Filomena Marturano Eduardo de, Filippo - Universidade Federal de ...
Filomena Marturano Eduardo de, Filippo - Universidade Federal de ...
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[ TT00008 ]<br />
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
"Texto pertencente ao acervo <strong>de</strong> peças teatrais da biblioteca da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Uberlândia<br />
(UFU), digitalizado para fins <strong>de</strong> preservação por meio do projeto Biblioteca Digital <strong>de</strong> Peças Teatrais<br />
(BDteatro). Este projeto é financiado pela FAPEMIG (Convênio EDT-1870/02) e pela UFU. Para a<br />
montagem cênica, é necessário a autorização dos autores, através da Socieda<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong><br />
Autores Teatrais - SBAT"
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
PERSONAGENS:<br />
DOMINGOS SORIANO<br />
ALREDO AMOROSO<br />
UMBERTO.<br />
RICARDO<br />
MIGUEL<br />
UM GARÇON<br />
FILOMENA MARTURANO<br />
ROSÁLIA SOLIMENTE<br />
DIANA<br />
LÚCIA (criada)<br />
TERESINHA ( costureira)<br />
Ação: Nápoles.<br />
Época: ATUALIDADE.<br />
Esta comédia, escrita em dialeto napolitano - FILUMENA MARTURANO - foi representada<br />
pela primeira vez, no original , em Nápoles, a 7 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1946, tendo como<br />
intérpretes, nos principais papéis, Titina <strong>de</strong> <strong>Filippo</strong> e o próprio autor De <strong>Filippo</strong>.<br />
Na tradução <strong>de</strong> Mário da Silva e Renato Alvim, foi ela representada, pela primeira vez , no<br />
Teatro Glória, do Rio <strong>de</strong> Janeiro, a 18 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1949, tendo como intérpretes, nos<br />
principais papéis , Heloísa Helena e Jayme Costa. Deve-se a êste último, diretor da<br />
companhia, o título <strong>de</strong> "<strong>Filomena</strong>, qual é o meu?", que a obra recebeu na primeira<br />
apresentação em nossa língua.<br />
Nota - Por ocasião das representações no Teatro Glória, do Rio <strong>de</strong> Janeiro, pela companhia<br />
Jayme Costa, foram suprimidas as personagens do II GARÇON e <strong>de</strong> TERESINHA. E foram ,<br />
<strong>de</strong> conseqüência , cortadas as falas do I GARÇON dirigidas ao II GARÇON, no I ato , bem<br />
como o inteiro diálogo entre FILOMENA e TERESINHA, no III ato foi, ainda , suprimida a<br />
passagem <strong>de</strong> tempo.<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 2
Em casa <strong>de</strong> Domingos Soriano.<br />
PRIMEIRO ATO<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Espaçosa sala <strong>de</strong> jantar em estilo mo<strong>de</strong>rnista, mobiliada suntosamente, mas com gosto não<br />
muito apurado. Alguns quadros e bibelôs, que lembram o gôsto "fim <strong>de</strong> siécle" e que ,<br />
evi<strong>de</strong>ntemente, <strong>de</strong>coraram outrora a casa do pai <strong>de</strong> Domingos, estão cuidadosamente<br />
colocados nas pare<strong>de</strong>s e sôbre os móveis, em violento choque com tudo o mais. Uma porta E.<br />
B. dá para o quarto <strong>de</strong> dormir. Sempre a E. , na altura do segundo rompimento uma gran<strong>de</strong><br />
porta envidraçada corta a peça, <strong>de</strong>ixando ver uma varanda com flores, coberta por um toldo <strong>de</strong><br />
lona <strong>de</strong> riscas multicôres. No F. à D. a porta <strong>de</strong> entrada. À D., a peça penetra profundamente<br />
nos bastidores e <strong>de</strong>ixa entrever, através <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> vão e <strong>de</strong> uma cortina <strong>de</strong> seda, aberta<br />
pela meta<strong>de</strong>, o "escritório" do dono da casa. Também na <strong>de</strong>coração do "escritório" ,<br />
Domingos Soriano preferiu o estilo mo<strong>de</strong>rnista. Do mesmo estilo é, também, uma vitrine<br />
contendo numerosas taças <strong>de</strong> diferentes formas e dimensões: primeiros prédios conquistados<br />
pelos seus cavalos <strong>de</strong> corridas. Duas ban<strong>de</strong>irinhas dispostas em cruz, na pare<strong>de</strong> fronteira, atrás<br />
<strong>de</strong> uma escrivaninha, também testemunham as vitórias obtidas pro seus parelheiros. Não há<br />
um só livro, um jornal , um papel. Esse recanto, que somente Domingos Soriano tem a<br />
coragem <strong>de</strong> chamar <strong>de</strong> "escritório", é bonito e muito arrumando, mas sem vida. Na sala <strong>de</strong><br />
jantar, a mesa está posta para duas pessoas, com bom gosto e, até com certo requinte; não<br />
falta nem um centro <strong>de</strong> mesa, com rosas fresquissimas. Primavera adiantada, quase verão .<br />
Entar<strong>de</strong>cer. As <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iras luzes do dia morrem na varanda.<br />
Em pé, quase no limitar da porta do quarto <strong>de</strong> dormir, com os braços cruzados, em atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>safio, está <strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong>. Traja uma alva e comprida camisa <strong>de</strong> dormir. Cabelos em<br />
<strong>de</strong>salinho. Pés sem meias, calçando chinelas. Os traços do seu rosto são atormentados, indício<br />
<strong>de</strong> um passado <strong>de</strong> lutas e <strong>de</strong> tristezas. O seu aspecto não é grosseiro , mas não consegue<br />
ocultar sua origem plebéia, nem ela, tampouco, o <strong>de</strong>sejaria. Seus gestos são largos e abertos, o<br />
tom da voz é sempre franco e <strong>de</strong>cidido, <strong>de</strong> mulher que sabe o que quer, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> inteligência<br />
instintiva e <strong>de</strong> muita força moral, <strong>de</strong> mulher que, a seu modo, conhece as Leis da vida e, a seu<br />
modo, as enfrenta. Tem somente quarenta e oito anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>nunciados por alguns fios<br />
<strong>de</strong> cabelos prateados nas fontes, mas não pelos olhos, que conservam ainda a vivacida<strong>de</strong><br />
juvenil e o fogo dos napolitanos. Esta pálida, cadavérica, um pouco por causa da simulação da<br />
qual se tornou protagonisata, isto é, <strong>de</strong> se fazer julgar perto do fim, um pouco pela "trovoada"<br />
que , agora, terá <strong>de</strong> enfrentar. Porém, ela não tem medo. Pelo contrário, está na atitu<strong>de</strong> do<br />
tigre ferido, pronta para dar o bote em cima do adversário.<br />
No canto oposto, e exatamente á D. B. Domingos Soriano enfrenta a mulher com a vonta<strong>de</strong><br />
resoluta <strong>de</strong> quem não conhece limites nem obstáculos para fazer triunfar as mil razões que<br />
julga ter, para acabar com a infâmia <strong>de</strong> que foi vítima e por a nu, diante do mundo, a baixeza<br />
com que foi possível enganá-lo. Sente-se ofendido e ultrajado. Além disso, o fato <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />
parecer um vencido aos olhos dos <strong>de</strong>mais , <strong>de</strong>ixa-o fulo <strong>de</strong> raiva, fora <strong>de</strong> si. É um homem<br />
robusto, sadio, beirando pelos cinqüenta anos . Cinqüenta anos bem vividos. O conforto <strong>de</strong><br />
que sempre gozou e a fortuna <strong>de</strong> que dispõe, mantiveram-lhe o espírito vivo e o aspecto<br />
juvenil. Para seu falecido pai, Raimundo Soriano, um <strong>de</strong>ntre os mais ricos e espertos<br />
fabricantes <strong>de</strong> doces <strong>de</strong> Nápoles, ele era a menina dos olhos. Os caprichos <strong>de</strong> Domingos ( Na<br />
mocida<strong>de</strong> conheciam-no com "Dom Mimi"), não conheciam limites, quer pela extravagância,<br />
quer pela originalida<strong>de</strong>. Ainda se fala dêles , em Nápoles . Apaixonado pelos cavalos <strong>de</strong><br />
corridas, êle é capaz <strong>de</strong> passar dias inteiros evocando com os amigos suas proezas<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 3
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
intrafísticas, os feitos dos mais importantes puro sangues dos seus haras. Agora, alí está ,<br />
trajando calça <strong>de</strong> casemira e paletó <strong>de</strong> pijama abotoando sumariamente, fora <strong>de</strong> si, diante <strong>de</strong><br />
<strong>Filomena</strong>, daquela mulherzinha insignificante, que durante muitos anos êle tratou como uma<br />
escrava e que agora lhe meteu um cabresto e o leva para on<strong>de</strong> quer.<br />
No outro canto, a E. da peça, quase perto da varanda, vê-se em pó, a figura humil<strong>de</strong> e bondosa<br />
da senhora Rosália Solimene. Tem setenta e cinco anos. A côr dos seus cabelos é incerta:<br />
mais para o branco do que para o grisalho. Traja um vestido escuro. Já um tanto curvada, mas<br />
ainda cheia <strong>de</strong> vitalida<strong>de</strong>. Morava num cortiço, diante daquele em que residia a família<br />
<strong>Marturano</strong>, cuja vida conhecia nos menores <strong>de</strong>talhes. Conhece, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a mais tenra ida<strong>de</strong>,<br />
<strong>Filomena</strong>. Esteve perto <strong>de</strong>la até nos momentos mais tristes da sua existência e nunca lhe<br />
poupou aquelas palavras <strong>de</strong> consôlo, <strong>de</strong> compreensão , <strong>de</strong> ternura, que somente as mulheres<br />
do nosso povinho sabem prodigalizar. Ela acompanha com ansieda<strong>de</strong> os movimentos <strong>de</strong><br />
Domingos, sem nunca perdê-lo <strong>de</strong> vista. Conhece, por dura experiência , a irascibilida<strong>de</strong><br />
dêsse homem, e por êsse motivo, apavorada, não pestaneja sequer, como se fôsse <strong>de</strong> pedra.<br />
No quarto canto da peça, vê-se outra personagem: Alfredo Amoroso. É um simpático homem,<br />
aí pelos sessenta anos, <strong>de</strong> compleição sólida, robusta. Os companheiros lhe tinham posto o<br />
apelido <strong>de</strong> "o cocheirinho". Era habilíssimo, com efeito, em guiar cavalos, e esta é razão pela<br />
qual Domingos o tomou ao seu serviço, outrora, e para quem êle atualmente exerce o ofício<br />
<strong>de</strong> besta <strong>de</strong> carga, <strong>de</strong> bodo expiatório, <strong>de</strong> alcoviteiro, <strong>de</strong> amigo. Êle resume todo o passado do<br />
seu patrão. Basta observar a maneira com que êle olha para Domingos, para se compreen<strong>de</strong>r<br />
até que ponto lhe permaneceu fiel e <strong>de</strong>votado. Traja um paletó cinzento, um pouco surrado,<br />
mas <strong>de</strong> corte perfeito, calça <strong>de</strong> outra côr e um boné posto na cabeça um pouco <strong>de</strong> viés.<br />
Ostenta, no meio do colete, uma corrente <strong>de</strong> ouro. Está em atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> expectativa. É , talvez, o<br />
mais sereno <strong>de</strong> todos os presentes. Conhece seu patrão. Quantas vezes já apanhou em lugar<br />
dêle!...<br />
Ao subir o pano, encontramos assim os quatro personagens, nesta posição <strong>de</strong> jogo dos quatro<br />
cantos.<br />
Dir-se-ia que estão alí para se divertir como crianças e no entanto, foi a vida que os atirou um<br />
contra o outro.<br />
Pausa <strong>de</strong>morada.<br />
DOMINGOS<br />
(No auge da exasperação, levando a mão à cabeça, como que para arrancar os cabelos) -<br />
Louco! Louco! Louco! Cem vezes! Mil vezes louco que eu fui!<br />
ALFREDO<br />
(intervindo, com um ligeiro gesto) - Mas que é que o senhor está fazendo?<br />
ROSÁLIA<br />
(acerca-se <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong> o põe-lhe sôbre os ombros um chalé , que terá ido buscar em cima <strong>de</strong><br />
uma ca<strong>de</strong>ira ao F.)<br />
DOMINGOS<br />
Que espécie <strong>de</strong> homem sou eu? Eu <strong>de</strong>via é ir por-me diante <strong>de</strong> um espelho e cuspir na minha<br />
cara até ficar com a bôca sêca! ( para <strong>Filomena</strong>, com um lampejo <strong>de</strong> ódio nos olhos) - Ao teu<br />
lado , <strong>de</strong>sperdicei a minha vida, atirei fora vinte cinco anos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> , <strong>de</strong> fôrça , <strong>de</strong><br />
inteligência, <strong>de</strong> mocida<strong>de</strong>! Que mais queres <strong>de</strong> mim? Que mais preten<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Dominges<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 4
Soriano? Exiges os restos <strong>de</strong>sta existência , da qual fizeste o que bem enten<strong>de</strong>ste? (berrando si<br />
mesmo, com <strong>de</strong>sprezo) - Enquanto eu me julgava uma espécie <strong>de</strong> divinda<strong>de</strong> na terra, todo<br />
mundo fazia <strong>de</strong> mim o que queria... ( açontando para todos, num gesto <strong>de</strong> acusação) - Tu...<br />
você... você ... o bêco inteiro, o bairro todo, a cida<strong>de</strong> , o mundo! Todos sempre me obrigaram<br />
a fazer o papel <strong>de</strong> idiota! (A idéia da peça que <strong>Filomena</strong> lhe pregou, volta-lhe <strong>de</strong> repente à<br />
mente e faz-lhe ferver o sangue) - Eu nem posso pensar nisso! Sim, era <strong>de</strong> esperar! Somente<br />
uma mulher como tu, podia chegar a êsse ponto! Não podias <strong>de</strong>smentir-te! Vinte e cinco anos<br />
<strong>de</strong> vida, não podiam mudar-te! Mas, não penses que ganhaste a partida! Não ! Ainda não<br />
ganhaste! Eu te mato, ouviste ? Mato a ti e a todos os que te ajudaram: o médico , o padre... (<br />
Apontando para Rosália, que estremece, e para Alfredo , que , ao contrário não se amofina;<br />
com ar <strong>de</strong> ameaça) -... e a êstes dois seres nojentos, que viveram à minha custa durante tantos<br />
anos... Mato a vocês todos! (Decidido)- O revólver! Dêem-me o revólver!<br />
ALFREDO<br />
Levei os dois para o armeiro lhes tirar a ferrugem, como o senhor disse.<br />
DOMINGOS<br />
Quantas coisas disse eu... e quantas me fizeram dizer à fôrça! Mas, agora, acabou-se,<br />
ouviram? Agora acor<strong>de</strong>i, compreendi tudo! ( Para <strong>Filomena</strong>) - Quanto a ti... Vai- te embora...<br />
e se não fores com as tuas próprias pernas, sairás daqui num caixão <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto! Não existe lei,<br />
não existe o diabo que possa dobrar Domingos Soriano! Denuncio a todos vocês por falso<br />
testemunho! Mando todos parar na ca<strong>de</strong>ia! Dinheiro é o que não me falta! Faço-te dançar na<br />
corda bamba, <strong>Filomena</strong>! Quando eu contar quem tu foste , <strong>Filomena</strong>, e <strong>de</strong> que espécie <strong>de</strong> casa<br />
eu te tirei , êles têem <strong>de</strong> me dar razão! Liquido-te, <strong>Filomena</strong>! Aniquilo-te <strong>de</strong> uma vez por<br />
todas!<br />
(pausa)<br />
FILOMENA<br />
(As ameaças dêles não lhe causaram a menor impressão . Sente-se perfeitamente segura <strong>de</strong> si)<br />
- Acabaste? Tens mais alguma coisa para dizer?<br />
DOMINGOS<br />
(De chofre) - Caia a boca ! Não fales! Não quero ouvir a tua voz!<br />
FILOMENA<br />
Quando eu tiver dito tudo aquilo que tenho aqui <strong>de</strong>ntro, (mostra o estômago) ouviste? -<br />
Prometo que nem mais para a tua cara olharei... nunca mais hás <strong>de</strong> ouvir a minha voz!<br />
DOMINGOS<br />
(com <strong>de</strong>sprêzo) - Mulher à toa! Mulher a toa, é o que foste e continua a ser!<br />
FILOMENA<br />
E é preciso dizê-lo assim, <strong>de</strong>sse geito, como se fosse alguma novida<strong>de</strong>? Não sabe todo<br />
mundo, quem eu fui e on<strong>de</strong> estava? Porém , lá on<strong>de</strong> eu estava, tu sabias ir, não é?... Tu e mais<br />
os outros! E sempre te tratei igualzinho aos outros! Porque haveria <strong>de</strong> tratar-te <strong>de</strong> modo<br />
diferente? Os homens não são todos iguais ? O que eu fiz, eu choro sozinha! É comigo, e com<br />
a minha consciência! Mas, agora, sou tua mulher... e daqui não saio nem a mão <strong>de</strong> Deus<br />
padre!<br />
DOMINGOS<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 5
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
Mulher? Mulher <strong>de</strong> quem? Estás doida <strong>Filomena</strong>? Com quem te casaste?<br />
FILOMENA<br />
(friamente) - Contigo!<br />
DOMINGOS<br />
Positivamente, enlouqueceste! Ah! A intrujice é mais que evi<strong>de</strong>nte! A doente! A doença<br />
grave, a agonia, foi tudo uma simulação! Tenho aí as testemunhas! ( Aponta para Alfredo e<br />
Rosália)<br />
ROSÁLIA<br />
(muito <strong>de</strong>pressa) - Eu não sei <strong>de</strong> nada! ( Não quer que a metam num caso tão complicado) -<br />
Eu sei somente que Dona <strong>Filomena</strong> foi para a cama, doente... Seu estado agravou-se e entrou<br />
em agonia ... Ela não me disse nada, e mais do que isso eu não sei!...<br />
DOMINGOS<br />
(para Alfredo) - Você também não sabe nada, não é? Também não sabia que a agonia era uma<br />
simulação?<br />
ALFREDO<br />
Oh! Dom Domingos! Pela amor <strong>de</strong> Deus! O Senhor bem sabe que Dona <strong>Filomena</strong> não me<br />
po<strong>de</strong> tragar! Logo a mim é que ela ia contar os seus planos?...<br />
ROSÁLIA<br />
(para Domingos) - E o padre?... Quem foi que mandou chamar o padre ? Não foi o senhor<br />
mesmo?<br />
DOMINGOS<br />
Sim... porque ela... (aponta para <strong>Filomena</strong>) queria vê-lo! Foi para contentá-la.<br />
FILOMENA<br />
Porque não <strong>de</strong>sejavas outra coisa senão ver-me morta! Não cabias em ti <strong>de</strong> contente,<br />
pensando que, finalmente , ias te ver livre <strong>de</strong> mim!<br />
DOMINGOS<br />
É isto mesmo! Até que enfim, acertaste! E quando o padre, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter falado contigo, se<br />
aproximou <strong>de</strong> mim, dizendo : "Case-se com ela "in extremis". Pobre mulher! É o seu único e<br />
<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sejo. Aperfeiçõe esta união com a com a benção do Senhor"... eu disse...<br />
FILOMENA<br />
(interrompendo) - Disseste com os teus botões: "Afinal, que é perco com isto? Está aí, está<br />
morrendo! Mais algumas horas, e ficareis livre <strong>de</strong>la" (escarnecendo-o) - E Dom Domingos<br />
ficou com uma cara <strong>de</strong> cavalo quando, logo <strong>de</strong>pois que o padre saiu , pus-me sentada na cama<br />
e lhe disse: "Meus votos <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>s, Domingos! Agora somos marido e mulher".<br />
ROSÁLIA<br />
Eu <strong>de</strong>i um pulo... e rebentei naquela gargalhada! (ainda ri do caso) - Nossa senhora! Como<br />
fingiu bem a doença toda!<br />
ALFREDO<br />
E a agonia também!<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 6
DOMINGOS<br />
Calem a boca, senão vou mostrar-lhes como é que se entra em agonia <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>! (Excluindo<br />
qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fraqueza <strong>de</strong> sua parte) Não po<strong>de</strong> ser, não po<strong>de</strong> ser! (Lembrando-se<br />
<strong>de</strong> repente, <strong>de</strong> outra personagem que, na sua opinião, po<strong>de</strong>ria ser o único responsável) - E o<br />
médico? On<strong>de</strong> estava toda a sua ciência? Um médico que nem sequer percebeu que ela não<br />
estava doente e que não tinha coisa alguma! Fez um papel <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro idiota!<br />
ALFREDO<br />
Po<strong>de</strong> ser que o homem tivesse se enganado.<br />
DOMINGOS<br />
(com <strong>de</strong>sdém) - Cale a bôca , Alfredo! (<strong>de</strong>cidido) - Pois o médico é que vai pagar! Ora se vai<br />
pagar! E caro! Ele estava <strong>de</strong> acordo com ela! Não é possível que estivesse <strong>de</strong> boa fé! (Para<br />
<strong>Filomena</strong>, com malícia) - o homem também entrou no "brinquedo", hein? Deste-lhe<br />
dinheiro...<br />
FILOMENA<br />
(enjoada) - É isto! É a única coisa que tu compreen<strong>de</strong>s: dinheiro! Com dinheiro, compraste<br />
tudo o que quiseste na vida! A mim também compraste por dinheiro! É o que estou te<br />
dizendo! Tu eras Dom Mimi Soriano... o tal! ... Vestias-te nos melhores alfaiates da cida<strong>de</strong>...<br />
tinhas os melhores camiseiros ... possuías cavalos <strong>de</strong> corrida... Mas , comigo o páreo foi<br />
diferente! Quem corria eras tu, e nem ao menos te davas conta!... E ainda vais ter <strong>de</strong> correr<br />
muito, ainda vais ter <strong>de</strong> suar sangue , para compreen<strong>de</strong>res como vive e proce<strong>de</strong> um homem <strong>de</strong><br />
bem! O médico não sabia <strong>de</strong> coisa alguma! Ele também acreditou , e tinha <strong>de</strong> acreditar.<br />
Depois <strong>de</strong> vinte e cinco anos ao teu lado, qualquer mulher entra em agonia! .... Fui a tua<br />
criada... (para Rosália e Alfredo) - Fui a criada <strong>de</strong>le durante vinte e cinco anos, e vocês bem<br />
que o sabem! Quando ele partia para ir divertir-se , Londres, Paris... eu é que tinha <strong>de</strong> tomar<br />
conta <strong>de</strong> tudo... é que tinha <strong>de</strong> montar guarda as suas fábricas e às suas lojas , senão os<br />
empregados o levavam à falência! (imitando o tom hipócrita <strong>de</strong> Domingos) "Se eu não te<br />
tivesse, <strong>Filomena</strong>, que seria <strong>de</strong> mim? Tu , sim, é que és uma mulher <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>." Fui eu que<br />
levei adiante a casa, melhor do que se estivesse casada com êle.<br />
Até os pés lhe lavei! Não digo agora, que estou velha, mas quando era nova! E se ao menos<br />
ele tivesse se mostrado agra<strong>de</strong>cido! Mas, qual! Nunca me agra<strong>de</strong>ceu! Sempre me tratou como<br />
uma criadinha, que se po<strong>de</strong> por no olho da rua a qualquer momento!<br />
DOMINGOS<br />
E se ao menos eu te tivesse visto uma vez submissa - sei lá! - consciente da verda<strong>de</strong>ira<br />
situação que existia entre nós dois! Mas, não! Sempre te mostraste <strong>de</strong> cara amarrada, com o<br />
nariz arrebitado, com ares <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong>... Tivesse, ao menos, uma vez, visto uma lágrima<br />
nesses olhos! Nunca a vi! Tanto anos que vivemos juntos , e nunca te vi chorar!<br />
FILOMENA<br />
Chorar? Eu? Por ti? Era só o que faltava!<br />
DOMINGOS<br />
Uma alma penada, sem sossego, uma mulher que não chora, não come , não dorme, eis o que<br />
tu és! Nunca te vi dormir, sequer! Uma verda<strong>de</strong>ira alma danada!<br />
FILOMENA<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 7
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
Quando e como querias ver-me dormir , se estavas sempre fora <strong>de</strong> casa? As melhores festas,<br />
os melhores dias <strong>de</strong> Natal, passei-os sozinha, como um cão sem dono! Sabes quando é que se<br />
chora? Quando se conhece um bem... e quando se conhece o mal, não se chora! A satisfação<br />
<strong>de</strong> chorar, <strong>Filomena</strong> Narturano nunca po<strong>de</strong> tê-la ! Sempre me trataste como a última das<br />
mulheres! (para Rosália e Alfredo, únicas testemunhas das gran<strong>de</strong>s verda<strong>de</strong>s que esta<br />
dizendo) Ainda no tempo em que ele era moço, a gente podia pensar: "Bem. Êle tem dinheiro.<br />
É um bonito rapaz! "Mas, agora, que está um molambo velho, com cinqüenta e dois anos no<br />
lombo, e que volta para casa com os lenços sujos <strong>de</strong> "baton", que até dão nojo!... (para<br />
Rosália) - On<strong>de</strong> estão êles?<br />
ROSALIA<br />
Estão guardados.<br />
FILOMENA<br />
É tão <strong>de</strong>scarado, que nem ao menos sabe ter certa prudência, nem sequer pensa: "E melhor<br />
dar-lhes sumiço, senão ela é capaz <strong>de</strong> achá-los!' Mas , para êle, tanto lhe faz que os ache ou<br />
não! Quem sou eu, que direito tenho eu ? O seu <strong>de</strong>scaramento chega a tal ponto que ainda se<br />
mete a dar em cima daquela...<br />
DOMINGOS<br />
(apanhado em flagrante, reage, furioso) - Daquela, quem? Daquela, quem?<br />
FILOMENA<br />
(nada intimidada, com violência ainda maior que a dêle) - A dar em cima daquela in<strong>de</strong>cente<br />
<strong>de</strong> pequena! Ou talvez pensas que eu não compreendi? Mentiras , tu não sabes, nem nunca<br />
soubeste pregar... Este é o teu <strong>de</strong>feito. Cinqüenta e dois anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, e se mete com uma<br />
pequena <strong>de</strong> vinte e dois! Nem sequer se envergonha! E ainda tem a coragem <strong>de</strong> trazê-la para<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa, dizendo que ela é enfermeira... porque o idiota pensava que eu estivesse<br />
mesmo morrendo!... (como que continuando algo realmente inacreditável) - Ainda há hora,<br />
antes que chegasse o padre para nos casar, julgando que eu estivesse para esticar a canela e<br />
não visse mais nada , andavam-se aos beijos e abraços perto da minha cama! (como que<br />
enjoada) - Meu Deus! Que nojo me das! Se eu estivesse realmente agonizando, era ou não isto<br />
o que terias feito? Eu estava a morte e a mesa estava posta (indica a mesa) para êle e para essa<br />
sirigaita! ...<br />
DOMINGOS<br />
Ora essa! Então, se morresses, eu não <strong>de</strong>via comer mais? Não <strong>de</strong>via mais alimentar-me?<br />
FILOMENA<br />
Com as rosas no centro da mesa?<br />
DOMINGOS<br />
Com as rosas no centro da mesa, perfeitamente!<br />
FILOMENA<br />
Rosas Vermelhas?<br />
DOMINGOS<br />
Vermelhas , ver<strong>de</strong>s, rôxas! Porque? Eu não tinha, por acaso , o direito <strong>de</strong> mandar por umas<br />
rosas no centro da mesa? Não tinha o direito <strong>de</strong> alegrar-me com a tua morte?<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 8
FILOMENA<br />
Mas eu não morri, não senhor! (Como que para lhe fazer um <strong>de</strong>speito) - E não tenciono<br />
morrer tão cedo, meu caro Domingos!<br />
DOMINGOS<br />
É isso o que está atrapalhando! (pausa) - Mas , o que não consigo é compreen<strong>de</strong>r uma coisa...<br />
Se me trataste sempre como a todos os outros, pois na tua opinião, os homens são todos iguais<br />
, porque te <strong>de</strong>u na telha <strong>de</strong> querer te casares comigo? E se me apaixonei por outra mulher e<br />
quero casar-me com ela... como hei <strong>de</strong> me casar , porque Diana há <strong>de</strong> ser minha mulher... que<br />
importância tem para ti que ela tenha ou não vinte e dois anos?<br />
FILOMENA<br />
Dá-me até vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> rir! Com franqueza, causas-me dó! Estás pensando que eu me importo<br />
contigo, com essa pequena que te fez per<strong>de</strong>r a cabeça e com tudo o mais que estás dizendo?...<br />
Acreditas, realmente, que o que eu fiz foi por ti... pelos teus olhos? Ora!... Nunca fiz caso <strong>de</strong><br />
ti.... nunca te liguei!... Uma mulher como eu - foste tu que o disseste e continuas a dizê-lo há<br />
vinte e cinco anos - uma mulher como eu , sabe o que quer! Uma coisa que serve ou não<br />
serve... tu, por exemplo, me serves... Ou julgavas, talvez, que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vinte e cinco anos<br />
<strong>de</strong>sta vida <strong>de</strong> misérias que passei do teu lado, eu me iria embora, <strong>de</strong> mãos abanando?<br />
DOMINGOS<br />
(Com ar <strong>de</strong> triunfo, julgando ter compreendido os motivos ocultos da peça que pregou<br />
<strong>Filomena</strong>) Ah! O dinheiro ! Pensas que eu não ia te dar dinheiro? Na tua opinião , Domingos<br />
Soriano, filho do Raimundo Soriano , um dos mais importantes e abastados fabricantes <strong>de</strong><br />
doces da cida<strong>de</strong>, não teria pensado em te montar uma casa <strong>de</strong>cente e por-te em condições <strong>de</strong><br />
não precisar <strong>de</strong> ninguém?<br />
FILOMENA<br />
(<strong>de</strong>sanimada ante tamanha incompreensão. Com <strong>de</strong>sprezo) - É melhor que cales a boca! Será<br />
possível que vocês , homens, não compreendam nunca coisa alguma? Dinheiro , a mim,<br />
Domingos? Guarda-o bem guardado, o teu dinheiro, e que te faça bom proveito! É outra coisa<br />
o que eu quero <strong>de</strong> ti.... e hei <strong>de</strong> consegui-la ! Eu tenho três filhos , Domingos!<br />
DOMINGOS<br />
(e Alfredo ficam <strong>de</strong> boca aberta, assobradas)<br />
ROSÁLIA<br />
(ao contrário, fica impassível)<br />
DOMINGOS<br />
Três filhos? Que diabo estás dizendo, <strong>Filomena</strong>?<br />
FILOMENA<br />
(repetindo , maquinalmente) - Tenho três filhos , Domingos!<br />
DOMINGOS<br />
(perturbado) - ...<strong>de</strong> quem são filhos?<br />
FILOMENA<br />
(que percebeu perfeitamente o terror <strong>de</strong> Domingos. Friamente) -<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 9
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
- De homens como tu!<br />
DOMINGOS<br />
(em tom grave) <strong>Filomena</strong> ... <strong>Filomena</strong>, tu estás brincando com o fogo ! Que quer dizer: "De<br />
homens como tu?"<br />
FILOMENA<br />
É que você são todos iguais!<br />
DOMINGOS<br />
(para Rosália) - Você sabia?<br />
ROSÁLIA<br />
Sim senhor, isto eu sabia.<br />
DOMINGOS<br />
(para Alfredo) - E você?<br />
ALFREDO<br />
(pronto para <strong>de</strong>sculpar-se) - Eu , não! Eu já lhe disse que Dona <strong>Filomena</strong> me o<strong>de</strong>ia!<br />
DOMINGOS<br />
(não ainda não quer se persuadir da realida<strong>de</strong> dos fatos. Como que falando consigo mesmo)<br />
Três filhos! (para <strong>Filomena</strong>) - E que ida<strong>de</strong> tem eles?<br />
FILOMENA<br />
O maior tem vinte e seis anos.<br />
DOMINGOS<br />
Vinte e seis anos?<br />
FILOMENA<br />
Não faças essa cara! Não te assustas! Não são teus filhos.<br />
DOMINGOS<br />
(um tanto aliviado) - E eles te conhecem? Falam contigo? Sabem que és mãe <strong>de</strong>les?<br />
FILOMENA<br />
Não sabem, mas os vejo sempre e converso com êles.<br />
DOMINGOS<br />
On<strong>de</strong> estão? Que fazem ? Como vivem?<br />
FILOMENA<br />
Com o teu dinheiro!<br />
DOMINGOS<br />
(surpreso) - Com o meu dinheiro?<br />
FILOMENA<br />
Claro, com o teu dinheiro! Com o dinheiro que eu te roubei! Eu te roubava dinheiro da<br />
carteira, enten<strong>de</strong>ste? Roubava-te nas tuas barbas!<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 10
DOMINGOS<br />
(com <strong>de</strong>sprezo) - Gatuna!<br />
FILOMENA<br />
(sem se <strong>de</strong>ixar abalar) - Roubei-te! Até tuas roupas e sapatos vendi. E nunca <strong>de</strong>ste por isso!<br />
Lembras-te daquele anel <strong>de</strong> brilhantes que eu te disse ter perdido? Pois vendi! Foi com o teu<br />
dinheiro que criei os meus filhos!<br />
DOMINGOS<br />
(enjoado) - Eu tinha uma gatuna <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa! Mas, que espécie <strong>de</strong> mulher és tu?<br />
FILOMENA<br />
(como se não lhe tivesse dado ouvidos) - (continuando) - Um <strong>de</strong>les tem oficina no beco aqui<br />
ao lado. É bombeiro.<br />
ROSÁLIA<br />
(que estava com uma vonta<strong>de</strong> louca <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r falar) Funileiro. Concerta torneiras, <strong>de</strong>sentope<br />
pias... (aludindo , agora, ao segundo filho)<br />
- o outro... como é mesmo que se chama? Ah, Ricardo! Que rapagão! Tem uma loja <strong>de</strong><br />
camiseiro. Faz camisas sob medida. Clientela <strong>de</strong> primeira! E nem falemos <strong>de</strong> Umberto...<br />
FILOMENA<br />
Esse estudou. Quis estudar. É perito-contador e escreve coisas nos jornais.<br />
DOMINGOS<br />
(irônico)) Ah! Temos um escritor na família!<br />
ROSÁLIA<br />
(louvando os sentimentos maternais <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>) - E que não que ela tem sido para êles!<br />
Nunca lhes <strong>de</strong>ixou nada!...Eu posso dizê-lo, porque, já estou velha e não tardo muito a<br />
comparecer à presença <strong>de</strong> Deus Todo Po<strong>de</strong>roso, que tudo vê, tudo perdoa e não se <strong>de</strong>ixa<br />
engabelar com conversa fiada... Des<strong>de</strong> pequeninos, ainda quando cueiros, ela nunca lhe<br />
<strong>de</strong>ixou falar nada!...<br />
DOMINGOS<br />
Com o meu dinheiro!<br />
ROSÁLIA<br />
(espontaneamente, com instintivo sentimento <strong>de</strong> justiça) - Mas se o senhor o atirava fora o seu<br />
dinheiro!....<br />
DOMINGOS<br />
Será que tinha <strong>de</strong> prestar contas a alguém?<br />
ROSÁLIA<br />
Oh! Isso não! Mas nem sequer <strong>de</strong>u pela coisa....<br />
FILOSOFIA<br />
Não lhe dê ouvidos, Rosália! Ainda per<strong>de</strong> tempo em respon<strong>de</strong>-lhe?<br />
DOMINGOS<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 11
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
(dominando-se) - <strong>Filomena</strong> , tu queres provocar-me, a todo o transe! Aon<strong>de</strong> iremos parar?<br />
Será possível que não te dês conta do que fizeste-me fazer o papel <strong>de</strong> palhaço! Sim ... porque<br />
esses três cavalheiros, que nunca vi mais gordos, que nem sei <strong>de</strong> on<strong>de</strong> saíram, hão <strong>de</strong> ter rido<br />
<strong>de</strong> mim a mais não po<strong>de</strong>r! Na hora dos apertos , forçosamente , haviam <strong>de</strong> dizer: "Deixa<br />
correr o marfim! Tomos o dinheiro do senhor Domingos"!...<br />
ROSÁLIA<br />
(excluindo tal hipótese) - Oh! Isso , não! Eles não sabem <strong>de</strong> nada. Dona <strong>Filomena</strong> sempre fêz<br />
tudo como <strong>de</strong>via: com prudência e com a cabeça no lugar. Ela sempre teve muito juízo . O<br />
tabelião entregou o dinheiro ao funileiro, quando abriu a oficina no beco aqui ao lado,<br />
dizendo que era <strong>de</strong> uma senhora que não queria fazer-se conhecer... E do mesmo modo<br />
proce<strong>de</strong>u com o camiseiro. E o tabelião está também encarregado <strong>de</strong> dar a mesada a Umberto,<br />
para seus estudos. Como esta vendo o senhor está absolutamente fora <strong>de</strong> tudo isso!<br />
DOMINGOS<br />
(amargo) - O que eu fiz foi só pagar!<br />
FILOMENA<br />
(num ímpeto repentino) - Ou querias, talvez, que eu os matasse? Era isso o que <strong>de</strong>via fazer ,<br />
não é, Domingos? Matá-los antes <strong>de</strong> nascerem, como fazem outras mulheres ? Aí, sim! Aí,<br />
sim! Aí, <strong>Filomena</strong> teria sido uma boa mulher! (acossando) Respon<strong>de</strong>!... Era isso o que me<br />
aconselhavam todas as minhas companheiras lá naquela casa... (alu<strong>de</strong> ao lupanar) "Vamos,<br />
que esperas? Assim, ficarás livre <strong>de</strong> uma vez da preocupação!... "Oh! Não! Nunca! Era só o<br />
que faltava! Eu teria ficado a vida inteira com a preocupação, com o remorso <strong>de</strong> um ato tão<br />
monstruoso! Mas eu fui falar como Nossa Senhora... (para Rosália) A Nossa Senhora das<br />
Rosas, você se lembra?<br />
ROSÁLIA<br />
Com não haveria <strong>de</strong> lembrar-me da Nossa Senhora das Rosas! Ela conce<strong>de</strong> uma graça por dia!<br />
FILOMENA<br />
(evocando o místico encontro) - Eram três horas da madrugada. A rua estava <strong>de</strong>serta. Em já<br />
tinha <strong>de</strong>ixando a casa <strong>de</strong> minha família seis meses antes... (aludindo a primeira sensação da<br />
maternida<strong>de</strong>) - Era a primeira vez! O que é que ia fazer ? A quem é que eu ia dizer? Ouvia<br />
<strong>de</strong>ntro da cabeça as vozes das minhas companheiras: "Vamos, que esperas? Assim, ficarás<br />
livre <strong>de</strong> uma vez da preocupação! Olha... conhecemos um médico, que é camarada..." Sem<br />
perceber, eu ia caminhando e tinha chegado ao beco da minha casa, diante do pequeno altar<br />
<strong>de</strong> Nossa Senhora das Rosas. Falei-lhe assim! (Põe as mãos nas âncas e levanta o olhar para<br />
uma imagem sagrada imaginária, como que falando cara a cara, e <strong>de</strong> mulher para mulher, com<br />
a Virgem) - "E agora, que é que eu faço?... Tu sabes tudo... Sabes também porque me<br />
encontro nesta rua da amargura... Que é que eu faço, hein? ..." Mas, ela ficou calada. Não<br />
respon<strong>de</strong>u. (excitada) - "Então, como é? É assim que fazes? Quanto mais ficas calada, mais<br />
acreditam em ti?... Estou falando contigo! (com arrogância vibrante) - Respon<strong>de</strong>!" (imitando<br />
maquinalmente o tom <strong>de</strong> voz <strong>de</strong> alguém, <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sconhecido que, naquele momento falou) -<br />
"Os filhos são filhos!... " Fiquei gelada... assim... parada! (Fica como que <strong>de</strong> pedra, fitando a<br />
imagem sagrada imaginária) - Talvez, se eu me voltasse, tivesse visto e compreendido <strong>de</strong><br />
on<strong>de</strong> vinha a voz. Vinha do interior <strong>de</strong> uma casa, com a janela aberta, no beco vizinho. Mas<br />
então eu pensei: "Porque estão dizendo isto, logo agora, neste momento? Que é que os outros<br />
sabem da minha vida? Neste caso, foi ela que falou!... Sim ... Foi Nossa Senhora! Quando ela<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 12
se viu enfrentada por mim, cara a cara, resolveu falar.... Mas , então Nossa Senhora serve-se<br />
<strong>de</strong> nós?... Será que quando as companheiras me disseram: "Ficarás livre <strong>de</strong> uma vez da<br />
preocupação!" Foi ela também quem me falou, para me por a prova?... E já nem sei mais se<br />
fui eu ou se foi Nossa Senhora quem fez assim com a cabeça! ( Faz um movimento com a<br />
cabeça , como que para dizer: "Sim, compreen<strong>de</strong>ste!) Os filhos são filhos!... E, então , eu jurei<br />
! Foi Por isto que fiquei todos os anos perto <strong>de</strong> ti... Foi por êles, que agüentei tudo o que me<br />
fizeste e a maneira por que trataste... E quando aquele rapaz se apaixonou por mim e queria<br />
casar-se comigo, lembras-te? Fazia cinco anos que vivíamos juntos. Tu , casado , na tua casa.<br />
Eu, lá nos subúrbios, naqueles três quartinhos com cozinha... a primeira casa que montaste<br />
para mim, quando , <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> quatro anos que nos conhecíamos, me tiraste lá <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro!<br />
(refere-se ao lupanar ) O pobre rapaz queria casar-se comigo... mas tu me fizeste uma<br />
ciumada!... Ainda me parece que estou a ouvir-te: "Eu já sou casado. Não posso casar-me...<br />
mas, se êle se casar contigo..." E começaste a chorar... porque chorar tu sabes... oh, se sabes!...<br />
Ao contrário <strong>de</strong> mim, que não sei chorar! E , então, eu pensei: "Está bem, e este o meu<br />
<strong>de</strong>stino! Domingos me quer bem. Mesmo que quisesse , não po<strong>de</strong>ria casar-se comigo, porque<br />
já é casado... Fiquemos nos três quartinhos do subúrbio! " Dois anos mais tar<strong>de</strong>, porém, tua<br />
mulher morria. O tempo ia passando e eu continuava no subúrbio... E pensava: "É ainda<br />
jovem... Não quer se pren<strong>de</strong>r portoda a vida a outra mulher. Há <strong>de</strong> vir o momento em que se<br />
acalmará e tornará em consi<strong>de</strong>ração os sacrifícios que em fiz"... " E continuei a esperar. E<br />
quando eu te dizia: "Sabes quem se casou? ... Aquela menina que morava em frente da minha<br />
janela....", tu rias, punhas-te e rir, exatamente como quando ias com os teus amigos, naquela<br />
casa on<strong>de</strong> eu estava, antes <strong>de</strong> ir morar no subúrbio... Davas aquela gargalhada que nem parece<br />
humana... aquela gargalhada que começa no primeiro lance da escada... aquela gargalhada que<br />
é sempre a mesma , seja quem for que a dê! ... Ah! Como eu tinha vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> te matar quando<br />
rias assim! (paciente) E continuei a esperar... Esperei vinte e cinco anos, pensando que te<br />
<strong>de</strong>cidisses... "Agora , já está velho.... já está com cinqüenta e dois aos... Quem sabes? ....<br />
Talvez..." Mas , qual !... Continuas a julgar-te jovem. Corres atrás <strong>de</strong> tudo quanto é rabo <strong>de</strong><br />
saia!... Já estás ficando caduco! Trazes os lenços sujos e "baton" para casa!... Chegas até a<br />
preten<strong>de</strong>r meter <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa essa <strong>de</strong>savergonhada <strong>de</strong> pequena! (Ameaçadora) - Quero vê-la<br />
meter-se aqui em casa, agora, que sou tua mulher! Enxoto daqui todos os dois, a ti e a ela!<br />
Agora somos marido e mulher! O padre nos casou! Esta é a minha casa!<br />
(Toque <strong>de</strong> campainha no interior)<br />
ALFREDO<br />
(Sai pelo F. A D.)<br />
DOMINGOS<br />
Tua casa? (Ri contrafeito, ironicamente) - Agora és tu que me fazes rir!<br />
FILOMENA<br />
(Pérfida) - Pois ri... ri! Agora, me dá até prazer ouvir-te rir. Porque já não sabes rir como<br />
antigamente.<br />
ALFREDO<br />
(Volta e olha para todos os parentes, preocupado com o que terá <strong>de</strong> dizer)<br />
DOMINGOS<br />
(Vendo-o, fala-lhe rispidamente) - Que é que você quer?<br />
ALFREDO<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 13
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
Eu não quero nada! É que... que trouxeram o jantar!<br />
DOMINGOS<br />
Na sua opinião , talvez, eu não haveria <strong>de</strong> jantar?<br />
ALFREDO<br />
(Como que para dizer: "Bem... Eu não tenho nada com isto") - Ora, Dom Domingos...<br />
(Falando para o F. à D.) - Po<strong>de</strong> trazer!<br />
(Entram dois garçons <strong>de</strong> restaurante trazendo numa cesta o necessário para uma boa ceia)<br />
UM GARCON<br />
(Todo serviçal) - Aqui está a ceia. (Para o outro garçon) Põe aí.<br />
(Pousam no chão a cesta da ceia, no lugar indicado pelo primeiro Garçon).<br />
I GARÇON<br />
Senhor Domingos, o frango é um só, porque é muito gran<strong>de</strong> e dá até para quatro pessoas.<br />
Tudo o que o senhor encomendou é <strong>de</strong> primeira. (Faz menção <strong>de</strong> tirar as comidas da cesta)<br />
DOMINGOS<br />
(Retendo-o, com um gesto irritado) - Escute... Sabe o que <strong>de</strong>ve fazer? Vá-se embora!<br />
I GARÇON<br />
Pois, não. (Tira da cesta um doce e coloca-o em cima da mesa) - Este é o doce preferido da<br />
senhorita... (Tirando também uma garrafa da cesta e colocando-a em cima da mesa) - Este é o<br />
vinho. ( As palavras do garçon ressoam no mais profundo silêncio. Mas, o homem não se dá<br />
por achado. Continua a falar; <strong>de</strong>sta feita , para pedir algo , num tom melífluo) - O senhor<br />
esqueceu?<br />
DOMINGOS<br />
O que?<br />
I GARÇON<br />
Quando o senhor foi hoje á nossa casa, encomendar a ceia - não se lembra? Eu lhe pedi - se<br />
por acaso, tivesse um par <strong>de</strong> calças velhas... E o senhor me disse: "Vá lá em casa logo mais a<br />
noite, porque , se acontecer aquilo que estou esperando... se eu tiver a boa notícia ... você<br />
levará <strong>de</strong> presente um terno novinho em folha."<br />
(Soturno silêncio por parte dos <strong>de</strong>mais. Pausa)<br />
I GARÇON<br />
(Está ingenuamente <strong>de</strong>sapontado) - Aquilo que o senhor esperava, não aconteceu? (Aguarda a<br />
resposta).<br />
DOMINGOS<br />
(permanece calado)<br />
I GARÇON<br />
A boa noticia não chegou?<br />
DOMINGOS<br />
(Agressivo) - Já lhe disse para ir embora!<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 14
I GARÇON<br />
(Admirado do tom <strong>de</strong> Domingos) - Já vou.. Já vou... (Olha ainda para Domingos e em seguida<br />
suspira)- Vamos, Carlos! A boa notícia não chegou!... Que azar o meu!... (suspira) Muito boa<br />
noite! (sai pelo F. juntamente com o companheiro).<br />
FILOMENA<br />
(Após uma pausa, sarcasticamente para Domingos) - Vamos , come! Que é isto? Não queres<br />
comer? Ficaste sem apetite?<br />
DOMINGOS<br />
(atrapalhado, furioso) - Vou comer , sim! Mais tar<strong>de</strong>, vou comer e beber!<br />
FILOMENA<br />
(aludindo a jovem já mencionada um pouco antes) - Ah! Quando vier a serigaita?<br />
DIANA<br />
(Entra pelo F. à D.. É uma jovem , bonita , <strong>de</strong> vinte e dois anos, ou melhor, esforça-se por<br />
aparentar essa ida<strong>de</strong>, mas tem vinte e sete. Traja com uma elegância rebuscada, um pouco<br />
snob. Olha todo o mundo <strong>de</strong> cima para baixo. Ao entrar, fala ligeiramente com todos, sem se<br />
dirigir diretamente a nenhum <strong>de</strong>les, dando mostras <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sprezo a todos ... Não<br />
percebe, por isto, a presença <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>. Traz uns embrulhinhos <strong>de</strong> remédios , que coloca<br />
máquinalmente em cima da mesa. Pega sobre uma ca<strong>de</strong>ira um avental branco <strong>de</strong> enfermeira e<br />
veste-o) - Quanta gente havia na farmácia! (Malcriada, com ares <strong>de</strong> dona da casa) - Rosália ,<br />
vá preparar-me um banho! (Vê as rosas em cima da mesa) - Meu Deus! Rosas vermelhas! ...<br />
Obrigada, Domingos! Que cheirinho bom! Ah! Não imagina como estou com fome! (Tira <strong>de</strong><br />
um dos embrulhos que <strong>de</strong>ixou em cima da mesa umas ampolas) - Encontrei o óleo canforado<br />
e adrenalina. Não tinham balão <strong>de</strong> oxigênio.<br />
DOMINGOS<br />
(está como se tivesse sido fulminado)<br />
FILOMENA<br />
(não pestaneja, espera).<br />
ROSÁLIA e ALFREDO<br />
(quase que chegam a achar graça)<br />
DIANA<br />
(senta-se perto da mesa, <strong>de</strong> frente para o público, e acen<strong>de</strong> um cigarro) - Eu pensei : se... meu<br />
Deus, não gosto <strong>de</strong> dizer a palavra, mas, afinal... se ela morrer esta noite , amanhã <strong>de</strong> manhã<br />
cedo, partirei. Arranjei um lugar no automóvel <strong>de</strong> uma amiga... Aqui, eu só serviria para<br />
atrapalhar... Voltarei <strong>de</strong>pois que ela estiver enterrada... daqui a uns <strong>de</strong>z dias... Virei vê-lo<br />
logo, Domingos....(aludindo a <strong>Filomena</strong>) - E ... como está ela? ... Sempre agonizante?... Veio<br />
o padre?<br />
FILOMENA<br />
(Dominando-se, com simulada cortesia, acerca-se vagarosamente <strong>de</strong> Diana) - O padre veio,<br />
sim , senhora...<br />
DIANA<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 15
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
(Surpesa, levante-se e dá uns passos para trás)<br />
FILOMENA<br />
... e assim que viu que eu estava estrebuxando ... (Não completa a frase. Bruscamente , felina)<br />
- Dispa-se! (alu<strong>de</strong> ao avental)<br />
DIANA<br />
(que não compreen<strong>de</strong>u) - O que ?<br />
FILOMENA<br />
(i<strong>de</strong>m) - Dispa-se!<br />
ROSALIA<br />
(percebe que Diana tampouco <strong>de</strong>sta vez compreen<strong>de</strong>u e, para evitar maiores males,<br />
aconselha-a pru<strong>de</strong>ntemente) - Tire isso! (e aponta para sua própria camisa)<br />
DIANA<br />
(finalmente, compreen<strong>de</strong> e, com instintivo temor, tira o avental <strong>de</strong> enfermeira)<br />
FILOMENA<br />
(que acompanhou os movimentos <strong>de</strong> Diana, sem tirar-lhe os olhos <strong>de</strong> cima) - Ponha aí em<br />
cima da ca<strong>de</strong>ira!...<br />
DIANA<br />
(executa)<br />
FILOMENA<br />
(retoma o tom cortes do inicio)- Viu que eu estava agonizantezinha e aconselhou o senhor<br />
Domingos Soriano a aperfeiçoar a união "em extremida<strong>de</strong>" (<strong>Filomena</strong> quer dizer "in<br />
extremis". Aludiu ao padre)<br />
DIANA<br />
(que não sabe o que há <strong>de</strong> fazer, tirar do centro <strong>de</strong> mesa uma rosa e finge que lhe aspira o<br />
perfume)<br />
FILOMENA<br />
(fulmina-a com o tom opaco da sua voz) - Ponha essa rosa no lugar!<br />
DIANA<br />
(como que obe<strong>de</strong>cendo a uma or<strong>de</strong>m teutônica, torna a pôr rosa no lugar)<br />
FILOMENA<br />
(volta ao tom cortes) - E o senhor Domingos achou o conselho acertado, porque pensou: "É<br />
justo! Esta <strong>de</strong>sgraçada está vivendo comigo há vinte e cinco anos... " E muitas outras<br />
conseqüências e inconsequências, que não temos nenhuma obrigação lhe explicar1 Êle<br />
aproximou da cama (alu<strong>de</strong> ao padre) e casamo-nos... com duas testemunhas e a benção do<br />
sacerdote. Talvez que casar seja bom para a saú<strong>de</strong>... O fato é que logo me senti melhor! ...<br />
Levantei-me e adiamos a morte para outra oportunida<strong>de</strong>. Naturalmente, on<strong>de</strong> não há enfermos<br />
, não po<strong>de</strong> haver enfermeiras... E assim certas in<strong>de</strong>cências... ( Como indicador da mão direita<br />
esticado dá uns pequenos golpes no queixo <strong>de</strong> Diana, obrigando-a uma série <strong>de</strong> repentinos<br />
"não" com a cabeça)-... certas porcarias... (repete o gesto) diante <strong>de</strong> uma coitada que estava<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 16
morrendo, porque você pensava que eu ia morrer... se quiser fazê-las, vá para a casa da sua<br />
mãe, ouviu?<br />
DIANA<br />
(continua a recuar até à porta <strong>de</strong> entrada) - Está bem... está bem...<br />
FILOMENA<br />
E se quiser achar-se mesmo à vonta<strong>de</strong>, no ambiente que lhe vai acalhar, vá para casa on<strong>de</strong> eu<br />
estava... (alu<strong>de</strong> ao lupanar)<br />
DIANA<br />
On<strong>de</strong>?<br />
FILOMENA<br />
Pergunte ao senhor Domingos, que freqüentava essa espécie <strong>de</strong> casas e ainda as freqüenta!<br />
Saia ! Vamos!<br />
DIANA<br />
(dominada pelo olhar <strong>de</strong> fogo <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>, quase <strong>de</strong> pânico) - Obrigada... (Encaminha-se<br />
para o F. D.)<br />
FILOMENA<br />
Não há <strong>de</strong> que? (e volta para o seu lagar a E. B.)<br />
DIANA<br />
Boa noite... ( e sai)<br />
DOMINGOS<br />
(que até esse momento ficou pensativo, absorto em estranhas meditações, volte-se para<br />
<strong>Filomena</strong>, aludindo a Diana) - É assim que tu a tratas?<br />
FILOMENA<br />
Como ela merece! (Faz um gesto do <strong>de</strong>speito)<br />
DOMINGOS<br />
Escuta, <strong>Filomena</strong>... Preciso que me dês uma explicação.. Tu és o diabo em pessoa... Contigo a<br />
gente <strong>de</strong>ve ficar sempre alerta... com os olhos bem abertos... As tuas palavras, a gente <strong>de</strong>ve<br />
tomar nota e pesá-las bem... Agora , já estou farto <strong>de</strong> te conhecer! Ainda há pouco, disseste<br />
uma coisa e este tempo todo estive pensando nela... Disseste-me: "O que eu quero <strong>de</strong> ti é outra<br />
coisa e hei <strong>de</strong> consegui-la..." (como que obsedado)- Que mais queres <strong>de</strong> mim? Que é que tens<br />
na cabeça? Que foi que pensaste ainda não me disseste?... Respon<strong>de</strong>!<br />
FILOMENA<br />
(com simplicida<strong>de</strong>) - Não conheces a canção: "Estou criando um pintassilgo... Quanta coisa<br />
hei <strong>de</strong> ensinar-lhe?"...<br />
ROSÁLIA<br />
(erguendo os olhos para o céu) - Ah, meu Deus!<br />
DOMINGOS<br />
(Desconfiado, em guarda, assustado, para <strong>Filomena</strong>) - Que quer dizer isso?<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 17
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
FILOMENA<br />
(precisando) - O pintassilgo és tu!<br />
DOMINGOS<br />
<strong>Filomena</strong>, fala claro!... Não brinques mais comigo!... Ainda vou acabar doente com isto,<br />
<strong>Filomena</strong>!<br />
FILOMENA<br />
(Séria ) - Os filhos são filhos!<br />
DOMINGOS<br />
Que queres dizer?<br />
FILONENA<br />
Eles precisam saber quem é a mãe <strong>de</strong>les... Precisam saber tudo o que fiz por eles.. Precisam<br />
querer-me bem! (animando-se) Não <strong>de</strong>vem se envergonhar diante dos outros homens.. não<br />
<strong>de</strong>vem sentir-se humilhados toda vez que tiverem <strong>de</strong> apresentar um papel, um documento...<br />
Devem ter o mesmo nome que eu!<br />
DOMINGOS<br />
O teu nome? Qual?<br />
FILONENA<br />
O nome que eu tenho. Estamos casados. O nosso nome: Soriano!<br />
DOMINGOS<br />
(perturbadíssimo) - Ah! Eu já tinha compreendido! Eu queria era ouvir da tua boca<br />
semelhante infância... Ouvi-la pronunciada pela tua voz sacrílega... para me convencer <strong>de</strong> que<br />
se eu te jogar daqui para fora aos ponta-pés, se eu te esmagar a cabeça, não terei feito nada <strong>de</strong><br />
mal porque terei esmigalhado uma cobra venenosa , que a gente mata sem remorsos para que<br />
não morda mais ninguém! ( Aludindo ao projeto <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>) - Aqui? Aqui? Na minha casa?<br />
Com o meu nome? Esses filhos <strong>de</strong>...<br />
FILONENA<br />
(Agressiva, para impedi-lo <strong>de</strong> pronunciar a palavra) - Filhos <strong>de</strong> quem?<br />
DOMINGOS<br />
Teus! Se pergunta <strong>de</strong> quem, posso dizer que são teus. Se me perguntas <strong>de</strong> quem mais, não<br />
posso respon<strong>de</strong>r , porque não sei. E tu tampouco o sabes! Ah! Julgavas liquidar o caso,<br />
tranqüilizar a tua consciência e salvar-te do pecado trazendo para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> minha casa três<br />
estranhos? Nunca! Só <strong>de</strong>pois que eu estiver morto! Aqui <strong>de</strong>ntro é que êles não porão os pés!<br />
(solene) - Juro pela memória <strong>de</strong> meu pai que...<br />
FILONENA<br />
(repentintmente, interrompe-o como para preveni-lo <strong>de</strong> um castigo que lhe po<strong>de</strong>ria causar um<br />
sacrilégio cometido por motivos impon<strong>de</strong>ráveis)<br />
- Não jures! Eu, por ter feito um juramento, ando há vinte e cinco anos pedindo-te esmolas!...<br />
Não jures, porque seria um juramento que não po<strong>de</strong>rias cumprir... E morrerias dando se um<br />
dia não pu<strong>de</strong>sses pedir tu a esmola a mim.<br />
DOMINGOS<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 18
(subjugado pelas palavras <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong> como que per<strong>de</strong>ndo o juízo) - Que mais estás<br />
pensando agora? ... Bruxa!... Mas eu não tenho medo <strong>de</strong> ti, fica sabendo! Não tenho medo!<br />
FILONENA<br />
E por que, então, o dizes?<br />
DOMINGOS<br />
Cala a boca! (Para Alfredo, tirando o paletó do pijama) Dê-me o paletó!<br />
ALFREDO<br />
(sai pelo "escritório", sem falar)<br />
DOMINGOS<br />
Amanhã irás embora daqui! Entrego o caso ao advogado. Denuncio-te! Foi uma cilada! Tenho<br />
as testemunhas!... E se a lei não me fizer justiça, eu te mato, <strong>Filomena</strong>! Faço-te sumir <strong>de</strong>ste<br />
mundo!<br />
FILONENA<br />
(irônica) - E para on<strong>de</strong> me mandas?<br />
DOMINGOS<br />
Para on<strong>de</strong> estiveste! (Está exasperado, disposto a insultá-la)<br />
ALFREDO<br />
(volta com o paletó)<br />
DOMINGOS<br />
(arranca-o das mãos <strong>de</strong>le e veste-o, dizendo-lhe) - Amanhã você vai chamar o meu advogado!<br />
Sabes quem é , não é?<br />
ALFREDO<br />
(faz sinal afirmativo com a cabeça)<br />
DOMINGOS<br />
(a <strong>Filomena</strong> ) - E <strong>de</strong>pois conversaremos, <strong>Filomena</strong>!<br />
FILONENA<br />
Sim, conversaremos!<br />
DOMINGOS<br />
Vais ficar sabendo quem é Domingos Soriano! (Encaminha-se para o F.)<br />
FILONENA<br />
(apontando para a mesa) - Rosália, sente-se à mesa... Você também <strong>de</strong>ve estar com fome...<br />
(Senta-se perto da mesa, <strong>de</strong> frente para o público)<br />
DOMINGOS<br />
Deixa estar! ... Não per<strong>de</strong>s por esperar... <strong>Filomena</strong>, "a napolitana"!...<br />
FILONENA<br />
(cantarolando) - Estou criando um pintassilgo...<br />
DOMINGOS<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 19
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
(enquanto <strong>Filomena</strong> cantarola, solta uma gargalhada sarcástica, como que para a escarnecer e<br />
ultrajá-la) - Ah! Ah! Ah!... Lembra-te <strong>de</strong>sta gargalhada, <strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong>!... (e sai<br />
acompanhado por Alfredo, pelo F. D. , enquanto cai o PANO<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 20
Mesmo cenário do Primeiro Ato.<br />
SEGUNDO ATO<br />
No dia seguinte. A criada <strong>de</strong>sarrumou todas as ca<strong>de</strong>iras, para limpar o assoalho. Levou<br />
algumas para a varanda, outras, colocou emborcadas em cima da mesa e outras ainda levou<br />
para o "escritório" <strong>de</strong> Domingos. O tapete <strong>de</strong>baixo da mesa <strong>de</strong> jantar, está dobrado sobre si<br />
mesmo nos quatro lados. Luz normal <strong>de</strong> uma clara manhã <strong>de</strong> sol. LÚCIA é a criada da casa. É<br />
uma rapariga simpática e sadia, <strong>de</strong> vinte e três anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Acabou o seu trabalho.<br />
Espreme, pela última vez, o pano <strong>de</strong> enxugar o chão num bal<strong>de</strong> água suja, em seguida, vai pôr<br />
na varanda todos os utensílios <strong>de</strong> limpeza.<br />
ALFREDO<br />
(Cansado, com sono , entra pelo F. D. enquanto Lúcia está para pôr novamente em or<strong>de</strong>m o<br />
tapete) - Bom dia, Lúcia!<br />
LÚCIA<br />
(Detendo-o com o tom ressentido da voz e com um gesto) - Não comece a caminhar com os<br />
pés aí em cima!<br />
ALFREDO<br />
Está bem... está bem.. Quer dizer que vou caminhar com as mãos!<br />
LÚCIA<br />
Suei como uma danada para limpar esse assoalho!... (Mostra o assoalho ainda parcialmente<br />
molhado) - E o senhor se mete a andar por aí...<br />
ALFREDO<br />
Eu, andar?... Eu estou morto! (Senta-se perto da mesa) Sabe o que quer dizer morto? A noite<br />
toda atrás do senhor Domingos, sem pregar olho! Sentados em cima do paredão, à beira mar!<br />
Justamente agora , que as noites começam a ser frias! O Padre Eterno não podia achar outra<br />
pessoa para pôr ao serviço <strong>de</strong>le? Logo a mim é que ele foi escolher! Não é que eu me queixo.<br />
Deus me livre! Arrumei a minha vidinha. Êle sempre me pagou bem. Tivemos até momentos<br />
<strong>de</strong> grandiosida<strong>de</strong> , eu com ele e ele comigo... Eu <strong>de</strong>sejo que Nosso Senhor lhe dê ainda muitos<br />
anos <strong>de</strong> vida, mas sossegado, tranqüilo! Já estou com sessenta anos e não sou mais nenhum<br />
rapazola... Não agüento mais as noites em claro ao lado <strong>de</strong>le... Lúcia, dê-me uma xícara <strong>de</strong><br />
café.<br />
LÚCIA<br />
(que, entrementes, arrumou no seu lugar as ca<strong>de</strong>iras, sem prestar atenção ao <strong>de</strong>sabafo <strong>de</strong><br />
Alfredo, com simplicida<strong>de</strong>) - Não há!<br />
ALFREDO<br />
Não há?<br />
LÚCIA<br />
Não há. Havia o <strong>de</strong> ontem, mas eu tomei uma xícara, outra Dona Rosália não quis e levou<br />
para Dona <strong>Filomena</strong>, e outra, eu guar<strong>de</strong>i para o senhor Domingos no caso <strong>de</strong>le vir...<br />
ALFREDO<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 21
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
(pouco convencido) - No caso <strong>de</strong>le vir?<br />
LÚCIA<br />
Pois é... No caso <strong>de</strong>le vir... Dona Rosália hoje não fez café.<br />
ALFREDO<br />
E você não podia fazê-lo?<br />
LÚCIA<br />
Eu sei lá fazer café!<br />
ALFREDO<br />
Nem sequer café você sabe fazer! E porque foi que Dona Rosália não fêz?<br />
LÚCIA<br />
Ela saiu muito cêdo. Disse que tinha <strong>de</strong> levar três cartas urgentes <strong>de</strong> Dona <strong>Filomena</strong>...<br />
ALFREDO<br />
(<strong>de</strong>sconfiando) - Três cartas... <strong>de</strong> Dona <strong>Filomena</strong>? Três cartas?<br />
LÚCIA<br />
Pois e... Uma , duas e três.<br />
ALFREDO<br />
(consi<strong>de</strong>rando o seu próprio estado <strong>de</strong> esgotamento) - Mas eu , sem um gole <strong>de</strong> café, é que<br />
não me agüento mais em pé! Sabe o que você vai fazer, Lúcia?... Vai dividir em duas partes a<br />
xícara do senhor Domingos.... Traz-me a meta<strong>de</strong> e junta água para completar a meia xícara<br />
<strong>de</strong>le...<br />
LÚCIA<br />
E se ele <strong>de</strong>r pela coisa?<br />
ALFREDO<br />
Qual! É difícil ! Do jeito em que estava!... Além disto , eu preciso mais do café do que êle ,<br />
porque sou mais velho. Quem foi que o mandou ficar a noite toda no meio da rua?<br />
LÚCIA<br />
Está bem. Vou aquecê-lo e lhe trago. ( Encaminha-se para a porta da E. F. mas vendo chegar<br />
pelo F. D. Rosália, pára e avisa Alfredo) - Dona Rosália... (Vendo que Alfredo olha para ela<br />
sem falar) - Como é? Ainda quer que lhe traga o café?<br />
ALFREDO<br />
Claro que sim! Tanto mais que está chegando Dona Rosália. Ela irá fazer um café fresquinho<br />
para o senhor Domingos. Só quero meia xícara!<br />
LÚCIA<br />
(sai)<br />
ROSÁLIA<br />
(entra pela porta do F. D. e nota a presença <strong>de</strong> Alfredo. Finge, entretanto , que não o viu e ,<br />
toda compenetrada da sua missão, encaminha-se para o quarto <strong>de</strong> dormir <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>)<br />
ALFREDO<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 22
(que reparou na atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rosália , <strong>de</strong>ixa que ela chegue quase no limiar da porta da E. B. e,<br />
então , irônicamente , a chama) - Rosália... Que é que há? Per<strong>de</strong>u a língua?<br />
ROSÁLIA<br />
(Indiferente) - Eu não o tinha visto.<br />
ALFREDO<br />
Não me tinha visto? Sou, acaso, uma formiga em cima <strong>de</strong>sta ca<strong>de</strong>ira?<br />
ROSÁLIA<br />
É... é, sim... uma formiga com catarro! (tosse como quem está com catarro)<br />
ALFREDO<br />
(que não compreen<strong>de</strong>u a alusão) - Com catarro? ... (procurando indagar) - Você saiu cedo<br />
hoje , não foi?<br />
ROSÁLIA<br />
(enigmática) - Saí.<br />
ALFREDO<br />
E on<strong>de</strong> foi?<br />
ROSÁLIA<br />
À missa.<br />
ALFREDO<br />
Á missa! E <strong>de</strong>pois foi levar três cartas <strong>de</strong> Dona <strong>Filomena</strong>...<br />
ROSÁLIA<br />
(colhida <strong>de</strong> sopetão, dominando-se) - Se você já sabia , porque perguntou, hein?<br />
ALFREDO<br />
(fazendo-se indiferente) - Por nada... Perguntei por perguntar... E a quem foi que você as<br />
levou?<br />
ROSÁLIA<br />
Já lhe disse : você é uma formiga com catarro!<br />
ALFREDO<br />
(agastado por não compreen<strong>de</strong>r) - Catarro? Que é que o catarro tem com isto?<br />
ROSÁLIA<br />
(Como que para dizer : "Você não sabe guardar segrêdo") - Você é muito falador... E além<br />
disto, é um espiã!<br />
ALFREDO<br />
Alguma vez an<strong>de</strong>i espionando você?<br />
ROSÁLIA<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
A mim ? Comigo não há nada para espionar! Eu sou límpida como água da fonte! A minha<br />
vida é clara , meu velho! (Como um refrão que já sabe <strong>de</strong> cor, tantas vêzes o repetiu) -<br />
"Nascida em mil oitocentos e setenta, faça a conta dos anos que tenho. Filha <strong>de</strong> pais pobres,<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 23
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
mas honrados. Minha mãe , sofria Trombeta, era lava<strong>de</strong>ira , e meu pai , Polidoro Solimene,<br />
ferreiro. Rosália Solimene , que sou eu, e Vicente Bagliore , que concertava guarda-chuvas,<br />
contraíram legítimas núpcias no dia dois <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> mil oitocentos e Oitenta e sete."<br />
ALFREDO<br />
No dia <strong>de</strong> finados?<br />
ROSÁLIA<br />
Sim! Que é que tem Tínhamos que lhe pedir licença, talvez?<br />
ALFREDO<br />
A mim, não ! (estimulado-a a falar) - Toque para a frente! Adiante!...<br />
ROSÁLIA<br />
Dessa união vieram ao mundo três filhos <strong>de</strong> uma só vez. Quando a parteira foi dar a notícia a<br />
meu marido, que trabalhava no beco logo ao lado, encontrou-o com a cabeça <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma<br />
tina...<br />
ALFREDO<br />
Estava refrescando-a na água...<br />
ROSÁLIA<br />
(repete a frase, frisando-a, para lhe fazer ver a inoportunida<strong>de</strong> do gracejo) -... com a cabeça<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma tina porque tinha tido um colapso, que o levou na flor da ida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta para<br />
melhor! Órfã <strong>de</strong> ambos os sais e com três filhos para criar, fui morar num cortiço do beco <strong>de</strong><br />
São Libório e pus-me a ven<strong>de</strong>r papel <strong>de</strong> matar moscas e bilhetes <strong>de</strong> loteria. O papel <strong>de</strong> matar<br />
moscas, fazia-o eu mesma, e assim, e assim ganhava o suficiente para sustentar a mim e as<br />
crianças. No beco <strong>de</strong> Libório, conheci Dona <strong>Filomena</strong> que, quando era menina, brincava com<br />
os meus três filhos. Depois da maiorida<strong>de</strong>, meus filhos não encontraram trabalho... Um, então<br />
, foi para a Austrália e dois para a América... e nunca mais tive notícias <strong>de</strong>les. Fiquei sozinha,<br />
com o papel <strong>de</strong> matar moscas e os bilhetes <strong>de</strong> loteria. E é melhor não falar mais no assunto,<br />
porque , senão , me sobe o sangue à cabeça!... Se não fosse Dona <strong>Filomena</strong>, que me tomou<br />
consigo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua casa, quando veio morar com o senhor Domingos, eu teria acabado<br />
pedindo esmola na escadaria <strong>de</strong> uma igreja! Boa noite , muito obrigada e acabou-se a fita!...<br />
ALFREDO<br />
(sorrindo ) - Amanhã, novo programa!... Mas a quem foi que você levou as três cartas?<br />
Po<strong>de</strong>-se saber?<br />
ROSÁLIA<br />
Esta incumbência <strong>de</strong>licada que me foi confiada , não posso "<strong>de</strong>sconfiá-la" tornando-a <strong>de</strong><br />
público domínio....<br />
ALFREDO<br />
(Desapontado, com raiva) - Você é mesmo antipática! Olhe só como a malda<strong>de</strong> lhe torceu a<br />
cara toda! Você é feia <strong>de</strong> doer!<br />
ROSÁLIA<br />
(Em tom sobranceia) - Não estou precisando <strong>de</strong> encontrar marido...<br />
ALFREDO<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 24
(esquecendo as ofensas que disse, no tom costumeiro <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>) - Você vai fazer-me o<br />
favor <strong>de</strong> me pregar este botão no paletó... (mostra o botão).<br />
ROSÁLIA<br />
(Encaminhando-se para o quarto <strong>de</strong> dormir <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>, em tom <strong>de</strong> quem toma uma <strong>de</strong>sforra)<br />
- Amanhã, se tiver tempo!<br />
ALFREDO<br />
E precisa também coser-me um elástico nas cuecas.<br />
ROSÁLIA<br />
Compre o elástico e <strong>de</strong>pois eu coso. Com licença! (E sai, muito digna, pela porta da E. B.)<br />
LÚCIA<br />
(entra pela E. F. trazendo uma xícara <strong>de</strong> café apenas pela meta<strong>de</strong>).<br />
(ouve-se tocar a campainha)<br />
LÚCIA<br />
(que estava se encaminhando na direção <strong>de</strong> Alfredo, volta atrás sai pela porta do F. D.)<br />
DOMINGOS<br />
(Após uma pausa, entra pelo F. D. seguido <strong>de</strong> Lúcia. Está pálido, com cara <strong>de</strong> sono. É o café,<br />
isto?<br />
LÚCIA<br />
(lançando um olhar explicativo e resignado para Alfredo que, a chegada <strong>de</strong> Domingos, se pôs<br />
<strong>de</strong> pé) - É , sim, senhor.<br />
DOMINGOS<br />
Dê cá!<br />
LÚCIA<br />
(Dá-lhe a chícara <strong>de</strong> café)<br />
DOMIGOS<br />
(bebe o conteúdo da xícara, quase <strong>de</strong> um só trago) - Eu estava mesmo precisando <strong>de</strong> um gole<br />
<strong>de</strong> café!<br />
ALFREDO<br />
(soturno) - Eu também.<br />
DOMINGOS<br />
(para Lúcia) Traga uma xícara <strong>de</strong> café para êle . (senta-se a mesa , on<strong>de</strong> apoia os cotovelos e<br />
põe o rosto entre as mãos , absorto em pensamentos dolorosos.<br />
LÚCIA<br />
(faz compreen<strong>de</strong>r a Alfredo, por meio <strong>de</strong> gestos, que a outra meta<strong>de</strong> da xícara <strong>de</strong> café, que lhe<br />
vai trazer, já levou água.)<br />
ALFREDO<br />
(que per<strong>de</strong>u a paciência, furioso) - Traga assim mesmo!<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 25
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
LÚCIA<br />
(sai pelo F. D.)<br />
DOMINGOS<br />
Que houve?<br />
ALFREDO<br />
(com um sorriso forçado) - Ela diz que o café está frio e eu disse para trazê-lo assim mesmo...<br />
DOMINGOS<br />
Ela vai aquecê-lo e <strong>de</strong>pois traz. (voltando ao que o preocupa) Você esteve no escritório do<br />
advogado?<br />
ALFREDO<br />
Estive sim, senhor.<br />
DOMINGOS<br />
Quando é que ele vem?<br />
ALFREDO<br />
Assim que tiver tempo. Mas, certamente, ainda hoje.<br />
LÚCIA<br />
(Vem do F. D. E. trazendo outra xícara <strong>de</strong> café. Aproxima-se <strong>de</strong> Alfredo e lhe oferece,<br />
olhando para êle ironicamente. Em seguida, sorrindo, sai pelo F. E.)<br />
ALFREDO<br />
(<strong>de</strong>sanimadíssimo, está para sorver o café)<br />
DOMINGOS<br />
(Completando em voz alta o seu pensamento, apreensivo) - ... e se não for bom?<br />
ALFREDO<br />
(Julgando que êle está se referindo ao café, resignado) - Que fazer, senhor Domingos? Não<br />
tomarei. Quando eu <strong>de</strong>scer, irei tomá-lo no café da esquina.<br />
DOMINGOS<br />
(<strong>de</strong>snorteado) - O que?<br />
ALFREDO<br />
(muito sério) - O café.<br />
DOMINGOS<br />
Bolas! Que me importa o seu café! Eu estava dizendo: "e se não for o que eu pretendo<br />
fazer...", no caso do advogado dizer que não se po<strong>de</strong> fazer nada...<br />
ALFREDO<br />
(Após ter sorvido um gole <strong>de</strong> café, com careta <strong>de</strong> nojo) Não é possível! (Refere-se à porcaria<br />
<strong>de</strong> café que está bebendo)<br />
DOMINGOS<br />
Que é que você enten<strong>de</strong> disto?<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 26
ALFREDO<br />
(com ar <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>dor) - Como não entendo? É uma coisa asquerosa!<br />
DOMINGOS<br />
Isso mesmo! Uma coisa asquerosa! Ela fez mal... Não soube fazer direito...<br />
ALFREDO<br />
Nunca soube , senhor Domingos!<br />
DOMINGOS<br />
Mas eu recorro aos tribunais, eu apelo, embargo, vou até ao Supremo!<br />
ALFREDO<br />
(assombrado) - Senhor Domingos, pelo amor <strong>de</strong> Deus! Só por causa <strong>de</strong> um gole <strong>de</strong> café?<br />
DOMINGOS<br />
Mas pare <strong>de</strong> uma vez com essa conversa <strong>de</strong> café! Eu estou falando do meu caso!...<br />
ALFREDO<br />
(que ainda não compreen<strong>de</strong>m bem. Vagamente) - Pois é... (Afinal, compreen<strong>de</strong>u o mal<br />
entendido e lhe acha muita graça) - Ah! É muito boa, sim, senhor ! (ri) - Ótima!... (Em<br />
seguida, receando a ira <strong>de</strong> Domingos, entra imediatamente a compenetrar-se do estado <strong>de</strong><br />
espírito do seu patrão) - Pois é... Com a breca!...<br />
DOMINGOS<br />
(a quem não escapou a metamorfose espiritual do seu interlocutor, enternece-se resignado, o<br />
aceita a incompreensão <strong>de</strong> Alfredo) - Mas para que estou falando com você? Do passado,<br />
ainda vá ... mas , do presente ... é inútil... não adianta!... (olha para ele como se lhe tivesse<br />
sido apresentado nesse mesmo momento. Sua voz adquire um tom <strong>de</strong> consôlo) - Veja só ... ao<br />
que você está reduzido, Alfredo Amoroso! Cara balofa... cabelo branco... olhar embaçado... já<br />
meio caduco!...<br />
ALFREDO<br />
(admite tudo, mesmo porque teria a coragem <strong>de</strong> contradizer o seu patrão. Como que resignado<br />
antes a fatalida<strong>de</strong>) - É isto mesmo!<br />
DOMINGOS<br />
(consi<strong>de</strong>rando que não fundo, êle mesmo sofreu transformações. Evocando) - Você se lembra<br />
<strong>de</strong> Dom Domingo Soriano... "Dom Mimi", como me chamavam? Lembra-se?<br />
ALFREDO<br />
(Apanhando <strong>de</strong> surpresa enquanto refletia. Falsamente interessado) - Não, senhor... Dom<br />
Mimi morreu?<br />
DOMINGOS<br />
(Resignado, amargo) - Morreu! Você acertou! Dom Mimi Soriano morreu!<br />
ALFREDO<br />
(compreen<strong>de</strong>ndo logo) - Ah!... O senhor falava <strong>de</strong> Dom Mimi Soriano, do senhor mesmo!...<br />
(sério) - Com a breca!<br />
DOMINGOS<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 27
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
(Revendo a sua própria imagem juvenil e <strong>de</strong>screvendo-a) - Bigodinho preto... magro como um<br />
caniço ... que transformava a noite em dia... que não sabia o que era dormir?<br />
ALFREDO<br />
(bocejando) - Ora... logo a mim é que o senhor diz isso?<br />
DOMINGOS<br />
Você se lembra daquela rapariga... aquela romana... a Jacinta? Que pequena estupenda!<br />
"Fujamos juntos"!... Ainda parece-me ouvir a sua voz!... E da mulher do veterinário?...<br />
ALFREDO<br />
O senhor me faz lembrar <strong>de</strong> cada coisa!... Que mulher!... Ela tinha uma cunhada, uma<br />
manicura, a quem manicura, a quem eu também an<strong>de</strong>i dando em cima ... mas havia<br />
incompatibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> caracteres...<br />
DOMINGOS<br />
As mais lindas carruagens eram as minhas!... Naquele tempo ainda havia a alameda para o<br />
trote!...<br />
ALFREDO<br />
O senhor parecia um figurino... Sempre no rigor da moda!...<br />
DOMINGOS<br />
Beige e cinzento... eram as minhas côres preferidas!... Chapéu côco... o chicote na mão... E os<br />
mais bonitos cavalos eram os meus! Você se lembra do "Ôlho <strong>de</strong> prata"?<br />
ALFREDO<br />
Como não haveria <strong>de</strong> lembrar?... (saudoso) - "Ôlho <strong>de</strong> prata"...<br />
E a "Tordinha" ?... Que gran<strong>de</strong> égua!... Tinha um trazeiro que parecia uma lua cheia!... Foi<br />
pelo amor que eu tinha a essa égua que me <strong>de</strong>scui<strong>de</strong>i da manicura... Tive uma gran<strong>de</strong> dor,<br />
quando o senhor a ven<strong>de</strong>u!<br />
DOMINGOS<br />
(Continuando a evocar a sua vida passada) - Paris... Londres... as corridas <strong>de</strong> cavalos!... Eu<br />
me julgava uma divinda<strong>de</strong> na terra! Sentia-me senhor <strong>de</strong> tudo... com direito a fazer tudo o que<br />
bem enten<strong>de</strong>sse, sem limites, sem dar satisfação a ninguém .... porque me parecia que<br />
ninguém, nem Deus (animando-se) po<strong>de</strong>ria tirar-me o meu lugar no mundo! Eu me sentia o<br />
rei das montanhas, do mar... o dono da minha própria vida!... E agora? Agora estou um<br />
homem acabado.. sem vonta<strong>de</strong>... sem entusiasmo ... sem paixões ... e se ainda faço alguma<br />
coisa é somente para procurar <strong>de</strong>monstrar a mim mesmo no que tudo isso não é verda<strong>de</strong> ...<br />
que ainda sou um homem forte... que ainda posso levar <strong>de</strong> vencida os homens, as coisas , a<br />
morte ... e acabo acreditando estonteio-me , luto!.... (Resoluto) - É preciso lutar! Domingos<br />
Soriano não se <strong>de</strong>ixa dobrar ! (Retomando seu <strong>de</strong>cidido) - Que foi que aconteceu aqui <strong>de</strong>ntro?<br />
Você sabe <strong>de</strong> alguma coisa?<br />
ALFREDO<br />
(reticente) - Não consegui apurar nada.... Escon<strong>de</strong>m-me tudo... Dona <strong>Filomena</strong>, o senhor bem<br />
sabe, <strong>de</strong>testa-me... Por sinal que eu gostaria <strong>de</strong> saber o que foi que eu lhe fiz... Rosália,<br />
conforme Lúcia me disse , e conforme ela própria me confirmou, levou hoje três cartas<br />
urgentes, a mandado <strong>de</strong> Dona <strong>Filomena</strong>.<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 28
DOMINGOS<br />
(que pelo número das cartas farejou do que se po<strong>de</strong> tratar) - A quem?<br />
FILOMENA<br />
(Vindo do seu quarto, em trajo caseiro, um pouco em <strong>de</strong>salinho, acompanha <strong>de</strong> Rosália, que<br />
traz lençóis e fronhas limpas nas duas mãos, nota a presença <strong>de</strong> Domingos e Alfredo, mas<br />
finge que não os vê. Ouviu as últimas palavras <strong>de</strong>les, mas simula não as ter ouvido. Vai<br />
direito ao que ia fazer, e chama na direção da porta do F.) - Lúcia!... (Para Rosália) Dê-me as<br />
chaves...<br />
ROSÁLIA<br />
(Entrega-lhe um molho <strong>de</strong> chave) - Cá estão elas.<br />
FILOMENA<br />
(Guarda as chaves no bolso. Impaciente, aludindo a Lúcia) - Essa rapariga <strong>de</strong>mora tanto a vir!<br />
(chamando num tom <strong>de</strong> voz mais alta) - Lúcia!<br />
LÚCIA<br />
(Entrando pelo F. E. , atenciosa) - Que é, Dona <strong>Filomena</strong>?<br />
FILOMENA<br />
(Que não quer conversa) - Tome êstes lençóis ... (Rosália entrega a Lúcia os lençóis e as<br />
fronhas) - Na saleta perto do escritório há um sofá... Você vai transformá-lo em cama...<br />
LÚCIA<br />
Sim, senhora. (Vai a sair)<br />
FILOMENA<br />
(Retendo-a) - Espere. Eu preciso do seu quarto, Lúcia. Êstes são os lenções limpos para você<br />
pôr no lugar dos seus ... Você vai arranjar-se com a cama <strong>de</strong> vento, na cozinha...<br />
LÚCIA<br />
(<strong>de</strong>sapontada) - Está bem... mas as minhas coisas? Tenho <strong>de</strong> tirar também as minhas coisas?<br />
FILOMENA<br />
Eu não lhe disse que estou precisando do seu quarto?<br />
LÚCIA<br />
E on<strong>de</strong> ponho minhas coisas?<br />
FILOMENA<br />
Po<strong>de</strong> usar o pequeno armário do corredor.<br />
LÚCIA<br />
Está bem. (sai pelo F. D.)<br />
FILOMENA<br />
(Fingindo que somente agora viu Domingos) - Ah! Estavas aí?<br />
DOMINGOS<br />
(friamente) - Po<strong>de</strong>-se saber o que vêm a ser essas mudanças na minha casa?<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 29
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
FILOMENA<br />
Claro que po<strong>de</strong>... Entre marido e mulher não <strong>de</strong>vem existir segredos... Estou precisando <strong>de</strong><br />
mais dois quantos <strong>de</strong> dormir.<br />
DOMINGOS<br />
Para quem?<br />
FILOMENA<br />
(Muito precisa) - Para os meus filhos! Deveriam ser três , mas já que um <strong>de</strong>les é casado e tem<br />
também quatro crianças... é melhor que fique na sua própria casa!...<br />
DOMINGOS<br />
Ah!... Existem também quatro crianças ?... (em tom <strong>de</strong> provocação) E como se chama toda<br />
essa tribo , que guardavas escondida?<br />
FILOMENA<br />
(muito segura <strong>de</strong> si) - Por enquanto, tem o meu nome. Mas adiante , passará a ter o teu.<br />
DOMINGOS<br />
Sem o meu consentimento, acho que não.<br />
FILOMENA<br />
Vais dá-lo, Domingos... (quase em todo <strong>de</strong> chantagem) - Vais dar o teu consentimento ... ( sai<br />
pela porta E. B.)<br />
DOMINGOS<br />
(Que já mão agüenta mais, berra atrás <strong>de</strong>la, aludindo aos filhos) - Eu os ponho daqui para<br />
fora, aos ponta-pés!... Ouviste? Ponho-os todos no olho da rua!<br />
FILOMENA<br />
(Do lado <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, irônico) - Feche a porta<br />
ROSÁLIA<br />
(fecha a porta na cara <strong>de</strong> Domingos)<br />
LÚCIA<br />
(Entrando pelo F. D. , dirigindo-se para Domingos, num tom reservado) Senhor Domingos...<br />
está ai fora a senhorita Diana e mais um cavalheiro<br />
DOMINGOS<br />
(interessado) - Man<strong>de</strong> entrar.<br />
LÚCIA<br />
(que, evi<strong>de</strong>ntemente, insistiu para Diana entrar, certa <strong>de</strong> fazer coisa agradável ao patrão) - Não<br />
quer entrar ... Eu insisti ... mas ela pediu para o senhor chegar um instante lá fora... Está com<br />
medo <strong>de</strong> Dona <strong>Filomena</strong>.<br />
DOMINGOS<br />
(exasperado) - Vejam só... (Referindo-se a Diana e afim <strong>de</strong> tranquilizá-la) - Diga que po<strong>de</strong><br />
entrar sem receio. Estou eu aqui!...<br />
LÚCIA<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 30
(sai pelo F. D.)<br />
ALFREDO<br />
(apontando para a porta on<strong>de</strong> supõe estar <strong>Filomena</strong>) - Aquela, se a vir aqui... (Acompanha as<br />
palavras com o gesto , como que para dizer: "dá-lhe uma surra") espanca-a...<br />
DOMINGOS<br />
(gritando, <strong>de</strong> medo que possa ser ouvido, ao quarto <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>) - Isso eu queria ver!...<br />
Alfredo!... Chegou o momento <strong>de</strong>cisivo!... O dono aqui <strong>de</strong>ntro, sou eu! Fiquem sabendo <strong>de</strong><br />
uma vez por todas.<br />
LÚCIA<br />
(Voltando do F. D. como que para <strong>de</strong>sculpar-se) - Ela não quer entrar... Disse que está com<br />
nervos irritados e que não se responsabiliza pelo que po<strong>de</strong>ria fazer...<br />
DOMINGOS<br />
Mas quem é que está com ela?<br />
LÚCIA<br />
Um cavalheiro... Ela o chamou <strong>de</strong> advogado... mas tenho a impressão <strong>de</strong> que ele também está<br />
com medo...<br />
DOMINGOS<br />
Que exagero! Seremos três homens aqui...<br />
ALFREDO<br />
(sincero) - Não! Não conte comigo, patrão , porque no estado a que estou reduzido hoje... Não<br />
valho um vintém... (Decidido) - Como o senhor e êles vão ter <strong>de</strong> conversar juntos... é melhor<br />
eu ir refrescar a cara na cozinha... se precisarem <strong>de</strong> mim, é só chamar ... (Sem esperar pela<br />
resposta, sai pelo F. D.)<br />
LÚCIA<br />
Então ? O senhor quer que os man<strong>de</strong> entrar , ou não?<br />
DOMINGOS<br />
Eu vou até lá...<br />
LÚCIA<br />
(sai pelo F. E.)<br />
DOMINGOS<br />
(sai pelo F. D. para voltar , em seguida, introduzindo Diana e o Doutor Nocela, advogado.<br />
Com insistência) - Mas não diga nem <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira, doutor.. Esta casa é somente minha.. (e<br />
entra na frente)<br />
DIANA<br />
(Que ficou no limiar da porta, tendo atrás <strong>de</strong> si o advogado. Com evi<strong>de</strong>nte nervosismo) - Por<br />
favor, Domingos! Após a cena <strong>de</strong> ontem à noite... não tenho a menor intenção <strong>de</strong><br />
encontrar-me, cara a cara, com essa mulher!<br />
DOMINGOS<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
(Tranqüilizando-a) - Por favor, Diana! Não me faça ficar vexado... Entre!... Não tenha medo!<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 31
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
DIANA<br />
Medo, eu?... Nem por sombra! Não quero é chegar a certos extremos...<br />
DOMINGOS<br />
Não é caso para tanto. Eu estou aqui...<br />
DIANA<br />
Ontem também o senhor estava aqui...<br />
DOMINGOS<br />
Sim... mas o que se <strong>de</strong>u foi tão <strong>de</strong> repente... tão <strong>de</strong> imprevisto...Mas, hoje po<strong>de</strong> ficar<br />
sossegada... Nada tem a receiar... Entre... Tenha a bonda<strong>de</strong>... Sente-se , doutor!<br />
DIANA<br />
(Avançada alguns passos) - On<strong>de</strong> é que ela está?<br />
DOMINGOS<br />
Repito-lhe! Não se preocupe! Sente-se , por favor! (oferece ca<strong>de</strong>iras e todos sentam-se perto<br />
da mesa do centro. Diana à esquerda , o advogado no centro e Domingos à direita , em frente<br />
<strong>de</strong> Diana que, sempre muito <strong>de</strong>sassossegado, não per<strong>de</strong> <strong>de</strong> vista a porta do quarto <strong>de</strong><br />
<strong>Filomena</strong>) - Então?<br />
NOCELA<br />
(É um homem insignificante, orçando pelos 40 anos. Veste-se com uma certa elegância<br />
sobria. Encontra-se alí, para falar do "caso Soriano", só porque a isso foi arrastado por Diana.<br />
Nota-se, com efeito, na sua voz um certo <strong>de</strong>sinteresse) - Eu moro na mesma pensão em que<br />
mora a senhorita, e lá nos conhecemos há algum tempo...<br />
DIANA<br />
O doutor po<strong>de</strong> dizer quem sou e a vida que levo!...<br />
NOCELA<br />
(Que não quer imiscuir-se em tal assunto) - Vemo-nos à noite, à mesa... Eu, na pensão, quase<br />
que nunca estou... O senhor compreen<strong>de</strong>... O fórum, o escritório... Além disso, também não<br />
gosto <strong>de</strong> meter-me na vida dos outros... Que quer? É uma questão <strong>de</strong> hábito...<br />
DIANA<br />
Destruição, Domingos... Eu prefiro sentar-me no seu lugar... Incomoda por isso?<br />
DOMINGOS<br />
Ora essa!... (Trocam <strong>de</strong> lugar)<br />
DIANA<br />
E justamente à mesa , ontem à noite, eu contei o seu caso com <strong>Filomena</strong>...<br />
NOCELA<br />
É verda<strong>de</strong>... Por sinal que <strong>de</strong>mos umas boas gargalhadas!...<br />
DOMINGOS<br />
(olha-o significativamente)<br />
DIANA<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 32
Oh! Eu, absolutamente, não ri.<br />
NOCELA<br />
(Agora, é ele que olha significativamente para ela)<br />
DOMINGOS<br />
(aludindo a Diana) - Esta senhorita esteve aqui porque eu a fiz fingir-se <strong>de</strong> enfermeira...<br />
DIANA<br />
Fez-me fingir? ... Absolutamente! Está muito enganado! Eu sou enfermeira ... <strong>de</strong> fato! Com<br />
diploma e tudo! Nunca lhe disse isso?<br />
DOMINGOS<br />
Não, realmente...<br />
DIANA<br />
Afinal... pensando bem, para que lhe haveria <strong>de</strong> dizer?... (pausa) - Mas, continuando... Eu<br />
contei o seu caso, o estado <strong>de</strong> espírito em que se encontra e a sua preocupação por ter ficado<br />
amarrado a uma mulher para sempre, sem nunca ter <strong>de</strong>sejado semelhante coisa... e aqui o<br />
advogado explicou-me <strong>de</strong> um modo categórico...<br />
(Toque <strong>de</strong> campainha no interior)<br />
DOMINGOS<br />
(preocupado) - Desculpem... Incomoda-os se eu lhes pedir <strong>de</strong> passarem para o meu<br />
escritório?... Tocaram a campainha...<br />
LÚCIA<br />
(Atravessa a fundo , da E. para a D.)<br />
DIANA<br />
(levantando-se) Oh! Não! Talvez até seja preferível...<br />
NOCELA<br />
(também se levanta)<br />
DOMINGOS<br />
(prece<strong>de</strong>-os, indicando o "escritório") - Venham para aqui.<br />
NOCELA<br />
Obrigado. ( E é o primeiro a sair)<br />
DIANA<br />
(segue atrás do advogado e, por isso, dirige-se com maior intimida<strong>de</strong> para Domingos) - O<br />
senhor vai ver... (Em seguida, acariciando-lhe a face) - Estás um tanto pálido... (sai)<br />
DOMINGOS<br />
(segue-a)<br />
LÚCIA<br />
(introduzindo Umberto) - Tenha a bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> entrar...<br />
UMBERTO<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 33
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
(É um jovem alto, sólido. Está vestido mo<strong>de</strong>sta mas digntmente. Aspecto sério. É um rapaz<br />
que gosta <strong>de</strong> escutar. Seu modo <strong>de</strong> falar, seu olhar agudo e observador, infun<strong>de</strong>m um certo<br />
acanhamento. Entrando) - Obrigado. (Abre um ca<strong>de</strong>rno e com um lápis começa a fazer umas<br />
emendas)<br />
LÚCIA<br />
Sente-se , por favor... Não sei <strong>de</strong> Dona <strong>Filomena</strong> vai po<strong>de</strong>r vir já...<br />
UMBERTO<br />
Obrigado. Com gran<strong>de</strong> prazer. (Senta-se à E. perto da varanda. (Toque <strong>de</strong> campainha interior)<br />
LÚCIA<br />
(que ia para o quarto <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong> , volta atrás e sai pelo F. D. Após uma curta pausa, torna a<br />
entrar introduzindo Ricardo) - Entre , faz favor...<br />
RICARDO<br />
(Simpático, ligeiro , ativo, olhos pretos e vivos. Traja com elegância um ponto vistosa. Ao<br />
entrar , olha para o relógio-pulseira)<br />
LUCIA<br />
(faz menção <strong>de</strong> ir para o quarto <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong> a E. B.)<br />
RICARDO<br />
Escute...<br />
LÚCIA<br />
(aproxima-se <strong>de</strong>le)<br />
RICARDO<br />
Há quanto tempo que você trabalha aqui?<br />
LÚCIA<br />
Há um ano e meio.<br />
RICARDO<br />
(Galante, com simplicida<strong>de</strong>) - Sabe que é um pedaço <strong>de</strong> pequena?<br />
LÚCIA<br />
(lisonjeada) - Se não me estragar crescendo...<br />
RICARDO<br />
Porque não vem trabalhar na minha loja?<br />
LÚCIA<br />
O senhor tem uma loja?<br />
RICARDO<br />
Rua Toledo número setenta e quatro... Faço-lhe as camisas <strong>de</strong> graças...<br />
LÚCIA<br />
É? Será que quer que eu use camisas <strong>de</strong> homem? Deixe <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>iras!<br />
RICARDO<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 34
Pois é... Eu sirvo homens e mulheres... Aos homens eu ponho camisas, às mulheres como<br />
você, eu as tiro! (Assim dizendo abraça-a)<br />
LÚCIA<br />
(<strong>de</strong>svencilhando-se, ofendida) - Devagar!... (Liberta-se) - O senhor está doido!... Quem é que<br />
julga que eu sou? Eu digo à Dona <strong>Filomena</strong>! (aludindo a Umberto, que viu tudo, mas não <strong>de</strong>u<br />
a menor importância ao caso) - Não vê que há mais gente aqui? (Toque <strong>de</strong> campainha<br />
interior)<br />
LÚCIA<br />
(encaminha-se para o F. D.)<br />
RICARDO<br />
(vendo Umberto pela primeira vez, achando graça) - É mesmo... Não tinha visto...<br />
LÚCIA<br />
(ressentida) - O senhor não sabe ver sequer as moças sérias e direitas, que não dão confiança...<br />
RICARDO<br />
(Insinuante) - Então ? Você promete que irá à minha loja?<br />
LÚCIA<br />
(fazendo-se <strong>de</strong> ofendida) - Numero setenta e quatro? (Olha para ele com admiração) - Logo na<br />
Rua Toledo... A rua chic! ( A um sinal <strong>de</strong> Ricardo que indica que a estará esperando) - Está<br />
bem... Eu irei... (Saí pelo F. D. lançando um <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro sorriso para Ricardo).<br />
RICARDO<br />
(passeia pela sala e percebendo que Umberto o fita, fala um pouco vexa<strong>de</strong>, para se justificar) -<br />
É bem bonitinhas...<br />
UMBERTO<br />
E que e que eu tenho com isto?<br />
RICARDO<br />
Ora essa! Será que o senhor é um padre?<br />
UMBERTO<br />
(não faz caso e continua o seu trabalho <strong>de</strong> corrigir o ca<strong>de</strong>rno)<br />
LÚCIA<br />
(entrando pelo F. D. e introduzindo Miguel - Vá entrando!<br />
MIGUEL<br />
(De macacão azul, traz na mão a bolsa das ferramentas do seu ofício, que é o <strong>de</strong> funileiro.<br />
Goza <strong>de</strong> boa saú<strong>de</strong>. É corado e gorducho. Ao entrar tira o boné) - Que foi que aconteceu,<br />
Lúcia? A torneira está vazando outra vez? sol<strong>de</strong>i-a ainda não há oito dias...<br />
LUCIA<br />
Não... A torneira está funcionado bem.<br />
MIGUEL<br />
Então , que é que não funciona?<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 35
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
LUCIA<br />
Não se preocupe que não há nada vazando... Espere, que eu vou já chamar Dona <strong>Filomena</strong>...<br />
(sai pela E. B.)<br />
MIGUEL<br />
(Respeitosamente, para Ricardo) - Boa tar<strong>de</strong>!...<br />
RICARDO<br />
(respon<strong>de</strong> à saudação com um leve sinal <strong>de</strong> cabeça) -<br />
MIGUEL<br />
É uma massada! Deixei a oficina sem ninguém para tomar conta... (tira do bolso uma ponta <strong>de</strong><br />
cigarro já fumado) - O senhor tem fósforos?<br />
RICARDO<br />
(com um ar <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong>) - Não tenho.<br />
MIGUEL<br />
Nesse caso, o único jeito é mesmo não fumar ... (Pausa) - O senhor é parente da casa?<br />
RICARDO<br />
E você é <strong>de</strong>legado <strong>de</strong> polícia?<br />
MIGUEL<br />
Que quer dizer isso?<br />
RICARDO<br />
Estou vendo que você gosta muito <strong>de</strong> conversar... eu , não gosto!<br />
MIGUEL<br />
Em todo o caso, um pouco <strong>de</strong> boas maneiras não fazem mal a ninguém... O senhor parece que<br />
tem o rei na barriga...<br />
UMBERTO<br />
(intervindo) - Não é rei na barriga , não ... Maus hábitos ... Isso é o que ele têm!<br />
RICARDO<br />
Como? Que é que o senhor está dizendo?<br />
UMBERTO<br />
De certo! O senhor mal entrou , ainda há pouco, nem ao menos pensou que está numa casa<br />
que não é a sua ... Fui logo se "atracando" com a criada... Depois, me vê , e nem liga a<br />
mínima!... Agora , começa a tratar mal êsse pobre diabo...<br />
MIGUEL<br />
(ressentido, para Umberto) - Como? Acha, então , que eu sou o tipo <strong>de</strong> quem se <strong>de</strong>ixa tratar<br />
mal... não é ? Esta é do outro mundo!... A gente sai <strong>de</strong> casa para cuidar da vida... (para<br />
Ricardo) - A sua sorte é que estamos aqui <strong>de</strong>ntro!<br />
RICARDO<br />
Olhe... Você já me amolou bastante. Se não pára com isso , acaba é levando uns bofetões aqui<br />
mesmo!<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 36
MIGUEL<br />
(Empali<strong>de</strong>ce <strong>de</strong> raiva. Atira no chão a bolsa das ferramentas e aproxima-se lentamente <strong>de</strong><br />
Ricardo, ameaçador) - Experimente!<br />
RICARDO<br />
(Vai ao seu encontro com a mesma calma aparente) Pensa, talvez, que eu tenho medo <strong>de</strong><br />
você?<br />
UMBERTO<br />
(aproximou-se dos dois para intervir e impedir qualquer iniciativa da parte <strong>de</strong>les)<br />
MIGUEL<br />
(com raiva) - Este patife... (com um gesto rápido vai dar uma bofetada em Ricardo , mas este<br />
evita o golpe, graça à intervenção <strong>de</strong> Umberto) - Não se meta! Desafaste!...<br />
(Começa a briga entre Miguel e Ricardo, na qual se acha envolvido Umberto. Voam<br />
ponta-pés e bofetões, que não alcançam nunca o cavalo. Os três jovens brigam, murmurando<br />
entre <strong>de</strong>ntes palavras <strong>de</strong> raiva e insultos)<br />
FILOMENA<br />
(Entrando pela E. B. intervem em tom enérgico) - Que barulheira é esta?<br />
ROSALIA<br />
(que a seguiu, pára atrás <strong>de</strong>la)<br />
(À voz <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>, os três jovens suspen<strong>de</strong>m, incontinente, a briga e tomam uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
indiferença, enfileirando-se diante <strong>de</strong>la)<br />
FILOMENA<br />
Mas que é que estão pensando? Que estão no meio da rua?<br />
UMBERTO<br />
(Tocando o nariz , que lhe doi) - Eu estava apartando!<br />
RICARDO<br />
Eu também!<br />
MIGUEL<br />
Também eu!<br />
FILOMENA<br />
E quem é que estava brigando?<br />
OS TRÊS<br />
(Em coro) - Eu não estava!...<br />
FILOMENA<br />
(Censurando) - Que in<strong>de</strong>cência ! Um contra o outro! (Pausa. <strong>Filomena</strong> volta à sua atitu<strong>de</strong><br />
costumeira) - Bem rapazes... (não encontra maneira <strong>de</strong> começar o que quer dizer) - Como vão<br />
os negócios?<br />
MIGUEL<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Vão indo, graças a Deus!<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 37
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
FILOMENA<br />
(Para Miguel) - E as crianças?<br />
MIGUEL<br />
Bem, obrigado. Na semana passada, a do meio, teve um pouco <strong>de</strong> febre. Mas já sarou. Tinha<br />
comido dois quilos <strong>de</strong> uvas, às escondidas da mãe. Eu não estava em casa. Ficou com a<br />
barriga inchava , dura como um tambor... A senhora sabe, quatro crianças... uma ou outra dá<br />
sempre apoquentações... Por sorte que todas as quatro gostam <strong>de</strong> óleo <strong>de</strong> rícino... Imagine que<br />
quando dou purgante a uma <strong>de</strong>las, as outras três botam a boca no mundo... E se não lhes <strong>de</strong>r<br />
também o purgante, não param <strong>de</strong> chorar.. Depois põem-se todas as quatro em fila, em cima<br />
dos ... A senhora sabe... Crianças são assim mesmo...<br />
UMBERTO<br />
Minha senhora ... Eu recebi o seu bilhete . Seu nome, "sic et simpliciter", não me dizia nada<br />
<strong>de</strong> especial... Por felicida<strong>de</strong>, havia o en<strong>de</strong>reço. Foi, então, que me lembrei que costumo<br />
encontrar essa senhora <strong>Filomena</strong> quase todas as tar<strong>de</strong>s, na hora que vou para o jornal e que,<br />
por sinal tive uma vez o prazer <strong>de</strong> acompanhá-la até aqui, porque não agüentava mais<br />
caminhar, por causa <strong>de</strong> um pé que lhe doía... Assim, reconstrui...<br />
FILOMENA<br />
É isso mesmo! Eu estava com um pé machucado.<br />
RICARDO<br />
(Mais explícito) - Afinal, <strong>de</strong> que se trata, minha senhora?<br />
FILOMENA<br />
(Para Ricardo) - A loja vai indo bem?<br />
RICARDO<br />
E porque <strong>de</strong>veria ir mal? Verda<strong>de</strong> é que se todos os meus fregueses fossem como a senhora,<br />
no fim <strong>de</strong> um mês eu acabaria fechando a loja... Quando a senhora entra lá é como se <strong>de</strong>ssem<br />
uma bordoada na minha cabeça!... Manda tirar das prateleiras todos os rolos <strong>de</strong> fazendas...<br />
"Esta não serve! Aquela também não ! Vou pensar melhor no assunto! ... "E acaba <strong>de</strong>ixando a<br />
loja <strong>de</strong> tal jeito, que os empregados não chegam para arrumá-la outra vez!<br />
FILOMENA<br />
Fique <strong>de</strong>scansado que agora em diante não o incomodarei mais.<br />
RICARDO<br />
Não é isso o que eu quero dizer... A senhora manda... mas, cada vez que lá aparece , é uma<br />
camisa <strong>de</strong> suor que eu encharco!...<br />
FILOMENA<br />
Bem... bem... , Man<strong>de</strong>i-os chamar por causa <strong>de</strong> uma coisa muito séria. Se fazem o favor <strong>de</strong><br />
entrar um instante aqui... (Agora para a porta da E. B.) ficaremos mais à vonta<strong>de</strong>...<br />
DOMINGOS<br />
(Entra vindo <strong>de</strong> "escritório" , seguido do advogado. Está novamente falando com energia ) -<br />
Deixa disso, <strong>Filomena</strong> , não compliques ainda mais a tua situação... (Para o advogado) - Eu,<br />
sem ser advogados já tinha dito antes do senhor. Estava tudo claro!<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 38
FILOMENA<br />
(Olha para ele com ar <strong>de</strong> dúvida)<br />
DOMINGOS<br />
Aqui está o Doutor Nocela , advogado , que po<strong>de</strong> dar-te todos os esclarecimentos que<br />
quiseres. (Para os três jovens) - A senhora enganou-se. Incomodou-os à toa... Pedimos-lhe<br />
muitas <strong>de</strong>sculpas e se quiserem se retirar...<br />
FILOMENA<br />
(Fazendo parar os três rapazes , que iam sair) - Um momento! ... Eu não me enganei, coisa<br />
alguma! Fui eu que os man<strong>de</strong>i chamar! Que é que tu tens com isso?<br />
DOMINGOS<br />
(com intenção) - Queres obrigar-me a falar diante <strong>de</strong> estranhos?<br />
FILOMENA<br />
(Compreen<strong>de</strong>u que aconteceu qualquer coisa muito séria , que <strong>de</strong>ve ter modificado<br />
inteiramente o curso dos acontecimentos. Pelo menos é o que se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong> do tom calmo da<br />
voz <strong>de</strong> Domingos. Volta-se para os três jovens) - Desculpem... Cinco minutos apenas...<br />
Querem fazer o favor <strong>de</strong> esperar na varanda?<br />
(Miguel e Umberto encaminham-se para a varanda, um pouco na dúvida).<br />
RICARDO<br />
(Olhando o relógio-pulseira) - Desculpe, minha senhora, mas acho que aqui se está abusando<br />
da cortesia alheia... Eu tenho que fazer!<br />
FILOMENA<br />
(Per<strong>de</strong>ndo as estribeiras) - Mas eu já lhe disse que se trata <strong>de</strong> uma coisa séria, rapaz!<br />
(Tratando-o como a um rapazola, num tom que não admite discussão) - Vamos!... Vá para a<br />
varanda! Se os outros po<strong>de</strong>m esperar, você vai esperar também!<br />
RICARDO<br />
(<strong>de</strong>sconsertado com o tom <strong>de</strong>cidido) - Está bem!... (Segue os outros dois, mas dando mostras<br />
<strong>de</strong> contrarieda<strong>de</strong>).<br />
FILOMENA<br />
(Para Rosália) - Dê-lhes uma xícara <strong>de</strong> café.<br />
ROSÁLIA<br />
Sim... Vou já fazer... (Para os três) Fiquem à vonta<strong>de</strong>... (Indica um ponto) - Vou fazer-lhes um<br />
bom cafezinho. (Sai pelo F. E. enquanto os três jovens saem para a varanda)<br />
FILOMENA<br />
(Para Domingos) - Então , que há?<br />
DOMINGOS<br />
(Indiferente) - Este senhor é um advogado... Fala com êle!<br />
FILOMENA<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
(Impaciente) - Esse negócio <strong>de</strong> Leis, eu não entendo nada. Em todo o caso... <strong>de</strong> que se trata?<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 39
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
NOCELA<br />
Á suas or<strong>de</strong>ns, minha senhora. Repito que estou completamente alheio a isso tudo...<br />
FILOMENA<br />
E então , que veio fazer aqui?<br />
NOCELA<br />
Não é bem isso... Eu disse que estou alheio, porque este cavalheiro não é meu cliente, nem<br />
tampouco mandou chamar...<br />
FILOMENA<br />
Veio por sua própria iniciativa?<br />
NOCELA<br />
Oh! Não, senhora!...<br />
FILOMENA<br />
(Irônica) - Então, porque não trata <strong>de</strong> ir-se embora?<br />
NOCELA<br />
Mas, minha senhora....<br />
DOMINGOS<br />
(Para <strong>Filomena</strong>) - Queres ou não <strong>de</strong>ixá-lo falar?<br />
NOCELA<br />
Quem me falou do caso foi a senhorita... (Volta-se e não vendo Diana atrás <strong>de</strong> si, olha na<br />
direção do "escritório" ) - On<strong>de</strong> é que ela está?<br />
DOMINGOS<br />
(Impaciente por fazer a discussão tomar o seu verda<strong>de</strong>iro rumo) - Doutor eu... ela ... não<br />
importa! Quem o mandou chamar não a menor importância! Vamos ao assunto!<br />
FILOMENA<br />
(Aludindo a Diana, com um sarcasmo ferino, mas procurando se refreiar) - Ela está lá <strong>de</strong>ntro,<br />
não é ? Não tem coragem <strong>de</strong> vir para cá, hein? Continue, doutor!<br />
NOCELA<br />
Para o caso que êle... que ela ... enfim... para o fato em si... para o que acontecem, há o artigo<br />
101: Casamento em perigo iminente <strong>de</strong> vida... "No caso <strong>de</strong> perigo iminente <strong>de</strong> vida... etcetera,<br />
etcetera" explica todas as modalida<strong>de</strong>s... Mas iminente perigo <strong>de</strong> vida não havia, pois a sua ,<br />
segunda a versão <strong>de</strong>ste senhor, foi um simulação...<br />
DOMINGOS<br />
(Imediatamente) - Tenho testemunha! Alfredo, Lúcia, o porteiro, Rosália!...<br />
FILOMENA<br />
A enfermeira...<br />
DOMINGOS<br />
A enfermeira também! Todo o mundo! Assim que o padre foi embora, ela se levantou da<br />
cama... (Aponta para <strong>Filomena</strong>) e disse: "Domingos, agora estamos casados!"<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 40
NOCELA<br />
(Para <strong>Filomena</strong>) - Em tal caso, êle po<strong>de</strong> beneficiar-se do artigo 122: Violência e êrro. (Lê) "O<br />
casamento po<strong>de</strong> ser impugnado por aquele dos cônjuges cujo consentimento foi extorquido<br />
com a violência ou dado por efeito <strong>de</strong> êrro". Como vê, na base do artigo 122, o casamento<br />
po<strong>de</strong> ser impugnado.<br />
FILOMENA<br />
(Sincera) - Não entendi patavina!<br />
DOMINGOS<br />
(Convencido <strong>de</strong> fornecer a <strong>Filomena</strong> uma exata interpretação do Código, para esmagá-la) - Eu<br />
me casai contigo, porque tu <strong>de</strong>vias morrer...<br />
NOCELA<br />
Não ! O casamento não po<strong>de</strong> ficar sujeito a condições! Há o artigo... cujo número agora não<br />
me recordo... que reza assim: "Se as partes acrescentam um têrno ou uma condição , o Juiz ou<br />
o Sacerdote não po<strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r à celebração do casamento".<br />
DOMINGOS<br />
O senhor disse que não havia perigo iminente <strong>de</strong> vida...<br />
FILOMENA<br />
(ríspida) - Cala a boca, que tu também não compreen<strong>de</strong>ste! Doutor, explique isso em língua<br />
<strong>de</strong> gente!<br />
NOCELA<br />
(Dá uma folha <strong>de</strong> papel a <strong>Filomena</strong>) - O artigo é êste. Leia a senhora mesma.<br />
FILOMENA<br />
(Rasga a folha <strong>de</strong> papel, sem olhá-la sequer) Eu não sei ler e não aceito documentos!<br />
NOCELA<br />
(Um tanto ofendido) - Minha senhora! O caso é que como a senhora não estava à morte, o<br />
casamento é nulo, não tem valor!<br />
FILOMENA<br />
E o padre?<br />
NOCELA<br />
Vai dizer-lhe a mesma coisa. Aliás, vai dizer que a senhora ultrajou o Sacramento! Portanto,<br />
não tem valor!<br />
FILOMENA<br />
(Pálida, fora <strong>de</strong> si) - Não tem valor! Então, eu <strong>de</strong>via morrer?<br />
NOCELA<br />
(imediatamente) Pois é!<br />
FILOMENA<br />
Se eu morresse...<br />
NOCELA<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 41
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
Ai tinha valor!<br />
FILOMENA<br />
(mostrando Domingos, que permaneceu impassível) - E êle po<strong>de</strong>ria casar-se outra vez?<br />
Po<strong>de</strong>ria ter filhos?...<br />
NOCELA<br />
Sim, mas já como viúvo. Essa outra provável mulher ter-se-ia casado com o viúvo da falecida<br />
senhora Soriano.<br />
DOMINGOS<br />
(Apontando para <strong>Filomena</strong>) - Ela se tornaria a senhora Soriano? Ah, sim, morta!<br />
FILOMENA<br />
(Irônica, mas com amargura) - Que gran<strong>de</strong> satisfação! Com que, então, eu empreguei uma<br />
vida inteira para formar uma família e a lei não o permite? Isso seria a justiça?<br />
NOCELA<br />
Mas a Lei não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r um princípio seu , embora humano, tornando-se cúmplice <strong>de</strong> um<br />
expediente perpetrado em prejuízo <strong>de</strong> terceiros. Domingos Soriano não tinha a menor<br />
intenção <strong>de</strong> se unir em casamento com a senhora.<br />
DOMINGOS<br />
E <strong>de</strong>ves acreditar. Se tens alguma dúvida, po<strong>de</strong>s mandar chamar um advogado <strong>de</strong> tua<br />
confiança.<br />
FILOMENA<br />
Não, não ! Acredito. Não é porque me dizes tu, que tens interesse... Não é porque me diz o<br />
advogado, porque eu com advogados não quero conversa... Mas e porque vejo na tua cara!<br />
Pensas que eu não te conheço? Estás novamente com o teu ar <strong>de</strong> dono <strong>de</strong> tudo... <strong>de</strong> senhor<br />
absoluto!... Estás tranqüilo... Se fosse mentira , não terias tido a coragem <strong>de</strong> me encara... <strong>de</strong><br />
olhar para mim!... Terias ficado <strong>de</strong> olhos baixos, olhando para o chão... porque, mentiras,<br />
nunca soubeste pregar. É verda<strong>de</strong>!...<br />
DOMINGOS<br />
Doutor, continue, por favor!<br />
NOCELA<br />
Se o senhor me confiar a sua causa....<br />
FILOMENA<br />
(Fica absorta durante algum tempo. De repente, respon<strong>de</strong> à última frase que lhe dirigira o<br />
advogado. Seu tom é altaneiro, mas vai subindo até chegar aos berros) - Pois eu também não!<br />
(Para Domingos) - Eu tão pouco te quero! (Para o advogado) - Continue, doutor! Eu tão<br />
pouco o quero! Não é verda<strong>de</strong> que eu estivesse à morte! Eu queria fazer uma intrujice! Queria<br />
roubar um sobrenome! Mas eu só conhecia a minha lei : a lei que faz rir, e não essa que faz<br />
chorar! (Grita para a varanda) Olá ! Vocês ! Venham aqui!<br />
DOMINGOS<br />
(Procurando acalmá-la) - Pára com isso, por favor!<br />
FILOMENA<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 42
(Furiosa) - Cala a boca!<br />
(Vindos da varanda, torntm a entrar os três jovens, um pouco <strong>de</strong>sorientados, e avançam<br />
alguns passos na sala. Pelo F. E. , quase ao mesmo tempo, entra Rosália trazendo uma<br />
ban<strong>de</strong>ja com três xícaras <strong>de</strong> café. Compreen<strong>de</strong>ndo a situação melindrosa, põe a ban<strong>de</strong>ja em<br />
cima <strong>de</strong> um móvel e fica a ouvir, aproximando-se seguida, <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>, Esta, dirigindo-se aos<br />
filhos , fala-lhes abertamente) - Rapazes, você já são homens ... Ouçam! (Agora para<br />
Domingos e a advogado) - Essa, é a socieda<strong>de</strong>, o mundo! O mundo com todas as suas leis e<br />
todos os seus direitos... O mundo que se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> com papel e tinta <strong>de</strong> escrever! ... Domingos<br />
Soriano e o seu advogado!... (Apontando para si mesma) - E aqui, estou eu: <strong>Filomena</strong><br />
<strong>Marturano</strong>, cuja lei é <strong>de</strong> não saber chorar... sim... porque êle , Domingos Soriano, sempre me<br />
disse que eu não sabia chorar! Pois eu não choro , estão vendo? Meus olhos estão enxutos!...<br />
(Ficando os três jovens) - Vocês são meus filhos!<br />
DOMINGOS<br />
<strong>Filomena</strong>!<br />
FILOMENA<br />
(Resoluta) - Quem és tu para impedir-me <strong>de</strong> dizer, perto dos meus filhos, que êles são meus<br />
filhos? (Para o advogado) - Isso, a lei do mundo permite, não é , doutor? (Mais agressiva do<br />
que comovida) - Vocês são meus filhos! E eu sou <strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong>! Não preciso dizer<br />
mais nada! Vocês já são homens... Devem ter ouvido falar <strong>de</strong> mim!<br />
(Os três jovens ficam como que petrificados: Umberto, muito pálido , Ricardo, olhando para o<br />
chão, envergonhado, Miguel, meio espantado e meio comovido)<br />
FILOMENA<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
E agora , não tenho mais nada para dizer... Mas, até completar é os meus <strong>de</strong>zessete anos, sim,<br />
é que teria tido muita coisa para dizer!.... (Para o advogado) - Doutor!... O senhor conhece<br />
esses porões infectos, esses cortiços... nos piores becos da cida<strong>de</strong>... on<strong>de</strong> centenas e centenas<br />
<strong>de</strong> infelizes vivem amontoados uns sobre os outros.... êsses antros escuros e imundos...<br />
enegrecidos pela fumaça...em que no verão não se respira por causa do calor, porque há gente<br />
<strong>de</strong>mais lá <strong>de</strong>ntro, e no inverno se treme <strong>de</strong> frio?... On<strong>de</strong> não entra luz nem ao meio dia... Tão<br />
cheios <strong>de</strong> gente que é até melhor o frio do que o calor? ... Pois bem... Num <strong>de</strong>sses cortiços, no<br />
beco <strong>de</strong> São Libério, vivia eu com minha família ... Quantos éramos? Uma multidão! On<strong>de</strong> a<br />
minha família foi parar, não sei... nem quero saber! Já não me lembro <strong>de</strong>la!... Todos, sempre<br />
<strong>de</strong> cara amarrada, sempre brincando um com o outro!... Íamos dormir sem dizer "boa noite"...<br />
Acordávamos sem dizer "bom dia"! Uma única palavra <strong>de</strong> carinho eu ouvi!... Foi meu pai<br />
quem a disse... e ainda fico a tremer quando me lembro!... Eu tinha , então, treze anos... Êle<br />
me disse: "Estás ficando uma mulherzinha... Sabes que aqui não temos nada para comer"... E<br />
o calor ... o calor que fazia! ... À noite, quando se fechava a porta, não se podia respirar!... Ao<br />
escurecer, sentávamos todos ao redor da mesa... Uma só terrina e não sei quantos garfos!...<br />
Talvez fosse impressão minha, mas toda a vez que punha o garfo <strong>de</strong>ntro da terrina...<br />
parecia-me que eu estava roubando o que comia!... Assim vivi até <strong>de</strong>zessete anos... Passavam<br />
as mocinhas bem vestidas, com bonitos sapatos, bem penteadas, e eu ficava a olhar para elas<br />
com inveja... Passavam <strong>de</strong> braço dado com ntmorados... Uma noite encontrei uma<br />
companheira minha... quase não a reconheci, tão bem vestida , tão vestida estava!... Talvez,<br />
então , tudo me parecesse mais bonito ... Ela me disse: (Escon<strong>de</strong>ndo as sílabas e gran<strong>de</strong><br />
mímica) - "Assim... assim... assim é que se arranja o dinheiro!"... Não pu<strong>de</strong> dormir a noite<br />
inteira!... E o calor.... o calor!.... Depois, eu te conheci!.... (Domingos estremece) - Lá,<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 43
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
Lembras-te?... Aquela "casa" parecia-me um palácio!... Uma noite, voltei para o beco <strong>de</strong> São<br />
Libério ... O coração me batia... Eu pensava: "Talvez nem queiram mais olhar para mim....<br />
talvez me ponham no olho da rua!".... Qual!... Ninguém me disse coisa alguma!... Um,<br />
oferecia-me uma ca<strong>de</strong>ira, outro fazia-me festas!.... E todos olhavam para mim como se<br />
olhassem para um ser superior a todos eles... que impõe respeito!... Somente mamãe, quando<br />
fui falar com ela, tinha os olhos cheios <strong>de</strong> lágrimas ! Nunca mais voltei para a minha casa!<br />
(Quase gritando) - Mas não os matei! Não matei os meus filhos! A família a família ! Pensei<br />
nela durante vinte e cinco anos! ... (Para os três jovens) E criei vocês... fiz <strong>de</strong> vocês<br />
homens...roubei êste aqui... (Aponta para Domingos) para criar vocês!<br />
MIGUEL<br />
(acerca-se <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>, comovido) - Está bem , chega! (Comove-se cada vez mais) - A<br />
senhora não podia fazer mais do que fez!<br />
UMBERTO<br />
(Sério, acerca-se <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>) - Há tantas coisas que eu <strong>de</strong>sejaria dizer-lhe, mas não encontro<br />
as palavras! Vou escrever-lhe uma carta.<br />
FILOMENA<br />
Eu não sei ler.<br />
UMBERTO<br />
Eu mesmo a lerei.<br />
(Pausa. <strong>Filomena</strong> olha para Ricardo, esperando que êle se aproxime. Mas Ricardo sai pelo F.<br />
D. sem dizer palavra).<br />
FILOMENA<br />
Oh! Foi-se embora!<br />
UMBERTO<br />
(Explicando) - É questão <strong>de</strong> gênio. Ele não compreen<strong>de</strong>u bem. Amanhã, passo na loja e lhe<br />
falo.<br />
MIGUEL<br />
(Para <strong>Filomena</strong>) - A senhora po<strong>de</strong> vir comigo. A casa é pequena, mas cabemos todos... temos<br />
até uma pequena varanda. ( Com sincera alegria) As crianças perguntavam sempre: "E a vovó,<br />
hein, cadê a vovó? " e eu um dia, respondia uma besteira qualquer , outro dia , outra... Agora,<br />
quando eu chegar e disser: "Aqui está a vovó! ", vão virar a casa pelo avêsso! ( convidando<br />
<strong>Filomena</strong>) - Venha!<br />
FILOMENA<br />
(<strong>de</strong>cidida) - Sim , vou contigo!<br />
MIGUEL<br />
Pois, então , vamos!<br />
FILOMENA<br />
Um momento! Espera-me no portão . (para Umberto) - Desse junto com êle. É questão <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<br />
minutos apenas. Ainda tenho alguma coisa a dizer ao senhor Domingos...<br />
MIGUEL<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 44
(todo contente) - Então , <strong>de</strong>pressa, heim? ( para Umberto) - O senhor também <strong>de</strong>sce?<br />
UMBERTO<br />
Sim, eu acompanho.<br />
MIGUEL<br />
(alegre) - Bom dia a todos! (encaminhando-se para F. D.) - Eu bem que sentia qualquer coisa<br />
cá por <strong>de</strong>ntro! ... Era por isso que queria conversar... (Sai com Umberto)<br />
FILOMENA<br />
Doutor, o senhor dá-me licença , dois minutos? ... (indica-lhe o "escritório.)<br />
NOCELA<br />
Não ... Eu vou andando...<br />
FILOMENAS<br />
São dois minutos somente. Tenho até prazer que o senhor esteja aqui, <strong>de</strong>pois que eu tiver<br />
falando com Domingos. Por favor!<br />
(O advogado, a contra gosto, sai para o "escritório")<br />
(Rosália, sem que lhe digam nada, saí pela E. B.)<br />
FILOMENA<br />
(colocando o molho <strong>de</strong> chaves em cima da mesa) - Eu já <strong>de</strong>cidi: vou-me embora, Domingos!<br />
Dize ao advogado que siga as vias legais! Eu não nego coisa alguma e <strong>de</strong>ixo-te livre!<br />
DOMINGOS<br />
(em tom meio agastado) - De certo! Podias pegar uma boa quantia <strong>de</strong> dinheiro, sem fazer toda<br />
essa história!....<br />
FILOMENA<br />
(sempre muito calma) - Amanhã vou mandar buscar as minhas coisas.<br />
DOMINGOS<br />
(um pouco perturbado) - Não passas é <strong>de</strong> uma louca! Porque foste tirar o sossêgo <strong>de</strong>sses três<br />
pobres rapazes? Porque fizeste isto ? Porque lhes disseste que eras mãe <strong>de</strong>les?<br />
FILOMENA<br />
(fria) - Porque um dêsses três, Domingos, é teu filho!<br />
DOMINGOS<br />
(fica com o olhar imóvel, cravado em <strong>Filomena</strong>, atarantado pela absurda verda<strong>de</strong>. Após uma<br />
pausa, procurando reagir contra os sentimentos que lhe agitam o coração) Ora! Eu lá acredito<br />
nisso!<br />
FILOMENA<br />
Um <strong>de</strong>sses três , é teu filho!<br />
DOMIGOS<br />
(não ousando gritar, gravemente) Cala-te!<br />
FILOMENA<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 45
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
Eu po<strong>de</strong>ria ter dito que todos três eram teus filhos e terias acreditado... Eu te faria acreditar!<br />
Mas não é verda<strong>de</strong>... Sim... po<strong>de</strong>ria ter falado antes... Mas tu terias <strong>de</strong>sprezado os outros<br />
dois... e eu os querias todos iguais , sem distinções.<br />
DOMINGOS<br />
É mentira!<br />
FILOMENA<br />
É verda<strong>de</strong>, Domingos, é verda<strong>de</strong>! Tu já não te lembras. Tu partias ... Ias para Londres, para<br />
Paris... tinhas as corridas <strong>de</strong> cavalos, gostavas <strong>de</strong> mulheres... Uma noite, uma das muitas<br />
noites em que, quando te ias embora, me davas <strong>de</strong> presentes uma nota <strong>de</strong> cem libras...<br />
Naquela noite, eu te quis realmente bem... Tu, não! Tinhas falado <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira. Deste-me a<br />
nota <strong>de</strong> cem libras, como <strong>de</strong> costume. Eu marquei nela o dia , o mês e o ano... Bem sabes que<br />
os números eu sei escrever ... Em seguida, partiste e eu fiquei à sua espera... Como uma<br />
santa!... Mas tu não te lembras <strong>de</strong> quando foi!... Eu não te disse nada... Disse-te que a minha<br />
vida continuado a ser a <strong>de</strong> sempre... E, com efeito , quando percebi que não tinhas<br />
compreendido nada, voltei à minha vida antiga...<br />
DOMINGOS<br />
(em tom peremptório, que escon<strong>de</strong> sua insuportável emoção) - E qual é dêles?<br />
FILOMENA<br />
(<strong>de</strong>cidida) - Não ! Isso eu não digo! Hão <strong>de</strong> ser todos os três iguais!...<br />
DOMINGOS<br />
(após um momento <strong>de</strong> hesitação, como que obe<strong>de</strong>cendo a um impulso) - Não é verda<strong>de</strong>!...<br />
Não po<strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong>!... Terias me falado logo, para amarrar-me, para ter-me nas tuas mãos!<br />
A única arma teria sido um filho!... E tu, <strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong>, não terias <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> usar essa<br />
arma!<br />
FILOMENA<br />
Não, porque me terias forçado a matá-lo! Da maneira por que pensavas naquele tempo e ainda<br />
agora pensas!.... Não! Não mudaste! Não uma mas cem vêzes, me terias forçado a matá-lo !<br />
Tive medo <strong>de</strong> ter falar! E somente graças a mim, porque guar<strong>de</strong>i segredo, é que teu filho está<br />
vivo!<br />
DOMINGOS<br />
E qual é dêles?<br />
FILOMENA<br />
Todos os três <strong>de</strong>vem ser iguais!<br />
DOMINGOS<br />
(exasperado, mau) - E são iguais... são filhos teus! Eu nem quero vê-los! Não os conheço!<br />
Vai-te embora!<br />
FILOMENA<br />
Lembras-te , quando eu te disse ontem, que não jurasses? Foi por causa disto que o disse!<br />
A<strong>de</strong>us, Domingos! E lembra-te que se contas aos meus filhos o que te contei... eu te mato!<br />
Mas não como dizes, tu , que levas repetindo-o há vinte e cinco anos... mas como diz<br />
<strong>Filomena</strong> Marturno! Mato-te verda<strong>de</strong>! Compreen<strong>de</strong>ste? (falando para o "escritório", enérgica<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 46
Doutor, Já po<strong>de</strong> vir!... (Aludindo a Diana) - Venha você também, que não lhe faço nada!...<br />
Ganhaste a partida! Eu vou-me embora! (chamando para a E. B.) - Rosália, venha cá! Eu<br />
vou-me embora! (abraça Rosália, que entra. Para ela) - Amanhã, mando buscar as minhas<br />
coisas! (Vindo do '"escritório", aparece e advogado, seguido <strong>de</strong> Diana, enquanto pelo F. D.,<br />
sem falar , entra Alfredo) - Passem todos muito bem! O senhor também, doutor, e <strong>de</strong>sculpe!<br />
(pelo F. E. entra também Lúcia) - Compreen<strong>de</strong>ste bem, Domingos? Vou repetí-lo diante <strong>de</strong><br />
todos: não digas uma só palavra do que te falei! Guarda para ti! (Puxa do seio um medalhão,<br />
abre-o e tira dêle uma nota <strong>de</strong> cem libras, muito velha e dobrada varias vezes. Rasga um<br />
pedacinho <strong>de</strong>la e mostra-o a Domingos) - Eu tinha marcado em cima uma conta, uma pequena<br />
conta <strong>de</strong> que preciso... Toma! (atira-lhe o dinheiro no rosto e, num tom quase alegre, mas com<br />
profundo <strong>de</strong>sprezo, diz-lhe) - Os filhos não pagam! (e saí pelo F. E.)<br />
PANO<br />
RÁPIDO<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 47
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
Mesma cena dos atos prece<strong>de</strong>ntes.<br />
TERCEIRO ATO<br />
Flores por tôda a parte. Não faltam as cestas caras, com o cartão <strong>de</strong> visita do doador espetado<br />
com alfinete. As flores <strong>de</strong>vem ser <strong>de</strong> côres <strong>de</strong>licadas: não brancas, mas tampouco vermelhas.<br />
Um ar <strong>de</strong> festa paira na casa. A cortina que separa a sala <strong>de</strong> jantar do "escritório" está<br />
inteiramente fechada. Decorreram <strong>de</strong>z meses <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Segundo Ato. É quase noite.<br />
ROSÁLIA<br />
(entra pelo F. D. trajada festivamente)<br />
DOMINGOS<br />
(Ao mesmo tempo, vindo do "escritório". entra) - (Está completamente mudado. Não tem<br />
mais nenhum dos gestos ou intonações que caracterizavam a sua índole autoritária. Tornou-se<br />
brando, quase humil<strong>de</strong>. Seu cabelo está um pouco mais branco. Vendo Rosália, que se dirige<br />
para a E. a <strong>de</strong>tém) - Que foi? Você esteve fora?<br />
ROSÁLIA<br />
Fui fazer uma comissão para Dona <strong>Filomena</strong>.<br />
DOMINGOS<br />
Que comissão?<br />
ROSÁLIA<br />
(Insinuando, bonachão) - Que é isto? O senhor está com ciúmes? Fui até ao beco <strong>de</strong> São<br />
Libério...<br />
DOMINGOS<br />
Fazer o que?<br />
ROSÁLIA<br />
(gracejando) - Nossa Senhora! O senhor está mesmo com ciúmes!<br />
DOMINGOS<br />
Qual ciúmes, qual nada! Eu já tinha imaginado!...<br />
ROSÁLIA<br />
Eu estou brincando... (olhando, circunspecta, para o quarto <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>) - Eu vou dizer... mas<br />
o senhor diga nada a Dona <strong>Filomena</strong>, porque ela não quer que o senhor saiba.<br />
DOMINGOS<br />
Então, não diga.<br />
ROSÁLIA<br />
Eu digo. Acho até bom dizer porque é uma coisa muito bonita da parte <strong>de</strong>la! Mandou-me<br />
levar mil liras e cinqüenta velas à Nossa Senhora das Rosas, no beco <strong>de</strong> São Libério, e<br />
pediu-me que incumbisse um velha que mora lá e que providência sempre as flores e a<br />
lamparina, <strong>de</strong> acen<strong>de</strong>r as velas às seis horas em ponto. E sabe porque? Porque o casamento<br />
está marcado para as seis. Enquanto o senhor e ela se casam aqui, acen<strong>de</strong>m-se as velas diante<br />
da Nossa Senhora das Rosas.<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 48
DOMINGOS<br />
Compreendi.<br />
ROSÁLIA<br />
É com uma santa que o senhor vai casar-se!... Uma santa!... E até rejuvenesceu! Parece uma<br />
mocinha! E como está bonita! Eu bem que lhe dizia: "Mas a senhora pensa mesmo que o<br />
senhor Domingos a esqueceu? Êle quis anular o casamento por birra... mas eu já estou vendo<br />
a nova cerimônia religiosa..."<br />
DOMINGOS<br />
(Um pouco enfadado com a conversa <strong>de</strong> Rosália) - Está bem, Rosália , vá ter com Dona<br />
<strong>Filomena</strong>...<br />
ROSÁLIA<br />
Estou indo... (mas, quase a seu pesar, continua falando) - Ah! Se não fôsse ela... quem tinha<br />
acabado mal era eu! Tomou-me consigo em sua casa... Agora, aqui fico, e aqui hei <strong>de</strong><br />
morrer!...<br />
DOMINGOS<br />
À vonta<strong>de</strong>!<br />
ROSÁLIA<br />
Eu já tenho tudo pronto!... (aludindo a roupa com que <strong>de</strong>seja ser vestida <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> morta) - A<br />
camisa branca e comprida com um pedaço <strong>de</strong> renda, as calças , as meias brancas, a touca...<br />
Está tudo guardadinho na gaveta... Só eu e Dona <strong>Filomena</strong> é que sabemos... Quando eu esticar<br />
a canela, ela é que tem <strong>de</strong> me vestir! O senhor compreen<strong>de</strong>, não tenho ninguém!... Ah! Se<br />
voltassem os meus filhos, coisa <strong>de</strong> que ainda não perdi as esperanças... Com licença... (saí<br />
pela E. B.)<br />
DOMINGOS<br />
("agora, que ficou só, passeia um pouco pela sala. Observa as flores, lê alguns cartões,<br />
completando, em seguida, em voz alta, mas maquimente, o que estava pensando) - Pois seja!<br />
Do F. D. chegam as vozes as vozes confusas <strong>de</strong> Umberto, Ricardo e Miguel)<br />
MIGUEL<br />
(do interior) - Às seis! A cerimônia é às seis!<br />
RICARDO<br />
(i<strong>de</strong>m) - Porém, quando alguém marca um encontro...<br />
UMBERTO<br />
(i<strong>de</strong>m) - Mas eu fui pontual!<br />
(Os três jovens entram continuando a falar).<br />
MIGUEL<br />
Combintmos para as cinco. Eu cheguei atrazado três quartos <strong>de</strong> hora.<br />
RICARDO<br />
Acha pouco , talvez?<br />
MIGUEL<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 49
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
Não, mas é que já se sabe que quando se marca um encontro , enten<strong>de</strong>-se sempre uma meia<br />
hora <strong>de</strong>pois. Se está marcado para as cincos, é para as cinco e meia, seis menos um quarto...<br />
RICARDO<br />
(irônico) - O dia seguinte ... O mês vindouro...<br />
MIGUEL<br />
Olhe... Eu tenho quatro filhos e relógios não compro mais! ... O que eu tinha, êles o reduziram<br />
a pedaços!<br />
UMBERTO<br />
(vendo Domingos, cumprimenta respeitosamente) - Boa tar<strong>de</strong>, senhor Domingos!<br />
RICARDO<br />
(mesmo tom) - Senhor Domingos...<br />
MIGUEL<br />
Senhor Domingos...<br />
(E os três vão pôr-se em fila diante <strong>de</strong> Domingos, em silêncio)<br />
DOMINGOS<br />
Boa tar<strong>de</strong>. (pausa <strong>de</strong>morada) - Então? Não falam mais? Estavam. Falando...<br />
RICARDO<br />
Sim... estávamos falando... assim...<br />
MIGUEL<br />
Mas, num certo momento, tínhamos <strong>de</strong> parar <strong>de</strong> falar...<br />
DOMINGOS<br />
Sim... assim que me viram... (Para Miguel) - Você chegou tar<strong>de</strong> ao encontro?<br />
MIGUEL<br />
Sim, senhor Domingos...<br />
DOMINGOS<br />
E você chegou na hora... (fala a Ricardo)<br />
RICARDO<br />
Sim, senhor Domingos...<br />
DOMINGOS<br />
(para Umberto) - E você?<br />
UMBERTO<br />
Na hora exata, senhor Domingos!<br />
DOMINGOS<br />
(repete frase, como que falando consigo mesmo) - Na hora exata, senhor Domingos... (pausa)<br />
- Sentem-se. (Os três sentam-se) - A cerimônia está marcada para as seis horas. Temos tempo<br />
<strong>de</strong> sobra. Às seis chega o padre... e ... seremos somente nós. <strong>Filomena</strong> não quis convidar<br />
ninguém. (pausa) - Eu queria dizer-lhes uma coisa que se não me engano... Já lhes disse uma<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 50
vez... ou mais <strong>de</strong> uma vez... Acho que êste "senhor Domingos" Não vai bem... não sôa bem...<br />
não gosto muito...<br />
UMBERTO<br />
(tímido) - É...<br />
RICARDO<br />
(i<strong>de</strong>m) - É<br />
MIGUEL<br />
(i<strong>de</strong>m) - É...<br />
UMBERTO<br />
Mas, o senhor não nos disse como gostaria <strong>de</strong> ser chamado...<br />
DOMINGOS<br />
Não disse, porque <strong>de</strong>sejava que compreen<strong>de</strong>ssem sozinhos... Hoje à noite , eu me caso com<br />
sua mãe... Já marquei um encontro com o advogado para o que diz respeito a vocês. Amanhã<br />
vocês se chamarão como eu : Soriano...<br />
(Os três jovem olham um para o outro ,como se consultando sôbre a maneira <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r.<br />
Cada qual espera que o outro fale)<br />
UMBERTO<br />
(tomando coragem) - A coisa é... o senhor compreen<strong>de</strong>... Vou respon<strong>de</strong>r eu, porque penso que<br />
todos as três somos da mesma opinião... Nós não somos mais crianças... Já somos homens<br />
feitos... e não po<strong>de</strong>mos , assim, com <strong>de</strong>senvoltura, chama-lhe como o senhor, muito justa e<br />
generosamente, nos propõe que o chamemos... Certas coisas... é preciso a gente senti-las cá<br />
<strong>de</strong>ntro... (Aponta para o coração)<br />
DOMINGOS<br />
(com ansieda<strong>de</strong>) - E você, aí <strong>de</strong>ntro, não sente essa... digamos, essa necessida<strong>de</strong>... <strong>de</strong> chamar a<br />
alguém... a mim, por exemplo, <strong>de</strong> papai?<br />
UMBERTO<br />
Eu não saberia mentir-lhe e o senhor não merece que lhe mintam. Para lhe falar com<br />
sincerida<strong>de</strong>: por enquanto, não!<br />
DOMINGOS<br />
(um pouco <strong>de</strong>cepcionado. Dirigindo-se a Ricardo) - E você?<br />
RICARDO<br />
Eu tão pouco!<br />
DOMINGOS<br />
(Para Miguel) - Então, você?<br />
MIGUEL<br />
Eu também não, senhor Domingos!<br />
DOMINGOS<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Bem... Com o tempo, po<strong>de</strong> ser que se acostumem... Estou muito contente <strong>de</strong> estar com vocês,<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 51
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
sobretudo porque são três ótimos rapazes... Cada um tem a sua profissão... o seu ramo <strong>de</strong><br />
negócio ... e todos trabalham com a mesma vonta<strong>de</strong>, a mesma tenacida<strong>de</strong>... Muito<br />
bem!...(Para Umberto) - Você está empregado, e pelo que sei, é um rapaz ativo e sério...<br />
Escreve artigos...<br />
UMBERTO<br />
Alguns contos, também.<br />
DOMINGOS<br />
Eu sei. Tenho certeza <strong>de</strong> que sua ambição seria a <strong>de</strong> se tornar um gran<strong>de</strong> escritor... não é?<br />
UMBERTO<br />
Não tenho tamanha pretenção.<br />
DOMINGOS<br />
Porque? Você é jovem. Compreendo que para vencer, nesse campo, é preciso ter entusiasmo,<br />
ter nascido para isso...<br />
UMBERTO<br />
Eu não creio que nasci para isso. Quantas vezes, <strong>de</strong>sanimado, digo com os meus botões:<br />
"Umberto, você errou... O seu caminho é outro!"<br />
DOMINGOS<br />
(interessado) - E que outro po<strong>de</strong>ria ser? Quero dizer, que é que você teria gostado <strong>de</strong> fazer na<br />
vida?<br />
UMBERTO<br />
Sei lá! A gente tem tantas aspirações quando é jovem!<br />
RICARDO<br />
A vida é assim mesmo! Eu , por exemplo, sabe porque tenho loja <strong>de</strong> camiseiro? Porque an<strong>de</strong>i<br />
ntmorando uma mulher que fazia camisas sob medida!<br />
DOMINGOS<br />
(interessadissimo) - Ah! Você ntmorou muitas pequenas?<br />
RICARDO<br />
Assim, assim... Meio mundo <strong>de</strong>las!...<br />
DOMINGOS<br />
(levanta-se, perscrutando a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ricardo para ver se <strong>de</strong>scobre nele um gesto , um tom <strong>de</strong><br />
voz, que possa pôr em relação com a sua própria mocida<strong>de</strong>)<br />
RICARDO<br />
O senhor sabe o que é? Não consigo encontrar o meu tipo... Vejo uma, gosto e penso: "E<br />
esta!"... e logo a seguir resolvo: " Vou me casar com ela!".. Depois vejo outra e parece-me<br />
que gosto ainda mais <strong>de</strong>ssa. É o diabo! Há sempre uma mulher mais bonita do que aquela que<br />
se conheceu antes!<br />
DOMINGOS<br />
(para Umberto) - Você, ao contrário, em matéria <strong>de</strong> mulheres, é mais calmo, mais refletido,<br />
não é?<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 52
UMBERTO<br />
Até certo ponto. As garotas <strong>de</strong> hoje, não <strong>de</strong>ixam a gente ser refletido. Em qualquer lugar que<br />
se vá, vê-se cada pequena, uma melhor do que a outra! A escolha é que é difícil! Que hei <strong>de</strong><br />
fazer? São tantas, que vou variando todas até encontrar a tal...<br />
DOMINGOS<br />
(fica perturbado ao notar em Umberto a mesma tendência que Ricardo). (Para Miguel) - E<br />
você?...Também gosta <strong>de</strong> mulheres?<br />
MIGUEL<br />
Eu me amarrei muito <strong>de</strong>pressa... Conheci minha mulher... e pronto! Agora, tenho <strong>de</strong> ficar<br />
quietinho, porque a patroa não é <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira!... De modo que, o senhor compreen<strong>de</strong>... Não<br />
posso botar as manguinhas <strong>de</strong> fora... Não é que eu não goste das pequenas... pelo contrário...<br />
mas é que tenho medo!...<br />
DOMINGOS<br />
(<strong>de</strong>sanimado) - É ... Você também gosta <strong>de</strong> mulheres... (Pausa. Em seguida procurando outro<br />
"test" que possa fornecer-lhe a indicação que <strong>de</strong>seja) - Eu , quando era jovem , cantava.<br />
Jutavamo-nos sete, oito amigos. Era a época das serenatas. A gente ceiava na varanda e<br />
acabava sempre com cantorias bandolins, guitarras... Quem é <strong>de</strong> vocês que sabe cantar?<br />
UMBERTO<br />
Eu não sei!<br />
RICARDO<br />
Eu também não!<br />
MIGUEL<br />
Pois eu sei!<br />
DOMINGOS<br />
(feliz) - Você canta?<br />
MIGUEL<br />
Ora se canto! De outro modo, como faria para trabalhar? Dentro da minha oficina, estou<br />
sempre cantando.<br />
DOMINGOS<br />
(ansioso) - Cante qualquer coisa.<br />
MIGUEL<br />
(Esquivando-se, arrependido <strong>de</strong> ter blasonado) - Eu ? Que quer. Que eu cante?<br />
DOMINGOS<br />
O que quiser.<br />
MIGUEL<br />
O senhor sabe... Fico encabulado...<br />
DOMINGOS<br />
Mas <strong>de</strong>ntro da oficina, você não canta?<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 53
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
MIGUEL<br />
É muito diferente... O senhor conhece "O sole mio"? Tão bonito! (começa a cantar, com uma<br />
voz fanhosa e <strong>de</strong>safinada) "O sole mio - chiu belo não é - O solo mio - sta n' fronte a te!"...<br />
RICARDO<br />
(interrompendo) - Assim, eu também sei cantar! ... Isso é lá voz!<br />
MIGUEL<br />
(quase ofendido) - Então, eu não tenho voz?<br />
UMBERTO<br />
Voz, assim , eu também tenho!<br />
RICARDO<br />
Eu também, ora essa!<br />
DOMINGOS<br />
Voz, assim, tem qualquer um! (Para Ricardo) - Cante um pouco você...<br />
RICARDO<br />
Eu não tomo essa liberda<strong>de</strong>... Não sou caradura como êsse aí... Só se fôr para dar uma idéia...<br />
Mais ou menos... (cantarola a melodia)<br />
"O sõõõ mio - caiu bello n' é - O sole mio sta fronte a te!"<br />
UMBERTO<br />
(une-se ele no canto) - " O sole mio - chiu bello n' é - O sole - sta fronte ate".<br />
MIGUEL<br />
(também entra a cantar) - O sole mio - chiu bello n' é - O solo mio - sta fronte a te".<br />
(E forma-se um côro incrivelmente <strong>de</strong>safinado)<br />
DOMINGOS<br />
(interrompendo) - Chega, chega!...<br />
(Os três calam-se)<br />
DOMINGOS<br />
É melhor que vocês se calem... Devem estar emocionados... Não é possível... Três napolitanos<br />
que não sabem cantar!...<br />
FILOMENA<br />
(entra da E. B. trajando um vistoso vestido novo. Penteando à "napolitana", duas fileiras <strong>de</strong><br />
pérolas no pescoço. Brincos. Seu aspecto tornou-se quase juvenil. Fala com terezinha, a<br />
costureira, que segue juntamente com Rosália e Lúcia) - Você não quer admitir, Terezinha,<br />
mas está com <strong>de</strong>feito!<br />
TERZINHA<br />
(É uma <strong>de</strong>ssas costureiras napolitanas, que não se dão por vencidas : no sentido <strong>de</strong> que as<br />
ofensas das fregueses não as atingem nem <strong>de</strong> longe.. Sua calma chega a ser irritante) - A<br />
senhora é que está vendo um <strong>de</strong>feito que não existe , minha cara Dona <strong>Filomena</strong>... A senhora<br />
compreen<strong>de</strong> que não é possível... Há tantos anos que faço seus vestidos...<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 54
FILOMENA<br />
Você é mesmo muito <strong>de</strong>scarada!... É capaz <strong>de</strong> negar , olhando para a cara da gente!<br />
TEREZINHA<br />
Então , eu <strong>de</strong>veria concordar que o vestido tem <strong>de</strong>feito?<br />
MIGUEL<br />
Boa tar<strong>de</strong>, mamãe.<br />
RICARDO<br />
Boa tar<strong>de</strong>... e muitos votos <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>!...<br />
UMBERTO<br />
Também lhe <strong>de</strong>sejo muitas felicida<strong>de</strong>s...<br />
FILOMENA<br />
(agradável surpreendida) - Ah! Vocês já estão aqui? Boa tar<strong>de</strong>! (para Terezinha, teimosa) - E<br />
sabe porque o vestido está com <strong>de</strong>feito? Porque quando você pega um corte <strong>de</strong> fazenda nas<br />
mãos, arranja sempre jeito <strong>de</strong> fazer também um vestido para a sua menina...<br />
TEREZINHA<br />
Ora, Dona <strong>Filomena</strong>!<br />
FILOMENA<br />
Isso, já me aconteceu, não negue... Eu mesma ví a sua menina com um vestido que você<br />
conseguiu fazer sobrar da fazenda <strong>de</strong> um vestido meu...<br />
TEREZINHA<br />
Se a senhora continua falando assim, eu acabo me zangando!... (mudando <strong>de</strong> tom) -<br />
Naturalmente, quando sobra um pouco <strong>de</strong> fazenda...<br />
FILOMENA<br />
(olha para ela com ar <strong>de</strong> censura)<br />
TEREZINHA<br />
Mas, nunca sacrifiquei minhas freguezas! ... Oh! Nunca! A ética profissional antes <strong>de</strong> mais<br />
nada!<br />
ROSÁLIA<br />
(admirando a "toilette" <strong>de</strong> <strong>Filomena</strong>) - Dona <strong>Filomena</strong>, a senhora está que é uma beleza!<br />
Parece mesmo uma noiva!<br />
TEREZINHA<br />
Na sua opinião, como é que <strong>de</strong>veria ter saído o vestido?<br />
FILOMENA<br />
(furiosa) - Você não <strong>de</strong>veria é ter-me roubado na fazenda, compreen<strong>de</strong>u?<br />
TEREZINHA<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
(um tanto ofendida) - A senhora não <strong>de</strong>ve falar assim... Então, eu sou gatuma, Quero cair<br />
morta aqui mesmo, se sobrou mais do que isto da sua fazenda!... (faz um gesto para indicar<br />
uma quantida<strong>de</strong> insignificante).<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 55
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
DOMINGOS<br />
(Que até esse momento ficou assistindo a cena com impaciência, absorto por uma idéia fixa<br />
que o atormenta. Para <strong>Filomena</strong>) - <strong>Filomena</strong>, preciso falar um momento contigo.<br />
FILOMENA<br />
(da uns passos na direção <strong>de</strong> Domingos, mas capengando , por causa dos sapatos novos, que<br />
lhe come - Ah! Meu Deus! Estes sapatos!...<br />
DOMINGOS<br />
Estão doendo? Tira-os e calça outros.<br />
FILOMENA<br />
Que é que tens para dizer-me?<br />
DOMINGOS<br />
Escute, Terezinha...Se você fôr embora, me fará um favor...<br />
TEREZINHA<br />
Ora essa! Saio já! (Dobra um pano preto que trazia consigo e põe-no sobre o braço) - Sejam<br />
felizes! (Para Lúcia, encaminhando-se para F. D.) - Como é que havia do ser aquele vestido,<br />
hein? (saí acompanhada por Lúcia)<br />
DOMINGOS<br />
(para o três jovens) - Vocês vão para a sala <strong>de</strong> visitas e fiquem fazendo companhia ao<br />
compadre e à comadre. E dêem-lhe qualquer coisa para beber... Rosália, acompanhe-os!...<br />
ROSÁLIA<br />
Sim, senhor . (Para os três jovens) - Venham. (Saí para o "escritório")<br />
MIGUEL<br />
(para os irmãos) - Vamos!<br />
RICARDO<br />
(caçoando dêle) - Você errou <strong>de</strong> profissão. Deveria é ter ido para o Scala... (E os três jovens<br />
saem rindo para o "escritório")<br />
DOMINGOS<br />
(olhando <strong>Filomena</strong> com admiração) - Como está linda! <strong>Filomena</strong>!... Voltaste a cor jovem!... E<br />
se eu não estivesse preocupado, po<strong>de</strong>ria até dizer-te que ainda és capaz <strong>de</strong> virar a cabeça <strong>de</strong><br />
muito homem!...<br />
FILOMENA<br />
(quer evitar a todo o transe o argumento que preocupa Domingos e cujo teor ela adivinhou.<br />
Procura <strong>de</strong>sconversar) - Parece-me que não falta nada... An<strong>de</strong>i tão atordoada , hoje , o dia<br />
inteiro...<br />
DOMINGOS<br />
Pois eu não estou nada tranqüilo... Não estou sossegado...<br />
FILOMENA<br />
(interpretando, propositadamente, <strong>de</strong> modo diverso, as palavras <strong>de</strong> Domingos) - Como é que a<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 56
gente po<strong>de</strong> estar tranqüila? Só se po<strong>de</strong> confiar em Lúcia... Alfredo e Rosália são dois velhos...<br />
DOMINGOS<br />
(volta ao tom inicial) - Não mu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> assunto, <strong>Filomena</strong>... Não mu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> assunto, porque<br />
estás pensando exatamente a mesma coisa que eu estou pensando... (continuando) - E essa<br />
tranqüilida<strong>de</strong>, esse sossêgo, só tu po<strong>de</strong>s dar, <strong>Filomena</strong>!...<br />
FILOMENA<br />
Eu?<br />
DOMINGOS<br />
Viste como acabei fazendo o que querias... Depois da anulação do casamento , eu mesmo fui<br />
procurar-te. E não uma vez só , mas muitas... Porque mandavas sempre dizer que não estavas<br />
em casa .. Fui eu que te fui procurar e que te propus que nos casássemos...<br />
FILOMENA<br />
E hoje à tar<strong>de</strong> nos casamos.<br />
DOMINGOS<br />
Estás contente, ao menos , espero.<br />
FILOMENA<br />
Claro que estou.<br />
DOMINGOS<br />
Pois , então, <strong>de</strong>ves fazer-me contente a mim também... Senta-te e escuta-me...<br />
FILOMENA<br />
(senta-se)<br />
DOMINGOS<br />
Se soubesses quantas vêzes, nestes últimos meses, tenho procurado falar-te, sem conseguir...<br />
Tentei com todas as minhas forças vencer êste sentimento <strong>de</strong> pudor, mas faltou-me a coragem<br />
... Sei que o assunto é melindroso e lastimo até muito , ter <strong>de</strong> forçar-te a respon<strong>de</strong>r a perguntas<br />
embaraçadoras... Mas, hoje, temos <strong>de</strong> nos casar... Dentro <strong>de</strong> poucos minutos.<br />
Vamos nos encontrar ajoelhados diante do altar, e não como dois jovens que alí se encontram<br />
por acreditarem ser o amor um sentimento que se po<strong>de</strong> satisfazer do modo mais simples e<br />
natural... Nós já vivemos a nossa vida... Eu estou com cinqüenta e dois anos, tu com quarenta<br />
e oito... Somos duas consciências já formadas , que têm o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r até ao fundo<br />
, o ato que realizam, e enfrentá-lo, assumindo todas as responsabilida<strong>de</strong>s. Tu sabes porque te<br />
casas comigo. Eu , não! Sei que me caso contigo somente porque me disseste que um <strong>de</strong>stes<br />
três rapazes é meu filho..<br />
FILOMENA<br />
Só por isto?<br />
DOMINGOS<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Não... Também porque te quero bem... Vivemos juntos vinte e cinco anos e vinte e cinco anos<br />
representam uma vida inteira ; recordações, sauda<strong>de</strong>s, vida comum!... Compreendi sozinho<br />
que sem ti eu me encontraria perdido... E caso-me contigo também porque acredito no que<br />
disseste ... São coisas que a gente sente, e eu sinto que é verda<strong>de</strong>. Conheço-te bem e por isso<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 57
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
te estou falando assim...(gravemente, doloroso) - Eu , <strong>de</strong> noite, já não durmo! Faz <strong>de</strong>z meses,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> aquele dia... Lembras-te?... que não encontro sossêgo!... Não durmo, não como, não me<br />
divirto, não vivo , enfim!... Tu não sabes o que tenho no coração!... Tenho uma coisa que me<br />
tira o fôlego!... Eu faço assim... (como quem respira com dificulda<strong>de</strong>) E a respiração para no<br />
meio, aqui... (mostra a garganta) - Tu não po<strong>de</strong>s continuar a fazer-me viver assim!... Tens<br />
bom coração, és uma mulher que sabe o que é a vida, que <strong>de</strong>veria querer-me um pouco <strong>de</strong><br />
bem... Não po<strong>de</strong>s obrigar-me a continuar a viver assim!... Lembras-te <strong>de</strong> quando me disseste<br />
"Não jures!..." E eu não jurei! E agora, portanto, <strong>Filomena</strong>, posso pedir-te a esmola... E<br />
peço-a como tu quizeres: <strong>de</strong> joelhos, beijando-te a mão, a barra do vestido!... Dize-me,<br />
<strong>Filomena</strong>, dize-me: qual é dêles o meu filho, a carne da minha carne, o meu sangue!... Tens<br />
<strong>de</strong> dizê-lo por ti mesma, para não dar a impressão <strong>de</strong> que estás fazendo uma chantagem... Eu<br />
me caso contigo, igualmente, juro!<br />
FILOMENA<br />
(após uma pausa <strong>de</strong>morada, durante a qual ficou olhando prolongadamente para Domingos) -<br />
Queres sabê-lo? ... Pois vou dizer. Basta que eu te diga: "Teu filho é êsse aí"... E tu então ,<br />
que vais fazer? Vais procurar levá-lo sempre contigo... Vais pensar em dar-lhe um futuro<br />
melhor e, naturalmente, vais estudar todas as maneiras para dar mais dinheiro a ele que aos<br />
outros dois....<br />
DOMINGOS<br />
E com isto?<br />
FILOMENA<br />
(suave, insinuante) - Pois nesse caso, trata <strong>de</strong> auxiliá-lo... Êle bem que precisa... É casado e<br />
tem quatro filhos.<br />
DOMINGOS<br />
(com ansieda<strong>de</strong>) - É o operário?<br />
FILOMENA<br />
(confirmando) - É... É o funileiro.<br />
DOMINGOS<br />
(como que falando consigo mesmo; exaltando-a medida que pensa no caso) - ... um ótimo<br />
rapaz... sólido... sadio!... Porque foi êle se casar tão cedo? Que é que vai po<strong>de</strong>r ganhar com<br />
uma oficianazinha <strong>de</strong> bombeiro? Bem... Afinal <strong>de</strong> contas, essa também é uma boa profissão!<br />
Com um pequeno capital, po<strong>de</strong> montar uma pequena fábrica, com operários... Êle fica sendo,<br />
olhando para <strong>Filomena</strong>, <strong>de</strong>sconfiado) - Ora , logo o bombeiro... O funileiro! Pois é! Êsse é<br />
casado... Precisa mais do que os outros...<br />
FILOMENA<br />
(simulando <strong>de</strong>cepção) - Que queres que uma mãe faça?... Tem <strong>de</strong> procurar auxiliar o mais<br />
fraco... Mas tu não acreditaste... És muito sabido, és ladino!... Pois bem... Não é êle... É<br />
Ricardo, o comerciante.<br />
DOMINGOS<br />
O camiseiro?<br />
FILOMENA<br />
Não. É Umberto, o escritor.<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 58
DOMINGOS<br />
(exasperado, violento) - Tentas ainda pôr-me com as costas a pare<strong>de</strong>.. até o fim!...<br />
FILOMENA<br />
(comovida pelo tom doloroso e <strong>de</strong>sesperado <strong>de</strong> Domingos, procura reunir os seus mais<br />
íntimos sentimentos, para tirar dêles a fórmula <strong>de</strong> uma argumentação persuasiva que,<br />
finalmente, forneça a Domingos explicações concretas e <strong>de</strong>finitiva) - Presta muita atenção no<br />
que vou dizer-te, Domingos, e <strong>de</strong>pois não tornemos a falar mais no assunto. (com um<br />
rompante <strong>de</strong> amor refreado durante prolongando tempo) - Eu te amei com todas as forças da<br />
minha alma, Domingos! Aos meus olhos, eras uma espécie <strong>de</strong> divinda<strong>de</strong>... e ainda muito te<br />
quero, talvez até mais do que antes... (consi<strong>de</strong>rando <strong>de</strong> repente, a incompreensão <strong>de</strong>le) - Que<br />
foi que fizeste, Domingos?... Quiseste sofrer à fôrça!... Deus te dêra tudo para seres feliz:<br />
saú<strong>de</strong>, bela presença, dinheiro... e a mim que para não te fazer sofrer, teria ficado calada, não<br />
era falado nem na hora da morte... e tu terias sido o homem generoso que proporcionou uma<br />
vida melhor a três infelizes... (pausa) - Não me perguntes mais qual é o teu filho, porque eu<br />
não vou dizer. Não posso dizer... E <strong>de</strong>ves te portar como um homem direito e nunca mais<br />
fazer-me! essa pergunta... porque, pelo bem que te quero... num momento <strong>de</strong> fraqueza... quem<br />
sabe, Domingos?... E seria a nossa <strong>de</strong>sgraça! Ainda agora, quando te disse que teu filho era o<br />
funileiro , logo começaste a pensar no dinheiro... no capital... na fábrica <strong>de</strong> aparelhos<br />
mo<strong>de</strong>rnos ... Tu te preocupas e não <strong>de</strong>ixas <strong>de</strong> ter razão... Tu pensas: "O dinheiro é meu!"<br />
"Porque não hei <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r dizer-lhe que sou seu pai?"... "E quanto aos outros dois, que é que<br />
eu tenho com isso?"... "Que direito têm êles?"... Isso seria o inferno, Domingos!...<br />
Compreen<strong>de</strong>s? O interesse os atiraria um contra o outro... São três homens... Não são três<br />
rapazolas... Seriam até capazes <strong>de</strong> se matarem um ao outro!... Tu não <strong>de</strong>ves pensar em ti, não<br />
<strong>de</strong>ves pensar em mim... Pensa neles. O mais bonito que os filhos nos po<strong>de</strong>m dar, já o<br />
per<strong>de</strong>mos, Domingos!... Os filhos são aqueles que a gente pega no colo, quando estão<br />
pequeninos, que nos fazem sofrer quando estão doentes e não sabem dizer o que sentem... que<br />
correm ao nosso encontro <strong>de</strong> bracinhos abertos, dizendo: "Papai... mamãe"... aqueles que<br />
vemos chegar da escola com as mãozinha tremendo <strong>de</strong> frio e o narizinho vermelho e que nos<br />
pe<strong>de</strong>m balas... Mas, quando crescem, quando se tornaram homens, ou são todos filhos iguais,<br />
ou se torntm inimigos uns dos outros!... Ainda estás em tempo, Domingos... Eu não te quero<br />
mal... Deixemos ficar tudo no pé em que está a cada um <strong>de</strong> nós siga o seu próprio caminho, tu<br />
o teu , eu o meu!... (chegam do interior os primeiros acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um harmonium ensaiando a<br />
marcha nupcial)<br />
ROSÁLIA<br />
(do !escritório" acompanhada pelos três jovens) - Chegou!... o padre já chegou!...<br />
MIGUEL<br />
Mamãe!...<br />
DOMINGOS<br />
(Levanta-se da mesa e olha longamente para todos. Em seguida, numa <strong>de</strong>cisão repentina) -<br />
Deixemos tudo no pé em que está e cada um siga o seu próprio caminho!... (para o jovem) -<br />
Preciso falar com vocês...<br />
(Todos esperam com ansieda<strong>de</strong>)<br />
DOMINGOS<br />
Eu sou um homem e bem e não quero enganá-los... Ouçam-me bem...<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 59
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
OS TRÊS<br />
Sim, papai!<br />
DOMINGOS<br />
(olha comovido para <strong>Filomena</strong> e toma nova <strong>de</strong>cisão) Obrigado! Vocês me <strong>de</strong>ram um gran<strong>de</strong><br />
prazer!... (Prosseguindo) - Bem... Quando dis se casam, é sempre o pai quem acompanha a<br />
noiva até o altar... Aqui , não há pai... Há somente filhos... Dois vão acompanhar a noiva , e o<br />
outro o noivo...<br />
MIGUEL<br />
Nós vamos acompanhar mamãe... (encaminha-se para <strong>Filomena</strong> e comovida Ricardo a fazer o<br />
mesmo)<br />
FILOMENA<br />
(lembrando-se <strong>de</strong> repente) - Que horas são?<br />
RICARDO<br />
Falam cinco minutos para as seis.<br />
FILOMENA<br />
(aproxima-se <strong>de</strong> Rosália) Rosália!...<br />
ROSÁLIA<br />
Fique <strong>de</strong>scansada. Às seis em ponto vão acen<strong>de</strong>r as velas lá também!<br />
FILOMENA<br />
(apoiando-se no braço <strong>de</strong> Miguel e no <strong>de</strong> Ricardo) - Bem ... Vamos! (entram no "escritório")<br />
DOMINGOS<br />
(para Umberto) - Você vai acompanhar-me a mim...<br />
(Formam o cortejo e entram no "escritório". Rosália emocionada e humil<strong>de</strong> como sempre<br />
permanece on<strong>de</strong> está, batendo palmas e olhando na direção da cortina. Ouve-se no interior a<br />
"Marcha Nupcial". Agora , Rosália chora. Pouco <strong>de</strong>pois chega Alfredo, e juntos acompanham<br />
a cerimonia. Também Lúcia vai juntar-se a êles)!<br />
(As luzes diminuem em resistência até à completa escuridão. Pausa. Pela varanda, entra uma<br />
nesga <strong>de</strong> luar e, vagarosamente, acen<strong>de</strong>-se todas as lâmpadas da peça. Houve uma passagem<br />
<strong>de</strong> tempo)<br />
FILOMENA<br />
(acompanhada por Umberto, Miguel e Rosália, entra vindo do "escritório" e dirige-se<br />
diretamente para a E.) - Como estou cansada , meu Deus!<br />
MIGUEL<br />
Agora a senhora po<strong>de</strong> ir <strong>de</strong>scansar . Nós , também , vamos indo. Amanhã cedo, tenho <strong>de</strong> estar<br />
na oficina.<br />
ROSÁLIA<br />
(com um ban<strong>de</strong>ja cheia <strong>de</strong> copos vasios , para <strong>Filomena</strong>) - Felicida<strong>de</strong>, muita felicida<strong>de</strong>!... Que<br />
beleza <strong>de</strong> cerimônia!....<br />
FILOMENA<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 60
(para Rosália) - Rosália, dê-me um copo d'água!<br />
ROSALIA<br />
(frisando) - Já, já, Dona <strong>Filomena</strong>!... (e saí pelo F. E.)<br />
DOMINGOS<br />
(Vindo do "escritório" com uma garrafa <strong>de</strong> vinho especial, com a rolha coberta <strong>de</strong> lacre) -<br />
Nada <strong>de</strong> convidados, nada <strong>de</strong> banquetes, mas uma garrafa <strong>de</strong> bom vinho , em família, temos<br />
<strong>de</strong> bebê-lá... (Pega do sacarolhas em cima <strong>de</strong> um móvel do fundo) - Vai ajudar-nos a dormir<br />
melhor... (tira a rolha da garrrafa)<br />
ROSÁLIA<br />
(Volta com um copo chéio d'água, numa pequena salva) - Cá está a água!<br />
DOMINGOS<br />
Que história <strong>de</strong> água é esta?<br />
ROSÁLIA<br />
Foi Dona <strong>Filomena</strong> quem pediu.<br />
DOMINGOS<br />
Pois diga a Dona <strong>Filomena</strong> , que água, num dia dêstes, dá azar! E chame também Lúcia... Ah!<br />
Ia-me esquecendo!... Chame também Alfredo Amoroso, cavalariço, cocheiro e conhecer <strong>de</strong><br />
cavalos <strong>de</strong> corrida...<br />
ROSALIA<br />
(olhando na direção do F. D.) - Alfredo! ... Alfredo!... Venha beber um gole <strong>de</strong> vinho com o<br />
patrão!... Você tamtém, Lúcia...<br />
ALFREDO<br />
(vindo do F.) - Cá estou eu!<br />
DOMINGOS<br />
(encheu os copos e agora os distribui) - Toma, <strong>Filomena</strong>!... À nossa!... (para os <strong>de</strong>mais) -<br />
Bebem!...<br />
ALFREDO<br />
(bebendo) - Á saú<strong>de</strong> dos noivos!<br />
DOMINGOS<br />
(olha para o fiel Alfredo com ternura e sauda<strong>de</strong>) - Você ainda se lembra , Alfredo , quando<br />
corriam os nossos cavalos?<br />
ALFREDO<br />
Com a breca! Se me lembro!<br />
DOMINGOS<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Já não correm mais... Pararam!... Há muito tempo que pararam!... Eu não queria acreditar, e ,<br />
na minha imaginação, me parecia vê-los correr! Mas, agora, compreendi... me convenci <strong>de</strong><br />
que pararam... e há muito tempo!... (mostra os três jovens) Agora , são eles que <strong>de</strong>vem correr!<br />
São estes cavalilhos novos que <strong>de</strong>vem correr... estes potros <strong>de</strong> sangue quente!... Que no papel<br />
faríamos nós se ainda quisséssemos fazer correr os nossos cavalos?... Todos iriam rir na nossa<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 61
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
cara, Alfredo!...<br />
ALFREDO<br />
Com a breca!<br />
DOMINGOS<br />
Beba, Alfredo!... (Todos bebem) - Os filhos são filhos!... E são uma bênção do céu... E<br />
sempre acontece... Quando , numa família, há mais <strong>de</strong> um, há três, há quatro... acontece que o<br />
pai tem carinho... uma consi<strong>de</strong>ração especial, que sei eu!... por um dos quatro... Ou porque é<br />
mais feio, ou porque não tem boa saú<strong>de</strong>, ou porque é mais prepotente, enfim, por um motivo<br />
qualquer... E os outros filhos não se aborrecem com isso... acham até justo. É quase que um<br />
direito do pai... Aqui, convosco, isto não aconteceu, porque a nossa família se reuniu<br />
<strong>de</strong>masiado tar<strong>de</strong>... Talvez seja melhor assim... Quer dizer que o afeto que eu teria o direito <strong>de</strong><br />
dar a um dos meus filhos ... divido entre todos os três... (Bebe) A nossa!<br />
FILOMENA<br />
(não respon<strong>de</strong>. Tirou do <strong>de</strong>cote um ramalhete <strong>de</strong> flores <strong>de</strong> laranjeiras e, <strong>de</strong> quando em vez, lhe<br />
aspira o perfume.)<br />
DOMINGOS<br />
(dirige-se aos três jovens, em tom bonachão) - Rapaz, amanhã vocês vêem almoçar aqui.<br />
OS TRES<br />
Obrigado.<br />
RICARDO<br />
(encaminhando-se para <strong>Filomena</strong>) - Agora , vamos <strong>de</strong>ixá-las, porque é tar<strong>de</strong> e mamãe precisa<br />
ir <strong>de</strong>scançar. Boa noite, mamãe! (Beija-a) - A gente se verá amanhã.<br />
UMBERTO<br />
(imitando o irmão) - Boa noite, mamãe!<br />
MIGUEL<br />
Boa noite e muitos votos <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>...<br />
UMBERTO<br />
(acercando-se <strong>de</strong> Domingos , sorri-lhe carinhosamente) - Boa noite, papai!...<br />
RICARDO E MIGUEL<br />
(cumprimentam juntos) - Papai, boa noite!...<br />
DOMINGOS<br />
(olha para os três jovens com gratidão. Pausa) - Dê-me um beijo! (Os três um após outro ,<br />
beijam Domingos, emocionados) - Até amanhã!<br />
OS TRÊS<br />
(Saindo acompanhados <strong>de</strong> Alfredo, Rosália e Lúcia) - Até amanhã!<br />
DOMINGOS<br />
(acompanhou-os com o olhar, absorto em suas reflexões sentimentais. Agora, acerca,<br />
acerca-se da mesa e enche novamente o seu copo)<br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 62
FILOMENA<br />
(que foi sentar-se numa poltrona e tirou os sapatos) - Meu Deus como estou cansada! A fadiga<br />
me veio agora toda <strong>de</strong> uma vez!<br />
DOMINGOS<br />
(afetuosamente) - Todo o dia trabalhando! ... Além disto , a emoção... todos os preparativos<br />
<strong>de</strong>stes últimos dias!... Mas , agora, fica tranqüila e trata <strong>de</strong> <strong>de</strong>scançar ... (toma o copo e se<br />
aproxima da varanda) - Que bonita noite está fazendo!<br />
FILOMENA<br />
(sente qualquer coisa que lhe aperta a garganta. Emite uns sons quase parecidos com<br />
lamentações ... e fica o vácuo como à espera <strong>de</strong> algum acontecimento. Os olhos<br />
encheram-se-lhe <strong>de</strong> lágrimas)<br />
DOMINGOS<br />
(olha-a preocupado) - Que foi , <strong>Filomena</strong>?<br />
FILOMENA<br />
(feliz) - Estou chorando, Domingos!... Como é bom chorar!...<br />
DOMINGOS<br />
(apertando-a terntmente contra si) - Não é nada... não é nada!... Correste, correste... tiveste<br />
medo... Caíste... tornaste a te levantar... continuaste a subir a la<strong>de</strong>ira!.... Pensaste muito, e<br />
pensar cansa!... Mas, agora , não corras mais... não penses mais!... Descansa!...(volta para a<br />
mesa para tornar a beber mais um gole <strong>de</strong> vinho) Os filhos são filhos ... e são todos iguais!...<br />
tens razão, <strong>Filomena</strong>, tens razão!... (e bebe o seu vinho, enquanto cai o PANO<br />
FIM.<br />
<strong>Eduardo</strong> <strong>de</strong>, <strong>Filippo</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 63
<strong>Filomena</strong> <strong>Marturano</strong><br />
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 64