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A prudência em Aristóteles

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A PRUDÊNCIA EM ARISTÓTELES<br />

Ramiro Marques<br />

A <strong>prudência</strong> é uma virtude do pensamento que é uma condição<br />

da virtude. Na Antiguidade Clássica e na Idade Média, era<br />

considerada uma das quatro virtudes cardinais, a par da justiça, da<br />

t<strong>em</strong>perança e da corag<strong>em</strong>. Encontramos referências à <strong>prudência</strong> <strong>em</strong><br />

Platão (1), mas também nos estóicos Diógenes e Cícero e, sobretudo,<br />

no pensamento cristão medieval de Santo Ambrósio, São Agostinho e<br />

São Tomás de Aquino. A <strong>prudência</strong> anda associada ao bom-senso, à<br />

moderação, à circunspecção e à ponderação. O seu contrário é a<br />

im<strong>prudência</strong> e a loucura.<br />

O vocábulo <strong>prudência</strong> v<strong>em</strong> do latim prudentia, o qual v<strong>em</strong> de<br />

providere, que pode significar prever e prover. É uma qualidade que<br />

permite detectar os perigos e evitar os erros.<br />

Os gregos usavam a palavra phronésis para a designar.<br />

<strong>Aristóteles</strong> considerava que se tratava de uma virtude intelectual, na<br />

medida <strong>em</strong> que t<strong>em</strong> que ver com a verdade, com o conhecimento e a<br />

razão. Para o estagirita, a <strong>prudência</strong> é a virtude que permite deliberar<br />

correctamente acerca do que é bom para a pessoa e agir de acordo<br />

com isso. Não cabe à <strong>prudência</strong> a eleição das finalidades, mas apenas<br />

a escolha dos meios adequados para atingir as finalidades. É a<br />

virtude da boa deliberação. Enquanto a virtude moral assegura a<br />

rectidão do fim que perseguimos, a <strong>prudência</strong> trata dos meios para<br />

alcançar esse fim.<br />

Tomás de Aquino (2) considerava que "para b<strong>em</strong> agir, é<br />

necessário não apenas fazer alguma coisa como também fazê-la<br />

como deve ser, ou seja, é necessário agir de acordo com a escolha<br />

correcta, e não apenas por impulso ou paixão. Mas, como a escolha<br />

incide sobre os meios <strong>em</strong> vista de um fim...é necessário que exista,<br />

na razão, uma virtude intelectual que lhe dê a perfeição necessária<br />

para b<strong>em</strong> se comportar relativamente aos meios a adoptar. Esta<br />

virtude é a <strong>prudência</strong>". A <strong>prudência</strong> não reina, mas governa e, nessa<br />

medida, é imprescindível à boa deliberação, à boa decisão e à boa<br />

acção. A <strong>prudência</strong> é uma espécie de disposição que permite<br />

escolher e realizar os actos cuja realização depende de nós.<br />

<strong>Aristóteles</strong> distingue a <strong>prudência</strong> de outras virtudes do<br />

pensamento, visto ser entendida como a virtude da boa deliberação,<br />

a qual constitui uma espécie de inquérito. Será que a boa deliberação<br />

é uma espécie de conhecimento científico ou uma crença ou uma<br />

aposta? Ou será uma espécie de sabedoria?<br />

<strong>Aristóteles</strong> nega que a <strong>prudência</strong> e a sabedoria sejam uma e a<br />

mesma coisa. A sabedoria t<strong>em</strong> por objecto aquilo que existe por<br />

d<strong>em</strong>onstração e que é s<strong>em</strong>pre da mesma maneira. A <strong>prudência</strong>


efere-se a coisas que estão <strong>em</strong> mudança e que pod<strong>em</strong> ser de várias<br />

maneiras. A <strong>prudência</strong> refere-se às coisas úteis, as quais não têm a<br />

propriedade de ser<strong>em</strong> imutáveis. Uma coisa útil hoje pode tornar-se<br />

inútil amanhã. Ora, a <strong>prudência</strong> permite determinar a utilidade das<br />

coisas, tendo <strong>em</strong> consideração as circunstâncias particulares e o<br />

momento.<br />

A <strong>prudência</strong> também não é uma habilidade, <strong>em</strong>bora se possa<br />

dizer que uma pessoa prudente é hábil. Mas n<strong>em</strong> todos os homens<br />

hábeis são prudentes, pois são conhecidos muitos homens vis que<br />

também são hábeis na maldade.<br />

Conhecimento científico não é, porque não se inquire o que já<br />

se sabe. A deliberação pressupõe um calculo racional, tendo <strong>em</strong> vista<br />

tomar uma decisão. Ao contrário dos estóicos, que viam na <strong>prudência</strong><br />

a ciência das coisas a fazer e a evitar, <strong>Aristóteles</strong> não concordava<br />

com a identificação da <strong>prudência</strong> com uma forma de conhecimento<br />

científico, uma vez que só existe ciência do necessário, e a <strong>prudência</strong><br />

trata apenas do contingente.<br />

Ao contrário da ciência, a boa deliberação supõe a incerteza, o<br />

risco, o acaso e o contingente. Apenas se delibera quando não se<br />

possui o conhecimento científico. O conhecimento científico não visa<br />

n<strong>em</strong> calcular n<strong>em</strong> tomar decisões. Também não pode ser uma<br />

simples crença, porque a boa deliberação exige correcção e rigor.<br />

Também não é uma aposta, porque esta não exige o raciocínio e é<br />

feita rapidamente, ao contrário da boa deliberação que pressupõe o<br />

cálculo racional e é feita com lentidão.<br />

A <strong>prudência</strong> é um saber-fazer. Pressupõe estar atento,<br />

circunspecção e cautela. É a virtude da paciência e da antecipação.<br />

Determina o que dev<strong>em</strong>os escolher e o que dev<strong>em</strong>os evitar. Não<br />

pode, contudo, confundir-se com receio e, muito menos, com<br />

cobardia. Os franceses utilizam a palavra sagesse para a designar,<br />

mostrando b<strong>em</strong> que a boa deliberação anda s<strong>em</strong>pre associada à<br />

inteligência. Santo Agostinho dizia que a <strong>prudência</strong> é um amor que<br />

escolhe com sagacidade.<br />

Como a boa deliberação exige o uso da razão, parece não haver<br />

dúvidas que pertence ao pensamento. Mas não pode ser qualquer<br />

tipo de pensamento. Uma vez que a boa deliberação é uma espécie<br />

de deliberação correcta, importa saber o que é uma deliberação<br />

correcta. Para <strong>Aristóteles</strong> (3), " a boa deliberação é correcção que<br />

reflecte o que é benéfico, sobre a coisa certa, de forma correcta e no<br />

t<strong>em</strong>po certo". A boa deliberação só é incondicionalmente boa se<br />

promover uma recta finalidade.<br />

Haverá uma relação entre <strong>prudência</strong> e inteligência? <strong>Aristóteles</strong><br />

pensa que sim: "se ter deliberado b<strong>em</strong> é próprio de uma pessoa<br />

inteligente, a boa deliberação será o tipo de correcção que expressa o<br />

que é expediente para a promoção do fim acerca do qual a<br />

inteligência é uma suposição verdadeira" (4).<br />

Uma vez que há diferentes espécies de correcção, é preciso<br />

distinguir a correcção da deliberação da pessoa inteligente, dos


outros tipos. <strong>Aristóteles</strong> defende que a boa deliberação não é apenas<br />

a descoberta dos meios mais eficazes para a promoção dos fins. A<br />

boa deliberação visa alcançar o b<strong>em</strong>. Não é possível uma boa<br />

deliberação que vise um fim vil. O bom deliberador e a pessoa<br />

inteligente e virtuosa dev<strong>em</strong> alcançar a conclusão correcta, utilizando<br />

o método adequado. A inteligência é uma virtude do pensamento que<br />

significa a boa deliberação sobre as coisas que contribu<strong>em</strong> para a<br />

nossa felicidade e que resulta numa correcta decisão sobre os fins<br />

rectos.<br />

<strong>Aristóteles</strong>, na Magna Moralia, afirma que é a <strong>prudência</strong> "que<br />

vigia todas as faculdades e é a governanta porque é ela que dá as<br />

ordens. Talvez ela seja como o intendente numa casa. De facto, é o<br />

intendente que organiza tudo, mas ele não governa tudo. A sua<br />

tarefa é a de fornecer t<strong>em</strong>po livre ao senhor da casa, a fim de que<br />

este não seja impedido pelas tarefas necessárias e não se veja<br />

impedido de aceder a alguma das nobres tarefas que lhe convêm. É,<br />

da mesma forma, que a <strong>prudência</strong> é uma espécie de intendente para<br />

a sabedoria, fornecendo-lhe t<strong>em</strong>po livre para completar a sua obra,<br />

ao controlar as paixões" (5).<br />

No capítulo III do livro II da Magna Moralia, o estagirita<br />

considera que a deliberação correcta diz respeito ao mesmo domínio<br />

da <strong>prudência</strong>, porque ambas tratam de escolher as acções que<br />

dev<strong>em</strong>os eleger ou evitar. Por isso, está correcto dizer que a<br />

<strong>prudência</strong> não reina, visto não ter a função de escolher os fins, mas<br />

governa, porque lhe cabe escolher os meios adequados para os fins<br />

rectos.<br />

Na Magna Moralia, <strong>Aristóteles</strong> levanta, ainda, uma outra<br />

questão importante: pode a pessoa injusta ser prudente? A resposta<br />

do filósofo é negativa. O hom<strong>em</strong> injusto não possui as características<br />

do hom<strong>em</strong> prudente. É típico do injusto a incapacidade para discernir<br />

b<strong>em</strong>, para avaliar a diferença entre o b<strong>em</strong> e o mal e para controlar as<br />

paixões e apetites.<br />

Com efeito, o hom<strong>em</strong> injusto é incapaz de visar o b<strong>em</strong> absoluto<br />

e apenas distingue os bens que lhe faz<strong>em</strong> falta s<strong>em</strong> olhar aos outros.<br />

Ao contrário, o hom<strong>em</strong> prudente caracteriza-se por saber discernir<br />

b<strong>em</strong> e por considerar as coisas de forma recta.<br />

No hom<strong>em</strong> prudente, a parte sensitiva da alma está <strong>em</strong> paz<br />

com a parte racional. No hom<strong>em</strong> imprudente, a parte racional da<br />

alma deixa-se dominar pela parte sensitiva. O injusto sabe, de uma<br />

maneira geral, que o poder, a riqueza e a autoridade são bens, mas<br />

não vai além de saber <strong>em</strong> que circunstância e de que forma são bens<br />

ou <strong>em</strong> que circunstâncias deixam de o ser. É, por isso, que o hom<strong>em</strong><br />

injusto não sabe usar correctamente a autoridade, a riqueza e o<br />

poder. Pod<strong>em</strong>os mesmo dizer que quanto mais riqueza, autoridade e<br />

poder o hom<strong>em</strong> injusto tiver, mais mal ele fará aos seus amigos e a<br />

si próprio.<br />

É interessante notar que <strong>Aristóteles</strong>, na Magna Moralia, coloca<br />

alguns probl<strong>em</strong>as que não são abordados nas outras éticas. Um


desses probl<strong>em</strong>as é a questão do conflito de virtudes. Será que a<br />

pessoa pode ver-se perante um conflito de virtudes? E o que deve<br />

fazer? E dá o seguinte ex<strong>em</strong>plo: "quando não é possível realizar,<br />

simultaneamente, acções corajosas e acções justas, quais dev<strong>em</strong><br />

tomar a precedência? Na realidade, no caso das virtudes naturais, já<br />

o diss<strong>em</strong>os, basta que se tenha o impulso para o b<strong>em</strong> s<strong>em</strong> ser<br />

necessário o concurso da razão. Mas, se uma pessoa depara com<br />

uma escolha, essa escolha terá de se exercer com a razão e com a<br />

parte racional da alma. Embora a pessoa tenha, ao mesmo t<strong>em</strong>po,<br />

que escolher a presença da virtude perfeita, nós diz<strong>em</strong>os que ela é<br />

acompanhada da <strong>prudência</strong> e do concurso do impulso natural para<br />

aquilo que é bom. Não haverá mais oposição de virtudes. Com efeito,<br />

uma virtude está por natureza submetida à razão: como esta ordena,<br />

a virtude inclina-se na direcção para onde a razão a conduz, pois é a<br />

razão que escolhe o melhor. De facto, as outras virtudes não pod<strong>em</strong><br />

nascer s<strong>em</strong> a <strong>prudência</strong>, n<strong>em</strong> a <strong>prudência</strong> perfeita s<strong>em</strong> as outras<br />

virtudes, e elas cooperam e segu<strong>em</strong> a <strong>prudência</strong> " (6).<br />

Considerada por Santo Agostinho como a virtude que separa<br />

com sagacidade o que lhe é útil e o que lhe é nocivo, a <strong>prudência</strong> é<br />

uma sabedoria utilitária que permite decidir b<strong>em</strong>. Tomás de Aquino,<br />

na Suma Teológica, considera que a <strong>prudência</strong> é uma virtude<br />

intelectual, que faz parte da razão, e que permite a escolha dos<br />

melhores meios a tomar. Ser prudente é ser razoável, não é ser<br />

cobarde.<br />

Jean Guitton afirma que "ser prudente é fazer prevalecer <strong>em</strong> si<br />

o hom<strong>em</strong> de longa duração sobre o hom<strong>em</strong> do instante" (7). E, mais<br />

à frente, acrescenta: "esta virtude dispõe, com efeito, a razão prática<br />

para discernir <strong>em</strong> qualquer circunstância o nosso verdadeiro b<strong>em</strong> e<br />

para escolher os justos meios para o realizar. Como disse <strong>Aristóteles</strong>,<br />

a <strong>prudência</strong> é a regra justa da acção. Não se confunde n<strong>em</strong> com a<br />

timidez n<strong>em</strong> com o medo, n<strong>em</strong> com a duplicidade n<strong>em</strong> com a<br />

dissimulação. Conduz a outras virtudes indicando-lhes regra e<br />

moderação. Guia o julgamento da consciência" (8).<br />

Notas<br />

1) Platão (1987). República. Lisboa: Publicações Europa-América<br />

2) Aquino, T.(1993). Suma Teológica. Tomo 2. Ed. du Cerf, p. 352<br />

1) <strong>Aristóteles</strong> (1985). Nichomachean Ethics. (Introdução, tradução<br />

e notas de Terence Irwin). Indianapolis: Hackett, 1142 b 25, p.<br />

163<br />

2) id<strong>em</strong>, 1142 b 30, p. 16<br />

3) <strong>Aristóteles</strong> (1995). Les Grands Livres d`Éthique (Magna<br />

Moralia). Évreux: Arléa, 1198 a, 10, p. 136


6) id<strong>em</strong>, 1199 a, 5, p. 147<br />

7) Guitton, J. e Antier, J-J. (1999). O Livro da Sabedoria e das<br />

Virtudes Reencontradas. Lisboa: Editorial Notícias, p. 193<br />

8) id<strong>em</strong>, p. 193

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