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Filomena Marturano Eduardo de, Filippo - Universidade Federal de ...

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[ TT00008 ]<br />

<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

"Texto pertencente ao acervo <strong>de</strong> peças teatrais da biblioteca da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Uberlândia<br />

(UFU), digitalizado para fins <strong>de</strong> preservação por meio do projeto Biblioteca Digital <strong>de</strong> Peças Teatrais<br />

(BDteatro). Este projeto é financiado pela FAPEMIG (Convênio EDT-1870/02) e pela UFU. Para a<br />

montagem cênica, é necessário a autorização dos autores, através da Socieda<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong><br />

Autores Teatrais - SBAT"


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

PERSONAGENS:<br />

DOMINGOS SORIANO<br />

ALREDO AMOROSO<br />

UMBERTO.<br />

RICARDO<br />

MIGUEL<br />

UM GARÇON<br />

FILOMENA MARTURANO<br />

ROSÁLIA SOLIMENTE<br />

DIANA<br />

LÚCIA (criada)<br />

TERESINHA ( costureira)<br />

Ação: Nápoles.<br />

Época: ATUALIDADE.<br />

Esta comédia, escrita em dialeto napolitano - FILUMENA MARTURANO - foi representada<br />

pela primeira vez, no original , em Nápoles, a 7 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1946, tendo como<br />

intérpretes, nos principais papéis, Titina <strong>de</strong> <strong>Filippo</strong> e o próprio autor De <strong>Filippo</strong>.<br />

Na tradução <strong>de</strong> Mário da Silva e Renato Alvim, foi ela representada, pela primeira vez , no<br />

Teatro Glória, do Rio <strong>de</strong> Janeiro, a 18 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1949, tendo como intérpretes, nos<br />

principais papéis , Heloísa Helena e Jayme Costa. Deve-se a êste último, diretor da<br />

companhia, o título <strong>de</strong> "<strong>Filomena</strong>, qual é o meu?", que a obra recebeu na primeira<br />

apresentação em nossa língua.<br />

Nota - Por ocasião das representações no Teatro Glória, do Rio <strong>de</strong> Janeiro, pela companhia<br />

Jayme Costa, foram suprimidas as personagens do II GARÇON e <strong>de</strong> TERESINHA. E foram ,<br />

<strong>de</strong> conseqüência , cortadas as falas do I GARÇON dirigidas ao II GARÇON, no I ato , bem<br />

como o inteiro diálogo entre FILOMENA e TERESINHA, no III ato foi, ainda , suprimida a<br />

passagem <strong>de</strong> tempo.<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 2


Em casa <strong>de</strong> Domingos Soriano.<br />

PRIMEIRO ATO<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Espaçosa sala <strong>de</strong> jantar em estilo mo<strong>de</strong>rnista, mobiliada suntosamente, mas com gosto não<br />

muito apurado. Alguns quadros e bibelôs, que lembram o gôsto "fim <strong>de</strong> siécle" e que ,<br />

evi<strong>de</strong>ntemente, <strong>de</strong>coraram outrora a casa do pai <strong>de</strong> Domingos, estão cuidadosamente<br />

colocados nas pare<strong>de</strong>s e sôbre os móveis, em violento choque com tudo o mais. Uma porta E.<br />

B. dá para o quarto <strong>de</strong> dormir. Sempre a E. , na altura do segundo rompimento uma gran<strong>de</strong><br />

porta envidraçada corta a peça, <strong>de</strong>ixando ver uma varanda com flores, coberta por um toldo <strong>de</strong><br />

lona <strong>de</strong> riscas multicôres. No F. à D. a porta <strong>de</strong> entrada. À D., a peça penetra profundamente<br />

nos bastidores e <strong>de</strong>ixa entrever, através <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> vão e <strong>de</strong> uma cortina <strong>de</strong> seda, aberta<br />

pela meta<strong>de</strong>, o "escritório" do dono da casa. Também na <strong>de</strong>coração do "escritório" ,<br />

Domingos Soriano preferiu o estilo mo<strong>de</strong>rnista. Do mesmo estilo é, também, uma vitrine<br />

contendo numerosas taças <strong>de</strong> diferentes formas e dimensões: primeiros prédios conquistados<br />

pelos seus cavalos <strong>de</strong> corridas. Duas ban<strong>de</strong>irinhas dispostas em cruz, na pare<strong>de</strong> fronteira, atrás<br />

<strong>de</strong> uma escrivaninha, também testemunham as vitórias obtidas pro seus parelheiros. Não há<br />

um só livro, um jornal , um papel. Esse recanto, que somente Domingos Soriano tem a<br />

coragem <strong>de</strong> chamar <strong>de</strong> "escritório", é bonito e muito arrumando, mas sem vida. Na sala <strong>de</strong><br />

jantar, a mesa está posta para duas pessoas, com bom gosto e, até com certo requinte; não<br />

falta nem um centro <strong>de</strong> mesa, com rosas fresquissimas. Primavera adiantada, quase verão .<br />

Entar<strong>de</strong>cer. As <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iras luzes do dia morrem na varanda.<br />

Em pé, quase no limitar da porta do quarto <strong>de</strong> dormir, com os braços cruzados, em atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>safio, está <strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong>. Traja uma alva e comprida camisa <strong>de</strong> dormir. Cabelos em<br />

<strong>de</strong>salinho. Pés sem meias, calçando chinelas. Os traços do seu rosto são atormentados, indício<br />

<strong>de</strong> um passado <strong>de</strong> lutas e <strong>de</strong> tristezas. O seu aspecto não é grosseiro , mas não consegue<br />

ocultar sua origem plebéia, nem ela, tampouco, o <strong>de</strong>sejaria. Seus gestos são largos e abertos, o<br />

tom da voz é sempre franco e <strong>de</strong>cidido, <strong>de</strong> mulher que sabe o que quer, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> inteligência<br />

instintiva e <strong>de</strong> muita força moral, <strong>de</strong> mulher que, a seu modo, conhece as Leis da vida e, a seu<br />

modo, as enfrenta. Tem somente quarenta e oito anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>nunciados por alguns fios<br />

<strong>de</strong> cabelos prateados nas fontes, mas não pelos olhos, que conservam ainda a vivacida<strong>de</strong><br />

juvenil e o fogo dos napolitanos. Esta pálida, cadavérica, um pouco por causa da simulação da<br />

qual se tornou protagonisata, isto é, <strong>de</strong> se fazer julgar perto do fim, um pouco pela "trovoada"<br />

que , agora, terá <strong>de</strong> enfrentar. Porém, ela não tem medo. Pelo contrário, está na atitu<strong>de</strong> do<br />

tigre ferido, pronta para dar o bote em cima do adversário.<br />

No canto oposto, e exatamente á D. B. Domingos Soriano enfrenta a mulher com a vonta<strong>de</strong><br />

resoluta <strong>de</strong> quem não conhece limites nem obstáculos para fazer triunfar as mil razões que<br />

julga ter, para acabar com a infâmia <strong>de</strong> que foi vítima e por a nu, diante do mundo, a baixeza<br />

com que foi possível enganá-lo. Sente-se ofendido e ultrajado. Além disso, o fato <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />

parecer um vencido aos olhos dos <strong>de</strong>mais , <strong>de</strong>ixa-o fulo <strong>de</strong> raiva, fora <strong>de</strong> si. É um homem<br />

robusto, sadio, beirando pelos cinqüenta anos . Cinqüenta anos bem vividos. O conforto <strong>de</strong><br />

que sempre gozou e a fortuna <strong>de</strong> que dispõe, mantiveram-lhe o espírito vivo e o aspecto<br />

juvenil. Para seu falecido pai, Raimundo Soriano, um <strong>de</strong>ntre os mais ricos e espertos<br />

fabricantes <strong>de</strong> doces <strong>de</strong> Nápoles, ele era a menina dos olhos. Os caprichos <strong>de</strong> Domingos ( Na<br />

mocida<strong>de</strong> conheciam-no com "Dom Mimi"), não conheciam limites, quer pela extravagância,<br />

quer pela originalida<strong>de</strong>. Ainda se fala dêles , em Nápoles . Apaixonado pelos cavalos <strong>de</strong><br />

corridas, êle é capaz <strong>de</strong> passar dias inteiros evocando com os amigos suas proezas<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 3


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

intrafísticas, os feitos dos mais importantes puro sangues dos seus haras. Agora, alí está ,<br />

trajando calça <strong>de</strong> casemira e paletó <strong>de</strong> pijama abotoando sumariamente, fora <strong>de</strong> si, diante <strong>de</strong><br />

<strong>Filomena</strong>, daquela mulherzinha insignificante, que durante muitos anos êle tratou como uma<br />

escrava e que agora lhe meteu um cabresto e o leva para on<strong>de</strong> quer.<br />

No outro canto, a E. da peça, quase perto da varanda, vê-se em pó, a figura humil<strong>de</strong> e bondosa<br />

da senhora Rosália Solimene. Tem setenta e cinco anos. A côr dos seus cabelos é incerta:<br />

mais para o branco do que para o grisalho. Traja um vestido escuro. Já um tanto curvada, mas<br />

ainda cheia <strong>de</strong> vitalida<strong>de</strong>. Morava num cortiço, diante daquele em que residia a família<br />

<strong>Marturano</strong>, cuja vida conhecia nos menores <strong>de</strong>talhes. Conhece, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a mais tenra ida<strong>de</strong>,<br />

<strong>Filomena</strong>. Esteve perto <strong>de</strong>la até nos momentos mais tristes da sua existência e nunca lhe<br />

poupou aquelas palavras <strong>de</strong> consôlo, <strong>de</strong> compreensão , <strong>de</strong> ternura, que somente as mulheres<br />

do nosso povinho sabem prodigalizar. Ela acompanha com ansieda<strong>de</strong> os movimentos <strong>de</strong><br />

Domingos, sem nunca perdê-lo <strong>de</strong> vista. Conhece, por dura experiência , a irascibilida<strong>de</strong><br />

dêsse homem, e por êsse motivo, apavorada, não pestaneja sequer, como se fôsse <strong>de</strong> pedra.<br />

No quarto canto da peça, vê-se outra personagem: Alfredo Amoroso. É um simpático homem,<br />

aí pelos sessenta anos, <strong>de</strong> compleição sólida, robusta. Os companheiros lhe tinham posto o<br />

apelido <strong>de</strong> "o cocheirinho". Era habilíssimo, com efeito, em guiar cavalos, e esta é razão pela<br />

qual Domingos o tomou ao seu serviço, outrora, e para quem êle atualmente exerce o ofício<br />

<strong>de</strong> besta <strong>de</strong> carga, <strong>de</strong> bodo expiatório, <strong>de</strong> alcoviteiro, <strong>de</strong> amigo. Êle resume todo o passado do<br />

seu patrão. Basta observar a maneira com que êle olha para Domingos, para se compreen<strong>de</strong>r<br />

até que ponto lhe permaneceu fiel e <strong>de</strong>votado. Traja um paletó cinzento, um pouco surrado,<br />

mas <strong>de</strong> corte perfeito, calça <strong>de</strong> outra côr e um boné posto na cabeça um pouco <strong>de</strong> viés.<br />

Ostenta, no meio do colete, uma corrente <strong>de</strong> ouro. Está em atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> expectativa. É , talvez, o<br />

mais sereno <strong>de</strong> todos os presentes. Conhece seu patrão. Quantas vezes já apanhou em lugar<br />

dêle!...<br />

Ao subir o pano, encontramos assim os quatro personagens, nesta posição <strong>de</strong> jogo dos quatro<br />

cantos.<br />

Dir-se-ia que estão alí para se divertir como crianças e no entanto, foi a vida que os atirou um<br />

contra o outro.<br />

Pausa <strong>de</strong>morada.<br />

DOMINGOS<br />

(No auge da exasperação, levando a mão à cabeça, como que para arrancar os cabelos) -<br />

Louco! Louco! Louco! Cem vezes! Mil vezes louco que eu fui!<br />

ALFREDO<br />

(intervindo, com um ligeiro gesto) - Mas que é que o senhor está fazendo?<br />

ROSÁLIA<br />

(acerca-se <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong> o põe-lhe sôbre os ombros um chalé , que terá ido buscar em cima <strong>de</strong><br />

uma ca<strong>de</strong>ira ao F.)<br />

DOMINGOS<br />

Que espécie <strong>de</strong> homem sou eu? Eu <strong>de</strong>via é ir por-me diante <strong>de</strong> um espelho e cuspir na minha<br />

cara até ficar com a bôca sêca! ( para <strong>Filomena</strong>, com um lampejo <strong>de</strong> ódio nos olhos) - Ao teu<br />

lado , <strong>de</strong>sperdicei a minha vida, atirei fora vinte cinco anos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> , <strong>de</strong> fôrça , <strong>de</strong><br />

inteligência, <strong>de</strong> mocida<strong>de</strong>! Que mais queres <strong>de</strong> mim? Que mais preten<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Dominges<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 4


Soriano? Exiges os restos <strong>de</strong>sta existência , da qual fizeste o que bem enten<strong>de</strong>ste? (berrando si<br />

mesmo, com <strong>de</strong>sprezo) - Enquanto eu me julgava uma espécie <strong>de</strong> divinda<strong>de</strong> na terra, todo<br />

mundo fazia <strong>de</strong> mim o que queria... ( açontando para todos, num gesto <strong>de</strong> acusação) - Tu...<br />

você... você ... o bêco inteiro, o bairro todo, a cida<strong>de</strong> , o mundo! Todos sempre me obrigaram<br />

a fazer o papel <strong>de</strong> idiota! (A idéia da peça que <strong>Filomena</strong> lhe pregou, volta-lhe <strong>de</strong> repente à<br />

mente e faz-lhe ferver o sangue) - Eu nem posso pensar nisso! Sim, era <strong>de</strong> esperar! Somente<br />

uma mulher como tu, podia chegar a êsse ponto! Não podias <strong>de</strong>smentir-te! Vinte e cinco anos<br />

<strong>de</strong> vida, não podiam mudar-te! Mas, não penses que ganhaste a partida! Não ! Ainda não<br />

ganhaste! Eu te mato, ouviste ? Mato a ti e a todos os que te ajudaram: o médico , o padre... (<br />

Apontando para Rosália, que estremece, e para Alfredo , que , ao contrário não se amofina;<br />

com ar <strong>de</strong> ameaça) -... e a êstes dois seres nojentos, que viveram à minha custa durante tantos<br />

anos... Mato a vocês todos! (Decidido)- O revólver! Dêem-me o revólver!<br />

ALFREDO<br />

Levei os dois para o armeiro lhes tirar a ferrugem, como o senhor disse.<br />

DOMINGOS<br />

Quantas coisas disse eu... e quantas me fizeram dizer à fôrça! Mas, agora, acabou-se,<br />

ouviram? Agora acor<strong>de</strong>i, compreendi tudo! ( Para <strong>Filomena</strong>) - Quanto a ti... Vai- te embora...<br />

e se não fores com as tuas próprias pernas, sairás daqui num caixão <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto! Não existe lei,<br />

não existe o diabo que possa dobrar Domingos Soriano! Denuncio a todos vocês por falso<br />

testemunho! Mando todos parar na ca<strong>de</strong>ia! Dinheiro é o que não me falta! Faço-te dançar na<br />

corda bamba, <strong>Filomena</strong>! Quando eu contar quem tu foste , <strong>Filomena</strong>, e <strong>de</strong> que espécie <strong>de</strong> casa<br />

eu te tirei , êles têem <strong>de</strong> me dar razão! Liquido-te, <strong>Filomena</strong>! Aniquilo-te <strong>de</strong> uma vez por<br />

todas!<br />

(pausa)<br />

FILOMENA<br />

(As ameaças dêles não lhe causaram a menor impressão . Sente-se perfeitamente segura <strong>de</strong> si)<br />

- Acabaste? Tens mais alguma coisa para dizer?<br />

DOMINGOS<br />

(De chofre) - Caia a boca ! Não fales! Não quero ouvir a tua voz!<br />

FILOMENA<br />

Quando eu tiver dito tudo aquilo que tenho aqui <strong>de</strong>ntro, (mostra o estômago) ouviste? -<br />

Prometo que nem mais para a tua cara olharei... nunca mais hás <strong>de</strong> ouvir a minha voz!<br />

DOMINGOS<br />

(com <strong>de</strong>sprêzo) - Mulher à toa! Mulher a toa, é o que foste e continua a ser!<br />

FILOMENA<br />

E é preciso dizê-lo assim, <strong>de</strong>sse geito, como se fosse alguma novida<strong>de</strong>? Não sabe todo<br />

mundo, quem eu fui e on<strong>de</strong> estava? Porém , lá on<strong>de</strong> eu estava, tu sabias ir, não é?... Tu e mais<br />

os outros! E sempre te tratei igualzinho aos outros! Porque haveria <strong>de</strong> tratar-te <strong>de</strong> modo<br />

diferente? Os homens não são todos iguais ? O que eu fiz, eu choro sozinha! É comigo, e com<br />

a minha consciência! Mas, agora, sou tua mulher... e daqui não saio nem a mão <strong>de</strong> Deus<br />

padre!<br />

DOMINGOS<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 5


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

Mulher? Mulher <strong>de</strong> quem? Estás doida <strong>Filomena</strong>? Com quem te casaste?<br />

FILOMENA<br />

(friamente) - Contigo!<br />

DOMINGOS<br />

Positivamente, enlouqueceste! Ah! A intrujice é mais que evi<strong>de</strong>nte! A doente! A doença<br />

grave, a agonia, foi tudo uma simulação! Tenho aí as testemunhas! ( Aponta para Alfredo e<br />

Rosália)<br />

ROSÁLIA<br />

(muito <strong>de</strong>pressa) - Eu não sei <strong>de</strong> nada! ( Não quer que a metam num caso tão complicado) -<br />

Eu sei somente que Dona <strong>Filomena</strong> foi para a cama, doente... Seu estado agravou-se e entrou<br />

em agonia ... Ela não me disse nada, e mais do que isso eu não sei!...<br />

DOMINGOS<br />

(para Alfredo) - Você também não sabe nada, não é? Também não sabia que a agonia era uma<br />

simulação?<br />

ALFREDO<br />

Oh! Dom Domingos! Pela amor <strong>de</strong> Deus! O Senhor bem sabe que Dona <strong>Filomena</strong> não me<br />

po<strong>de</strong> tragar! Logo a mim é que ela ia contar os seus planos?...<br />

ROSÁLIA<br />

(para Domingos) - E o padre?... Quem foi que mandou chamar o padre ? Não foi o senhor<br />

mesmo?<br />

DOMINGOS<br />

Sim... porque ela... (aponta para <strong>Filomena</strong>) queria vê-lo! Foi para contentá-la.<br />

FILOMENA<br />

Porque não <strong>de</strong>sejavas outra coisa senão ver-me morta! Não cabias em ti <strong>de</strong> contente,<br />

pensando que, finalmente , ias te ver livre <strong>de</strong> mim!<br />

DOMINGOS<br />

É isto mesmo! Até que enfim, acertaste! E quando o padre, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter falado contigo, se<br />

aproximou <strong>de</strong> mim, dizendo : "Case-se com ela "in extremis". Pobre mulher! É o seu único e<br />

<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sejo. Aperfeiçõe esta união com a com a benção do Senhor"... eu disse...<br />

FILOMENA<br />

(interrompendo) - Disseste com os teus botões: "Afinal, que é perco com isto? Está aí, está<br />

morrendo! Mais algumas horas, e ficareis livre <strong>de</strong>la" (escarnecendo-o) - E Dom Domingos<br />

ficou com uma cara <strong>de</strong> cavalo quando, logo <strong>de</strong>pois que o padre saiu , pus-me sentada na cama<br />

e lhe disse: "Meus votos <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>s, Domingos! Agora somos marido e mulher".<br />

ROSÁLIA<br />

Eu <strong>de</strong>i um pulo... e rebentei naquela gargalhada! (ainda ri do caso) - Nossa senhora! Como<br />

fingiu bem a doença toda!<br />

ALFREDO<br />

E a agonia também!<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 6


DOMINGOS<br />

Calem a boca, senão vou mostrar-lhes como é que se entra em agonia <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>! (Excluindo<br />

qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fraqueza <strong>de</strong> sua parte) Não po<strong>de</strong> ser, não po<strong>de</strong> ser! (Lembrando-se<br />

<strong>de</strong> repente, <strong>de</strong> outra personagem que, na sua opinião, po<strong>de</strong>ria ser o único responsável) - E o<br />

médico? On<strong>de</strong> estava toda a sua ciência? Um médico que nem sequer percebeu que ela não<br />

estava doente e que não tinha coisa alguma! Fez um papel <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro idiota!<br />

ALFREDO<br />

Po<strong>de</strong> ser que o homem tivesse se enganado.<br />

DOMINGOS<br />

(com <strong>de</strong>sdém) - Cale a bôca , Alfredo! (<strong>de</strong>cidido) - Pois o médico é que vai pagar! Ora se vai<br />

pagar! E caro! Ele estava <strong>de</strong> acordo com ela! Não é possível que estivesse <strong>de</strong> boa fé! (Para<br />

<strong>Filomena</strong>, com malícia) - o homem também entrou no "brinquedo", hein? Deste-lhe<br />

dinheiro...<br />

FILOMENA<br />

(enjoada) - É isto! É a única coisa que tu compreen<strong>de</strong>s: dinheiro! Com dinheiro, compraste<br />

tudo o que quiseste na vida! A mim também compraste por dinheiro! É o que estou te<br />

dizendo! Tu eras Dom Mimi Soriano... o tal! ... Vestias-te nos melhores alfaiates da cida<strong>de</strong>...<br />

tinhas os melhores camiseiros ... possuías cavalos <strong>de</strong> corrida... Mas , comigo o páreo foi<br />

diferente! Quem corria eras tu, e nem ao menos te davas conta!... E ainda vais ter <strong>de</strong> correr<br />

muito, ainda vais ter <strong>de</strong> suar sangue , para compreen<strong>de</strong>res como vive e proce<strong>de</strong> um homem <strong>de</strong><br />

bem! O médico não sabia <strong>de</strong> coisa alguma! Ele também acreditou , e tinha <strong>de</strong> acreditar.<br />

Depois <strong>de</strong> vinte e cinco anos ao teu lado, qualquer mulher entra em agonia! .... Fui a tua<br />

criada... (para Rosália e Alfredo) - Fui a criada <strong>de</strong>le durante vinte e cinco anos, e vocês bem<br />

que o sabem! Quando ele partia para ir divertir-se , Londres, Paris... eu é que tinha <strong>de</strong> tomar<br />

conta <strong>de</strong> tudo... é que tinha <strong>de</strong> montar guarda as suas fábricas e às suas lojas , senão os<br />

empregados o levavam à falência! (imitando o tom hipócrita <strong>de</strong> Domingos) "Se eu não te<br />

tivesse, <strong>Filomena</strong>, que seria <strong>de</strong> mim? Tu , sim, é que és uma mulher <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>." Fui eu que<br />

levei adiante a casa, melhor do que se estivesse casada com êle.<br />

Até os pés lhe lavei! Não digo agora, que estou velha, mas quando era nova! E se ao menos<br />

ele tivesse se mostrado agra<strong>de</strong>cido! Mas, qual! Nunca me agra<strong>de</strong>ceu! Sempre me tratou como<br />

uma criadinha, que se po<strong>de</strong> por no olho da rua a qualquer momento!<br />

DOMINGOS<br />

E se ao menos eu te tivesse visto uma vez submissa - sei lá! - consciente da verda<strong>de</strong>ira<br />

situação que existia entre nós dois! Mas, não! Sempre te mostraste <strong>de</strong> cara amarrada, com o<br />

nariz arrebitado, com ares <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong>... Tivesse, ao menos, uma vez, visto uma lágrima<br />

nesses olhos! Nunca a vi! Tanto anos que vivemos juntos , e nunca te vi chorar!<br />

FILOMENA<br />

Chorar? Eu? Por ti? Era só o que faltava!<br />

DOMINGOS<br />

Uma alma penada, sem sossego, uma mulher que não chora, não come , não dorme, eis o que<br />

tu és! Nunca te vi dormir, sequer! Uma verda<strong>de</strong>ira alma danada!<br />

FILOMENA<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 7


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

Quando e como querias ver-me dormir , se estavas sempre fora <strong>de</strong> casa? As melhores festas,<br />

os melhores dias <strong>de</strong> Natal, passei-os sozinha, como um cão sem dono! Sabes quando é que se<br />

chora? Quando se conhece um bem... e quando se conhece o mal, não se chora! A satisfação<br />

<strong>de</strong> chorar, <strong>Filomena</strong> Narturano nunca po<strong>de</strong> tê-la ! Sempre me trataste como a última das<br />

mulheres! (para Rosália e Alfredo, únicas testemunhas das gran<strong>de</strong>s verda<strong>de</strong>s que esta<br />

dizendo) Ainda no tempo em que ele era moço, a gente podia pensar: "Bem. Êle tem dinheiro.<br />

É um bonito rapaz! "Mas, agora, que está um molambo velho, com cinqüenta e dois anos no<br />

lombo, e que volta para casa com os lenços sujos <strong>de</strong> "baton", que até dão nojo!... (para<br />

Rosália) - On<strong>de</strong> estão êles?<br />

ROSALIA<br />

Estão guardados.<br />

FILOMENA<br />

É tão <strong>de</strong>scarado, que nem ao menos sabe ter certa prudência, nem sequer pensa: "E melhor<br />

dar-lhes sumiço, senão ela é capaz <strong>de</strong> achá-los!' Mas , para êle, tanto lhe faz que os ache ou<br />

não! Quem sou eu, que direito tenho eu ? O seu <strong>de</strong>scaramento chega a tal ponto que ainda se<br />

mete a dar em cima daquela...<br />

DOMINGOS<br />

(apanhado em flagrante, reage, furioso) - Daquela, quem? Daquela, quem?<br />

FILOMENA<br />

(nada intimidada, com violência ainda maior que a dêle) - A dar em cima daquela in<strong>de</strong>cente<br />

<strong>de</strong> pequena! Ou talvez pensas que eu não compreendi? Mentiras , tu não sabes, nem nunca<br />

soubeste pregar... Este é o teu <strong>de</strong>feito. Cinqüenta e dois anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, e se mete com uma<br />

pequena <strong>de</strong> vinte e dois! Nem sequer se envergonha! E ainda tem a coragem <strong>de</strong> trazê-la para<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa, dizendo que ela é enfermeira... porque o idiota pensava que eu estivesse<br />

mesmo morrendo!... (como que continuando algo realmente inacreditável) - Ainda há hora,<br />

antes que chegasse o padre para nos casar, julgando que eu estivesse para esticar a canela e<br />

não visse mais nada , andavam-se aos beijos e abraços perto da minha cama! (como que<br />

enjoada) - Meu Deus! Que nojo me das! Se eu estivesse realmente agonizando, era ou não isto<br />

o que terias feito? Eu estava a morte e a mesa estava posta (indica a mesa) para êle e para essa<br />

sirigaita! ...<br />

DOMINGOS<br />

Ora essa! Então, se morresses, eu não <strong>de</strong>via comer mais? Não <strong>de</strong>via mais alimentar-me?<br />

FILOMENA<br />

Com as rosas no centro da mesa?<br />

DOMINGOS<br />

Com as rosas no centro da mesa, perfeitamente!<br />

FILOMENA<br />

Rosas Vermelhas?<br />

DOMINGOS<br />

Vermelhas , ver<strong>de</strong>s, rôxas! Porque? Eu não tinha, por acaso , o direito <strong>de</strong> mandar por umas<br />

rosas no centro da mesa? Não tinha o direito <strong>de</strong> alegrar-me com a tua morte?<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 8


FILOMENA<br />

Mas eu não morri, não senhor! (Como que para lhe fazer um <strong>de</strong>speito) - E não tenciono<br />

morrer tão cedo, meu caro Domingos!<br />

DOMINGOS<br />

É isso o que está atrapalhando! (pausa) - Mas , o que não consigo é compreen<strong>de</strong>r uma coisa...<br />

Se me trataste sempre como a todos os outros, pois na tua opinião, os homens são todos iguais<br />

, porque te <strong>de</strong>u na telha <strong>de</strong> querer te casares comigo? E se me apaixonei por outra mulher e<br />

quero casar-me com ela... como hei <strong>de</strong> me casar , porque Diana há <strong>de</strong> ser minha mulher... que<br />

importância tem para ti que ela tenha ou não vinte e dois anos?<br />

FILOMENA<br />

Dá-me até vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> rir! Com franqueza, causas-me dó! Estás pensando que eu me importo<br />

contigo, com essa pequena que te fez per<strong>de</strong>r a cabeça e com tudo o mais que estás dizendo?...<br />

Acreditas, realmente, que o que eu fiz foi por ti... pelos teus olhos? Ora!... Nunca fiz caso <strong>de</strong><br />

ti.... nunca te liguei!... Uma mulher como eu - foste tu que o disseste e continuas a dizê-lo há<br />

vinte e cinco anos - uma mulher como eu , sabe o que quer! Uma coisa que serve ou não<br />

serve... tu, por exemplo, me serves... Ou julgavas, talvez, que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vinte e cinco anos<br />

<strong>de</strong>sta vida <strong>de</strong> misérias que passei do teu lado, eu me iria embora, <strong>de</strong> mãos abanando?<br />

DOMINGOS<br />

(Com ar <strong>de</strong> triunfo, julgando ter compreendido os motivos ocultos da peça que pregou<br />

<strong>Filomena</strong>) Ah! O dinheiro ! Pensas que eu não ia te dar dinheiro? Na tua opinião , Domingos<br />

Soriano, filho do Raimundo Soriano , um dos mais importantes e abastados fabricantes <strong>de</strong><br />

doces da cida<strong>de</strong>, não teria pensado em te montar uma casa <strong>de</strong>cente e por-te em condições <strong>de</strong><br />

não precisar <strong>de</strong> ninguém?<br />

FILOMENA<br />

(<strong>de</strong>sanimada ante tamanha incompreensão. Com <strong>de</strong>sprezo) - É melhor que cales a boca! Será<br />

possível que vocês , homens, não compreendam nunca coisa alguma? Dinheiro , a mim,<br />

Domingos? Guarda-o bem guardado, o teu dinheiro, e que te faça bom proveito! É outra coisa<br />

o que eu quero <strong>de</strong> ti.... e hei <strong>de</strong> consegui-la ! Eu tenho três filhos , Domingos!<br />

DOMINGOS<br />

(e Alfredo ficam <strong>de</strong> boca aberta, assobradas)<br />

ROSÁLIA<br />

(ao contrário, fica impassível)<br />

DOMINGOS<br />

Três filhos? Que diabo estás dizendo, <strong>Filomena</strong>?<br />

FILOMENA<br />

(repetindo , maquinalmente) - Tenho três filhos , Domingos!<br />

DOMINGOS<br />

(perturbado) - ...<strong>de</strong> quem são filhos?<br />

FILOMENA<br />

(que percebeu perfeitamente o terror <strong>de</strong> Domingos. Friamente) -<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 9


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

- De homens como tu!<br />

DOMINGOS<br />

(em tom grave) <strong>Filomena</strong> ... <strong>Filomena</strong>, tu estás brincando com o fogo ! Que quer dizer: "De<br />

homens como tu?"<br />

FILOMENA<br />

É que você são todos iguais!<br />

DOMINGOS<br />

(para Rosália) - Você sabia?<br />

ROSÁLIA<br />

Sim senhor, isto eu sabia.<br />

DOMINGOS<br />

(para Alfredo) - E você?<br />

ALFREDO<br />

(pronto para <strong>de</strong>sculpar-se) - Eu , não! Eu já lhe disse que Dona <strong>Filomena</strong> me o<strong>de</strong>ia!<br />

DOMINGOS<br />

(não ainda não quer se persuadir da realida<strong>de</strong> dos fatos. Como que falando consigo mesmo)<br />

Três filhos! (para <strong>Filomena</strong>) - E que ida<strong>de</strong> tem eles?<br />

FILOMENA<br />

O maior tem vinte e seis anos.<br />

DOMINGOS<br />

Vinte e seis anos?<br />

FILOMENA<br />

Não faças essa cara! Não te assustas! Não são teus filhos.<br />

DOMINGOS<br />

(um tanto aliviado) - E eles te conhecem? Falam contigo? Sabem que és mãe <strong>de</strong>les?<br />

FILOMENA<br />

Não sabem, mas os vejo sempre e converso com êles.<br />

DOMINGOS<br />

On<strong>de</strong> estão? Que fazem ? Como vivem?<br />

FILOMENA<br />

Com o teu dinheiro!<br />

DOMINGOS<br />

(surpreso) - Com o meu dinheiro?<br />

FILOMENA<br />

Claro, com o teu dinheiro! Com o dinheiro que eu te roubei! Eu te roubava dinheiro da<br />

carteira, enten<strong>de</strong>ste? Roubava-te nas tuas barbas!<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 10


DOMINGOS<br />

(com <strong>de</strong>sprezo) - Gatuna!<br />

FILOMENA<br />

(sem se <strong>de</strong>ixar abalar) - Roubei-te! Até tuas roupas e sapatos vendi. E nunca <strong>de</strong>ste por isso!<br />

Lembras-te daquele anel <strong>de</strong> brilhantes que eu te disse ter perdido? Pois vendi! Foi com o teu<br />

dinheiro que criei os meus filhos!<br />

DOMINGOS<br />

(enjoado) - Eu tinha uma gatuna <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa! Mas, que espécie <strong>de</strong> mulher és tu?<br />

FILOMENA<br />

(como se não lhe tivesse dado ouvidos) - (continuando) - Um <strong>de</strong>les tem oficina no beco aqui<br />

ao lado. É bombeiro.<br />

ROSÁLIA<br />

(que estava com uma vonta<strong>de</strong> louca <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r falar) Funileiro. Concerta torneiras, <strong>de</strong>sentope<br />

pias... (aludindo , agora, ao segundo filho)<br />

- o outro... como é mesmo que se chama? Ah, Ricardo! Que rapagão! Tem uma loja <strong>de</strong><br />

camiseiro. Faz camisas sob medida. Clientela <strong>de</strong> primeira! E nem falemos <strong>de</strong> Umberto...<br />

FILOMENA<br />

Esse estudou. Quis estudar. É perito-contador e escreve coisas nos jornais.<br />

DOMINGOS<br />

(irônico)) Ah! Temos um escritor na família!<br />

ROSÁLIA<br />

(louvando os sentimentos maternais <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>) - E que não que ela tem sido para êles!<br />

Nunca lhes <strong>de</strong>ixou nada!...Eu posso dizê-lo, porque, já estou velha e não tardo muito a<br />

comparecer à presença <strong>de</strong> Deus Todo Po<strong>de</strong>roso, que tudo vê, tudo perdoa e não se <strong>de</strong>ixa<br />

engabelar com conversa fiada... Des<strong>de</strong> pequeninos, ainda quando cueiros, ela nunca lhe<br />

<strong>de</strong>ixou falar nada!...<br />

DOMINGOS<br />

Com o meu dinheiro!<br />

ROSÁLIA<br />

(espontaneamente, com instintivo sentimento <strong>de</strong> justiça) - Mas se o senhor o atirava fora o seu<br />

dinheiro!....<br />

DOMINGOS<br />

Será que tinha <strong>de</strong> prestar contas a alguém?<br />

ROSÁLIA<br />

Oh! Isso não! Mas nem sequer <strong>de</strong>u pela coisa....<br />

FILOSOFIA<br />

Não lhe dê ouvidos, Rosália! Ainda per<strong>de</strong> tempo em respon<strong>de</strong>-lhe?<br />

DOMINGOS<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 11


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

(dominando-se) - <strong>Filomena</strong> , tu queres provocar-me, a todo o transe! Aon<strong>de</strong> iremos parar?<br />

Será possível que não te dês conta do que fizeste-me fazer o papel <strong>de</strong> palhaço! Sim ... porque<br />

esses três cavalheiros, que nunca vi mais gordos, que nem sei <strong>de</strong> on<strong>de</strong> saíram, hão <strong>de</strong> ter rido<br />

<strong>de</strong> mim a mais não po<strong>de</strong>r! Na hora dos apertos , forçosamente , haviam <strong>de</strong> dizer: "Deixa<br />

correr o marfim! Tomos o dinheiro do senhor Domingos"!...<br />

ROSÁLIA<br />

(excluindo tal hipótese) - Oh! Isso , não! Eles não sabem <strong>de</strong> nada. Dona <strong>Filomena</strong> sempre fêz<br />

tudo como <strong>de</strong>via: com prudência e com a cabeça no lugar. Ela sempre teve muito juízo . O<br />

tabelião entregou o dinheiro ao funileiro, quando abriu a oficina no beco aqui ao lado,<br />

dizendo que era <strong>de</strong> uma senhora que não queria fazer-se conhecer... E do mesmo modo<br />

proce<strong>de</strong>u com o camiseiro. E o tabelião está também encarregado <strong>de</strong> dar a mesada a Umberto,<br />

para seus estudos. Como esta vendo o senhor está absolutamente fora <strong>de</strong> tudo isso!<br />

DOMINGOS<br />

(amargo) - O que eu fiz foi só pagar!<br />

FILOMENA<br />

(num ímpeto repentino) - Ou querias, talvez, que eu os matasse? Era isso o que <strong>de</strong>via fazer ,<br />

não é, Domingos? Matá-los antes <strong>de</strong> nascerem, como fazem outras mulheres ? Aí, sim! Aí,<br />

sim! Aí, <strong>Filomena</strong> teria sido uma boa mulher! (acossando) Respon<strong>de</strong>!... Era isso o que me<br />

aconselhavam todas as minhas companheiras lá naquela casa... (alu<strong>de</strong> ao lupanar) "Vamos,<br />

que esperas? Assim, ficarás livre <strong>de</strong> uma vez da preocupação!... "Oh! Não! Nunca! Era só o<br />

que faltava! Eu teria ficado a vida inteira com a preocupação, com o remorso <strong>de</strong> um ato tão<br />

monstruoso! Mas eu fui falar como Nossa Senhora... (para Rosália) A Nossa Senhora das<br />

Rosas, você se lembra?<br />

ROSÁLIA<br />

Com não haveria <strong>de</strong> lembrar-me da Nossa Senhora das Rosas! Ela conce<strong>de</strong> uma graça por dia!<br />

FILOMENA<br />

(evocando o místico encontro) - Eram três horas da madrugada. A rua estava <strong>de</strong>serta. Em já<br />

tinha <strong>de</strong>ixando a casa <strong>de</strong> minha família seis meses antes... (aludindo a primeira sensação da<br />

maternida<strong>de</strong>) - Era a primeira vez! O que é que ia fazer ? A quem é que eu ia dizer? Ouvia<br />

<strong>de</strong>ntro da cabeça as vozes das minhas companheiras: "Vamos, que esperas? Assim, ficarás<br />

livre <strong>de</strong> uma vez da preocupação! Olha... conhecemos um médico, que é camarada..." Sem<br />

perceber, eu ia caminhando e tinha chegado ao beco da minha casa, diante do pequeno altar<br />

<strong>de</strong> Nossa Senhora das Rosas. Falei-lhe assim! (Põe as mãos nas âncas e levanta o olhar para<br />

uma imagem sagrada imaginária, como que falando cara a cara, e <strong>de</strong> mulher para mulher, com<br />

a Virgem) - "E agora, que é que eu faço?... Tu sabes tudo... Sabes também porque me<br />

encontro nesta rua da amargura... Que é que eu faço, hein? ..." Mas, ela ficou calada. Não<br />

respon<strong>de</strong>u. (excitada) - "Então, como é? É assim que fazes? Quanto mais ficas calada, mais<br />

acreditam em ti?... Estou falando contigo! (com arrogância vibrante) - Respon<strong>de</strong>!" (imitando<br />

maquinalmente o tom <strong>de</strong> voz <strong>de</strong> alguém, <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sconhecido que, naquele momento falou) -<br />

"Os filhos são filhos!... " Fiquei gelada... assim... parada! (Fica como que <strong>de</strong> pedra, fitando a<br />

imagem sagrada imaginária) - Talvez, se eu me voltasse, tivesse visto e compreendido <strong>de</strong><br />

on<strong>de</strong> vinha a voz. Vinha do interior <strong>de</strong> uma casa, com a janela aberta, no beco vizinho. Mas<br />

então eu pensei: "Porque estão dizendo isto, logo agora, neste momento? Que é que os outros<br />

sabem da minha vida? Neste caso, foi ela que falou!... Sim ... Foi Nossa Senhora! Quando ela<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 12


se viu enfrentada por mim, cara a cara, resolveu falar.... Mas , então Nossa Senhora serve-se<br />

<strong>de</strong> nós?... Será que quando as companheiras me disseram: "Ficarás livre <strong>de</strong> uma vez da<br />

preocupação!" Foi ela também quem me falou, para me por a prova?... E já nem sei mais se<br />

fui eu ou se foi Nossa Senhora quem fez assim com a cabeça! ( Faz um movimento com a<br />

cabeça , como que para dizer: "Sim, compreen<strong>de</strong>ste!) Os filhos são filhos!... E, então , eu jurei<br />

! Foi Por isto que fiquei todos os anos perto <strong>de</strong> ti... Foi por êles, que agüentei tudo o que me<br />

fizeste e a maneira por que trataste... E quando aquele rapaz se apaixonou por mim e queria<br />

casar-se comigo, lembras-te? Fazia cinco anos que vivíamos juntos. Tu , casado , na tua casa.<br />

Eu, lá nos subúrbios, naqueles três quartinhos com cozinha... a primeira casa que montaste<br />

para mim, quando , <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> quatro anos que nos conhecíamos, me tiraste lá <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro!<br />

(refere-se ao lupanar ) O pobre rapaz queria casar-se comigo... mas tu me fizeste uma<br />

ciumada!... Ainda me parece que estou a ouvir-te: "Eu já sou casado. Não posso casar-me...<br />

mas, se êle se casar contigo..." E começaste a chorar... porque chorar tu sabes... oh, se sabes!...<br />

Ao contrário <strong>de</strong> mim, que não sei chorar! E , então, eu pensei: "Está bem, e este o meu<br />

<strong>de</strong>stino! Domingos me quer bem. Mesmo que quisesse , não po<strong>de</strong>ria casar-se comigo, porque<br />

já é casado... Fiquemos nos três quartinhos do subúrbio! " Dois anos mais tar<strong>de</strong>, porém, tua<br />

mulher morria. O tempo ia passando e eu continuava no subúrbio... E pensava: "É ainda<br />

jovem... Não quer se pren<strong>de</strong>r portoda a vida a outra mulher. Há <strong>de</strong> vir o momento em que se<br />

acalmará e tornará em consi<strong>de</strong>ração os sacrifícios que em fiz"... " E continuei a esperar. E<br />

quando eu te dizia: "Sabes quem se casou? ... Aquela menina que morava em frente da minha<br />

janela....", tu rias, punhas-te e rir, exatamente como quando ias com os teus amigos, naquela<br />

casa on<strong>de</strong> eu estava, antes <strong>de</strong> ir morar no subúrbio... Davas aquela gargalhada que nem parece<br />

humana... aquela gargalhada que começa no primeiro lance da escada... aquela gargalhada que<br />

é sempre a mesma , seja quem for que a dê! ... Ah! Como eu tinha vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> te matar quando<br />

rias assim! (paciente) E continuei a esperar... Esperei vinte e cinco anos, pensando que te<br />

<strong>de</strong>cidisses... "Agora , já está velho.... já está com cinqüenta e dois aos... Quem sabes? ....<br />

Talvez..." Mas , qual !... Continuas a julgar-te jovem. Corres atrás <strong>de</strong> tudo quanto é rabo <strong>de</strong><br />

saia!... Já estás ficando caduco! Trazes os lenços sujos e "baton" para casa!... Chegas até a<br />

preten<strong>de</strong>r meter <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa essa <strong>de</strong>savergonhada <strong>de</strong> pequena! (Ameaçadora) - Quero vê-la<br />

meter-se aqui em casa, agora, que sou tua mulher! Enxoto daqui todos os dois, a ti e a ela!<br />

Agora somos marido e mulher! O padre nos casou! Esta é a minha casa!<br />

(Toque <strong>de</strong> campainha no interior)<br />

ALFREDO<br />

(Sai pelo F. A D.)<br />

DOMINGOS<br />

Tua casa? (Ri contrafeito, ironicamente) - Agora és tu que me fazes rir!<br />

FILOMENA<br />

(Pérfida) - Pois ri... ri! Agora, me dá até prazer ouvir-te rir. Porque já não sabes rir como<br />

antigamente.<br />

ALFREDO<br />

(Volta e olha para todos os parentes, preocupado com o que terá <strong>de</strong> dizer)<br />

DOMINGOS<br />

(Vendo-o, fala-lhe rispidamente) - Que é que você quer?<br />

ALFREDO<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 13


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

Eu não quero nada! É que... que trouxeram o jantar!<br />

DOMINGOS<br />

Na sua opinião , talvez, eu não haveria <strong>de</strong> jantar?<br />

ALFREDO<br />

(Como que para dizer: "Bem... Eu não tenho nada com isto") - Ora, Dom Domingos...<br />

(Falando para o F. à D.) - Po<strong>de</strong> trazer!<br />

(Entram dois garçons <strong>de</strong> restaurante trazendo numa cesta o necessário para uma boa ceia)<br />

UM GARCON<br />

(Todo serviçal) - Aqui está a ceia. (Para o outro garçon) Põe aí.<br />

(Pousam no chão a cesta da ceia, no lugar indicado pelo primeiro Garçon).<br />

I GARÇON<br />

Senhor Domingos, o frango é um só, porque é muito gran<strong>de</strong> e dá até para quatro pessoas.<br />

Tudo o que o senhor encomendou é <strong>de</strong> primeira. (Faz menção <strong>de</strong> tirar as comidas da cesta)<br />

DOMINGOS<br />

(Retendo-o, com um gesto irritado) - Escute... Sabe o que <strong>de</strong>ve fazer? Vá-se embora!<br />

I GARÇON<br />

Pois, não. (Tira da cesta um doce e coloca-o em cima da mesa) - Este é o doce preferido da<br />

senhorita... (Tirando também uma garrafa da cesta e colocando-a em cima da mesa) - Este é o<br />

vinho. ( As palavras do garçon ressoam no mais profundo silêncio. Mas, o homem não se dá<br />

por achado. Continua a falar; <strong>de</strong>sta feita , para pedir algo , num tom melífluo) - O senhor<br />

esqueceu?<br />

DOMINGOS<br />

O que?<br />

I GARÇON<br />

Quando o senhor foi hoje á nossa casa, encomendar a ceia - não se lembra? Eu lhe pedi - se<br />

por acaso, tivesse um par <strong>de</strong> calças velhas... E o senhor me disse: "Vá lá em casa logo mais a<br />

noite, porque , se acontecer aquilo que estou esperando... se eu tiver a boa notícia ... você<br />

levará <strong>de</strong> presente um terno novinho em folha."<br />

(Soturno silêncio por parte dos <strong>de</strong>mais. Pausa)<br />

I GARÇON<br />

(Está ingenuamente <strong>de</strong>sapontado) - Aquilo que o senhor esperava, não aconteceu? (Aguarda a<br />

resposta).<br />

DOMINGOS<br />

(permanece calado)<br />

I GARÇON<br />

A boa noticia não chegou?<br />

DOMINGOS<br />

(Agressivo) - Já lhe disse para ir embora!<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 14


I GARÇON<br />

(Admirado do tom <strong>de</strong> Domingos) - Já vou.. Já vou... (Olha ainda para Domingos e em seguida<br />

suspira)- Vamos, Carlos! A boa notícia não chegou!... Que azar o meu!... (suspira) Muito boa<br />

noite! (sai pelo F. juntamente com o companheiro).<br />

FILOMENA<br />

(Após uma pausa, sarcasticamente para Domingos) - Vamos , come! Que é isto? Não queres<br />

comer? Ficaste sem apetite?<br />

DOMINGOS<br />

(atrapalhado, furioso) - Vou comer , sim! Mais tar<strong>de</strong>, vou comer e beber!<br />

FILOMENA<br />

(aludindo a jovem já mencionada um pouco antes) - Ah! Quando vier a serigaita?<br />

DIANA<br />

(Entra pelo F. à D.. É uma jovem , bonita , <strong>de</strong> vinte e dois anos, ou melhor, esforça-se por<br />

aparentar essa ida<strong>de</strong>, mas tem vinte e sete. Traja com uma elegância rebuscada, um pouco<br />

snob. Olha todo o mundo <strong>de</strong> cima para baixo. Ao entrar, fala ligeiramente com todos, sem se<br />

dirigir diretamente a nenhum <strong>de</strong>les, dando mostras <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sprezo a todos ... Não<br />

percebe, por isto, a presença <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>. Traz uns embrulhinhos <strong>de</strong> remédios , que coloca<br />

máquinalmente em cima da mesa. Pega sobre uma ca<strong>de</strong>ira um avental branco <strong>de</strong> enfermeira e<br />

veste-o) - Quanta gente havia na farmácia! (Malcriada, com ares <strong>de</strong> dona da casa) - Rosália ,<br />

vá preparar-me um banho! (Vê as rosas em cima da mesa) - Meu Deus! Rosas vermelhas! ...<br />

Obrigada, Domingos! Que cheirinho bom! Ah! Não imagina como estou com fome! (Tira <strong>de</strong><br />

um dos embrulhos que <strong>de</strong>ixou em cima da mesa umas ampolas) - Encontrei o óleo canforado<br />

e adrenalina. Não tinham balão <strong>de</strong> oxigênio.<br />

DOMINGOS<br />

(está como se tivesse sido fulminado)<br />

FILOMENA<br />

(não pestaneja, espera).<br />

ROSÁLIA e ALFREDO<br />

(quase que chegam a achar graça)<br />

DIANA<br />

(senta-se perto da mesa, <strong>de</strong> frente para o público, e acen<strong>de</strong> um cigarro) - Eu pensei : se... meu<br />

Deus, não gosto <strong>de</strong> dizer a palavra, mas, afinal... se ela morrer esta noite , amanhã <strong>de</strong> manhã<br />

cedo, partirei. Arranjei um lugar no automóvel <strong>de</strong> uma amiga... Aqui, eu só serviria para<br />

atrapalhar... Voltarei <strong>de</strong>pois que ela estiver enterrada... daqui a uns <strong>de</strong>z dias... Virei vê-lo<br />

logo, Domingos....(aludindo a <strong>Filomena</strong>) - E ... como está ela? ... Sempre agonizante?... Veio<br />

o padre?<br />

FILOMENA<br />

(Dominando-se, com simulada cortesia, acerca-se vagarosamente <strong>de</strong> Diana) - O padre veio,<br />

sim , senhora...<br />

DIANA<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 15


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

(Surpesa, levante-se e dá uns passos para trás)<br />

FILOMENA<br />

... e assim que viu que eu estava estrebuxando ... (Não completa a frase. Bruscamente , felina)<br />

- Dispa-se! (alu<strong>de</strong> ao avental)<br />

DIANA<br />

(que não compreen<strong>de</strong>u) - O que ?<br />

FILOMENA<br />

(i<strong>de</strong>m) - Dispa-se!<br />

ROSALIA<br />

(percebe que Diana tampouco <strong>de</strong>sta vez compreen<strong>de</strong>u e, para evitar maiores males,<br />

aconselha-a pru<strong>de</strong>ntemente) - Tire isso! (e aponta para sua própria camisa)<br />

DIANA<br />

(finalmente, compreen<strong>de</strong> e, com instintivo temor, tira o avental <strong>de</strong> enfermeira)<br />

FILOMENA<br />

(que acompanhou os movimentos <strong>de</strong> Diana, sem tirar-lhe os olhos <strong>de</strong> cima) - Ponha aí em<br />

cima da ca<strong>de</strong>ira!...<br />

DIANA<br />

(executa)<br />

FILOMENA<br />

(retoma o tom cortes do inicio)- Viu que eu estava agonizantezinha e aconselhou o senhor<br />

Domingos Soriano a aperfeiçoar a união "em extremida<strong>de</strong>" (<strong>Filomena</strong> quer dizer "in<br />

extremis". Aludiu ao padre)<br />

DIANA<br />

(que não sabe o que há <strong>de</strong> fazer, tirar do centro <strong>de</strong> mesa uma rosa e finge que lhe aspira o<br />

perfume)<br />

FILOMENA<br />

(fulmina-a com o tom opaco da sua voz) - Ponha essa rosa no lugar!<br />

DIANA<br />

(como que obe<strong>de</strong>cendo a uma or<strong>de</strong>m teutônica, torna a pôr rosa no lugar)<br />

FILOMENA<br />

(volta ao tom cortes) - E o senhor Domingos achou o conselho acertado, porque pensou: "É<br />

justo! Esta <strong>de</strong>sgraçada está vivendo comigo há vinte e cinco anos... " E muitas outras<br />

conseqüências e inconsequências, que não temos nenhuma obrigação lhe explicar1 Êle<br />

aproximou da cama (alu<strong>de</strong> ao padre) e casamo-nos... com duas testemunhas e a benção do<br />

sacerdote. Talvez que casar seja bom para a saú<strong>de</strong>... O fato é que logo me senti melhor! ...<br />

Levantei-me e adiamos a morte para outra oportunida<strong>de</strong>. Naturalmente, on<strong>de</strong> não há enfermos<br />

, não po<strong>de</strong> haver enfermeiras... E assim certas in<strong>de</strong>cências... ( Como indicador da mão direita<br />

esticado dá uns pequenos golpes no queixo <strong>de</strong> Diana, obrigando-a uma série <strong>de</strong> repentinos<br />

"não" com a cabeça)-... certas porcarias... (repete o gesto) diante <strong>de</strong> uma coitada que estava<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 16


morrendo, porque você pensava que eu ia morrer... se quiser fazê-las, vá para a casa da sua<br />

mãe, ouviu?<br />

DIANA<br />

(continua a recuar até à porta <strong>de</strong> entrada) - Está bem... está bem...<br />

FILOMENA<br />

E se quiser achar-se mesmo à vonta<strong>de</strong>, no ambiente que lhe vai acalhar, vá para casa on<strong>de</strong> eu<br />

estava... (alu<strong>de</strong> ao lupanar)<br />

DIANA<br />

On<strong>de</strong>?<br />

FILOMENA<br />

Pergunte ao senhor Domingos, que freqüentava essa espécie <strong>de</strong> casas e ainda as freqüenta!<br />

Saia ! Vamos!<br />

DIANA<br />

(dominada pelo olhar <strong>de</strong> fogo <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>, quase <strong>de</strong> pânico) - Obrigada... (Encaminha-se<br />

para o F. D.)<br />

FILOMENA<br />

Não há <strong>de</strong> que? (e volta para o seu lagar a E. B.)<br />

DIANA<br />

Boa noite... ( e sai)<br />

DOMINGOS<br />

(que até esse momento ficou pensativo, absorto em estranhas meditações, volte-se para<br />

<strong>Filomena</strong>, aludindo a Diana) - É assim que tu a tratas?<br />

FILOMENA<br />

Como ela merece! (Faz um gesto do <strong>de</strong>speito)<br />

DOMINGOS<br />

Escuta, <strong>Filomena</strong>... Preciso que me dês uma explicação.. Tu és o diabo em pessoa... Contigo a<br />

gente <strong>de</strong>ve ficar sempre alerta... com os olhos bem abertos... As tuas palavras, a gente <strong>de</strong>ve<br />

tomar nota e pesá-las bem... Agora , já estou farto <strong>de</strong> te conhecer! Ainda há pouco, disseste<br />

uma coisa e este tempo todo estive pensando nela... Disseste-me: "O que eu quero <strong>de</strong> ti é outra<br />

coisa e hei <strong>de</strong> consegui-la..." (como que obsedado)- Que mais queres <strong>de</strong> mim? Que é que tens<br />

na cabeça? Que foi que pensaste ainda não me disseste?... Respon<strong>de</strong>!<br />

FILOMENA<br />

(com simplicida<strong>de</strong>) - Não conheces a canção: "Estou criando um pintassilgo... Quanta coisa<br />

hei <strong>de</strong> ensinar-lhe?"...<br />

ROSÁLIA<br />

(erguendo os olhos para o céu) - Ah, meu Deus!<br />

DOMINGOS<br />

(Desconfiado, em guarda, assustado, para <strong>Filomena</strong>) - Que quer dizer isso?<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 17


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

FILOMENA<br />

(precisando) - O pintassilgo és tu!<br />

DOMINGOS<br />

<strong>Filomena</strong>, fala claro!... Não brinques mais comigo!... Ainda vou acabar doente com isto,<br />

<strong>Filomena</strong>!<br />

FILOMENA<br />

(Séria ) - Os filhos são filhos!<br />

DOMINGOS<br />

Que queres dizer?<br />

FILONENA<br />

Eles precisam saber quem é a mãe <strong>de</strong>les... Precisam saber tudo o que fiz por eles.. Precisam<br />

querer-me bem! (animando-se) Não <strong>de</strong>vem se envergonhar diante dos outros homens.. não<br />

<strong>de</strong>vem sentir-se humilhados toda vez que tiverem <strong>de</strong> apresentar um papel, um documento...<br />

Devem ter o mesmo nome que eu!<br />

DOMINGOS<br />

O teu nome? Qual?<br />

FILONENA<br />

O nome que eu tenho. Estamos casados. O nosso nome: Soriano!<br />

DOMINGOS<br />

(perturbadíssimo) - Ah! Eu já tinha compreendido! Eu queria era ouvir da tua boca<br />

semelhante infância... Ouvi-la pronunciada pela tua voz sacrílega... para me convencer <strong>de</strong> que<br />

se eu te jogar daqui para fora aos ponta-pés, se eu te esmagar a cabeça, não terei feito nada <strong>de</strong><br />

mal porque terei esmigalhado uma cobra venenosa , que a gente mata sem remorsos para que<br />

não morda mais ninguém! ( Aludindo ao projeto <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>) - Aqui? Aqui? Na minha casa?<br />

Com o meu nome? Esses filhos <strong>de</strong>...<br />

FILONENA<br />

(Agressiva, para impedi-lo <strong>de</strong> pronunciar a palavra) - Filhos <strong>de</strong> quem?<br />

DOMINGOS<br />

Teus! Se pergunta <strong>de</strong> quem, posso dizer que são teus. Se me perguntas <strong>de</strong> quem mais, não<br />

posso respon<strong>de</strong>r , porque não sei. E tu tampouco o sabes! Ah! Julgavas liquidar o caso,<br />

tranqüilizar a tua consciência e salvar-te do pecado trazendo para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> minha casa três<br />

estranhos? Nunca! Só <strong>de</strong>pois que eu estiver morto! Aqui <strong>de</strong>ntro é que êles não porão os pés!<br />

(solene) - Juro pela memória <strong>de</strong> meu pai que...<br />

FILONENA<br />

(repentintmente, interrompe-o como para preveni-lo <strong>de</strong> um castigo que lhe po<strong>de</strong>ria causar um<br />

sacrilégio cometido por motivos impon<strong>de</strong>ráveis)<br />

- Não jures! Eu, por ter feito um juramento, ando há vinte e cinco anos pedindo-te esmolas!...<br />

Não jures, porque seria um juramento que não po<strong>de</strong>rias cumprir... E morrerias dando se um<br />

dia não pu<strong>de</strong>sses pedir tu a esmola a mim.<br />

DOMINGOS<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 18


(subjugado pelas palavras <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong> como que per<strong>de</strong>ndo o juízo) - Que mais estás<br />

pensando agora? ... Bruxa!... Mas eu não tenho medo <strong>de</strong> ti, fica sabendo! Não tenho medo!<br />

FILONENA<br />

E por que, então, o dizes?<br />

DOMINGOS<br />

Cala a boca! (Para Alfredo, tirando o paletó do pijama) Dê-me o paletó!<br />

ALFREDO<br />

(sai pelo "escritório", sem falar)<br />

DOMINGOS<br />

Amanhã irás embora daqui! Entrego o caso ao advogado. Denuncio-te! Foi uma cilada! Tenho<br />

as testemunhas!... E se a lei não me fizer justiça, eu te mato, <strong>Filomena</strong>! Faço-te sumir <strong>de</strong>ste<br />

mundo!<br />

FILONENA<br />

(irônica) - E para on<strong>de</strong> me mandas?<br />

DOMINGOS<br />

Para on<strong>de</strong> estiveste! (Está exasperado, disposto a insultá-la)<br />

ALFREDO<br />

(volta com o paletó)<br />

DOMINGOS<br />

(arranca-o das mãos <strong>de</strong>le e veste-o, dizendo-lhe) - Amanhã você vai chamar o meu advogado!<br />

Sabes quem é , não é?<br />

ALFREDO<br />

(faz sinal afirmativo com a cabeça)<br />

DOMINGOS<br />

(a <strong>Filomena</strong> ) - E <strong>de</strong>pois conversaremos, <strong>Filomena</strong>!<br />

FILONENA<br />

Sim, conversaremos!<br />

DOMINGOS<br />

Vais ficar sabendo quem é Domingos Soriano! (Encaminha-se para o F.)<br />

FILONENA<br />

(apontando para a mesa) - Rosália, sente-se à mesa... Você também <strong>de</strong>ve estar com fome...<br />

(Senta-se perto da mesa, <strong>de</strong> frente para o público)<br />

DOMINGOS<br />

Deixa estar! ... Não per<strong>de</strong>s por esperar... <strong>Filomena</strong>, "a napolitana"!...<br />

FILONENA<br />

(cantarolando) - Estou criando um pintassilgo...<br />

DOMINGOS<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 19


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

(enquanto <strong>Filomena</strong> cantarola, solta uma gargalhada sarcástica, como que para a escarnecer e<br />

ultrajá-la) - Ah! Ah! Ah!... Lembra-te <strong>de</strong>sta gargalhada, <strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong>!... (e sai<br />

acompanhado por Alfredo, pelo F. D. , enquanto cai o PANO<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 20


Mesmo cenário do Primeiro Ato.<br />

SEGUNDO ATO<br />

No dia seguinte. A criada <strong>de</strong>sarrumou todas as ca<strong>de</strong>iras, para limpar o assoalho. Levou<br />

algumas para a varanda, outras, colocou emborcadas em cima da mesa e outras ainda levou<br />

para o "escritório" <strong>de</strong> Domingos. O tapete <strong>de</strong>baixo da mesa <strong>de</strong> jantar, está dobrado sobre si<br />

mesmo nos quatro lados. Luz normal <strong>de</strong> uma clara manhã <strong>de</strong> sol. LÚCIA é a criada da casa. É<br />

uma rapariga simpática e sadia, <strong>de</strong> vinte e três anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Acabou o seu trabalho.<br />

Espreme, pela última vez, o pano <strong>de</strong> enxugar o chão num bal<strong>de</strong> água suja, em seguida, vai pôr<br />

na varanda todos os utensílios <strong>de</strong> limpeza.<br />

ALFREDO<br />

(Cansado, com sono , entra pelo F. D. enquanto Lúcia está para pôr novamente em or<strong>de</strong>m o<br />

tapete) - Bom dia, Lúcia!<br />

LÚCIA<br />

(Detendo-o com o tom ressentido da voz e com um gesto) - Não comece a caminhar com os<br />

pés aí em cima!<br />

ALFREDO<br />

Está bem... está bem.. Quer dizer que vou caminhar com as mãos!<br />

LÚCIA<br />

Suei como uma danada para limpar esse assoalho!... (Mostra o assoalho ainda parcialmente<br />

molhado) - E o senhor se mete a andar por aí...<br />

ALFREDO<br />

Eu, andar?... Eu estou morto! (Senta-se perto da mesa) Sabe o que quer dizer morto? A noite<br />

toda atrás do senhor Domingos, sem pregar olho! Sentados em cima do paredão, à beira mar!<br />

Justamente agora , que as noites começam a ser frias! O Padre Eterno não podia achar outra<br />

pessoa para pôr ao serviço <strong>de</strong>le? Logo a mim é que ele foi escolher! Não é que eu me queixo.<br />

Deus me livre! Arrumei a minha vidinha. Êle sempre me pagou bem. Tivemos até momentos<br />

<strong>de</strong> grandiosida<strong>de</strong> , eu com ele e ele comigo... Eu <strong>de</strong>sejo que Nosso Senhor lhe dê ainda muitos<br />

anos <strong>de</strong> vida, mas sossegado, tranqüilo! Já estou com sessenta anos e não sou mais nenhum<br />

rapazola... Não agüento mais as noites em claro ao lado <strong>de</strong>le... Lúcia, dê-me uma xícara <strong>de</strong><br />

café.<br />

LÚCIA<br />

(que, entrementes, arrumou no seu lugar as ca<strong>de</strong>iras, sem prestar atenção ao <strong>de</strong>sabafo <strong>de</strong><br />

Alfredo, com simplicida<strong>de</strong>) - Não há!<br />

ALFREDO<br />

Não há?<br />

LÚCIA<br />

Não há. Havia o <strong>de</strong> ontem, mas eu tomei uma xícara, outra Dona Rosália não quis e levou<br />

para Dona <strong>Filomena</strong>, e outra, eu guar<strong>de</strong>i para o senhor Domingos no caso <strong>de</strong>le vir...<br />

ALFREDO<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 21


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

(pouco convencido) - No caso <strong>de</strong>le vir?<br />

LÚCIA<br />

Pois é... No caso <strong>de</strong>le vir... Dona Rosália hoje não fez café.<br />

ALFREDO<br />

E você não podia fazê-lo?<br />

LÚCIA<br />

Eu sei lá fazer café!<br />

ALFREDO<br />

Nem sequer café você sabe fazer! E porque foi que Dona Rosália não fêz?<br />

LÚCIA<br />

Ela saiu muito cêdo. Disse que tinha <strong>de</strong> levar três cartas urgentes <strong>de</strong> Dona <strong>Filomena</strong>...<br />

ALFREDO<br />

(<strong>de</strong>sconfiando) - Três cartas... <strong>de</strong> Dona <strong>Filomena</strong>? Três cartas?<br />

LÚCIA<br />

Pois e... Uma , duas e três.<br />

ALFREDO<br />

(consi<strong>de</strong>rando o seu próprio estado <strong>de</strong> esgotamento) - Mas eu , sem um gole <strong>de</strong> café, é que<br />

não me agüento mais em pé! Sabe o que você vai fazer, Lúcia?... Vai dividir em duas partes a<br />

xícara do senhor Domingos.... Traz-me a meta<strong>de</strong> e junta água para completar a meia xícara<br />

<strong>de</strong>le...<br />

LÚCIA<br />

E se ele <strong>de</strong>r pela coisa?<br />

ALFREDO<br />

Qual! É difícil ! Do jeito em que estava!... Além disto , eu preciso mais do café do que êle ,<br />

porque sou mais velho. Quem foi que o mandou ficar a noite toda no meio da rua?<br />

LÚCIA<br />

Está bem. Vou aquecê-lo e lhe trago. ( Encaminha-se para a porta da E. F. mas vendo chegar<br />

pelo F. D. Rosália, pára e avisa Alfredo) - Dona Rosália... (Vendo que Alfredo olha para ela<br />

sem falar) - Como é? Ainda quer que lhe traga o café?<br />

ALFREDO<br />

Claro que sim! Tanto mais que está chegando Dona Rosália. Ela irá fazer um café fresquinho<br />

para o senhor Domingos. Só quero meia xícara!<br />

LÚCIA<br />

(sai)<br />

ROSÁLIA<br />

(entra pela porta do F. D. e nota a presença <strong>de</strong> Alfredo. Finge, entretanto , que não o viu e ,<br />

toda compenetrada da sua missão, encaminha-se para o quarto <strong>de</strong> dormir <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>)<br />

ALFREDO<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 22


(que reparou na atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rosália , <strong>de</strong>ixa que ela chegue quase no limiar da porta da E. B. e,<br />

então , irônicamente , a chama) - Rosália... Que é que há? Per<strong>de</strong>u a língua?<br />

ROSÁLIA<br />

(Indiferente) - Eu não o tinha visto.<br />

ALFREDO<br />

Não me tinha visto? Sou, acaso, uma formiga em cima <strong>de</strong>sta ca<strong>de</strong>ira?<br />

ROSÁLIA<br />

É... é, sim... uma formiga com catarro! (tosse como quem está com catarro)<br />

ALFREDO<br />

(que não compreen<strong>de</strong>u a alusão) - Com catarro? ... (procurando indagar) - Você saiu cedo<br />

hoje , não foi?<br />

ROSÁLIA<br />

(enigmática) - Saí.<br />

ALFREDO<br />

E on<strong>de</strong> foi?<br />

ROSÁLIA<br />

À missa.<br />

ALFREDO<br />

Á missa! E <strong>de</strong>pois foi levar três cartas <strong>de</strong> Dona <strong>Filomena</strong>...<br />

ROSÁLIA<br />

(colhida <strong>de</strong> sopetão, dominando-se) - Se você já sabia , porque perguntou, hein?<br />

ALFREDO<br />

(fazendo-se indiferente) - Por nada... Perguntei por perguntar... E a quem foi que você as<br />

levou?<br />

ROSÁLIA<br />

Já lhe disse : você é uma formiga com catarro!<br />

ALFREDO<br />

(agastado por não compreen<strong>de</strong>r) - Catarro? Que é que o catarro tem com isto?<br />

ROSÁLIA<br />

(Como que para dizer : "Você não sabe guardar segrêdo") - Você é muito falador... E além<br />

disto, é um espiã!<br />

ALFREDO<br />

Alguma vez an<strong>de</strong>i espionando você?<br />

ROSÁLIA<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

A mim ? Comigo não há nada para espionar! Eu sou límpida como água da fonte! A minha<br />

vida é clara , meu velho! (Como um refrão que já sabe <strong>de</strong> cor, tantas vêzes o repetiu) -<br />

"Nascida em mil oitocentos e setenta, faça a conta dos anos que tenho. Filha <strong>de</strong> pais pobres,<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 23


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

mas honrados. Minha mãe , sofria Trombeta, era lava<strong>de</strong>ira , e meu pai , Polidoro Solimene,<br />

ferreiro. Rosália Solimene , que sou eu, e Vicente Bagliore , que concertava guarda-chuvas,<br />

contraíram legítimas núpcias no dia dois <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> mil oitocentos e Oitenta e sete."<br />

ALFREDO<br />

No dia <strong>de</strong> finados?<br />

ROSÁLIA<br />

Sim! Que é que tem Tínhamos que lhe pedir licença, talvez?<br />

ALFREDO<br />

A mim, não ! (estimulado-a a falar) - Toque para a frente! Adiante!...<br />

ROSÁLIA<br />

Dessa união vieram ao mundo três filhos <strong>de</strong> uma só vez. Quando a parteira foi dar a notícia a<br />

meu marido, que trabalhava no beco logo ao lado, encontrou-o com a cabeça <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma<br />

tina...<br />

ALFREDO<br />

Estava refrescando-a na água...<br />

ROSÁLIA<br />

(repete a frase, frisando-a, para lhe fazer ver a inoportunida<strong>de</strong> do gracejo) -... com a cabeça<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma tina porque tinha tido um colapso, que o levou na flor da ida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta para<br />

melhor! Órfã <strong>de</strong> ambos os sais e com três filhos para criar, fui morar num cortiço do beco <strong>de</strong><br />

São Libório e pus-me a ven<strong>de</strong>r papel <strong>de</strong> matar moscas e bilhetes <strong>de</strong> loteria. O papel <strong>de</strong> matar<br />

moscas, fazia-o eu mesma, e assim, e assim ganhava o suficiente para sustentar a mim e as<br />

crianças. No beco <strong>de</strong> Libório, conheci Dona <strong>Filomena</strong> que, quando era menina, brincava com<br />

os meus três filhos. Depois da maiorida<strong>de</strong>, meus filhos não encontraram trabalho... Um, então<br />

, foi para a Austrália e dois para a América... e nunca mais tive notícias <strong>de</strong>les. Fiquei sozinha,<br />

com o papel <strong>de</strong> matar moscas e os bilhetes <strong>de</strong> loteria. E é melhor não falar mais no assunto,<br />

porque , senão , me sobe o sangue à cabeça!... Se não fosse Dona <strong>Filomena</strong>, que me tomou<br />

consigo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua casa, quando veio morar com o senhor Domingos, eu teria acabado<br />

pedindo esmola na escadaria <strong>de</strong> uma igreja! Boa noite , muito obrigada e acabou-se a fita!...<br />

ALFREDO<br />

(sorrindo ) - Amanhã, novo programa!... Mas a quem foi que você levou as três cartas?<br />

Po<strong>de</strong>-se saber?<br />

ROSÁLIA<br />

Esta incumbência <strong>de</strong>licada que me foi confiada , não posso "<strong>de</strong>sconfiá-la" tornando-a <strong>de</strong><br />

público domínio....<br />

ALFREDO<br />

(Desapontado, com raiva) - Você é mesmo antipática! Olhe só como a malda<strong>de</strong> lhe torceu a<br />

cara toda! Você é feia <strong>de</strong> doer!<br />

ROSÁLIA<br />

(Em tom sobranceia) - Não estou precisando <strong>de</strong> encontrar marido...<br />

ALFREDO<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 24


(esquecendo as ofensas que disse, no tom costumeiro <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>) - Você vai fazer-me o<br />

favor <strong>de</strong> me pregar este botão no paletó... (mostra o botão).<br />

ROSÁLIA<br />

(Encaminhando-se para o quarto <strong>de</strong> dormir <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>, em tom <strong>de</strong> quem toma uma <strong>de</strong>sforra)<br />

- Amanhã, se tiver tempo!<br />

ALFREDO<br />

E precisa também coser-me um elástico nas cuecas.<br />

ROSÁLIA<br />

Compre o elástico e <strong>de</strong>pois eu coso. Com licença! (E sai, muito digna, pela porta da E. B.)<br />

LÚCIA<br />

(entra pela E. F. trazendo uma xícara <strong>de</strong> café apenas pela meta<strong>de</strong>).<br />

(ouve-se tocar a campainha)<br />

LÚCIA<br />

(que estava se encaminhando na direção <strong>de</strong> Alfredo, volta atrás sai pela porta do F. D.)<br />

DOMINGOS<br />

(Após uma pausa, entra pelo F. D. seguido <strong>de</strong> Lúcia. Está pálido, com cara <strong>de</strong> sono. É o café,<br />

isto?<br />

LÚCIA<br />

(lançando um olhar explicativo e resignado para Alfredo que, a chegada <strong>de</strong> Domingos, se pôs<br />

<strong>de</strong> pé) - É , sim, senhor.<br />

DOMINGOS<br />

Dê cá!<br />

LÚCIA<br />

(Dá-lhe a chícara <strong>de</strong> café)<br />

DOMIGOS<br />

(bebe o conteúdo da xícara, quase <strong>de</strong> um só trago) - Eu estava mesmo precisando <strong>de</strong> um gole<br />

<strong>de</strong> café!<br />

ALFREDO<br />

(soturno) - Eu também.<br />

DOMINGOS<br />

(para Lúcia) Traga uma xícara <strong>de</strong> café para êle . (senta-se a mesa , on<strong>de</strong> apoia os cotovelos e<br />

põe o rosto entre as mãos , absorto em pensamentos dolorosos.<br />

LÚCIA<br />

(faz compreen<strong>de</strong>r a Alfredo, por meio <strong>de</strong> gestos, que a outra meta<strong>de</strong> da xícara <strong>de</strong> café, que lhe<br />

vai trazer, já levou água.)<br />

ALFREDO<br />

(que per<strong>de</strong>u a paciência, furioso) - Traga assim mesmo!<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 25


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

LÚCIA<br />

(sai pelo F. D.)<br />

DOMINGOS<br />

Que houve?<br />

ALFREDO<br />

(com um sorriso forçado) - Ela diz que o café está frio e eu disse para trazê-lo assim mesmo...<br />

DOMINGOS<br />

Ela vai aquecê-lo e <strong>de</strong>pois traz. (voltando ao que o preocupa) Você esteve no escritório do<br />

advogado?<br />

ALFREDO<br />

Estive sim, senhor.<br />

DOMINGOS<br />

Quando é que ele vem?<br />

ALFREDO<br />

Assim que tiver tempo. Mas, certamente, ainda hoje.<br />

LÚCIA<br />

(Vem do F. D. E. trazendo outra xícara <strong>de</strong> café. Aproxima-se <strong>de</strong> Alfredo e lhe oferece,<br />

olhando para êle ironicamente. Em seguida, sorrindo, sai pelo F. E.)<br />

ALFREDO<br />

(<strong>de</strong>sanimadíssimo, está para sorver o café)<br />

DOMINGOS<br />

(Completando em voz alta o seu pensamento, apreensivo) - ... e se não for bom?<br />

ALFREDO<br />

(Julgando que êle está se referindo ao café, resignado) - Que fazer, senhor Domingos? Não<br />

tomarei. Quando eu <strong>de</strong>scer, irei tomá-lo no café da esquina.<br />

DOMINGOS<br />

(<strong>de</strong>snorteado) - O que?<br />

ALFREDO<br />

(muito sério) - O café.<br />

DOMINGOS<br />

Bolas! Que me importa o seu café! Eu estava dizendo: "e se não for o que eu pretendo<br />

fazer...", no caso do advogado dizer que não se po<strong>de</strong> fazer nada...<br />

ALFREDO<br />

(Após ter sorvido um gole <strong>de</strong> café, com careta <strong>de</strong> nojo) Não é possível! (Refere-se à porcaria<br />

<strong>de</strong> café que está bebendo)<br />

DOMINGOS<br />

Que é que você enten<strong>de</strong> disto?<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 26


ALFREDO<br />

(com ar <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>dor) - Como não entendo? É uma coisa asquerosa!<br />

DOMINGOS<br />

Isso mesmo! Uma coisa asquerosa! Ela fez mal... Não soube fazer direito...<br />

ALFREDO<br />

Nunca soube , senhor Domingos!<br />

DOMINGOS<br />

Mas eu recorro aos tribunais, eu apelo, embargo, vou até ao Supremo!<br />

ALFREDO<br />

(assombrado) - Senhor Domingos, pelo amor <strong>de</strong> Deus! Só por causa <strong>de</strong> um gole <strong>de</strong> café?<br />

DOMINGOS<br />

Mas pare <strong>de</strong> uma vez com essa conversa <strong>de</strong> café! Eu estou falando do meu caso!...<br />

ALFREDO<br />

(que ainda não compreen<strong>de</strong>m bem. Vagamente) - Pois é... (Afinal, compreen<strong>de</strong>u o mal<br />

entendido e lhe acha muita graça) - Ah! É muito boa, sim, senhor ! (ri) - Ótima!... (Em<br />

seguida, receando a ira <strong>de</strong> Domingos, entra imediatamente a compenetrar-se do estado <strong>de</strong><br />

espírito do seu patrão) - Pois é... Com a breca!...<br />

DOMINGOS<br />

(a quem não escapou a metamorfose espiritual do seu interlocutor, enternece-se resignado, o<br />

aceita a incompreensão <strong>de</strong> Alfredo) - Mas para que estou falando com você? Do passado,<br />

ainda vá ... mas , do presente ... é inútil... não adianta!... (olha para ele como se lhe tivesse<br />

sido apresentado nesse mesmo momento. Sua voz adquire um tom <strong>de</strong> consôlo) - Veja só ... ao<br />

que você está reduzido, Alfredo Amoroso! Cara balofa... cabelo branco... olhar embaçado... já<br />

meio caduco!...<br />

ALFREDO<br />

(admite tudo, mesmo porque teria a coragem <strong>de</strong> contradizer o seu patrão. Como que resignado<br />

antes a fatalida<strong>de</strong>) - É isto mesmo!<br />

DOMINGOS<br />

(consi<strong>de</strong>rando que não fundo, êle mesmo sofreu transformações. Evocando) - Você se lembra<br />

<strong>de</strong> Dom Domingo Soriano... "Dom Mimi", como me chamavam? Lembra-se?<br />

ALFREDO<br />

(Apanhando <strong>de</strong> surpresa enquanto refletia. Falsamente interessado) - Não, senhor... Dom<br />

Mimi morreu?<br />

DOMINGOS<br />

(Resignado, amargo) - Morreu! Você acertou! Dom Mimi Soriano morreu!<br />

ALFREDO<br />

(compreen<strong>de</strong>ndo logo) - Ah!... O senhor falava <strong>de</strong> Dom Mimi Soriano, do senhor mesmo!...<br />

(sério) - Com a breca!<br />

DOMINGOS<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 27


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

(Revendo a sua própria imagem juvenil e <strong>de</strong>screvendo-a) - Bigodinho preto... magro como um<br />

caniço ... que transformava a noite em dia... que não sabia o que era dormir?<br />

ALFREDO<br />

(bocejando) - Ora... logo a mim é que o senhor diz isso?<br />

DOMINGOS<br />

Você se lembra daquela rapariga... aquela romana... a Jacinta? Que pequena estupenda!<br />

"Fujamos juntos"!... Ainda parece-me ouvir a sua voz!... E da mulher do veterinário?...<br />

ALFREDO<br />

O senhor me faz lembrar <strong>de</strong> cada coisa!... Que mulher!... Ela tinha uma cunhada, uma<br />

manicura, a quem manicura, a quem eu também an<strong>de</strong>i dando em cima ... mas havia<br />

incompatibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> caracteres...<br />

DOMINGOS<br />

As mais lindas carruagens eram as minhas!... Naquele tempo ainda havia a alameda para o<br />

trote!...<br />

ALFREDO<br />

O senhor parecia um figurino... Sempre no rigor da moda!...<br />

DOMINGOS<br />

Beige e cinzento... eram as minhas côres preferidas!... Chapéu côco... o chicote na mão... E os<br />

mais bonitos cavalos eram os meus! Você se lembra do "Ôlho <strong>de</strong> prata"?<br />

ALFREDO<br />

Como não haveria <strong>de</strong> lembrar?... (saudoso) - "Ôlho <strong>de</strong> prata"...<br />

E a "Tordinha" ?... Que gran<strong>de</strong> égua!... Tinha um trazeiro que parecia uma lua cheia!... Foi<br />

pelo amor que eu tinha a essa égua que me <strong>de</strong>scui<strong>de</strong>i da manicura... Tive uma gran<strong>de</strong> dor,<br />

quando o senhor a ven<strong>de</strong>u!<br />

DOMINGOS<br />

(Continuando a evocar a sua vida passada) - Paris... Londres... as corridas <strong>de</strong> cavalos!... Eu<br />

me julgava uma divinda<strong>de</strong> na terra! Sentia-me senhor <strong>de</strong> tudo... com direito a fazer tudo o que<br />

bem enten<strong>de</strong>sse, sem limites, sem dar satisfação a ninguém .... porque me parecia que<br />

ninguém, nem Deus (animando-se) po<strong>de</strong>ria tirar-me o meu lugar no mundo! Eu me sentia o<br />

rei das montanhas, do mar... o dono da minha própria vida!... E agora? Agora estou um<br />

homem acabado.. sem vonta<strong>de</strong>... sem entusiasmo ... sem paixões ... e se ainda faço alguma<br />

coisa é somente para procurar <strong>de</strong>monstrar a mim mesmo no que tudo isso não é verda<strong>de</strong> ...<br />

que ainda sou um homem forte... que ainda posso levar <strong>de</strong> vencida os homens, as coisas , a<br />

morte ... e acabo acreditando estonteio-me , luto!.... (Resoluto) - É preciso lutar! Domingos<br />

Soriano não se <strong>de</strong>ixa dobrar ! (Retomando seu <strong>de</strong>cidido) - Que foi que aconteceu aqui <strong>de</strong>ntro?<br />

Você sabe <strong>de</strong> alguma coisa?<br />

ALFREDO<br />

(reticente) - Não consegui apurar nada.... Escon<strong>de</strong>m-me tudo... Dona <strong>Filomena</strong>, o senhor bem<br />

sabe, <strong>de</strong>testa-me... Por sinal que eu gostaria <strong>de</strong> saber o que foi que eu lhe fiz... Rosália,<br />

conforme Lúcia me disse , e conforme ela própria me confirmou, levou hoje três cartas<br />

urgentes, a mandado <strong>de</strong> Dona <strong>Filomena</strong>.<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 28


DOMINGOS<br />

(que pelo número das cartas farejou do que se po<strong>de</strong> tratar) - A quem?<br />

FILOMENA<br />

(Vindo do seu quarto, em trajo caseiro, um pouco em <strong>de</strong>salinho, acompanha <strong>de</strong> Rosália, que<br />

traz lençóis e fronhas limpas nas duas mãos, nota a presença <strong>de</strong> Domingos e Alfredo, mas<br />

finge que não os vê. Ouviu as últimas palavras <strong>de</strong>les, mas simula não as ter ouvido. Vai<br />

direito ao que ia fazer, e chama na direção da porta do F.) - Lúcia!... (Para Rosália) Dê-me as<br />

chaves...<br />

ROSÁLIA<br />

(Entrega-lhe um molho <strong>de</strong> chave) - Cá estão elas.<br />

FILOMENA<br />

(Guarda as chaves no bolso. Impaciente, aludindo a Lúcia) - Essa rapariga <strong>de</strong>mora tanto a vir!<br />

(chamando num tom <strong>de</strong> voz mais alta) - Lúcia!<br />

LÚCIA<br />

(Entrando pelo F. E. , atenciosa) - Que é, Dona <strong>Filomena</strong>?<br />

FILOMENA<br />

(Que não quer conversa) - Tome êstes lençóis ... (Rosália entrega a Lúcia os lençóis e as<br />

fronhas) - Na saleta perto do escritório há um sofá... Você vai transformá-lo em cama...<br />

LÚCIA<br />

Sim, senhora. (Vai a sair)<br />

FILOMENA<br />

(Retendo-a) - Espere. Eu preciso do seu quarto, Lúcia. Êstes são os lenções limpos para você<br />

pôr no lugar dos seus ... Você vai arranjar-se com a cama <strong>de</strong> vento, na cozinha...<br />

LÚCIA<br />

(<strong>de</strong>sapontada) - Está bem... mas as minhas coisas? Tenho <strong>de</strong> tirar também as minhas coisas?<br />

FILOMENA<br />

Eu não lhe disse que estou precisando do seu quarto?<br />

LÚCIA<br />

E on<strong>de</strong> ponho minhas coisas?<br />

FILOMENA<br />

Po<strong>de</strong> usar o pequeno armário do corredor.<br />

LÚCIA<br />

Está bem. (sai pelo F. D.)<br />

FILOMENA<br />

(Fingindo que somente agora viu Domingos) - Ah! Estavas aí?<br />

DOMINGOS<br />

(friamente) - Po<strong>de</strong>-se saber o que vêm a ser essas mudanças na minha casa?<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 29


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

FILOMENA<br />

Claro que po<strong>de</strong>... Entre marido e mulher não <strong>de</strong>vem existir segredos... Estou precisando <strong>de</strong><br />

mais dois quantos <strong>de</strong> dormir.<br />

DOMINGOS<br />

Para quem?<br />

FILOMENA<br />

(Muito precisa) - Para os meus filhos! Deveriam ser três , mas já que um <strong>de</strong>les é casado e tem<br />

também quatro crianças... é melhor que fique na sua própria casa!...<br />

DOMINGOS<br />

Ah!... Existem também quatro crianças ?... (em tom <strong>de</strong> provocação) E como se chama toda<br />

essa tribo , que guardavas escondida?<br />

FILOMENA<br />

(muito segura <strong>de</strong> si) - Por enquanto, tem o meu nome. Mas adiante , passará a ter o teu.<br />

DOMINGOS<br />

Sem o meu consentimento, acho que não.<br />

FILOMENA<br />

Vais dá-lo, Domingos... (quase em todo <strong>de</strong> chantagem) - Vais dar o teu consentimento ... ( sai<br />

pela porta E. B.)<br />

DOMINGOS<br />

(Que já mão agüenta mais, berra atrás <strong>de</strong>la, aludindo aos filhos) - Eu os ponho daqui para<br />

fora, aos ponta-pés!... Ouviste? Ponho-os todos no olho da rua!<br />

FILOMENA<br />

(Do lado <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, irônico) - Feche a porta<br />

ROSÁLIA<br />

(fecha a porta na cara <strong>de</strong> Domingos)<br />

LÚCIA<br />

(Entrando pelo F. D. , dirigindo-se para Domingos, num tom reservado) Senhor Domingos...<br />

está ai fora a senhorita Diana e mais um cavalheiro<br />

DOMINGOS<br />

(interessado) - Man<strong>de</strong> entrar.<br />

LÚCIA<br />

(que, evi<strong>de</strong>ntemente, insistiu para Diana entrar, certa <strong>de</strong> fazer coisa agradável ao patrão) - Não<br />

quer entrar ... Eu insisti ... mas ela pediu para o senhor chegar um instante lá fora... Está com<br />

medo <strong>de</strong> Dona <strong>Filomena</strong>.<br />

DOMINGOS<br />

(exasperado) - Vejam só... (Referindo-se a Diana e afim <strong>de</strong> tranquilizá-la) - Diga que po<strong>de</strong><br />

entrar sem receio. Estou eu aqui!...<br />

LÚCIA<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 30


(sai pelo F. D.)<br />

ALFREDO<br />

(apontando para a porta on<strong>de</strong> supõe estar <strong>Filomena</strong>) - Aquela, se a vir aqui... (Acompanha as<br />

palavras com o gesto , como que para dizer: "dá-lhe uma surra") espanca-a...<br />

DOMINGOS<br />

(gritando, <strong>de</strong> medo que possa ser ouvido, ao quarto <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>) - Isso eu queria ver!...<br />

Alfredo!... Chegou o momento <strong>de</strong>cisivo!... O dono aqui <strong>de</strong>ntro, sou eu! Fiquem sabendo <strong>de</strong><br />

uma vez por todas.<br />

LÚCIA<br />

(Voltando do F. D. como que para <strong>de</strong>sculpar-se) - Ela não quer entrar... Disse que está com<br />

nervos irritados e que não se responsabiliza pelo que po<strong>de</strong>ria fazer...<br />

DOMINGOS<br />

Mas quem é que está com ela?<br />

LÚCIA<br />

Um cavalheiro... Ela o chamou <strong>de</strong> advogado... mas tenho a impressão <strong>de</strong> que ele também está<br />

com medo...<br />

DOMINGOS<br />

Que exagero! Seremos três homens aqui...<br />

ALFREDO<br />

(sincero) - Não! Não conte comigo, patrão , porque no estado a que estou reduzido hoje... Não<br />

valho um vintém... (Decidido) - Como o senhor e êles vão ter <strong>de</strong> conversar juntos... é melhor<br />

eu ir refrescar a cara na cozinha... se precisarem <strong>de</strong> mim, é só chamar ... (Sem esperar pela<br />

resposta, sai pelo F. D.)<br />

LÚCIA<br />

Então ? O senhor quer que os man<strong>de</strong> entrar , ou não?<br />

DOMINGOS<br />

Eu vou até lá...<br />

LÚCIA<br />

(sai pelo F. E.)<br />

DOMINGOS<br />

(sai pelo F. D. para voltar , em seguida, introduzindo Diana e o Doutor Nocela, advogado.<br />

Com insistência) - Mas não diga nem <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira, doutor.. Esta casa é somente minha.. (e<br />

entra na frente)<br />

DIANA<br />

(Que ficou no limiar da porta, tendo atrás <strong>de</strong> si o advogado. Com evi<strong>de</strong>nte nervosismo) - Por<br />

favor, Domingos! Após a cena <strong>de</strong> ontem à noite... não tenho a menor intenção <strong>de</strong><br />

encontrar-me, cara a cara, com essa mulher!<br />

DOMINGOS<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

(Tranqüilizando-a) - Por favor, Diana! Não me faça ficar vexado... Entre!... Não tenha medo!<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 31


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

DIANA<br />

Medo, eu?... Nem por sombra! Não quero é chegar a certos extremos...<br />

DOMINGOS<br />

Não é caso para tanto. Eu estou aqui...<br />

DIANA<br />

Ontem também o senhor estava aqui...<br />

DOMINGOS<br />

Sim... mas o que se <strong>de</strong>u foi tão <strong>de</strong> repente... tão <strong>de</strong> imprevisto...Mas, hoje po<strong>de</strong> ficar<br />

sossegada... Nada tem a receiar... Entre... Tenha a bonda<strong>de</strong>... Sente-se , doutor!<br />

DIANA<br />

(Avançada alguns passos) - On<strong>de</strong> é que ela está?<br />

DOMINGOS<br />

Repito-lhe! Não se preocupe! Sente-se , por favor! (oferece ca<strong>de</strong>iras e todos sentam-se perto<br />

da mesa do centro. Diana à esquerda , o advogado no centro e Domingos à direita , em frente<br />

<strong>de</strong> Diana que, sempre muito <strong>de</strong>sassossegado, não per<strong>de</strong> <strong>de</strong> vista a porta do quarto <strong>de</strong><br />

<strong>Filomena</strong>) - Então?<br />

NOCELA<br />

(É um homem insignificante, orçando pelos 40 anos. Veste-se com uma certa elegância<br />

sobria. Encontra-se alí, para falar do "caso Soriano", só porque a isso foi arrastado por Diana.<br />

Nota-se, com efeito, na sua voz um certo <strong>de</strong>sinteresse) - Eu moro na mesma pensão em que<br />

mora a senhorita, e lá nos conhecemos há algum tempo...<br />

DIANA<br />

O doutor po<strong>de</strong> dizer quem sou e a vida que levo!...<br />

NOCELA<br />

(Que não quer imiscuir-se em tal assunto) - Vemo-nos à noite, à mesa... Eu, na pensão, quase<br />

que nunca estou... O senhor compreen<strong>de</strong>... O fórum, o escritório... Além disso, também não<br />

gosto <strong>de</strong> meter-me na vida dos outros... Que quer? É uma questão <strong>de</strong> hábito...<br />

DIANA<br />

Destruição, Domingos... Eu prefiro sentar-me no seu lugar... Incomoda por isso?<br />

DOMINGOS<br />

Ora essa!... (Trocam <strong>de</strong> lugar)<br />

DIANA<br />

E justamente à mesa , ontem à noite, eu contei o seu caso com <strong>Filomena</strong>...<br />

NOCELA<br />

É verda<strong>de</strong>... Por sinal que <strong>de</strong>mos umas boas gargalhadas!...<br />

DOMINGOS<br />

(olha-o significativamente)<br />

DIANA<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 32


Oh! Eu, absolutamente, não ri.<br />

NOCELA<br />

(Agora, é ele que olha significativamente para ela)<br />

DOMINGOS<br />

(aludindo a Diana) - Esta senhorita esteve aqui porque eu a fiz fingir-se <strong>de</strong> enfermeira...<br />

DIANA<br />

Fez-me fingir? ... Absolutamente! Está muito enganado! Eu sou enfermeira ... <strong>de</strong> fato! Com<br />

diploma e tudo! Nunca lhe disse isso?<br />

DOMINGOS<br />

Não, realmente...<br />

DIANA<br />

Afinal... pensando bem, para que lhe haveria <strong>de</strong> dizer?... (pausa) - Mas, continuando... Eu<br />

contei o seu caso, o estado <strong>de</strong> espírito em que se encontra e a sua preocupação por ter ficado<br />

amarrado a uma mulher para sempre, sem nunca ter <strong>de</strong>sejado semelhante coisa... e aqui o<br />

advogado explicou-me <strong>de</strong> um modo categórico...<br />

(Toque <strong>de</strong> campainha no interior)<br />

DOMINGOS<br />

(preocupado) - Desculpem... Incomoda-os se eu lhes pedir <strong>de</strong> passarem para o meu<br />

escritório?... Tocaram a campainha...<br />

LÚCIA<br />

(Atravessa a fundo , da E. para a D.)<br />

DIANA<br />

(levantando-se) Oh! Não! Talvez até seja preferível...<br />

NOCELA<br />

(também se levanta)<br />

DOMINGOS<br />

(prece<strong>de</strong>-os, indicando o "escritório") - Venham para aqui.<br />

NOCELA<br />

Obrigado. ( E é o primeiro a sair)<br />

DIANA<br />

(segue atrás do advogado e, por isso, dirige-se com maior intimida<strong>de</strong> para Domingos) - O<br />

senhor vai ver... (Em seguida, acariciando-lhe a face) - Estás um tanto pálido... (sai)<br />

DOMINGOS<br />

(segue-a)<br />

LÚCIA<br />

(introduzindo Umberto) - Tenha a bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> entrar...<br />

UMBERTO<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 33


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

(É um jovem alto, sólido. Está vestido mo<strong>de</strong>sta mas digntmente. Aspecto sério. É um rapaz<br />

que gosta <strong>de</strong> escutar. Seu modo <strong>de</strong> falar, seu olhar agudo e observador, infun<strong>de</strong>m um certo<br />

acanhamento. Entrando) - Obrigado. (Abre um ca<strong>de</strong>rno e com um lápis começa a fazer umas<br />

emendas)<br />

LÚCIA<br />

Sente-se , por favor... Não sei <strong>de</strong> Dona <strong>Filomena</strong> vai po<strong>de</strong>r vir já...<br />

UMBERTO<br />

Obrigado. Com gran<strong>de</strong> prazer. (Senta-se à E. perto da varanda. (Toque <strong>de</strong> campainha interior)<br />

LÚCIA<br />

(que ia para o quarto <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong> , volta atrás e sai pelo F. D. Após uma curta pausa, torna a<br />

entrar introduzindo Ricardo) - Entre , faz favor...<br />

RICARDO<br />

(Simpático, ligeiro , ativo, olhos pretos e vivos. Traja com elegância um ponto vistosa. Ao<br />

entrar , olha para o relógio-pulseira)<br />

LUCIA<br />

(faz menção <strong>de</strong> ir para o quarto <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong> a E. B.)<br />

RICARDO<br />

Escute...<br />

LÚCIA<br />

(aproxima-se <strong>de</strong>le)<br />

RICARDO<br />

Há quanto tempo que você trabalha aqui?<br />

LÚCIA<br />

Há um ano e meio.<br />

RICARDO<br />

(Galante, com simplicida<strong>de</strong>) - Sabe que é um pedaço <strong>de</strong> pequena?<br />

LÚCIA<br />

(lisonjeada) - Se não me estragar crescendo...<br />

RICARDO<br />

Porque não vem trabalhar na minha loja?<br />

LÚCIA<br />

O senhor tem uma loja?<br />

RICARDO<br />

Rua Toledo número setenta e quatro... Faço-lhe as camisas <strong>de</strong> graças...<br />

LÚCIA<br />

É? Será que quer que eu use camisas <strong>de</strong> homem? Deixe <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>iras!<br />

RICARDO<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 34


Pois é... Eu sirvo homens e mulheres... Aos homens eu ponho camisas, às mulheres como<br />

você, eu as tiro! (Assim dizendo abraça-a)<br />

LÚCIA<br />

(<strong>de</strong>svencilhando-se, ofendida) - Devagar!... (Liberta-se) - O senhor está doido!... Quem é que<br />

julga que eu sou? Eu digo à Dona <strong>Filomena</strong>! (aludindo a Umberto, que viu tudo, mas não <strong>de</strong>u<br />

a menor importância ao caso) - Não vê que há mais gente aqui? (Toque <strong>de</strong> campainha<br />

interior)<br />

LÚCIA<br />

(encaminha-se para o F. D.)<br />

RICARDO<br />

(vendo Umberto pela primeira vez, achando graça) - É mesmo... Não tinha visto...<br />

LÚCIA<br />

(ressentida) - O senhor não sabe ver sequer as moças sérias e direitas, que não dão confiança...<br />

RICARDO<br />

(Insinuante) - Então ? Você promete que irá à minha loja?<br />

LÚCIA<br />

(fazendo-se <strong>de</strong> ofendida) - Numero setenta e quatro? (Olha para ele com admiração) - Logo na<br />

Rua Toledo... A rua chic! ( A um sinal <strong>de</strong> Ricardo que indica que a estará esperando) - Está<br />

bem... Eu irei... (Saí pelo F. D. lançando um <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro sorriso para Ricardo).<br />

RICARDO<br />

(passeia pela sala e percebendo que Umberto o fita, fala um pouco vexa<strong>de</strong>, para se justificar) -<br />

É bem bonitinhas...<br />

UMBERTO<br />

E que e que eu tenho com isto?<br />

RICARDO<br />

Ora essa! Será que o senhor é um padre?<br />

UMBERTO<br />

(não faz caso e continua o seu trabalho <strong>de</strong> corrigir o ca<strong>de</strong>rno)<br />

LÚCIA<br />

(entrando pelo F. D. e introduzindo Miguel - Vá entrando!<br />

MIGUEL<br />

(De macacão azul, traz na mão a bolsa das ferramentas do seu ofício, que é o <strong>de</strong> funileiro.<br />

Goza <strong>de</strong> boa saú<strong>de</strong>. É corado e gorducho. Ao entrar tira o boné) - Que foi que aconteceu,<br />

Lúcia? A torneira está vazando outra vez? sol<strong>de</strong>i-a ainda não há oito dias...<br />

LUCIA<br />

Não... A torneira está funcionado bem.<br />

MIGUEL<br />

Então , que é que não funciona?<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 35


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

LUCIA<br />

Não se preocupe que não há nada vazando... Espere, que eu vou já chamar Dona <strong>Filomena</strong>...<br />

(sai pela E. B.)<br />

MIGUEL<br />

(Respeitosamente, para Ricardo) - Boa tar<strong>de</strong>!...<br />

RICARDO<br />

(respon<strong>de</strong> à saudação com um leve sinal <strong>de</strong> cabeça) -<br />

MIGUEL<br />

É uma massada! Deixei a oficina sem ninguém para tomar conta... (tira do bolso uma ponta <strong>de</strong><br />

cigarro já fumado) - O senhor tem fósforos?<br />

RICARDO<br />

(com um ar <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong>) - Não tenho.<br />

MIGUEL<br />

Nesse caso, o único jeito é mesmo não fumar ... (Pausa) - O senhor é parente da casa?<br />

RICARDO<br />

E você é <strong>de</strong>legado <strong>de</strong> polícia?<br />

MIGUEL<br />

Que quer dizer isso?<br />

RICARDO<br />

Estou vendo que você gosta muito <strong>de</strong> conversar... eu , não gosto!<br />

MIGUEL<br />

Em todo o caso, um pouco <strong>de</strong> boas maneiras não fazem mal a ninguém... O senhor parece que<br />

tem o rei na barriga...<br />

UMBERTO<br />

(intervindo) - Não é rei na barriga , não ... Maus hábitos ... Isso é o que ele têm!<br />

RICARDO<br />

Como? Que é que o senhor está dizendo?<br />

UMBERTO<br />

De certo! O senhor mal entrou , ainda há pouco, nem ao menos pensou que está numa casa<br />

que não é a sua ... Fui logo se "atracando" com a criada... Depois, me vê , e nem liga a<br />

mínima!... Agora , começa a tratar mal êsse pobre diabo...<br />

MIGUEL<br />

(ressentido, para Umberto) - Como? Acha, então , que eu sou o tipo <strong>de</strong> quem se <strong>de</strong>ixa tratar<br />

mal... não é ? Esta é do outro mundo!... A gente sai <strong>de</strong> casa para cuidar da vida... (para<br />

Ricardo) - A sua sorte é que estamos aqui <strong>de</strong>ntro!<br />

RICARDO<br />

Olhe... Você já me amolou bastante. Se não pára com isso , acaba é levando uns bofetões aqui<br />

mesmo!<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 36


MIGUEL<br />

(Empali<strong>de</strong>ce <strong>de</strong> raiva. Atira no chão a bolsa das ferramentas e aproxima-se lentamente <strong>de</strong><br />

Ricardo, ameaçador) - Experimente!<br />

RICARDO<br />

(Vai ao seu encontro com a mesma calma aparente) Pensa, talvez, que eu tenho medo <strong>de</strong><br />

você?<br />

UMBERTO<br />

(aproximou-se dos dois para intervir e impedir qualquer iniciativa da parte <strong>de</strong>les)<br />

MIGUEL<br />

(com raiva) - Este patife... (com um gesto rápido vai dar uma bofetada em Ricardo , mas este<br />

evita o golpe, graça à intervenção <strong>de</strong> Umberto) - Não se meta! Desafaste!...<br />

(Começa a briga entre Miguel e Ricardo, na qual se acha envolvido Umberto. Voam<br />

ponta-pés e bofetões, que não alcançam nunca o cavalo. Os três jovens brigam, murmurando<br />

entre <strong>de</strong>ntes palavras <strong>de</strong> raiva e insultos)<br />

FILOMENA<br />

(Entrando pela E. B. intervem em tom enérgico) - Que barulheira é esta?<br />

ROSALIA<br />

(que a seguiu, pára atrás <strong>de</strong>la)<br />

(À voz <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>, os três jovens suspen<strong>de</strong>m, incontinente, a briga e tomam uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

indiferença, enfileirando-se diante <strong>de</strong>la)<br />

FILOMENA<br />

Mas que é que estão pensando? Que estão no meio da rua?<br />

UMBERTO<br />

(Tocando o nariz , que lhe doi) - Eu estava apartando!<br />

RICARDO<br />

Eu também!<br />

MIGUEL<br />

Também eu!<br />

FILOMENA<br />

E quem é que estava brigando?<br />

OS TRÊS<br />

(Em coro) - Eu não estava!...<br />

FILOMENA<br />

(Censurando) - Que in<strong>de</strong>cência ! Um contra o outro! (Pausa. <strong>Filomena</strong> volta à sua atitu<strong>de</strong><br />

costumeira) - Bem rapazes... (não encontra maneira <strong>de</strong> começar o que quer dizer) - Como vão<br />

os negócios?<br />

MIGUEL<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Vão indo, graças a Deus!<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 37


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

FILOMENA<br />

(Para Miguel) - E as crianças?<br />

MIGUEL<br />

Bem, obrigado. Na semana passada, a do meio, teve um pouco <strong>de</strong> febre. Mas já sarou. Tinha<br />

comido dois quilos <strong>de</strong> uvas, às escondidas da mãe. Eu não estava em casa. Ficou com a<br />

barriga inchava , dura como um tambor... A senhora sabe, quatro crianças... uma ou outra dá<br />

sempre apoquentações... Por sorte que todas as quatro gostam <strong>de</strong> óleo <strong>de</strong> rícino... Imagine que<br />

quando dou purgante a uma <strong>de</strong>las, as outras três botam a boca no mundo... E se não lhes <strong>de</strong>r<br />

também o purgante, não param <strong>de</strong> chorar.. Depois põem-se todas as quatro em fila, em cima<br />

dos ... A senhora sabe... Crianças são assim mesmo...<br />

UMBERTO<br />

Minha senhora ... Eu recebi o seu bilhete . Seu nome, "sic et simpliciter", não me dizia nada<br />

<strong>de</strong> especial... Por felicida<strong>de</strong>, havia o en<strong>de</strong>reço. Foi, então, que me lembrei que costumo<br />

encontrar essa senhora <strong>Filomena</strong> quase todas as tar<strong>de</strong>s, na hora que vou para o jornal e que,<br />

por sinal tive uma vez o prazer <strong>de</strong> acompanhá-la até aqui, porque não agüentava mais<br />

caminhar, por causa <strong>de</strong> um pé que lhe doía... Assim, reconstrui...<br />

FILOMENA<br />

É isso mesmo! Eu estava com um pé machucado.<br />

RICARDO<br />

(Mais explícito) - Afinal, <strong>de</strong> que se trata, minha senhora?<br />

FILOMENA<br />

(Para Ricardo) - A loja vai indo bem?<br />

RICARDO<br />

E porque <strong>de</strong>veria ir mal? Verda<strong>de</strong> é que se todos os meus fregueses fossem como a senhora,<br />

no fim <strong>de</strong> um mês eu acabaria fechando a loja... Quando a senhora entra lá é como se <strong>de</strong>ssem<br />

uma bordoada na minha cabeça!... Manda tirar das prateleiras todos os rolos <strong>de</strong> fazendas...<br />

"Esta não serve! Aquela também não ! Vou pensar melhor no assunto! ... "E acaba <strong>de</strong>ixando a<br />

loja <strong>de</strong> tal jeito, que os empregados não chegam para arrumá-la outra vez!<br />

FILOMENA<br />

Fique <strong>de</strong>scansado que agora em diante não o incomodarei mais.<br />

RICARDO<br />

Não é isso o que eu quero dizer... A senhora manda... mas, cada vez que lá aparece , é uma<br />

camisa <strong>de</strong> suor que eu encharco!...<br />

FILOMENA<br />

Bem... bem... , Man<strong>de</strong>i-os chamar por causa <strong>de</strong> uma coisa muito séria. Se fazem o favor <strong>de</strong><br />

entrar um instante aqui... (Agora para a porta da E. B.) ficaremos mais à vonta<strong>de</strong>...<br />

DOMINGOS<br />

(Entra vindo <strong>de</strong> "escritório" , seguido do advogado. Está novamente falando com energia ) -<br />

Deixa disso, <strong>Filomena</strong> , não compliques ainda mais a tua situação... (Para o advogado) - Eu,<br />

sem ser advogados já tinha dito antes do senhor. Estava tudo claro!<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 38


FILOMENA<br />

(Olha para ele com ar <strong>de</strong> dúvida)<br />

DOMINGOS<br />

Aqui está o Doutor Nocela , advogado , que po<strong>de</strong> dar-te todos os esclarecimentos que<br />

quiseres. (Para os três jovens) - A senhora enganou-se. Incomodou-os à toa... Pedimos-lhe<br />

muitas <strong>de</strong>sculpas e se quiserem se retirar...<br />

FILOMENA<br />

(Fazendo parar os três rapazes , que iam sair) - Um momento! ... Eu não me enganei, coisa<br />

alguma! Fui eu que os man<strong>de</strong>i chamar! Que é que tu tens com isso?<br />

DOMINGOS<br />

(com intenção) - Queres obrigar-me a falar diante <strong>de</strong> estranhos?<br />

FILOMENA<br />

(Compreen<strong>de</strong>u que aconteceu qualquer coisa muito séria , que <strong>de</strong>ve ter modificado<br />

inteiramente o curso dos acontecimentos. Pelo menos é o que se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong> do tom calmo da<br />

voz <strong>de</strong> Domingos. Volta-se para os três jovens) - Desculpem... Cinco minutos apenas...<br />

Querem fazer o favor <strong>de</strong> esperar na varanda?<br />

(Miguel e Umberto encaminham-se para a varanda, um pouco na dúvida).<br />

RICARDO<br />

(Olhando o relógio-pulseira) - Desculpe, minha senhora, mas acho que aqui se está abusando<br />

da cortesia alheia... Eu tenho que fazer!<br />

FILOMENA<br />

(Per<strong>de</strong>ndo as estribeiras) - Mas eu já lhe disse que se trata <strong>de</strong> uma coisa séria, rapaz!<br />

(Tratando-o como a um rapazola, num tom que não admite discussão) - Vamos!... Vá para a<br />

varanda! Se os outros po<strong>de</strong>m esperar, você vai esperar também!<br />

RICARDO<br />

(<strong>de</strong>sconsertado com o tom <strong>de</strong>cidido) - Está bem!... (Segue os outros dois, mas dando mostras<br />

<strong>de</strong> contrarieda<strong>de</strong>).<br />

FILOMENA<br />

(Para Rosália) - Dê-lhes uma xícara <strong>de</strong> café.<br />

ROSÁLIA<br />

Sim... Vou já fazer... (Para os três) Fiquem à vonta<strong>de</strong>... (Indica um ponto) - Vou fazer-lhes um<br />

bom cafezinho. (Sai pelo F. E. enquanto os três jovens saem para a varanda)<br />

FILOMENA<br />

(Para Domingos) - Então , que há?<br />

DOMINGOS<br />

(Indiferente) - Este senhor é um advogado... Fala com êle!<br />

FILOMENA<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

(Impaciente) - Esse negócio <strong>de</strong> Leis, eu não entendo nada. Em todo o caso... <strong>de</strong> que se trata?<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 39


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

NOCELA<br />

Á suas or<strong>de</strong>ns, minha senhora. Repito que estou completamente alheio a isso tudo...<br />

FILOMENA<br />

E então , que veio fazer aqui?<br />

NOCELA<br />

Não é bem isso... Eu disse que estou alheio, porque este cavalheiro não é meu cliente, nem<br />

tampouco mandou chamar...<br />

FILOMENA<br />

Veio por sua própria iniciativa?<br />

NOCELA<br />

Oh! Não, senhora!...<br />

FILOMENA<br />

(Irônica) - Então, porque não trata <strong>de</strong> ir-se embora?<br />

NOCELA<br />

Mas, minha senhora....<br />

DOMINGOS<br />

(Para <strong>Filomena</strong>) - Queres ou não <strong>de</strong>ixá-lo falar?<br />

NOCELA<br />

Quem me falou do caso foi a senhorita... (Volta-se e não vendo Diana atrás <strong>de</strong> si, olha na<br />

direção do "escritório" ) - On<strong>de</strong> é que ela está?<br />

DOMINGOS<br />

(Impaciente por fazer a discussão tomar o seu verda<strong>de</strong>iro rumo) - Doutor eu... ela ... não<br />

importa! Quem o mandou chamar não a menor importância! Vamos ao assunto!<br />

FILOMENA<br />

(Aludindo a Diana, com um sarcasmo ferino, mas procurando se refreiar) - Ela está lá <strong>de</strong>ntro,<br />

não é ? Não tem coragem <strong>de</strong> vir para cá, hein? Continue, doutor!<br />

NOCELA<br />

Para o caso que êle... que ela ... enfim... para o fato em si... para o que acontecem, há o artigo<br />

101: Casamento em perigo iminente <strong>de</strong> vida... "No caso <strong>de</strong> perigo iminente <strong>de</strong> vida... etcetera,<br />

etcetera" explica todas as modalida<strong>de</strong>s... Mas iminente perigo <strong>de</strong> vida não havia, pois a sua ,<br />

segunda a versão <strong>de</strong>ste senhor, foi um simulação...<br />

DOMINGOS<br />

(Imediatamente) - Tenho testemunha! Alfredo, Lúcia, o porteiro, Rosália!...<br />

FILOMENA<br />

A enfermeira...<br />

DOMINGOS<br />

A enfermeira também! Todo o mundo! Assim que o padre foi embora, ela se levantou da<br />

cama... (Aponta para <strong>Filomena</strong>) e disse: "Domingos, agora estamos casados!"<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 40


NOCELA<br />

(Para <strong>Filomena</strong>) - Em tal caso, êle po<strong>de</strong> beneficiar-se do artigo 122: Violência e êrro. (Lê) "O<br />

casamento po<strong>de</strong> ser impugnado por aquele dos cônjuges cujo consentimento foi extorquido<br />

com a violência ou dado por efeito <strong>de</strong> êrro". Como vê, na base do artigo 122, o casamento<br />

po<strong>de</strong> ser impugnado.<br />

FILOMENA<br />

(Sincera) - Não entendi patavina!<br />

DOMINGOS<br />

(Convencido <strong>de</strong> fornecer a <strong>Filomena</strong> uma exata interpretação do Código, para esmagá-la) - Eu<br />

me casai contigo, porque tu <strong>de</strong>vias morrer...<br />

NOCELA<br />

Não ! O casamento não po<strong>de</strong> ficar sujeito a condições! Há o artigo... cujo número agora não<br />

me recordo... que reza assim: "Se as partes acrescentam um têrno ou uma condição , o Juiz ou<br />

o Sacerdote não po<strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r à celebração do casamento".<br />

DOMINGOS<br />

O senhor disse que não havia perigo iminente <strong>de</strong> vida...<br />

FILOMENA<br />

(ríspida) - Cala a boca, que tu também não compreen<strong>de</strong>ste! Doutor, explique isso em língua<br />

<strong>de</strong> gente!<br />

NOCELA<br />

(Dá uma folha <strong>de</strong> papel a <strong>Filomena</strong>) - O artigo é êste. Leia a senhora mesma.<br />

FILOMENA<br />

(Rasga a folha <strong>de</strong> papel, sem olhá-la sequer) Eu não sei ler e não aceito documentos!<br />

NOCELA<br />

(Um tanto ofendido) - Minha senhora! O caso é que como a senhora não estava à morte, o<br />

casamento é nulo, não tem valor!<br />

FILOMENA<br />

E o padre?<br />

NOCELA<br />

Vai dizer-lhe a mesma coisa. Aliás, vai dizer que a senhora ultrajou o Sacramento! Portanto,<br />

não tem valor!<br />

FILOMENA<br />

(Pálida, fora <strong>de</strong> si) - Não tem valor! Então, eu <strong>de</strong>via morrer?<br />

NOCELA<br />

(imediatamente) Pois é!<br />

FILOMENA<br />

Se eu morresse...<br />

NOCELA<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 41


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

Ai tinha valor!<br />

FILOMENA<br />

(mostrando Domingos, que permaneceu impassível) - E êle po<strong>de</strong>ria casar-se outra vez?<br />

Po<strong>de</strong>ria ter filhos?...<br />

NOCELA<br />

Sim, mas já como viúvo. Essa outra provável mulher ter-se-ia casado com o viúvo da falecida<br />

senhora Soriano.<br />

DOMINGOS<br />

(Apontando para <strong>Filomena</strong>) - Ela se tornaria a senhora Soriano? Ah, sim, morta!<br />

FILOMENA<br />

(Irônica, mas com amargura) - Que gran<strong>de</strong> satisfação! Com que, então, eu empreguei uma<br />

vida inteira para formar uma família e a lei não o permite? Isso seria a justiça?<br />

NOCELA<br />

Mas a Lei não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r um princípio seu , embora humano, tornando-se cúmplice <strong>de</strong> um<br />

expediente perpetrado em prejuízo <strong>de</strong> terceiros. Domingos Soriano não tinha a menor<br />

intenção <strong>de</strong> se unir em casamento com a senhora.<br />

DOMINGOS<br />

E <strong>de</strong>ves acreditar. Se tens alguma dúvida, po<strong>de</strong>s mandar chamar um advogado <strong>de</strong> tua<br />

confiança.<br />

FILOMENA<br />

Não, não ! Acredito. Não é porque me dizes tu, que tens interesse... Não é porque me diz o<br />

advogado, porque eu com advogados não quero conversa... Mas e porque vejo na tua cara!<br />

Pensas que eu não te conheço? Estás novamente com o teu ar <strong>de</strong> dono <strong>de</strong> tudo... <strong>de</strong> senhor<br />

absoluto!... Estás tranqüilo... Se fosse mentira , não terias tido a coragem <strong>de</strong> me encara... <strong>de</strong><br />

olhar para mim!... Terias ficado <strong>de</strong> olhos baixos, olhando para o chão... porque, mentiras,<br />

nunca soubeste pregar. É verda<strong>de</strong>!...<br />

DOMINGOS<br />

Doutor, continue, por favor!<br />

NOCELA<br />

Se o senhor me confiar a sua causa....<br />

FILOMENA<br />

(Fica absorta durante algum tempo. De repente, respon<strong>de</strong> à última frase que lhe dirigira o<br />

advogado. Seu tom é altaneiro, mas vai subindo até chegar aos berros) - Pois eu também não!<br />

(Para Domingos) - Eu tão pouco te quero! (Para o advogado) - Continue, doutor! Eu tão<br />

pouco o quero! Não é verda<strong>de</strong> que eu estivesse à morte! Eu queria fazer uma intrujice! Queria<br />

roubar um sobrenome! Mas eu só conhecia a minha lei : a lei que faz rir, e não essa que faz<br />

chorar! (Grita para a varanda) Olá ! Vocês ! Venham aqui!<br />

DOMINGOS<br />

(Procurando acalmá-la) - Pára com isso, por favor!<br />

FILOMENA<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 42


(Furiosa) - Cala a boca!<br />

(Vindos da varanda, torntm a entrar os três jovens, um pouco <strong>de</strong>sorientados, e avançam<br />

alguns passos na sala. Pelo F. E. , quase ao mesmo tempo, entra Rosália trazendo uma<br />

ban<strong>de</strong>ja com três xícaras <strong>de</strong> café. Compreen<strong>de</strong>ndo a situação melindrosa, põe a ban<strong>de</strong>ja em<br />

cima <strong>de</strong> um móvel e fica a ouvir, aproximando-se seguida, <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>, Esta, dirigindo-se aos<br />

filhos , fala-lhes abertamente) - Rapazes, você já são homens ... Ouçam! (Agora para<br />

Domingos e a advogado) - Essa, é a socieda<strong>de</strong>, o mundo! O mundo com todas as suas leis e<br />

todos os seus direitos... O mundo que se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> com papel e tinta <strong>de</strong> escrever! ... Domingos<br />

Soriano e o seu advogado!... (Apontando para si mesma) - E aqui, estou eu: <strong>Filomena</strong><br />

<strong>Marturano</strong>, cuja lei é <strong>de</strong> não saber chorar... sim... porque êle , Domingos Soriano, sempre me<br />

disse que eu não sabia chorar! Pois eu não choro , estão vendo? Meus olhos estão enxutos!...<br />

(Ficando os três jovens) - Vocês são meus filhos!<br />

DOMINGOS<br />

<strong>Filomena</strong>!<br />

FILOMENA<br />

(Resoluta) - Quem és tu para impedir-me <strong>de</strong> dizer, perto dos meus filhos, que êles são meus<br />

filhos? (Para o advogado) - Isso, a lei do mundo permite, não é , doutor? (Mais agressiva do<br />

que comovida) - Vocês são meus filhos! E eu sou <strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong>! Não preciso dizer<br />

mais nada! Vocês já são homens... Devem ter ouvido falar <strong>de</strong> mim!<br />

(Os três jovens ficam como que petrificados: Umberto, muito pálido , Ricardo, olhando para o<br />

chão, envergonhado, Miguel, meio espantado e meio comovido)<br />

FILOMENA<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

E agora , não tenho mais nada para dizer... Mas, até completar é os meus <strong>de</strong>zessete anos, sim,<br />

é que teria tido muita coisa para dizer!.... (Para o advogado) - Doutor!... O senhor conhece<br />

esses porões infectos, esses cortiços... nos piores becos da cida<strong>de</strong>... on<strong>de</strong> centenas e centenas<br />

<strong>de</strong> infelizes vivem amontoados uns sobre os outros.... êsses antros escuros e imundos...<br />

enegrecidos pela fumaça...em que no verão não se respira por causa do calor, porque há gente<br />

<strong>de</strong>mais lá <strong>de</strong>ntro, e no inverno se treme <strong>de</strong> frio?... On<strong>de</strong> não entra luz nem ao meio dia... Tão<br />

cheios <strong>de</strong> gente que é até melhor o frio do que o calor? ... Pois bem... Num <strong>de</strong>sses cortiços, no<br />

beco <strong>de</strong> São Libério, vivia eu com minha família ... Quantos éramos? Uma multidão! On<strong>de</strong> a<br />

minha família foi parar, não sei... nem quero saber! Já não me lembro <strong>de</strong>la!... Todos, sempre<br />

<strong>de</strong> cara amarrada, sempre brincando um com o outro!... Íamos dormir sem dizer "boa noite"...<br />

Acordávamos sem dizer "bom dia"! Uma única palavra <strong>de</strong> carinho eu ouvi!... Foi meu pai<br />

quem a disse... e ainda fico a tremer quando me lembro!... Eu tinha , então, treze anos... Êle<br />

me disse: "Estás ficando uma mulherzinha... Sabes que aqui não temos nada para comer"... E<br />

o calor ... o calor que fazia! ... À noite, quando se fechava a porta, não se podia respirar!... Ao<br />

escurecer, sentávamos todos ao redor da mesa... Uma só terrina e não sei quantos garfos!...<br />

Talvez fosse impressão minha, mas toda a vez que punha o garfo <strong>de</strong>ntro da terrina...<br />

parecia-me que eu estava roubando o que comia!... Assim vivi até <strong>de</strong>zessete anos... Passavam<br />

as mocinhas bem vestidas, com bonitos sapatos, bem penteadas, e eu ficava a olhar para elas<br />

com inveja... Passavam <strong>de</strong> braço dado com ntmorados... Uma noite encontrei uma<br />

companheira minha... quase não a reconheci, tão bem vestida , tão vestida estava!... Talvez,<br />

então , tudo me parecesse mais bonito ... Ela me disse: (Escon<strong>de</strong>ndo as sílabas e gran<strong>de</strong><br />

mímica) - "Assim... assim... assim é que se arranja o dinheiro!"... Não pu<strong>de</strong> dormir a noite<br />

inteira!... E o calor.... o calor!.... Depois, eu te conheci!.... (Domingos estremece) - Lá,<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 43


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

Lembras-te?... Aquela "casa" parecia-me um palácio!... Uma noite, voltei para o beco <strong>de</strong> São<br />

Libério ... O coração me batia... Eu pensava: "Talvez nem queiram mais olhar para mim....<br />

talvez me ponham no olho da rua!".... Qual!... Ninguém me disse coisa alguma!... Um,<br />

oferecia-me uma ca<strong>de</strong>ira, outro fazia-me festas!.... E todos olhavam para mim como se<br />

olhassem para um ser superior a todos eles... que impõe respeito!... Somente mamãe, quando<br />

fui falar com ela, tinha os olhos cheios <strong>de</strong> lágrimas ! Nunca mais voltei para a minha casa!<br />

(Quase gritando) - Mas não os matei! Não matei os meus filhos! A família a família ! Pensei<br />

nela durante vinte e cinco anos! ... (Para os três jovens) E criei vocês... fiz <strong>de</strong> vocês<br />

homens...roubei êste aqui... (Aponta para Domingos) para criar vocês!<br />

MIGUEL<br />

(acerca-se <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>, comovido) - Está bem , chega! (Comove-se cada vez mais) - A<br />

senhora não podia fazer mais do que fez!<br />

UMBERTO<br />

(Sério, acerca-se <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>) - Há tantas coisas que eu <strong>de</strong>sejaria dizer-lhe, mas não encontro<br />

as palavras! Vou escrever-lhe uma carta.<br />

FILOMENA<br />

Eu não sei ler.<br />

UMBERTO<br />

Eu mesmo a lerei.<br />

(Pausa. <strong>Filomena</strong> olha para Ricardo, esperando que êle se aproxime. Mas Ricardo sai pelo F.<br />

D. sem dizer palavra).<br />

FILOMENA<br />

Oh! Foi-se embora!<br />

UMBERTO<br />

(Explicando) - É questão <strong>de</strong> gênio. Ele não compreen<strong>de</strong>u bem. Amanhã, passo na loja e lhe<br />

falo.<br />

MIGUEL<br />

(Para <strong>Filomena</strong>) - A senhora po<strong>de</strong> vir comigo. A casa é pequena, mas cabemos todos... temos<br />

até uma pequena varanda. ( Com sincera alegria) As crianças perguntavam sempre: "E a vovó,<br />

hein, cadê a vovó? " e eu um dia, respondia uma besteira qualquer , outro dia , outra... Agora,<br />

quando eu chegar e disser: "Aqui está a vovó! ", vão virar a casa pelo avêsso! ( convidando<br />

<strong>Filomena</strong>) - Venha!<br />

FILOMENA<br />

(<strong>de</strong>cidida) - Sim , vou contigo!<br />

MIGUEL<br />

Pois, então , vamos!<br />

FILOMENA<br />

Um momento! Espera-me no portão . (para Umberto) - Desse junto com êle. É questão <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<br />

minutos apenas. Ainda tenho alguma coisa a dizer ao senhor Domingos...<br />

MIGUEL<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 44


(todo contente) - Então , <strong>de</strong>pressa, heim? ( para Umberto) - O senhor também <strong>de</strong>sce?<br />

UMBERTO<br />

Sim, eu acompanho.<br />

MIGUEL<br />

(alegre) - Bom dia a todos! (encaminhando-se para F. D.) - Eu bem que sentia qualquer coisa<br />

cá por <strong>de</strong>ntro! ... Era por isso que queria conversar... (Sai com Umberto)<br />

FILOMENA<br />

Doutor, o senhor dá-me licença , dois minutos? ... (indica-lhe o "escritório.)<br />

NOCELA<br />

Não ... Eu vou andando...<br />

FILOMENAS<br />

São dois minutos somente. Tenho até prazer que o senhor esteja aqui, <strong>de</strong>pois que eu tiver<br />

falando com Domingos. Por favor!<br />

(O advogado, a contra gosto, sai para o "escritório")<br />

(Rosália, sem que lhe digam nada, saí pela E. B.)<br />

FILOMENA<br />

(colocando o molho <strong>de</strong> chaves em cima da mesa) - Eu já <strong>de</strong>cidi: vou-me embora, Domingos!<br />

Dize ao advogado que siga as vias legais! Eu não nego coisa alguma e <strong>de</strong>ixo-te livre!<br />

DOMINGOS<br />

(em tom meio agastado) - De certo! Podias pegar uma boa quantia <strong>de</strong> dinheiro, sem fazer toda<br />

essa história!....<br />

FILOMENA<br />

(sempre muito calma) - Amanhã vou mandar buscar as minhas coisas.<br />

DOMINGOS<br />

(um pouco perturbado) - Não passas é <strong>de</strong> uma louca! Porque foste tirar o sossêgo <strong>de</strong>sses três<br />

pobres rapazes? Porque fizeste isto ? Porque lhes disseste que eras mãe <strong>de</strong>les?<br />

FILOMENA<br />

(fria) - Porque um dêsses três, Domingos, é teu filho!<br />

DOMINGOS<br />

(fica com o olhar imóvel, cravado em <strong>Filomena</strong>, atarantado pela absurda verda<strong>de</strong>. Após uma<br />

pausa, procurando reagir contra os sentimentos que lhe agitam o coração) Ora! Eu lá acredito<br />

nisso!<br />

FILOMENA<br />

Um <strong>de</strong>sses três , é teu filho!<br />

DOMIGOS<br />

(não ousando gritar, gravemente) Cala-te!<br />

FILOMENA<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 45


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

Eu po<strong>de</strong>ria ter dito que todos três eram teus filhos e terias acreditado... Eu te faria acreditar!<br />

Mas não é verda<strong>de</strong>... Sim... po<strong>de</strong>ria ter falado antes... Mas tu terias <strong>de</strong>sprezado os outros<br />

dois... e eu os querias todos iguais , sem distinções.<br />

DOMINGOS<br />

É mentira!<br />

FILOMENA<br />

É verda<strong>de</strong>, Domingos, é verda<strong>de</strong>! Tu já não te lembras. Tu partias ... Ias para Londres, para<br />

Paris... tinhas as corridas <strong>de</strong> cavalos, gostavas <strong>de</strong> mulheres... Uma noite, uma das muitas<br />

noites em que, quando te ias embora, me davas <strong>de</strong> presentes uma nota <strong>de</strong> cem libras...<br />

Naquela noite, eu te quis realmente bem... Tu, não! Tinhas falado <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira. Deste-me a<br />

nota <strong>de</strong> cem libras, como <strong>de</strong> costume. Eu marquei nela o dia , o mês e o ano... Bem sabes que<br />

os números eu sei escrever ... Em seguida, partiste e eu fiquei à sua espera... Como uma<br />

santa!... Mas tu não te lembras <strong>de</strong> quando foi!... Eu não te disse nada... Disse-te que a minha<br />

vida continuado a ser a <strong>de</strong> sempre... E, com efeito , quando percebi que não tinhas<br />

compreendido nada, voltei à minha vida antiga...<br />

DOMINGOS<br />

(em tom peremptório, que escon<strong>de</strong> sua insuportável emoção) - E qual é dêles?<br />

FILOMENA<br />

(<strong>de</strong>cidida) - Não ! Isso eu não digo! Hão <strong>de</strong> ser todos os três iguais!...<br />

DOMINGOS<br />

(após um momento <strong>de</strong> hesitação, como que obe<strong>de</strong>cendo a um impulso) - Não é verda<strong>de</strong>!...<br />

Não po<strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong>!... Terias me falado logo, para amarrar-me, para ter-me nas tuas mãos!<br />

A única arma teria sido um filho!... E tu, <strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong>, não terias <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> usar essa<br />

arma!<br />

FILOMENA<br />

Não, porque me terias forçado a matá-lo! Da maneira por que pensavas naquele tempo e ainda<br />

agora pensas!.... Não! Não mudaste! Não uma mas cem vêzes, me terias forçado a matá-lo !<br />

Tive medo <strong>de</strong> ter falar! E somente graças a mim, porque guar<strong>de</strong>i segredo, é que teu filho está<br />

vivo!<br />

DOMINGOS<br />

E qual é dêles?<br />

FILOMENA<br />

Todos os três <strong>de</strong>vem ser iguais!<br />

DOMINGOS<br />

(exasperado, mau) - E são iguais... são filhos teus! Eu nem quero vê-los! Não os conheço!<br />

Vai-te embora!<br />

FILOMENA<br />

Lembras-te , quando eu te disse ontem, que não jurasses? Foi por causa disto que o disse!<br />

A<strong>de</strong>us, Domingos! E lembra-te que se contas aos meus filhos o que te contei... eu te mato!<br />

Mas não como dizes, tu , que levas repetindo-o há vinte e cinco anos... mas como diz<br />

<strong>Filomena</strong> Marturno! Mato-te verda<strong>de</strong>! Compreen<strong>de</strong>ste? (falando para o "escritório", enérgica<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 46


Doutor, Já po<strong>de</strong> vir!... (Aludindo a Diana) - Venha você também, que não lhe faço nada!...<br />

Ganhaste a partida! Eu vou-me embora! (chamando para a E. B.) - Rosália, venha cá! Eu<br />

vou-me embora! (abraça Rosália, que entra. Para ela) - Amanhã, mando buscar as minhas<br />

coisas! (Vindo do '"escritório", aparece e advogado, seguido <strong>de</strong> Diana, enquanto pelo F. D.,<br />

sem falar , entra Alfredo) - Passem todos muito bem! O senhor também, doutor, e <strong>de</strong>sculpe!<br />

(pelo F. E. entra também Lúcia) - Compreen<strong>de</strong>ste bem, Domingos? Vou repetí-lo diante <strong>de</strong><br />

todos: não digas uma só palavra do que te falei! Guarda para ti! (Puxa do seio um medalhão,<br />

abre-o e tira dêle uma nota <strong>de</strong> cem libras, muito velha e dobrada varias vezes. Rasga um<br />

pedacinho <strong>de</strong>la e mostra-o a Domingos) - Eu tinha marcado em cima uma conta, uma pequena<br />

conta <strong>de</strong> que preciso... Toma! (atira-lhe o dinheiro no rosto e, num tom quase alegre, mas com<br />

profundo <strong>de</strong>sprezo, diz-lhe) - Os filhos não pagam! (e saí pelo F. E.)<br />

PANO<br />

RÁPIDO<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 47


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

Mesma cena dos atos prece<strong>de</strong>ntes.<br />

TERCEIRO ATO<br />

Flores por tôda a parte. Não faltam as cestas caras, com o cartão <strong>de</strong> visita do doador espetado<br />

com alfinete. As flores <strong>de</strong>vem ser <strong>de</strong> côres <strong>de</strong>licadas: não brancas, mas tampouco vermelhas.<br />

Um ar <strong>de</strong> festa paira na casa. A cortina que separa a sala <strong>de</strong> jantar do "escritório" está<br />

inteiramente fechada. Decorreram <strong>de</strong>z meses <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Segundo Ato. É quase noite.<br />

ROSÁLIA<br />

(entra pelo F. D. trajada festivamente)<br />

DOMINGOS<br />

(Ao mesmo tempo, vindo do "escritório". entra) - (Está completamente mudado. Não tem<br />

mais nenhum dos gestos ou intonações que caracterizavam a sua índole autoritária. Tornou-se<br />

brando, quase humil<strong>de</strong>. Seu cabelo está um pouco mais branco. Vendo Rosália, que se dirige<br />

para a E. a <strong>de</strong>tém) - Que foi? Você esteve fora?<br />

ROSÁLIA<br />

Fui fazer uma comissão para Dona <strong>Filomena</strong>.<br />

DOMINGOS<br />

Que comissão?<br />

ROSÁLIA<br />

(Insinuando, bonachão) - Que é isto? O senhor está com ciúmes? Fui até ao beco <strong>de</strong> São<br />

Libério...<br />

DOMINGOS<br />

Fazer o que?<br />

ROSÁLIA<br />

(gracejando) - Nossa Senhora! O senhor está mesmo com ciúmes!<br />

DOMINGOS<br />

Qual ciúmes, qual nada! Eu já tinha imaginado!...<br />

ROSÁLIA<br />

Eu estou brincando... (olhando, circunspecta, para o quarto <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>) - Eu vou dizer... mas<br />

o senhor diga nada a Dona <strong>Filomena</strong>, porque ela não quer que o senhor saiba.<br />

DOMINGOS<br />

Então, não diga.<br />

ROSÁLIA<br />

Eu digo. Acho até bom dizer porque é uma coisa muito bonita da parte <strong>de</strong>la! Mandou-me<br />

levar mil liras e cinqüenta velas à Nossa Senhora das Rosas, no beco <strong>de</strong> São Libério, e<br />

pediu-me que incumbisse um velha que mora lá e que providência sempre as flores e a<br />

lamparina, <strong>de</strong> acen<strong>de</strong>r as velas às seis horas em ponto. E sabe porque? Porque o casamento<br />

está marcado para as seis. Enquanto o senhor e ela se casam aqui, acen<strong>de</strong>m-se as velas diante<br />

da Nossa Senhora das Rosas.<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 48


DOMINGOS<br />

Compreendi.<br />

ROSÁLIA<br />

É com uma santa que o senhor vai casar-se!... Uma santa!... E até rejuvenesceu! Parece uma<br />

mocinha! E como está bonita! Eu bem que lhe dizia: "Mas a senhora pensa mesmo que o<br />

senhor Domingos a esqueceu? Êle quis anular o casamento por birra... mas eu já estou vendo<br />

a nova cerimônia religiosa..."<br />

DOMINGOS<br />

(Um pouco enfadado com a conversa <strong>de</strong> Rosália) - Está bem, Rosália , vá ter com Dona<br />

<strong>Filomena</strong>...<br />

ROSÁLIA<br />

Estou indo... (mas, quase a seu pesar, continua falando) - Ah! Se não fôsse ela... quem tinha<br />

acabado mal era eu! Tomou-me consigo em sua casa... Agora, aqui fico, e aqui hei <strong>de</strong><br />

morrer!...<br />

DOMINGOS<br />

À vonta<strong>de</strong>!<br />

ROSÁLIA<br />

Eu já tenho tudo pronto!... (aludindo a roupa com que <strong>de</strong>seja ser vestida <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> morta) - A<br />

camisa branca e comprida com um pedaço <strong>de</strong> renda, as calças , as meias brancas, a touca...<br />

Está tudo guardadinho na gaveta... Só eu e Dona <strong>Filomena</strong> é que sabemos... Quando eu esticar<br />

a canela, ela é que tem <strong>de</strong> me vestir! O senhor compreen<strong>de</strong>, não tenho ninguém!... Ah! Se<br />

voltassem os meus filhos, coisa <strong>de</strong> que ainda não perdi as esperanças... Com licença... (saí<br />

pela E. B.)<br />

DOMINGOS<br />

("agora, que ficou só, passeia um pouco pela sala. Observa as flores, lê alguns cartões,<br />

completando, em seguida, em voz alta, mas maquimente, o que estava pensando) - Pois seja!<br />

Do F. D. chegam as vozes as vozes confusas <strong>de</strong> Umberto, Ricardo e Miguel)<br />

MIGUEL<br />

(do interior) - Às seis! A cerimônia é às seis!<br />

RICARDO<br />

(i<strong>de</strong>m) - Porém, quando alguém marca um encontro...<br />

UMBERTO<br />

(i<strong>de</strong>m) - Mas eu fui pontual!<br />

(Os três jovens entram continuando a falar).<br />

MIGUEL<br />

Combintmos para as cinco. Eu cheguei atrazado três quartos <strong>de</strong> hora.<br />

RICARDO<br />

Acha pouco , talvez?<br />

MIGUEL<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 49


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

Não, mas é que já se sabe que quando se marca um encontro , enten<strong>de</strong>-se sempre uma meia<br />

hora <strong>de</strong>pois. Se está marcado para as cincos, é para as cinco e meia, seis menos um quarto...<br />

RICARDO<br />

(irônico) - O dia seguinte ... O mês vindouro...<br />

MIGUEL<br />

Olhe... Eu tenho quatro filhos e relógios não compro mais! ... O que eu tinha, êles o reduziram<br />

a pedaços!<br />

UMBERTO<br />

(vendo Domingos, cumprimenta respeitosamente) - Boa tar<strong>de</strong>, senhor Domingos!<br />

RICARDO<br />

(mesmo tom) - Senhor Domingos...<br />

MIGUEL<br />

Senhor Domingos...<br />

(E os três vão pôr-se em fila diante <strong>de</strong> Domingos, em silêncio)<br />

DOMINGOS<br />

Boa tar<strong>de</strong>. (pausa <strong>de</strong>morada) - Então? Não falam mais? Estavam. Falando...<br />

RICARDO<br />

Sim... estávamos falando... assim...<br />

MIGUEL<br />

Mas, num certo momento, tínhamos <strong>de</strong> parar <strong>de</strong> falar...<br />

DOMINGOS<br />

Sim... assim que me viram... (Para Miguel) - Você chegou tar<strong>de</strong> ao encontro?<br />

MIGUEL<br />

Sim, senhor Domingos...<br />

DOMINGOS<br />

E você chegou na hora... (fala a Ricardo)<br />

RICARDO<br />

Sim, senhor Domingos...<br />

DOMINGOS<br />

(para Umberto) - E você?<br />

UMBERTO<br />

Na hora exata, senhor Domingos!<br />

DOMINGOS<br />

(repete frase, como que falando consigo mesmo) - Na hora exata, senhor Domingos... (pausa)<br />

- Sentem-se. (Os três sentam-se) - A cerimônia está marcada para as seis horas. Temos tempo<br />

<strong>de</strong> sobra. Às seis chega o padre... e ... seremos somente nós. <strong>Filomena</strong> não quis convidar<br />

ninguém. (pausa) - Eu queria dizer-lhes uma coisa que se não me engano... Já lhes disse uma<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 50


vez... ou mais <strong>de</strong> uma vez... Acho que êste "senhor Domingos" Não vai bem... não sôa bem...<br />

não gosto muito...<br />

UMBERTO<br />

(tímido) - É...<br />

RICARDO<br />

(i<strong>de</strong>m) - É<br />

MIGUEL<br />

(i<strong>de</strong>m) - É...<br />

UMBERTO<br />

Mas, o senhor não nos disse como gostaria <strong>de</strong> ser chamado...<br />

DOMINGOS<br />

Não disse, porque <strong>de</strong>sejava que compreen<strong>de</strong>ssem sozinhos... Hoje à noite , eu me caso com<br />

sua mãe... Já marquei um encontro com o advogado para o que diz respeito a vocês. Amanhã<br />

vocês se chamarão como eu : Soriano...<br />

(Os três jovem olham um para o outro ,como se consultando sôbre a maneira <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r.<br />

Cada qual espera que o outro fale)<br />

UMBERTO<br />

(tomando coragem) - A coisa é... o senhor compreen<strong>de</strong>... Vou respon<strong>de</strong>r eu, porque penso que<br />

todos as três somos da mesma opinião... Nós não somos mais crianças... Já somos homens<br />

feitos... e não po<strong>de</strong>mos , assim, com <strong>de</strong>senvoltura, chama-lhe como o senhor, muito justa e<br />

generosamente, nos propõe que o chamemos... Certas coisas... é preciso a gente senti-las cá<br />

<strong>de</strong>ntro... (Aponta para o coração)<br />

DOMINGOS<br />

(com ansieda<strong>de</strong>) - E você, aí <strong>de</strong>ntro, não sente essa... digamos, essa necessida<strong>de</strong>... <strong>de</strong> chamar a<br />

alguém... a mim, por exemplo, <strong>de</strong> papai?<br />

UMBERTO<br />

Eu não saberia mentir-lhe e o senhor não merece que lhe mintam. Para lhe falar com<br />

sincerida<strong>de</strong>: por enquanto, não!<br />

DOMINGOS<br />

(um pouco <strong>de</strong>cepcionado. Dirigindo-se a Ricardo) - E você?<br />

RICARDO<br />

Eu tão pouco!<br />

DOMINGOS<br />

(Para Miguel) - Então, você?<br />

MIGUEL<br />

Eu também não, senhor Domingos!<br />

DOMINGOS<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Bem... Com o tempo, po<strong>de</strong> ser que se acostumem... Estou muito contente <strong>de</strong> estar com vocês,<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 51


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

sobretudo porque são três ótimos rapazes... Cada um tem a sua profissão... o seu ramo <strong>de</strong><br />

negócio ... e todos trabalham com a mesma vonta<strong>de</strong>, a mesma tenacida<strong>de</strong>... Muito<br />

bem!...(Para Umberto) - Você está empregado, e pelo que sei, é um rapaz ativo e sério...<br />

Escreve artigos...<br />

UMBERTO<br />

Alguns contos, também.<br />

DOMINGOS<br />

Eu sei. Tenho certeza <strong>de</strong> que sua ambição seria a <strong>de</strong> se tornar um gran<strong>de</strong> escritor... não é?<br />

UMBERTO<br />

Não tenho tamanha pretenção.<br />

DOMINGOS<br />

Porque? Você é jovem. Compreendo que para vencer, nesse campo, é preciso ter entusiasmo,<br />

ter nascido para isso...<br />

UMBERTO<br />

Eu não creio que nasci para isso. Quantas vezes, <strong>de</strong>sanimado, digo com os meus botões:<br />

"Umberto, você errou... O seu caminho é outro!"<br />

DOMINGOS<br />

(interessado) - E que outro po<strong>de</strong>ria ser? Quero dizer, que é que você teria gostado <strong>de</strong> fazer na<br />

vida?<br />

UMBERTO<br />

Sei lá! A gente tem tantas aspirações quando é jovem!<br />

RICARDO<br />

A vida é assim mesmo! Eu , por exemplo, sabe porque tenho loja <strong>de</strong> camiseiro? Porque an<strong>de</strong>i<br />

ntmorando uma mulher que fazia camisas sob medida!<br />

DOMINGOS<br />

(interessadissimo) - Ah! Você ntmorou muitas pequenas?<br />

RICARDO<br />

Assim, assim... Meio mundo <strong>de</strong>las!...<br />

DOMINGOS<br />

(levanta-se, perscrutando a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ricardo para ver se <strong>de</strong>scobre nele um gesto , um tom <strong>de</strong><br />

voz, que possa pôr em relação com a sua própria mocida<strong>de</strong>)<br />

RICARDO<br />

O senhor sabe o que é? Não consigo encontrar o meu tipo... Vejo uma, gosto e penso: "E<br />

esta!"... e logo a seguir resolvo: " Vou me casar com ela!".. Depois vejo outra e parece-me<br />

que gosto ainda mais <strong>de</strong>ssa. É o diabo! Há sempre uma mulher mais bonita do que aquela que<br />

se conheceu antes!<br />

DOMINGOS<br />

(para Umberto) - Você, ao contrário, em matéria <strong>de</strong> mulheres, é mais calmo, mais refletido,<br />

não é?<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 52


UMBERTO<br />

Até certo ponto. As garotas <strong>de</strong> hoje, não <strong>de</strong>ixam a gente ser refletido. Em qualquer lugar que<br />

se vá, vê-se cada pequena, uma melhor do que a outra! A escolha é que é difícil! Que hei <strong>de</strong><br />

fazer? São tantas, que vou variando todas até encontrar a tal...<br />

DOMINGOS<br />

(fica perturbado ao notar em Umberto a mesma tendência que Ricardo). (Para Miguel) - E<br />

você?...Também gosta <strong>de</strong> mulheres?<br />

MIGUEL<br />

Eu me amarrei muito <strong>de</strong>pressa... Conheci minha mulher... e pronto! Agora, tenho <strong>de</strong> ficar<br />

quietinho, porque a patroa não é <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira!... De modo que, o senhor compreen<strong>de</strong>... Não<br />

posso botar as manguinhas <strong>de</strong> fora... Não é que eu não goste das pequenas... pelo contrário...<br />

mas é que tenho medo!...<br />

DOMINGOS<br />

(<strong>de</strong>sanimado) - É ... Você também gosta <strong>de</strong> mulheres... (Pausa. Em seguida procurando outro<br />

"test" que possa fornecer-lhe a indicação que <strong>de</strong>seja) - Eu , quando era jovem , cantava.<br />

Jutavamo-nos sete, oito amigos. Era a época das serenatas. A gente ceiava na varanda e<br />

acabava sempre com cantorias bandolins, guitarras... Quem é <strong>de</strong> vocês que sabe cantar?<br />

UMBERTO<br />

Eu não sei!<br />

RICARDO<br />

Eu também não!<br />

MIGUEL<br />

Pois eu sei!<br />

DOMINGOS<br />

(feliz) - Você canta?<br />

MIGUEL<br />

Ora se canto! De outro modo, como faria para trabalhar? Dentro da minha oficina, estou<br />

sempre cantando.<br />

DOMINGOS<br />

(ansioso) - Cante qualquer coisa.<br />

MIGUEL<br />

(Esquivando-se, arrependido <strong>de</strong> ter blasonado) - Eu ? Que quer. Que eu cante?<br />

DOMINGOS<br />

O que quiser.<br />

MIGUEL<br />

O senhor sabe... Fico encabulado...<br />

DOMINGOS<br />

Mas <strong>de</strong>ntro da oficina, você não canta?<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 53


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

MIGUEL<br />

É muito diferente... O senhor conhece "O sole mio"? Tão bonito! (começa a cantar, com uma<br />

voz fanhosa e <strong>de</strong>safinada) "O sole mio - chiu belo não é - O solo mio - sta n' fronte a te!"...<br />

RICARDO<br />

(interrompendo) - Assim, eu também sei cantar! ... Isso é lá voz!<br />

MIGUEL<br />

(quase ofendido) - Então, eu não tenho voz?<br />

UMBERTO<br />

Voz, assim , eu também tenho!<br />

RICARDO<br />

Eu também, ora essa!<br />

DOMINGOS<br />

Voz, assim, tem qualquer um! (Para Ricardo) - Cante um pouco você...<br />

RICARDO<br />

Eu não tomo essa liberda<strong>de</strong>... Não sou caradura como êsse aí... Só se fôr para dar uma idéia...<br />

Mais ou menos... (cantarola a melodia)<br />

"O sõõõ mio - caiu bello n' é - O sole mio sta fronte a te!"<br />

UMBERTO<br />

(une-se ele no canto) - " O sole mio - chiu bello n' é - O sole - sta fronte ate".<br />

MIGUEL<br />

(também entra a cantar) - O sole mio - chiu bello n' é - O solo mio - sta fronte a te".<br />

(E forma-se um côro incrivelmente <strong>de</strong>safinado)<br />

DOMINGOS<br />

(interrompendo) - Chega, chega!...<br />

(Os três calam-se)<br />

DOMINGOS<br />

É melhor que vocês se calem... Devem estar emocionados... Não é possível... Três napolitanos<br />

que não sabem cantar!...<br />

FILOMENA<br />

(entra da E. B. trajando um vistoso vestido novo. Penteando à "napolitana", duas fileiras <strong>de</strong><br />

pérolas no pescoço. Brincos. Seu aspecto tornou-se quase juvenil. Fala com terezinha, a<br />

costureira, que segue juntamente com Rosália e Lúcia) - Você não quer admitir, Terezinha,<br />

mas está com <strong>de</strong>feito!<br />

TERZINHA<br />

(É uma <strong>de</strong>ssas costureiras napolitanas, que não se dão por vencidas : no sentido <strong>de</strong> que as<br />

ofensas das fregueses não as atingem nem <strong>de</strong> longe.. Sua calma chega a ser irritante) - A<br />

senhora é que está vendo um <strong>de</strong>feito que não existe , minha cara Dona <strong>Filomena</strong>... A senhora<br />

compreen<strong>de</strong> que não é possível... Há tantos anos que faço seus vestidos...<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 54


FILOMENA<br />

Você é mesmo muito <strong>de</strong>scarada!... É capaz <strong>de</strong> negar , olhando para a cara da gente!<br />

TEREZINHA<br />

Então , eu <strong>de</strong>veria concordar que o vestido tem <strong>de</strong>feito?<br />

MIGUEL<br />

Boa tar<strong>de</strong>, mamãe.<br />

RICARDO<br />

Boa tar<strong>de</strong>... e muitos votos <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>!...<br />

UMBERTO<br />

Também lhe <strong>de</strong>sejo muitas felicida<strong>de</strong>s...<br />

FILOMENA<br />

(agradável surpreendida) - Ah! Vocês já estão aqui? Boa tar<strong>de</strong>! (para Terezinha, teimosa) - E<br />

sabe porque o vestido está com <strong>de</strong>feito? Porque quando você pega um corte <strong>de</strong> fazenda nas<br />

mãos, arranja sempre jeito <strong>de</strong> fazer também um vestido para a sua menina...<br />

TEREZINHA<br />

Ora, Dona <strong>Filomena</strong>!<br />

FILOMENA<br />

Isso, já me aconteceu, não negue... Eu mesma ví a sua menina com um vestido que você<br />

conseguiu fazer sobrar da fazenda <strong>de</strong> um vestido meu...<br />

TEREZINHA<br />

Se a senhora continua falando assim, eu acabo me zangando!... (mudando <strong>de</strong> tom) -<br />

Naturalmente, quando sobra um pouco <strong>de</strong> fazenda...<br />

FILOMENA<br />

(olha para ela com ar <strong>de</strong> censura)<br />

TEREZINHA<br />

Mas, nunca sacrifiquei minhas freguezas! ... Oh! Nunca! A ética profissional antes <strong>de</strong> mais<br />

nada!<br />

ROSÁLIA<br />

(admirando a "toilette" <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>) - Dona <strong>Filomena</strong>, a senhora está que é uma beleza!<br />

Parece mesmo uma noiva!<br />

TEREZINHA<br />

Na sua opinião, como é que <strong>de</strong>veria ter saído o vestido?<br />

FILOMENA<br />

(furiosa) - Você não <strong>de</strong>veria é ter-me roubado na fazenda, compreen<strong>de</strong>u?<br />

TEREZINHA<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

(um tanto ofendida) - A senhora não <strong>de</strong>ve falar assim... Então, eu sou gatuma, Quero cair<br />

morta aqui mesmo, se sobrou mais do que isto da sua fazenda!... (faz um gesto para indicar<br />

uma quantida<strong>de</strong> insignificante).<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 55


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

DOMINGOS<br />

(Que até esse momento ficou assistindo a cena com impaciência, absorto por uma idéia fixa<br />

que o atormenta. Para <strong>Filomena</strong>) - <strong>Filomena</strong>, preciso falar um momento contigo.<br />

FILOMENA<br />

(da uns passos na direção <strong>de</strong> Domingos, mas capengando , por causa dos sapatos novos, que<br />

lhe come - Ah! Meu Deus! Estes sapatos!...<br />

DOMINGOS<br />

Estão doendo? Tira-os e calça outros.<br />

FILOMENA<br />

Que é que tens para dizer-me?<br />

DOMINGOS<br />

Escute, Terezinha...Se você fôr embora, me fará um favor...<br />

TEREZINHA<br />

Ora essa! Saio já! (Dobra um pano preto que trazia consigo e põe-no sobre o braço) - Sejam<br />

felizes! (Para Lúcia, encaminhando-se para F. D.) - Como é que havia do ser aquele vestido,<br />

hein? (saí acompanhada por Lúcia)<br />

DOMINGOS<br />

(para o três jovens) - Vocês vão para a sala <strong>de</strong> visitas e fiquem fazendo companhia ao<br />

compadre e à comadre. E dêem-lhe qualquer coisa para beber... Rosália, acompanhe-os!...<br />

ROSÁLIA<br />

Sim, senhor . (Para os três jovens) - Venham. (Saí para o "escritório")<br />

MIGUEL<br />

(para os irmãos) - Vamos!<br />

RICARDO<br />

(caçoando dêle) - Você errou <strong>de</strong> profissão. Deveria é ter ido para o Scala... (E os três jovens<br />

saem rindo para o "escritório")<br />

DOMINGOS<br />

(olhando <strong>Filomena</strong> com admiração) - Como está linda! <strong>Filomena</strong>!... Voltaste a cor jovem!... E<br />

se eu não estivesse preocupado, po<strong>de</strong>ria até dizer-te que ainda és capaz <strong>de</strong> virar a cabeça <strong>de</strong><br />

muito homem!...<br />

FILOMENA<br />

(quer evitar a todo o transe o argumento que preocupa Domingos e cujo teor ela adivinhou.<br />

Procura <strong>de</strong>sconversar) - Parece-me que não falta nada... An<strong>de</strong>i tão atordoada , hoje , o dia<br />

inteiro...<br />

DOMINGOS<br />

Pois eu não estou nada tranqüilo... Não estou sossegado...<br />

FILOMENA<br />

(interpretando, propositadamente, <strong>de</strong> modo diverso, as palavras <strong>de</strong> Domingos) - Como é que a<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 56


gente po<strong>de</strong> estar tranqüila? Só se po<strong>de</strong> confiar em Lúcia... Alfredo e Rosália são dois velhos...<br />

DOMINGOS<br />

(volta ao tom inicial) - Não mu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> assunto, <strong>Filomena</strong>... Não mu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> assunto, porque<br />

estás pensando exatamente a mesma coisa que eu estou pensando... (continuando) - E essa<br />

tranqüilida<strong>de</strong>, esse sossêgo, só tu po<strong>de</strong>s dar, <strong>Filomena</strong>!...<br />

FILOMENA<br />

Eu?<br />

DOMINGOS<br />

Viste como acabei fazendo o que querias... Depois da anulação do casamento , eu mesmo fui<br />

procurar-te. E não uma vez só , mas muitas... Porque mandavas sempre dizer que não estavas<br />

em casa .. Fui eu que te fui procurar e que te propus que nos casássemos...<br />

FILOMENA<br />

E hoje à tar<strong>de</strong> nos casamos.<br />

DOMINGOS<br />

Estás contente, ao menos , espero.<br />

FILOMENA<br />

Claro que estou.<br />

DOMINGOS<br />

Pois , então, <strong>de</strong>ves fazer-me contente a mim também... Senta-te e escuta-me...<br />

FILOMENA<br />

(senta-se)<br />

DOMINGOS<br />

Se soubesses quantas vêzes, nestes últimos meses, tenho procurado falar-te, sem conseguir...<br />

Tentei com todas as minhas forças vencer êste sentimento <strong>de</strong> pudor, mas faltou-me a coragem<br />

... Sei que o assunto é melindroso e lastimo até muito , ter <strong>de</strong> forçar-te a respon<strong>de</strong>r a perguntas<br />

embaraçadoras... Mas, hoje, temos <strong>de</strong> nos casar... Dentro <strong>de</strong> poucos minutos.<br />

Vamos nos encontrar ajoelhados diante do altar, e não como dois jovens que alí se encontram<br />

por acreditarem ser o amor um sentimento que se po<strong>de</strong> satisfazer do modo mais simples e<br />

natural... Nós já vivemos a nossa vida... Eu estou com cinqüenta e dois anos, tu com quarenta<br />

e oito... Somos duas consciências já formadas , que têm o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r até ao fundo<br />

, o ato que realizam, e enfrentá-lo, assumindo todas as responsabilida<strong>de</strong>s. Tu sabes porque te<br />

casas comigo. Eu , não! Sei que me caso contigo somente porque me disseste que um <strong>de</strong>stes<br />

três rapazes é meu filho..<br />

FILOMENA<br />

Só por isto?<br />

DOMINGOS<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Não... Também porque te quero bem... Vivemos juntos vinte e cinco anos e vinte e cinco anos<br />

representam uma vida inteira ; recordações, sauda<strong>de</strong>s, vida comum!... Compreendi sozinho<br />

que sem ti eu me encontraria perdido... E caso-me contigo também porque acredito no que<br />

disseste ... São coisas que a gente sente, e eu sinto que é verda<strong>de</strong>. Conheço-te bem e por isso<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 57


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

te estou falando assim...(gravemente, doloroso) - Eu , <strong>de</strong> noite, já não durmo! Faz <strong>de</strong>z meses,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> aquele dia... Lembras-te?... que não encontro sossêgo!... Não durmo, não como, não me<br />

divirto, não vivo , enfim!... Tu não sabes o que tenho no coração!... Tenho uma coisa que me<br />

tira o fôlego!... Eu faço assim... (como quem respira com dificulda<strong>de</strong>) E a respiração para no<br />

meio, aqui... (mostra a garganta) - Tu não po<strong>de</strong>s continuar a fazer-me viver assim!... Tens<br />

bom coração, és uma mulher que sabe o que é a vida, que <strong>de</strong>veria querer-me um pouco <strong>de</strong><br />

bem... Não po<strong>de</strong>s obrigar-me a continuar a viver assim!... Lembras-te <strong>de</strong> quando me disseste<br />

"Não jures!..." E eu não jurei! E agora, portanto, <strong>Filomena</strong>, posso pedir-te a esmola... E<br />

peço-a como tu quizeres: <strong>de</strong> joelhos, beijando-te a mão, a barra do vestido!... Dize-me,<br />

<strong>Filomena</strong>, dize-me: qual é dêles o meu filho, a carne da minha carne, o meu sangue!... Tens<br />

<strong>de</strong> dizê-lo por ti mesma, para não dar a impressão <strong>de</strong> que estás fazendo uma chantagem... Eu<br />

me caso contigo, igualmente, juro!<br />

FILOMENA<br />

(após uma pausa <strong>de</strong>morada, durante a qual ficou olhando prolongadamente para Domingos) -<br />

Queres sabê-lo? ... Pois vou dizer. Basta que eu te diga: "Teu filho é êsse aí"... E tu então ,<br />

que vais fazer? Vais procurar levá-lo sempre contigo... Vais pensar em dar-lhe um futuro<br />

melhor e, naturalmente, vais estudar todas as maneiras para dar mais dinheiro a ele que aos<br />

outros dois....<br />

DOMINGOS<br />

E com isto?<br />

FILOMENA<br />

(suave, insinuante) - Pois nesse caso, trata <strong>de</strong> auxiliá-lo... Êle bem que precisa... É casado e<br />

tem quatro filhos.<br />

DOMINGOS<br />

(com ansieda<strong>de</strong>) - É o operário?<br />

FILOMENA<br />

(confirmando) - É... É o funileiro.<br />

DOMINGOS<br />

(como que falando consigo mesmo; exaltando-a medida que pensa no caso) - ... um ótimo<br />

rapaz... sólido... sadio!... Porque foi êle se casar tão cedo? Que é que vai po<strong>de</strong>r ganhar com<br />

uma oficianazinha <strong>de</strong> bombeiro? Bem... Afinal <strong>de</strong> contas, essa também é uma boa profissão!<br />

Com um pequeno capital, po<strong>de</strong> montar uma pequena fábrica, com operários... Êle fica sendo,<br />

olhando para <strong>Filomena</strong>, <strong>de</strong>sconfiado) - Ora , logo o bombeiro... O funileiro! Pois é! Êsse é<br />

casado... Precisa mais do que os outros...<br />

FILOMENA<br />

(simulando <strong>de</strong>cepção) - Que queres que uma mãe faça?... Tem <strong>de</strong> procurar auxiliar o mais<br />

fraco... Mas tu não acreditaste... És muito sabido, és ladino!... Pois bem... Não é êle... É<br />

Ricardo, o comerciante.<br />

DOMINGOS<br />

O camiseiro?<br />

FILOMENA<br />

Não. É Umberto, o escritor.<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 58


DOMINGOS<br />

(exasperado, violento) - Tentas ainda pôr-me com as costas a pare<strong>de</strong>.. até o fim!...<br />

FILOMENA<br />

(comovida pelo tom doloroso e <strong>de</strong>sesperado <strong>de</strong> Domingos, procura reunir os seus mais<br />

íntimos sentimentos, para tirar dêles a fórmula <strong>de</strong> uma argumentação persuasiva que,<br />

finalmente, forneça a Domingos explicações concretas e <strong>de</strong>finitiva) - Presta muita atenção no<br />

que vou dizer-te, Domingos, e <strong>de</strong>pois não tornemos a falar mais no assunto. (com um<br />

rompante <strong>de</strong> amor refreado durante prolongando tempo) - Eu te amei com todas as forças da<br />

minha alma, Domingos! Aos meus olhos, eras uma espécie <strong>de</strong> divinda<strong>de</strong>... e ainda muito te<br />

quero, talvez até mais do que antes... (consi<strong>de</strong>rando <strong>de</strong> repente, a incompreensão <strong>de</strong>le) - Que<br />

foi que fizeste, Domingos?... Quiseste sofrer à fôrça!... Deus te dêra tudo para seres feliz:<br />

saú<strong>de</strong>, bela presença, dinheiro... e a mim que para não te fazer sofrer, teria ficado calada, não<br />

era falado nem na hora da morte... e tu terias sido o homem generoso que proporcionou uma<br />

vida melhor a três infelizes... (pausa) - Não me perguntes mais qual é o teu filho, porque eu<br />

não vou dizer. Não posso dizer... E <strong>de</strong>ves te portar como um homem direito e nunca mais<br />

fazer-me! essa pergunta... porque, pelo bem que te quero... num momento <strong>de</strong> fraqueza... quem<br />

sabe, Domingos?... E seria a nossa <strong>de</strong>sgraça! Ainda agora, quando te disse que teu filho era o<br />

funileiro , logo começaste a pensar no dinheiro... no capital... na fábrica <strong>de</strong> aparelhos<br />

mo<strong>de</strong>rnos ... Tu te preocupas e não <strong>de</strong>ixas <strong>de</strong> ter razão... Tu pensas: "O dinheiro é meu!"<br />

"Porque não hei <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r dizer-lhe que sou seu pai?"... "E quanto aos outros dois, que é que<br />

eu tenho com isso?"... "Que direito têm êles?"... Isso seria o inferno, Domingos!...<br />

Compreen<strong>de</strong>s? O interesse os atiraria um contra o outro... São três homens... Não são três<br />

rapazolas... Seriam até capazes <strong>de</strong> se matarem um ao outro!... Tu não <strong>de</strong>ves pensar em ti, não<br />

<strong>de</strong>ves pensar em mim... Pensa neles. O mais bonito que os filhos nos po<strong>de</strong>m dar, já o<br />

per<strong>de</strong>mos, Domingos!... Os filhos são aqueles que a gente pega no colo, quando estão<br />

pequeninos, que nos fazem sofrer quando estão doentes e não sabem dizer o que sentem... que<br />

correm ao nosso encontro <strong>de</strong> bracinhos abertos, dizendo: "Papai... mamãe"... aqueles que<br />

vemos chegar da escola com as mãozinha tremendo <strong>de</strong> frio e o narizinho vermelho e que nos<br />

pe<strong>de</strong>m balas... Mas, quando crescem, quando se tornaram homens, ou são todos filhos iguais,<br />

ou se torntm inimigos uns dos outros!... Ainda estás em tempo, Domingos... Eu não te quero<br />

mal... Deixemos ficar tudo no pé em que está a cada um <strong>de</strong> nós siga o seu próprio caminho, tu<br />

o teu , eu o meu!... (chegam do interior os primeiros acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um harmonium ensaiando a<br />

marcha nupcial)<br />

ROSÁLIA<br />

(do !escritório" acompanhada pelos três jovens) - Chegou!... o padre já chegou!...<br />

MIGUEL<br />

Mamãe!...<br />

DOMINGOS<br />

(Levanta-se da mesa e olha longamente para todos. Em seguida, numa <strong>de</strong>cisão repentina) -<br />

Deixemos tudo no pé em que está e cada um siga o seu próprio caminho!... (para o jovem) -<br />

Preciso falar com vocês...<br />

(Todos esperam com ansieda<strong>de</strong>)<br />

DOMINGOS<br />

Eu sou um homem e bem e não quero enganá-los... Ouçam-me bem...<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 59


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

OS TRÊS<br />

Sim, papai!<br />

DOMINGOS<br />

(olha comovido para <strong>Filomena</strong> e toma nova <strong>de</strong>cisão) Obrigado! Vocês me <strong>de</strong>ram um gran<strong>de</strong><br />

prazer!... (Prosseguindo) - Bem... Quando dis se casam, é sempre o pai quem acompanha a<br />

noiva até o altar... Aqui , não há pai... Há somente filhos... Dois vão acompanhar a noiva , e o<br />

outro o noivo...<br />

MIGUEL<br />

Nós vamos acompanhar mamãe... (encaminha-se para <strong>Filomena</strong> e comovida Ricardo a fazer o<br />

mesmo)<br />

FILOMENA<br />

(lembrando-se <strong>de</strong> repente) - Que horas são?<br />

RICARDO<br />

Falam cinco minutos para as seis.<br />

FILOMENA<br />

(aproxima-se <strong>de</strong> Rosália) Rosália!...<br />

ROSÁLIA<br />

Fique <strong>de</strong>scansada. Às seis em ponto vão acen<strong>de</strong>r as velas lá também!<br />

FILOMENA<br />

(apoiando-se no braço <strong>de</strong> Miguel e no <strong>de</strong> Ricardo) - Bem ... Vamos! (entram no "escritório")<br />

DOMINGOS<br />

(para Umberto) - Você vai acompanhar-me a mim...<br />

(Formam o cortejo e entram no "escritório". Rosália emocionada e humil<strong>de</strong> como sempre<br />

permanece on<strong>de</strong> está, batendo palmas e olhando na direção da cortina. Ouve-se no interior a<br />

"Marcha Nupcial". Agora , Rosália chora. Pouco <strong>de</strong>pois chega Alfredo, e juntos acompanham<br />

a cerimonia. Também Lúcia vai juntar-se a êles)!<br />

(As luzes diminuem em resistência até à completa escuridão. Pausa. Pela varanda, entra uma<br />

nesga <strong>de</strong> luar e, vagarosamente, acen<strong>de</strong>-se todas as lâmpadas da peça. Houve uma passagem<br />

<strong>de</strong> tempo)<br />

FILOMENA<br />

(acompanhada por Umberto, Miguel e Rosália, entra vindo do "escritório" e dirige-se<br />

diretamente para a E.) - Como estou cansada , meu Deus!<br />

MIGUEL<br />

Agora a senhora po<strong>de</strong> ir <strong>de</strong>scansar . Nós , também , vamos indo. Amanhã cedo, tenho <strong>de</strong> estar<br />

na oficina.<br />

ROSÁLIA<br />

(com um ban<strong>de</strong>ja cheia <strong>de</strong> copos vasios , para <strong>Filomena</strong>) - Felicida<strong>de</strong>, muita felicida<strong>de</strong>!... Que<br />

beleza <strong>de</strong> cerimônia!....<br />

FILOMENA<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 60


(para Rosália) - Rosália, dê-me um copo d'água!<br />

ROSALIA<br />

(frisando) - Já, já, Dona <strong>Filomena</strong>!... (e saí pelo F. E.)<br />

DOMINGOS<br />

(Vindo do "escritório" com uma garrafa <strong>de</strong> vinho especial, com a rolha coberta <strong>de</strong> lacre) -<br />

Nada <strong>de</strong> convidados, nada <strong>de</strong> banquetes, mas uma garrafa <strong>de</strong> bom vinho , em família, temos<br />

<strong>de</strong> bebê-lá... (Pega do sacarolhas em cima <strong>de</strong> um móvel do fundo) - Vai ajudar-nos a dormir<br />

melhor... (tira a rolha da garrrafa)<br />

ROSÁLIA<br />

(Volta com um copo chéio d'água, numa pequena salva) - Cá está a água!<br />

DOMINGOS<br />

Que história <strong>de</strong> água é esta?<br />

ROSÁLIA<br />

Foi Dona <strong>Filomena</strong> quem pediu.<br />

DOMINGOS<br />

Pois diga a Dona <strong>Filomena</strong> , que água, num dia dêstes, dá azar! E chame também Lúcia... Ah!<br />

Ia-me esquecendo!... Chame também Alfredo Amoroso, cavalariço, cocheiro e conhecer <strong>de</strong><br />

cavalos <strong>de</strong> corrida...<br />

ROSALIA<br />

(olhando na direção do F. D.) - Alfredo! ... Alfredo!... Venha beber um gole <strong>de</strong> vinho com o<br />

patrão!... Você tamtém, Lúcia...<br />

ALFREDO<br />

(vindo do F.) - Cá estou eu!<br />

DOMINGOS<br />

(encheu os copos e agora os distribui) - Toma, <strong>Filomena</strong>!... À nossa!... (para os <strong>de</strong>mais) -<br />

Bebem!...<br />

ALFREDO<br />

(bebendo) - Á saú<strong>de</strong> dos noivos!<br />

DOMINGOS<br />

(olha para o fiel Alfredo com ternura e sauda<strong>de</strong>) - Você ainda se lembra , Alfredo , quando<br />

corriam os nossos cavalos?<br />

ALFREDO<br />

Com a breca! Se me lembro!<br />

DOMINGOS<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Já não correm mais... Pararam!... Há muito tempo que pararam!... Eu não queria acreditar, e ,<br />

na minha imaginação, me parecia vê-los correr! Mas, agora, compreendi... me convenci <strong>de</strong><br />

que pararam... e há muito tempo!... (mostra os três jovens) Agora , são eles que <strong>de</strong>vem correr!<br />

São estes cavalilhos novos que <strong>de</strong>vem correr... estes potros <strong>de</strong> sangue quente!... Que no papel<br />

faríamos nós se ainda quisséssemos fazer correr os nossos cavalos?... Todos iriam rir na nossa<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 61


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

cara, Alfredo!...<br />

ALFREDO<br />

Com a breca!<br />

DOMINGOS<br />

Beba, Alfredo!... (Todos bebem) - Os filhos são filhos!... E são uma bênção do céu... E<br />

sempre acontece... Quando , numa família, há mais <strong>de</strong> um, há três, há quatro... acontece que o<br />

pai tem carinho... uma consi<strong>de</strong>ração especial, que sei eu!... por um dos quatro... Ou porque é<br />

mais feio, ou porque não tem boa saú<strong>de</strong>, ou porque é mais prepotente, enfim, por um motivo<br />

qualquer... E os outros filhos não se aborrecem com isso... acham até justo. É quase que um<br />

direito do pai... Aqui, convosco, isto não aconteceu, porque a nossa família se reuniu<br />

<strong>de</strong>masiado tar<strong>de</strong>... Talvez seja melhor assim... Quer dizer que o afeto que eu teria o direito <strong>de</strong><br />

dar a um dos meus filhos ... divido entre todos os três... (Bebe) A nossa!<br />

FILOMENA<br />

(não respon<strong>de</strong>. Tirou do <strong>de</strong>cote um ramalhete <strong>de</strong> flores <strong>de</strong> laranjeiras e, <strong>de</strong> quando em vez, lhe<br />

aspira o perfume.)<br />

DOMINGOS<br />

(dirige-se aos três jovens, em tom bonachão) - Rapaz, amanhã vocês vêem almoçar aqui.<br />

OS TRES<br />

Obrigado.<br />

RICARDO<br />

(encaminhando-se para <strong>Filomena</strong>) - Agora , vamos <strong>de</strong>ixá-las, porque é tar<strong>de</strong> e mamãe precisa<br />

ir <strong>de</strong>scançar. Boa noite, mamãe! (Beija-a) - A gente se verá amanhã.<br />

UMBERTO<br />

(imitando o irmão) - Boa noite, mamãe!<br />

MIGUEL<br />

Boa noite e muitos votos <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>...<br />

UMBERTO<br />

(acercando-se <strong>de</strong> Domingos , sorri-lhe carinhosamente) - Boa noite, papai!...<br />

RICARDO E MIGUEL<br />

(cumprimentam juntos) - Papai, boa noite!...<br />

DOMINGOS<br />

(olha para os três jovens com gratidão. Pausa) - Dê-me um beijo! (Os três um após outro ,<br />

beijam Domingos, emocionados) - Até amanhã!<br />

OS TRÊS<br />

(Saindo acompanhados <strong>de</strong> Alfredo, Rosália e Lúcia) - Até amanhã!<br />

DOMINGOS<br />

(acompanhou-os com o olhar, absorto em suas reflexões sentimentais. Agora, acerca,<br />

acerca-se da mesa e enche novamente o seu copo)<br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 62


FILOMENA<br />

(que foi sentar-se numa poltrona e tirou os sapatos) - Meu Deus como estou cansada! A fadiga<br />

me veio agora toda <strong>de</strong> uma vez!<br />

DOMINGOS<br />

(afetuosamente) - Todo o dia trabalhando! ... Além disto , a emoção... todos os preparativos<br />

<strong>de</strong>stes últimos dias!... Mas , agora, fica tranqüila e trata <strong>de</strong> <strong>de</strong>scançar ... (toma o copo e se<br />

aproxima da varanda) - Que bonita noite está fazendo!<br />

FILOMENA<br />

(sente qualquer coisa que lhe aperta a garganta. Emite uns sons quase parecidos com<br />

lamentações ... e fica o vácuo como à espera <strong>de</strong> algum acontecimento. Os olhos<br />

encheram-se-lhe <strong>de</strong> lágrimas)<br />

DOMINGOS<br />

(olha-a preocupado) - Que foi , <strong>Filomena</strong>?<br />

FILOMENA<br />

(feliz) - Estou chorando, Domingos!... Como é bom chorar!...<br />

DOMINGOS<br />

(apertando-a terntmente contra si) - Não é nada... não é nada!... Correste, correste... tiveste<br />

medo... Caíste... tornaste a te levantar... continuaste a subir a la<strong>de</strong>ira!.... Pensaste muito, e<br />

pensar cansa!... Mas, agora , não corras mais... não penses mais!... Descansa!...(volta para a<br />

mesa para tornar a beber mais um gole <strong>de</strong> vinho) Os filhos são filhos ... e são todos iguais!...<br />

tens razão, <strong>Filomena</strong>, tens razão!... (e bebe o seu vinho, enquanto cai o PANO<br />

FIM.<br />

<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 63


<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />

Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 64

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