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UNIVERSIDADE REGIONAL DE BLUMENAU<br />
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS<br />
CURSO DE DIREITO<br />
SILVIA DAL PIVA<br />
DA PAIXÃO AO CRIME: UM CAMINHO FEITO PELOS DESCAMINHOS DO<br />
AMOR<br />
BLUMENAU<br />
2012
SILVIA DAL PIVA<br />
DA PAIXÃO AO CRIME: UM CAMINHO FEITO PELOS DESCAMINHOS DO<br />
AMOR<br />
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado<br />
para obtenção do grau de Bacharel em Direito<br />
pela Universidade Regional de Blumenau –<br />
FURB.<br />
Profa. Dra. Catarina de Fátima Gewehr – Orientadora<br />
BLUMENAU<br />
2012
SILVIA DAL PIVA<br />
DA PAIXÃO AO CRIME: UM CAMINHO FEITO PELOS DESCAMINHOS DO<br />
AMOR<br />
Trabalho de Conclusão de Curso aprovado<br />
com nota 9,1 como requisito parcial para<br />
a obtenção do grau de Bacharel em<br />
Direito tendo sido julgado pela Banca<br />
Examinadora formada pelos professores:<br />
________________________________________________________________<br />
Presidente: Profa. Dra. Catarina de Fátima Gewehr – Orientadora, FURB<br />
_______________________________________________________<br />
Membro: Profa. Dra. Ivone Fernandes Morcilo Lixa, FURB<br />
Blumenau, 25 de junho de 2012.
DECLARAÇÃO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE<br />
Por meio deste instrumento, isento meu Orientador e a Banca Examinadora de qualquer<br />
responsabilidade sobre o aporte ideológico conferido ao presente trabalho.<br />
________________________________________<br />
<strong>Silvia</strong> <strong>Dal</strong> <strong>Piva</strong>
Esta monografia é dedicada a todas às mulheres que tiveram suas<br />
vidas ceifadas nas mãos daqueles que um dia amaram; àquelas que<br />
acreditam e anseiam pelo amor a si mesmas e aos outros, as quais<br />
desejo imensamente que durante suas jornadas encontrem um mundo<br />
cada vez menos discriminatório e mais justo nas mais queridas de suas<br />
paixões e aspirações.
AGRADECIMENTOS<br />
Agradeço à Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB) pelas<br />
oportunidades que me foram concedias. Em especial ao curso de Direito, em nome de seus<br />
diretores(as) de centro, chefes de departamento, professores(as) e secretárias, pelo apoio no<br />
acompanhamento desta jornada.<br />
Aos meus amigos e colegas de trabalho do Mestrado em Administração da FURB:<br />
Profa. Dra. Marialva Dreher, Prof. Dr. Mohamed Amal e Prof. Dr. Oscar <strong>Dal</strong>fovo pela<br />
compreensão nos inúmeros contratempos que tive durante o curso. Obrigada pelo apoio,<br />
incentivo e mão estendida, sempre torcendo e acreditando no meu potencial.<br />
Aos amigos e colegas de classe: Karoline, Romana, Débora, Patrícia, Adonis e Josué<br />
por diminuir a tensão durante as aulas, pelas risadas, pelos resumos de prova, pelas horas que<br />
juntos aprendemos àquilo que era o nosso sonho. Vocês são demais!<br />
À minha orientadora, Profa. Dra. Catarina, que me acolheu quando eu já pensava em<br />
desistir deste tema; que transformou às horas de orientação nas quintas feiras em encontros<br />
esperados por mim na semana toda; que foi carinhosa, atenciosa, paciente e cuidadosa; que<br />
mudou muitos de meus conceitos sobre a vida, o amor e os relacionamentos. Tenho certeza<br />
que outra pessoa não poderia ter sido, que somente contigo este trabalho fez sentido. Muito,<br />
muito, muito obrigada!<br />
Ao Mario, por toda paciência e compreensão; por transformar os momentos que<br />
estávamos juntos numa espécie de refúgio de todos os compromissos de trabalho e aula que<br />
ficaram cada dia mais intensos neste último semestre; por tornar tudo mais fácil e mais leve;<br />
por estar comigo e só estar. “Amovc”.<br />
Aos meus pais, exemplos de bondade, respeito e amor. Vocês, sem dúvida, foram as<br />
grandes inspirações para este trabalho. Obrigada pela presença, pelo suporte e incentivo, por<br />
tudo o que deixaram de fazer por vocês para fazer por mim, pelos meus sonhos. Vocês<br />
sonharam junto e hoje estamos aqui!<br />
Obrigada a todos vocês por estarem comigo neste momento, onde me sinto exatamente<br />
no lugar onde deveria estar, no auge de meus anseios, meus desejos, meus talentos e minhas<br />
paixões.
“O Júri não é instituição de caridade, mas<br />
de justiça. Não enxuga lágrimas<br />
integradas no passivo do crime, mas o<br />
sangue derramado da sociedade.”<br />
Roberto Lyra
RESUMO<br />
O presente Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) versa sobre a inter-relação de dois campos<br />
da ciência contemporânea: o da Ciência Jurídica e o da Ciência Psicológica, no tocante aos<br />
institutos jurídicos relativos às teses de defesa nos homicídios passionais. O objetivo geral que<br />
o ordena, é dado pela busca de compreensão relativa aos desdobramentos de ações judiciais<br />
existentes em torno do argumentado crime passional, onde a permanência de teses de defesa<br />
tais como a da legítima defesa da honra e a da violenta emoção - caracterizadora do<br />
homicídio privilegiado - parece demonstrar um afastamento da habilitação jurídica daquele<br />
presente no desenvolvimento mais atual da Ciência Psicológica. Observaram-se, para o<br />
proposto, dois casos de homicídios passionais de repercussão nacional à época, ocorridos nos<br />
anos de 1970 e 1976 nas cidades de Búzios (RJ) e Campinas (SP). Verificou-se que em um<br />
dos casos a tese de legítima defesa da honra foi totalmente aceita, absolvendo, por<br />
unanimidade, o Réu da acusação por homicídio qualificado. Noutro caso, o Réu foi<br />
condenado – em segundo julgamento – a 15 anos de reclusão. A conclusão é a de que no<br />
senso comum, pautado numa moral frágil, ainda resta presente nos tribunais do júri,<br />
possibilitando apenas um julgamento parcialmente justo; e que a plenitude do ato jurídico<br />
poderá se dar de maneira mais verdadeiramente justa quando o campo da Ciência Jurídica – e<br />
todos os seus correlatos – puder desfrutar de uma maior aproximação com o campo da<br />
Psicologia Científica, de referência materialista e histórica no tocante a temas tais como<br />
emoção, consciência e habilitação/desabilitação de juízo moral.<br />
Palavras-chave: Emoção. Honra. Moral. Senso comum. Comportamento humano/social.<br />
Homicídio Passional. Legislação constitucional/penal.
RESUMEN<br />
Este trabajo Fin de curso (TCC) se centra en la interacción de dos campos de la ciencia<br />
contemporánea: la ciencia de la ciencia jurídica y psicológica, en lo que respecta a las<br />
instituciones jurídicas relacionadas con la defensa de la tesis en el asesinato de pasión. El<br />
objetivo general es que las órdenes dadas por la búsqueda de la comprensión de las<br />
ramificaciones de las demandas de todo el crimen de pasión existente argumentó, donde la<br />
permanencia de la tesis como la defensa de la legítima defensa del honor y la emoción<br />
violenta - que caracteriza el asesinato privilegiado - parece mostrar una desviación de la<br />
calificación jurídica que este desarrollo más reciente en la revista Psychological Science. Se<br />
observaron en los casos de asesinato de dos propuestas de efectos a nivel nacional de la<br />
pasión en el tiempo, se produjo en 1970 y 1976 en las ciudades de Búzios (RJ) y Campinas<br />
(SP). Se encontró que en un caso la defensa de la tesis de honor fue aceptada plenamente,<br />
absolver, por unanimidad, la acusación contra el acusado por asesinato. En otro caso, el<br />
acusado fue declarado culpable - en el segundo juicio - 15 años de prisión. La conclusión es<br />
que el sentido común, guiado por una moral frágil, sigue presente en los juicios con jurado,<br />
que sólo permite un juicio justo en parte, y que la plenitud del acto jurídico puede tener lugar<br />
de una manera más verdaderamente justo cuando el campo de la Ciencia jurídica - y toda la<br />
relacionada - se puede disfrutar de una relación más estrecha con el campo de la psicología<br />
científica, materialista y de referencia histórica en lo que respecta a cuestiones tales como la<br />
emoción, la conciencia y la activación / desactivación del juicio moral.<br />
Palabras clave: Emoción. Honra. Moral. Sentido común. Comportamiento humano / social.<br />
Apasionado por el asesinato. Derecho Constitucional / penal.
SUMÁRIO<br />
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................11<br />
2 AS TESES DE DEFESA E ACUSAÇÃO EM HOMICÍDIOS PASSIONAIS:<br />
LEGISLAÇÃO VERSUS SENSO COMUM........................................................................16<br />
2.1. AS TESES DE DEFESA...................................................................................................16<br />
2.1.1 A Legítima Defesa da Honra...........................................................................................16<br />
2.1.2 O Homicídio Privilegiado................................................................................................20<br />
2.2 AS TESES DE ACUSAÇÃO: O MOTIVO FÚTIL E O MOTIVO<br />
TORPE......................................................................................................................................23<br />
3 UM CAMINHO PARA A SUSTENTAÇÃO DE TESES NOS CASOS DE<br />
HOMICÍDIOS PASSIONAIS: A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA<br />
MATERIALISTA-HISTÓRICA...........................................................................................26<br />
3.1 O DESENVOLVIMENTO DO JUÍZO MORAL NA SOCIEDADE MODERNA...........26<br />
3.2 A TENSÃO NARCÍSICA NO CAMPO DA RELAÇÃO AMOROSA-<br />
PASSIONAL.............................................................................................................................28<br />
3.3 A PRESENÇA DO OUTRO COMO NECESSÁRIA NEGAÇÃO DO EU:<br />
CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA DE JEAN-PAUL SARTRE AO ENTENDIMENTO<br />
DA EMOÇÃO HUMANA........................................................................................................30<br />
3.3.1 Uma teoria científica das emoções...................................................................................32<br />
4 DISCUSSÃO.........................................................................................................................35<br />
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................41<br />
REFERÊNCIAS......................................................................................................................44
INTRODUÇÃO<br />
Como reage a sociedade e a justiça brasileiras diante de um homicídio que se justifica<br />
como resultante da paixão? O presente trabalho de conclusão de curso (TCC) nasceu de tal<br />
indagação, bem como da necessidade de compreensão relativa à conduta do homicida<br />
passional 1 que o é, expressivamente maior entre os indivíduos do sexo masculino.<br />
Para tanto, trabalhar-se-á na perspectiva do resgate dos principais marcos históricos<br />
delimitadores do processo da emancipação feminina. Este resgate se constitui como uma das<br />
possibilidades de localizar e compreender, por exemplo, onde estão fixadas as raízes do<br />
sentimento de posse dos homens frente àquelas mulheres que, pela via do contrato social de<br />
casamento ou pela via da união estável, passam à condição de esposas ou companheiras.<br />
A recuperação de elementos históricos permite, entre outros, uma compreensão mais<br />
acurada em relação à presença de juízos sociais que perseveram na cultura para além mesmo<br />
do momento em que são formulados.<br />
Por certo que o elemento permanência extemporânea constitui fato relevante para a<br />
análise das possíveis influências da presença de elementos herdados culturalmente, nas atuais<br />
decisões judiciais relativas aos crimes passionais 2 .<br />
Leituras prévias à elaboração deste trabalho indicam a necessidade de uma análise<br />
relativa à aparente discrepância entre o campo de estudos da ciência jurídica e o campo de<br />
estudos da ciência psicológica, no tocante às teses de defesa e acusação nos homicídios<br />
passionais, cujos institutos motivadores do crime servem para o aumento ou atenuação da<br />
pena.<br />
O campo de estudos do Direito Penal é caracterizado, na atualidade, por uma cada vez<br />
mais recorrente busca de compatibilização entre a lei nº 2.848, decretada em 7 de dezembro<br />
de 1940 (Código Penal), e toda a complexidade da mudança nas relações sociais nestes quase<br />
72 anos de vigência do Código que exigem a elaboração de novos regramentos jurídicos.<br />
O campo de estudos da ciência psicológica apresenta-se em franco desenvolvimento,<br />
conforme indicação de Gewehr (2012) quando assinala que, por ser a Psicologia uma ciência<br />
relativamente jovem – seu aparecimento oficial e reconhecido data do ano de 1879, quando na<br />
Universidade de Leipzig (Alemanha), Wilhelm Wundt funda o primeiro laboratório de<br />
1<br />
Neste trabalho, crime passional é aquele cometido em razão de relacionamento sexual ou amoroso (ELUF,<br />
2002).<br />
2<br />
Ainda que não se constitua como objeto de análise do presente TCC, consta como oportuno indicar que a<br />
questão guia do trabalho ora proposto possui, em seu cerne, elementos potencialmente importantes à reflexão no<br />
campo da Ciência Jurídica, com destaque para a referência ao modo como o conhecimento se produz e tende a<br />
perdurar neste particular campo de estudos.<br />
11
Psicologia Experimental de que se tem notícia e, desse modo, intensifica as pesquisas<br />
científicas nesta área – e muito diversa em seu escopo teórico, todos os conhecimentos<br />
produzidos sob sua égide devem ser cautelosamente considerados.<br />
Em se tratando dos casos que relacionam os crimes passionais, há que se destacar,<br />
dentre as inúmeras problemáticas possíveis, aquelas que se relacionam a uma aparente<br />
prevalência do senso moral defendido pela tese da legítima defesa da honra nos julgamentos<br />
de competência do Tribunal do Júri. Encontrar substância nesta tese implica, entre outros, não<br />
naturalizar a reflexão ou, tão grave quanto, não tomar as teorias psicológicas como verdades<br />
fechadas em si, imutáveis e sem qualquer relação com o fluxo dos acontecimentos históricos.<br />
Neste TCC o parâmetro compreensivo permitido pela ciência psicológica é aquele<br />
relacionado aos pressupostos da Psicologia Sócio-Histórica, conforme proposta por Lev<br />
Vigotsky (1896/1934), e às indicações psicológicas presentes no pensamento do filósofo<br />
francês Jean-Paul Sartre (1905/1980). Ambos os autores dimensionam o conhecimento<br />
psicológico na condição de uma produção dialética, na perspectiva de que a polarização do<br />
humano em dicotomias não é capaz de explicar o humano.<br />
O movimento teórico de Vigotsky e Sartre estão marcados pela clara presença da<br />
reflexão de base marxista e, por isso mesmo, o mundo humano é compreendido fora daquelas<br />
concepções que o separa em natural/social, autônomo/determinado, externo/interno,<br />
psíquico/orgânico.<br />
Considerando a complexidade envolvida nos casos implicados aos homicídios<br />
passionais, levantar elementos possíveis de ser verificados de modo detalhado passa a ser<br />
uma condição sine qua no para o estabelecimento da correção nos processos judiciais<br />
implicados a tão particular condição da existência humana caracterizada pela mudança<br />
inconteste dos rumos de uma relação que, inicialmente, fora de amor.<br />
Dentre as inúmeras explicações possíveis para o aspecto da passionalidade envolvendo<br />
os crimes entre parceiros amorosos, há que se recuperar um importante fundamento: aquele<br />
do sentido de pertencimento entre os sujeitos humanos.<br />
Em Engels (1884/1974) vamos encontrar que o desenvolvimento da civilização se deu<br />
em três fases – fases estas sempre marcadas pela supremacia do homem em relação à mulher<br />
– quais sejam: a queda do direito materno, a introdução do direito paterno e a passagem<br />
gradual do matrimônio sindiásmico à monogamia.<br />
Utilizando-se de tese formulada por Bachofen (1861), Engels afirma que<br />
primitivamente os seres humanos viviam em promiscuidade sexual e que esta prática<br />
dificultava, senão impedia, a certeza quanto a paternidade. A filiação somente poderia ser<br />
12
contada por linha feminina e sendo a mulher a única dos progenitores que poderia afirmar a<br />
paternidade, esta detinha grande estima e respeito, alcançando o domínio feminino absoluto.<br />
A queda deste domínio se deu paulatinamente à concentração de riquezas nas mãos dos<br />
homens e do desejo de transmissão da herança para seus descendentes legítimos. Essa nova<br />
forma de matrimônio, denominada por Engels (1884/1974) de civilização, foi tirando das<br />
mulheres a liberdade sexual do matrimônio por grupos, denominado pelo mesmo autor de<br />
estado selvagem.<br />
É possível considerar, seguindo a presente linha de raciocínio, que a desigualdade<br />
legal entre os gêneros é efeito da opressão econômica da mulher e que a família individual<br />
moderna baseia-se na escravidão doméstica feminina.<br />
De igual maneira, o caráter particular do predomínio do homem sôbre a mulher na<br />
família moderna, assim como a necessidade e o modo de estabelecer uma igualdade<br />
social efetiva entre ambos, não se manifestarão com tôda a nitidez senão quando<br />
homem e mulher tiverem, por lei, direitos absolutamente iguais. (ENGELS,<br />
1884/1974, p. 61)<br />
Pode-se observar que as demarcações de Engels na obra A Origem da Família, da<br />
Propriedade Privada e do Estado, já reconheciam, em 1884, a necessidade da legislação<br />
expressar o direito ao tratamento igualitário entre homens e mulheres. No Brasil, a expressão<br />
de direito a tratamento igualitário veio a ocorrer em 1988, com a promulgação da Constituição<br />
Federal 3 .<br />
O legislador constitucional disciplinou da seguinte forma este direito igualitário no<br />
artigo 5º, I, verbis:<br />
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,<br />
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade<br />
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos<br />
seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos<br />
desta Constituição.<br />
Nesta seara, antes mesmo da Constituição Federal de 1988, o Código Penal Brasileiro<br />
atribuiu também ao homem (Código Penal de 1940, art. 240) o já extinto crime de adultério -<br />
revogado pela Lei nº 11.106 de 28 de março de 2005 – o qual era destinado exclusivamente às<br />
mulheres, conforme artigo 250 do Código Penal de 1830.<br />
3 Conhecida como Constituição Cidadã, por representar um avanço na democracia brasileira que começava a<br />
existir, de modo mais consistente, com o término do domínio do período do regime militar.<br />
13
No entanto, mesmo após a legislação brasileira disciplinar a igualdade de direitos e<br />
obrigações entre os gêneros, ainda é possível identificar no senso cumum a herança da<br />
supremacia do poder do homem quando aceita a tese da legítima defesa da honra nos<br />
tribunais do júri.<br />
A proposta deste trabalho possui assentamento metodológico dos estudos de revisão<br />
bibliográfica que permite, por meio da cobertura de uma gama de fenômenos muito mais<br />
ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente (GIL, 1996), a produção de uma nova<br />
perspectiva em relação a situações que há muito aguardam ser melhor elucidadas.<br />
Sobre os estudos de revisão bibliográfica, é possível afirmar que os mesmos se<br />
referem a uma habilidade que “(...) é habilidade fundamental nos cursos de graduação, uma<br />
vez que constitui o primeiro passo para todas as atividades acadêmicas.” (ANDRADE,<br />
1998:37). E, também, os estudos de revisão, conforme Ribeiro (2007) marcam a base de<br />
qualquer pesquisa de caráter científico. De fato, antes de seguir em frente com qualquer que<br />
seja o tema/problema de uma pesquisa, faz-se necessário delimitar em que situação se<br />
encontra a problemática sob a análise. A contribuição deste modo de produção de uma<br />
trabalho acadêmico permite, entre outros, que o pesquisador possa trabalhar de modo mais<br />
adequado à delimitação de seus objetivos; as construções teóricas que sustentarão as<br />
discussões propostas ao longo do trabalho; o planejamento do processo de trabalho de<br />
pesquisa propriamente dito; bem como a produção de paralelos reflexivos, comparação e<br />
validação dos conhecimentos alcançados. Como objetivo principal dos estudos de revisão<br />
bibliográfica temos os mesmos como possibilidade de “(...) reunir ideias oriundas de<br />
diferentes fontes, visando construir uma nova teoria ou uma nova forma de apresentação<br />
para um assunto já conhecido.” (RIBEIRO, 2007:08)<br />
Tendo por base metodológica o estudo de revisão bibliográfica, o presente TCC<br />
associa, em sua construção, uma análise de dois casos de crimes passionais de grande<br />
repercussão midiática à época, escolhidos a partir de relatos presentes na obra A Paixão no<br />
Banco dos Réus 4 . A fim de bem elucidar as problemáticas suscitadas por este trabalho, além<br />
da revisão bibliográfica, foi assumida a opção de acolher a leitura jurisprudencial brasileira,<br />
no sentido de trazer à reflexão casos anteriores e posteriores às leis constitucionais e penais<br />
vigentes. Compreende-se que tal modo de produção do TCC permite a realização de um<br />
comparativo quanto o impacto e a influência das leis sobre o comportamento humano.<br />
4 ELUF, Luíza Nagib. A paixão no banco dos réus: casos passionais célebres: de Pontes Visgueiro a Pimenta<br />
Neves. São Paulo : Saraiva, 2002. xvi,199p.<br />
14
Por fim, também se pretende estudar a permanência da tese de defesa sustentada na<br />
violenta emoção – caracterizadora do homicídio privilegiado – em torno do homicídio<br />
passional, pois esta parece demonstrar um afastamento da habilitação jurídica daquele<br />
presente no desenvolvimento mais atual da Ciência Psicológica.<br />
15
2 AS TESES DE DEFESA E ACUSAÇÃO EM HOMICÍDIOS PASSIONAIS:<br />
LEGISLAÇÃO VERSUS SENSO COMUM<br />
2.1 AS TESES DE DEFESA<br />
No Tribunal do Júri é obrigatória a presença de um defensor. Este é incumbido de<br />
garantir a plenitude de defesa do Réu, requerendo a sua absolvição ou a diminuição da pena a<br />
ser imposta sob o risco de nulidade do julgamento em caso de falha ou insuficiência por parte<br />
da defesa.<br />
Em plenário, a defesa sempre fala por último, a fim de que o réu possa defender-se de<br />
todas as acusações feitas pelo Estado, representado pelo órgão do Ministério Público 5 .<br />
Por plenitude de defesa entende-se a possibilidade do acusado se opor às acusações<br />
por meio da autodefesa, através do interrogatório, para posteriormente o defensor realizar a<br />
defesa técnica em tribuna.<br />
No tribunal do júri, onde as decisões são tomadas pela íntima convicção dos jurados,<br />
sem qualquer fundamentação, onde prevalece a oralidade dos atos e a concentração<br />
na produção de provas, bem como a identidade física do juiz, torna-se indispensável<br />
que a defesa atue de modo completo e perfeito, logicamente dentro das limitações<br />
impostas pela natureza humana. A intenção do constituinte foi aplicar ao tribunal<br />
popular um método que privilegie a defesa, em caso de confronto inafastável com a<br />
acusação homenageada a plenitude (NUCCI, 1999, p. 80).<br />
O artigo 5º, XXXVIII assegura este direito ao Réu, além de garantir à instituição do<br />
júri outras prerrogativas, in verbis:<br />
(...) é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei,<br />
assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos<br />
veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;<br />
(grifo nosso).<br />
5 O procedimento do Tribunal do Júri encontra-se disciplinado no Capítulo II do Código de Processo Penal;<br />
quanto ao debate em plenário vide artigo 476 caput e incisos.<br />
16
2.1.1 A Legítima Defesa da Honra<br />
A legítima defesa, em sentido amplo, é causa excludente de ilicitude que significa<br />
repelir uma injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou alheio, usando<br />
moderadamente dos meios necessários 6 .<br />
Para a legítima defesa da honra, Capez (2005) ensina que não é a tese em si passível<br />
de discussão acerca de sua legitimidade, pois este entendimento já é pacificado. No entanto, a<br />
proporcionalidade entre a ofensa à honra do ofendido e a maneira com que este responde a tal<br />
ofensa é que merece a atenção do órgão julgador:<br />
em princípio, todos os direitos são suscetíveis de legítima defesa, tais como a vida, a<br />
liberdade, a integridade física, o patrimônio, a honra etc., bastando que esteja<br />
tutelado pela ordem jurídica. Dessa forma, o que se discute não é a possibilidade<br />
da legítima defesa da honra e sim a proporcionalidade entre a ofensa e a<br />
intensidade da repulsa. Nessa medida, não poderá, por exemplo, o ofendido, em<br />
defesa da honra, matar o agressor, ante a manifesta ausência de moderação. No caso<br />
de adultério, nada justifica a supressão da vida do cônjuge adúltero, não apenas<br />
pela falta de moderação, mas também devido ao fato de que honra é um<br />
atributo de ordem personalíssima, não podendo ser considerada ultrajada por<br />
um ato imputável a terceiro, mesmo que este seja a esposa ou o marido do<br />
adúltero (CAPEZ, 2005: 284) - grifo nosso.<br />
Para exemplo, pode-se trazer decisão judicial do Superior Tribunal de Justiça do<br />
Estado do Paraná, em Recurso Especial de número 1.517 da 6ª Turma, julgado em<br />
11.03.1991, tendo como relator o Min. José Cândido e publicado no DJU em 15.4.1991, p.<br />
4.309:<br />
Mulher. Violência. Adultério. Legítima defesa da honra. Inexistência. Recurso<br />
Especial. Tribunal do Júri. Duplo homicídio praticado pelo marido que<br />
surpreende sua esposa em flagrante adultério. Hipótese em que não se<br />
configura legítima defesa da honra. Decisão que se anula por manifesta<br />
contrariedade à prova dos autos (art. 593, parágrafo 3º, do CPP). Não há ofensa à<br />
honra do marido pelo adultério da esposa, desde que não existe essa honra<br />
conjugal. Ela é pessoal, própria de cada um dos cônjuges. O marido, que mata<br />
sua mulher para conservar um falso crédito, na verdade, age em momento de<br />
transtorno mental transitório, de acordo com a lição de Himénez de Asuá (El<br />
criminalista, Buenos Aires: Zavalia, 1960, v. 4, p. 34), desde que não se comprove<br />
ato de deliberada vingança. O adultério não coloca o marido ofendido em estado<br />
de legítima defesa, pela sua incompatibilidade com os requisitos do artigo 25,<br />
do Código Penal. A prova dos autos conduz à autoria e à materialidade do duplo<br />
homicídio (mulher e amante), não à pretendida legitimidade da ação delituosa do<br />
marido. A lei civil aponta os caminhos da separação e do divórcio. Nada justifica<br />
matar a mulher que, ao adulterar, não preservou a sua própria honra. Nesta<br />
6 Código Penal Brasileiro: Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios<br />
necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. (Redação dada pela Lei nº<br />
7.209, de 11.7.1984)<br />
17
fase do processo, não se há de falar em ofensa à soberania do Júri, desde que os seus<br />
veredictos só se tornam invioláveis, quando não há mais possibilidade de apelação.<br />
Não é o caso dos autos, submetidos, ainda, à regra do artigo 593, parágrafo 3º, do<br />
CPP. Recurso provido para cassar a decisão do Júri e o acórdão recorrido, para<br />
sujeitar o réu a novo julgamento (grifo nosso).<br />
A legítima defesa da honra não existe no ordenamento jurídico brasileiro. Esta tese,<br />
segundo Eluf (2002), é um artifício criado pelos advogados de defesa a fim de que os jurados,<br />
por serem leigos, decidam com base em seus valores culturais, e não no texto expresso em lei.<br />
Afirma a mesma autora que o machismo é o grande aliado dos homicidas passionais, uma vez<br />
que a honra, para eles, refere-se ao comportamento sexual de suas esposas, sendo a fidelidade<br />
e a submissão feminina ao homem um direito dele, do qual depende sua respeitabilidade<br />
social.<br />
Candente, como é de seu vezo, o ilustre e saudoso penalista Nélson Hungria, dizia:<br />
‘o amor que mata, amor-Nemésis, o amor açougueiro, é uma contrafação<br />
monstruosa do amor (...) O passionalismo que vai até o assassínio, muito pouco tem<br />
a ver com o amor. Efetivamente, não é amor, não é honra ferida, esse complexo de<br />
concupiscência e ódio, de torvo ciúme e estúpida prepotência que os Otelos chamam<br />
sentimento de honra, mas que, na realidade, é o mesmo apetite que açula a uncia<br />
tigris para a caça e a carnagem’ (TJSP, Rec, Rel. Camargo Sampaio, RJTJSP<br />
53/312).<br />
Em sentido contrário, a fim de justificar a conduta do homicida passional, o advogado<br />
criminalista Valdir Troncoso Peres, em entrevista concedida à procuradora de Justiça do<br />
Ministério Público do Estado de São Paulo, Luíza Nagib Eluf, dá outro conceito ao instituto<br />
da legítima defesa quando afirma que: “arrancar o amor de dentro do homem, arrancar o<br />
sentido da vida, arrancar aquilo que lhe é imanente, aquilo que lhe é próprio, aquilo que é a<br />
matriz que conduz a sua vida, é a mesma coisa que matá-lo. Então, ele se sente no direito de<br />
matar porque ele está em legítima defesa” (2002, p. 178).<br />
Referido advogado atuou na defesa de Augusto Carlos Eduardo da Rocha Monteiro<br />
Gallo, cujo crime foi ter matado com 11 facas a esposa Margot Proença Gallo, pais da atriz<br />
Maitê Proença.<br />
Conforme narrado por Eluf (2002), após suspeitas de infidelidade por parte da Vítima,<br />
o Réu chamou-a para uma conversa na qual tratariam sobre a separação, onde, após discussão,<br />
deferiu-lhe as facadas que causariam sua morte. O Réu foi levado a Júri Popular e absolvido<br />
por 7 votos a 0 sob a tese de legítima defesa da honra. Os jurados consideraram que ele agiu<br />
moderadamente, sem excessos ao desferir as 11 facadas na Vítima. O Ministério Público<br />
18
ecorreu da decisão e o Tribunal de Justiça de São Paulo anulou o primeiro e levou o Réu ao<br />
segundo julgamento. O Réu foi definitivamente absolvido por 4 votos a 3 pela mesma tese de<br />
legítima defesa da honra, não cabendo mais recurso para discussão de mérito 7 .<br />
Percebe-se no caso supracitado, que o Poder Judiciário, através da decisão que anulou<br />
o primeiro julgamento, considerou a absolvição do Réu manifestamente contrária às provas<br />
dos autos, conforme sustentado pela acusação. As bases para esta tese, segundo Eluf (2007),<br />
estão “na evolução da posição da mulher na sociedade e no desmoronamento dos padrões<br />
patriarcais”.<br />
No Brasil, até o advento do Código Penal de 1940, somente era considerado adultério,<br />
sujeito a pena de prisão, o ato da mulher que traía o marido. Para o homem, somente se<br />
configurava o crime caso este mantivesse ou sustentasse a amásia 8 . Em 1940, portanto, o<br />
crime passou a se configurar igualmente entre os gêneros. Hoje o crime de adultério foi<br />
totalmente extinto com a Lei nº 11.106 de 28 de março de 2005 em seu artigo 5º.<br />
Outro marco importante para o avanço da mulher nas relações jurídicas foi a<br />
promulgação da Constituição Federal de 1988, que trouxe no texto do art. 5º, inciso I, a<br />
proibição da desigualdade nos direitos e obrigações entre homens e mulheres. Neste sentido,<br />
afirma Eluf que “a tese de legítima defesa da honra é inconstitucional, em face da igualdade<br />
de direitos entre homens e mulheres assegurada pela Constituição Federal de 1988 – art. 5º,<br />
I – e não pode mais ser alegada em plenário do Júri, sob pena de incitação à discriminação<br />
de gênero” (2002, p. 199).<br />
Muito embora, conforme demonstrado, a legislação brasileira tenha avançado no<br />
sentido de igualar o tratamento entre os gêneros, ainda se percebe nas decisões de júri popular<br />
a herança do pensamento da obrigação de fidelidade da mulher na relação matrimonial e a<br />
aceitação do resultado morte, caso esta obrigação não seja cumprida. Em sendo admitida esta<br />
tese de defesa no senso comum, os advogados dos homicidas passionais continuam utilizando<br />
deste instituto jurídico.<br />
Para demonstrar a utilização desta tese, aponta-se a decisão de Recurso Criminal n.<br />
2011.060770-5, de Blumenau SC, Relator: Des. Rui Fortes de 1º de novembro de 2011,<br />
ementa in verbis:<br />
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DECISÃO DE PRONÚNCIA. PLEITO DE<br />
NULIDADE DO DECISUM, PELO RECONHECIMENTO DE<br />
QUALIFICADORA DIVERSA DA DESCRITA NA DENÚNCIA. HIPÓTESE DE<br />
7 A sentença transitou em julgado no Processo Crime nº 173/75, da Segunda Vara Criminal de Campinas/SP.<br />
8 Código Penal de 1830, artigos 250 e 251; Decreto nº 847 de 11 de outubro de 1890, artigo 259.<br />
19
EMENDATIO LIBELLI (ART. 383 DO CPP). ACUSADO QUE SE DEFENDE<br />
DOS FATOS NARRADOS NA EXORDIAL, E NÃO DA SUA CAPITULAÇÃO.<br />
PRELIMINAR REJEITADA. HOMICÍDIO TRIPLAMENTE QUALIFICADO, E<br />
OCULTAÇÃO DE CADÁVER. RECURSO DA DEFESA. MATERIALIDADE E<br />
INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA DEVIDAMENTE COMPROVADOS.<br />
CONFISSÃO DO ACUSADO. PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO, AO<br />
ARGUMENTO DE TER AGIDO EM LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA.<br />
QUESTÃO QUE DEVE SER DIRIMIDA PELO CORPO DE JURADOS. PEDIDO<br />
DE RECONHECIMENTO DO HOMICÍDIO PRIVILEGIADO.<br />
IMPOSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 7º DA LEI DE INTRODUÇÃO<br />
AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. PEDIDO DE AFASTAMENTO DAS<br />
QUALIFICADORAS. EXISTÊNCIA DE DÚVIDA EM RELAÇÃO ÀS<br />
CIRCUNSTÂNCIAS EM QUE O DELITO FOI PRATICADO. QUESTÃO QUE<br />
TAMBÉM DEVE SER ENFRENTADA PELO TRIBUNAL POPULAR. DECISÃO<br />
DE PRONÚNCIA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO (grifo nosso).<br />
Capez (2011) ensina que a finalidade do júri popular é aumentar o direito a defesa do<br />
réu, pois permite que, em lugar do juiz togado, preso a regras jurídicas, estes sejam julgados<br />
por seus pares que não estarão tolhidos à defesa exclusivamente técnica, mas poderão decidir<br />
com base em argumentação extrajurídica, invocando razões de ordem social, emocional etc.<br />
Ainda sobre este procedimento, importante ressaltar que a soberania dos veredictos no<br />
tribunal do júri é princípio básico e implica na impossibilidade de o tribunal técnico modificar<br />
a decisão dos jurados pelo mérito (CAPEZ, 2011). Desta forma, a decisão proferida em<br />
tribunal do júri evidencia a aceitação ou não de determinada conduta naquela parcela da<br />
sociedade. A sentença absolutória de um julgamento doloso contra a vida, portanto, não<br />
interfere tão somente no futuro do Réu. Mais do que isso, funciona como uma demonstração à<br />
população de determinado local que qualquer pessoa, na mesma situação, pode – e tem o<br />
direito – de agir da mesma forma, cometendo o ilícito penal.<br />
2.2.2 O Homicídio Privilegiado<br />
Eluf (2002) afirma que o homicídio privilegiado resultou da reforma penal de 1940<br />
que, ao modificar o Código de 1890, eliminou o perdão dado ao homicida que matasse em<br />
face de perturbação dos sentidos e da inteligência. Ao ver extinta esta tese de defesa, os<br />
advogados criminalistas procuraram evitar a condenação de seus clientes com a utilização de<br />
novas teses, pautadas por motivos aparentemente aceitos e compreendidos pela sociedade.<br />
No Código Penal, a previsão legal do assassinato com pena reduzida encontra-se no<br />
artigo 121, parágrafo 1º:<br />
20
Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos. Caso de diminuição de<br />
pena. § 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor<br />
social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta<br />
provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço (grifo<br />
nosso).<br />
Tem-se, portanto três causas para a diminuição da pena, quais sejam: relevante valor<br />
social, moral e a violenta emoção. O valor social corresponde ao interesse coletivo, onde o<br />
agente busca satisfazer os anseios da sociedade. Já o valor moral, diz respeito às causas<br />
individuais, particulares, aprovadas por uma moralidade média e que envolvam os<br />
sentimentos de piedade e compaixão (ELUF, 2002).<br />
APELAÇÃO. HOMICÍDIO. INEXISTÊNCIA DE RELEVANTE VALOR<br />
MORAL. EMOÇÃO VIOLENTA INJUSTIFICÁVEL. DECISÃO<br />
MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. JULGAMENTO<br />
ANULADO. (...) II O relevante valor moral, capaz de configurar homicídio<br />
privilegiado, é o valor superior, enobrecedor de qualquer cidadão em<br />
circunstâncias normais. Faz-se necessário que se trate de valor considerável,<br />
isto é, adequado aos princípios éticos dominantes, segundo aquilo que a moral<br />
média reputa nobre e merecedor de indulgência. O valor social ou moral do<br />
motivo deve ser considerado sempre objetivamente, segundo a média existente<br />
na sociedade, e não subjetivamente, segundo a opinião do agente, que pode ser<br />
mais ou menos sensível (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal:<br />
Parte Especial, vol. 2. 6ª edição, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 46) o que não ocorre<br />
na hipótese em que o agressor atenta contra a vida da ex-companheira, por não<br />
aceitar que esta tenha posto fim ao relacionamento e dado seguimento a sua<br />
vida (APL 200730013692 PA 2007300-13692 Relator(a): JOAO JOSE DA SILVA<br />
MAROJA Julgamento: 27/05/2008 Publicação: 30/05/2008) – grifo nosso.<br />
A terceira causa diz respeito à violenta emoção logo em seguida a injusta provocação<br />
da vítima, que é tese recorrente da defesa com relação aos crimes passionais. Percebe-se que<br />
além da exigibilidade da emoção ser violenta, tem-se que restar configurado o tempo da<br />
injusta provocação da vítima que é logo em seguida.<br />
(...) não é qualquer emoção que pode assumir a condição de privilegiadora, no<br />
homicídio, mas somente a emoção intensa, violenta, absorvente, que seja capaz de<br />
reduzir quase que completamente a vis electiva, em razão dos motivos que a<br />
eclodiram, dominando, segundo os termos legais, o próprio autocontrole do agente.<br />
A intensidade da emoção deve ser de tal ordem que o sujeito seja dominado por ela,<br />
ou seja, o sujeito ativo deve agir sob o ímpeto do choque emocional. Sob o domínio<br />
de violenta emoção significa agir sob choque emocional próprio de quem é<br />
absorvido por um estado de ânimo caracterizado por extrema excitação sensorial e<br />
afetiva, que subjuga o sistema nervoso do indivíduo. Nesses casos, os freios<br />
inibitórios são liberados, sendo orientados, basicamente, por ímpetos incontroláveis,<br />
que, é verdade, não justificam a conduta criminosa, mas reduzem sensivelmente sua<br />
censurabilidade (BITENCOURT, 2008, p. 48)<br />
21
O impulso emocional e o ato que dele resulta devem seguir-se imediatamente à<br />
provocação da vítima para configurar o homicídio privilegiado (...). O fato<br />
criminoso objeto da minoridade não poderá ser produto de cólera que se recalca,<br />
transformada em ódio, para uma vingança intempestiva (TJSP, AC, Rel. Marino<br />
Falcão, RT 622/268 in ELUF, 2002, p.160).<br />
Outrossim, ainda cabe mencionar o artigo 28, I do Código Penal, o qual deixa clara a<br />
impossibilidade da exclusão da imputabilidade aos agentes que cometerem uma infração<br />
penal sob emoção ou paixão 9 , sendo possível apenas a diminuição da pena a ser imposta<br />
conforme o já mencionado artigo 121, parágrafo 1º do Código Penal.<br />
Ademais, mesmo sendo notáveis as características essenciais para a caracterização do<br />
homicídio privilegiado em determinado caso concreto, observou-se que nos passionais, esta<br />
tese parece frágil por ser pautada na violenta emoção.<br />
APELAÇÃO. HOMICÍDIO. INEXISTÊNCIA DE RELEVANTE VALOR<br />
MORAL. EMOÇÃO VIOLENTA INJUSTIFICÁVEL. DECISÃO<br />
MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. JULGAMENTO<br />
ANULADO. (...) III A violenta emoção que privilegia o homicídio, além de<br />
retirar do agente, transitoriamente, a capacidade de discernimento, exige<br />
imediatidade entre a conduta e o fato gerador do desequilíbrio emocional, que deve<br />
constituir uma provocação injusta da própria vítima, circunstância inocorrente na<br />
espécie, em que a vítima exerceu o seu direito de encerrar um relacionamento<br />
amoroso e dar início a outro. (APL 200730013692 PA 2007300-13692 Relator(a):<br />
JOAO JOSE DA SILVA MAROJA Julgamento: 27/05/2008 Publicação:<br />
30/05/2008) – grifo nosso.<br />
No mesmo julgamento cuja ementa citou-se acima, o Desembargador Dr. João José da<br />
Silva Maroj, do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, ainda explica as razões pelas quais<br />
julgou inaplicável o enquadramento legal do homicídio privilegiado em caso passional:<br />
No caso vertente, quem diz que a motivação do apelado envolveu alguma nobreza é<br />
apenas sua defesa. De modo algum, todavia, pode-se admitir que a imaturidade<br />
emocional, o ciúme, a inaptidão para ouvir negativas importem em qualquer<br />
benefício ao agente. Não se pode tolerar que um rapaz, sob o pretexto de sua<br />
juventude, dispare cinco tiros de revólver contra a mulher que, apenas, manifestou<br />
sua vontade livre de não prosseguir em um relacionamento amoroso que não mais<br />
lhe interessava, independentemente de suas razões. Não merece credibilidade que<br />
haja uma paixão assim tão avassaladora, quando o apelado, ao tempo dos fatos, não<br />
era nenhum adolescente inexperiente, tanto que tinha a sua própria companheira, e<br />
namorou a vítima por apenas três meses, o que ele próprio admite. No mais, se sua<br />
família se dissolveu, foi por conta de seus próprios atos. Em grande perigo ficaria<br />
toda a sociedade se acatássemos as absurdas alegações defensórias e reduzíssemos,<br />
um pouco que fosse, a significação de alvejar uma pessoa por causa de orgulho<br />
9 Art. 28 - Não excluem a imputabilidade penal: I - a emoção ou a paixão; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de<br />
11.7.1984)<br />
22
ferido (APL 200730013692 PA 2007300-13692 Relator(a): JOAO JOSE DA<br />
SILVA MAROJA Julgamento: 27/05/2008 Publicação: 30/05/2008).<br />
No Brasil, um caso de grande repercussão midiática à época, foi o assassinato de<br />
Ângela Diniz ocorrido em 30 de dezembro de 1976, pelo seu então companheiro Raul<br />
Fernandes do Amaral Street (Doca Street).<br />
Conforme narrado por Eluf (2002), após discussão na casa de praia da Vítima, o Réu a<br />
assassinou com 4 tiros – 3 no rosto e 1 na nuca. Testemunhas afirmaram ter visto o casal<br />
discutindo na praia no dia dos fatos. À noite, discutiram novamente e ela o expulsou de casa –<br />
que era de sua propriedade, ela também pagava todas as despesas do casal. O Réu deixou a<br />
residência e, segundo a empregada da residência, disse à Vítima: “você não deveria ter feito<br />
isso comigo”. Após alguns quilômetros, decidiu voltar e cometer o crime. Os advogados do<br />
Réu, alegando a tese de violenta emoção, logo após injusta provocação da vítima, solicitaram<br />
perícia médico psiquiátrica e os médicos afirmaram que o Réu encontrava-se indiferente,<br />
analgésico, restando a tese não comprovada. A defesa justificou a conduta do Réu alegando<br />
que a Vítima havia iniciado relação amorosa com uma mulher estrangeira e que a levara para<br />
a residência do casal. O Réu foi preso e teve pedido de habeas corpus negado pela Justiça do<br />
Rio de Janeiro. No Tribunal do Júri, o Réu foi condenado a dois anos de reclusão com sursis –<br />
suspensão condicional da pena, sob a tese de legítima defesa da honra. Em entrevista a<br />
imprensa, pouco antes do julgamento, o Réu afirmou que “gostaria que o tempo voltasse e<br />
que a mulher que de fato amei entendesse toda a força do meu amor. Porque, no fundo, matei<br />
por amor”. Dois anos depois, em novembro de 1981, a acusação recorreu e o Réu foi levado<br />
novamente a Júri Popular, sendo condenado por homicídio qualificado a 15 anos de reclusão.<br />
2.2 AS TESES DE ACUSAÇÃO: O MOTIVO FÚTIL E O MOTIVO TORPE<br />
Nos crimes passionais, regularmente, a denúncia feita pelo Ministério Público tipifica<br />
o homicídio como qualificado 10 , que é considerado hediondo e para o qual a pena é de 12<br />
(doze) a 30 (trinta) anos de reclusão (ELUF, 2002).<br />
10 “Certas circunstâncias agravantes previstas no art. 61 do Código Penal vieram incorporadas para constituir<br />
elementares do homicídio, nas duas formas qualificadas, para efeito de majoração da pena. Dizem respeito aos<br />
motivos determinantes do crime e aos meios e modos de execução, reveladores de maior periculosidade ou<br />
extraordinário grau de perversidade do agente, conforme a Exposição de Motivos da Parte Especial do Código<br />
Penal” (CAPEZ, 2010, p. 65).<br />
23
Neste trabalho, serão consideradas apenas as qualificadoras que se aplicam<br />
diretamente aos crimes passionais, quais sejam: os motivos fútil e torpe.<br />
2.2.1 O Motivo Torpe<br />
O motivo torpe está previsto artigo 121, parágrafo 2º, I do Código Penal e trata-se de<br />
qualificadora subjetiva, pois diz respeito aos motivos que levaram o agente à prática da<br />
infração penal.<br />
É possível definir que “(...) torpe é o motivo moralmente reprovável, abjeto,<br />
desprezível, vil, que demonstra a depravação espiritual do sujeito e suscita a aversão ou<br />
repugnância geral(...)” (CAPEZ, 2010, pp. 74-75). O ciúme, para o mesmo autor, não é<br />
considerado motivo torpe por tratar-se de elemento gerado pelo amor e as ações a que dá<br />
causa poderiam ser consideradas injustas, porém não torpes.<br />
Na maioria das vezes, o crime passional deixa evidente o motivo torpe do assassino.<br />
Entretanto, é preciso considerar que “(...) o amor, o ciúme controlado, o desejo sexual não<br />
levam ao assassinato. A eliminação da vida alheia só pode resultar do rancor, da vingança,<br />
do ódio e de todos os demais sentimentos resultantes do narcisismo e da frustração(...)”<br />
(ELUF, 2002, pp. 139-140).<br />
Neste contexto, torna-se importante recuperar que:<br />
APELAÇÃO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. MOTIVO TORPE. CIÚMES.<br />
DECISÃO CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. INJUSTIÇA NO TOCANTE À<br />
APLICAÇÃO DA PENA. A definição sobre se o sentimento de ciúmes constitui<br />
ou não motivo torpe encontra divergência inclusive no âmbito doutrinário e<br />
jurisprudencial. O STJ, por um lado, entendo que o ciúme, por si só, não constitui<br />
motivo torpe; por outro, entende que pode constituir, dependendo do caso concreto,<br />
e que apenas o Tribunal do Júri pode decidir essa questão. Considerando que tal<br />
decisão guarda relação direta com os limites da competência do Tribunal do Júri,<br />
deve ela ser resolvida tendo como balizador o princípio da soberania dos veredictos,<br />
assegurado pela Constituição Federal à instituição do júri (artigo 5º, XXXVIII, c , da<br />
CF). Assim, como a decisão depende das circunstâncias do caso concreto,<br />
compete exclusivamente ao júri decidir se o ciúme, conforme as provas dos<br />
autos, representa ou não a repugnância característica do motivo torpe. Ao juiz<br />
togado é lícito apenas verificar se o ciúme imputado na denúncia encontra ou não<br />
respaldo na prova dos autos. Decisão condenatória mantida. Pena redimensionada<br />
(DES. NEREU JOSÉ GIACOMOLLI - Presidente - Apelação Crime nº<br />
70045774106, Comarca de Porto Alegre RS, Julgamento: 15/03/2012).<br />
24
2.2.2 O Motivo Fútil<br />
O motivo fútil está previsto no inciso II, parágrafo 2º do artigo 121 do Código Penal e<br />
também trata-se de qualificadora subjetiva.<br />
No tocante ao motivo fútil, torna-se valoroso recuperar o sentido do termo: “fútil<br />
significa frívolo, mesquinho, desproporcional, ou inadequado, do ponto de vista do homo<br />
medius e em relação ao crime de que se trata” (CAPEZ, 2010, p. 77).<br />
O elemento ciúme mostra recorrência acentuada no contexto diante do qual se elabora<br />
a qualificadora motivo fútil. Para Capez (2010) tirar a vida de alguém motivado pelo ciúme é<br />
marcadamente uma condição de desigual proporção. Já Eluf (2002) entende que o ciúme não<br />
é insignificante e, portanto, não é fútil.<br />
Em condição ilustrativa, seguem duas decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça do<br />
Rio Grande do Sul:<br />
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO DUPLAMENTE<br />
QUALIFICADO. PRONÚNCIA. RECURSO DEFENSIVO. AFASTAMENTO<br />
DAS QUALIFICADORAS. MOTIVO FÚTIL E RECURSO QUE DIFICULTOU<br />
OU IMPOSSIBILITOU A DEFESA DO OFENDIDO. INADMISSIBILIDADE. É<br />
sabido que o afastamento das circunstâncias qualificadoras neste momento<br />
processual somente pode ocorrer quando manifestamente improcedentes. Não é o<br />
caso. Há indícios de que o crime tenha ocorrido em decorrência de ciúmes do<br />
recorrente pela suposta notícia de que sua companheira estaria tendo casos<br />
extraconjugais, situação que, em tese, pode caracterizar o motivo fútil, em<br />
função da desproporcionalidade entre o motivo e o resultado do crime. No que<br />
toca ao recurso que dificultou ou impossibilitou a defesa da ofendida, também existe<br />
segmento de prova de que o réu esfaqueou a vítima enquanto dormia, impedindo-a<br />
de promover qualquer ação defensiva. Recurso improvido. (Recurso em Sentido<br />
Estrito Nº 70046596524, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS,<br />
Relator: Marco Antônio Ribeiro de Oliveira, Julgado em 25/04/2012) – grifo nosso.<br />
RECURSOS EM SENTIDO ESTRITO. PRONÚNCIA DO ACUSADO PELO<br />
CRIME DO ART. 121, § 2º, IV DO CP (RECURSO QUE DIFICULTOU A<br />
DEFESA DA VÍTIMA). PERTINÊNCIA DE TAL QUALIFICADORA FRENTE À<br />
PROVA ORAL PRODUZIDA. CIRCUNSTÂNCIA QUE NÃO SE MOSTRA<br />
MANIFESTAMENTE IMPROCEDENTE, DEVENDO SER MANTIDA NA<br />
PRONÚNCIA. AFASTAMENTO DA QUALIFICADORA DO MOTIVO<br />
FÚTIL PELO JUÍZO DE 1º GRAU. CIÚME NEURÓTICO E DOENTIO.<br />
SENTIMENTO INCOMPATÍVEL COM A NATUREZA DA REFERIDA<br />
QUALIFICADORA, CUJA EXCLUSÃO, NO CASO CONCRETO, ERA<br />
MEDIDA QUE SE IMPUNHA. RÉU ABSOLVIDO SUMARIAMENTE NO<br />
TOCANTE AO CRIME CONEXO DE PORTE DE ARMA. PRINCÍPIO DA<br />
CONSUNÇÃO. INTEGRAL MANUTENÇÃO DA DECISÃO A QUO. Recursos<br />
improvidos. (Recurso em Sentido Estrito Nº 70044068229, Primeira Câmara<br />
Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Manuel José Martinez Lucas, Julgado<br />
em 16/11/2011) – grifo nosso.<br />
25
3 UM CAMINHO PARA A SUSTENTAÇÃO DE TESES NOS CASOS DE<br />
HOMICÍDIOS PASSIONAIS: A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA<br />
MATERIALISTA-HISTÓRICA<br />
3.1 O DESENVOLVIMENTO DO JUÍZO MORAL NA SOCIEDADE MODERNA<br />
A Modernidade é um tempo de caos. Todas as mudanças acontecidas com o advento<br />
da Revolução Industrial, consolidada como modo de excelência da produção da vida em<br />
meados do século XIX, indicam aos seres humanos novos e constantes desafios.<br />
A considerar que a presença ativa dos seres humanos é produtora da história<br />
individual-pessoal e da história coletivo-social, não é possível admitir como tese reguladora<br />
dos fatos a ideia de que é possível compreender o indivíduo fora do contexto das relações que<br />
o fazem existir na condição de fato inconteste. Seus agrupamentos de referência – família,<br />
religião, Estado – são a um só tempo constituintes e constituídos. Por isso a análise sobre as<br />
regulações que atuam sobre estes grupos é necessidade de primeira hora. Compreender quais<br />
são seus grupos de referência, o modo pelos quais tais grupos se ordenam e se regulam, o<br />
modo pelo qual o contrato social expresso por exemplo pelos textos legais e pela vivência<br />
objetiva, de sujeitos concretamente inscritos em uma determinada classe social, constitui-se<br />
como requisito de primeira hora ao entendimento da formação/experimentação do juízo moral<br />
na sociedade contemporânea.<br />
O sociólogo Zygmut Bauman, nascido em 1925 na cidade de Poznań, na Polônia,<br />
apresenta em sua obra Modernidade Líquida uma rica reflexão sobre a sociedade<br />
contemporânea, e que muito adequadamente localiza o debate em torno do desenvolvimento<br />
do juízo moral na sociedade moderna.<br />
Às inumeráveis conquistas materializadas pelo modo capitalista de produção,<br />
contrapõem-se a degradações igualmente incontáveis. Instituições sólidas em períodos<br />
históricos anteriores passam à condição de instituições que, cada vez mais, se tornam<br />
liquefeitas. A família, as relações de trabalho e a própria gestão do estado vão se<br />
materializando de modo cada vez mais impreciso, tênue. Com fronteiras severamente<br />
imprecisas, a realidade da experiência humana tem se tornado cada vez mais moldável, cada<br />
vez mais dependente dos acordos tecidos no calor dos acontecimentos. O padrão de regulação<br />
oferecido em períodos anteriores da história, materializado por regras bastante objetivas e<br />
claras passa, na Modernidade, a uma condição de negociável. A perspectiva do ponto de vista,<br />
do depende, cada vez mais ocupa o lugar do consensual da norma.<br />
26
O desenvolvimento da Modernidade é marcado, então, por uma cada vez maior<br />
relativização dos fatos humanos decompondo, com isso, a um limite insuportável, a<br />
titularidade dos atores sociais. Deste modo, por exemplo, tem-se o Estado Moderno –<br />
capitalista – na condição de um oculto que devendo prover àquelas condições fundamentais à<br />
existência das potencialidades humanas revoga-as, de modo irreparável. E a de tal<br />
composição marca, de modo decisivo, a organização moral da sociedade contemporânea.<br />
Veja-se o caso da prostituição. As mulheres, conforme referência de Lima (1962),<br />
quando experimentam a prostituição em área pobres e periféricas dos grandes centros urbanos<br />
de inícios do século XX, vivenciam a regulação estatal no sentido da contenção de seus atos.<br />
Entretanto, ainda conforme Lima (1962), a mesma ordem de regulação não alcança aquelas<br />
mulheres que se prostituem junto às elites. A regulamentação estatal, neste caso, é: “Um<br />
fantasma que só frequenta as vielas e os alcouces que correspondem à área vital das<br />
proletárias do sexo. Mas nunca transpõe a soleira dos palacetes que abrigam a nata da<br />
prostituição.” (LIMA, 1962:119)<br />
O trecho acima destaca o papel do Estado como à serviço de uma dupla moral que,<br />
devidamente refletida nos leva à demarcação do papel de classe envolvido no fundamento do<br />
duplo – da fluidez dos limites, recuperando a ideia de Bauman (2001) – que se encontra no<br />
fundamento do juízo moral moderno.<br />
Se no início do século XIX os burgueses pouco se importam – posto que apenas<br />
tangencialmente são afetados pela regulação do Estado – o impactam das determinações<br />
estatais sobre as práticas sexuais, é aos proletários que a mão do Estado pesará firmemente<br />
nesta questão. O resultado disso? O resultado é o aparecimento de uma nova espécie de duplo<br />
que se produz da necessidade da regulação da propriedade sobre a condição da liberdade.<br />
Somente no termo da liberdade burguesa alcança persistir a dimensão de dois pesos e duas<br />
medidas sobre a vida dos seres humanos. E a decorrência moral de tal regulação passa a ser<br />
uma contribuição efetiva para a atenuação dos limites sob os quais a vida social – produzida<br />
com base na consensualidade – se produz. No tocante à regulação das práticas sociais<br />
relativas à sexualidade – seguindo o exemplo sobre o qual a presente reflexão se debruça –, é<br />
compreensível que na transição do século XIX para o século XX, a família burguesa é a<br />
instituição preservada pela prostituição. A esse respeito, importante considerar que:<br />
E para o Estado, na França, destinava-se a prostituição, acima de tudo, tal como<br />
quisera Solon, à tentativa de preservar a intangibilidade da família. A resguardar<br />
solidamente a instituição do casamento monogâmico, sob o pretexto de que, abrindo<br />
uma brecha capaz de servir como válvula de escape aos excessos libidinais dos<br />
homens – tornados historicamente polígamos de fato, em função da mesma<br />
27
monogamia por eles criada – as mulheres honestas estavam, consequentemente,<br />
melhor protegidas contra a libertinagem e o adultério. (LIMA, 1962, p.23)<br />
O duplo na regulação da sexualidade não se organiza para fora mesmo da sociedade<br />
que o origina. É o duplo não enfrentado da exploração capital-trabalho assumindo outras e<br />
novas formas de materialização. E o encobrimento deste duplo, a ausência da crítica sobre<br />
esse capaz de identificar, nomear e agir sobre esse duplo, coopera para que a tese de uma<br />
moral frágil persevere nos acordos sociais.<br />
Se é no processo de socialização que os seres humanos vão desenvolvendo a<br />
produção/execução dos juízos e comportamentos morais, muito adequada se apresenta a ideia<br />
de que as fronteiras da Modernidade se fragilizaram muito em função do contraditório<br />
presente neste duplo que mantém a sociedade capitalista. Em que persista a tensão entre o<br />
publico e o privado na configuração da moderna organização capitalista do Estado, cada dia<br />
mais, a dimensão do público parece se apresentar subsumida pela dinâmica do privado, do<br />
particular, do individual.<br />
3.2 A TENSÃO NARCÍSICA NO CAMPO DA RELAÇÃO AMOROSO-PASSIONAL<br />
A perspectiva socrática – presente na obra O Banquete – de que o amor refere-se<br />
àquilo que, em última análise a pessoa gostaria de ser ou mesmo possuir, aproxima a reflexão<br />
referente ao amor ao que propriamente a experiência cotidiana indica como sendo a paixão.<br />
De modo a aclarar os elementos da presente reflexão, torna-se oportuno recuperar o<br />
sentido etimológico dos termos amor e paixão, conforme indicações presentes no sítio<br />
http://origemdapalavra.com.br, consultado em 04/06/2012.<br />
Conforme o referido sítio, o termo amor, quando considerado a partir de sua raiz<br />
grega, ordena-se por quatro ideias básicas: erotismo, romance, amizade, satisfação elevada. Já<br />
em sua raiz latina, o termo amor não apresenta relação direta com a ideia grega. No latim, o<br />
termo produz relação com cuidado destinado às crianças, e ordena-se pela ideia da figura<br />
materna.<br />
Ainda na perspectiva da recomposição dos fundamentos, apresenta-se como oportuna<br />
a retomada do mito de Eco e Narciso, a fim de agregar elementos compreensivos acerca do<br />
modo pelo qual as relações amorosas acabam por derivar-se em ações passionais.<br />
28
Eco era uma bela ninfa, amante dos bosques e dos montes, onde se dedicava a<br />
distrações campestres. Era favorita de Diana e acompanhava-a em suas caçadas.<br />
Tinha um defeito, porém: falava demais e, em qualquer conversa ou discussão<br />
sempre queria dizer a última palavra. Certo dia, Juno saiu à procura do marido, de<br />
quem desconfiava, com razão, que estivesse se divertindo entre as ninfas. Eco, com<br />
sua conversa, conseguiu entreter a deusa, até as ninfas fugirem. Percebendo isso,<br />
Juno a condenou com essas palavras: – Só conservarás o uso dessa língua com que<br />
me iludiste para uma coisa de que gostas tanto: responder. Continuarás a dizer a<br />
última palavra, mas não poderás falar em primeiro lugar. A ninfa viu Narciso, um<br />
belo jovem, que perseguia a caça na montanha. Apaixonou-se por ele e seguiu-lhe<br />
os passos. Quanto desejava dirigir-lhe a palavra, dizer-lhe frases gentis e<br />
conquistar-lhe o afeto! Isso estava fora de seu poder, contudo. Esperou, com<br />
impaciência, que ele falasse primeiro, a fim de que pudesse responder. Certo dia, o<br />
jovem, tendo se separado dos companheiros, gritou bem alto:<br />
– Há alguém aqui?<br />
– Aqui - respondeu Eco<br />
– Vem!<br />
– Vem! - respondeu Eco<br />
– Por que foges de mim? - perguntou Narciso.<br />
Eco respondeu com a mesma pergunta.<br />
– Vamos nos juntar – disse o jovem.<br />
A donzela repetiu, com todo o ardor, as mesmas palavras e correu para junto de<br />
Narciso, pronta para se lançar em seus braços.<br />
– Afasta-te! – exclamou o jovem recuando – Prefiro morrer a te deixar possuir-me.<br />
– Possuir-me – disse Eco.<br />
Mas tudo foi em vão. Narciso fugiu e ela foi esconder sua vergonha no recesso dos<br />
bosques. Daquele dia em diante, passou a viver nas cavernas e entre os rochedos<br />
das montanhas. De pesar, o seu corpo definhou até que as carnes desapareceram<br />
inteiramente. Os ossos transformaram-se em rochedos e nada mais dela restou além<br />
da bela voz. E, assim, ela ainda continua disposta a responder a quem quer que a<br />
chame e conserva o hábito de dizer a última palavra. A crueldade de Narciso nesse<br />
caso não constituiu uma exceção. Ele desprezou todas as ninfas, como havia<br />
desprezado a pobre Eco. Certo dia, uma donzela que tentara em vão atraí-lo<br />
implorou aos deuses que ele viesse algum dia a saber o que é o amor e não ser<br />
correspondido. A deusa da vingança ouviu a prece e atendeu-a.<br />
Havia uma fonte clara, cuja água parecia de prata, à qual os pastores jamais<br />
levavam rebanhos, nem as cabras monteses frequentavam, nem qualquer um dos<br />
animais da floresta. Também não era a água enfeada por folhas ou galhos caídos<br />
das árvores; a relva crescia viçosa em torno dela, e os rochedos a abrigavam do<br />
sol. Ali chegou um dia Narciso, fatigado da caça e sentindo muito calor e muita<br />
sede. Debruçou-se para desalterar-se, viu a própria imagem refletida na fonte e<br />
pensou que fosse algum belo espírito das águas que ali vivesse. Ficou olhando com<br />
admiração para os olhos brilhantes, para os cabelos anelados como os de Baco ou<br />
de Apolo, o rosto oval, o pescoço de marfim, os lábios entreabertos e o aspecto<br />
saudável e animado do conjunto. Apaixonou-se por si mesmo. Baixou os lábios,<br />
para dar um beijo e mergulhou os braços na água para abraçar a bela imagem.<br />
Esta fugiu do contato, mas voltou um momento depois, renovando a fascinação.<br />
Narciso não pôde mais conter-se. Esqueceu-se de todo da ideia de alimento ou<br />
repouso, enquanto se debruçava sobre a fonte, para contemplar a própria imagem.<br />
– Por que me desprezas, belo ser? – perguntou ao suposto espírito – Meu rosto não<br />
pode causar-te repugnância. As ninfas me amam e tu mesmo não pareces olhar-me<br />
com indiferença. Quando estendo os braços, fazes o mesmo, e sorris quanto te<br />
sorrio, e respondes com acenos aos meus acenos. Suas lágrimas caíram na água,<br />
turbando a imagem. E, ao vê-la partir, Narciso exclamou: – Fica, peço-te! Deixame,<br />
pelo menos, olhar-te, já que não posso tocar-te. Com estas palavras, e muitas<br />
outras semelhantes, atiçava a chama que o consumia, e, assim, pouco a pouco, foi<br />
perdendo as cores, o vigor e a beleza, que antes tanto encantara a ninfa Eco. Esta<br />
se mantinha perto dele, contudo, e, quando Narciso gritava: “Ai, ai”, ela respondia<br />
com as mesmas palavras. O jovem, depauperado, morreu. E, quando sua sombra<br />
atravessou o rio Estige, debruçou-se sobre o barco, para avistar-se na água. As<br />
29
ninfas o choraram, especialmente as ninfas da água. E, quando esmurravam o peito,<br />
Eco fazia o mesmo. Prepararam uma pira funerária, e teriam cremado o corpo, se o<br />
tivessem encontrado; em seu lugar, porém, só foi achada uma flor, roxa, rodeada de<br />
folhas brancas que tem o nome e conserva a memória de Narciso.<br />
(www.recantodasletras.com.br, acessado em 04/06/2012, às 10h31min.)<br />
3.3 A PRESENÇA DO OUTRO COMO NECESSÁRIA NEGAÇÃO DO EU:<br />
CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA DE JEAN-PAUL SARTRE AO ENTENDIMENTO<br />
DA EMOÇÃO HUMANA<br />
A existência humana constitui-se de um intrincado processo de relações. Inicialmente<br />
os seres humanos se apresentam ao mundo a partir de sua corporalidade. Quando nascem,<br />
apenas existem para os que os recebem. Em si, um recém-nascido, não é nada mais do que um<br />
corpo que ao longo de um processo repetidas vivências irá formando uma posição sobre o<br />
mundo. Esta tese encontra-se relacionada a uma concepção materialista e fenomenológica da<br />
realidade humana e é com Jean-Paul Sartre (1905/1980) que esta perspectiva sobre a<br />
existência humana ganha força durante o século XX.<br />
Em Sartre (1997) os estudos relacionados ao desenvolvimento da consciência são<br />
fundamentais e estes delimitam dois modos pelos quais a consciência acontece.<br />
No primeiro modo a consciência se supera a si mesma em direção do objeto do qual é<br />
consciência. A consciência, neste primeiro momento, é produzida pela percepção pura das<br />
coisas que estão no mundo. Não existe, até esse momento, uma separação entre o que se<br />
percebe e o ato de estar percebendo. A consciência e o mundo são uma só e mesma coisa.<br />
Tecnicamente este momento é designado como o momento da consciência pré-reflexiva. Cabe<br />
demarcar que a condição de pré-reflexiva está relacionada com o fato da consciência não<br />
depender, neste primeiro momento, de nenhuma vivência anterior ao evento que lhe ocupa.<br />
Já em seu segundo modo, a consciência já se dá como consciência de ser consciência.<br />
Este tipo de consciência é dado pela condição de perceber-se como consciência de algo que<br />
ela não é. Sua condição é dada pelas coisas presentes no mundo, somadas à condição de<br />
saber-se como aquela que se sabe diante do mundo. Neste modo de operação da consciência<br />
há, necessariamente, o aparecimento/posicionamento do eu diante do mundo. Tecnicamente<br />
esta consciência possui a marca da reflexividade. Não é mais dependente apenas dos<br />
eventos/coisas que estão no mundo, mas é fundamentalmente determinada consolidação de<br />
experiências/juízos que sucessivas vivências vão formando ao longo da vida das pessoas.<br />
30
Pensar a consciência a partir das ideias propostas por Sartre (1997) é encontrar uma<br />
possibilidade muito interessante para compreender, por exemplo, a condição da existência<br />
humana. Para o autor, a existência humana é marcada de modo decisivo pela condição da<br />
liberdade e não há nada divino ou natural que seja anterior ao ser do humano. Neste sentido, o<br />
ser humano é, sempre, uma decisão sobre si próprio. E tal decisão marca outra importante<br />
indicação relativa à existência humana, qual seja: a da responsabilidade.<br />
Não havendo existência anterior ao próprio fazer-se humano, é compreensível que a<br />
existência humana seja marcada por contradições promovidas pelo choque entre a alienação e<br />
a capacidade/potencialidade crítica pela qual a liberdade torna a responsabilidade seu<br />
correlato de primeira hora. É nessa espécie de tensão que os homens – em sua condição<br />
humano-genérica – vão se tornando o que são e se apresentam ao mundo. É no espaço<br />
liberdade-responsabilizável que os homens vão organizando seu projeto de ser no mundo. É<br />
neste espaço de existir que os homens vão escolhendo aquilo que querem ser.<br />
É fato que a ideia de liberdade na obra do eminente filósofo francês Jean-Paul Sartre<br />
não é àquela descrita pela condição do eu faço o que eu quero- quando quero- como quero-<br />
na hora em que desejo fazer. Ela é uma liberdade sobre a qual os homens precisam organizar<br />
suas escolhas e, por isso mesmo, é uma liberdade que implica o tempo todo a ideia da<br />
responsabilidade. E a dimensão da responsabilidade implicada à ideia de liberdade resulta que<br />
a vivência humana é, o tempo todo, atravessada por incontáveis tomadas e retomadas de<br />
posição.<br />
Na situação de um ser que continuadamente precisa escolher-se para, com isso,<br />
constituir-se como alguém, a todo o momento os seres humanos estão dispostos à contradição<br />
de estarem condenados à liberdade. A condição humana se dá apenas em liberdade. A<br />
convivência humana se singulariza e se tenciona através dessa ideia de liberdade. Para que<br />
uma determinada pessoa seja livre, segundo o pensamento de Sartre (1997) é necessário que o<br />
outro possa ser igualmente livre.<br />
(...) os acontecimentos de minha experiência é que servem para construir o outro<br />
enquanto outro (...) enquanto sistema de representação fora de alcance, como objeto<br />
concreto e cognoscível. O que encaro constantemente através de minhas<br />
experiências são os sentimentos do outro, as ideias do outro, as violações do outro, o<br />
caráter do outro. É porque, com efeito, o outro não é somente aquele que vejo, mas<br />
aquele que me vê. Encaro o outro como sistema conexo de experiências fora de<br />
alcance, no qual figuro como um objeto entre outros. Mas, na medida em que me<br />
esforço para determinar a natureza concreta desse sistema de representações e o<br />
lugar que ocupo a título de objeto, transcendo radicalmente o campo de minha<br />
experiência: ocupo-me de uma série de fenômenos que, por princípio, jamais<br />
poderão ser acessíveis à minha intuição e, em consequência, ultrapasso os direitos de<br />
meu conhecimento; busco vincular entre si experiências que jamais serão minhas<br />
31
experiências (...) O outro, ao contrário, se apresenta, em certo sentido, como negação<br />
radical de minha experiência, já que é aquele para quem eu sou, não sujeito mas<br />
objeto. Portanto, como sujeito de conhecimento, esforço-me para determinar como<br />
objeto o sujeito que nega meu caráter de sujeito e me determina como objeto.<br />
(Sartre, 1997, pp. 297/298)<br />
Por contraditório que possa aparentar, é na liberdade do outro – que de saída<br />
inviabiliza o fazer individual de cada qual – que realizo minha particular condição humana. E<br />
esse contraditório é o que lança a possibilidade de uma consciência crítica sobre a presença do<br />
homem no mundo, e desse modo torna possível uma existência que para ser, necessariamente<br />
deve eliminar a alienação, eliminar o simples fluir da consciência em direção ao objeto do<br />
qual é consciência, tomando diante dele uma posição. Esta é a condição decisiva para uma<br />
existência de fato humana.<br />
3.3.1 Uma teoria científica das emoções<br />
Conforme presente em http://origemdapalavra.com.br, o termo emoção tem origem<br />
latina e determinado pela união dos termos ex indicando a ideia de fora, e movere, indicando a<br />
ideia de mudar. O termo formula-se na condição de um verbo que refere-se como emovere, e<br />
expressa a condição de agitar, mover, mudar de lugar.<br />
A experiência da vida cotidiana encontra-se atravessada de vivências emocionais que,<br />
quase nunca, são tomadas desde uma perspectiva compreensiva. A emoção,<br />
fundamentalmente, se requer como vivência e não como consciência singular de uma<br />
determinada vivência. É assim que ela se realiza. Entretanto, dados os aspectos que<br />
relacionam a emoção com a possibilidade de teses no campo das ciências jurídicas, em<br />
especial no campo de embates constituído pela ação humana considerada delituosa, é<br />
proveitoso que se ordene, de modo mais sistemático, aquilo que a ciência já provê como<br />
possibilidade de auxílio a uma compreensão mais adequada da mesma.<br />
Correndo em auxílio a uma mais adequada compreensão das emoções, é possível<br />
encontrar modelos teóricos diversos e que, em muito, têm colaborado para aumentar a<br />
variação no entendimento do que propriamente constitui este fenômeno.<br />
Por um lado existem teorias que indicam ser a emoção uma produção de um sujeito<br />
unificado por uma consciência. Há no horizonte do fenômeno emoção um eu que se<br />
compreende como anterior à vivência do sujeito no mundo. Entre os teóricos que<br />
desfrutam/compartilham desse posicionamento, há a compreensão de que uma emoção se<br />
32
produz como condição mesma de um eu já existente no indivíduo. É este eu que organiza os<br />
acontecimentos e coisas do mundo como emocionantes ou não emocionantes. Aqui é como se<br />
a capacidade da emoção residisse única e exclusivamente no individuo que a sente/manifesta.<br />
Dentre as orientações teórico-conceituais existentes em Psicologia, a Psicanálise demonstra<br />
evidências que a vinculam a tal posição.<br />
Por outro lado temos um conjunto de teorias, ordenadas em um parâmetro de caráter<br />
científico, que referem as emoções na condição de fenômenos complexos, impossíveis de se<br />
materializarem eu função de uma figura antecipatória – tecnicamente descrito como ego,<br />
como eu – presente no próprio individuo que diante do mundo manifesta um comportamento<br />
emocionado.<br />
Dentre estas teorias, de fundamento fenomenológico-existencialista, encontra-se a<br />
proposição teórica de Jean-Paul Sartre, ordenada em sua obra Esboço para uma Teoria das<br />
Emoções publicada originalmente em 1939. Desde a proposição de Sartre (1965), ao tratar das<br />
emoções não como uma condição que dependa primariamente do indivíduo – do<br />
estabelecimento de um eu a priori capaz de elucidar a situação emocionante – mas sim como<br />
uma condição em que os elementos fundamentais estão no mundo, são propriedade do mundo<br />
e não do indivíduo, viabiliza-se um modo objetivo e plausível para se lidar com as teses que<br />
vinculam o argumento da emoção.<br />
A este respeito torna-se adequado retomar que:<br />
Sartre estabelece uma distinção entre o funcionamento irrefletido e o<br />
refletido da consciência. Ela funciona de maneira irrefletida quando se lança aos<br />
objetos transcendentes sem tomar consciência de si própria. Por exemplo, quando<br />
escrevo, não tomo como objeto de minha reflexão o próprio funcionamento da<br />
consciência, mas tão so mente o gesto da escrita. Já a consciência<br />
reflexiva aco ntece q uando a consciência toma como objeto a si<br />
própria. Porém, essa reflexividade pode ser de dois tipos, uma reflexão pura ou uma<br />
impura. A pura é aquela que suspende a validade do mundo e explora as<br />
possibilidades de funcionamento da consciência através da redução fenomenológica.<br />
Já a reflexão impura acontece quando a consciência tenta produzir uma síntese<br />
confusa de suas vivências, possibilitando a constituição do eu (ou ego) como seu<br />
objeto transcendente. Essa reflexão resulta num objeto que “não aparece senão pela<br />
reflexão e que, em vir tude disto, está radicalmente separado do<br />
mundo. (...) O Ego é uma síntese irracional de atividade e passividade, ele é<br />
síntese de interioridade e transcendência”. Por conseguinte,qualquer teoria ególica<br />
não pode produzir nada de seguro ou correto sobre a consciência, sendo apenas<br />
através da redução fenomenológica que este conhecimento pode ser conquistado.<br />
(CÂMARA, 2011: 6)<br />
33
A emoção, na perspectiva da teoria sartriana seria, então, um fluxo contínuo do<br />
mundo sobre a consciência. Um fluxo em que o domínio da consciência está sob o controle de<br />
sua exterioridade. Neste modo de compreender a emoção é possível encontrar explicação do<br />
por que a consciência da emoção produz o aparecimento de um eu emocionado. É por meio de<br />
uma tentativa de sínteses, relativamente confusas, acerca dos limites que se desdobram dos<br />
objetos do mundo que aparecerá a possibilidade de um eu no horizonte. É este eu que produz<br />
aquilo que habitualmente se convencionou designar como emoção. É a partir da estrutura<br />
desse eu que o senso comum trama suas compreensões acerca da emoção. E o que ocorre em<br />
tal circunstância é que a ação de um determinado individuo, quando apontada pela emoção,<br />
apenas é parcialmente considerada. Não se incluem na reflexão sobre o comportamento<br />
movido por violenta emoção a necessária perspectiva de correlação entre o indivíduo-mundo-<br />
consciência.<br />
A tese da violenta emoção, desde a presente perspectiva teórica, indica nada mais do<br />
que o estado bruto da relação entre o mundo e a consciência. De tal modo a consciência é<br />
tomada pelas coisas/acontecimentos do mundo que a síntese dessa complexa relação fica<br />
subtraída. Ainda assim, em que pese à subtração de um eu capaz de produzir emoção, não é<br />
possível garantir, sem reservas teóricas, que a violenta emoção apresente-se como<br />
viabilizadora de suspensão do juízo moral do indivíduo servindo, de tal modo, como<br />
atenuante de seus atos decisórios.<br />
34
4 DISCUSSÃO<br />
A contribuição da psicologia materialista-histórica, conforme já mencionado no<br />
Capítulo 3 deste trabalho, é reconhecer que o debate da organização/configuração da<br />
sociedade em determinado contexto temporal, se constitui como fundante de um modo pelo<br />
qual a condição humana poderá ser mais adequadamente compreendida.<br />
É fato que esta perspectiva de Psicologia não é a habitual, a corrente na sociedade<br />
contemporânea. A sociedade do século XX, com a consolidação do modo industrial/capitalista<br />
de produção, tem recorrido mais e mais àquela tradição em Psicologia que fundada na<br />
imaterialidade de suas posições teóricas – posições estas marcadamente metafísicas – que<br />
muito bem servem ao encobrimento do que, de fato e objetivamente acontece na experiência<br />
humana.<br />
Entretanto, e nesta seara que abriga o debate proposto para o presente TCC, afastar o<br />
campo das práticas jurídicas deste universo de possibilidades que a Psicologia Científica<br />
inaugurou desde meados do século XX é ordenar o ato do presente comprometendo, de modo<br />
significativo, o futuro.<br />
É fato que o desenrolar dos acontecimentos cotidianos terá um importante papel na<br />
modelagem/ordenamento das normas jurídicas. É preciso considerar que o desenvolvimento<br />
das ciências modernas, de modo especial o desenvolvimento da Psicologia, parecem não<br />
influenciar diretamente a condução da elaboração daqueles regramentos que permitirão à<br />
coletividade humana a negociação de perspectivas sobre a existência, de visões mediadoras do<br />
agir humano.<br />
Ao tomar em consideração estudos da Psicologia Científica – conforme constante na<br />
provisão teórica de Jean-Paul Sartre – encontrar-se-á fundamento absolutamente plausível<br />
para o estudo/compreensão das emoções. Estes fundamentos referirão que as emoções<br />
constituem, para sua compreensão, manifestação singular dos seres humanos em um<br />
determinado momento geral e pessoal da história.<br />
Ao considerar que os argumentos que vinculam o tema das emoções tomam lugar<br />
significativo na elaboração de teses relativas aos casos de homicídio passional, de pronto a<br />
perspectiva da ciência relativa a tal temática começa a dar sinais de inegável importância.<br />
Compreender tecnicamente como se constitui e como se desdobra uma consciência que se<br />
move no mundo e move esse mesmo mundo a partir do comportamento dos seres humanos é<br />
ação estratégica nos estudos do campo jurídico. Tal afirmação se dá pela observação de dois<br />
casos de grande repercussão midiática à época, quais sejam os julgamentos dos réus Doca<br />
35
Street e Eduardo Gallo ocorridos em 1970 no município de Búzios (RJ) e em 1976 no<br />
município de Campinas (SP) respectivamente 11 .<br />
Nos casos supracitados, e considerando a perspectiva da Psicologia Científica, é<br />
possível considerar que as usuais teses de legítima defesa da honra e da violenta emoção<br />
demonstram-se demasiado frágeis para os fins a que se destinam.<br />
O homicídio praticado contra Margot Proença Gallo, em 1970, foi resultado do ciúme<br />
de seu então esposo e assassino Eduardo Gallo. Às suspeitas de infidelidade da esposa,<br />
alimentadas pela declaração da filha do casal, Maitê Proença – na época com 12 anos de idade<br />
–, de que vira, durante viagem do pai, um professor de nacionalidade francesa na residência<br />
do casal, vestindo apenas pijamas, bem como a leitura de uma carta que, conforme<br />
depoimento de Eduardo, continha declarações de amor de Margot para o mesmo professor,<br />
fizeram com que os desentendimentos do casal chegassem ao resultado morte.<br />
No entanto, algumas observações merecem destaque. Eduardo Gallo era, ao tempo dos<br />
fatos, membro do Ministério Público do Estado de São Paulo há 17 anos e, portanto,<br />
preocupava-se com a repercussão que o comportamento da esposa causasse perante a<br />
comunidade local. Tanto é verdade, que quando propôs a separação do casal, apresentou<br />
como condição que ele ficasse com os filhos, uma vez que Margot não possuía moral para<br />
criá-los. Também, que ela deveria sair da cidade após o desquite por emporcalhar o seu nome.<br />
Neste momento, Margot, que era professora de filosofia em escola local, manifestou-se contra<br />
as condições impostas pelo esposo e afirmou que ele agia preso a convicções sociais. Eduardo<br />
afirmou em seu depoimento, que neste momento da discussão, sentindo-se deprimido,<br />
moralmente arrasado e sob o efeito de medicamentos, pegou uma faca que estava no quarto<br />
do casal e desferiu os 11 golpes, causando a morte de Margot. Eduardo foi absolvido em dois<br />
julgamentos sob a tese de legítima defesa da honra.<br />
Valdir Troncoso Peres, advogado criminalista que atuou na defesa de Eduardo Gallo,<br />
em entrevista concedida no ano de 2002, refere que o problema social é componente para o<br />
crime passional, quando afirma:<br />
(…) onde você encontra mais profundamente esta inter-relação entre o social e o<br />
crime passional é no Emílio Melli Lopes, quando ele fala do amor. Ele diz assim:<br />
'Como é que eles querem dar o gravame da qualificadora ao crime passional se o<br />
crime passional é ordenado pela comunidade, se ele é exigido pela coletividade, se<br />
há um comando que ordena ao homem que mate?'. Quando a etiologia do crime não<br />
é exclusivamente endógena, ela tem uma concausa exógena, um fator social que<br />
11 Os casos foram analisados conforme texto de Luiza Nagib Eluf, trazidos na íntegra nos anexos 1 e 2 deste<br />
trabalho.<br />
36
conclama aquela conduta. Quem mandou que ele praticasse aquele fato – a<br />
sociedade – não pode puni-lo de forma exacerbada (ELUF, 2002, p. 179).<br />
Peres ainda defende que o sentimento de posse leva a matar e que este é mais evidente<br />
nos homens por um fenômeno pedagógico-educacional. O ato de matar, portanto, deve ser<br />
analisado perante todo o elenco de fatores circundantes, e não apenas o fato isolado em si.<br />
Afirma que a legítima defesa “(...) não é o ato instantâneo do desfecho do tiro (…) É toda<br />
uma paisagem, um conjunto de circunstâncias (…) o juiz é sempre um homem que propende a<br />
uma solução técnica e a solução técnica é a visualização exclusiva do instante da<br />
perpetração do crime” (Peres, in: Eluf, 2002, p.182).<br />
Neste sentido, o tribunal do júri, cujo corpo de jurados é comporto exclusivamente por<br />
populares, foge à interpretação meramente técnica e julga conforme suas próprias convicções<br />
pessoais, pautadas nas experiências de vida e nos valores morais que a sociedade à sua época<br />
determinou aprováveis ou não.<br />
Já se falou anteriormente neste trabalho, sobre a reflexividade como marca de uma<br />
consciência de ser consciência, conforme a filosofia de Jean-Paul Sartre. Neste sentido, o ser<br />
humano é, sempre, uma decisão sobre si próprio e, portanto, detentor de responsabilidade –<br />
atrelada à liberdade – sobre seus atos. O sentimento de posse, evidenciado na grande maioria<br />
dos homicídios passionais, parece encontrar aqui um fator importante.<br />
A concepção de que o amor é fundante da existência humana está evidenciada no<br />
modo de pensar/argumentar do defensor do homicida de Margot Proença, quando este afirma<br />
que: “(...) arrancar o amor de dentro do homem, arrancar aquilo que lhe é imanente, aquilo<br />
que lhe é próprio, aquilo que é a matriz que conduz a sua vida, é a mesma coisa que matá-lo.<br />
Então, ele se sente no direito de matar porque ele está em legítima defesa (...)”(Peres, in:<br />
ELUF, 2002, p. 178). Percebe-se neste ponto que aquele que pratica um determinado ato, se<br />
considera no direito de praticar tal ato, seja ele qual for o ato. Esta noção de uma liberdade<br />
absoluta – uma liberdade que não se dá em termos de uma reflexão crítica acerca das<br />
consequências relacionadas ao ato praticado, ao comportamento efetivado – somente se<br />
sustenta no plano das ideias. Por mais que esta concepção de um liberdade, descolada de uma<br />
linha de consequências, seja útil ao modo de viver e aos fundamentos de inúmeras teses de<br />
defesa em homicídios considerados na condição de passionais, quando confrontadas com a<br />
materialidade da existência humana ela não resiste à contraposição entre ato cometido e<br />
alinhamento das consequências.<br />
37
O mesmo advogado afirma que o passional mata sabendo que matando ele está se<br />
matando, está sacrificando a sua liberdade, e que mesmo assim opta por fazê-lo. A liberdade<br />
de escolha e a posterior responsabilidade sobre o ato cometido aparecem aqui como espelho<br />
dos valores morais que o sujeito criminoso carrega consigo.<br />
Entretanto – e isso é possível de ser sustentado no contexto de uma Psicologia<br />
Científica – a admissibilidade de uma condição de crítica da consciência sobre o ato, faz<br />
perseverar a tese de uma ação realizada sob a égide da legítima defesa da honra invalidando,<br />
ato contínuo, todas àquelas teses que se produzem a partir da sustentação do argumento da<br />
tese violenta emoção. Pois seria possível, no contexto de um crime passional, a defesa de<br />
ambas as teses? Que tamanha ginástica de pensamento seria necessária para explicitar a<br />
convergência de ambas?<br />
Relativo à tese da violenta emoção, trar-se-á o assassinato de Ângela Diniz, ocorrido<br />
em 1976 e tendo como réu seu companheiro, Doca Street.<br />
O crime aconteceu na casa de veraneio de Ângela Diniz e se justificou, conforme<br />
alegações da defesa, por ciúmes em virtude de uma mulher de nacionalidade alemã, a qual<br />
Ângela supostamente estaria tentando seduzir.<br />
Doca estava contrariado pelo comportamento da companheira, uma vez que meses<br />
antes dos fatos, havia deixado um relacionamento com Adelita Scarpa, no qual tinha todo o<br />
conforto e notoriedade de uma família tradicional brasileira para ficar com Ângela.<br />
Assim, na noite do crime, após ser expulso da casa por Ângela, Doca desferiu três tiros<br />
no rosto e um tiro na nuca, causando a morte instantânea de Ângela.<br />
As alegações de defesa foram que Doca agiu comovido por violenta emoção logo após<br />
injusta provocação da vítima e, no primeiro julgamento, foi condenado a pena de dois anos de<br />
reclusão com sursis, podendo, portanto, ficar em liberdade. No entanto, após recurso<br />
interposto pela acusação, também motivada pelos intensos movimentos feministas à época,<br />
Doca foi conduzido a novo julgamento onde foi condenado a quinze anos de reclusão por<br />
homicídio qualificado.<br />
Interessante notar, neste caso, é a mudança no posicionamento social em menos de<br />
dois anos que se seguiram entre os dois julgamentos. No primeiro, Doca desfrutava do apoio<br />
da sociedade que pedia, entre aplausos a porta do fórum, por justiça. No segundo julgamento,<br />
após a polêmica declaração de Doca de que “matou por amor”, Doca foi vaiado e os cartazes<br />
na frente do fórum não mais traziam mensagens de apoio, mas os dizeres quem ama não mata.<br />
Eluf (2002) afirma que neste momento, finalmente, a benevolência da sociedade brasileira<br />
para os crimes de honra haviam mudado.<br />
38
De modo proveitoso é possível demarcar que sob os auspícios de uma orientação<br />
teórico-conceitual em Psicologia, marcada por uma elaboração científica materialista e<br />
histórica, percebe o termo da violenta emoção não mais se apresenta como adequado para o<br />
fim a que se destina no campo jurídico.<br />
Desde a proposição da Psicologia Científica, o mais adequado será a realização de um<br />
substancial modificação no termo da violenta emoção. No campo de ação do Direito Penal,<br />
violenta emoção constitui-se como algo abrupto, repentino. A emoção, conforme palavra do<br />
penalista brasileiro Nelson Hungria “(...) é um estado de ânimo ou de consciência<br />
caracterizado por uma viva excitação do sentimento. É uma forte e transitória perturbação<br />
da afetividade, a qual estão ligadas certas variações somáticas ou modificações particulares<br />
das funções da vida orgânica (...)”. (HUNGRIA, 1979, p. 132)<br />
O estado de ânimo ou de consciência, considerando inicialmente a proposição de<br />
Hungria (1979), é considerado habitualmente desde a perspectiva do momento mesmo do fato<br />
em análise. Entretanto, e a guisa de exercício reflexivo possibilitado pelo presente TCC,<br />
consta como adequado refletir um pouco mais detidamente tanto sobre o estado de ânimo<br />
quanto sobre o fenômeno da consciência.<br />
Estado de ânimo pode ser compreendido como uma referência particular, atribuída a<br />
uma pessoa, em um contexto sociocultural e histórico determinados. Deste modo, estado de<br />
ânimo é sempre uma condição marcadamente cultural, que determina as possibilidades e<br />
potências de expressão de uma pessoa. Deste ponto de vista, o referido estado de ânimo será<br />
sempre uma pré-condição na qual todos os integrantes de uma determinada comunidade<br />
cultural realizam seu existir. A diferença dos padrões culturais forma, por sua vez, o escopo<br />
sobre o qual a consciência encontrará seus limitantes. De aí que um determinado<br />
acontecimento, materializado em uma determinada cultura/classe social/tempo histórico,<br />
torna-se mobilizador de determinados estados de ânimo que, em outra formação<br />
cultural/tempo histórico/condição de classe não mobilizará, em absoluto, comportamento<br />
semelhante.<br />
Igualmente a condição de organização da consciência requer ser considerada desde os<br />
parâmetros da Psicologia Científica, de base materialista-histórica. A consciência não é, de<br />
fato, apenas a condição de um estado bruto capaz de dirigir as ações de uma pessoa. Por mais<br />
que a isso se preste a noção de consciência – e como regularmente o é utilizada pelos<br />
operadores do Direito em uma sessão do Tribunal do Júri – ela não é só a condição reflexiva<br />
presente a uma pessoa no momento que a mesma produz uma determinada ação. A<br />
consciência, e sua possibilidade de avaliação dos fatos é – igualmente ao descrito em relação<br />
39
ao estado de ânimo – uma condição que depende da anterioridade do mundo no qual a mesma<br />
acontece. Por certo que, deste modo, a consciência precisa ser considerada no complexo que a<br />
explica. Inicialmente os seres humanos nascem como um nada, tomando a consciência como<br />
ponto de partida. Despontam no mundo que, à sua chegada, está pronto e com todas as suas<br />
regulações estabelecidas. É a partir deste mundo anteriormente organizado que a consciência<br />
do ser humano passará a organizar-se. Por isso, a tese de que a existência precede a essência<br />
constitui-se como concretamente verificável no tocante ao desenvolvimento dos seres<br />
humanos. Primeiro é necessário existir para, em um continuado e complexo ciclo de<br />
vivências, ir se tornando algo. Neste sentido é possível compreender, por exemplo, que se<br />
uma criança vem ao mundo em uma família marcada pela ausência do diálogo, seu modo de<br />
resolver os conflitos que forem se apresentando ao longo da vida será basicamente o da ação<br />
corporal súbita; um movimento quase animal de autodefesa diante das ameaças pressentidas<br />
e/ou constatadas. Neste sentido, é importante considerar que diante dos argumentos estado de<br />
ânimo e consciência, faz necessário ter sempre na base dos raciocínios sobre tais argumentos<br />
que eles, em muito, devem ser tomados para além de meros descritores de um estado presente<br />
no qual se encontra um determinado ser humano. É preciso ir além e considerar que ambos os<br />
termos representam apenas uma das possibilidades de sustentação do argumento jurídico. O<br />
mesmo ocorre com o argumento habitual da violenta emoção.<br />
Nesta senda reflexiva, violenta emoção não seria algo repentino que, ao ser percebido<br />
pela pessoa, retira dela seus sentidos sobre o certo e o errado, levando-a ao cometimento do<br />
crime. Mas, ao invés disso, é uma emoção construída a partir das experiências vividas pelo<br />
sujeito, que determinam quais os fatos da vida são para ele, àquela época, emocionados ou<br />
não.<br />
Após o advento do Código Penal de 1940, bem como da Constituição Federal de 1988,<br />
as teses de legítima defesa da honra e violenta emoção – caracterizadora do homicídio<br />
privilegiado – não são facilmente admitidas nos tribunais do júri, por caracterizarem incitação<br />
à discriminação de gênero. Este entendimento se deu principalmente pela igualdade de<br />
direitos e obrigações entre homens e mulheres, trazidas pela legislação vigente. Dessa forma,<br />
coube aos advogados de defesa a elaboração de estratégias e teses que, de algum modo,<br />
substituíssem os já conhecidos e divergentes institutos jurídicos de defesa.<br />
40
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
As produções mais recentes no campo teórico da Psicologia Científica possuem a<br />
marca de um inalienável vínculo com a realidade material e histórica da sociedade. Os fatos<br />
psicológicos passam a ser compreendidos desde dois parâmetros que se co-implicam; fatores<br />
que são interdependentes na produção das condutas humanas.<br />
O primeiro destes parâmetros é denominado como Processos Psicológicos Básicos<br />
(PPB) – percepção, atenção e memória – o segundo apresenta-se sob a denominação de<br />
Processos Psicológicos Superiores (PPS) – emoção, pensamento, linguagem – e refere<br />
aspectos próprios à singularidade humana. Os PPB constituem o fundamento da condição<br />
psíquica humana que, por sua vez, alcançará distinção apenas na materialização dos PPS.<br />
A localização dos PPB e dos PPS chega à cena contemporânea da Psicologia a partir<br />
dos estudos de Lev Seminovitch Vigotsky, psicólogo russo que em inícios dos anos 1920<br />
mostrava, com vigor, a possibilidade do desenvolvimento de uma teoria cientifica em<br />
Psicologia produzida a partir de uma compreensão material e histórica da realidade humana.<br />
Importante registrar que as contribuições de Vigotsky chegaram à Psicologia ocidental apenas<br />
a partir de meados dos anos 1970 e, em específico no Brasil, apenas em meados dos anos<br />
1980.<br />
Durante a elaboração do presente TCC foi possível verificar que as diversas<br />
perspectivas jurídicas relativas aos crimes passionais presentes em peças processuais<br />
anteriores ao advento da Constituição Federal de 1988, foram produzidos desde uma<br />
perspectiva significativamente distanciada daquelas compreensões que se tornaram possíveis<br />
a partir da disseminação da Teoria Materialista-Histórica em Psicologia.<br />
A tese jurídica da violenta emoção – e sua variante forte emoção – ganha um novo<br />
contorno se o ponto de partida é o da Psicologia Científica conforme proposta por Vigotsky. E<br />
esse contorno é produzido, justamente, pela compreensão de que o fato humano possui a<br />
marca inegável da materialidade e da história social. Os homens e as mulheres são,<br />
inegavelmente, filhos e filhas de um tempo e de uma materialidade. Produzem suas visões de<br />
mundo, seus valores pessoais e seus campos de ação tendo como ponto de partida o contexto<br />
particular de suas vivências, e o contexto geral que é determinado por uma inegável<br />
vinculação espaço-tempo. Considerar as vivências humanas a partir de tais determinantes<br />
poderá, de fato, produzir uma espécie de tensão entre o que é instituto aceito no campo do<br />
Direito e o que é a possibilidade de formação de novos institutos nesta área específica do<br />
conhecimento.<br />
41
Relativo ao propósito deste trabalho, compreende-se que a tese da violenta emoção, da<br />
forte emoção pode ser repensada desde parâmetros mais vinculados à realidade mesma de seu<br />
processamento psicológico. E tal repensar poderia produzir, por exemplo, uma mudança no<br />
sentido da compreensão do que, de fato, acontece a um indivíduo quando o mesmo age tendo<br />
sua consciência completamente ocupada por aquilo que nos habituamos a reconhecer como<br />
sendo emoção. Esta opção teórico-conceitual ainda é um grande desafio, pois a sociedade<br />
contemporânea ainda vive sob uma espécie de instrução metafísica que descreve os homens e<br />
mulheres concretos como sendo uma espécie de ilusão. Os homens e as mulheres percebidos,<br />
buscados e compreendidos desde a totalidade de suas experiências concretas, materiais e<br />
objetivas requererão um novo tratamento. A sustentação jurídica, o corpo de leis, os<br />
procedimentos realizados a partir do campo dos operadores do Direito precisará ser,<br />
necessariamente outro. E este outro, qual seria? Não é propósito de o presente TCC tratar<br />
deste outro Direito a partir do que as novas configurações teóricas da Psicologia possibilitam.<br />
Mas, por certo, tal propósito afiançaria um desafiador projeto de estudos a ser realizado em<br />
nível de pós-graduação.<br />
Quanto à problemática referente à possibilidade de se produzir justiça referindo ao<br />
estabelecimento de penas relacionadas aos crimes passionais, quando a compreensão do<br />
magistrado – e também do corpo de sentença – encontra-se eivada de informações não<br />
convergentes com os argumentos científicos da Psicologia, a resposta apresenta-se na<br />
condição de quase evidente. Por certo que nos parâmetros do que sustenta o sistema/cultura<br />
criminal-penal de nosso País, a justiça vem sendo produzida. Entretanto, e a isso não é mais<br />
possível fechar os olhos, essa justiça poderia ser mais convergente ao fato humano se tomasse<br />
em consideração os apontamentos da Psicologia Científica de base materialista-histórica. Os<br />
homens e as mulheres seriam considerados na extensão mesma de suas existências – não<br />
deixando com isso um lugar em que a perseverança de algum tipo de dúvida ou informação<br />
apenas parcialmente referencial à verdade dos fatos – estariam mais próximos de produzir e<br />
regular-se por um parâmetro jurídico capaz de produzir a justiça como um fato e não como<br />
debate de versões onde a vitória prevista é, via de regra, alcançada por quem tem maior poder<br />
aquisitivo ou por quem está mais próximo do senso comum.<br />
Tomando em conta os crimes passionais, percebe-se que uma aproximação da Ciência<br />
Jurídica daquilo que a Psicologia Científica de cunho materialista-histórico – conforme<br />
proposta por Vigotsky e também dimensionada pelos estudos da filosofia de Sartre – é capaz<br />
42
de produzir a materialização de uma forma jurídica mais convergente com a realidade dos<br />
fatos e, nisso, produzir justiça no tratamento destes casos.<br />
A perseverar aos crimes passionais teses sustentadas no senso comum, sem uma<br />
aproximação com a compreensão do que de fato ocorreu nas circunstancias de provisão do ato<br />
criminoso, o tratamento recebido pelos envolvidos – réu, vítima, sociedade – será apenas<br />
parcialmente justo. Tal situação poderia levar, por exemplo, a uma estabilização de sensos que<br />
mesmo já não mais admitidos no contexto do debate jurídico contemporâneo – tais como os<br />
da legítima defesa da honra – ainda perseverem entre a população e, nisso, instruam o senso<br />
pelo qual a admissibilidade do ato contra a vida se apresente como potencialmente<br />
organizadora dos juízos referentes aos crimes passionais.<br />
Por fim, cabe elucidar que os casos citados ao longo deste trabalho, quais sejam dos<br />
réus Eduardo Gallo e Doca Street – anexos 1 e 2 na íntegra, conforme a obra de Eluf (2002) –<br />
parecem não terem sido escritos de maneira imparcial, e que, o manusear do processo físico,<br />
tornaria este trabalho mais rico em detalhes e considerações.<br />
43
REFERÊNCIAS<br />
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BITENCOURT, C. R. Tratado de direito penal. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.<br />
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Brasileiro. Sítio eletrônico internet: planalto.gov.br.<br />
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Penal Brasileiro. Sítio eletrônico internet: planalto.gov.br.<br />
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CAPEZ, F. Curso de processo penal.17 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 875 p.<br />
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ELUF, L. N. A paixão no banco dos réus: casos passionais célebres: de Pontes Visgueiro<br />
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LIMA, C. A. Amor e capitalismo. Rio de Janeiro : Civilizacao Brasileira, 1962.<br />
44
NUCCI, G. S. Júri: princípios constitucionais. São Paulo: J. de Oliveira, 1999.<br />
Rec. APL 200730013692 PA 2007300-13692 Relator(a): JOAO JOSE DA SILVA MAROJA<br />
Julgamento: 27/05/2008 Publicação: 30/05/2008. Acessado em 24 de maio de 2012.<br />
Disponível em http://200.217.195.100/consultasProcessuais/jurisprudencia/.<br />
Recurso Criminal n. 2011.060770-5, de Blumenau SC, Relator: Des. Rui Fortes de 1º de<br />
novembro de 2011. Acessado em 25 de maio de 2012. Disponível em<br />
http://app.tjsc.jus.br/jurisprudencia/.<br />
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do RS, Relator: Marco Antônio Ribeiro de Oliveira, Julgado em 25/04/2012. Acessado em 23<br />
de maio de 2012. Disponível em http://www.tjrs.jus.br/busca/.<br />
Recurso em Sentido Estrito Nº 70044068229, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça<br />
do RS, Relator: Manuel José Martinez Lucas, Julgado em 16/11/2011. Acessado em 23 de<br />
maio de 2012. Disponível em http://www.tjrs.jus.br/busca/.<br />
SARTRE, J. P. Esboço de uma Teoria das Emoções. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.<br />
STJ – REsp. n. 1.517-PR – 6ª T. – m. v. – 11.3.91 – rel. Min. José Cândido. DJU, de 15.4.91,<br />
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__________ O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 2. ed. Petropolis : Vozes,<br />
1997.<br />
VERGARA, P. Dos motivos determinantes no direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1980.<br />
45
ANEXO 1<br />
Augusto Carlos Eduardo da Rocha Monteiro Gallo e Margot Proença Gallo<br />
No dia 7 de novembro de 1970, Augusto Carlos Eduardo da Rocha Monteiro Gallo,<br />
procurador de justiça, suspeitando de que sua mulher, a professora de filosofia do “Colégio<br />
Estadual Culto à Ciência” Margot Proença Gallo, lhe era infiel, marcou com ela um encontro<br />
na residência do casal, na Rua Jesuíno Marcondes Machado, 70, em Campinas, São<br />
Paulo, convencendo-a a ficar a sós com ele para decidirem sobre a separação.<br />
Eram 16 horas quando ambos iniciaram uma discussão no interior do quarto do<br />
casal. Tomado de incontrolável fúria, sentindo-se traído e ultrajado, Gallo desferiu onze<br />
facadas na esposa, matando-a na hora. Em seguida, deixou a residência dirigindo seu carro,<br />
levando a arma do crime. Ficou onze dias foragido e depois se apresentou à Polícia. Não foi<br />
preso.<br />
No dia em que foi assassinada, Margot trajava blusa de algodão branca e saia xadrez<br />
nas cores verde e vermelho. Sapatinho de salto baixo, parecia uma colegial. Tinha 37 anos<br />
de idade. Gallo era membro do Ministério Público do Estado de São Paulo havia 17<br />
anos, quando a tragédia aconteceu. Trabalhava como procurador de justiça e morava em<br />
Campinas com a mulher e três filhos, um deles de criação. Segundo sua versão, dada na<br />
Delegacia em 17 de novembro, no dia 3 daquele mês, quatro dias antes do crime, às 18 horas,<br />
a empregada anunciou que o jantar estava servido, mas Margot disse que teria de sair e<br />
voltaria em cinco minutos. Como todas as terças-feiras o jantar era servido exatamente no<br />
mesmo horário, pois Gallo saía em seguida para dar aula, ele estranhou a atitude da mulher e<br />
resolveu segui-la.<br />
Margot foi ao correio postar uma carta. Gallo aproximou-se do guichê por detrás da<br />
mulher e conseguiu tomar a carta de sua mão, no momento em que a funcionária se<br />
preparava para recebê-la e passá-la pela máquina de selagem. Margot reagiu, tentando<br />
retomar o que era seu, e a carta rasgou-se ao meio. Ele pegou o pedaço da carta que<br />
ficara em suas mãos e colocou-o no bolso. Margot ainda tentou recuperar a outra<br />
metade e chegou a rasgar o bolso da calça do marido, mas não conseguiu apanhá-la.<br />
Ao voltar para casa trazendo parte da carta, Gallo verificou, estarrecido, tratar-se de<br />
uma declaração de amor que Margot havia escrito para o Professor Ives Gentilhomme, de<br />
nacionalidade francesa, que estivera em Campinas dando um curso do qual Margot<br />
havia sido aluna. Gallo lembrou-se de que, durante a permanência do professor na<br />
46
cidade, os desentendimentos do casal haviam-se acirrado, reforçando suas suspeitas de<br />
que ela havia se envolvido com aquele homem.<br />
Quando Margot voltou para casa, Gallo a esperava com uma arma de fogo. Ameaçou-<br />
a, estapeou-a e fez com que entrasse no carro. Pôs o veículo em movimento, apontou a<br />
arma para a cabeça da mulher, ameaçou-a de morte, mas acabou não disparando tiro algum<br />
por falta de coragem. Então, entregou-lhe a arma e pediu que o matasse, pois não<br />
conseguiria mais viver depois do que acabara de saber. A mulher se livrou da arma e<br />
tentou sair do carro, sem conseguir. Gallo, ainda fora de si, procurou jogar o veículo<br />
contra algum obstáculo, buscando, segundo ele próprio relatou, a morte de ambos. No<br />
entanto, faltou-lhe novamente coragem e, a pouca velocidade, “lançou ridiculamente o<br />
carro contra um poste, nada acontecendo”, conforme suas próprias palavras. Manobrou e<br />
fez a mesma coisa contra outro poste. Nesse momento, Margot conseguiu sair do carro e<br />
entrou em um ônibus que passava, salvando-se, momentaneamente, dos desatinos do<br />
marido.<br />
Muito deprimido pelo ridículo daquela cena toda e preocupado com a repercussão<br />
que o fato poderia ter, Gallo voltou para casa. Margot chegou algum tempo depois,<br />
acompanhada do Delegado de Polícia Luiz Hernandes, que tentou acalmar os ânimos.<br />
Passado o [pg. 54] incidente daquela noite, Gallo se propôs a deixar a residência do<br />
casal e viajar para algum lugar, mas foi demovido da idéia pela mulher. Margot<br />
argumentou que não havia nada de concreto entre ela e o professor francês, que tudo<br />
não passava de devaneio literário, sendo impossível manter um relacionamento com pessoa<br />
que morava tão longe.<br />
Os dias que se seguiram foram tensos, Gallo esteve sob efeito constante de<br />
tranqüilizantes. Ele se dizia arrependido por ter batido na mulher, coisa que nunca<br />
fizera antes. Prometeu a Margot um carro novo e tentou fazer as pazes. No entanto,<br />
ele impunha condições para a reconciliação: queria que a mulher lhe revelasse os “pecados”<br />
que havia cometido, a fim de que pudessem recomeçar uma vida “limpa”. Margot insistiu<br />
em que não havia mácula em seu comportamento de casada.<br />
Não tardou, porém, para que a empregada Zenilza fomentasse a desavença. Ela<br />
contou a Gallo ter percebido a presença do professor francês na residência do casal em<br />
algumas ocasiões, quando ele viajava. Gallo, então, iniciou uma investigação particular<br />
para encontrar as provas de infidelidade de Margot, inquirindo várias pessoas que tinham, de<br />
alguma forma, convivido com a família. Depois, levou as suas testemunhas para contar o<br />
que sabiam ao juiz de família da Comarca, já preparando um desquite por culpa da mulher.<br />
47
Entre os que foram ouvidos estava a filha do casal, Maitê, então com 12 anos de idade,<br />
que prestou declarações ao Juiz José Augusto Marin, informando ter visto o mencionado<br />
professor na cama de sua mãe, vestido de pijama.<br />
Gallo tinha medo de perder a guarda dos filhos e queria garantir que as crianças<br />
ficassem com ele após a separação. O juiz era amigo do procurador e ouviu as testemunhas<br />
em sua própria casa. Também foi prestar declarações o filho de criação do casal, que,<br />
na época, tinha 23 anos, Jorge das Dores Silva, o Zuza. Certa vez, ele surpreendera Margot<br />
em casa em companhia de um oficial do Exército. O outro filho do casal, Renê Augusto,<br />
tinha 7 anos e não foi ouvido pelo juiz por ser muito criança. Zenilza também contou o<br />
que vira ao magistrado.<br />
Não satisfeito com o que já havia descoberto, Gallo procurou uma antiga empregada<br />
da família, de nome Maria Bombonato, que com eles havia trabalhado em uma época em que<br />
o casal vivia bem, e perguntou por alguma conduta estranha por parte de sua mulher de que<br />
ela tivesse conhecimento. Maria informou ter percebido um relacionamento de Margot<br />
com um ex-aluno de prenome Milton, pois eles ficavam juntos, trancados no escritório,<br />
quando o marido se ausentava de casa.<br />
Com todas essas evidências, Gallo marcou um encontro decisivo com Margot<br />
para discutirem o desquite, que, dizia ele, seria amigável. Exigiu que a sogra não<br />
estivesse presente no encontro, já que ela vinha acompanhando as discussões do casal e<br />
poderia querer ajudar a filha.<br />
Na data do encontro, que terminou em tragédia, ele chegou em casa e encontrou a<br />
mulher na porta. Entraram juntos. Gallo narra que, naquele momento, falava com<br />
dificuldade por estar deprimido, moralmente arrasado e sob efeito de medicamentos.<br />
Começou dizendo que, no desquite, ele ficaria com os filhos, pois Margot não teria<br />
condições morais para guardá-los. Além disso, após a separação, ela deveria sair da cidade<br />
porque emporcalhara o seu bom nome, coisa que ele muito prezava, transformando-o em<br />
“corno”, maculando a casa dos filhos ao dormir nela com outro homem.<br />
Ao ouvir as imposições do marido, Margot ficou enraivecida e disse não<br />
concordar com nada do que ele queria. Afirmou que ele era um “burguesinho”, preso<br />
a nojentas convenções sociais, e admitiu que ela, Margot, havia realmente tido outros<br />
homens.<br />
Nesse momento, segundo a versão de Gallo, ele viu que havia uma faca sobre o<br />
armário e pegou-a, desferindo o primeiro golpe na mulher. Entraram em luta corporal e<br />
ele desferiu outras dez facadas na esposa, causando sua morte. Vizinhos informaram ter<br />
48
ouvido gritos desesperados de socorro, que perduraram por cerca de dois minutos. Em<br />
seguida, fez-se silêncio completo.<br />
Gallo saiu de casa levando a arma do crime, que nunca mais foi encontrada. Rumou<br />
para Bragança Paulista e depois para Belo Horizonte, para a casa de um amigo, onde ficou por<br />
algum tempo. Os filhos do casal, Maitê (12 anos) e Renê (7 anos), foram levados para<br />
um internato. Em 17 de novembro de 1970, Gallo apresentou-se à Polícia de Campinas e foi<br />
interrogado pelo Delegado Amândio Augusto Malheiros Lopes, narrando os fatos<br />
detalhadamente. Disse que estava “arrependido, mas sem consciência de culpa”.<br />
Cerca de quarenta testemunhas foram ouvidas no inquérito policial e no processo-<br />
crime instaurado contra Eduardo Gallo.<br />
Um ex-aluno de Margot prestou depoimento informando que ela o assediava, dizendo<br />
amá-lo, mas ele se sentiu amedrontado e evitou relacionar-se sexualmente com ela. Provou<br />
o que disse entregando ao delegado um bilhete de amor que ela lhe havia escrito.<br />
Declarações como essa contavam a favor do marido traído.<br />
No entanto, a sociedade campineira estava dividida; havia um apoio grande à<br />
memória de Margot, que era professora benquista na cidade. Um artigo publicado no Diário<br />
do Povo, jornal de Campinas, de 29-11-1970, p. 26, assinado apenas com as iniciais<br />
“M.J.M.P.N.”, que se sabe ser de uma mulher, defendia Margot do achincalhe público de<br />
que vinha sendo alvo, tendo em vista as declarações de Gallo e das testemunhas que ele<br />
levou para serem ouvidas já no inquérito. Diz um pedaço do artigo:<br />
Por que expor a mulher inteligente, cheia de amor pela vida, ao achincalhe de<br />
crápulas e imbecis, que os há, infelizmente, por toda a parte? Deveriam<br />
pensar, antes de acusá-la, que foi uma professora estimadíssima pelos alunos,<br />
pela sua maneira amiga, comunicativa, alegre e compreensiva. Como amiga,<br />
sempre firme e sincera em suas idéias, compenetrada do dever de servir, que<br />
nunca se negou a prestar favores. Conquistava a amizade de quantos a<br />
conheciam. Separar todas as suas qualidades para imprimir em sua memória a<br />
marca da fraqueza humana, para a malícia de uns e outros, como se estivessem em<br />
condições morais de atirar a primeira pedra, é tão desumano, tão ignóbil que<br />
nos obrigou a sair do silêncio, que preferiríamos, para pedir que se calem<br />
todos. Que se cale também o acusador, por amor a seus filhos. Que se deixe<br />
condenar ou absolver certo de que, para os filhos, mãe é sempre mãe. Mesmo<br />
caída, mesmo vencida, para eles é a primeira mulher entre todas as mulheres Diário<br />
do Povo, jornal de Campinas, de 29-11-1970, p. 26).<br />
Houve, sem dúvida, quem depusesse a favor de Margot. Uma das testemunhas<br />
ouvidas no inquérito declarou que ela tinha comportamento discreto e era mulher<br />
“honesta”, jamais permitindo a aproximação de outros homens. Atribuiu ao marido um<br />
ciúme doentio e esclareceu que o Professor Gentilhomme havia dormido na residência de<br />
49
Margot porque se embebedou em uma festa que lá houve e acabou dormindo em um dos<br />
cômodos. No entanto, Margot teria ficado com os outros convidados e não com o<br />
professor.<br />
Outras testemunhas também confirmaram os ciúmes doentios de Gallo. Alcides<br />
Celso Villaça, ex-aluno de Margot, compareceu espontaneamente à Delegacia de Polícia<br />
para dizer que, por muito tempo, havia sido amigo da professora, a quem muito admirava, e<br />
que ela nunca tivera nenhuma aproximação sexual com ele, tampouco insinuara nada a<br />
este respeito. Garantiu que Margot era fiel ao marido. Disse, ainda, que a professora<br />
lhe contara, certa vez, ter certeza de que seu marido tinha amantes. Alcides disse que<br />
as suspeitas de Margot foram posteriormente confirmadas, pois uma ex-namorada sua<br />
havia sido procurada por Gallo e insistentemente convidada para sair com ele, a fim de que<br />
tivessem um relacionamento íntimo. A moça recusou.<br />
O jornal Diário do Povo publicou, em 13-12-1970, um poema assinado por Isabel de<br />
Castro Silveira, intitulado Presença de Margot.<br />
agora<br />
todas as culpas,<br />
agora<br />
todas as desculpas para a tua ausência<br />
sem minuto de silêncio<br />
sem sinos, sem signos de dor oficializada.<br />
à sombra de tua morte somam-se<br />
estórias que te acertem<br />
tens de ser, por ora,<br />
o que julgam que tu foste.<br />
amiga,<br />
trabalham no cômputo geral dos teus atos<br />
e pronto te devoram.<br />
ah esses ritos<br />
conspiram eleger-te a ré da própria morte.<br />
era audácia demais o teu espírito<br />
à força vital de indagar<br />
o mundo, as coisas, o estabelecido<br />
ele propõe, na própria morte do teu corpo<br />
investigar-se as estreitas verdades dos que ficam.<br />
50
tua coragem ainda fala<br />
nos ouvidos aguçados das salas de aula<br />
adolescendo procuras.<br />
Pessoas da área da cultura gostavam muito de Margot. Ela havia sido fiscal de<br />
conservatórios musicais e, quando morreu, era Delegada de Cultura Regional.<br />
A mãe de Margot constituiu o advogado Leonardo Frankenthal para acompanhar<br />
o inquérito policial e, depois, o processo-crime, como assistente de acusação. Gallo<br />
contratou, para defendê-lo, os advogados Álvaro Cury, Valdir Troncoso Peres e Nilton Silva<br />
Júnior.<br />
Travou-se uma discussão jurídica sobre se o procurador de justiça seria julgado pelo<br />
Tribunal de Justiça de São Paulo, como dispunha a Constituição Estadual, ou se seria<br />
julgado pelo Tribunal do Júri, que era competente para apreciar os crimes dolosos<br />
contra a vida, nos termos da Constituição Federal e do Código de Processo Penal. A<br />
Constituição Federal da época não estabelecia a competência originária do Tribunal de<br />
Justiça para os procuradores de justiça, apenas para o Procurador-Geral da República, o<br />
chefe do Ministério Público Federal. No final, com base em parecer do jurista José<br />
Frederico Marques, ficou decidido que Gallo seria julgado pelo Júri, como ele queria.<br />
O Júri Popular, por decidir de forma mais emocional do que técnica, poderia<br />
perdoar Gallo, coisa que os desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo<br />
dificilmente fariam. De fato, Gallo foi absolvido. Foi julgado em Campinas por duas<br />
vezes e, por duas vezes, os jurados “compreenderam” seu ato. Por 7 votos a 0 na<br />
primeira vez e por 4 votos a 3 na segunda vez.<br />
De nada adiantou o esforço do Ministério Público para condenar o procurador.<br />
Os padrões morais da época, extremamente machistas, prevaleceram. A acusação seguiu a<br />
linha do homicídio qualificado, indesculpável. Disse o Promotor de Justiça Alcides Amaral<br />
Salles, por ocasião de recurso da pronúncia, citando Nelson Hungria: “O marido que<br />
surpreende a mulher e o tertius em flagrante e, em desvario de cólera, elimina a vida<br />
de uma ou de outro, ou de ambos, pode invocar a violenta emoção, mas aquele que,<br />
por simples ciúme ou meras suspeitas, repete o gesto bárbaro e estúpido de Othelo terá<br />
de sofrer a pena inteira dos homicidas vulgares”. Não foi o que aconteceu. Gallo<br />
preparou muito bem o processo e interferiu constantemente no trabalho de seus<br />
advogados, que, por sua vez, eram muito bons. Juntou pilhas de documentos, fotografias,<br />
cartas, bilhetes, matérias de imprensa. O processo alcançou onze volumes, além dos vários<br />
apensos.<br />
51
O primeiro julgamento pelo Júri foi anulado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo,<br />
em virtude de a decisão proferida ter contrariado a prova dos autos. Gallo fora<br />
absolvido por legítima defesa da honra. Os jurados consideraram que ele agiu<br />
“moderadamente”, sem nenhum excesso em sua conduta, ao matar a esposa. Ficou livre<br />
de qualquer penalidade.<br />
Inconformado, o Ministério Público recorreu da decisão, alegando que “a honra<br />
é bem personalíssimo e não pode ser afetada por conduta de outrem. Desonrada é a<br />
prevaricadora. É absurdo querer que o homem arque com as consequências de sua falta. Não<br />
há desonra para o marido na conduta da esposa e do amante que com ela convive. A honra<br />
está em cada um de nós e não em outra pessoa”. A defesa de Gallo rebateu dizendo que<br />
Margot havia tido “toda uma vida de rameira, sob a aparência de respeito e recato,<br />
estigmatizando seu comportamento, que era um escárnio à sociedade, à família, aos filhos, ao<br />
marido”.<br />
O Tribunal de Justiça de São Paulo deu razão à acusação e anulou a absolvição de<br />
Gallo, determinando que ele fosse submetido a novo julgamento. Ainda, o Ministério<br />
Público pediu o desaforamento, isto é, queria que Gallo fosse julgado em outra comarca,<br />
por não [pg. 60] confiar na isenção dos jurados de Campinas, já por demais envolvidos<br />
na tragédia que tinha como centro um homem que fora promotor respeitado na cidade<br />
durante muitos anos.<br />
Pouco tempo depois do julgamento de Gallo um outro homem, de nome Moacyr, que<br />
havia matado a mulher a golpes de faca, fora condenado a seis anos de reclusão. O fato foi<br />
noticiado pelo jornal O Liberal, da cidade de Americana, de 24-6- 1975; na reportagem,<br />
dizia-se que Gallo fora absolvido, mas Moacyr estava condenado por ser “operário e<br />
preto”.<br />
O segundo julgamento, porém, não foi desaforado e o procurador foi novamente<br />
julgado em Campinas. No segundo Júri, o promotor e os advogados eram os mesmos do<br />
julgamento anterior e defenderam a mesmas teses. O acusador João Batista Santana e o<br />
advogado assistente da acusação, Leonardo Frankenthal, disseram que Eduardo Gallo<br />
sabia dos casos da sua mulher e matou-a por vingança. “Enquanto Santana dizia que, ao<br />
invés de tomar as providências que a lei lhe facultava, o réu preferiu fazer justiça com as<br />
próprias mãos, Frankenthal perguntava: ‘Será que o argumento de Maitê, altamente<br />
impressionante, vai eliminar onze facadas de surpresa?’ (Jornal da Tarde, 24-12-1975). Maitê<br />
Proença Gallo, que, posteriormente, tornou-se atriz de rara beleza e de enorme sucesso, foi<br />
testemunha de defesa, ouvida em plenário do Júri. Sua narrativa corroborou a versão do pai<br />
52
e pesou muito na decisão absolutória dos jurados. Ela contou, em seu depoimento, que<br />
“viu o professor (Ives Gentilhomme) dormindo no sofá-cama utilizado pela mãe, na manhã<br />
seguinte à realização de uma festa em sua casa, em outubro de 1970”. Maitê disse a verdade<br />
sobre o que sabia; cumpriu seu dever. Isso não significou que ela quisesse ajudar o pai<br />
por reprovar a conduta da mãe. O que se passou em sua alma adolescente somente ela<br />
sabe. Valdir Troncoso Peres, atuando na defesa de Gallo, alegou que o marido sempre<br />
tivera dúvidas se era ou não traído pela mulher, apenas confirmando o fato no dia do<br />
crime.<br />
O outro defensor do réu, Nilton Silva Júnior, afirmou que Margot despertava<br />
sadicamente o ciúme do marido, alternando amor com traição. No final, Gallo foi<br />
definitivamente absolvido por legítima defesa da honra, o que provocou reações de<br />
indignação de grupos feministas. No entanto, depois de julgado por duas vezes, não<br />
mais caberia recurso pelo mérito, isto é, por ter a decisão dos jurados contrariado<br />
manifestamente a prova dos autos. A absolvição transitou em julgado.<br />
Estando quite com a Justiça, Gallo recomeçou sua vida e casou-se novamente. Em<br />
julho de 1989, dezenove anos após o crime, o então procurador de justiça aposentado,<br />
acometido de câncer generalizado e em estado terminal, matou-se com dois tiros no<br />
coração. Ele já havia tentado suicídio antes, mas a família conseguira evitar a<br />
consumação do ato. Desta vez, Gallo agiu rapidamente. Enganando os parentes e<br />
dizendo que teria de descer à portaria do prédio em que morava, no Condomínio<br />
Bosque de Notredame, em Sousas, na cidade da Campinas, ele conseguiu se libertar da<br />
vigilância da esposa Sônia e demais familiares e foi conversar com o porteiro.<br />
Valendo-se da autoridade que sempre exerceu no condomínio, em razão do cargo de<br />
procurador de justiça e do fato de ter sido síndico, o que lhe dera ascendência sobre o<br />
porteiro José do Livramento Sousa, Gallo conseguiu convencer o funcionário a<br />
entregar-lhe um revólver que sabia estar guardado no local. Não tendo outra saída,<br />
José Sousa entregou a arma, como determinado, mas tirou-lhe a munição. O procurador,<br />
porém, atracando-se com ele, tomou quatro balas de suas mãos, colocou-as na arma e<br />
disparou dois tiros contra si mesmo, imediatamente. Morreu na hora. Foi cremado em 20 de<br />
julho de 1989, em cerimônia simples, à qual compareceram cerca de 50 pessoas,<br />
incluindo sua filha, Maitê Proença.<br />
53
Doca Street e Ângela Diniz<br />
ANEXO 2<br />
Praia dos Ossos, Búzios, litoral do Rio de Janeiro. Casa de veraneio da bela Pantera da<br />
sociedade mineira, Ângela Diniz. Nesse local, às 20 horas do dia 30 de dezembro de<br />
1976, depois de uma discussão feroz, a moça foi assassinada com três tiros no rosto e um<br />
na nuca, por seu companheiro, com quem morava há quatro meses, o paulista Raul<br />
Fernandes do Amaral Street, conhecido por Doca Street. Logo após o crime, o autor dos<br />
disparos fugiu no seu Maverick bege, deixando a arma ao lado do corpo.<br />
Aquele dia havia sido especialmente agitado para o casal. Ângela e Doca foram<br />
vistos, por amigos, discutindo na praia. Doca estava enciumado da companheira e tinha<br />
reações agressivas. Seu temperamento era forte, possessivo, arrogante.<br />
A tarde, Ângela havia tomado alguns copos de vodca. Supõe-se que Doca também<br />
tivesse bebido. Não se confirmou o consumo de drogas, embora se soubesse que eles eram<br />
usuários. A noite, discutiram novamente e ela expulsou Doca de sua residência. Afinal, a<br />
casa era dela, que também pagava as contas do casal.<br />
Doca estava fora de si. Meses antes, havia se separado da mulher, Adelita Scarpa,<br />
perdendo toda a mordomia que tinha por ser casado com mulher rica e de família tradicional,<br />
para viver seu romance com Ângela. Antes de casar-se com Adelita, falava-se que ele havia<br />
sido acompanhante de americanas solteiras em Miami, além de ter trabalhado lá como<br />
salva-vidas.<br />
Ao ser expulso da casa da praia, naquela noite fatídica, Doca, no princípio,<br />
resignou-se. A empregada ouviu-o dizer a frase “Você não deveria ter feito isso comigo”.<br />
Saiu de casa. Entrou em seu Maverick e andou alguns quilômetros. Pouco depois,<br />
raciocinou melhor e resolveu voltar. Não iria embora assim, facilmente. Havia deixado o<br />
palacete nos jardins, em São Paulo, e a boa mesada da família Scarpa para ir viver com<br />
Ângela.<br />
Agora, as coisas não poderiam ficar por isso mesmo. Ao entrar novamente na casa,<br />
surpreendeu Ângela, de biquíni e uma blusa por cima, descansando em um banco.<br />
Descarregou nela sua arma. Três tiros acertaram o alvo: seu belo rosto. Com a vítima caída,<br />
mais um tiro na nuca. Ângela ficou transfigurada.<br />
Conhecida no Rio como a “Pantera de Minas”, a moça tivera uma vida agitada e cheia<br />
de incidentes. Em 1973, ela foi acusada de ter assassinado o vigia de sua residência, José<br />
54
Avelino dos Santos, conhecido como Zé Preto, encontrado morto na mansão em que<br />
morava na Vila Gutierrez, em Belo Horizonte. No entanto, logo após ela ter admitido a prática<br />
do crime, seu companheiro na época, o milionário Artur Vale Mendes, mais conhecido por<br />
Tuca Mendes, assumiu o assassinato, alegando legítima defesa. Foi julgado e absolvido.<br />
Separou-se de Ângela. Correram rumores de que Tuca Mendes matara o vigia por tê-lo<br />
surpreendido saindo do quarto da mulher.<br />
Ângela passou a residir no Rio de Janeiro e teve um romance com o colunista<br />
Ibrahim Sued. Na ocasião, estava desquitada do arquiteto Milton Vilas Boas e havia<br />
perdido a guarda dos três filhos, mas levou-os ilegalmente para o Rio, subtraindo-os da<br />
casa dos avós paternos em Belo Horizonte, em um dia de visita. Foi acusada de<br />
seqüestro e chegou a ser condenada a seis anos de prisão. Recorreu e aguardava o<br />
julgamento.<br />
Em setembro de 1975, Ângela envolveu-se em novo escândalo. Foi presa pela<br />
polícia carioca acusada de esconder, em seu apartamento, caixas de psicotrópicos e mais de<br />
cem gramas de maconha. Na ocasião, ela admitiu ser viciada em drogas desde o episódio da<br />
morte do vigia de sua residência. Raul e Ângela se conheceram em agosto de 1976,<br />
durante um jantar em São Paulo.<br />
Um mês depois, Doca deixava a família para ir morar com a Pantera em uma casa<br />
que ela havia comprado em Búzios. Foram quatro meses de convivência, findos os quais ela<br />
estava morta.<br />
A empregada do casal em Búzios, Maria José de Oliveira, informou à Polícia<br />
ter presenciado várias brigas do casal. “Doca explorava a vítima”, disse ela, “obrigando-a<br />
a assinar cheques que utilizava na compra de roupas caras”. Ele vivia exclusivamente à custa<br />
da companheira e entrou em pânico quando percebeu que iria perdê-la. Maria José ainda<br />
disse que ele mantinha a amante em regime de reclusão doméstica, impedindo-a de se<br />
comunicar com os amigos. Tinha temperamento violento.<br />
Ao dar sua versão do assassinato, Doca alegou estar enciumado de Ângela em<br />
virtude de uma mulher que ela tentara seduzir, a alemã Gabrielle Dayer. Alguns meses após o<br />
homicídio de Ângela, Gabrielle foi dada como morta, em Cabo Frio. Prevaleceu a<br />
versão de que ela caíra de umas pedras, ao tentar atravessar o espaço de oito metros<br />
entre as praias dos Amores e Serradurinha. Seu corpo não foi encontrado. A alemã<br />
exercia atividade artesanal no litoral, fabricando bolsas que se transformavam em jogos<br />
de gamão. No entanto, corriam rumores de que ela consumia e traficava drogas, e seu<br />
desaparecimento não foi suficientemente esclarecido.<br />
55
O processo contra Doca ficou sem uma de suas testemunhas. Doca fugiu<br />
imediatamente após o crime e ficou escondido em um sítio, no Estado de Minas Gerais,<br />
próximo a Poços de Caldas. Sua mãe, Cecília Street, que vivia maritalmente com Luiz<br />
da Cunha Bueno, contratou, através do marido, o advogado Paulo José da Costa Jr. para<br />
defender o filho.<br />
A primeira providência de Costa Jr.1, conforme ele mesmo narra em seu livro,<br />
foi procurar realizar uma perícia médico-psiquiátrica em Doca, para justificar a tese<br />
defensória que pretendia usar, de violenta emoção, logo após injusta provocação da vítima.<br />
Trouxeram Doca para São Paulo e ele ficou escondido em uma casa no bairro do<br />
Morumbi, para onde seu advogado encaminhou uma dupla de peritos, composta pelos<br />
professores Odon Ramos Maranhão e Armando Rodrigues, ambos da Universidade de São<br />
Paulo. Quando os médicos chegaram à residência em que Doca se encontrava escondido,<br />
surpreenderam-no assediando a empregada da casa (Vida minha, São Paulo, Jurídica<br />
Brasileira, 2000, p. 172). Após longa entrevista, os peritos chegaram à conclusão de que<br />
Doca não se achava conturbado ou traumatizado pela morte de Ângela Diniz. Ao contrário<br />
mostrava-se “indiferente, analgésico”.<br />
Doca não convenceu os médicos e não foi possível confirmar um estado<br />
emocional que justificasse a agressão por ele perpetrada. Não houve laudo (Vida minha, cit.,<br />
p. 172. 66).<br />
A defesa, então, passou a esmiuçar a vida da vítima, no intuito de encontrar<br />
justificativas para a conduta de Doca. Descobriu que o casamento de Ângela Diniz com<br />
um membro da família Mendes Júnior, titular da grande construtora do mesmo nome, foi<br />
celebrado em uma igreja protestante e os convidados se comportaram de forma tão<br />
conturbada que o sacerdote teve de chamar a atenção dos presentes, dizendo-lhes que não<br />
se tratava de uma festa mundana, mas de um sacramento. Costa Jr. obteve uma declaração<br />
assinada de um dos presentes com esta informação e juntou-a ao processo, para retratar a<br />
personalidade de Ângela.<br />
Procurando, ainda, comprometer a imagem da falecida, o defensor Costa Jr.<br />
passou a investigar, pessoalmente, a morte do vigia da sua casa em Belo Horizonte.<br />
Descobriu que havia suspeita de que a moça mantivera relações sexuais com o rapaz e que ele<br />
fora morto nas proximidades do quarto dela.<br />
Realizada perícia técnica pela polícia mineira, comprovou-se a existência de<br />
esperma no lençol da cama de Ângela. Foi essa a causa da separação do casal. O ex-<br />
marido, Mendes Jr., assumiu a autoria e foi processado pela morte do vigia. No entanto,<br />
56
como o processo de Doca corria no Estado do Rio de Janeiro, foi preciso encontrar<br />
um advogado carioca, disposto a atuar no caso. Surgiu, então, Evandro Lins e Silva,<br />
grande causídico, que havia sido Procurador-Geral da República, chefe da Casa Civil do<br />
presidente Jango Goulart e Ministro do Supremo Tribunal Federal. Ele usou o caso<br />
Doca Street para retornar, triunfante, à advocacia. Costa Jr. relata ter ido à casa de<br />
Evandro, no Rio, para acertar os detalhes da defesa de Doca. Combinaram que o cliente<br />
seria apresentado à imprensa e não à Polícia. Escolheram o redator de uma revista (Salomão<br />
Schwartzman, da Manchete) e o jornalista de uma TV (Odilon Coutinho, da Globo) para<br />
registrar o reaparecimento do réu. Os jornalistas encontraram Doca embriagado, com três<br />
prostitutas a seu lado. Ele havia sido instruído por seu advogado Costa Jr. a dar uma versão<br />
passional para o crime que cometeu, usando a tal alemã Gabrielle como pivô. Ângela<br />
teria se apaixonado pela estrangeira e queria ter relações com ela. Haviam ido para a cama os<br />
três, ela, Doca e Gabrielle, até que o amante se recusou a continuar o menage à trois. Por isso,<br />
se desentenderam.<br />
Doca aprendeu a lição e passou a repeti-la em todas as oportunidades. Nas<br />
palavras do advogado Paulo José da Costa Jr.: “Como se vê, toda a arquitetura foi minha”<br />
(Vida minha, cit., p. 178). Doca foi preso pela Polícia do Rio de Janeiro. Seus<br />
advogados impetraram habeas corpus, sem sucesso. Costa Jr. teve de viajar para o<br />
exterior, para atender um cliente italiano, e a mãe de Doca, não aceitando a ausência<br />
do advogado do filho, embora sua presença não fosse imprescindível naquele momento,<br />
resolveu entregar o caso exclusivamente a Evandro Lins e Silva. Narra Costa Jr. que foi<br />
celebrado, então, um contrato no valor de 300 mil dólares de honorários entre Evandro e a<br />
mãe de Doca. E ele ficou de fora... Street foi defendido por Evandro em seu primeiro<br />
julgamento e acabou sendo condenado a uma pena diminuta, dois anos de reclusão com<br />
sursis (suspensão condicional da pena). Isto é, o condenado não precisaria recolher-se à<br />
prisão. Era praticamente a absolvição. Evandro Lins e Silva usou a tese da legítima defesa da<br />
honra, com excesso culposo, e conseguiu os pífios dois anos. Foi um sucesso total para a<br />
defesa. Nas próprias palavras de Evandro, “Foi um júri sensacional. O julgamento<br />
permitiu que eu aparecesse como o advogado que era antes. E enfrentando a<br />
impopularidade, enfrentando os movimentos feministas, que, na época, tinham uma força<br />
muito grande e eram muito atuantes. Mas eles não tinham razão, porque evidentemente eu<br />
não estava defendendo nada contra as mulheres... Era um episódio individual, de um casal<br />
que se desajustou e que chegou até a desgraça de um crime” (O salão dos passos<br />
perdidos, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997, p. 426). Interrogado em plenário, Doca se<br />
57
manteve em silêncio e não respondeu às perguntas a ele formuladas. Horas antes do<br />
julgamento, porém, em entrevista à imprensa, ele havia declarado: “Essas são as piores horas<br />
de minha vida. Vejo de volta a tensão, o retomo dos fatos horríveis de 30 de dezembro de<br />
1976 e tudo o que transformou minha mente em uma tela indescritível, onde se vê um filme<br />
horrível. Sinto pena de meu pai, da mãe de Ângela, dos meus filhos, dos filhos dela. Mas,<br />
sobretudo, gostaria que o tempo voltasse e que a mulher que de fato amei entendesse toda a<br />
força do meu amor. Porque, no fundo, matei por amor” (Jornal da Tarde, 18-10-1979).<br />
O advogado Heleno Fragoso havia sido contratado pelo Jornal do Brasil para<br />
escrever um comentário a respeito do primeiro julgamento e, por essa razão,<br />
acompanhou de perto a atuação da defesa e da acusação. Deu entrevistas para a imprensa no<br />
local do Júri. Declarou, então, a jornalistas: “O que está acontecendo em Cabo Frio é<br />
uma demonstração da desigualdade de nosso sistema judiciário, que é seletivo, opressivo<br />
e substancialmente injusto. Há todo um clima de festividade, um circo armado e<br />
programado para mostrar algo que merece ser condenado. Toda uma promoção que não<br />
atinge a milhares de crimes iguais. A defesa é facilitada pela vida pregressa da vítima, mas,<br />
por outro lado, a prova técnica é muito forte, sempre favorável à acusação. Além do<br />
mais, não aceito esse tipo de alegação sobre violenta emoção. Isto é coisa do passado,<br />
argumento muito aceitável na década de 30” (Jornal da Tarde, cit.)<br />
A mãe de Ângela Diniz, Maria de Espírito Santo, teve um colapso nervoso ao chegar a<br />
Cabo Frio e não pôde assistir a esse primeiro julgamento, permanecendo internada em uma<br />
casa de saúde.<br />
O promotor de justiça era Sebastião Fador e o assistente de acusação Evaristo de<br />
Morais Filho, que não se conformaram com o resultado do Júri.<br />
Os movimentos feministas fizeram grandes protestos, a acusação recorreu e Doca<br />
foi novamente levado a julgamento, dois anos depois, em novembro de 1981. Outro<br />
advogado o defendeu desta vez, Humberto Telles.<br />
O promotor foi o mesmo, Sebastião Fador. Desta segunda e última vez, Doca foi<br />
condenado, por homicídio qualificado, a quinze anos de reclusão. O Júri entendeu, por 5 votos<br />
a 2, que ele não agiu em legítima defesa de direito algum, muito menos de sua honra<br />
ferida. Conforme registrado pela revista Veja de 11-11-1981, depois da absolvição de Doca<br />
Street em seu primeiro julgamento, “a organização feminista SOS Mulher catalogou 722<br />
crimes impunes de homens contra mulheres por questões de ciúme. Com a sentença de<br />
sexta-feira — a mais longa já proferida em um tribunal de júri, idêntica à que condenou,<br />
em 1954, o tenente da aeronáutica Alberto Jorge Franco Bandeira pelo famoso crime do<br />
58
Sacopã — Doca Street já tem garantidos pelo menos 7 anos de pena. Quando for<br />
libertado, terá 54 anos. Mas o que tiveram esses crimes, de repente tornados mais comuns<br />
ou mais notórios em todo o país, com a condenação da semana passada era claro antes<br />
mesmo do julgamento. Há dois anos, Doca foi aplaudido quando chegou ao tribunal.<br />
Quinta-feira passada, à 1 hora da tarde, quando seu Passat parou junto às portas dos<br />
fundos do fórum, vaiaram-no. Já não havia um só dos cartazes que, da outra vez, nas mãos<br />
de grupos barulhentos, o saudavam: ‘Doca, Cabo Frio está com você’. Em seu lugar,<br />
estavam as faixas dos piquetes das feministas com a frase que virou o slogan das<br />
campanhas contra a violência infligida a mulheres: ‘Quem ama não mata’ e.f.”.<br />
A condenação de Doca foi um verdadeiro marco na história da luta das mulheres.<br />
Segundo Heleno Fragoso, que desta vez atuou como assistente de acusação e não mais<br />
como comentarista que fora no primeiro julgamento, a mudança no ambiente, que de<br />
favorável a Doca passou a ser bastante desfavorável, deveu-se à imprensa e aos movimentos<br />
feministas. Havia, finalmente, mudado a benevolência da sociedade brasileira para com os<br />
“crimes de honra”.<br />
Por irônico que possa parecer, Doca angariou toda a antipatia do público<br />
justamente durante os dois anos que antecederam ao segundo julgamento, nos quais, pela<br />
primeira vez, ele foi um cidadão com emprego, salário, hábitos responsáveis e um certo<br />
cuidado com a própria imagem. Nessa fase, como registrado pela revista Veja, ele se<br />
aposentou da vida noturna depois de uma única aparição no restaurante Gigetto, reduto da<br />
boêmia paulistana, quando fez parar a conversa em todas as mesas. Renunciou ao<br />
título do Clube Harmonia, para não constranger os sócios. Arranjou emprego na<br />
agência de automóveis Marcas Famosas, onde deu expediente pela primeira vez na vida.<br />
Ganhou, como vendedor, um prêmio de eficiência da Volkswagen, juntou dinheiro para ajudar<br />
a mãe com as custas do processo e passou a morar com ela. Havia mudado<br />
completamente. Mesmo assim, foi condenado. Saiu da sala do tribunal sob um coro de<br />
“cadeia, cadeia”. Doca cumpriu sua pena e saiu da prisão. Foi trabalhar em agência de<br />
automóveis em São Paulo e não mais tornou a delinquir. (A história de Raul Street e<br />
Ângela Diniz está baseada nos arquivos dos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da<br />
Tarde, nos arquivos da revista Veja, nos livros Vida minha, de Paulo José da Costa Jr., e O<br />
salão dos passos perdidos, de Evandro Lins e Silva).<br />
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