atenas, rodeado de jovens interessados em desfrutar da sua<br />

companhia. Um desses jovens era <strong>Platão</strong>.<br />

<strong>Sócrates</strong>, na Apologia, descreve, de forma soberba, a sua<br />

missão: "comecei por ir a casa de um desses homens com fama de<br />

sábio, persuadido que aí, melhor do que algures, poderia verificar o<br />

significado do oráculo, se este era ou não fundado, de forma a poder<br />

retorquir ao deus: - Eis, afinal, um homem que é mais sábio do que<br />

eu, quando tu dizias que eu era o mais sábio. Examinando este<br />

homem, - cujo nome não necessito de aqui declarar, bastando dizer,<br />

Atenienses, que era um dos nossos políticos, esse com quem tive<br />

esta espécie de experiência e conversando com ele, esse homem<br />

pareceu-me sábio aos olhos de muita gente e principalmente aos<br />

seus próprios olhos, embora de modo algum o fosse. Então, procurei<br />

demonstrar-lhe que, embora se julgasse sábio, tal não era.<br />

Resultado: tornei-me odioso a esse homem e a muitos dos que se<br />

achavam presentes, e, ao sair, ia dizendo para mim mesmo: - sou<br />

decerto mais sábio do que este homem. É possível que nenhum de<br />

nós saiba algo de belo e de bom, mas ele julga que sabe quando<br />

nada sabe, enquanto eu que, nada sei, não julgo que sei. Enfim,<br />

pareceu-me, por conseguinte, que sou um pouco mais sábio do que<br />

ele, pelo menos nisto: eu não julgo saber o que na verdade não sei"<br />

(10).<br />

<strong>Sócrates</strong> não convence a Assembleia dos Quinhentos e Um e<br />

recebe o veredicto, lançando uma nova acusação aos juízes: "se<br />

pensais que, matando homens, silenciais os que vos reprovam,<br />

porque não procedeis conforme deveis, estais enganados. Tal modo<br />

de vos libertardes nem é possível, nem dignificante, pois o mais fácil<br />

e dignificante não consiste em suprimir os outros, mas em vos<br />

tornardes tão bons quanto possível. Assim, com este vaticínio, ó vós<br />

que me condenastes, me despeço" (11).<br />

Nas últimas páginas da Apologia, <strong>Sócrates</strong> dirige-se aos juízes<br />

que votaram a seu favor, procurando explicar-lhes que a morte é<br />

benvinda para os homens justos: "também vós, ó juízes, deveis olhar<br />

a morte com esperança e ter em mente esta única verdade: nenhum<br />

mal pode acontecer a um homem de bem, nem em vida, nem depois<br />

da morte, e o deus não o negligencia. Por isso, e também, o que me


aconteceu não aconteceu por acaso, e vejo que o melhor para mim é<br />

morrer agora, libertando-me de todos os cuidados" (12).<br />

As últimas palavras de <strong>Sócrates</strong>, na Apologia, são dirigidas aos<br />

juízes que votaram a sua condenação à morte e constituem um<br />

autêntico programa educativo: "quando meus filhos forem homens,<br />

cavalheiros, puni-os como eu vos punia, no caso de eles cuidarem<br />

mais do dinheiro e de coisas semelhantes do que da virtude; e se<br />

porventura julgarem valer alguma coisa, sem nada valerem,<br />

repreendei-os tal como eu vos repreendi, para que não cuidem do<br />

que não devem, e não se arroguem valer o que não valem. Se assim<br />

fizerdes, tereis sido justos para mim e para os meus filhos. Chegado<br />

é o tempo de partirmos. Eu para a morte, vós para a vida. Qual dos<br />

destinos é o melhor, a não ser o deus, ninguém o sabe" (13).<br />

O conceito de amizade é central na teoria educativa de <strong>Platão</strong>.<br />

Embora o conceito de amizade percorra boa parte da obra filosófica<br />

de <strong>Platão</strong>, é no diálogo Lísis que ele é abordado com mais<br />

profundidade, embora seja em o Banquete que a amizade é analisada<br />

de uma forma mais poética e mais bela.<br />

É importante conhecermos o conceito de amizade na filosofia de<br />

<strong>Platão</strong> porque, na Grécia do séc. IV a C., a educação era um processo<br />

que implicava uma relação entre amigos. Na verdade, havia duas<br />

concepções complementares de educação: por um lado, os sofistas<br />

encaravam-na como um ofício remunerado que se destinava a<br />

preparar os jovens aristocratas para a vida pública e para tratarem<br />

dos seus negócios e, por outro, a concepção socrática defendia que a<br />

educação era mais do que isso, implicando uma relação de<br />

convivência entre amigos que tiravam prazer no facto de estarem<br />

juntos e, entre os quais, os mais velhos e mais sabedores iniciavam<br />

os mais novos na arte de fazer perguntas sobre o sentido da vida, o<br />

conceito de bem, de belo e de verdadeiro. Os diálogos de <strong>Platão</strong><br />

exemplificam a segunda concepção de educação, embora, a sua<br />

leitura, mostre que, tanto <strong>Sócrates</strong> como <strong>Platão</strong>, não descuravam a<br />

importância da primeira concepção, embora criticassem o utilitarismo<br />

e o relativismo ético dos sofistas. A este propósito, a leitura do<br />

diálogo Parménides é elucidativa (14). Enquanto os sofistas andavam<br />

de cidade em cidade a oferecer os seus serviços aos jovens<br />

aristocráricos, hospedando-se em casa deles e recebendo dinheiro<br />

pelas suas lições, <strong>Sócrates</strong> preferia passear por Atenas, frequentar os<br />

ginásios, encontrar os amigos e estabelecer, com eles, um diálogo<br />

que visava fazer recordar o conhecimento que a alma possuía<br />

previamente, mas havia esquecido. Para <strong>Sócrates</strong> e para <strong>Platão</strong>,<br />

aprender é recordar e a educação é sinónimo de anamnese.<br />

Para compreendermos melhor a teoria da educação de <strong>Sócrates</strong><br />

e de <strong>Platão</strong> temos de saber em que consistia o método socrático. Há<br />

dois momentos distintos no método socrático: a confissão da


ignorância e um argumento, seguido de perguntas e respostas, que<br />

procuram eliminar as concepções erradas e uma aproximação à<br />

verdade. Vale a pena referir o modo como <strong>Sócrates</strong> percebeu que a<br />

sua missão era mostrar que o único conhecimento verdadeiro era o<br />

autoconhecimento e que quanto mais um apessoa julga que sabe<br />

mais ignorante é. Um dos seus amigos, numa visita ao oráculo de<br />

Delfos, perguntou à divindade quem era o homem mais sábio. A<br />

divindade respondeu-lhe que era <strong>Sócrates</strong>. Quando o amigo de<br />

<strong>Sócrates</strong> lhe contou a resposta, o filósofo ficou perplexo, pois sabia<br />

que não era um homem sábio. Então, decidiu desafiar a divindade e<br />

passou a procurar homens mais sábios do que ele. Durante a sua<br />

vida, <strong>Sócrates</strong> concretizou essa missão, procurando e abordando<br />

quantos se atravessavam no seu caminho para lhe fazer perguntas<br />

que evidenciassem as suas concepções erradas de verdade.<br />

A confissão de <strong>Sócrates</strong> da sua ignorância tinha um duplo<br />

significado: primeiro, procurava dizer que não possuía uma verdade<br />

que pudesse ser transmitida aos outros homens, porque a verdade<br />

precisa de ser descoberta, recordada, na mente de cada um. <strong>Sócrates</strong><br />

considerava que, embora não fosse possível transmitir a verdade, era<br />

possível e desejável procurá-la. O reconhecimento da nossa<br />

ignorância é o primeiro passo na descoberta da verdade. Após essa<br />

etapa, estava aberto o caminho para a Segunda fase do método: a<br />

discussão. Os encontros casuais nos ginásios e nas praças de Atenas<br />

permitiam aos amantes da verdade o estabelecimento de uma<br />

conversa em torno do verdadeiro significado dos conceitos de virtude,<br />

conhecimento, sabedoria, inteligência, coragem e justiça. Apesar de<br />

não chegarem a verdades definitivas, os amigos tinham oportunidade<br />

de reexaminarem os seus conceitos, questionarem os seus dogmas e<br />

abandonarem as crenças e opiniões falaciosas ou falsas. A maiêutica<br />

socrática tinha o objectivo de fazer recordar aquilo que a alma tivera<br />

conhecimento pela contemplação das verdades inteligíveis, porque da<br />

observação e da experiência das coisas sensíveis só poderia resultar<br />

um simulacro da verdade e uma ilusão do verdadeiro conhecimento.<br />

Bertrand Russell (15) comenta, desta forma, o alcance e os<br />

limites do método socrático: "a dialéctica, isto é, o método de se<br />

procurar o conhecimento por meio de perguntas e respostas, não foi<br />

inventada por <strong>Sócrates</strong>. Parece haver sido praticada, primeiro,<br />

sistematicamente, por Zenão, discípulo de Parménides...O método<br />

dialéctico presta-se a algumas questões, mas não se presta a outras.<br />

Talvez isso haja contribuído para determinar o carácter das perguntas<br />

de <strong>Platão</strong>, as quais eram, na sua maior parte, de uma índole que<br />

permitia esse tratamento...Certas matérias, evidentemente, não<br />

podem ser tratadas dessa maneira - como, por exemplo, a ciência<br />

empírica". O facto é que <strong>Sócrates</strong> e <strong>Platão</strong>, ao contrário dos filósofos<br />

pré-socráticos e, mais tarde, de Aristóteles, nunca se interessaram<br />

pelo estudo da natureza e, na Apologia, <strong>Sócrates</strong> dirá em sua defesa:


"não tenho nada a ver com especulações físicas!" O método socrático<br />

presta-se, ainda hoje, bastante bem à análise e discussão de<br />

questões éticas e políticas, mas muito pouco ao estudo das ciências<br />

da natureza. Essa limitação não era percepcionada por <strong>Sócrates</strong> como<br />

uma menos-valia, uma vez que a ética e a política eram<br />

consideradas, na Grécia Clássica como os patamares cimeiros do<br />

conhecimento.<br />

A tese de que a aprendizagem é reminiscência exige o<br />

conhecimento e a análise da teoria das ideias de <strong>Platão</strong> e é isso que<br />

vamos fazer, de seguida.<br />

A última parte do livro V e os livros VI e VII da República<br />

ocupam-se principalmente de filosofia pura e é lá que podemos<br />

encontrar os argumentos a favor da teoria das ideias. O primeiro<br />

argumento é o da distinção entre a realidade e a aparência ou, se<br />

quisermos, entre o conhecimento inteligível ou verdadeiro e o<br />

conhecimento sensível ou aparente. Vejamos um exemplo para<br />

percebermos a diferença: há um homem que adora ver quadros<br />

belos, comer comida excelente e apreciar boa música, enquanto<br />

outro procura dedicar-se ao estudo do conceito de beleza, ou seja, o<br />

conhecimento da beleza absoluta e do belo em si. O primeiro só pode<br />

ter acesso a opiniões sobre a beleza, enquanto o segundo é capaz de<br />

se aproximar do verdadeiro conhecimento da beleza. <strong>Platão</strong><br />

estabelece a diferença entre conhecimento e opinião. Enquanto o<br />

primeiro está certo, porque trata da forma das coisas, da sua<br />

essência, e não da percepção que se tem delas, a opinião pode estar<br />

errada porque é contaminada pelos sentidos. O conhecimento<br />

relaciona-se com o eterno e o imutável e a opinião com o sensível.<br />

Tratando-se de uma questão muito complexa, vamos dar a<br />

palavra a Bertrand Russell que sintetiza, de forma brilhante, a teoria<br />

a teoria das ideias: "No último livro da República, como preliminar a<br />

uma condenação dos pintores, há uma exposição bastante clara da<br />

doutrina das ideias e das formas. Aqui <strong>Platão</strong> explica que, sempre<br />

que um número de indivíduos tem um nome comum, tem também<br />

uma ideia ou forma comum. Embora, por exemplo, haja muitas<br />

camas, há somente uma ideia ou forma de cama. Assim como o<br />

reflexo de uma cama num espelho é apenas aparente, e não real,<br />

assim, também, as várias camas particulares são irreais, sendo<br />

somente cópias da ideia, que é a única cama verdadeira, feita por<br />

Deus. Desta única cama, feita por Deus, pode haver conhecimento,<br />

mas, com respeito às muitas camas feitas por carpinteiros, pode<br />

haver apenas opinião. O filósofo, como tal, só se interessa pela única<br />

cama ideal, e não pelas muitas camas encontradas no mundo<br />

sensível" (16).


Há, assim, dois mundos distintos: o mundo do intelecto e o<br />

mundo dos sentidos e só o primeiro é conhecimento verdadeiro.<br />

Atinge-se o mundo dos sentidos pela percepção sensorial e o mundo<br />

do intelecto pela razão e pelo entendimento. A razão é de categoria<br />

mais elevada e ocupa-se das ideias puras e o seu método é o<br />

dialéctico. O entendimento é inferior à razão e pertence é a categoria<br />

que se emprega, por exemplo, no conhecimento matemático.<br />

Recorrendo à analogia do sentido da vista, <strong>Platão</strong> explica a<br />

diferença entre o mundo inteligível e o mundo sensível da seguinte<br />

maneira: a vista necessita do olho e da luz para ver. Só vemos, com<br />

clareza, os objectos iluminados pelo Sol. Os mesmos objectos, ao<br />

crepúsculo, são visto de forma confusa e, à noite, deixam de ser<br />

vistos. O conhecimento inteligível, próprio do mundo das ideias, é o<br />

que nos permite ver da mesma maneira que vemos o objecto<br />

iluminado pelo Sol e o mundo sensível é semelhante à visão do<br />

objecto, ao crepúsculo.<br />

Mas, foi com a alegoria da caverna que <strong>Platão</strong> encontrou a<br />

forma mais notável de descrever a teoria das ideias. Segundo esta<br />

alegoria, as criaturas humanas vivem numa caverna subterrânea com<br />

uma abertura para a luz, que se estende por todo o interior. Aí<br />

estiveram os prisioneiros desde a infância, com as pernas e os<br />

pescoços presos, de modo a não poderem mover-se ou sequer<br />

voltarem a cabeça. Atrás dos prisioneiros arde uma fogueira e à<br />

frente deles há um muro. Entre eles e a parede não existe nada. Os<br />

prisioneiros vêem apenas as suas próprias sombras e as dos objectos<br />

que estão atrás deles, projectados no muro pela luz da fogueira. Os<br />

prisioneiros consideram as sombras como objectos reais e não têm<br />

qualquer conhecimentos dos objectos que projectam as sombras.<br />

Quando um dos prisioneiros consegue libertar-se e dirigir-se para a<br />

luz do Sol, começa, pela primeira vez, a ver os objectos reais,<br />

reconhecendo que, até aí, tinha sido enganado pelas sombras. As<br />

sombras são o conhecimento sensível, obtido através da percepção<br />

sensorial, enquanto os objectos reais, visto à luz do Sol são o<br />

conhecimento inteligível, as ideias puras ou formas.<br />

Com uma teoria do conhecimento tão idealista, forçoso seria<br />

que <strong>Platão</strong> defendesse um currículo não utilitarista. Na República, o<br />

filósofo faz a apresentação do plano de estudos ideal para a mocidade<br />

ateniense: para além da música, da ginástica, da leitura e da escrita,<br />

da geometria e da aritmética, era proposto o estudo da astronomia e<br />

essa aprendizagem fazia-se durante toda a infância, juventude e<br />

início da idade adulta. Nos primeiros anos, o ensino era ministrado<br />

por um pedagogo, regra geral um escravo culto, mas a partir da<br />

puberdade, o jovem passava a frequentar uma academia que, no<br />

caso de ele possuir elevadas virtudes intelectuais e morais, era<br />

frequentada até aos trinta anos de idade, após o que ficaria apto a


ensinar. Como qualidade do aprendiz, <strong>Platão</strong> apontava a<br />

honorabilidade, a amizade, o amor à sabedoria, espírito harmonioso e<br />

boa memória.<br />

Como se verifica, <strong>Platão</strong> considerava que o corpo era um<br />

obstáculo ao verdadeiro conhecimento e a vista e o ouvido são<br />

testemunhas inexactas. O conhecimento verdadeiro só é revelado à<br />

alma, pela razão e pelo pensamento, e não pelos sentidos.<br />

Compreende-se, por isso, a pouca importância que o filósofo dava ao<br />

conhecimento empírico.<br />

O conhecimento é recordação e, por isso, a alma deve ter<br />

existido antes do nascimento. Assim deve ser porque temos ideias<br />

exactas de muitas coisas de que não temos qualquer experiência<br />

directa. Foi, no Ménon e no Fédon, que <strong>Platão</strong> desenvolveu a tese de<br />

que o conhecimento é reminiscência. No Ménon, pela voz de <strong>Sócrates</strong><br />

é dito que não há ensino, mas apenas recordação e, em ambos os<br />

diálogos, afirma-se que o conhecimento foi traduzido pela alma de<br />

uma existência prévia.<br />

Claro está que esta teoria do conhecimento só é válida para o<br />

conhecimento a priori, como a matemática e a lógica. O<br />

conhecimento empírico, que <strong>Platão</strong> considerava como opinião ou falso<br />

conhecimento, exige a percepção sensorial e a experiência física.<br />

Fica, assim, explicada a defesa de um currículo que não prepara<br />

directamente para o exercício de nenhuma actividade profissional.<br />

Notas<br />

1) <strong>Platão</strong> (1999 - 3ª Edição). Apologia de <strong>Sócrates</strong>. Tradução,<br />

prefácio e notas de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães<br />

Editores<br />

2) Idem, 19 b<br />

3) Xenofonte, Memoráveis, I,1. Cf. Apologia, 24 b<br />

3) Ibid., Prefácio de Pinharanda Gomes<br />

4) Ibid., 29 d<br />

5) A este propósito, ver O Banquete de <strong>Platão</strong>.<br />

6) Hades, irmão de Zeus, governador do reino dos mortos<br />

7) <strong>Platão</strong> (1999 - 3ª edição). Apologia de <strong>Sócrates</strong>. Tradução,<br />

prefácio e notas de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editora,<br />

29 b<br />

8) Idem, 28 b


9) Ibid., 23 e<br />

10) Ibid., 21 c, d<br />

11) Ibid., 39 d<br />

12) Ibid., 41 d<br />

13) Ibid., 41 e; 42<br />

14) Ver a propósito do diálogo Parménides o capítulo 1 do livro de<br />

Marques, R. (2000). Uma Breve História da Ética Ocidental.<br />

Lisboa: Plátano Editora<br />

15) Russell, B. (1982). História da Filosofia Ocidental, Tomo I.<br />

Brasília: Editora Universidade de Brasília, p. 107<br />

16) Idem, p. 141

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