15.04.2013 Views

Novas Diretrizes em Tempo de Paz

Novas Diretrizes em Tempo de Paz

Novas Diretrizes em Tempo de Paz

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Personagens:<br />

Clausewitz, por volta <strong>de</strong> 40 anos, ator.<br />

NOVAS DIRETRIZES EM TEMPOS DE PAZ<br />

uma fábula <strong>de</strong> Bosco Brasil<br />

Segismundo, por volta <strong>de</strong> 40 anos, interrogador.<br />

Cenário: sala na Imigração do Porto do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Época: década <strong>de</strong> 40, séc. XX.<br />

Segismundo está limpando as unhas nervosamente. Clausewitz abre a porta com<br />

cuidado. Segismundo sinaliza para que ele entre. Clausewitiz entra e fecha a<br />

porta atrás <strong>de</strong> si. De fora, chega o apito rouco e insistente <strong>de</strong> um cargueiro que se<br />

prepara para zarpar.<br />

SEGISMUNDO - Por que isso s<strong>em</strong>pre acontece comigo?... (PARA CLAUSEWITZ)<br />

Eu tenho que ir para casa <strong>de</strong>pressa. Enten<strong>de</strong>? Or<strong>de</strong>ns. De lá <strong>de</strong> cima. (PARA SI)<br />

Justo hoje esse sujeito me aparece?<br />

Clausewitz reage à palavra “sujeito”.<br />

SEGISMUNDO - On<strong>de</strong> está o seu passaporte?... Eu <strong>de</strong>ixei aqui, <strong>em</strong> algum lugar.<br />

Po<strong>de</strong> sentar. (SINALIZA E FALA COM TODAS AS LETRAS) Sentar. Po<strong>de</strong>. Na<br />

ca<strong>de</strong>ira. (TEMPO) Só quero ver como é que eu vou me enten<strong>de</strong>r com esse<br />

sujeito...<br />

CLAUSEWITZ - (MURMURA) Sujeito... Predicado... Objeto... (TEMPO) Objetos.<br />

SEGISMUNDO - Você fala Português?<br />

Clausewitz faz um gesto evasivo com a cabeça.<br />

SEGISMUNDO - Sei. Um pouco. Melhor... Deixa eu ver: a gente vai ter que<br />

preencher isto aqui. (COLOCA UM PAPEL NA MÁQUINA DE ESCREVER) Por<br />

que mudaram a fórmula do <strong>de</strong>poimento outra vez?... Esse pessoal não sabe o<br />

que quer. (DATILOGRAFANDO) Distrito Fe<strong>de</strong>ral... (PARA SI) Que dia é hoje?<br />

CLAUSEWITZ - Dezoito <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1945.<br />

SEGISMUNDO - O senhor fala b<strong>em</strong> Português, então?<br />

Clausewitiz faz mais um gesto evasivo com a cabeça.<br />

1


SEGISMUNDO - Vamos ver se acabamos logo com isto...<br />

CLAUSEWITIZ - Sua esposa?<br />

SEIGISMUNDO - Minha irmã. Vamos ver... Data <strong>de</strong> hoje, nome do <strong>de</strong>poente...<br />

CLAUSEWITZ - Seu nome?<br />

SEGISMUNDO - Como?<br />

CLAUSEWITZ - Seu nome.<br />

SEIGISMUNDO - Segismundo.<br />

CLAUSEWITZ – Segismundo?<br />

SEGISMUNDO – Meus pais morreram eu ainda era <strong>de</strong> colo. Nunca vou saber<br />

porque ganhei esse nome.<br />

CLAUSEWITZ – Segismundo. (TEMPO) Sabe, esse nome... Não. O senhor não<br />

vai se interessar. Eu também não me interesso por isso.<br />

SEGISMUNDO - (TEMPO) O senhor fala mesmo, o Português.<br />

CLAUSEWITZ - Eu falo.<br />

SEGISMUNDO - Já esteve no Brasil antes?<br />

CLAUSEWITZ - Nunca antes.<br />

SEGISMUNDO- Sei. E o senhor apren<strong>de</strong>u como, o Português?<br />

CLAUSEWITZ - Estu<strong>de</strong>i sozinho. Depois <strong>de</strong> tudo que eu passei... tudo que eu<br />

passei na Guerra... estudar uma língua tão estranha foi bom para mim, me fez<br />

esquecer... Eu sou grato ao “x”. Gastei muito t<strong>em</strong>po estudando os valores do “x”<br />

no Português. Como é que vocês usam <strong>de</strong> tantas maneiras uma letrinha à toa?!<br />

Estudando o “x” eu às vezes quase esquecia da Guerra... Quase esquecia da<br />

malda<strong>de</strong>. (TEMPO) Claro, um funcionário do consulado do seu país <strong>em</strong><br />

Manchester me <strong>em</strong>prestou alguns livros. Ele também repetiu “não” muitas vezes.<br />

Agora eu falo: “não”.<br />

SEGISMUNDO - Era a obrigação <strong>de</strong>le.<br />

CLAUSEWITZ - Repetir o “não””?<br />

SEGISMUNDO - Não se po<strong>de</strong> dar visto <strong>de</strong> entrada ao primeiro que aparece.<br />

2


CLAUSEWITZ - Ah... Estava falando da pronúncia. “Não”. É difícil dizer: “não”.<br />

Essas “nasais” da sua língua...<br />

SEGISMUNDO - Nazistas, o senhor disse?<br />

CLAUSEWITZ - Por favor! Nasais! Nasais... Não. Mão. Verão.<br />

SEGISMUNDO - Então. O senhor apren<strong>de</strong>u com esse funcionário do consulado.<br />

CLAUSEWITZ - Eu já tinha estudado um pouco no s<strong>em</strong>inário. Por causa do meu<br />

professor <strong>de</strong> Latim. O Professor Cracowiack... (TEMPO) Docta ignorantia. O<br />

senhor já ouviu isso, não?<br />

SEGISMUNDO - Não. O que é?<br />

CLAUSEWITZ - Latim.<br />

SEGISMUNDO - Não estu<strong>de</strong>i latim.<br />

CLAUSEWITZ - O senhor nunca foi à missa?<br />

SEGISMUNDO - Não.<br />

CLAUSEWITZ - (TEMPO) O senhor sabe: meu país é um país <strong>de</strong> católicos como<br />

o seu país.<br />

SEGISMUNDO - Fui criado num orfanato luterano.<br />

CLAUSEWITZ - (TEMPO) Desculpai-me.<br />

SEGISMUNDO - (TEMPO) Então o senhor apren<strong>de</strong>u português no s<strong>em</strong>inário...<br />

CLAUSEWITZ - Não. Latim... Com o professor Cracowiack , como eu disse.<br />

(TEMPO) Interessante. Nunca soube como o professor Cracowiack foi acabar<br />

dando aula no s<strong>em</strong>inário. (TEMPO) O professor Cracowiack amava as línguas<br />

neolatinas. (TEMPO) Professor Cracowiack falava <strong>de</strong>zessete línguas! (TEMPO)<br />

Ele tinha o ex<strong>em</strong>plar <strong>de</strong> uma revista com poesia brasileira mo<strong>de</strong>rna. (SE ANIMA)<br />

O senhor já ouviu falar do senhor Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>?<br />

SEGISMUNDO - É o sujeito forte do ministro da Educação e da Saú<strong>de</strong>. Eu sei que<br />

escreve num jornal. Parece que é escritor. E o senhor, é escritor?<br />

CLAUSEWITZ - Não, sou agricultor.<br />

SEGISMUNDO - E apren<strong>de</strong>u sozinho o português... Não é todo dia que chega um<br />

estrangeiro aqui, falando Português.<br />

3


CLAUSEWITZ - É bom estar no Brasil.<br />

SEGISMUNDO - Deve ser. (TEMPO) Escute, o senhor chegou num dia um pouco<br />

agitado. Precisamos resolver esta confusão logo. O senhor sabe que pela lei<br />

ainda estamos <strong>em</strong> guerra. Eu sei, eu sei... Na Europa a coisa parou. Logo v<strong>em</strong> o<br />

armistício. Mas para nós, aqui na Imigração, tudo continua o mesmo. Estamos<br />

esperando novas diretrizes para t<strong>em</strong>pos <strong>de</strong> paz. Enquanto não chegam: continua<br />

o mesmo. Se quer ficar no país, como estrangeiro, o senhor precisa <strong>de</strong> um salvoconduto.<br />

O senhor quer ficar no país, não é?<br />

CLAUSEWITZ - Eu quero.<br />

SEGISMUNDO - Sei. Então nós t<strong>em</strong>os que esclarecer algumas dúvidas a seu<br />

respeito. Se isso não for possível, o senhor será obrigado a voltar ao cargueiro, e<br />

seguir viag<strong>em</strong>.<br />

CLAUSEWITZ - Eu tenho visto.<br />

SEGISMUNDO - Visto para entrar no país. Expedido pelo consulado brasileiro <strong>em</strong><br />

Manchester. É está folhinha, estou certo? Agora... Está vendo o seu passaporte?<br />

Algum carimbo nesta folha? Então. Qu<strong>em</strong> bate esse carimbo sou eu. O senhor<br />

ainda não entrou no Brasil. O senhor não entrou <strong>em</strong> país algum. O senhor entrou<br />

na minha sala. Eu digo se o senhor fica ou segue viag<strong>em</strong>.<br />

CLAUSEWITZ - O cargueiro vai para as Ilhas Fauklands... E que eu vou fazer lá?<br />

SEGISMUNDO - E o que o senhor veio fazer aqui?<br />

CLAUSEWITZ - Aqui? No Brasil? Trabalhar.<br />

SEGISMUNDO - No seu passaporte diz que o senhor é agricultor.<br />

CLAUSEWITIZ - O seu país precisa <strong>de</strong> braços para a lavoura...<br />

SEGISMUNDO - O meu país precisa <strong>de</strong> muita coisa. Posso ver suas mãos?<br />

CLAUSEWITIZ - Não entendi.<br />

SEGISMUNDO - (GESTICULA) Eu quero ver suas mãos.<br />

CLAUSEWITIZ - O senhor quer ver minhas mãos...<br />

SEGISMUNDO - Isso mesmo. Agora. Suas mãos.<br />

Clausewitz mostra as mãos.<br />

SEGISMUNDO - A palma da mão, por favor.<br />

4


T<strong>em</strong>po. Clausewitiz vira a palma das suas mão para cima.<br />

SEGISMUNDO - O senhor nunca pegou numa enxada na sua vida. Sabe,<br />

senhor...<br />

CLAUSEWITZ - Clausewitz.<br />

SEGISMUNDO - Então. Foi o que mais me chamou a atenção. Mais do que todo<br />

resto. Um agricultor. Eu fiquei pensando o que um agricultor faz na Europa, nestes<br />

dias. O senhor fazia o quê, lá?<br />

CLAUSEWITZ - Nada.<br />

SEGISMUNDO - Sei. E aqui, o senhor quer fazer o quê?<br />

CLAUSEWITZ - O Brasil precisa <strong>de</strong> braços para a agricultura.<br />

SEGISMUNDO - O Brasil s<strong>em</strong>pre precisa <strong>de</strong> alguma coisa. Uma hora, precisa<br />

plantar; outra hora precisa t<strong>em</strong>perar o aço; outra hora o Brasil precisa <strong>de</strong> nós.<br />

Outra hora não precisa mais <strong>de</strong> nós... (TEMPO) O senhor não trouxe nenhuma<br />

bagag<strong>em</strong>?<br />

CLAUSEWITZ - O que eu sou é tudo que eu tenho.<br />

SEGISMUNDO - Não t<strong>em</strong> bagag<strong>em</strong>, então.<br />

CLAUSEWITZ - Eu fui <strong>de</strong>ixando os meus objetos pelo caminho, da Po... Polsh...<br />

SEGISMUNDO - (AJUDA) Polônia.<br />

CLAUSEWITZ - (ASSENTE) Da Polônia até o Brasil. (SE ESFORÇA) Até aqui...<br />

SEGISMUNDO - O senhor <strong>em</strong>barcou <strong>em</strong> Manchester, não foi isso? Não<br />

<strong>em</strong>barcou com nada?<br />

CLAUSEWITZ - Não.<br />

SEGISMUNDO - Isso é muito estranho. Quase todos que t<strong>em</strong> <strong>de</strong>s<strong>em</strong>barcado<br />

aqui, nos últimos t<strong>em</strong>pos, vêm trazendo móveis, tapetes, pianos... Alguns até<br />

traz<strong>em</strong> carros.<br />

CLAUSEWITZ - Eu sei. Essas pessoas vão ven<strong>de</strong>r esses objetos para pagar por<br />

uma vida nova. Me falaram <strong>em</strong> construir fábricas, <strong>em</strong> comprar fazendas. E <strong>de</strong>pois<br />

vão comprar outros objetos outra vez. Outros tapetes, outros pianos. Objetos.<br />

Parece que estão se preparando para fugir <strong>de</strong> novo. E quando isso acontecer vão<br />

precisar <strong>de</strong> objetos para ven<strong>de</strong>r.<br />

5


SEGISMUNDO - Mas o senhor não trouxe nada.<br />

CLAUSEWITZ - Meus braços.<br />

SEGISMUNDO - Sei. O Brasil precisa <strong>de</strong> braços para a lavoura.<br />

O cargueiro apita.<br />

SEGISMUNDO - O seu navio já está para partir.<br />

CLAUSEWITZ - Eu não vou ficar?<br />

SEGISMUNDO - Não posso me arriscar. Há muitas contradições no seu<br />

<strong>de</strong>poimento.<br />

CLAUSEWITZ - O senhor fala: contradições. On<strong>de</strong> estão as contradições?<br />

SEGISMUNDO - Em todo lugar. O senhor diz que é agricultor, mas não t<strong>em</strong> um<br />

calo na mão. Nunca veio ao Brasil, mas fala Português muito b<strong>em</strong>.<br />

CLAUSEWITZ - O senhor acha que eu sou um espião?<br />

SEGISMUNDO - Não. Acho que é um nazista tentando entrar no Brasil.<br />

CLAUSEWITZ - Nazista?! Eu?!<br />

SEGISMUNDO - Por favor... Não tenho nada contra o senhor. Mas agora nós<br />

venc<strong>em</strong>os uma guerra contra o nazi-fascismo. É o que estão falando. O senhor<br />

não imagina a confusão que foram estes últimos anos... Uma hora diziam para<br />

barrar os ju<strong>de</strong>us, outra hora para barrar os al<strong>em</strong>ães. Enquanto não chegam as<br />

novas diretrizes para t<strong>em</strong>pos <strong>de</strong> paz tenho que resolver tudo por mim mesmo.<br />

CLAUSEWITZ - Confusão! Confusão... (RESPIRA) Há uma confusão. Eu não<br />

sou nazista. Eu sou... da Polônia!<br />

SEGISMUNDO – Uma passageira do navio disse que conhecia o senhor. É pena<br />

que ele não falava tão b<strong>em</strong> o português. Não <strong>de</strong>u para enten<strong>de</strong>r muito b<strong>em</strong>.<br />

Parece que viu o senhor fazendo... fazendo umas malda<strong>de</strong>s... Não sei b<strong>em</strong> se é<br />

essa a palavra.<br />

CLAUSEWITZ - Malda<strong>de</strong>s?<br />

SEGISMUNDO - O senhor andou cortando a língua <strong>de</strong> uma moça.<br />

CLAUSEWITZ - (TEMPO) Ah... Qu<strong>em</strong> disse isso foi uma senhora ruiva, com um<br />

cicatriz aqui?<br />

6


SEGISMUNDO - Conhece?<br />

CLAUSEWITZ - Na viag<strong>em</strong>, eu conheci. Ela me conhecia. Do palco! Do palco...<br />

No Teatro! Está claro? (PAUSA) Eu era ator.<br />

SEGISMUNDO - O senhor não disse que era agricultor?<br />

CLAUSEWITZ - Eu era ator. Agora sou agricultor.<br />

SEGISMUNDO - (TEMPO) Des<strong>de</strong> quando o senhor é agricultor?<br />

CLAUSEWITZ - Faz uns... uns quinze meses. Quando eu <strong>de</strong>sisti <strong>de</strong> se ator, tinha<br />

que escolher uma profissão. Agora sou agricultor.<br />

SEGISMUNDO - Mas nunca plantou nada...<br />

CLAUSEWITZ - A Europa estava na guerra. O Brasil precisa <strong>de</strong> braços para a<br />

agricultura.<br />

SEGISMUNDO - O senhor é ator? Ou é agricultor?<br />

CLAUSEWITZ – Eu <strong>de</strong>cidi ser agricultor. Eu não quero mais saber do Teatro. O<br />

senhor acha que t<strong>em</strong> lugar para o Teatro no mundo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sta Guerra?<br />

SEGISMUNDO - Eu nunca fui ao teatro. Ouvi pelo rádio, uma vez. Uma história <strong>de</strong><br />

uma mulher que assina umas promissórias. Depois vai <strong>em</strong>bora <strong>de</strong> casa. Não<br />

entendi muito b<strong>em</strong>. Não tinha a ver com a minha vida.<br />

CLAUSEWITZ - É o que eu estava dizendo. O mundo que eu vi... O Teatro nunca<br />

vai falar do mundo que eu vi. O senhor não imagina o que é uma guerra <strong>de</strong>ntro da<br />

sua própria casa.<br />

SEGISMUNDO - (IMPACIENTE) É. Todos vocês diz<strong>em</strong> isso.<br />

CLAUSEWITZ - “Vocês”? Qu<strong>em</strong>?<br />

SEGISMUNDO - Os estrangeiros.<br />

CLAUSEWITZ - Mas eu vi coisas que o senhor n<strong>em</strong> po<strong>de</strong> imaginar!<br />

SEGISMUNDO - (IMPACIENTE) Escute. Se o senhor tivesse alguma bagag<strong>em</strong>,<br />

alguma coisa para dar ao rapazes aí da alfân<strong>de</strong>ga... Um presente. Assim era<br />

muito mais fácil. Mas o senhor não t<strong>em</strong> nada.<br />

CLAUSEWITZ - Tenho as minhas l<strong>em</strong>branças.<br />

7


SEGISMUNDO - Isso não vai ajudar o senhor. Para mim não quer dizer nada a<br />

sua guerra. Todos vocês quer<strong>em</strong> me fazer chorar.<br />

CLAUSEWITZ - “Vocês”? Os estrangeiros? Os estrangeiros quer<strong>em</strong> fazer o<br />

senhor chorar?<br />

SEGISMUNDO - Perda <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po. O que vocês pod<strong>em</strong> me contar que me cause<br />

alguma <strong>em</strong>oção diferente? É como o Teatro que eu ouvi no rádio...<br />

CLAUSEWITZ - O teatro não po<strong>de</strong> tocar o senhor. Estou <strong>de</strong> acordo. Não, <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong>sta guerra. Mas as l<strong>em</strong>branças... Eu vivi estas l<strong>em</strong>branças. Foi... foi um t<strong>em</strong>po<br />

difícil.<br />

SEGISMUNDO - O Brasil mandou tropas. Fizeram tanto escarcéu nas ruas que o<br />

Presi<strong>de</strong>nte mandou. Estamos com as contas <strong>em</strong> dia.<br />

CLAUSEWITZ - É diferente. Não estou falando da guerra dos soldados. Estou<br />

falando da Guerra que entrou na minha casa! (TEMPO) O senhor não t<strong>em</strong> idéia<br />

do que uma pessoa po<strong>de</strong> fazer com outra pessoa.<br />

SEGISMUNDO - Está b<strong>em</strong>: vocês mataram, vocês violaram as suas virgens,<br />

vocês comeram carne dos mortos. Eu sei. Todos você me contam a mesma coisa!<br />

Eu, eu digo: e daí? Isso foi lá na Europa. Por que isso <strong>de</strong>veria me dizer respeito?<br />

CLAUSEWITZ - Porque o senhor também é uma pessoa. É um sujeito!<br />

O navio apita mais uma vez. Pausa. Segismundo pega um salvo-conduto e o<br />

assina.<br />

SEGISMUNDO - Está b<strong>em</strong>. Ainda t<strong>em</strong>os uns <strong>de</strong>z minutos antes do seu navio<br />

zarpar. Eu já estou atrasado, mesmo. (PARA SI) Tanto faz se eu encontrar um<br />

daqueles na rua... (TEMPO) Vamos fazer um trato. O senhor t<strong>em</strong> esses <strong>de</strong>z<br />

minutos para me fazer chorar.<br />

CLAUSEWITZ - Fazer o senhor chorar?<br />

SEGISMUNDO - Isso. Me conte suas histórias da Guerra. Se eu não chorar no<br />

próximos <strong>de</strong>z minutos por causa das suas l<strong>em</strong>branças, o senhor <strong>em</strong>barca no<br />

navio. Se eu chorar... Está vendo este salvo-conduto? É seu.<br />

CLAUSEWITZ - Isto está no regulamento?<br />

SEGISMUNDO - Para o senhor, agora, eu sou o regulamento.<br />

CLAUSEWITZ - (TEMPO) O senhor chora, eu fico no Brasil?<br />

SEGISMUNDO - Fica.<br />

8


O navio apita outra vez.<br />

SEGISMUNDO - Está se preparando para zarpar. (TEMPO) Se quiser <strong>de</strong>sistir..<br />

Po<strong>de</strong> <strong>em</strong>barcar agora.<br />

CLAUSEWITZ - Eu vou contar. Eu vou contar...<br />

Segismundo volta a limpar as unhas, calmamente. Clausewitz parece estar<br />

procurando as palavras.<br />

SEGISMUNDO - Esta papelada... Nunca vi juntar tanta poeira.<br />

CLAUSEWITZ - Por favor, eu preciso pensar.<br />

SEGISMUNDO - Pensar no quê? É só contar o que o senhor viveu.<br />

CLAUSEWITZ – Eu não sei as palavras... Não sei como colocar <strong>em</strong>... palavras...<br />

É difícil contar essa coisa <strong>em</strong> Português.<br />

SEGISMUNDO - Eu só falo Português.<br />

CLAUSEWITZ - É difícil!<br />

SEGISMUNDO - O senhor também fala português.<br />

CLAUSEWITZ - Não é a mesma coisa!<br />

SEGISMUNDO - Eu estou esperando...<br />

CLAUSEWITZ - Está b<strong>em</strong>! Está b<strong>em</strong>. Eu vou tentar.<br />

T<strong>em</strong>po.<br />

CLAUSEWITZ - (SÔFREGO) Perto da minha cida<strong>de</strong>... Perto da minha cida<strong>de</strong>.<br />

Tinha um... cheiro <strong>de</strong> carne... <strong>de</strong> carne humana no fogo... Não! Eu não vou<br />

conseguir contar isso. Não, <strong>em</strong> português.<br />

O navio apita mais uma vez.<br />

SEGISMUNDO - Quer <strong>de</strong>sistir?<br />

CLAUSEWITZ - Outra l<strong>em</strong>brança. (TEMPO) Pren<strong>de</strong>ram o professor Cracowiack...<br />

Os al<strong>em</strong>ães pren<strong>de</strong>ram.<br />

SEGISMUNDO - (SE INTERESSA) O professor <strong>de</strong> Latim?<br />

9


CLAUSEWITZ - O professor <strong>de</strong> Latim.<br />

SEGISMUNDO - Levaram para um interrogatório, o professor?<br />

CLAUSEWITZ - Levaram. Sim. Eu estava lá... na mesma sala...<br />

SEGISMUNDO - E aí?<br />

CLAUSEWITZ - Pren<strong>de</strong>ram o professor numa ca<strong>de</strong>ira... numa ca<strong>de</strong>ira como esta.<br />

(TEMPO) Aí começaram a bater... bater <strong>em</strong> professor... no professor... com...<br />

com uma...<br />

SEGISMUNDO - Uma, o quê?<br />

CLAUSEWITZ - Eu não sei. Eu não tenho as palavras.<br />

SEGISMUNDO - Eu vou <strong>em</strong>prestar algumas ao senhor. Antes <strong>de</strong> me mandar<strong>em</strong><br />

para este posto, eu fazia uns serviços para a Policia Política...<br />

CLAUSEWITZ - O senhor?<br />

SEGISMUNDO - Qu<strong>em</strong> me arrumou o <strong>em</strong>prego foi um padrinho. Ele era um dos<br />

chefes lá <strong>de</strong>ntro. Me trouxe do Rio Gran<strong>de</strong> porque confiava só <strong>em</strong> mim. Sabia que<br />

eu dava conta do recado.<br />

CLAUSEWITZ - (CONFUSO) Não entendi.<br />

SEGISMUNDO - Alguém tinha <strong>de</strong> fazer o serviço.<br />

CLAUSEWITZ - Que serviço?<br />

SEGISMUNDO - Fazer aquele pessoal falar. Às vezes não queriam n<strong>em</strong> que<br />

aquele pessoal falasse. Era só dar um susto. Sabe, eu s<strong>em</strong>pre gostei <strong>de</strong> dar um<br />

bom susto. (TEMPO) É... Enquanto precisaram <strong>de</strong> mim eu fiz muita coisa para<br />

eles. (SEM QUALQUER EMOÇÃO) Cansei <strong>de</strong> ver o sujeito chegar <strong>de</strong> cinqüenta<br />

dias s<strong>em</strong> ver o sol, mijando na mesma bacia esse t<strong>em</strong>po todo, e ainda ter <strong>de</strong> ficar<br />

mais vinte horas <strong>de</strong> joelhos. Os meus rapazes raspavam os pelos do corpo do<br />

sujeito, davam uns beliscões e se divertiam atirando uma lata no topo da cabeça<br />

<strong>de</strong>le. Quando caía <strong>de</strong> cara no chão, aí sim, aí era hora <strong>de</strong> começar. Eu puxava o<br />

sujeito pelos cabelos e não <strong>de</strong>ixava ele dormir. Queimava o corpo inteiro do<br />

sujeito com ponta <strong>de</strong> cigarro, até no saco. Depois jogava óleo <strong>de</strong> rícino <strong>em</strong> cima.<br />

Batia com o cassetete até não enxergar mais o rosto do <strong>de</strong>tido. Enfiava pimenta<br />

no cu <strong>de</strong>le com um clister <strong>de</strong>ste tamanho. E o sujeito ainda tinha que limpar toda a<br />

bosta do chão. Ou eu batia mais com o cassetete. Para os mais difíceis eu tinha<br />

um expediente: enfiava no canal do pênis um arame. Depois eu esquentava a<br />

ponta que ficava para fora com um maçarico. O sujeito parecia um leitão na hora<br />

10


da matança. Quando acordava pedia para assinar o <strong>de</strong>poimento. (TEMPO) No<br />

Brasil tudo t<strong>em</strong> que terminar num <strong>de</strong>poimento assinado. Com este aqui.<br />

CLAUSEWITZ - Eu estou... estou espantado.<br />

SEGISMUNDO - Espantado? Mas o senhor veio da guerra!<br />

CLAUSEWITZ - Não. Eu estou espantado porque nunca imaginei que essa coisas<br />

pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> ser ditas no seu idioma. Para mim o Português era um latim falado por<br />

bebês, velhinhos... pessoas que não tivess<strong>em</strong> <strong>de</strong>ntes! Se essa gente tivesse<br />

<strong>de</strong>ntes, como po<strong>de</strong>riam ter perdido tantas consoantes?<br />

SEGISMUNDO - Também arrancávamos os <strong>de</strong>ntes do sujeito, é claro.<br />

CLAUSEWITZ - (TEMPO) Eu que achava que o Português era uma língua falada<br />

pôr gente com dotes <strong>de</strong> análise e síntese.<br />

O navio apita mais uma vez. T<strong>em</strong>po.<br />

CLAUSEWITZ - O que o sujeito fez para o senhor?<br />

SEGISMUNDO - Que sujeito? Ah, aquele sujeito... Nada. Eu fazia tudo o que me<br />

mandavam fazer. Foi assim <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o t<strong>em</strong>po do orfanato. Eu era forte para a ida<strong>de</strong>.<br />

Para o coral eu não servia, mas para quebrar o pescoço das galinhas eu servia.<br />

Pelo menos me <strong>de</strong>ixaram ficar junto com a minha irmã... Eu s<strong>em</strong>pre fiz tudo o que<br />

me mandaram fazer.<br />

CLAUSEWITZ - (IRRITADO) Por que vocês faz<strong>em</strong> tudo que mandam?<br />

SEGISMUNDO - “Vocês”?...<br />

CLAUSEWITZ - Homens como o senhor. Homens como o senhor me fizeram<br />

odiar o idioma al<strong>em</strong>ão. Eu amava Goethe! Agora não posso mais ouvir uma linha<br />

do Fausto.<br />

SEGISMUNDO - Qu<strong>em</strong>? Do que o senhor está falando?<br />

CLAUSEWITZ - De teatro!<br />

SEGISMUNDO - Eu tinha entendido que o senhor agora era um agricultor.<br />

CLAUSEWITZ - Eu sou um agricultor! Mas eu sou um agricultor no Brasil. Eu<br />

tenho que falar a língua que se fala aqui! E o senhor está me fazendo odiar o<br />

Português!<br />

O navio apita. Segismundo olha o relógio.<br />

11


SEGISMUNDO - No Brasil nós falamos português...<br />

CLAUSEWITZ - (TEMPO) Meu professor <strong>de</strong> latim dizia que o Português era uma<br />

língua falada por passarinhos... Tão doce, tão alegre...<br />

SEGISMUNDO - (TEMPO) O senhor nunca recebeu uma ord<strong>em</strong> <strong>em</strong> Português.<br />

Por isso teve essa idéia. Quando o meu padrinho me dá uma ord<strong>em</strong>, eu obe<strong>de</strong>ço.<br />

(TEMPO) O senhor t<strong>em</strong> suas l<strong>em</strong>branças. Eu tenho as minhas. Sabe qual foi o<br />

primeiro serviço que eu fiz para o meu padrinho? Desenterrei um <strong>de</strong>funto <strong>de</strong> um<br />

mês e <strong>de</strong>ixei na porta da viúva.<br />

CLAUSEWITZ - (ESTREMECE) Titus!<br />

SEGISMUNDO - O quê?!<br />

CLAUSEWITZ - Titus Andrônicus. Não conhece?<br />

SEGISMUNDO - Você e o seu Teatro outra vez...<br />

CLAUSEWITZ - Mas esse era o monólogo <strong>de</strong> Aarão! A passageira... A senhora<br />

ruiva... Ela me viu no papel <strong>de</strong> Aarão! Toda a noite eu sugeria que arrancass<strong>em</strong> a<br />

língua e cortass<strong>em</strong> as mãos <strong>de</strong> uma jov<strong>em</strong> profanada; eu falava <strong>de</strong> mortes,<br />

estupros, massacres... Atos cometidos nas sombras da noite...<br />

SEGISMUNDO - A viúva era uma estancieira que estava criando probl<strong>em</strong>as para<br />

o meu padrinho. Já tinham mandando matar o marido <strong>de</strong>la, mas a viúva<br />

continuava. Meu padrinho me disse para dar um susto na viúva. Isso aconteceu!<br />

Silêncio.<br />

CLAUSEWITZ - Eu estava no palco quando os al<strong>em</strong>ães cruzaram a fronteira do<br />

meu país. Como todas as noites. A companhia <strong>de</strong>cidiu n<strong>em</strong> interromper a sessão.<br />

Mas no dia seguinte o teatro estava fechado. Fiquei <strong>em</strong> casa. Foi a primeira vez<br />

<strong>em</strong> <strong>de</strong>z anos que eu passei uma noite fora do palco. Tanta coisa tinha acontecido<br />

na Polônia, tanta coisa tinha acontecido na Europa! E eu, no palco, esse t<strong>em</strong>po<br />

todo. Por isso eu acho que foi uma espécie <strong>de</strong> alívio quando não tive que fazer<br />

minha maquiag<strong>em</strong> naquela noite. Acho... acho cheguei mesmo a pensar que,<br />

afinal, tinha chegado a hora <strong>de</strong> viver a vida. (TEMPO) A vida... (TEMPO) Os dias<br />

foram passando e eu não saí para a rua. Via tudo da janela. Eu não sabia o que<br />

fazer no meio daquela confusão. Eu era um ator! Não sabia carregar um fuzil, não<br />

sabia curar uma ferida... O melhor era ficar <strong>em</strong> casa. Até o dia <strong>em</strong> que foram me<br />

buscar. Não tive medo, não. Achei outra vez que, <strong>de</strong> alguma maneira, eu estava<br />

vivendo. Vivendo enquanto eu presenciava todo o horror. Porque era a única<br />

coisa que eu podia fazer: estar presente. E guardar na m<strong>em</strong>ória. (TEMPO) Eu<br />

estava presente quando mataram professor Cracowiack. Eu estava presente<br />

quando encontraram o corpo do meu pai, que tinha se suicidado com um arame<br />

no pescoço. Eu estava presente quando meus amigos caíram metralhados na<br />

12


fuga pela fronteira. Eu estava presente quando <strong>de</strong>ixei minha mulher no hospital<br />

<strong>em</strong> Paris, esperando para morrer. Eu não vivi. Eu colecionei l<strong>em</strong>branças.<br />

O navio apita.Segismundo olha o relógio.<br />

SEGISMUNDO - Estão atrasados.<br />

CLAUSEWITZ - (TEMPO) Eu achava que eu não podia falar das minhas<br />

l<strong>em</strong>branças para o senhor. Mas agora eu acho que não adianta.<br />

SEGISMUNDO - Está <strong>em</strong> jogo o seu salvo-conduto. Sua vida nova no Brasil.<br />

Desistiu?<br />

CLAUSEWITZ - Eu já <strong>de</strong>sisti <strong>de</strong> tanta coisa. Já <strong>de</strong>sisti do meu país. Já <strong>de</strong>sisti da<br />

minha família. Já <strong>de</strong>sisti da minha profissão. Já <strong>de</strong>sisti do Teatro.<br />

SEGISMUNDO - Desistiu do Brasil, então?<br />

CLAUSEWITZ - Não imaginava que no Brasil as pessoas também obe<strong>de</strong>ciam<br />

or<strong>de</strong>ns.<br />

SEGISMUNDO - É, os brasileiros obe<strong>de</strong>c<strong>em</strong> or<strong>de</strong>ns.<br />

CLAUSEWITZ - Eu só queria enten<strong>de</strong>r por que vocês obe<strong>de</strong>c<strong>em</strong> or<strong>de</strong>ns!<br />

SEGISMUNDO - “Vocês”? Os brasileiros?<br />

CLAUSEWITZ - Vocês!<br />

SEGISMUNDO - “Vocês”... Os homens como eu... O senhor não obe<strong>de</strong>ce or<strong>de</strong>ns,<br />

não é? O senhor acha que é melhor do que eu.<br />

CLAUSEWITZ - Não. Eu sei que eu sou pior que o senhor. Eu escapei. Eu estou<br />

vivo. E todos estão mortos: meus amigos, meus pais, meu país... minha mulher...<br />

Se eu estou vivo é porque eu errei. É porque eu era pior que eles. Eu sou pior que<br />

o senhor, tenho certeza.<br />

SEGISMUNDO - (TEMPO) Deve ser difícil pensar que nós somos iguais. O senhor<br />

po<strong>de</strong> aceitar que é pior do que eu. Mas não po<strong>de</strong> aceitar que nós somos iguais.<br />

CLAUSEWITZ - Eu cometi um crime monstruoso. Eu estive presente. E não fiz<br />

nada. Eu sobrevivi.<br />

SEGISMUNDO - (PAUSA) Eu também. Por isso meu padrinho me afastou para<br />

este posto. Ele diz que é preciso esperar um pouco as coisas se acalmar<strong>em</strong>. Logo<br />

v<strong>em</strong> o armistício. Logo vêm as novas diretrizes para t<strong>em</strong>pos <strong>de</strong> paz. (TEMPO) Eu<br />

13


sei que ninguém quer saber <strong>de</strong> mim. Eu fiz o que eles mandaram e eles quer<strong>em</strong><br />

esquecer que mandaram fazer o que eu fiz.<br />

CLAUSEWITZ - E o senhor cumpriu or<strong>de</strong>ns...<br />

SEGISMUNDO - S<strong>em</strong> pestanejar. S<strong>em</strong> n<strong>em</strong> cobrir o rosto. (TEMPO) Só uma vez<br />

eu cobri o rosto. É, uma vez eu cobri o rosto com uma máscara... (TEMPO) Minha<br />

irmã. Aí na foto... É a minha família, sabe? Um dia eu viajava com ela para o Rio<br />

Gran<strong>de</strong>, quando um caminhão cortou a minha frente. Quando eu acor<strong>de</strong>i já estava<br />

no hospital. B<strong>em</strong>. Não aconteceu nada comigo, o carro escapou <strong>de</strong> lado com a<br />

freada e foi colhido pelo caminhão que vinha na outra direção. O lado do<br />

passageiro. O lado on<strong>de</strong> estava sentada minha irmã. Ela ficou entre a vida e a<br />

morte. Se não fosse um médico... Um cirurgião... Um rapaz, um rapaz simpático...<br />

Fez <strong>de</strong> tudo para salvar minha irmã e conseguiu. Uns anos <strong>de</strong>pois me mandaram<br />

quebrar os ossos da mão <strong>de</strong> um cirurgião que estava preso conosco. (TEMPO) E<br />

era ele. O médico que salvou minha irmã.<br />

CLAUSEWITZ- O senhor obe<strong>de</strong>ceu?<br />

SEGISMUNDO - Eu disse: foi a única vez <strong>em</strong> que usei uma máscara. (TEMPO)<br />

Quebrei osso por osso das mãos do médico que salvou a vida da minha irmã.<br />

CLAUSEWITZ - Por que você fez uma coisa <strong>de</strong>ssas?<br />

SEGISMUNDO - Porque eu sou pior que o senhor.<br />

Silêncio.<br />

SEGISMUNDO - Foi a única vez que eu escondi o rosto. Bobag<strong>em</strong> porque eu<br />

acho que o médico... não sei como... o médico me reconheceu... alguma coisa<br />

nos meus olhos... Não sei o que po<strong>de</strong> ter sido. Eu estava cumprindo or<strong>de</strong>ns.<br />

Silêncio.<br />

SEGISMUNDO - Hoje soltaram todos os presos políticos do Rio. Uma porção<br />

<strong>de</strong>les passou pelas minhas mãos. Meu padrinho não me ligava fazia meses. E<br />

ligou hoje. Disse para eu voltar mais cedo para casa, para tirar uns dias <strong>de</strong> férias.<br />

Alguém po<strong>de</strong> querer acertar as contas comigo... Eu perguntei se era uma ord<strong>em</strong>.<br />

E ele respon<strong>de</strong>u que eu podia tomar o que disse como eu b<strong>em</strong> enten<strong>de</strong>r. Ele<br />

nunca tinha minha me dado uma ord<strong>em</strong> na vida, foi a última coisa que falou antes<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sligar o telefone.<br />

T<strong>em</strong>po longo.<br />

SEGISMUNDO - De uns t<strong>em</strong>pos para cá eu não posso olhar para minha irmã que<br />

eu vejo nos olhos <strong>de</strong>la os olhos daquele médico. Que raiva que eu tenho <strong>de</strong>le,<br />

senhor Clausewitiz... Que raiva...<br />

14


O navio apita várias vezes. Segismundo se volta para a máquina <strong>de</strong> escrever e<br />

começa a bater o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Clausewiz. T<strong>em</strong>po.<br />

CLAUSEWITZ - Ainda vale o nosso acerto?<br />

SEGISMUNDO - O seu navio já vai zarpar.<br />

CLAUSEWITZ - Mas eu ainda não contei como morreu o professor Cracowiack.<br />

SEGISMUNDO - Os nazistas bateram nele até a morte, na sua frente.<br />

CLAUSEWITZ - Ele morreu na minha frente, sim. Mas os nazistas não bateram no<br />

professor. O oficial encarregado tinha trabalhado todo o dia. Estava cansado.<br />

Sabia que nenhum daqueles homens torturados tinha alguma coisa para falar. E<br />

sabia que nenhum <strong>de</strong>les podia resistir. Para simplificar tudo, resolveu dar um tiro<br />

no professor Cracowiack e acabar com ele <strong>de</strong> uma vez. Como o oficial tinha<br />

batido muito nos outros prisioneiros, sua mão estava trêmula e ele acabou<br />

acertando o professor Cracowiack num lugar que não o matou imediatamente.<br />

Acho que o oficial estava mesmo muito cansado porque n<strong>em</strong> <strong>de</strong>u outro tiro.<br />

Mandou jogar a mim e ao professor <strong>em</strong> uma cela. O professor Cracowiack<br />

sangrou por quinze horas. Eu fiquei do lado <strong>de</strong>le até a morte. Pu<strong>de</strong> observar seus<br />

olhos ficar<strong>em</strong> <strong>de</strong> louça, senti o calor e a umida<strong>de</strong> do seu último bafo. Morreu com<br />

uma certa calma, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma noite falando quase s<strong>em</strong> parar. Repetiu a<br />

primeira aula que ouvi <strong>de</strong>le; citou a Eneida; corrigiu meu latim. Eu vi aquele<br />

hom<strong>em</strong> morrer na minha frente aos poucos. Eu estava presente. Ele falava<br />

<strong>de</strong>zessete línguas e o último som que <strong>em</strong>itiu não foi n<strong>em</strong> uma palavra. Parecia<br />

mais um móvel sendo arrastado na madrugada. (TEMPO) Seria bonito se o<br />

professor Cracowiack tivesse morrido dizendo Docta Ignorantia...<br />

T<strong>em</strong>po.<br />

SEGISMUNDO - E aí?..<br />

T<strong>em</strong>po.<br />

CLAUSEWITZ - (PAUSA) Um pouco antes <strong>de</strong> morrer o professor Cracowiack<br />

começou a falar s<strong>em</strong> tomar fôlego por um longo período. De repente, virou o rosto<br />

par ao céu começou a dizer umas palavras s<strong>em</strong> sentido... Se eu me l<strong>em</strong>bro b<strong>em</strong>...<br />

(FEBRIL - TENTANDO SE LEMBRAR E TRADUZINDO AO MESMO TEMPO): “Ai,<br />

pobre <strong>de</strong> mim! Ai, infeliz! Aqui estou para enten<strong>de</strong>r, ó Deus, já que me tratas<br />

assim, que crime, cometi contra vós nascendo? Mas se nasci já compreendo que<br />

crime cometi... Aí está motivo suficiente para vossa justiça e rigor, porque o crime<br />

maior do hom<strong>em</strong> é ter nascido”<br />

Segismundo estr<strong>em</strong>ece. E passa a prestar atenção ao que diz Clausewitz..<br />

15


CLAUSEWITZ - (TOMA CORAGEM) “Só queria saber, para apurar meus<br />

cuidados - além do crime <strong>de</strong> nascer - que outros crimes cometi para me castigares<br />

ainda mais? Não nasceram também todos os outros? Pois se os outros nasceram,<br />

que privilégios tiveram que jamais gozei? Nasce a ave, e, <strong>em</strong>belezada por seu<br />

ricos enfeites, não passa <strong>de</strong> flor <strong>de</strong> plumas, ramalhete alado, quando, cortando<br />

veloz os salões aéreos, recusa pieda<strong>de</strong> ao ninho que abandona <strong>em</strong> paz. E eu,<br />

tendo maior alma, tenho menos liberda<strong>de</strong>? Nasce a fera, e, com a pele<br />

respingada <strong>de</strong> belas manchas, l<strong>em</strong>brando as estrelas - graças ao douto pincel -<br />

logo, atrevida e feroz, a necessida<strong>de</strong> humana lhe ensina a cruelda<strong>de</strong>, monstro <strong>de</strong><br />

seu labirinto. E eu, com melhor instinto, tenho menos liberda<strong>de</strong>? Nasce o peixe,<br />

que n<strong>em</strong> respira, aborto <strong>de</strong> ovas e lodo, e, feito um barco <strong>de</strong> escamas sobre as<br />

ondas, seu espelho, gira por toda parte, exibindo a imensa habilida<strong>de</strong> que lhe dá o<br />

coração frio; e eu, com mais escolha, tenho menos liberda<strong>de</strong>? Nasce o regato,<br />

serpente prateada, que <strong>de</strong>ntre flores surge <strong>de</strong> repente e <strong>de</strong> repente entre flores se<br />

escon<strong>de</strong>, on<strong>de</strong>, músico, celebra a pieda<strong>de</strong> das flores que lhe dão a majesta<strong>de</strong> do<br />

campo aberto à sua fuga. E tendo eu mais vida, tenho menos liberda<strong>de</strong>? Assim<br />

chegando a esta paixão, um vulcão, qual o Etna, quisera arrancar do peito<br />

pedaços do coração. Que lei, justiça ou razão pô<strong>de</strong> recusar aos homens privilégio<br />

tão suave, exceção tão única, que Deus <strong>de</strong>u a um cristal, a um peixe, a uma fera<br />

e a uma ave?”<br />

Silêncio. Segismundo está chorando. E <strong>de</strong>ixa cair uma lágrima sobre o salvoconduto.<br />

SEGISMUINDO - Merda. Borrei seu salvo conduto.<br />

CLAUSEWITZ - (TEMPO) O “meu” salvo-conduto?<br />

SEGISMUNDO - O pior é que eu não entendi nada o que o sujeito disse...<br />

(ENTREGA O SALVO-CONDUTO) Tome. Eu cumpro minhas promessas. E po<strong>de</strong><br />

esquecer este <strong>de</strong>poimento... Hoje, no Brasil, ninguém vai assinar <strong>de</strong>poimento<br />

algum! Agora po<strong>de</strong> ir.<br />

CLAUSEWITZ - (TEMPO) O senhor não vai me levar <strong>de</strong> volta ao navio?<br />

SEGISMUNDO - O Brasil precisa <strong>de</strong> braços para a lavoura. Po<strong>de</strong> ir, eu já disse.<br />

O navio apita varias vezes.<br />

CLAUSEWITZ - O cargueiro vai <strong>em</strong>bora.<br />

O apito do navio vai ficando distante.<br />

CLAUSEVITZ - Eu preciso contar uma coisa...<br />

SEGISMUNDO - Chega das suas l<strong>em</strong>branças, senhor Clausewitz .<br />

16


CLAUSEWITZ - É sobre o que eu acabei <strong>de</strong> contar.<br />

SEGISMUNDO - Fale logo, senhor Clausewitz .<br />

CLAUSEWITZ - (TEMPO) N<strong>em</strong> tudo é verda<strong>de</strong>...<br />

SEGISMUNDO - (TEMPO) Como é?<br />

CLAUSEWITZ - Eu vi o professor Cracowiack morrer. Mas ele não disse nada<br />

disso que eu disse que ele disse. O professor Cracowiack passou as últimas<br />

horas da sua vida me explicando com se prepara um mingau que só faz<strong>em</strong> no<br />

vale on<strong>de</strong> nasceu.<br />

SEGISMUNDO - (TEMPO) E o que era todo aquele monte <strong>de</strong> palavras?<br />

CLAUSEWITZ - Teatro.<br />

SEGISMUNDO - Teatro?<br />

CLAUSEWITZ - Um monólogo <strong>de</strong> uma peça <strong>de</strong> um autor espanhol. Eu recitei<br />

esse monólogo todas as noites durante um ano...<br />

SEGISMUNDO – Isso não está certo. Eu disse que o senhor tinha que me fazer<br />

chorar com as suas l<strong>em</strong>branças.<br />

CLAUSEWITZ - Eu forcei a minha m<strong>em</strong>ória e só l<strong>em</strong>brei <strong>de</strong> trechos <strong>de</strong> peças nas<br />

quais eu atuei. Eu me l<strong>em</strong>bro dos al<strong>em</strong>ães cruzando a fronteira do meu pais. Mas<br />

me l<strong>em</strong>bro também da primeira vez <strong>em</strong> que li um autor espanhol.<br />

SEGISMUNDO - Isto não está certo, senhor Clausewitz ! Eu não <strong>de</strong>via <strong>de</strong>ixar o<br />

senhor sair <strong>de</strong>sta sala.<br />

CLAUSEWITZ - Mas eu ganhei a aposta. O senhor chorou. Olhe aqui o salvoconduto<br />

manchado com as suas lágrimas.<br />

SEGISMUNDO - Foi o seu Teatro que me fez chorar! Foi a merda do seu Teatro<br />

que me fez chorar!<br />

CLAUSEWITZ - (PENSA) É... Foi. Foi o Teatro.<br />

SEGISMUNDO - O que o senhor acha que provou para mim?<br />

CLAUSEWITZ - Nada. Para o senhor eu não provei nada. Eu provei para mim<br />

mesmo. Olha, eu sei que o Brasil precisa <strong>de</strong> braços para a agricultura, mas eu sou<br />

ator. Esta é a minha profissão. Eu ainda não sei para que serve o Teatro no<br />

mundo <strong>de</strong>pois da Guerra. Só sei que eu tenho que continuar a fazer o que eu sei<br />

fazer. Um dia alguém vai saber para que serve. Se serve. Para mim me basta<br />

17


fazer. Fazer teatro. É como a receita do mingau do professor Cracowiack. Alguém<br />

precisa saber como se faz esse mingau...<br />

SEGISMUNDO - Saia da minha sala, o senhor, o teatro e o mingau.<br />

Segismundo volta a limpar as unhas.T<strong>em</strong>po. Clausewitz assente e vai saindo.<br />

SEGISMUNDO - Senhor Clausewitz.<br />

CLAUSEWITZ - Sim.<br />

SEGISMUNDO - Como é essa história?<br />

CLAUSEWITZ - Que história?<br />

SEGISMUNDO - Estou falando <strong>de</strong>ssa peça, <strong>de</strong>sse autor espanhol.<br />

CLAUSEWITZ - Ah... (TEMPO) Certo dia, no reino da Polônia...<br />

SEGISMUNDO - (ATALHA) Se passa na sua Terra, então...<br />

CLAUSEWITZ - Se passa na minha terra. Como eu dizia... disfarçada <strong>em</strong> hom<strong>em</strong>,<br />

Rosaura chegava durante a noite à Polônia, acompanhada por Clarin, <strong>de</strong>cidida a<br />

vingar sua honra, quando dá com uma estranha torre. De <strong>de</strong>ntro, então, sai um<br />

hom<strong>em</strong> envolto <strong>em</strong> peles e acorrentado. Sabe como se chama esse hom<strong>em</strong>?<br />

Você não vai acreditar. Segismundo.<br />

SEGISMUNDO - Está falando sério?<br />

CLAUSEWITZ - Segismundo olha para o céu... e diz...<br />

Contando com toda a atenção <strong>de</strong> Segismundo, o senhor Clausewitz segue a<br />

contar a trama <strong>de</strong> A Vida é Sonho...<br />

E CAI O PANO.<br />

São Paulo, outubro e nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2001.<br />

18

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!