historia do brazil.
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HISTORIA DO BRASIL
DESDE A SUA DESCUBERTA ATE' 1810,
A QUAL CONTE'M ^ J / -JJ
A oWgem da Monarchia Portuguesa ; o
qiiidro do reinado dos seus Reis , das
conquistas dos Portuguezes na Africa , e
na índia ; a descuberta , e descripção do
Brasil ; o numero , posição , e costumes
das povoações Brasileiras ; a origem , e
os progressos dos estabelecimentos Portuguezes
; o quadro das guerras successivas
tanto dos naturaes com os Portuguezes
, corrtp destes cqtn differentes
nações da Europa , que procurarão estabelecer-se
no Brasil; ém fim a historia
civil, politica , e commercial , as revoluções
, e o estado actual deste vasto paiz :
ESCRIPTA EM FRANCEZ
P O K
MR. AFFONSO D E BEAUCHAMP»
E TRADUZIDA EM PORTUGUEZ
PELO
PADRE IGNACIO FELIZARDO FORTES J
Professor de Lingva Latina , e natural do
Jiio de Janeiro.
Rio DE JANEIRO, NA IMPRESSAM REGIA.
1818.
Com Licença da Mesa do Dosembargo
do Paço,
III
PREFACIO DO AUTHOR.,
S expedições marítimas, e
a historia do estabelecimentos dos
Portuguezes na índia excitao a
lembrança da sua gloria antiga;
mas este grande , e bello episodio
dos seus annaes põem também
diante dos olhos o triste quadro
da deeadencia do seu poder , e da
sua Monarchie. Hum interesse o
mais vivo acompanha a historia
das vicissitudes, e dos progressos
dos seus estabelecimentos no Brasil
, da fundação, e do desenvolvimento
prodigioso deste novo<
império do hemisferio austral ,
hoje a Côrre da Potencia Portugueza
resuscitada, e o centro do
IV
seu commercio, e das suas rique- /
Nenhuma possessão do , 7 zas,
0
Mundo tem sido por tanto tempo
, nem tantas veies dispíatada
não só pelos naturaes, mas até
por nações formidáveis da Europa,
que se ttm dirigido alternadamente
ao Brasil, ou para o
roubarem, ou para nelle se estabelecerem.
Esta serie de emprê- «
sas, e de accontecimentos diffunde
hum duplicado interesse sobre*},
a historia da America Portugue- 7
za , que comprehende hum perio- ^
do de tres séculos desde a sua
origem até á emigração da sua
Família Real de Bragança.
Com tudo nenhuma historia
geral, e completa do Brasil ti- J
nha ainda apparecido nem em *
Françez, nem em outra alguma ,
Jin£ua da Europa ; porque em
Y ,
lugar de hum eorpo de historia
na
vr
morias, e de obras. Nesta somente
os factos devem encher o
quadro; naquella nada se dève
omittir para dar hum conhecimento
exacto dos homens, e das. coisas.
Tractava»se na historia do
Brasil de pintar a hum tempo
Portugal, e a America Portugueza;
de traçar o caracter dos Portuguezes,
e os costumes dos Brasileiros
sem todavia perder de
vista, que Portugal devia fazer
hum papel accessorio, e episodico:
era preciso unir ás noções,
e aos documentos da historia todas
as luzes dos viajantes, e dos
geógrafos, para que o leitor pudesse
fazer huma idéa do crescimento
progressivo, das relações
extensas, e da grandeza comparativa
do Brasil, e de Portugal.
Sete annos forão empregados
em ajuntar , pôr em ordem, e
VII
recopilar os materiaes necessários
para formar o corpo da historia,
quê nenhum outro escriptor tinha
ainda offerecido ao publico. No
intervallo , heverdade, foi retardada
, ou suspensa a conclusão
delia ; e obstáculos imprevistos
fizerao nascer novas demoras. A
derradeira parte da obra appresenjava
hum vácuo; era preciso enchê-o.
Hum uso authorisado em nossos
dias na litteratura, ou antes
nas impressões abona a publicação
parcial , e successiva das
obras menos volumosas. Apoiando-me
neste uso, eu teria podido
ciar á luz, ha muito tempo, os
dois primeiros volumes da historia
geral do Brasil: mas seguindo
o meu plano primitivo , eu me
decidi a publicar a obra completa,
e de huma vez.. Esta marcha
VIII
era lenta na verdade; mas era
mais segura , e sobre tudo mais
util, pelo que respeita á huma
composição, em cuja união, e
disposição se exigia tanta meditai
ção, como cuidado. Com efieito
coordenando os materiaes do meu
ultimo volume, eu conheci a necessidade
de o pôr ao nivel das
pescjuisações, que tinhao completado
a primeira parte da minha r
obra ; e de fortificar por meio de
informações recentes , e authenticas
os capítulos destinados a fa.
zer conhecer de hum modo positivo
o estado actual do Brasil:
nada foi despresado para chegar
a este resultado. Entre tanto appareceu
em Londres huma ccm.
pilação sobre a historia de Buenos.
Ayres , e do Brasil até 1640. K
Sem offerecer novas luzes o author
Inglez (M. Southey) fazia
IX
esperar, que o segundo volume,
annunciado paraiBio, completaria'
os annaes do Brasil» e daria
princípios inteiramente novos sobre
a geografia , e sobre a descripção
do estado desta vasta região.
Va esperança ! A expectação da
Europa litteraria foi ainda huma
vez encanada. Este segundo volume
tão emfaticamente promett»do
não tem sahido á luz : mas
nesta mesma época hum minera-
- logista Inglez (M. John Maw)
penetrava o interior do Brasil,
authonsado pelo Príncipe Regen.
te de Portugal. A relação da sua
viagem, posto que de nenhum
merecimento pelo que toca á relação
histórica, naohe todavia a
menos curiosa debaixo destes dois
pontos de vista ; da tepographia
interior , e do estado actual do
Império Brasiliense: tila he tam-
X
bem incontestavelmente a mais
moderna. Não restava pois outro
trabalho a completar, senão beber
nesta fonte verdadeiramente
original, tanto mais preciosa para
nós , por isso que não existia
então na França, senão hum só
exemplar da nova relação. Eu consegui
logo , que me fosse communicada
; graças ao procedimento
officioso, e á sollicitude de M.
de Hutnbold , membro associado
do Instituto, edeM. Pictet, Pro- .
fessor de Historia em Gênova;
sábios distinctos, animados hnm,
e outro do zêlo o mais nobre pelos
progressos dos conhecimentos
históricos, e geográficos. Eu não
trahirei sua modéstia , fazendo
brilhar publicamente os testemunhos
da minha estima, e do meu
reconhecimento: e confessarei sómente,
que devo á huma tão fe-
xr
liz communícação , e á outros
oiiginaes í/iteiramente não dados
á luz a vantagem depodt-r publicar
huma historia geral, e completa
do Brasil.
Eu seria culpado de ingratidão,
se não fizesse brilhar aqui
cs mesmos sentimentos de reconhecimento
para ccm outros Litteratos
, não menos estimáveis ,
taes como M. Durdent , e M.
Carios Botta, qne quizerão aju-
-dar-me muito com suas luzes, e
conselhos,
'Os eruditos censurar me-hao
sem duvida , por eu não fer marginado
as paginas desta historia
com citações, commentarios, e
notas: mas confessando eu , que
não sou hum erudito, respondo
com isto á quantas criticas possão
fazer-me. Eu teria podido facilmente
, bem como outro qualquer,
XII
ter o mérito de huma ostentação
de erudição , e citações: mas este
pequeno charlatanismo me pareceu
ridiculo , e inteiramente indigno
de hum escriptor , que faz
profissão da franqueza, e da boa
fé. Pode além disto oppôr-se ao»
syítema dascúações minuciosas a
authoridade dos historiadores da
antiguidade, únicos modêlos naconfissão
da sã critica, e segundo
o exemplo de muitos historiadores
modernos, que tem caminhado
sobre seus passos. De que
serve, p">r exemplo, citar asmesmas
paginas dos authores , qué hg
preciso muitas vezes conciliar, ou
contradizer , e cuja versão tem
necessidade de ser corregida, ou
completada por outras autoridades?
As memorias são para o
historiador , o que as cores são
para o pintor; não he se não peí*
XIII
sua mistura , e pela sua fusão ,
que o quadro da historia , que
dahi resulta, fôrma hurnacomposição
completa, e regular.
Não me resta agora, se não
fazer conhecer as authoridades ,
que tem servido de ha se iis minhas
exposições ; e mostrar as
fontes , donde tenho bebido as
luzes necessarias para evitar os
erros dos escriptores, que me tem
precedido.
Eisaqui as principaes obras,
"que tenho seguido , consultado,
ou ^.contradicto , oppondo-as , ou
comparando-as humas com as outras.
Viagem de Pinson, por Herrera.
O Padre Manuel Rodrigues.
Bernardo Pereira de Berredo.
Relação summaria de Simão Es¿
tacio da Silveira*
XIV
Zarate.
Pietro Martyre.
Gomara, hist. de las índias.
Viagem de Cabral, por Barros.
Castanheda.
Damião de Goes.
Lery.
Viagem de Américo Vespucio.
Rocha Pita.
Simão de Vasconcellos, Chron.
„ da Comp. de Jesus do Estado
do Brasil.
Antonio Galvão.
Vieira.
Hervas.
Don Christobal Eladera.
Maregraw, hist. nat. Bras.
Memorias para a historia do Ca»
bo de S. Vieente.
Vasconcellos, noticias do Brasil,
Annaes do Rio de Janeiro, mss.
Gaspar da Madre de Deos.
Noticia do Brasil, mss,
XV
J. de Laet.
Carta d ? EI-Rei D. João IIÍ.
Castrioto Lusitano, P. Rafael de
Jesus*
Tamoyo de Vergas.
Duarte Albuquerque, Conde de
Pernambuco.
Nova Lusitania ,• P. Brito Freire.
Manuel de Faria, e Souza.
Historia da descuberta , e das
guerras do Brasil por Jean
Nieuhoff.
Gasp. Baríoei rerum pér óCíei>
nium in Brasília etc.
Historia das ultimas desordens do
Brasil entre osHollandezeST-, e ;
Portuguezes, por Pedro Moreaüi
Historia da guerra do Reiríõ j dò'
Brasil, etc. por Giiiseppe di
Thereía.
Hans Stade ( o priméírí), qu^tétíí 1
escripto atgunéP detalhas 1 sibre
o Brasil.)
XV!
Chronica d* EI-Rei D. Manne!.'
Manuel Severim de Faria, vida
de joão de Barros.
Viagem de Diogo Garcia.
Argentina do Rei Dias de Gus-'
mão.
Pedro de Cieza.
Açuna in el Maranao, y Amazonas.
Nóbrega, e Anchieta.
Çondamine, viagem ao rio das
, Amazonas.
Claudio de Abbeville.
Huivet en Purchas.
Pedro Coi;rêa.
Ant. Pires.
Telles, Comp. de Jesus.
Ejficeira. '
Sfedman.
Bpnto Teixeira.
Relação annual para 1601.
Jor-nada da Báhia.
Viagens de Azara. .
— de Thomaz Líndeley. o
:
- xVíi
—- de Baron.
de Macarcney*
•
Memorias de Dugué-Trouinv
Viagem de Teixeira, etc.
Historia do Brasil, e de Buenos*
Ayres, por Southey.
5
Tavels, etc. Viagem ao interior
do Brasil, e particularmente
ao paiz, onde estão as minas
de oiro , e de diamantes, por
John Maw, author da Mineralogia
do Derbishire , Londres,
1812. (He o primeiro
Inglez , que tem penetrado o
interior do Brasil com autho*
risação , e apoio do Governo
Portuguez ).
Taes são as memorias, e as
numerosas viagens , que tenho
consultado , analisado , comparado,
e fundido, por assim dizer,
para formar hum corpo de histo-
ia completo a respeito do Brasil.
Possão meus trabalhos, e
meus cuidados não serem perdidos
! possa esta historia offerec^r
algum interesse , e satisfazer á
curiosidade do publico ! Verei satisfeitos
o» meus votos.
I N D I C E
Das materias, que se contém
nesta obra.
TOMO PRIMEIRO.
í Refacio pag. I
LIV. I. lntroclucção. Origem , e
progresso da Monarchia Portuqueqa.
Descubertas , e conguistas
dos Portugueses na A*
frica , e na Índia. pag. i
LIV. II. Descuberta do Brasil por
D. Pedro Alvares Cabral. Expedições
de Américo Vespucio , e
de Coelho. Descuberta do Rio
de Janeiro , e do Paraguay por
João Dias de Solis , Piloto mór
de Castella. Morte deste navegante.
Primeiras disputas
de Hespan/ia , e de Portugal
por motivo das descubertas• da
America. Morte d' El-Rei D.
Manuel o Afortunado. D. João
XX
III. lhe succede, e fôrma o
projecto de colo/usar o Bra-
S l
• P a g- 35
LIV. III. Estado do Bras il na época
da sua descuberta. Descrip,fão
geral desta vasta região.
Caracter , costumes , e usos ,
numero , e descripção geográfica
das povoações Brasilien"
ses. P a g.'í>9
LIV. IV Capitanias hereditárias
estabelecidas no Brasil no reinado
de D. João III. Origem
- das colonias de S. Vicente , Santo
Amaro , Tamaraca , Paraíba ,
- Espirito Santo , Porto Seguro ,
os Ilheos , e Pernambuco. Ex~
- pediçdes desgraçadas de Luir
• de Mello , e de Ayres da Cunha
ao Maranhão. pag. 139
LIV. V. Naufragio , e aventuras
• de Caramuru. Caracter da grande
povoação Brasileira dos Ttlpinambas
da Bahia. Descripção
do Reconcavo, e quadro das suas
revoluções. Primeira origem de
S. Salvador da Bahia. "Toma-
. da de posse da Capitania íla
XXI
Bahia por Francisco Pereira
Coutinho. Primeiras hostilidades
entre os Tupinambas , e os
^Portugueses. Expulsão , e morte
de Coutinho. pag. 171
Progresso da Capitania de S. Vicente.
Tentativas desgraçadas
de Aleixo Garcia, e de George
Sedenho pafa chegarem ao Brasil
por Paraguay. Primeiras
hostilidades entre os Hespanhoes
do Paraguay , e os Portugueses
do Brasil. Renovação
da guerra em Pernambuco. Sitio
do Garassú pelos Cahetés.
Chegada ao Brasil de D. Thomé
de Souqa , primeiro Governador
Geral. Fundação da
cidade de S. Salvador. Regularisação
politica da colonia.
£
b Kj?!-- 10'im QÍX{ epbt;invab
HISTORIA DO BRAZIL.
ivi;u .i) ; •> • Oibiüiiq 20
í ( ". ;h • ' :'•! ait.-.iJOU!
- .. . . , .' • -
• a-tiioq ta3 .oUítüffl ob z • iscj ES
LIVRO PRIMEIRO.
introdução. Origem , e progressos
da Monarchia Portuguesa.
Descubertas , e conquistas dos
Portugueses na Africa , e ná
Índia.
1139.—1499.
P
I. ORTUGAL , a Monarchia a mais
pccidental da Europa, trapo ainda,
pareceu levantar-se de repente no
íipi do decimo quinto século. Os
Tom. /. A
%_ Historia
grandes, o Monarcha , e o povo ,
devorados pelo amor das descubertas,
e pela sede das riquezas, asr
signalárSo por emprezas intrépidas
os primeiros ensaios da navegação
moderna ; e por meio de prodigios
fizerão livres ao seu accesso todas
as partes do mundo. Em poucos
annos as costas occidentaes de
Africa , até* então incógnitas, e
as índias orientaes passarão a ser
a preza dos navegantes conquistadores,
que sahião de Portugal:
a coragem , as virtudes destes intrépidos
Officiaes de Marinha se
jriostrárSo logo em todo o seu esplendor
; mas sua gloria foi logo
bffuscada pelos crimes da ambição,
e da avareza. O accaso só os dirige
ao mesmo tempo para o grande
hemisferio-Occidental, recentemente
descuberto : elles tocão o
Brazil, o reconhecem , e delle se
apoderão. Clima saudável, solo rico
, e fecundo , rios navegaveis ,
è numerosos , portos vastos , e
multiplicados, raças- vigorosas de
i
Do Brasil. i j
homens , e de animaes, bosques
profundos, e magníficos, monta»
¿»hass,encerrando em si todos os
'metaes preciosos; taes são as raras
^antagens, que huma feliz situai
ção geografica assegura ao BraziU
A nação Portngueza ahi leva logo
este mesmo ardor de descubertas *
e de domínio, que a tinha jáconr
duzido â Africa , e á Asia. Os
primeiros estabelecimentos , que
ella funda no Brazil , são marca*
dos, he verdade , pela oppressão ,
pelo assassínio de muitas tribns in»
digenas; mas também pela civili»
sação das mais bravas povoações ^
que cedem finalmente á voz , e
aos esforços sublimes de hum pequeno
numero deApostolos da Re*
ligião , e da humanidade. Então
erigem-se cidades em todos os pon»
tos da costa ; os campos roteados
se tornão férteis; a industria , e a
agricultura, prestando-se hum mutuo
soccorro , multiplícão as riquezas
pela circulação , e pelo commercio.
Novas descuberras, felizes
A 2
38
Historiei
tentativas esreiidem os estabelecii
mentos, ,e.a civilisação. Mas este
mesmo Brazil, que passa wnrii
quecer os navegantes Portugueses
, também excita a cubiça cte
Outras tres, nações da Europa , e
logo atêão-se guerras obstinadas ,
e sanguinolentas. De quando em
quando alguns exemplos de virtude
, t de heroísmo consolão as alternativas
da fortuna , e do horror
das batalhas. A' frequentes expedições
, á combates sem numero ,
á sitios importantes , á brilhantes
assaltos , á destruição de frotas , á
mudanças de domínio , e cie império
vê-se suceeder huma insurreição
memorável contra osHollandezes
, conquistadores d'ametade do
Brazil; insurreição feliz , que faz
outra vez entrar esta possessão
immensa no domínio dos Portuguezes.
Taes são os diversos quadros,
que formão a composição da historia
do Brazil, que prolongada até
os nossos dias comprehende • os
acontecimentos de. tres séculos. Sç
Do Brasil. i j
bem que a America Portugueza se
tivesse tornado o theatro de acon*
Je cimentos' memoráveis, com tudo
^etíniim escriptor cm França . se
«inha ainda proposto a reunir em
hum só corpo cie historia os isens
aunaes dispersos. Eu ousei emprehendel-a
, sem me desanimar pela
especie de incoherencia das diversas
partes, de que este assumpto
se compõe : tila he sem duvida
mais difficultosa de se tratar; mas
lie ao mesmo tempo mais variada %
mais nova, e até mais interessante;
porque offerece exemplos de
hum enthusiasmo heroico , e sempre
lições úteis. Vê-se a nação
Portugueza , fraca na sua origem *
mas que chegou pelo seu grande
caracter, e pela sabedoria das suas
leis ao mais alto grão cie poder monarchico
, medir-se ella só com nações
temiveis , e superar seus esforços;
eclipsar-se por meio século
na Monorchia Hespanhola para
brilhar de novo ella só ; vê-sé ficar
em fim triunfante , e senhora
38
Historiei
absoluta cleste immenso império ,
cuja riqueza parece têl-a convidado
á todas as fruições do J$xo fc
e á todos os generos de gloria.
Remontando á origem dos Portuguezes
, encontra-se a historia da
Lusitania constantemente ligada
nos seus princípios com a historia
da Hespanha , de que a Lusitania ,
ou Portugal nSo he de algum modo
, se não hum desmembramento.
Não pertence ao nosso assumpto
seguir circunstanciadamente as primeiras
revoluções , que a sorte das
armas, verdadeiro arbitro do poder
humano , lhes fez experimentar
em commum. Scipião o moço ,
terminando a guerra, que disputava
aos Carthaginezes a posse da
Hespanha , submetteu aos Romanos
a Península inteira. Agrippa
no tempo de Augusto consummou
de novo esta conquista pela reducção
dos Cantabros , e os Imperadores
perpetuarão em paz seu
domínio sobre a Península. No
tempo de Galba a Lusitania tinha
Do Brasil. i j
cinco colonias Romanas, e Olly*
sippo, hoje Lisboa, era huma cif
¿acle,privilegiada. O fim do quinto
isètalò vio começar a irrupção dos
povos do Norte, e a destruição
lenta do Império Romano. A Hespanha
foi successivamente invadir
da pelos Alanos, Suevos, e Visi7
godos. Estes últimos reinarão nelr
ía por tres séculos. Ao depois os
Árabes, ou Sarracenos se apoderarão
, e estabelecêrao nella : mas as
montanhas das Astúrias forão o
refugio das relíquias do poder dos
Godos; e vio-se hum punhado de
Christãos, commandados por Pelar
gio , resistir nas cavernas aos conquistadores
Árabes. Os successores
deste heroe , animados pelo seu
exemplo , restabelecem o sceptro
Godo , e fundão o reino de Oviedo
, e de Leão , berço da Monarchia
Hespanhola. Os feros Astures
estendem logo os limites, que
lhes oppõe os Musulmanos Árabes:
dilatão além das montanhas a confederação
cluistã , que sempre em
f •
8 • Historia
armas contra os infiéis se torna
cada vez mais temível. A lata he
então geral; e grandes esforçqs dè
coragem fazem logo os Christãos senhores
do Norte da Hespanha. Fortificados
contra o inimigo commum ,
elles não tardão em se dividir entre
si. Leão , Castella , Navarra ,
é ó Aragão tinhão visto levantarem-se
tantos thronos separados ,
mas reunidos por allianças politicas.
A Hespanha Musulmana experimentava
a mesma sorte. Aos
reinados brilhantes dos Califes Ommiades
de Cordova sticcedêrão as
dessolaçóes , e a guerra civil. Os
Emiros, ou governadores de Províncias
erigem seus governos em
outras tantas províncias independentes.
Este estado de anarchia
•serve de estorvo aos Árabes para
impedirem os progressos dos Christãos
, que do Norte da Peninsula
ameação o Meio dia.
Sendo S. Fernando só o Rei da
Hespanha chiista no principio do
-un de pi mo século , ousa levar seus
Do Brasil.
estandartes além do Tejo, eleVan*
do diante de si os Mu sul manos ,
Circyjnscreve seu dominio. Apartiílíàrdõs
seus estados faz nascer novas
divisões entre os Christãos;
mas Affonso , filho de Fernando ,
despojado logo por seu irmão Sancho
, reúne em fim na sua cabeça
todas as coroas de seu pai. As conquistas
sobre os Muçulmanos se
nmltiplicão , e se estendem. Affonso
chega a penetrar até a fértil Andaluzia
, e amplia cada vez mais
os seus clominios. Subjuga huma
parte das margens do Tejo, e debaixo
do titulo de Rei de Castella
adquire logo liuma celebridade tal,
que attrahe á Hespanha muitos
Cavalleiros Frencezes , desejosos de
se unirem ás suas armas.
Entre esta mocidade brilhante
se distinguio Henrique de Borgonha
, de origem Capetina, bisneto
de Roberto segundo Rei de França.
Depois de ter feito a sua primeira
campanha debaixo do cominando
do illusire Cid, em cuja
i j
38 Historiei
gloria desejava ter parte, assignalou
seu valor contra os Mouros da
Lusitania , e obteve do Rei dç Castella
, e de Leão , empenhado 'em
se unir com elle, o titulo de Conde
com a mão de D. Thereza , huma
das filhas naturaes deste Monarcha.
Unido estreitamente á Castella ,
Henrique se ennobreceu por huma
multidão de façanhas contra os
Mouros ; subjugou o fértil paiz
Entre Douro e Minho ; paiz, que
perdendo então o nome de Lusitania
, tomou o de Portugal. Segundo
a ethymologia a mais verosímil,
este nome moderno se formou do
da cidade do Porto , que o Conde
D. Henrique fez fundar , e da villa
de Cale , situada na margem
fronteira do Douro.
Feito Conde de Portugal , e
vassallo do reino de Leão, Henrique
de Borgonha firmou sua soberania
, que comprehendia só as cidades
do Porto* Braga, Miranda,
Lamego , Coimbra e Viseu : por
Do Brdqil. li
ftovos triunfos, e sem tomar o titulo
de rei, lançou os primeiros
nentos da Monarchia Portu-
Seu filho Affonso Henrique ,
herdeiro do seu valor , e da sua
gloria , alcançou sobre os Mouros
brilhantes vantagens: derrotou em
liu m só dia cinco de seus soberanos
, ou governadores , e foi acclamado
Rei pelos seus soldados no
campo de Ourique , onde deu a
batalha. Os Estados de Portugal
juntos em Lamego confirmarão o
augusto titulo , que elle não possuia
, se não entre o seu exercito.
Esta assembleia celebre , composta
de Prelados, de Nobres , e Deputados
da3 cidades , promulgou as
leis fundamentaes do Reino , declarado
-hereditário , e independente.
Ella deu também desde o duodeci"
mo século o exemplo notável de
vassallos limitando o poder soberano.
D. Affonso Henrique , fundador,
e legislador ao mesmo tempo , -ilius-
38
Historiei
trou hum reinado de quarenta e
seis annos com liuma administração
paternal , e com o zelo^ pelo
progresso das sciencias. A Dy vestia
deste fundador perpetuou-se
com brilhantismo até o fim do decimo
sexto século. No seu reinado ,
e por seus cuidados a Cavalleria ,
esta brilhante instituição , que desenvolveu
as mais nobres paixões
do homem , estabeleceo-se nas margens
do Tejo com todo o esplendor ,
que tinha tido em sua origem na
França, e na Inglaterra. Frequentes
relações com os Mouros imprimião
no caracter Portuguez hum
ar de urbanidade, e de galanteria:
bem depressa a linguagem do amor
tomou este tom exaltado , que parece
ser exclusivamente reservado
á imaginação brilhante dos Orienraes.
Os torneios forão numerosos;
as festas magnificas; a gravidade ,
a fereza , as paixões fortes se tornarão
o caracter distinctivo .dos
Cavalleiros , ou Nobres Portuguezes.
Se seus oclios erão profundos ,
Do Brasil. i j
suas affecçóes erSo também mais vivas.
Então se formou este espirito
aaci^nal , que os successores de
Iptonso I. não tardarão em elevar
ainda, seja pela especie de igual*
dade , que elles estabelecêrão eritie
si , e a Nobreza ; seja pelos limi*
tes , que elles mesmos assignárão
á authoridade Real. Os Estados
geraes forão muitas vezes juntos:
nelles se propozerão leis , que excitárão
o amõr das grandes virtudes.
A nobreza foi a recompensa
irão só dos serviços militares , mas
também de acções , que caracterisavão
o desinteresse, e nobreza
d' alma. As guerras dos Portugueses
erao ao mesmo tempo politicas
, e religiosas: sen zêlo era excitado
pelo duplicado interesse da
expulsão dos Mouros , e da propagação
da Fé.
Os successores de D. Affonso
fundarão cidades, creárão frotas,
animarão a população , e reunirão
á Portugal o pequeno Reino do
Algarve, tomado aqsMusulmanos.
38
Historiei
Deste modo nos primeiros séculos
da Monarchia vê-se a nação Portugueza
affugent*r os Mouros, firmar
suas fronteiras . combatei" 1>uc.
cessivamente com os infiéis, ecom
os Castelhanos , muitas vezes com
vantagem: vê-se este povo bellicoso
cultivar á hum tempo a agricultura
, o commexcio, e as artes:
vê-se também o Clero , e a Nobreza
, apoios naturaes do throno ,
exercitar 110 Estado liuma grandç
influencia , e oppôr hum dique
saudavel ás invasões do poder supremo
: vêm-se em fim os Monarchas
tentarem por muitas vezes ,
inas sempre em vão , despojar o
Clero , que se tinha feito rico , *¡
preponderante. Todos os seus es.
forços erão mal succedidos á vista
da resistencia combinada deste corpo
respeitado , que acha hum apoio
formidável no poder espiritual dos
Papas. Feridos successivamente pelos
raios da Igreja , muitos Reis
de Portugal compoem-se coma Santa
Sé, e se submettem á s.ua au-
Do Brasil. i j
thoridade. Desordens frequentes, e
guerras civis conservão á nação
sua vivacidade , e sua energia sem
Alterar suas virtudes. Os Nobres ,
retirados das cidades, t da Corte ,
entretém em seus castellos junto
ás imagens cle seus antepassados a
lembrança, e a imitação das empregas
, cujo exemplo elles deixárão-
Ihes por herança.
A nação inteira estava já preparada
para as grandes emprezas ,
quando no fim do decimo quarto
século D. Fernando 1., novamente
Mon are ha , morreu sem deixar
herdeiro varão, depois de ter-casado
D. Beatriz sua filha, nascida
de huma união illegitima , com D.
João I. , Rei de Castella ; crendo
assegurar assim o throno ao filho ,
que nascesse deste consorcio , e na
sua falta á D. João I. , seu genro;
Mas a aversão dos Portuguezes á
dominação Castelhana favoreceu
as vistas ambiciosas de D. João , irmão
natural do Rei. Este Príncipe
se apoderou do governo ;. e as
38 Historiei
Cortes, convocadas em Coimbra;
lhe defferírão a coroa. Elie firmou-a
em sua cabeça com a famosa batalha
de Aljubarrota a 14 de Agosto
de 1385 , onde , soccorrido pelos
Inglezes , derrotou os Francezes ,
e "Castelhanos reunidos. O novo
Rei , conhecido na historia pelo'
nome de D. João o Bastardo , foi
o tronco dc huma familia , que occupou
o Reiivo de Portugal duzentos
annos. Seu reinado foi illustrado
não só pela Victoria completa
de Aljubarrota , mas também pela
sua expedição contra os Mouros ,
que elte perseguio com huma frota
até a Africa.
Desde então os Portuguezes começátão
a sentir a necessidade da
navegação , e das descubertas. O
reinado de D. João I. se faz sobre
tudo notável pelo impulso , e movimento,
que o Infante D. Henrique
, digno filho deste Monarcha ,
dá ao espirito da sua nação para
vencer as preoccupaçóes, que até
então terião passado por invenci-
Do Braqit. 17
•eis. Versado na geografia , e na
mathematica activo , emprehentiedor
, illustrado , D. .¡Henrique
&Siví"á seus compatriotas a carreira
, em que a gloria os espera. Não
possuindo i se não hum domínio limitado
na extremidade occidental
do Algarve , elle ahi faz construir
embarcações á sua custa , e as manda
reconhecer as costas d'Africa.
Seu gênio , e a intrepidez do povo
, que elle dirige » vão fazer renascer
a arte da navegação, e darlhe
huma. elevação mais vasta.
Animados, e guiados por hum
tal Chefe, os Portuguezes, em todo
o tempo ferozes, bravos, attrevidos',
de í,um espirito penetrante
j e de huma imaginação ardente,
vão marcar derrotas , que
ainda não tinhão sido conjecturadas
: elles navegarão por mares desconhecidos:
dobrarão cabos, olha»
dos até então , como os limites do
mundo : e espantarão a Europa
pela intrepidez das suas emprezas:.
v He debaixo da influencia do
Tom. I. &
l8 "Historia*
Filho de D¡. ]oão I., e pela inápi*ração
do stu-genio, que elles des*
cubrírão--logó as ilhas da Madeira;
das Canarias , e do Cabo Verde ; e
ao depois aso dos Açores; e> que
dobrando 1 o cabo Bojador , elles avançâo-
«o longo da Costa occidental
da Africa, em maior disrancia *
do que nenhum navegante até en*
tão tinha ido: he debaixo dos sem
auspicio*, querelles descobrem mais
tarde ais 'costas de Gtiíné , e ahi
fazem sélVs primeiros-estubeleoimentos.
O'iUustre Infante-D. Henrique
mofreiv septuagenário pouco
ao depois da exaltação de D. João III
filho, de sen sobrinho , -ao throno
de Portugal: 'morreu na. V'illa de
Sagres nos Atgarves ,. >; donde elle
deixava cadiir 1 aí suas vistas -sobre
o mar Athlaíitico; feliz'!, por ter
aberto á sua nação hum tão v-ast©
campo de gloria. A mais simples
narração do qite elle meditou, e
do que elle émprehendeu ,:he bas*
Cante para o seu elogio. PortugaJ
se não O contou no numero de seus
Do Brajíl *9
Reis, Portugal, e a Europa inteira
o collocão na ordem dos maio,-*
rss homens. Devem-se-lhe incontestavelmente
as primeiras idéas »
que no fim do decimo quinto secu«.
lo conduzirão á descuberta dehum:
novq, hemisferio, e da passagem
ás Índias..; ..
O forte impulso „ que elle, ti-í
nha dado á seus compatriotas , lhe
sobreviveu. As emprezas , e asdesn
cuber tas se succedêrão humas ási
outras. Cada vez mais animados ,
mais ardentes, os Portuguezes costeião
a praia occidental da; Africa ,
« correm a immensa costa, que se
estende desde as columnas de Hercules
até o Zaire. He então , que
elles concebem o projecto de abri«r
«J\ huma passagem do Oceano
Africano ao Oceano Oriental: elles
se lisonjeão de remontar mesmo at£
as índias, de fazerem ahi hum
commercio directo, de estancar as*
sim a foiue da grandeza , e da oppulencia
de Veneza, de chegar
em fiin por sua perseverança , e co-
•zo' Historia'
ragem á este primeiro termo de tantas
espeianças, e esforços.
- Nesta época para sempre rnemot
sável, e na qual a influencia dos
Portuguez.es se dilatou com hum
novo brilho , a maior parte dos Estados
da Europa começavão a tomar
huma forma nova mais regular,
e a offerece'r paginas interessantes
á historia. A legislação , o
eommeroio , a politica , e a restanfação
das letras se união para estabelecer
relações felizes entre as
principaes nações. A Italia , centro
das luzes , deixava na verdade
ainda muito atraz de si os outros
paizes damais florescente parte do
globo. A Allemanha V posto que
privada da parte septentrional da
Italia, e por muito tempo agitada
pelas contendas dos Imperadores ,
t dos Papas, tomava em fim huma
situação mais tranquilla. A França
gosava igualmente de socego; os
grandes feudos acabavão de ser
reunidos á Coroa; reinava Carlos
VIII. A Hespanha , inteira?
Do Brasil. i j
mente livre do jugo dos Árabes ,
não conhecia mais , que hum só
dominio. O casamento de D. Fernando
, e de D. Isabel tinha unido
o Aragão, e a Castella. As finanças
deste Estado , suas forças,
e seus exercitos o igualavão á mesma
França. As primeiras Potencias
Europeas olhavão ao hum tempo
tom olhos rivaes para a Italia , á
respeito da qual tantas tentativas,
e pertenções devião se lhes tornar
funestas. A Inglaterra depois dos
longos , e sanguinolentos debates
das Casas de Yorck , e de Lancastre
respirava em fim, governando
Henrique VII. Os tres reinos do
Norte estavão reunidos: mas a Suécia
gemia com os grilhões , que a
sujeitavão á Dinamarca, e tratava
de quebral-os. A Polonia elegia
seus Reis; ella tinha de se defender
contra os Turcos ^ que talavão
seus campos ; e contra os Russos,
que já se tínhão tornado para ella
visinhos temiveis. O dominio do»
Turcos se espalhava ir* Europa, e
38 Historiei
na Asia sobre hum território immenso.
Portugal não .^e occupava , se
não com suas descnbertas, e com
seus estabelecimentos maritimos. D.
João II. era a alma das grandes
emprezas , e cios seus vassallos f
Do Brasil. i j
humanos. Tocado vivamente do eX-<
emplo dos navegantes Portuguezes ,
Christovão Colo mb) concebe o projecto
de abrir huma passagem ás
índias pelos mares do Occidente :
elle parte a offerecer suas esperanças
, e s u a s promessas ámuitQS soberanos-,
que o desprezão, As vis^
tas dos Portuguezes estavão então
exclusivamente voltadas, para a Ar,
frica; e D. João II. não fez a Co*
lomb melhor accolhimento , que os
Reis de França , e de Inglaterra.,
O illustre Genovez foi igualmente
rejeitado pelos soberanos.de;Castel+
la: mas o que os seus, planos vastos
prometi ião de lisonjeiro,lhe obtém
dç Isabel protçcção;, e soççorro.
Elie se aventura então aobte
mares desconhecidos , e descobre a
America. Voltando .ctas Antilhas ,
elle se avisinha ás costas de Portugal
v entra 110 Tejo , acompanha-:
do de alguns índios , .^trazendo
Oiro , C íruetos do ¡SIQ.VO Mundo.
Estes signaes não equivocos de hum
successo inaudito ; as narrações cm-
38 Historiei
faticas do feliz navegante excitâo^
arrependimentos, e o pezar da Corte
de Lisboa. O Monarcha reprimió
de repente com horror a proposição
de fazer perecer Colomb :
elle ao contrario o tratou com distinção
; e o illustre Genovez appareceu
cuberto de gloria na Corte
de Castella , onde recebeu o titulo ,
e as honras de Vice Rei do Novo
Mundo.
Os successos da sua primeira
expedição fez nos Portuguezes huma
sensação tão viva , ijue D.
João II. julgou dever equilibrar
os effeitos delia aos olhos da sua
nação por meio de alguma grande
empre?a. Elle fez immediatamente
preparativos d v armas para abrir em
fim a passagem ás Indias Orientaes.
Mas o Rei de Castella , vendo nas
suas disposições huma especie de
hostilidade , queixou-se disso por
seu embaixador. Os preparativos
forão suspendidos, e a contenda
foi submettida á authoridade da
Santa Sé , occupada então por Ale-
JDo Brasil. 48
Jcandre VI. O Papa, cujo poder
divino as chias Potencias reconhecião
, diviaio-lhes o mundo , assignantío
á ambição de cada huma seu
hemisferio á parte. Huma linha
imaginaria tirada de Norte á Sul,
cem léguas á Oeste das ilhas de
Cabo Verde , e dos Açores, dava
o Occiílente á Hespanha , e o Oriente
á Portugal ; convenção , que
desordenarão bem depressa as novas
descubertas, e que nenhuma das
nações marítimas respeitou.
D. João II. morreu no fim do
decimo quinto século , depois de
ter adquirido por sua justiça , por
suas virtudes , e por suas empregas
o appellico de Grande , e de
Perfeito : mas levou com sigo ao
tumulo, o duplicado sentimento de
ter recusado as offertas de Colomb ,
e de não ter consummado a expedição
das índias Orientaes. Todavia
esta expedição foi preparada no
seu reinado , e seu successor a realisou.
Aqui começa o século de vigor ,
38 Historiei
e de gloria de Portugal. D. Manuel
, chamado o Grande , neto
de D. Eduardo , tinha subido ao
throno por falta de filho legitimo
de D. João II. Dotado das mais
bejlas qualidades , elle se mostrou
bem depressa o amigo das artes *
o protector da navegação , o pai
do seu povo ; e não se deixou penetrar
da gloria de seus Predecessores
, se não para accrescental-a
çada vez mais ao esplendor do throno
, e á prosperidade da nação.
Elie faz logo conselhos frequentes
para reformar os abusos , pára traçar
hum plano geral de governo ,
e para se occupar com novas descubertas.
Algumas considerações de hurna
tin.ida politica , alguns restos
daqueiles prejuízos atacados for-»
temente pelos primeiros successos ,
mas não inteiramente destruídos ,
abalarão os sentimentos do gênio
de D. Manoel , e parecerão obter,
mesmo huma especie de prepondejrancia
, á qual teria cedido outro
Do Brasil. i j
qualquer , que não fosse o Neto
de D. Eduardo. Porém depois das
mais maduras deliberações nada
demoroxi mais o Monarcha ; e decidio-se
, que se abriria a derrota
das grandes índias pelo Occeano
Occidental em conformidade dos
planos já concebidos.
Huma frota de quarenta vasos
ne confiada ao commando de Vasco
pa Gama , oriundo de huma casa
•»Ilustre de Portugal: elle parre em
1497 com instrucções ordenadas
por D,. M*nuel mesmo. O Cabo
das Tormentas, reconhecido onze
annos antes, tinha apresentado a
Possibilidade de huma passagem ao
Oceano Indiatico , e tinha recebido
desde então o nome cle Cabo da
Boa Esperança , que o Gama devia
verificar.
Este grande navegante dobrou
o Cabo , ttiumfou de todos os perigos
, e os pavilhões dos Portu-
-guezes navegarão pela primeira vez
sobre aquelles mares . ao través
dos quaes clles tinhâo desejado tan-
38
Historiei
to abrir hura caminho. Gama proseguio
sua derroca ; correu a costa
oriental da Africa ; e ao depois de
ter errado milito tempo sobre hum
occeano desconhecido , encontra
á 14 gráos de latitude meridional
pilotos Mahometanos , com auxilio
dos quaes apporta no reino de Calecut.
Mais" de mil, e quinhentas
leguas de costa forão reconhecidas
nesta celebre viagem.
Na chegada dos P0rtugue7.es o
Indostão , este vasto , e bello paiz,
comprehenriido entre o Indo , e o
Ganges estava dividido entre muitos
soberanos mais, ou menos poderosos.
O rei de Calecut, mais conhecido
pelo nome de Çamorim ,
que corresponde á dignidade de Imperador
, possuía os estados , que
ficavão mais proximos ao mar: elle
estendia o seu dominio sobre todo
o Malabar , que em menos de tres
séculos ao depois a força das armas
devia submetter com toda a península
da India ao poder Británico.
Gama instruido da situação po-
JDo Brasil. 29
Utica da costa , apporta em Cale*
cut , onde o commercio florescia
com mais vantagem-, e propõe ao
Çamorim huma alliança , e hum
tractado de commercio com o Rei
seu soberano. O Monarcha índia* ,
tico accolhe logo a Gamai porém
excitado ao depois pelos Mahometanos
, encontra na intrepidez , na
actividade , na ambição dos navegantes
Portuguezes huma origem
de inquietações : elle os cerca de
laços , e de perigos. O Almirante
Portuguez não escapa delles, se
não pela sua firmeza impassível,
e por meio de represalias exercitadas
á proposito, Elle torna a tomar
a derrota da Europa , depois
de ter feito respeitar o nome Portuguez
na India, onde não tinha
encontrado disposições verdadeiramente
favoraveisu. senão em o Rei
de Melinda , que o fez acompanhar
por hum embaixador..
, Põde-se facilmente julgar , que
recebimento D. Manuel reservava
W iUustre Almirante. Sua chegada
3°
•Historia
foi celebrada com festas brilhantes ¿
e com todos os testemunhos de.alegria
publica. Cheio de signaes d»
estima, e de reconhecimento dç>
seu Soberano, Vasco.-da Gama £oi
feito Conde da Vidigueira , creado
Grande de Portugal;y honrado com
o titulo de Duque para si
Do Brasil.
Veneza no decimo quinto século
tirava quasi sd da Alexandria ,
que no reinado dos Ptolomêos no
tempo dos Romanos , e c!os Árabes
ti-nlia Sido o empório do Egypto ,
da Etíropa , e das Índias. He assim ;
que-os Portuguezes romperão os
obstáculos , que se oppunhão aos
progressos da navegação , da industria
, e das luzes. Sua passagem is
Grandes Índias substituío logo Lisboa
á Veneza : e se , como não se
pôde duvidar, a grandeza dos acconr
tecimentos devfc medir-se pela sua
influencia sobre a sorte das nações ,
sobre suas relações commerciaes, e
politicas, a expedição do Gama , q
o reiijádo de D. Manuel são liúma
destas épocas memoráveis , que a
historia honra-se 'de-ter- cie assigr
nalar para .gloria da Europa , eipa-»
r ' d a instrucção do futuro. •'
38
Historiei
de Veneza , e o de Gênova, já enfraquecido
pelos Tnrcos, cahio rapidamente
: outas nações , até então
fracas , ou desconhecidas, se
levantarão alternativamente pela
navegação, e pelo commercio. A
idéa só de riquezas immensas , de
huma natureza inteiramente diversa
, de mares até então ignorados
de novas origens de riquezas
eleCtrisou os espiritos , excitou a
emulação., e accendeu a cubiça.
Desde que se tracjtou de tentar
conquistas na Africa , e na Asia ,
tanto a sède de enriquecer * como
o desejo de segurar o Estado , e de
propagar o Evangelho fez correr
os Portuguezes em tropel ás praias
estrangeiras. Immediatamente suas
frotas'cobrem , e dominão os mares
da Índia. D. Manuel não se occupa
, se não em submetter este rk.o
paiz ás suas armas. As emprezas
intrépidas, as victorias brilhantes
dos Almeidas ,.e dos Albuquerques
Jbe.segurão em menos de très aunes
aposse de G.^a áquem doGan-
JDo Brasil. 33
ges , de Malaca no Chersoneso do
Ciro , de Adem na costa da Arabia
feliz, e cie Òrmiii no Golfo
Per sico: seus navios frequentão a
Eihiopia oriental, o Mar Vermelho
, e todos os mares da Asia: suas
feitorias se estabelecem desde Ceuta
até ás fronteiras da China. Já
os Portuguezes tem descuberto cinco
mil léguas de costas; já o accaso
, e a tempestade lhes tem franqueado
o dominio de hurna das mais
vastas regiões do hemisferio Occidental
; do Brasil, que situado á
mil e quinhentas léguas da Metrópole
, e logo despresado , ha de vir
a ser hum dia , depois da ordem
eierna dos accontecimentos, hum
dos mais bellos impérios da America
, o refugio da Monarchia Portugueza,
c a verdadeira Séde do
seu Poder.
Tom. I. C
LIVRO SEGUNDO.
Bescuberta do Brasil por D. Pedro
Alvares Cabral. Expedif
ões de Américo Vespucio , e
cie Coelho. Descuberta do Rio
de Janeiro , e do Paraguay por
João Dias de Solis , Piïoto mór
de Castello. Morte deste navegante.
Primeiras disputas
de Hespan/ia, e de Portugal
por motivo das descubertas da
America. Morte d' El-Rei D.
Manuel o Afortunado. D. João
Hl' lhe succédé, e fôrma o
projecto de colomsar o Brasil.
15C0 r— 15ÛI.
A Penas a entrada do célebre Gama
no Tejo havia provado á Eu-
38 Historiei
ropa inteira, que as Grandes índias
erão dahi por diante accessiveis
aos Portuguezes , quando D.
Manuel , cheio de esperanças , concebeu
vastos projectos., que não
olhou mais como vans tentativas.
Frotas numerosas , e capazes de dar
leis, onde quer que apportassem ,
forão successivamente esquipadas
para as índias.
Nem o consummo das finanças ,
nem as perdas inseparáveis destas
navegações perigosas embaraçárão
o Rei. A perspectiva de hum futuro
glorioso , as conquistas , que
ellas promettião á Religião, e á
prosperidade de seus estados, não
lhe permittião mais calcular os sacrifícios.
.
Os Portuguezes , que não tixihão
ainda penetrado os projectos
deste Monarcha em toda a sua extensão
, se apresentarão então em
tropel para os realisar.
A primeira frota, composta de
treze vasos, apromptoii-se para dar
á vela no gaez de Março de 1500.
Do Brasil. i j
Ella era commandada por D. Pedro
Alvares Cabral, oriundo de
huma das primeiras familias do Reino
, Governador da Provinda da
Beira , e senhor de Belmonte. Cabral
teve por Lugartenente outro
fidalgo , chamado Sancho de Tavor.
A frota tinha de guarnição mil, e
quintos homens armados , além das
equipagens.
Segundo o theor das suas instrucções
, Cabral devia tocar Sofáta
, visitar os Reis da costa da índia
, fazer com elles alliança , e
formar alguns estabelecimentos ,
que pudessem servir á hum tempo
de escala , e de deposito para os
gêneros commerciaes na viagem, e
yolta das Grandes índias: elle
devia ao depois ir direito - á Cale-
; e depois de ter esgotado todos
os meios de brandura com o
Çamorim , para obter delle a faculdade
de estabelecer huma feitoria
na sua Capital, devia declarar-lhe
huma guerra aberta , no caso que
elle recusasse ás proposições de Por-
1 r
tugal.
38 Historiei
D. Manuel, querendo assignalar
a partida cie Cabral co n huma
grande solemnidade , ajuntou o povo
na Cathedral de Lisboa. O Bispo
de Ceuta pontificou , e recitou
âo depois huma oração , cujo principal
objecto foi o elogio de Cabral ,
que emprehendia com tanto valor
huma tão grande expedição marítima.
Acabada a oração , o Bispo
recebeu sobre o Altar o estandarte
com armas Portuguezas , o qual
durante as funções Ecclesiasticas
estivera fincado junto ao mesmo
Altar; e depois de o ter publicamente
benzido , deu-o ao Hei, que
o entregou á Cabral em presença
dos Grandes , e do povo. O Monarcha
poz-lhe ao depois na cabeça
hum chapéo bento , que o Papa
tinha enviado , e lhe prodigalisou
os signaes os mais honrosos de huma
confiança sem limites. A bandeira
foi então, levantada , e conduzida
processionalmente á praia,
aonde o Rei em pessoa acompanhou
a Cabral , querendo ser tes-
Do Brasil. i j
temunha do embarque, que se fez
c
om estrondo da artilheria do port0
» e com aoplausos geraes do
povo.
. A partida do Gama não tinha
81
do honrada com maior pompa;
tomo se a nação tivesse previsto ,
Çue o resultado desta segunda expedição
á índia devia grangear á
Portugal hum império ainda mais
rico, e mais extenso.
O Tejo estava cuberto de botes
, cheios de espectadores , que
ião , e voltavão da frota á praia,'
>> Todas estas chalupas (diz o liis-
» toriador Barros , testemunha oc-
» cular) estavão agaloadas de li-
'» krés, de galhardetes , e de armarias;
e davão ao rio huma
vista de hum jardim ornado d&
>» flores diversas em hum dos mais
" bellos dias cia primavera. Mas
>» o que exaltava mais os espíritos
» (continua o Historiador Portu-
" gnez , empregando hum estilo
« q u asi poético ) era o som armo-
T, nioso , e sonoro das flautas, dos-
38
Historiei
tambores, dos boés, das trom-
,, bètas, ao qual se unia o som o
„ mais suave da agreste charame-
„ la , que até então não tinha res-
,, soado , se não em prados, e val-
.„ les; e que pela primeira vez se
j, fazia ouvir sobre as aguas sal-
,, gadas do Vasto Occeano.
Depois desta época o Rei de
Portugal tez embarcar em cada huma
frota destinada para a America
, ou para as Grandes índias hum
Corpo de músicos , a fim de que
aquelles de seus vassallos , ^que emprehendessem
tão longas 'navegações
, não fossem privados de algum
dos Unitivos capazes de os
distrahir do enojo , e das fadigas
do mar.
Cabral fez-se á vela, e chegou
és ilhas cle Cabo Verde com 13
dias. Até ahi nenhum aceidente
havia perturbado sua navegação.
Elie percebeu então , que hum dos
seus navios lhe faltava ; esperou-o
dois dias inteiros, e não continuou
sua derrota , senão depois de per-
Do Brasil. i j
der a esperança de o reunir á sua
frota. Porém para evitar as calmarias
. e a costa da Africa , elle amarou-se
de tal sorte, que batido por
huma tempestade vio-se obrigado
a declinar para o Occidente. Iminediatamente
coin grande admiração
sua a 24 de Abril de 1500 descubrió
á Oeste huma terra desconhecida
a 10 gráos além cia Linha:
era o Brasil.
O bote , largado ao mar , chegou
á praia ; virão-se alguns selvagens
com a têz cõr de cobre,
inteiramente nús, com o nariz achatado
, e cabellos negros, e que arcados
de arco , e flexa se chegáó
10 , mas sem sensibilisar intenção
"alguma hostil. Fugirão , vendo desembarcar
os Portuguezes , e ajuntarão-se
sobre huma eminencia. O
vento contrario , e o mar agitado
obrig-árão a Cabral, durante a noite
. a alongar-se da costa , á que
acabava de approximar-se , e a buscar
outio ancoradouro ao sul: correu
até 15 grãos de latitude aus-
38
Historiei
trai , e iescobrinclo hum bello porto
, ancorou com segurança , e por
isso deu-lhe o nome de Porto Seguro.
Mandárão-se de novo chalupas
á praia: ellas trouxerão dois
naturaes apanhados em huma piroga
, em que andavão pescando.
Cabral os fez vestir com bellos vestidos
, ornou-os com bracelêtes de
latão , deu-lhes campainhas, e espelhos
, e tornou a mandal-os para
terra. Este expediente teve bom
êxito. Alguns selvagens inteiramente
nús, e de huma còr avermelhada
se appresentárão , e attrahidos
pelos presentes , e affagos , estabelecerão
com os Portuguezes communicações
amigaveis : trocárão
fructos , milho , e farinha de mandioca
pelas drogas da Europa , de
que os navios tinhão sido carregados
para traficar na costa da Africa.
O Almirante, Portuguez fez reconhecer
as terras , e soube com
alegria pelas relações dos seus espias
, que ellas paredão ferteis ,
cortadas de bellos ribeiros, cuber-
Do Brasil.
tas de diversas especies de arvores,
e de frucros , e povoadas de homens
, e de aiiimaes.
No dia seguinte (Domingo de
Páscoa ) Cabral sábio á terra com
seus pr ncipaes Officiaes , e hum a
parte das suas equipagens. Levantou
hum Altar para a celebração
de huma Missa solemne , arvorou
huma Cruz sobre huma grande arvore
copada , e mandau fazer huma
em pedra na praia mesmo. Daqui
he , que a nova terra tomou
o nome de Santa. Cru7t ; porque o
dia 3 de Maio , dia desta tomada
de posse , he dedicado á Santa Cruz:
mas o nome Brasil, pelo qual era
"y^.conhecida a preciosa madeira de
Untura , encontrada ao Norte desta
parte da America , não tem prevalecido
menos. Este nome traz a
etimologia da palavra Portugueza
frisas, dada á esta madeira do
brasil por causa de seu bello vermelho
còr de fogo vivo.
Desce modo Cabral começou
n ° Brasil o primeiro estabelecimento
i j
44
H istoria
Portuguez no cume de hum rochedo
esbranquiçado , fronteiro áhum
terreno , que elevando-se ao Norte
, aplanava-se ao Meiodia , e formava
pouco a pouco huma praia
arenosa.
Em quanto elle fazia celebrar
a Missa solemne ao som da musica
, e das salvas cla artilheria , os
índios, que chegavão em multidão
para verem hum espectáculo tão
novo , persistião no mais profundo
silencio , como tocados de espanto ,
e de admiração. Cabral, fiel aos
princípios do seu século , e ao systeraa
cie proselytismo , que se tornou
muitas vezes o pretexto dos
furores humanos , encarregou ao
Monge Henrique da Coimbra , superior
de sete Missionários , que
elle conduzia ás índias, que annunciasse
o Evangelho á estes povos.
Elle estava longe sem duvida
de esperar bom successo de huma
prégação , que não podia ser entendida
; mas cumpria com hum dever ,
que lhe impunhão as Bulias Apos-
Do Brazil.
tolicas. Fora destes sentimentos particulares
Cabral devia pensar com
huma especie de orgulho , que elle
er a o primeiro , que fazia pregar
a Fé nestas praias estrangeiras. As
equipagens não deixarão de applaudir
hum z,êlo , que por então justificava
, e parecia garantir tudo.
Durante" o Officio Divino os
«aturaes do Brasil derão signaes
de hum interesse muito grande,
que_ não era certamente, senão o
effeito da admiração , mas que agradou
tomar-se por hum recolhimento
de espirito. Elles seguirão com
exactidão todos os signaes de adoração
, e de humildade dos Padres,
,freios-assistentes ; puzerâo-se de
joelhos , levantárão-se, baterão nos
peitos , e imitarão em tudo os Portnguezes
com intenção de lhes agradar.
Estes virão em todas estas demonstrações
o presagio de hum futuro
feliz. Com efteito o accolhimento
prompto , e fácil , que lhes
faz ião os Brasileiros da costa , era
ttjijD agoiro favorável das disposi-
4 6
Histeria
çóes, e do caracter destes povos
Indiaticos. Com tudo não se percebeu
entre elles vestigio algum de
religião , nem de governo , nem
mesmo de civilisação traçada.
Cabral fez plantar na praia huma
columna de pão , assignalada
com as armas de Portugal , e apressou-se
em mandar á Corte de Lisboa
hum de seus Capitães, chamado
Gaspar de Lemos , para noticiar
sua descuberta , que dava á
nação Portugueza hum novo império.
Foi embarcado com Lemos hum
dos naturaes do Brasil , para fazer
conhecer á D. Manuel seus
novos vassallos. Cabral voltou para
bordo , deixando no paiz dS ; *
criminosos condemnados á morte ,
e cujo castigo tinha sido commutado
em desterro, Os Brasileiros o
acompanháráo até a sua chalupa ,
cantando , dançando, batendo as
palmas, disparando flexas ao ar ,
elevantando os braços ao Ceo para
significarem a alegria , que lhes
causava huma tal visita. Chegarão
i
Do Brasil.
& metter-se pelo mar dentro para
seguirem os Portuguezes: alguns
forão até a frota em suas pirogas:
outros , tanto homens , como mulheres
, se lançarão á nado com huma
cle streza espantosa , como se a agua
fosse seu elemento natural. Cabral
deixou a costa , dirigio-se ao Cabo
da Boa Esperança , e seguio para
as índias Orientaes, seu primeiro
destino.
D. Manuel recebeu cem alegria
a noticia , que lhe trouxe Lemos.
Elie via estender-se seu domínio
para o futuro não só nas tres antigas
partes do mundo , mas também
na quarta , apenas descuber«
.j&i. Os successos de Cabral na índia"
verifjcárão por outra parte todas
as suas esperanças. Era bastante
aos Portuguezes appresentarem-se ,
para darem leis; e aquelles mesmos
soberanos, cuja alliança elles tinhão
procurado , já não obtinhão a sua ,
se não reconhecendo-se vassallos
da Côjte de Lisboa. Estes interesses
erão tão grandes, que as des.
i j
48
H istoria
cubertas occidentaes não fizcrão poi*
então nos Portuguezes Iiuma diversão
considerável.
O Rei resolveu-se com tudo a
esquipar luima frota , destinada a
trazer de novo hum conhecimento
completo desta nova região , e segurar
a posse delia. Américo Vespucio
, hábil geografo , foi escolhido
por D. Manuel para acompanhar
Orejo na sua expedição ao
Brasil. Empregado logo pelos. Reis
cle Castel}a D. Fernando , e D. Isabel
, Vespucio não tinha recebido ,
depois de duas viagens ás índias
Occidentaes, se não hum írio accolhimento
, que elle devia naturalmente
notar de ingratidão. O. Rei
de Portugal empenhou-se em empregar
em utilidade o descontentamento
do celebre navegante , que.
podia servir-lhe. Deste modo o usurpador
da gloria cle Colomb foi chamado
á Lisboa , e encarregado da
navegação ao Brasil. A sua missão
era sobretudo assignalar os limites,
das terras, que Cabral tinha des-
Do Brasil. i j
cnberto , e explorar com cuidado 0$
portos , e costas della.
Teria sido fácil á Colomb , depois
de ter reconhecido na sua terceira
viagem a Ilha da Trindade,
a costa de Cumana, e as fozes do
Ourtnoque , o seguir estas mesmas
costas do hemisferio occidental, que
o terião conduzido , avançando paia
o Sul , até o Rio das Amazonas:
elle teria então infallivelmente
descuberto o Brasil. Porém chamado
a S. Domingos pelos seus primeiros
estabelecimentos , abandonou
para o Noroeste esta nova .derrota
, que teria ainda illustradp
s eu nome pela brilhante descuberta
- com que os accontecimentos imprevistos
devião enriquecer os Portuguezes.
Entretanto Vicente Ianez Pin-
ǰn , que tinha acompanhado Colomb
na sua primeira viagem , passando
ao depois a Lisboa , descubrió
alguns mezes antes de Cabral
as costas do Brasil , visinhas
a embocadura 4o Amazonas. Mas
Tom. I. D *
Historiei
todos os navegantes estavSo persuadidos
então a se regularem pela
falsa tiledria , de que as novas
descubertas na America faziSo parte
do grande continente da India,
¿esté modo a costa , que Pinçon
je conheceu , era julgada na linha
de demarcação devolvida aos Portugnezes
pelo soberano Pontifice ;
e Cabral tomou posse delia antes
mesmo, que o navegante Castelhano
chegasse á Hespanha.
Ajudado na sua navegação pela
experiencia cie suas precedentes viagens
, Américo Vespucio partio
com tres vasos , e chegou á costa
do Brasil. Alguns homens daequi- {
pagem , enviados á descuberta , forão
apanhados, e devorados pelos
selvagens á vista mesmo dà frota.
Vespucio se apartou logo destes
antropophagos ; e chegando á altura
de oito gráos de latitude meridional
, estabeleceu com os índios
menos barbaros communicaçóes a*
migáveis. Reconheceu o paiz , en'
trou em alguns portos , certificou'
Do Brasil. i j
se de muitos ancoradouros" e poz
«as suas operações tanto cuidado ,
€ intelligencia , que se elle não
verificou inteiramente o enthusiasmo
dos povos, que derão seu nome
ao mundo novamente deicuber-
£ o, ao menos fez mais plausivel a
opinião vulgar , que privou Colomb
da gloria , que tinha merecido. Vespucio
avançou até trinta gráos além
do Rio da Prata ; ganhou outra
vez o mar alto , e entrou em Lisboa
depois de seis mezes de navegação.
Suas relações lisongeárão pouco
a ambição de D. Manuel: ellas no
geral não se ajustavão com as de
Cabral. O navegante Florentino
a Ppresentava a nova descuberta debaixo
de hum aspecto pouco favorável.
Ella não offerecia , segundo
as suas observações, senão vastos
desertos, terras pouco próprias para
a cultura , e selvagens pouco susceptíveis
de civilização.
Deste modo D Manuel não dava
á descuberta de Cabral todo o
D a
Historiei
valor , que ella merecia. Elle conheceu
sim , que não devia ser inteiramente
desprezada , mas que
erão precisas novas verificações para
estabelecer hum juizo ainda mais
seguro. Portanto determinou segunda
viagem , e Vespucio partió de
Lisboa' com huma frota de seis vasos,
deque Gonsalo Coelho eia
commandante em chefe. A discordia
ateou-se logo entre estes dois navegantes.
Ò Florentino se queixou
ao depois amargamente do commandante
Portuguez. A expedição estava
destinada para Santa Cruz,
onde Cabral tinha apportado: poíém
chegando ao Brasil, Coelho empresou
"os conselhos de Vespiici'o;
perdeu quatro de seus navios pelo
pouco conhecimento, que os pilotos
tinhão das correntes , e pela
ignorancia, que elle mesmo tinha
da costa. Elie reconheceu-a com tudo
, correu duzentas e sessenta leguas
ao Sul , apportou na altura
de dezoito gráos de latitude, con-
6çrvou-se muitos mezes em boa ia-
Do Brasil. i j
telligencia com os naturaes, e fazia
levantar hum forte na costa ,
onde deixou vinte e quatro homens,
escapos ao naufragio da Náo commandante.
Depois de ter corrido
as terras , e feito carregar de páu
brasil os navios, que lhe restavão ,
empregou muitos mezcs em visirar
Os portos , e rios , experimentando
grandes fadigas. Finalmente voltou
para a Europa , entrou com Vespucio
no Tejo , e foi recebido como
hum navegante intrépido , que
tinha triumfado dos maiores perigos
, e aquém a Metropole já não
esperava ver , havia muito tempo.
As observações de Coelho erão
màis conformes ás primeiras noticias
dadas por Cabral. As terras
1}l e tinhão parecido bôas , e ferteis ;
porém como não tinha podido descubrir
as minas do Brasil , fonte
das maiores riquezas do paiz , D.
Manuel não julgou dever-se occupar
por então do intento de estabelecer
nelle colonias permanentes.
Era difficil com tuclo , que lni-
54
H istoria
ma tão importante descuberta se
fizesse de repente a herança exclusiva
de huma Monarchia pouco temida
na Europa , sem fazer nascer
a concurrencia , ou a rivalidade
entre as potencias maritimas. A
Hespanha sobre tudo, que olhava
a America como seu proprio dominio
, mostrou-se logo invejosa do
dominio do Brasil , excitada por
Américo Vespucio , que vendo sen
tival prevalecer sobre elle na volta
á Lisboa , entrou indignado no
serviço do Rei de Castella , e instou
fortemente com este Monarcha ,
para que tomasse posse da costa ,
que elle acabava de reconhecer debaixo
do Pavilhão Portugués.
A grande reputação , que elle
devia a estas ulcimas viagens , lhe
grangeou logo a gloria de ciar o
seu nome de Américo ás partes septentrionaes
do Brazil: mas tendo
ao depois prevalecido so este ultimo
nome , elle teria sido despojado
de huma gloria justamente adquirida
, se os Geografos da Europa
Do Brasil. i j
Jíão tivessem estendido seu nome
á totalidade do novo continente.
He assim , que o accaso , ou o capricho
deu ao navegante de Florença
huma celebridade , que não
Pertencia , se não ao navegante Gelvez
, seu illustre rival.
Authorisado pela Corte de Hespanha
, Vespucio se embarcou de
novo para o Brasil com Ianez Pin-
Çon , e João Dias de Solis , piloto
mdr de Castella : mas estes tres navegantes
conservarão tão pouca
harmonia entre si em todo o cur-
«o da sua expedição , que nãq fizer
ão outra coisa , se não fincar algumas
Cruzes ao longo da costa. Esta
navegação infructuosa foi assignal
ft da pela deplorável morte de Solis.
Tendo partido de Hespanha era
l 5!6» elle tinha sido o primeiro,
que entrara no porto magnifico dp
Rio de Janeiro , onde tinha tomado
posse da costa em nome do Rei
de Castella , mas sem se demorar;
e tinha continuado sua derrota para
Historiei
o Sul. Chegando á entrada de hum
grande rio , ao qual deu o nome
de Rio da Prata , não ousou metter-se
nelle com medo de naufragar
nos rochedos , e escolhos. Não
querendo com tudo voltar á Hespanha
sem ter tomado hum conhecimento
exacto do rio , costeou a
praia occidental, e descobrio logo
índios, que paredão convidal-o a
desembarcar , lançando por terra
suas armas, e seus ornatos , como
para lhe render homenagem.
Enganado por estas demonstrações
, de que elle de certo não
tinha motivo de desconfiar , desembarcou
sem precaução , e com Iturria
comitiva pouco numerosa. A*
medida que se avançava , os sel-l
vagens se retiravão: elles o mettêráo
assim em hum bosque , aonde
o navegante Castelhano não
temeu seguil-os quasi só. Apenas
entrou no bosque , quando hum chuveiro
de flexas o lançou por terra
morto com todos os seus compa-»
nlieiros. Os Índios despojarão os
Do Brasil. i j
cadaveres , atteárão hum grande
fogo na praia , assarão-nos , e os
devorárão mesmo á vista dos Hespanhoes,
que tinhão ficado na chalupa,
ou que tinhão podido fugir
para ella : estes cheios dc horror
Voltarão para suas embarcações , e
se fizerão outra vez á vela para
a Hespanha.
Tal foi o destino de hum dos
mais hábeis navegantes do seu tempo
, mas que não era dotado da
prudência necessaria para formar
liuma empreza colonial.
Instruído da viagem de Vespucio
, e de Solis, o Governo Portuguez
queixou-se á Côrte de Castellá
, corno de hum a infracção dos
seus- limites. Estas duas Potencias
quasi sempre rivaes , e com quem
o Papa Alexandre VI. tinha tão
liberalmente repartido as terras ,
que se descubrissem , pareciao reconhecer
esta linha de demarcação
para todos, excepto no que dizia
respeito a. ellas mesmas.
.Estafamosa linha excluia real-.
58
H istoria
mente os Portuguezes do novo continente
; e sendo todavia a terra
de huma forma esferica , huma linha
de demarcação , traçada de
hum só lado do globo , tornava-se
inteiramente illusoria. Assim á força
de interpretações o Rei de Portugal
chegou a fazer comprehender
o Brasil no hemisferio , que o
Papa Alexandre VI. lhe tinha assignado.
Os navios de Solis tinhão entrado
na Hespanha carregados de
páo Brasil. D. Manuel exigio logo ,
que as carregações lhe fossem entregues
, bem como as equipagens ,
que elle queria punir, como contrabandistas
, e fraudulentos. Estas '
representações não for5o inteiramente
baldadas. Carlos V. acabava
de subir ao throno de Hespanha , |
e queria viver em paz com Portugal
, para tornar sua ambição contra
todo o resto da Europa. Elie
prometteu á D. Manuel, que não
procuraria dahi em diante estabelecer-se
no Brasil juntamente com
k
Do Brasil.
os Portugueses, a quem o accaso
desde estes primeiros tempos parecia
procurar a posse exclusiva de
hum tão vasto império , cujo merecimento
o Monarcha Hespanhol
sem duvida não conjecturava.
Assim logo que, tres annos ao
depois, Magalhães tocou o Rio de
Janeiro , não comprou aos Brasileiros
, se não viveres , para não
dar a D. Manuel motivos de queixas.
Entretanto o consummo lucrativo
das carregações de páo brasil ,
que Vespucio tinha importado , fez
lembrar logo a alguns especuladores
o emprehender este commercio ,
c empregar nelle navios mercantes
: seu fito era unicamente me-
Iborar em huma terra virgem hiiproducção
, que se fazia preciosa
ao commercio. Estas expedições
parciaes se mnltiplicárão , e
appresentou se em qualidade de interpretes
, de agentes, e de correspondentes
hum grande numero de
aventureiras, que forão voluntária-
i j
6o
Historia
mente habitar em hum paiz delicioso
, e abundante, onde se podia
gozar de hurna independencia
completa , entre selvagens , que
pela maior parte se mostrárão lo-'
go hospitaleiros. Estes primeiros
colonos" não forão os únicos. De
tempos a tempos o Governo Portuguez
fazia partir para o Brasil hum ,
ou dois navios carregados dos maiores
criminosos do reino. l?to era
hum meio cle fazel-o? em certo modo
passar debaixo do tropico pela
condemnação , que parecia , qutí
se lhes perdoava na Europa; porque
estes homens , condemnados
pelas leis, se mostrárão sem alguma
attenção para coin os naturaer
do Brasil; e estes abrindo em fim
os olhos sobre o perigo da escravidão
, que os ameaçava , se puzerão
em defeza por toda a parte.
Deste modo as primeiras relações
dos malfeitores Portuguezes com osselvagens
do Brasil forão inteiramente
fataes aos Europêos, e aos
indígenas. Aquelles, por isso que
Do Brasil.
erão depravados, perderão o sentimento
de horror , que os sacrifícios
humanos dos cannibaes lhes tinhão
feito experimentar ; e estes deixár
So logo de ter para com homens,
Çue elles tinhão julgado de Imma
Natureza superior , aquella venera
Ção , que poderia ter redundado
c m sua utilidade , conduzindo-os á
hum estado cie maior civilisação.
Por tanto , durante o reinado
de D. Manuel , as expedições ao
Brasil não tiverão por objecto , se
não pesquisaçóes , verificações , e
tentativas; e o Governo Portuguez
«ão enviou á sua nova possessão ,
se não forçados, e mulheres depravadas.
Os navios, que executavão
es ta especie de deportação , não
erão carregados, quando volta vão
para a Europa , se não de papagaios
, macacos, e madeiras de tintas.
^Posto que estas madeiras se tinhão
tornado hum dos primeiros
objectos do comraercio do Brasil ,
»s Portuguezes esta vão com tudo
i j
6o Historia
bem longe de encontrar então nas
producçòes desta immensa colonia
O cego attractivo, que as riquezas
da índia offerecião incessantemente
á sua cobiça. As emprezas as
mais illustres , os successos os mais
rápidos , as conquistas as mais brilhantes
absorbião , por assim dizer ,
no Orienre todos os votos , e todai
as esperanças da nação Portugneza ,
em quanto no Novo Mundo a incerteza
, e os perigos se appresentavão
á cada passo. Aquelles, que
erão para ahi transportados, não
podião se empregar , se não em huma
penosa agricultura , e na defeza
dos seus dias; e a maior parte
delles considerava esta viagem , como
hnma especie cle castigo infligido
á criminosos: não admirava
pois , que os Portuguezes não abrissem
os olhos mais sedo sobre as
vantagens reaes, que o Governo
affectava desconhecer.
Tal era ainda a situação do
Brasil vinte annos depois de descuberto
, quando D. Manuel, depoi«
Do Brasil. i j
hum grande reinado , terminou
su a gloriosa carreira , chorado como
o pai de seu povo , o amigo
das scitncias , e o protector da navegação.
Seus designios dignos de honra ,
é a prosperidade , que sempre os
acompanhou, lhe grangeárão o appelliclo
ele Affortunado. Foi com
effeito no seu reinado, que a India
se fez realmente tributaria a Portugal.
As conquistas de AfFonso
de Albuquerque ; os brilhantes estabelecimentos
, que forão as consequências
delias ; o commercio tão
rico , como differente , cujas fontes
elles abrirão á nação ; a immensa
extensão dos paizes, que forão subm
ettidos aos Portuguezes ; suas
possessões firmadas desde Ormuz
a té á China ; sua influencia no resto
das tres partes do mundo ; a descuberta
em fim de hum novo continente
> c «ja existencia parecia manifestar-se
para augmentar sua gloria
; taes íorão os grandes acconteciraentos
, que fi¿€rá© notável
64
H istoria
este reinado para admiração rival
dos contemporâneos, e para assombro
da posteridade.
Até esta época o merecimento
da desenberta do continente Brasiliense
tinha sido quasi desconhecido.
Occupado exclusivamente dos
negocios da Índia, Portugal pensava
pouco em hum paiz , onde os
producios , e as vantagens devião
provir muito menos do commercio ,
que da agricultura. Erão unicamente
as permutações , e o commercio
, que os Port11gue7.es procuravão
com tanto ardor, quanto os
Hespanhoes tinhão pela desenberta
das minas de oiro , e prata. Por
tanto o Brasil perseverou ainda
aberto ás outras nações da Europa
nos primeiros annos do reinado de
D. João III. , filho , e snccessor de
D. Manuel. Mas este Príncipe não
pertendeu todavia renunciar aos
frUCtos que elle não julgava impossíveis
de colher. Posto que mais
religioso , que politico , elle se occupou
essencialmente na prosperi-
Do Brasil. i j
dade das suas colonias , e principalmente
cio Brasil. Tranquillo sobre
as pertençóes cia Hespanha,
depois que terminara suas desavenças
com esta Potencia por meio de
s eu casamento com a irmã de Carlos
V. , elle não tinha que temer,
s e não a rivalidade dos Francezes ,
que já se mostravão sobre os mares
do Brasil com a intenção de
terem parte ao menos nas vantagens
, que esta nova descuberta
parecia offerecer. A Côrte de França
não tinha reconhecido a validade
da repartição das duas índias
entre Portugal , e Hespanha; e
armadores Normandos tinhão começado
a tempo a fazer emprezas
re motas , ou antes a exercitar huma
espécie de pirataria nos navios
•Portuguezes , que voltavSo da índia
carregados das riquezas do 0riente.
As expedições dos Francezes
ao Brasil tiverão hum caracter
mais honroso: elles procurárão estabelecer
relações amigaveis com os
ftaturaes , e procurar madeiras de
Tom. I. E
66
H istoria
tinta por meio de trocas sem alguma
violencia, nem vexações. Atemorisado
por esta concurrencia ,
D. João III. mandou fazer representações
por seu Embaixador em
Pariz: ellas não forão attendidas,
sendo a Potencia de Portugal muito
fraca para se fazer respeitar na
Europa. D. João III. resolveu-se
então a tractar como inimigos todos
os navios , que fossem encontrados
nas suas possessões da America.
Em consequência enviou huma
frota ao Brasil , commandada
por Christovão Jacques, muito hábil
navegante , que por instrucções
do Rei estava encarregado de
examinar de novo a costa , de excluir
os Francezcs, e de marcar os
pontos convenientes para levantar
feitorias , ou estabelecimentos estaveis.
Christovão reconheceu povoa' j
çóes novas, e novos povos: vísi'
tou sobre tudo a famosa Bahia .
que elle dedicou á Todos os Santos.
e cuja extensão, e importancia fí-
Do Brasil. i j
zerão no futuro dar este nome á
Metropole de todo opaiz. Dois navios
Francezes alii tinhão entrado
dois dias antes; e o Commandante
Portuguez , explorando as sinuosidades
, e portos deste immenso golfo
, descubrio estes navios em bum
delles , e os quiz aprezar, como
contrabandistas: elles quizerão resistir
, mas em vão ; Christovão
metteu-os ambos á pique com a
carregação , e equipagens. Estabeleceu
ao depois , porém mais lone
, ao Norte do continente na
arra da ilha de Itamaracá a primeira
feitoria Portugueza ; e voltando
a Lisboa , confirmou pela reação
da sua navegaçao as esperanças
, que D. João III. começa
a conceber relativamente ao Brasil,
•t-ste Principe applicou toda a sua
atenção á huma tão importante
colônia, edividio-a em muitas províncias,
e propoz-se a distribuil-as
com os fidalgos, ou nobres os mais
denodados do seu reino, com condição,
de que; elles se encarrega-
68
H istoria
rião de as submetter , e de as colonisar
em nome de Portugal. Esta
distribuição de terras com o titulo
de dominios , assim quanto á cultura
, como quanto ao senhorio feudatario
, devia estender-se á cincoenta
leguas de costa para cada
hum dos concessionários, accrescentando
accidentalmente, o que
pudessem adquirir de mais no interior.
A applicação ao Brasil deste
systema de concessão, posto já em
uso por D. Manuel, foi a fonte,
e a origem dos primeiros estabelecimentos
, que regularão em fon a
colonia em utilidade daMetropòle.
Mas antes de entrar nestas exposições
históricas, lie necessário ,
que nós façamos aqui a descripção
do paiz , cuja historia temos emprehendido';
o quadro da sua situação
, logo que foi descuberto ; o
dos costumes dos seus habitantes
naturaes com a posição respectiva
das differentes povoações Brasileiras.
LIVRO TERCEIRO.
Estado do Brasil na. época da descubería.
Descripyõo geral desta
vasta região. Caracter , costumes
, e usos , numeramento ,
e descripç-ão geográfica das povoações
Brasilienses.
1500. — 1521.
O Nome de Brasil, que não foi
c 'ado logo, senão á huma parte das
c ostas marítimas desde a embocadura
do Amazonas até o Rio de S.
Pedro , se estende hojfe á todas as
possessões Portuguezas da America
Meridional. Confinando á Este com
o Oceano , e á Oeste com o Perú,
esta vasta região parecia dever-se
comprehender para sempre de Norte
á Sul. pelos dois grandes rios odas
Historiei
Amazonas , e o cia Prata. Por elles
se marcavão ao menos seus. limites
naturaes: mas suas fronteiras, posto
que determinadas por diversos
tractados, não tem hoje limites,
principalmente para o Norte , depois
que o interesse , e a politica
não reconhecêrão nem pacto , nem
equilibrio.
O Brasil desde o Amazonas,
qttast debaixo do Equador na decima
parallela de latitude do Norte
até o rio da Prata aos 35 gráos
de latitude meridional , se estende
em longitude á perto de nove cenias
leguas communs : sua maior
largura de Este á Oeste he de perto
de sete centas leguas, e contém
na superficie exterior mais de dois
quintos da America Meridional. As
praias y e as sinuosidades do mar
lhe dão mais de duzentas leguas
de costa.
Observado do mar este continente
ao chegar á elle , parece de
longe elevado , agreste , e desigual:
mas de perfo nenhum aspecto do
Do Brasil. i j
mundo lie mais pictoresco , nem
mais admiravel : suas eminencias
são cubertas de bosques magniíicos,
e seus valles são de huma verdura
eterna.
O interior do Brasil não he ,
por assim dizer, se não liuma immensa
floresta; mas o centro he
formado de hum vasto terreno da
America Meridional, que he como
a bacia , ou base centrai do paiz ,
e que lie conhecido debaixo do nome
de Campos Pare xis , ou Planícies
de Pareais , assim chamado
de huma nação índia que o habita.
Esta vasta região , que se estende
de Oriente â Occidente, he
cuberta quasi por todas as partes
de terras leves, e de montões de
arêas, que de longe por effeito de
suas ondulações parecém-se com as
vagas do mar. O solo he friável;
tão arenoso , que as tropas de machos
, e as caravanas se subterrão ,
e dificilmente abrem caminho: elle
não mostra de huma, e outra parte
, se não huma erva rasteira com
72 H istoria
o tronco delgado , de hum pé de
altura , cujas folhas pequenas , e
redondas tem a forma de lancêtas.
Este immenso terreno de arêa se
encontra como enterrado para o
centro , e para o cume das cordilheiras
de montanhas do mesmo nome
, reputadas as mais altas do
Brasil, e que se estendem á huma
longitude de mais de duzentas léguas.
He esta a grande arca , donde
sahem não só todos os rios , que
desaguão no Amazonas, 110 Paraguay
, e no Occeano Meridional ,
mas também muitas correntes , que
produzem oiro, e outras, que correm
por hum terreno semeado cle
diamantes.
Ao Sudoeste o Paragaay , o
Marone , o Guarupe' , o Madeira ,
e mais de Kinta rios , que nelle
misturão SURS aguas, formão como
hum largo canal de perto de
500 léguas de circuito ao redor do
Brasil. Estas correntes immensas o
separão das províncias Hespanholas,
e lhe servem , como de baluarte
Do Brasil. i j
interior. Ahi são as partes centraes
da America Portugueza, tão ricas
por tantos thesoiros descubertos ,
oti ainda occultos no seio da terra ,
reservatório natural de tantos rios,
que se subdividem em canaes innumeraveis,
e offerecem aos possessores
do Brasil caminhos fáceis
para penetrar até o interior do
Per ii.
A principal massa das montanhas
se encontra ao Norte do Rio
de Janeiro nas cabeceiras dos tres
grandes rios S. Francisco , Paraná,
e Tocantins. Nellas não só lie
abundante o ferro , e o cobre , mas
também encerrão ricas minas de
°iro , e de diamantes: achão-se
também topázios, safiras , turmalin
as , cymophanes, e differentes
espécies de crystal derroca.
Deste gruppo de montanhas elevadas
se prolongão diversas cordilheiras
parallelamente ás costas do
Norte com o nome de Serra das
Esmeraldas , Serro do Frio. Partindo
outra ramificação do mesmo
74
H istoria
centro, segue huma direcção similhante
para o Sul: terceira cordilheira
com o nome de Matto Grosso
se encurva ao Noroeste até o terreno
central , dividindo suas aguas
entre os rios , que de huma parte
se perdem no Paraguay , e Paraná
, e da outra no Tocantins, e
Chingú.
Entre o Pará , e o Paraguay
estende-se de Norte á Sul huma
cadê a de montanhas muito extensa
, chamada Amambahy , que terminando
ao Sul do rio I guatimy ,
fôrma de Leste á Oeste outra cadêa
chamada Maracayer.
Outros differentes grnppos menos
conhecidos cingem o rio Tocantins
, e seus affluentes em longo
espaço , além da ltiapaba , huma
das cordilheiras de montanhas as
mais consideráveis do Brasil, que
se estende para a costa septentrional
entre o Maranhão , e Pernambuco.
Poucos paizes no mundo são
além disso banhados , e vivificados
Do Brasil. i j
com tanta profusão. O maior de todos
os rios, o Amazonas , que nasce
no Perú no seio das mais altas
montanhas da terra , entra á Noroeste
pelo território do Brasil, engrossa-se
com o Rio Negro , cujas
innundações o tem íeito comparar
á hum mar d'agua doce; com o
Mio da Madeira , ou Rio dos Bosques
, cujo curso he de mais de
700 léguas; com o Tapajóq , que
vem das alturas centraes , ou Campos
Pare xis , e cujo curso he cle
trezentas léguas ; e em fim com o
Chingú , que desce dos lados de
Matto Grosso. Este rio forma hum
dos mais bellos ramos do Amazonas,
no qual elle vê-se outra vez reunido
, depois de hum curso de mais
de quatrocentas léguas, interrompido
por muitos saltoáâ Suas margens
cubertas de impenetráveis bosques
são habitadas pjr índios indomáveis.
A maior parte destes rios do
interior são pertencentes ao continente
Brasiliense , correm com ra-
76
H istoria
piclez por terras inhabitadas , que
elles muitas vezes innundão , e acabão
augmentando as aguas do immenso
Amazonas , que não tem
menos de mil , e trezentas leguas
de curso.
Sobre este grande rio as tempestades
são tão perigosas , como
no mar largo. Suas margens não
appresentão de todos os lados , se
não huma vasta planicie pantanosa
, e na sua barra de doze leguas
de largura elle servia de limites naturaes
ao Brasil.
Rival do Amazonas , e augmentado
com as aguas do Araguaija ,
cujas margerts são povoadas por
-muitas tribus guerreiras, o Rio dos
Tocantins , magestoso na sua ori-
-gem , banha o Brasil no espaço de
quinhentas 'iegúa-s de Sul á Norte.
Suás ribas 9®o guarnecidas cie montanhas
, e bosques: na sua origem
numerosas catadupas indicão bastante,
que elle abre seu curso ao
través dos valles, e dos precipicios.
Mas reunido no Araguaya comi*
Do Brasil.
nua seu curso em lium leito commtira
, offerecendo a immcnsa vantagem
dehuma navegação não interrompida
desde a sua barra até
o centro do Brasil; barra , que estando
visinha á cio Amazonas , vem
misturar suas aguas por hum braço
de communicação com a vasta
corrente daquelle grande rio. A
agua , e a terra parecem disputarse
o clominio destas regiões , alternativamente
seccas , e alagadas.
Todas as costas circumvisinhas
são terrenos baixos , paludosos, ou
lodentos, formados pelas alluvioes
reunidas do Amazonas, do Tocantins
, e do Occeano : nenhum dique
, nenhum recife demora a violência
das ondas , e das marés«. Com
tudo bancos de arêa , e ilhas meio
submersas fechão as Vjanas destes
dois rios, que precip.vkmdo-se ambos
no Atlântico , cle .kodo differtnte
da corrente commum lutSo com as
vagas do Oceano ; porque nas marés
grandes o mar com a rapidez
das ondas reunidas produz lvuma
i j
78
H istoria
especie de fenomeno periodico chamado
Pororoca pelos Portugueses,
e pelos índios. Nada então se pode
oppôr ao Ímpeto das ondas do Occeano
, e dos dois rios , que se misturão
com estrondo. Hum ruido espantoso
annuncia , e acompanha
esta subita invasão : montanhas
d'agua doce se elevão , se abatem ,
succedem humas ás outras, e enchem
n'hum instante quasi toda a
immensa largura do canal. Estas
vagas espantosas saltão á praia,
arrancão grossas arvores , carregão
montões de terra, e submergem as
embarcações , que se oppõem ao seu
furor.
Desde a foz do Tocantins até
Pernambuco as costas desde Este
até Sul não tem 110 longo espaço
de perto de quatrocentas léguas outro
algum ri-o de dilatado curso. O
Maranhão ,«"(/ Rio Grande do Nor'
te, e o Paraíba, que desagua no
ponto o mais oriental, tem , lie verdade
, muito grandes barras e formão
na estação chuvosa torrentes,
Do Brasil. i j
de que os campos ficão innundados:
mas no tempo secco elles tem ape»
nas hum fio d'agua , e seu leito
serve de caminho aos naturaes do
Brasil.
Entre Pernambuco , e a Bahia
o Rio cie S. Francisco , que traz
a sua origem do lado das serras ,
que ficão ao Noroeste do Rio de
Janeiro , corre por hum terreno elevado
, e dirigindo-se ao Norte ,
volta circularmente á Este. Seu
curso de mais de trezentas léguas
he muitas vezes interrompido por
saltos.
Segue-se ao depois o Rio Grande
de Porto Seguro , até aqui mal conhecido
, e que sahindo rias montanhas
Pitnnquy , corre para o
Norte, ao depois para Este , quasi
sempre cercado de hurâ terreno rico
de madeiras preciosas, e de minas
de diamantes. %
Mais para o Meio dia misturase
nos mares cio Brasil o Paraíba ,
chamado do Sal , para distinção de
outros dois rios do mesmo nome: he
6o
Historia
notável pelo seu curso de mais cie
cento ecincoenta léguas, paraiello
ao mar, de que elle he separado
pela cordilheira de montanhas, que
formão o Cabo de S. Thome , e o
Cabofrio.
Desde estes dois cabos até a
3o.a paralella de latitude meridional
não desagua no Occeano algum
outro rio considerável , não fallando
no Rio Real , e no Rio Doce ,
que correm de Oeste á Este. Nestes
lugares quasi todas as aguas
correm para o interior , e se lanção
no Paraná , ou no Uraguay ,
os quaes ambos nascem das montanhas
centraes.
Não nos demoraremos aqui sobre
as particularidades naturaes do
Paraná ; porque a direcção do seu
curso o fafc. mais essencialmente
pertencer afr Paraguay , que ao
Brasil. V,
Toda a costa oriental não appresenta
, se não huma multidão
de bailias, e de promontorios. Entre
estes osprincipaes são Cabo de
Do Brasil. i j
Santo Agostinho em nove gráos
de latitude; o Cabofrio aos vinte
e cinco ; o de S. Vicente , o mais
meridional de todos.
A Bahia mais vasta he a de
Todos os Santos , cuja inteira descuberta
os Portuguezes devem ao
Capitão Jacques, terceiro navegante
do Brasil: ella terá , bem como
a barra magnifica do Rio de Janeiro
, sua descripção particular no
decurso desta obra.
As costas septentrionaes desde
o Pará até Olinda são semeadas
de recifes, e de ilhotas, nas quaes
se quebrão as vagas do Oceano ,
e que appresentão muitas vezes a
figura de hum molhe natural , que
se prolonga paralellamente pela
costa.
Ao vigésimo terceiro gráo de
latitude meridional com^ão em pouca
distancia de Porto Seguro os famosos
cachopos chamados Abrolhos,
que se estendem longe , e fazem o
terror dos pilotos. Ahi se descobrem
muitos canaes estreitos , por
Tom. I. F
6o
Historia
onde os navios podem navegar , mas
não sem grande risco.
O Brasil, situado inteiramente
debaixo da Zona tórrida ; e em
hum clima menos ardente , goza de
vantagens de muitos climas por esta Jr
duplicada situação: deste modo o
solo nelle he favoravel á quasi todas
as producçóes do globo. Em
huma tão vasta extensão as estações
, e a temperie offerecem precisamente
huma muito grande variedade.
Os calores nas visinhanças
do Amazonas são mitigados
pela humidade natural de suas ribas
paludosas. Remontando as origens
dos rios encontrão-se planícies
elevadas, ferteis valles, que gozão
de hum clima saudavel , e temperado
, principalmente em Minas
òeraes, Villa Rica , e S. Paulo.
Nestes paiass hum benigno calor
permitte aoKructos da Europa o
¿acerem entre as producçóes da
America.
Xal he também o clima da grande
ilha do Maranhão , que pertence (
Do Brasil. i j
ao Brasil , onde as quatro estações
se confundem, e aterra está sempre
florida , e as arvores sempre
Verdes. A abundancia de orvalho ,
a sombra dos bosques, e a frescura
deliciosa das noites formão huma
primavera perpetua.
Mas o frio he sensivel na extremidade
meridional do confinente
Brasiliense na costa de S. Vicente.
Ahi se achão as altas montanhas
de Parnabiacaba , donde
parte huma multidão de fontes
límpidas , que dão mais frescura
ao ar.
O vento do Oeste , passando
por cima de vastos bosques pantanosos
, se torna por isso pestilente
no interior. Muitas vezes o calor
excessivo , que segue o curso
sol, enche a athmoí fera de partículas
ígneas , que v', oduzem effeitos
funestos: mas o ar maligno
se corrige algumas Vezes pelo cheiro
balsamico de huma grande quantidade
de ervas aromaticas , que se
ta» sentir ainda alguma» legilas
84
H istoria
distante da praia , e que he trazido
pelos terraes.
Do mez de Março ao mez de
Agosto a estação chuvosa reina
sobre as costas marítimas ; e na estação
secca sopra o Norte quasi
sem interrupção. Então o ardor do
clima torna languida a vegetação ,
e os oiteiros não appresentão mais,
que huma terra crestada.
Todo o resto do anno os ventos
do mar refrescão a athmosfera , e
tornão a dar á natureza sua força ,
e sua primeira actividade. Huma
primavera perpetua embelleza os
lugares sombrios , e húmidos: as
arvores appresentão simultaneamente
flores, fructos verdes, e maduros
, e quasi em todo o anno huma
agradavel frescura cobre a Terra.
Ò interior do Brasil não sendo ,
se não hurí; vasto bosque primitivo,
tem as arvores entrelaçadas de
silvas, de arbustos sarmentosos ,
de cipos , que as enleião até os
derradeiros cumes , e que pela maior
parte brotão flores magnificas.
Do Brasil.
Estas plantas formão hum golpe
de vista singular na pintura do
Brasil : ellas sobem ao redor das
arvores , chegão ao cume , tornão
a buscar a terra, lanção raiZes , e
subindo de novo , se vão perdendo
cie ramo em ramo , de arvore em
arvore por toda a parte, para onde
o vento as lança , até que todas
as arvores ficão enlaçadas pelas
suas latadas , e tornadas quasi impraticáveis.
Os macacos viajão por
meio destes labyrinthos selvagens *
e nelles se balanção pela cauda.
Estas cordas vegetaes são tão es*
treitamente unidas entre si , que
tem a apparencia de huma recle , e
que nem as aves , nem as feras podem
attravessar. Algumas são tão
grossas, como a coxa de hum homem
; to mão différente; configurações
, e se faz impor ùvel o quebral-as:
muitas vezevdão a morte á
arvore , que as sustenta : clahi vem
chamarem-lhe os Portuguezes , Ma*
tapaLos. Algumas vezes ficão em pé,
como Iúima columna torcida , depoi^
i j
Historia
que o tronco, que ellas tem matado
, rem espalhado suas túnicas.
Algumas ha, que sendo cortadas,
lanção huma agua fresca , pura , e
agradavel. Estas produzem-se nos
pântanos do paiz do Orenoque,
e nos lugares arenosos, onde sem
«ste recurso o viajante morreria
de sede. A. hera sobe também
ás grimpas das mais altas arvores
, e cobre o bosque de hum
gazão de cor verde a mais bri*
Jhante.
Os mangues vermelhos (*) cobrem
as costas do Brasil: pouco
distante começão as numerosas es*
pefies de palmeiras, entre asquaes
se distingue a murta Brasiliense ,
que brilha por ter a casca cor de
(*) Foi a'.palavra, que julgámos corresponder
á ftviçeza = Palulvier , a que
não achámos èui Diccionario algum ; e
julgámos assim ; porque lie o mangue a
arvore > que se encontra em mais abuiiflancia
nas marinhas do Brasil; e porque
a mencionada palavra parece derivada de
PJus
i
Do Bra^iU 57
prata ; O coqueiro do Brasil; mais
grosso , mais alto , que o das índias
, e cujo fructo dá huma excellente
manteiga ; e o pequiá , qua
produz hum fructo grosso , eduro ,
similhante na forma , e na grossura
á huma bala de canhão; he perigoso
estar exposto á elle , quando
eahe: seus desmarcados cálices, e
suas dilatadas pétalas se elevão em
pirâmides floridas , revestidas de
cores variadas , e de hum a s P ect0
brilhante.
Nenhum paiz do mundo fornece
madeiras tão preciosas para tintas
, para a marcenaria , e para as
construcçóes navaes. A oliveira „ e
o pinheiro ahi são particularmente
próprios para a mastreação. A çe»
rejeira , o cedro , a canelleira selvagem
, o cardo penteador , o páo
campeche , e o cajá ,'iiegão a sçr
postos em obra , e Imma vez. trabalhados
resistem por mais tempo
á acção do ar, e da agua. He no
Brasil, que se admirão estas arvores
gigantescas , que se elevão á
88
H istoria
altura de Ro pés , e cujas raízes
xodeião o desmarcado tronco muitos
palmos acima da superfície da
terra: madeira nenhuma lie mais
própria para fazer curvas de navios.
A mais bella de todas as arvores
do Brasil , e mesmo da America
inteira he a Acabaya : lie principalmente
notável, quando ostentando
toda a sua pompa no mez de
"Julho , e Agosto , e no Outono da
Europa , ella se cobre de flores
brancas , e rosadas; e quando nos
tres mezes seguintes se enriquece
dos seus fructos , suspensos nos
seus ramos, como outras tantas pedras
preciosas: sua sombra he espessa
, e agradavel; suas flores tem
hum estame suave , e seus ramos
exalão hum >|j:heiro aromatico : produz
huma ¿?\mma , que iguala em
belleza á do oenagal: ella he tão
abundante , que apparece na arvore
, como muitas gotas de chuva.
Esta arvore admiravel não he commuin
no interior das terras; mais
Do Brasil. i j
para as marinhas ella cobre paizes
inteiros , aliás estereis. Quanto mais
arenoso he o terreno , e menos húmida
he a estação , mais parece florescer
, e prosperar. Seu frueto
esponjoso , e exquisito tem alguma
similhança com as pêras da Europa
; porém heunais comprido , e cie
alguma forma diafano: sua polpa ,
reduzida em farinha lie para os
Brasileiros huma iguaria deliciosa.
A possessão de hum terreno , onde
a Acabaya cresce , e multiplica ,
lie de tal valor , que muitas vezes
tem sido causa cie guerras entre as
populações indígenas.
O ibiripitanga , que produz a
famosa madeira de tinta , conhecido
debaixo do nome de páo brasil,
ou cie Pernambuco , não he menos
, que a altura de hum carvalho
da Europa. CrescJ nos rochedos
, e nos terrenos áridos. Carregado
déramos, lie de ordinário de
hum aspecto pouco agradavel. As
folhas assemelhão-se com as do buxo
, e a cortiça he muito grossa*
Historiei
As flores, similhanteS ás do junquilho
, são de hum encarnado muir
to lindo. O pezo especifico do seu
tronco he indicativo da sua bondade
, relativa á tintura: tira-se
delle huma especie de carmim , e
de laca própria para as tintas fir
nas, e delicadas. Esta arvore preciosa
não se encontra, se não no
Norte do Brasil.
Tudo muda para o Sul: outras
producções se crião debaixo de hum
clima , que he mais remoto do tro*
pico , e mais temperado.
Bem como em todo o resto da
America a raiz da mandioca , e
dos fructos selvagens era a principal
nutrição dos indigenas, antes
que os Europêos nella tivessem cultivado
, ou naturalisado os inhames ,
o arroz, o r^ilho , o trigo, e quasi
todos os fritetos do seu clima. O
arbusto chamado mandioca não
cresce , se não nos terrenos seccos,
e não exige quasi cultura alguma.
Sua raiz inestimável he da grossura
de hum braço , e tem alguma ,
Do Brasil. i j
similhança com as cinouras da Europa.
Crua , ou frescamente tirada
da terra he hum veneno mortal ;
enchuta , reduzida á farinha , e em
pão he huma nutrição substancial.
Encontra-se em todo o Brasil a
bauniiheira , que se apega , como
a hera , aos troncos das arvores;
suas folhas são espessas, e de hum
verde escuro ; seu fructo consiste
em huma bagem triangular de seis,
ou oito polegadas de comprimento ,
cheia de pequenas sementes lizas.
Estimão-se principalmente as bagens
compridas, delgadas, e aromaticas.
Aibiripitanga dá hum fructo , que
se parece com as cerejas. Entre os
espinheiros, e nos campos abandonados
produzem as figueiras ds
Surinam. Nos suburbios da Bahia
cresce a arvore rnangaba, que de
algum modo suppre á Vinha; pois
que delia se tira huma especie de
vinho. O cacao7,eiro forma bosques
immensos ao longo do Chingú , do
Tocantins , e do Madeira. Òs cipós
mesmo , ou plantas, que trepão ,
9*
Historia
produzem em parte fructos agradaveis
, e sãos. O Brasil produz também
hum grande numero de plantas
aromaticas de diversas especies,
Suas producções botânicas sãoinnumeraveis.
Mão faltão nem flores de
ornato , nem plantas medicinaes.
O arbusto tão util , conhecido com
o nome de ipicacuanha , não se
acha se não no Brasil: sua flor he
hum a especie de violeta: he na
raiz, que residem todas as suas
propriedades. Sendo o Brasil situado
debaixo de duas zonas as mais
felizes , a tórrida , e a temperada , o
que falta em huma , a outra produz
em abundancia.
Com muito poucas excepções o
contiuente Brasiliense não tinha
originariamente arvores , plantas , a
nem fructo^, que não differissem
essencialmente das arvores , das
plantas, e dos fructos da Europa:
mas tudo , o que se tem transportado
, tem-se naturalisado com successo;
e esta observação geral pôde
estender-se aos animaesv
Do Brasil.
O tapirussú lie o maior
quadrúpede , que se cem encontrado
no Brasil: sua forma lie analoga
á do porco , posto que se approxima
á grandeza de huma vacca:
os Brasileiros o matão a tiros
de flexas , ou apanhão no em laços
; comem-lhe a carne , e da pelle
fazem escudos firmes.
Os bosques são cheios de animaes
vorazes , taes , como o tigre ,
o lobo-hyena , o saratú , que lie
pouco mais ou menos da altura de
huma raponza , porém mais selvagem
, e mais brava. Encontra se
também o jaguar espeçie de onça ,
animal de huma ferocidade temível
, o terror dos Brasileiros, e o
porco espinho , ou ouriço caixeiro
de grande especie , o qual , estando
irritado , lança suas pontas , ou
Unhas com tanta força 5 , que podem
ferir . e até matar hum homem.
Não se deve confundir com o ar-
(*) U rnpirussú !ie huma espere de
Alce.
i j
94
H istoria
maJilíiò; ofi tatá, ou porco armado
de coiraça , que enrola-se
como o ,ouriço , e appresenta de
toda? as partes huma saia de malhas
impenetrável.
Não ha paiz , mesmo na Asia ,
ou na Africa , onde os macacos ,
habitantes dos bosques sejão em
maior numero , e em mais differentes
especies , que no Brasil: mas
elles fogem das povoações , e não
habita o , senão lugares solitários.
Posto que o Brasil corresponda
em latitude ao Perii , e offereça em
geral as mesmas producções , não
possue com tudo nem o Lhamu ,
nem o vigonho , animaes tão úteis
aos Peruvianos. Elie lie todavia
assollado por hurn maior numero cie
animaes ferozes , por enormes ser- .
pentes , por, sapos, por lagartos , e
por mil insectos , que multiplicão
com o calor lnimido. He principalmente
nos vastos bosques dos interiores
, que se encontrão por centenas
novas especies de insectos
desconhecidos na Europa. Ahi se
Do Brasil. i j
ouvem os longiquos gritos da on•
ffl, especie de panthéra , que faz
grandes estragos : ella , e as serpentes
são o principal flagello dos
lavradores.
Além da grande cobra cascavel,
que corre tão veloz , que parece
voar , o Brasil produz outras ainda
mais terríveis, taes , como a
ihibohoca , tão notável pelo perigo
da sua mordedura , como pela belleza
das suas côres: a bojobi , chamada
cobra de fogo por causa do
vivo brilhantismo de suas escamas :
a giboya, reptil desmarcado , grossa
, como o corpo de hum homem ,
e algumas vezes do comprimento
de quarenta pés, cuberta'de escamas
, e de manchas irregulares ,
tendo o costado verdenegro , e os
lados de côr amarella escura. Tem
a cabeça chata , e sua grande bocca
tem duas ordens de dentes agudos.
Ella he armada de duas fortes
unhas na barriga para empolgar
a preza. OsPortuguezrs a chamSc
cobra cabril• porque devora
96
H istoria
o cabrito montez com huma incrível
facilidade. Sua força, e sua
voracidade são taes, que obrigada
da fome investe , e devora os homens
, os javaliz , e até os tigres.
Apenas seus olhos tem visto a preza
, parecem lançar vivas centelhas ;
sua língua fendida se agita na larga
bocca. Ella empolga a victima
com as unhas, prende-a fortemente ,
erodilha-se ao redor delia , cobre-a
de huma baba viscosa para devoral-a
com mais facilidade , e gasta
hum grande numero de dias em digeril-a.
Esta cobra colossal, e araphibia
gosta de habitar no lodo ,
e n' agua. He o terror dos índios,
e dos Portuguezes. Os negros mais
astufos atácão-na muitas vezes com
bom êxito , quer com espingarda ,
quer com arco , e flexa. Se o monstro
fica só ferido , agita-se de todos
os modos, despedaça as silvas , e
as arvores pequenas, assobia , fazse
vermelha , volve a cauda n'agua
com violência , cobre aquelles , que
o combatem de hum lodo infecto ,
Do Brasil. i j
e de nuvens de poeira misturadas
de Jodo , como em hum furacão. Se
o golpe he mortal, continua a torcei-se
, ea enroscar-se sobre si mesma
, até que hum dos negros , que
a cercão , approxima-se á ella , e
'arrostando ò perigo , lança-lhe ao
pescoço huma corda com laçada. Senhor
em fim do enorme reptil, e
tendo na mão a ponta da corda, o
negro sobe a huma arvore, iça o
monstro, que fica suspenso; desce
ao depois , e levando nos dentes
huma faca forte , e calçada de aço ,
une-se ao corpo do reptil , que enrosca-se,
e agita-se; e nú , e ensanguentado
aperta com os braços,
e pernas a pelle luzente do monstro
ainda vivo ; fende-o junto ao
pescoço , e o esfolla. Ao depois tira
huma banha clara , de que faz
azeite , e com seus companheiros
regala-se com a carne deste monstro.
Porém o mais perigoso de todos
os reptis deste continente he a ibiracuhá
, cuja mordedura produz
Tom. I. G
Historiei
inevitavelmente a morte. Tal he a
violencia do sen veneno , que no
mesmo instante o sangue da pessoa
mordida sahe pelos olhos, pelos
ouvidos , pelo nariz , e pelas partes
inferiores do corpo.
Por huma especie de compensação
os bosques do Brasil servem de
hum asylo natural á huma infinidade
de encantadoras aves , deseos
nhecidas do resto do mundo , de
lindas figuras, e brilhantes pennas.
Os papaqaios são os mais bellos
¿as duas Indias , e se distinguem
tanto pela variedade , como pela
viveza das cores, com que a natureza
tem ornado suas pennas.
O tucano, ave, cujo bico he
quasi tão grande , como o corpo , he
procurado principalmente por causa
do brilhantismo de suas pennas,
que são em. parte côr de limão , e
em parte vermelhas, côr de carne,
e negras nos encontros das azas.
Í , Ò Ramis chi , grande ave negra
i -que os Brasileiros chamão
ankiima , he notável pela forçai
Do Brasil. i j
com que grita , e por huma espe*
cie de corno , plantado nomeio da
cabeça á maneira de coroa. Sua?
azas são armadas de valentes espon
roes, que a fazem temível ás outra?
aves , quando as attaca : mas sen?
do semi-aquatico , não faz guerra,
se não aos reptis.
O guaranthe-engerá , especiç
de canario , que os naturaes chamão
teitei, tem as pennas metadç
azúes ferretes , metade de hura
amarello doirado brilhante , e iguala
o gorgeio das aves as mais melodiosas.
Os bosques do Brasil servem
também de asilo ao papa-mosca ,
tão elegante pela sua figura , e cujas
pennas brillião , como a esmeralda
, e o rubim. Levados do brí*
lho deste ligeiro habitante do ar,
os Brasileiros o chamão faio do soL
Contão-se até vinte e quatro especies
, ou diversidades depapa-mos-f
cas. O rubim-topaqio he assim
chamado; porque tem as cores, e
lança os resplandores destas pedras
G 2
,0o Historia
preciosas. O papamosca da espe«
cie pequena apenas tem quinze linhas
de comprimento. A maneira
das borboletas do nosso paiz , elle
se deixa levar pelo impulso do ar ,
e volteja de flòr em flor para lhe
chupar o mel. .
Tão brilhante, tão ligeiro , como
o papamosca , adornado , como
elle , das mais vivas cores , o beijaflor
, que não differe , se não em
«er hum pouco mais grosso , busca
igualmente o seu sustento no cálice
das flores. Hum mesmo instincto
os anima ; e tal he a sua sinnlhança
que não só viajantes, mas também
hábeis naturalistas os tem confundido.
.
Encontrão-se também no ínteiior
do Brasil muitos avestruzes ,
que não differem dos das outras
regiões : ( mas as grandes aves de
rapina , taes, como as aguias, e
cs abutres, são tão vorazes, que
não tem sido possível submettei
alguma delias á mão do homem.
Os mares do Brasil ab.undão de
Do Brasil. i j
peixes de toda a especie ; huns nadão
na superficie das aguas; outros
habitão ño fundo. Em nenhuma
outra paragem se encontra maior
diversidade delles. As baleias , os
golfinhos ahi apparecem em grande
numero. Junto aos famosos ca^
chopos cios Abrolhos ss pesca huma
qualidade de peixe simiHiante
ao salmão, e que se chama garoupa.
Os rios dão igualmente aos Brasileiros
huma prodigiosa quantidade
de peixes d' agua doce , que pela
maior parte offerecem huma nutrição
tão sã , como deliciosa.
Tal he o Brasil, com o qual a
natureza parece ter prodigalisado
seus thesouros. Nós descreveremos!
mais particularmente no decurso
desta obra cada huma de suas Provincias
, as ilhas, que .lhe pertencem
, suas cidades principaes , e
daremos hum quadro completo deste
vasto imperio tão pouco conhecido.
Os usos , e costumes de seus
,0o Historia
habitantes naturaes offerecem sobre
tudo hum vivo interesse á vista
observadora.
O Brasil no tempo da sua descuberta
era dividido entre muitas
nações , ou povoações différentes ,
liumas embrenhadas pelos bosques,
outras estabelecidas nas planícies
nas margens dos rios, ou nas costas
marítimas ; algumas sedentarias,
e muitas outras errantes ; estas encontrando
na cassa , e na pescaria
sua principal subsistência ; aquellas
vivendo mais que tudo das produc*
ções da terra mais , ou menos cultivada
; a maior parte sem communicações
entre si , ou divididas por
odios hereditários, e sempre armadas.
Não tendo ainda a civilisação
Europêa penetrado nos bosques »
e montanhas do interior , o caracter
primitivo destes povos ainda se
conservão fielmente.
Em quanto os índios fracos , e
dóceis habitavão huma grande par*
te da America meridional, selva-
Do Brasil. í2t)
gens intrépidos, e ferozes erravão
no paiz , que nds descrevemos. A
força corporea , e lium valor impassível
são ainda hoje as primeiras
, ou antes as únicas qualidades,
de que se gloreião os naturaes do
Brasil.
Na chegada dos invasores Eu*
ropêos mais c!e cem nações Brasil
leiras occupavão , ou disputa vão a
immensa extensão comprehendida
entre os dois rios , da Prata, e As
mazonas ; porém muitas d'entre ella3
não tem sido bem conhecidas : ten*
do suas transmigrações successivas
feito alguma confusão no testerai«*
nho dos historiadores , e dos viajantes
, não daremos , se não os
detalhes , que se tem acclarado melhor.
,
A grande raça dos Tapuyas i
amais antiga do Brasil , tinha possuído
, ao que parece, toda acosta
desde o Amazonas até o rio da Prata
; ou somente., segundo outros
huma linha no interior , paralella
á costa desde o rio de S. Francis^
fli40
Historia
co até Cãbotrio. Ella foi excluída
desta posse pelos Tupis , raça ainda
mais formidável, em huma época
pouco remota ; pois que na chegada
dos Europêos os selvagens se
lembravão ainda deste accontecimento.
Deste modo os Tupis erão
os senhores absolutos das costas
maritimas, quando Alvares Cabral
descubrio o Brasil. Da palavra Tupan
, que quer dizer trovão , e pai
universal elles tinhão dado por huma
vaidade barbara o nome á sua
nação. Esta palavra encerrava toda
a sua theogonía , porque elles
não dirigião supplicas algumas ao
Creador do mundo , que não era
para elles hum objecto nem de odio ,
hem mesmo de temor. Esta grande
raça continha deseseis tribus differentes
, que não estando unidas por
laço algum/, e tendo nomes particulares
, e feições distinctivas, formão
outras tantas nações separadas.
Entre os Tupis , com quem os
Portuguezes tiverão mais frequentes
relações, ou guerras, assigna-;
Do Brasil. 127 ^
lavâo-se os Carijós , situados ao Sul
de S. Vicente , e senhores então
da ilha de Santa Catharina. Os Tamoyos
, que habitavão os arredores
do Rio de Janeiro , se estendião
ao Sul para S.Vicente, e não reconhecião
por alliados, se não os
TujÀnambás , seus visinhos, com
quem elles se parecião em muitos
de seus usos. Os Tupiniq uins possuhião
o paiz de Porto Seguro , e
a costa dos Ilheos desde o rio Cainaum
até o rio Cricaré na extensão
de perto cle cinco gráos: de todos
os selvagens cia raça dos Tupis
erão elles os mais tractaveis, os
mais fieis, e os mais bravos: os
Tupinás , que erão seus visinhos ,
tinhão huma especie de conformidade
com elles. A Bahia , e todas
as suas enseadas acabão de ser conquistadas
pelos Tupiqambás , a
maior , e a mais valente nação da
raça dos Tupis. Os C a fie te s , tribu
selvagem , e feroz , rinha em
seu poder quasi toda a costa de
Pernambuco , da qual os Tabaja-
Historia
rás , cia mesma raça. que os Cahetés
, porém mais ferozes, occupavão
também liuma parte: em fim
os Pitigáres , os mais cruéis da
raça Tupica , possuhia o continente
do Parahiba cio Norte entre este
rio , e o Rio Giande; taes eráo
as principaes tribus da raça dominante
do Brasil.
A antropopliagia reinava entre
todos estes selvagens, que devoravao
emceretnonia comliurna alegria
horrível seus prisioneiros de
guerra ; mas todos os Brasileiros
não erão cannibaes; e era a raça dos
Tupis , que parecia ter trazido do
interior este uso homicida, que os
Portuguezes acharão estabelecido
em todas as partes da costa.
O idioma dos Tupis era também
ornais divulgado nella , posto
que se fallassem até cento , e cincoenta
linguas barbaras no Brasil:
segundo se diz , lie hum dialecto
do guaranis , olhado como huma
língua mãi, cia qual se encontrão
vestígios em huma extensão de setenta
grãos.
Do Brasil. í2t)
Antes de descrever a posição
geografica , e de appresentar o numera
mento das outras tribus Brasileiras
as mais notáveis , vamos
mostrar em hum quadro geral os
traços principaes , que podem fazer
conhecer os usos, e os hábitos
guerreiros da raça selvagem ,
que dominava no Brasil na chegada
dos conquistadores Portuguezes.
Mais similhantes á brutos, que
á homens , os Tupis não reconhecião
divindade, alguma ; ao menos
seus usos não indica vão coisa alguma
, que annunciasse este sentimento
consolador quasi universalmente
inspirado á especie humana:
elles não parecião ter a menor noção
da vida futura. Na sua linguagem
nenhuma palavra exprimia o
nome de Deos , nem a idéa , que
se forma do Soberano do universo.
Os signaes de admiração , e cle respeito
, que elles dirigem ao sol,
á lua, ao trovão , não tem caracter
algum de culto ; e occasionados
somente pela admiração, ou pelo
fli40
Historia
espanto . não se elevão , a meu ver,
ácima dos objectos creados. Mas
os sonhos, as sombras , o pezadello
, e o delirio tinhão produzido
superstições , que os a evinhos ,
ou payés fizerão ter credito entre
os Tupis. Os payés , ao mesmo
tempo charlatães, e sacerdotes , affirmavão
a existencia de lntm espirito
malfeitor , cuja perigosa influencia
elles se lisongeavão de impedir
; por tanto erão consultados
nas enfermidades, nos casos cie importancia
, e sobre tudo para a
guerra , e para a paz. A. grosseira
credulidade , que estes impostores,
obtém por movimento , e gesticulações
, paredão indicar , que aquel-
Ies , que os interrogao , os suppóe
em relação com as intelligencias
invisíveis , e á cima da humanidade.
Os Ti'pis attribuem com effeito
nos seus adevinhos não só opoder
de fazer as terras ferteis »
mas também o de inspirar aos guerreiros
a força , e a coragem, que
elles tanto aprecião.
Do Brasil. í2t)
Cada hum payé vive só em huma
cabana sombria, onde nenhum
selvagem ousa entrar: ahi se lhe
leva tudo o que elle pede ; e tal
he o seu império sobre os ânimos,
que se elle prediz a morte daquelle
, que o ousa offender , o desgraçado
, feito o objecto desta fatal
predicção , poe-se immediatamente
na sua rede , e espera o seu damno
com tanta resignação, que nem
come , nem bebe , e realisa assim
o anathema.
Todos estes povos dão liuma
côr vermelha na pelle , excepto
no semblante; ajuntão â esta tinta
geral algumas mesclas de còres
em muitas partes do corpo , e mettem
n* hum buraco, que fazem no
beiço inferior , liuma especie de
jaspe verde , que os faz deformes.
As mulheres não furão o beiço ,
porém os grandes furos , que ellas
tem nas orelhas , sustentão hum
enfio de pequenos ossos brancos ,
e de pedras de côr , que pendem
sobre as espaduas. Os homens ras-
Historia
pão cuidadosamente todas as partes
do corpo: elles considerão como
o principal caracter da formosura
o ter o nariz chato ; assim o
principal cuidado de hum pai he
dar e- c ta fôrma ao nariz de seu filho.
Nas suas guerras , ou nas suas
festas elles applicão por meio de
hum a untura de gomma , ou de
mel selvagem pennas verdes, vermelhas
, e amarellas á testa, ás
faces , e aos braços. As pennas
são tecidas com muita arte : cobrem
também com ellas suas maças. Os
chefes se distinguem por hum grande
collar de embrechado.
Estes Brasileiros tem muitas mulheres
, que tomão , e deixão com
a mesma facilidade: a única condição
do casamento he , quanto ao
homem , ter apr.sionado , ou morto
algum inimigo; quanto á mulher ,
ter tido os primeiros signaes doestado
conjugal. Antes de se casarem •
as raparigas se entregão sem pejo
aos homens livres : seus pais mesmo
as entregão ao primeiro ,
Do Brasil. í2t)
chega ; de sorte que não he pouco ,
que a ceremonia do casamento
que consiste em simplices promesl
sas, a -ache no seu estado de virgindade
: mas huma vez ligadas
pelos laços do hymenêo , são fieis
á seus maridos; e o adulterio he
horroroso entre os Brasileiros. As
mulheres se tornão escravas, seguem
seus maridos á guerra, e
carregão os fardos , e provisões.
Mais, ou menos reunidas , as
povoações destes Brasileiros varião
de forma, e de tamanho. De ordinario
são choças, ou cabanas, distribuidas
em povoações, chamadas
o Ideias. Os povos mais avançados
em civilisação construem e elevão
muros de barrotes , cujos intervallos
são cheios de terra.
A principal occnpação das mulheres
he fiar algodão para fazerem
redes , e cordas. Elias fazem também
vasos de barro , qne servem
para diversos usos , e principalmente
para guardar bebidas, e ali-
fli40 Historia
A raiz da mandioca he adiaria
nutrição destes selvagens , á qual
elles ajuntão outras raizes , que
móem , ou reduzem á pó , para fazerem
delia bebidas , ou alimentos ,
que tem mais, ou menos consistência.
A cassa , e a pescaria supprem
o resto das suas necessidades. Elles
se abstém em geral da bebida , quando
comem , e da comida , quando
bebem; especie de habito commum
á quasi todos os povos da America.
Menos sujeitos ás enfermidades,
e ás doenças , do que as nações
consummidas pela civilisação , e pelo
luxo , elles não prescrevem ás
suas doenças , se não huma dieta
absoluta , e alguns simplices de seus
matos, ou de seus montes. Se a
doença se torna incurável, quebrão
a cabeça ao enfermo ; porque seguem
esta maxima , que he melhor
morrer de hum só golpe , do que
soífrei por muito tempo para morrer
ao depois.
Seus funeraes se celebião com-
Do Brasil. í2t)
prantos , e com cantos lugrubes ,
que ordinariamente contém o elogio
do morto. Se este he algum
chefe de família , enterão-se com
elle suas armas, pennas , e collares
; e lie este o único signal, pelo
qual se poderia suspeitar , que,
a idéa da outra vida. não lhes he
absolutamente estranha. Enterrão
os mortos em pé; erigem algumas
vezes sobre a cova, como em signal
de huma distincção honrosa,
pedras cubertas cle huma certa planta
, que se conserva muito tempo
secca; e não se chegão á estes monumentos
fúnebres, sem darem gritos
, e derramarem lagrimas.
Elles no geral não tem Reis ,
nem Principes; a única superioridade
, que elles reconhecem , he a
dos seus anciãos , ou velhos directores,
que são principalmente encarregados
, quando se prepara a
guerra , de excitar com seus discursos
os moços á pegarem em armas.
Dão o nome de Carbets aos
seus concelhos: nelles nacla de im-
Tom. /. H
fli40 Historia
portante se decide , se não pe!a
unanimidade de votos.
O homicídio he o único crime,
que elles punem. Os pais do matador
o entregão aos do morto , que
affogão ao criminoso , e o enterrão.
Fuma reconciliação prompta , e
sincera entre as duas famílias segue-se
de ordinário á esta especie
de reparação , ou de represália *
sendo nisso bem differeUtes das nações
cultas da Europa , entre as
quaes os odios das íamilias são algumas
vezes hereditários.
Sem outras leis , que os seus
lisos , e seguindo quasi sempre o
dictame da natureza , os Brasileiros
possuem com tudo algumas virtudes
sociaes , e domesticas. Exercitão
, e respeitão a hospitalidade ;
•vivem pacificamente entre si ; não
abandonão Ifuns aos outros nas suas
enfermidades, como fazem muitos
povos da America , e são fieis á
seus alliados.
f Mostrão em geral esta inclinação
á indolência , e á ociosidade »
Do Brasil. í2t)
que caracterisão os selvagens meri*'
dionaes; e sém esta relação seu genero
de vida ern tempo de paz pareceria
anntinciar inclinações suaves
, e apathicas. Tal he a sua in-
- dolencia , que muitas vezes dormem
Vinte e quatro horas successivas ;
mas passando de hum á outro extremo
, entregão-se apaixonadamente
á dança , e aos exercícios violentos.
He sobre tudo nos combates ,
que elles manifestão sua activa , e
horrivel ferocidade: então he que
o refinamento de crueldade se transforma
em huma especie de virtude
guerreira. Elles excitão , e entretem
esta disposição , quer em seus
hábitos diarios , quer mesmo em
seus banquetes , onde cuidadosos'
de desviar qualquer outra idéa ,
conversão com calor á respeito de
seus projectos contra os inimigos,
e principalmente sobre o prazer ,
que elles esperão em os engordar
para os matar , e devoral-os ao depois.
H a
Historia
Raras vezes a guerra entre elles
tem outro motivo'além cia vingança
; e por isso mesmo muitas vezes
não será íacil determinar a causa
cias primeiras aggressões. A arma
principal dos Brasileiros he huma
massa . que elles chamão tacapa ,
feita da mais dura madeira , muito
pesada , redonda na ponta, cortante
pelos dois lados. Seu comprimento
he de seis pés com hiVm de largura
na extremidade , e a grossura
he de huma poiíegada. Elles tem
arcos, feitos igualmente de madeira
muito dura, ciue chamão visapariba.
As cordas destes são de
algodão fiado , e as fiexas são de
canna selvagem, armadas de fortes
espinhas, ou dentes de peixes. Servem-se
delias com huma destreza
singular , e jamais deixão de acertar
em huifta ave voando. Huma
espécie de corneta , que elles charão
imbia, e flautas , ordinariamente
formadas dos ossos das pernas
das suas victimas, são seus instrumentos
de musica.
Do Brasil. í2t)
Apenas he dado o signal da partida
pelos seus anciãos , quando
todos, os guerreiros era numero de
cinco , ou seis mil põem-se em marcha
, excirando-se por expressões as
mais enérgicas de vingança , e de
odio. Batem nas mãos, e dão grandes
golpes sobre as espadoas, e
prornettem não poupar suas vidas.
Se em algumas expedições elles se
embarcão , suas canoas , que não
são feitas, se não de cascas de arvores
, não lhes permittem alongarem-se
muito cla costa.
Chegados ao paiz , que elles
querem assolar , occultao-se com
cuidado ; porque muito poucas vezes
attacão á força descuberta : esperão
ao depois a noite para penetrarem
até as habitações", que surprendem
, e cercão , para lançarlhes
fogo : ao depois, 'aproveitando-se
da primeira confusão , comettem
toda a especie de crueldades.
Seu principal objecto he com tudo
fazerem prisioneiros, sem os quaes
sua vingança se não satisfaria.
5x8 Historia
i • '
Quando se vêm obrigados a combater
em campo descuberto , ajun<
tão-se , formão huma especie de
batalhão , marchão apressadds, e
em cadencia , e algumas vezes suspendem
a marcha , para ouvirem
falias muito arrebatadas, que durão
horas inteiras. O ardor de combater
torna-se logo em hum furor
cem medida. Os dois partidos pro-j
curão-se , dando gritos horrendos ,
e uivos espantosos. Tocão suas coi -
jiêtas , estendem os braços, ameação-se
, insultão-se reciprocamente ,
mostrando huns aos outros os ossos
dos prisioneiros, que elles tem devorado.
Chegando á duzentos, ou
trezentos passos em distancia huns
dos outros attacão-se logo com fortes
tiros de íiexa. As pennas cie
que se tem cuberto , as que de suas
flexas saltão, das fileiras, espalhão
com os raios do sol hum tal brilhantismo
pela variedade das cores
, que seria difficil formar-se a
idéa de hum tão espantoso espectáculo.
Os guerreiros íeridos das
Do Brasil. í2t)
flexas arrancão-nas cia carne, quebrão-nas
, e as mcrclem com raiva,
e á medida da força , que lhes resta
, continuão a combater sem recuar
, nem voltar as costas hum sç>
momento. No calor da batalha elles
se servem cle suas massas, com que
dão golpes terríveis, e quasi sem»,
pre mortaes.
Logo que se decide a sorte do
combate , os vencedores atão os prisioneiros
com cordas , mostrando»
lhes os dentes , e movendo suas
massas , para que elles não duvidem
da sorte , que lhes he reserva»
da: mettem-nos ao depois no meio ,
e com esta preza entrão triumfau»
tes nas suas aldeias. Tractão-nos
logo com huma bondade apparente
, limitando seu cativeiro unicamente
ás precauções necessárias ,
para que elles não possão fugir:
até lhes dão mulheres , e cuidão
mais que tudo em os engordar bem.
Quando os vêm no estado de gordura
, que desejão , determinão 0
dia da sua morte. As mulheres pre-
fli40
Historia
parão os vasos de barro , fazem o
licor para a festa, e entranção a
mussurana , ou corda comprida
de algodão, que deve atar a victima.
Os principaes chefes corn o
corpo cuberto de gomma , e ornado
de pennas pequenas arranjadas com
arte , segundo suas côres; enfeitão
também com as plumas das pennas
a livarapema , ou massa , que ha de
servir para matar o prisioneiro. Todos
os*índios da aldêa convidados
para a ceremonia passão dois dias
inteiros em dançar , e beber com o
captivo mesmo , que parece não
fazer outro papel , se não o de
convidado ; e posto que certo da
sorte , que o espera , affecta distinguir-se
pela sua alegria. As mulheres
selvagens trazem a mussurana ,
lanção-na á seus pés , e a mais velha
d' entre£ ellas começa a canção
de morte , em quanto os homens
dão o nó no pescoço do prisioneiro.
A canção he alludida á esta acção
de atar a corda. „ Somos nós (can-
,, tão as mulheres selvagens) que
Do Brasil. í2t)
;; temos a ave preza pelo pesco-
,, ço : ,, e e carnecendo do captivo ,
que não pode escapar-lhes: ,, Se
tu (accrescentão ellas) fôras hum
papagaio , roubando os nossos
„ campos , tu terias voado. „ Então
muitos selvagens pegando pelas
pontas da mussurcina atão o captivo
pela cintura, e neste estado
o fazem passear como em Criumfo.
Elie com as mãos soltas não dá o
menor signal de abatimento , ou de
medo: ao contrario olha com fereza
para todos aquelles , que correm
a vêl-o passar; falia-lhes, lembra
as façanhas contra elles practicadas
, dizendo á hum , que matou
seu pai, á outro , que devorou seu
filho. Recommendão-lhe então , que
dirija os olhos ao sol ; porque não
o ha de ver mais: e he ateado logo
diante delle o fogosobre que
bem depressa os seus membros hão
rie ser estendidos. Chegada a hora ,
huma mulher traz dançando , e
cantando a lívarapema , ao redor
da qual se dançou , e cantou de-
fli40 Historia
pois de ter amanhecido. O executor
apparece então com quatorze , ou
quinze de «eus amigos, ornados para
a ceremonia com gommas , e
pennas. O que tem a massa , a ofierece
á personagem principal da
festa: nias o chefe da tribü , depois
de a ter tomado , a passa muitas
vezes por entre as pernas com
grandes gestos do costume, e a
dá ao executor , que avançando com
seus amigos, declara ao captivo,
que se lhe dá, antes que morra,
a faculdade de se poder vingar por
si mesmo. O captivo entra então
em furor , apanha pedras , e as
arremeça contra tudo , que o cerca:
mas logo caminha para elle com
a massa na mão , e preparado com
suas mais bellas pennas , aquelle ,
que o deve immolar. Hum enfadonho
dialogo, se fôrma entre elles. O
sacrificador, como vingador de seus
companheiros, pergunta ao captivo,
senão he verdade , que elle tem
dado á morte, e devorado a muitos
prisioneiros da sua tribu: estç
Dg Brasil. í^â
gloreia-se de fazer huma prompta
confissão , ainda acompanhada cie
ameaças. " Dá-rpe a liberdade (diz
,, elle) e devorarei a ti , e aos teus.
'„ — Está bem (replica o outro) nós
„ te previniremos. Eu te vou ma-
„ tar; porque tu , e teu povo tens
„ morto , e cleyorado muitos de
„ meus irmãos; e tu o serás hoje
,, mesmo. „ O çaptiv.o responde :
„ Esta lxe a sorte da vicia: mas
j, meus amigos são numerosos , e
,, me vingarão. „ Ergue-se logo
a massa ; e o cannibal Brasileiro ,
menos cruel, que os cannibaes do
Norte da America , quebra com
huma só pancada o cerebro da sua
victima. As mulheres lanção-se -ao
depois ao cadaver , despedação-no
com pedras cortantes , e esíregão
os filhos com o sangue. As mais
velhas limpão as entranhas, que
são assadas , e comidas no campo ,
bem como as diversas partes do corr
po. Durante este abominavel festim
os veliios exbortão os moços a
procurarem outros similhantes por
fli40
Historia
suas emprezas guerreiras; e não se
sabe , o que em toda esta horrível
festa deve causar maior admiração ,
se a engenhosa barbaridade cios
algozes, ou se a coragem exaltada
das victimas.
Estes Brasileiros , apezar da espantosa
inclinação , que os obriga
a nutrirem-se de carne humana tão
deliciosamente, não devorão , se
não os prisioneiros , e seguindo sempre
a especie de ceremonial , que
acabamos de descrever. Não se tem
visto , que elles devorem os mortos
no campo da batalha.
O uso commum clelles he amontoarem
nas suas aldeias as cabeças
dos prisioneiros , que forão devorados,
e mostrar com orgulho aos
estrangeiros estes monumentos de
suas façanhas , e de sua vingança.
Recolhem com o mesmo cuidado os
ossos mais grossos das co.vas, e dos
braços, para fazerem flautas, como
já dissemos , e principalmente
os dentes, que enfião em forma de
rosários, e pendurão ao pescoço.
Do Brasil. í2t)
Elles geralmente meclem a sua
gloria pelo numero dos prisioneiros
, que tem feito ; e tem hum
grande cuidado no dia mesmo , em
que ganhão alguma vantagem na
guerra , de fixar a memoria por
differentes incisões de formas diversas
, de que elles cobrem os braços ,
as coxas , o peito , e outras partes
do corpo.
Taes são as acções as mais gefaes
, que caracterisão a raça Brasileira
dos Tupis. Os costumes destes
povos se assemelhão em muitas
coisas aos de outras nações selvagens
do Brasil, mas todavia coin
differenças assas notáveis.
Os Guay anafes , e os Guayjacarés
, que possuião as planícies
do Piratininga , e as circumvisinhanças
de S. Vicente, differião
essencialmente das tribus dos Tupis
em não serem antropophagos.
Perto de oito léguas em distancia
ria Bahia habilão no interior
os Maraqués , qufe andão nús; porém
as mulheres trazem huma es-
ílistoria
pecie de avental: elles pescãó com
redes, uso ignorado pelos Tupis:
formaváo as redes de huma casca
de arvore comprida , e flexível , dá
qual parte se mettia n'agua , em
quanto a outra parte se tirava. Os
Maraqués conheciSó também o uso
de cavar a terra com encliada , de
fazer ferver as cinzas , e de tirar
delias os saes crystalisados.
Nas regiões centraês , e junto
ás margens do Syputaba , que desagua
no Parac/uay , encontra-se
a nação Brasileira dos Barbados ,
assim chamados pela grande barba ,
que os distingue tão particularmente
dos outros povos Indiaticos.
As costas de Porto Seguro , e
das Capitanias vizinhas tinhão sido
possuídas pelos Papana r /res , que
ácabaváo dé ser affugentados pelos
Goytaca^es, e Tupiniquitís depois
de longas guerras. Com tudo
a linguagem do? Papanaqes era
apenas entendida de seus inimigos
naturaes. Elles erão cassadores, e
Do Brasil. í2t)
pescadores, e dormião na terra
Sobre folhas.
Banidos para o Norte do Brasil
, de que tiuhão sido tanto tempo
os dominadores, os Tapuyas se
distinguião dos outros indígenas
por huma estatura alta , cabelítiS
negros, e compridos , pela côr do
rosto morena escura , e por huma
força prodigiosa. Seu nome significa
os inimigos : são assim chamados
do estado da guerra actual ,
em que estavão contra todos os naturaes
, e uiísmo entre si. De todos
os Brasileiros são estes os menos
cruéis; porque não dão á morte a
algum dos seus prisioneiros. São
com tudo canilibaes ; porém em lugar
de devorar seus inimigos , por
hum sentimento irresistível de odio ,
como os Tupis , elles devorão seus
proprios mortos, como huma derradeira
prova de affeição. Logo que
hum filho morre , lie comido por
seus pais; e se lie adulto , a família
inteira toma pWe no festim.
Bem como os Árabes , os Tapuyas
Historia
passão huma vida vagabunda ; mai
com esta differença , que elles se
conservão em limites particulares ,
e não mudão de habitações , se não
seguindo as différentes estações
do anno. Os cabellos cortados
em forma de coròa , e o comprimento
excessivo da unha do dedo
pollegar são os únicos signaes distinctivos
de seus chefes, ou Caci-
(jnés , que trazem também huma
especie de manto tecido de algodão :
lie trabalhado , como huma rede.,
ornado de pennas de différentes
espécies de aves ; ajuntão-lhe hum
capuz para cobrirem a cabeça. Mas
este vestuário de ostentação não
serve , se não nos dias de festas
publicas.
Na chegada do,s Portuguezes os
Tapuyas tinhão formado seus principaes
estabelecimentos , como os
Tabajarás , na Serra de Ibiapaba.
Contão-se entre esta raça de Brasileiros
perto de setenta e seis povoações
, todas., guerreiras, iodas
distinguidas por nomes différentes ,
Do Brasil. í2t)
e quasi todas espalhadas para ó
Paraíba do Norte, o Seará , e o
Rio Grande. Neste numero secomprehendem
os Guayaq que envenenão
suas flexas; os Jaboros - Apuyarés,
sempre errantes, e que
não tem por armas , se não bordões
queimados nas duas pontas ;
os Palies , que se vestem de lmma
túnica de linho eanhamo sem mangas
, e íallão huma lingua partiam
lar ; os Cuxaras , que habitão as
vastas planicies do interior ; os
Mandevés e os ¿Vaporás , que
exercitão a agricultura. Até as costas
maritimas, e perto da Bahia
de todos os Santos se encontrão ao
depois os Guigvõs, que tem também
seu idioma proprio ; e os Aratnitos
, que habitão nas cavernas ;
os Cancaire's , cujas mulheres tem
os peitos pendentes até as coxas ,
e vêm-se precisadas a atai-os guando
correm. No meio de todos estes
antrõpophagos os Campehós são
quasi os únicos ,M£lue não comem
carne humana; maVelles cortão a
Tom. I. I
fli40 Historia
cabeça á seus inimigos, e trazemna
atada á cintura. Distingue-se
também na nação dos Tapuyas os
Aquigiros , que por huma excepção
notável são verdadeiros pigmêos
; também os Europêos lhes
tem dado este nome: elles não são
com tudo nem menos valorosos,
nem menos robustos. Os Mariquitas
, que cobrião huma parte da
costa entre a Bahia, e Pernambuco
, e vivião nos bosques. De ordinário
atacão seus inimigos á força
descuberta: mas empregão tamjbem
a astúcia com hum successo,
que lhes assegurão a agilidade; e
destreza , de que são dotados. Suas
mulheres , de huma figura muito
agradavel, tem parte nas suas disposições
guerreiras. Os Mar gaiatas
, situados entre o Espirito Santo
, e o Rio de Janeiro, procuião
o ar livre , fogem dos bosques, e
não procurão suas cabanas, se não
para dormirem. Senhores do interior
das terras eltre a Bahia, e o
Rio Doce , os Â'y mares são de to-
Do Brasil. í2t)
cios os -indígenas os mais selvagens
, e os mais ferozes. Elles ,
bem como os seus alliados os Igicjracufos
, causão hum grande terror
pelo arrnido extraordinario ,
que fazem , batendo huns contra
os outros em bordões de madeira
sonora. Taes são as principaes diversidades
da grande nação dos Tapuyas.
Os Ovaitanhassés habitão os
arredores de Cabofrio entre o Rio
de Janeiro , e Paraíba do Sul: são
de estatura alta; deixão crescer os
cabellos , e não tem por camas redes
de algodão , como os outros
povos; deitão-se na terra sobre hum
pouco de linho caiihamo. Os maiores
inimigos dos Ovaitanhassés
erão seus visinhos os Outacaqes *
ou Goytaca^es , que se estendem
desde a planicie , á que dão o nome
, ao longo da riba srptemtrional
do Paraiba cio Sul até a margem
meridional do rio Xipotó nas
circumvisinhançasKde Villa-Rica.
Elles não clevorão seus prisionei-
I £
fli40 Historia
ros; e mais bravos, que os outros
Brasileiros > elles batião seus inimigos
em campo descuberto. Esta
nação, que cubria hum paiz de
perto de duzentas leguas, era inimiga
implacavel das outras povoações
Brasileiras. Não podia suppor-
«ar a idéa de captiveiro , nem tem
sido jamais subjugada ; e conserva
ainda presentemente sua independencia
em hum territorio menos extenso.
Quando não se julgavão os
mais fortes , fugião com a ligeireza
de cervos. Tudo , o que possuem ,
ile commum: vivem em huma especie
de igualdade: distinguem-se
pelo reconhecimento , fidelidade, e
união , que prestão hnns aos outros.
Seu cabello esparzido , seu
olhar feroz , sua porcaria asquerosa
os fazem a nação a mais deforme
do LfniVerso.
Os Onayanarés habitão a Ilha
Grande á desoito leguas da barra
do Rio de Janeiro. Elles tem a barriga
grande estatura pequena ,
são fracos , c frouxos , e por isso
Do Brasil. 133 ^
mesmo formão como huma naçã
í'34 • Historia
íeóes, e aos leopardos, que no antigo
continente espallião o terror
nos vastos bosques da Africa , e da
Asia.
Os Molopaques occupão hum
muito vasto continente além do rio
Paraiba do Sul. Elles se distinguem
dos outros Brasileiros por-costumes
mais humanos, posto que não tenhão
renunciado nem á guerra,
nem aos abomináveis festins , que
se lhe seguem. Tem grandes aldeias,
aio recinto das quaes cada família
habita em liuma cabana separada.
Suas terras contém minas de oiro,
que elles não tem jamais tido nem
vontade , nem meios de cultivar ;
mas apanlião , depois que chove ,
folhetas d'oiro, que achão nas torrentes
, e nos ribeiros, principalmente
junto ás montanhas. Deixão
crescer as barbas : cobrem decentemente
o corpo , para que nada
offenda a modéstia nos seus usos.
Não são polygamos , posto que suas
mulheres sejão^llas. Seu chefe ,
que elles chta&o Morotova , he o
Do Brasil. í2t)
niiico , que gosa exclusivamentaV
do privilegio de ter mais de huma
mulher. Não comem senão em horas
determinadas; e parecem ser
de entre es outros povos do Brasil
os menos apartados da civilisação
Europêa.
Mais longe encontrão-se os Lápis
, montanhezes, que se nutrem
de fructos. Esta nação lie numerosa
, feroz , de hum accesso difficil;
e seu paiz abunda em metaes,
e pedras preciosas.
Os Curumarés habitão huma
ilha de Araguaya. Elles chamSo o
Ente Supremo Aunim , e pronuncião
esta palavra com respeito. Os
G negues , Timbirás , Jeicós , e
Aucapuras habitão o vasto paiz
do Piaithy para a parte do Maranhão.
Os Guamarés , Arahís , e
Caica7.es avisinhão-se < ao Amazonas.
Na outra extremidade meridional
do Brasil perto de Matto Grosso
liabitão os Guacures , que são provavelmente
da r^jma raça dos
Guaycurts do Faragüay. Em fini
fli40 Historia
«aos vinte e quatro gráos de-latitude
austral entre o Rio Grande de
S. Pedro , e S; Vicente está o paiz
dos Carijós , os mais humanos cie
todos os selvagens do continente
occidental, e os que a civilisação
Europea achou mais accessiveis.
Convertidos facilmente á Fé Catholica
, fizerão-se auxiliares úteis aos
Portugueses contra outras muitas
nações dos índios , que estes conquistadores
tiverão de combater ,
e subjugar.
Aqui se termina , o que temos
colhido de mais averiguado á res*
peito dos diversos povos do Brasil.
No longo curso de tres séculos,
depois de tantas emigrações , ou
guerras successivas , estes povos
indígenas, a maior parte errantes ,
tem-se visto precisados a passar
frequentemente de hum territorio
á outro , e a mudar de habitação :
deste modo ou suas mesmas mudanças
, ou seu enfraquecimento, ou
sua inteira destruição faz com que
presentefflcrífe não sejão encontra.
Do Brasil.
í2t)
dos todos na posição geográfica prk
mitiva. Com tudo jamais os Europêos,
apezar da superioridade de
suas armas , e de sua disciplina ,
terião tomado á tantas nações ferozes
suas possessões , e sua liberdade
, se estas tropas errantes,
formando huma liga para adefeza
commum, tivessem formado hum
só povo. Porém divididas sem cessar
, não se auxiliando humas ás
outras , e atacadas separadamente ,
forão submetticlas, despojadas dos
seus domínios , expulsadas, e destruídas
: poucas d'entre ellas escapárão
á morte , ou á escravidão.
Algumas com tudo abandonarão voluntárias
seus costumes selvagens
para se submetterem á civilisação
Européa. As relações successivas
destes différentes povos , quer com
os Portuguezes, quer> com outras
nações, que tem apportado ao Brasil
, se appresentaráõ no decurso
desta obra , segundo a ordem dos
factos , o progresso cios estabelecimentos
, edas conquistas: ellas se-
fli40 Historia
yâo acompanhadas de outros detalhes,
que completarão o quadro dos
costumes, e dos usos das principaes
tribus do Brasil.
livro quarto.
Capita nías hereditarias estabelecidas
no Brasil no reinado ds
D. João III. — Oriqem das colonias
de S. Vicente , Santo Amaro
, Tamaracá , Paraíba , Espirito
Santo , Porto-Seguro , l-
Ihéos , e Pernambuco. — Expedições
desgranadas de Lui%
de Mello , e de Ayres da Cunha
ao Maranhão.
1521 — 1540.
X Lmstrado em fim sobre a importancia
do Brasil, D. João III. . q"®
nós vimos succeder á D. Manuel -
seu pai, applicotyi¿ás suas posses'
iões da America b sysíèma de civi-
fli40 Historia
lisação imaginada então para as
ilhas da Madeira , e dos Açores.
Elie dividio o continente do Brasil
em capitanias hereditárias , e as
concedeu á titulo de domínios aos
senhores de seu reino , que se offerecêrão
para irem formar estabelecimentos.
Esta especie de contracto
entre os Grandes, e o Monarcha
se concluio com tanto maior
felicidade , quanto elle tinha por
mutuo garante , de liuma parte a
cubiça , e ambição dos Nobres Portugnezes,
e da outra o ordente desejo
, que animava o Rei para fundar
hum império no Novo Mundo.
Preparando suas tropas, seu exercito
, e seus thesoiros, D. João III.
se lisongeava de conseguir o inteiro
domínio do Brasil, objecto constante
de seus votos. Porém se os
colonos Porruguezes tinhão podido
estabelecer-se sem obstáculo nas
ilhas visinhas da Metrópole , não,
era o mesmo á respeito do Brasil,
tão remoto dajjjortugal. Grandes
tribus selvagens estavão de posse
Do BrayJL 141.;
deste continente , cujos estabelecimentos
coloniaes então forão tão
apartados huns dos outros , que não
só se fez difficil, mas muitas vezes
impossível, que os colonos prestassem
soccorro huns aos outros, 011
o recebessem da Metropole.
Os senhores concessionários devião
gozar de huma jurisdicção civil
, e criminal quasi absoluta. O
Rei de Portugal, não se mostrando
zeloso , se não de huma soberania
titular, lhes deu , conforme
o plano de D. Manuel * a liberdade
de conquistarem hum espaço de
quarenta, ou cincoenta léguas de
costa com huma extensão illimitada
para o interior. Seu decreto os
authorisava além disso para imporem
aos povos submettidos as leis
que melhor lhes conviesse. Elles
podião dispôr , na fórmtf da sua concessão
, dos terrenos, que tivessem
conquistado , e encarregar do cuidado
de os fazer valiosos aos Portuguezes,
que qy.iz«ssem seguil-os
ao Novo M u * A baior partt
14« Historia'
dos concessionários tomarão este
partido para tres gerações somente,
e com a condição de algumas rendas.
Devião gozar cie todos os direitos
Reaes: o Monarcha exceptuou
com tudo o direito de infligir
a pena de morte , a fabricação das
moedas , e o dizimo territorial, cujas
prerogativas reservou á Coroa.
Taes condições não podião deixar
de lisongear o orgulho, e a ambição
dos feudatarios do Brasil. Mas
elles podião perder estes feudos ,
menos honrosos , que lucrativos,
se desprezassem sua cultura , ou o
cuidado da sua defeza, se commettessem
algum crime capital, ou em fim
se elles não tivessem filhos varões. \
Tantas vantagens fizerão desappa- i
recer aos olhos da cubiça não só
as prevenções, que se tinhão excitado
contra a nova colonia , mas
lambem huma multidão de perigos
muito mais reaes, do que então
já deixavão de passar por insupeiaveis.
Os senhores Portuguezes, que
Do Brasil. í2t)
ambicionavão estes meios de elevação
, e de fortuna , não virão en«
tão em seus vastos domínios , se
não terras, cuja cultura pouco dispendiosa
provava a fertilidade delias
; e nações estúpidas, que elles
poderião subjugar sem perigo, e
submetter sem esforços.
Elles não se enganavão , senão
neste ultimo ponto. A resistencia
obstinada da maior parte das tribus
selvagens , os combates sanguinolentos
, que foi preciso sustentar
contra ellas; seu odio implacavel;
sua vingança feroz destruirão muitas
vezes as mais bellas esperanças.
Porém nada podia desgostar homens
, cujas emprezas erão fundadas
sobre os motivos irresistíveis
cle domínio , e de riquezas.
A maior parte das capitanias
forão concedidas á ser?hores poderosos
, que por meio das armas emprehendêrão
, ou acabárão a conquista
sobre os naturaes. Não estabelecerão
ao principio se não
pequenos auebalaes, que augmen-
fli40
Historia
tando-se tomarão o nome de Vil•<
•las , e se fizerão como as capitaes
de ontros tantos destrictos . 011 provincias.
S.Vicente, Santo Amaro ,
Tarnaracá , Paraiba , Espirito Santo,
Porto-Seguro , Ilheos, e Pernambuco
forão as primeiras capitanias,
qu« o Rei de Portugal concedeu ao
longo da costa do Brasil.
Martim Alfonso de Souza , cujo
nome he citado honrosamente na
historia das Indias Portuguezas,
foi o primeiro possuidor de huma
capitania cio Brasil. D. João III.
lhe deu , bem como á seu irmão Pedro
Lopes de Souza , a permissão de ir
formar 110 novo continente hum
estabelecimento colonial. Martim
Affonso partió em 1531 com hum ,
armamento considerável , explorou
a costa nos circuitos do Rio de Janeiro
, á qival elle deu este nome ,
porque a descubrió no primeiro de
Janeiro ; ao depois avançou para o
Sul até o Rio da Prata , e designou
successivamen/e os portos , ou as
ilhas, que achou na sua derrota,
Do Brasil.
Segundo os dias do Calendario , com
os quaes se conformava cada hum
dos da sua descuberta. Deste modo
a Ilha Grande foi chamada a 11 ha
dos Magos , porque foi reconhecida
á 6 de Janeiro. A vinte do mesmo
mez descubrió a ilha , á que
deu o nome de S. Sebastião: a
vinte e dous ancorou em S. Vicente
, que para o futuro veio a
ser sua capitania , e huma das mais
florescentes colonias do Brasil. Depois
de ter examinado attentamente
a costa , demorou-se aos quatorze
grãos e meio de latitude meridional
, e formou seu primeiro estabelecimento
em huma ilha , que similhante
á Gôa , ou á antiga Ty~
ro , não he separada do continente
, se não por hum braço de mar.
Os naturaes a chamão Guaíba , de
huma arvore assim chamada , que
ahi cresce em abundancia
Os índios da costa , vendo homens
desconhecidos se estabelecer
tão perto delles , ajuntarão suas
pirogas, reunírão:ée pat a excluir«;«
Tom. /. ' K
14
Do Brasil.
tinha dado sua filha em casamento*
Ramalho julgou , que os que de
novo tinhão vindo , e cuja exclusão
setentava, era huma tropa de
seus compatriotas , que destinados
então para a índia , elançados pelos
temporaes na costa do Brasil ,
tinhão procurado hum abrigo nesta
ilha , que era visinha da mesma
costa. Persuadió á seu bemfeitor ,
que os favorecesse em vez de os
destruir : veio elle mesmo encon-»
trar-se com Martim Affonso , econcluio
entre elle, e os Guayana^en
huma alliança perpetua. O terreno
escolhido então para os Portugueses
não se tendo julgado conveniente
, os colonos se transportárão
á ilha de S. Vicente , que ficava
visinha , e que deu o nome á toda
a Capitania. Seus progressos forão
rápidos. Souza presidia á tudo com
intelligencia, e sabedoria. Fes plantar
as primeiras cannas de assucar
, que forão trazidas da Madeira
: fez criar o primeiro, rebanho s
e foi ahi, que as outras capitanias
K a
fli40
Historia
se aprovisionárão ao depois. Os índios
da Costa erão ichtyophagos 2
elles fabricão suas cabanas em hum
terreno cheio de mangues, e tão
abundante de conchinhas , que sua
accumulação prodnzio nas praias
especies de humas chamadas ostreiras
, que tem fornecido toda a cal,
de que se tem feito uso nesta capitania
desde a sua fundação até
õ presente, Martim Affonso empregou
as dadivas , e as caricias para
se unir com estes Brasileiros, com
quem teve frequentes communicaçóes
, vantajosas á colonia.
Seu irmão Lopes foi menos feliz
nas suas empresas. Elie escolheu
para seu dominio cincoenta léguasde
costa , que dividio em duas grandes
fazendas muiro apartadas hurna
da outra , querendo fundar dois
estabelecimentos distinctos, e separados.
Situou o primeiro em lnijna
ilha perto de S. Vicente, muito
visinlía da costa , e deu-lhe o
come de. Santo Amaro. Estas duas
primeiras colónias do Brasil não
Do Brasil. í2t)
er5o distantes , se não três léguas
huma da outra , o que teria feito
nascer queixas , e contendas entre
os colonos, se os dois chefes , estreitamente
unidos pelos vínculos
do sangue , e unanimes nos seus
projectos, não tivessem constantemente
vivido em bôa armonía. No
longo espaço , que durou este estado
de coisas , a visinhança destes
dois colonos foi proveitosa á ambos
: mas quando pelo tempo adiante
passarão a ser outros os possessores
, que não erão unidos por
vínculos tão estreitos, o ciúme , è
o interesse desunirão os colonos
até a época, em que os dois estabelecimentos
, reunidos em hum
sc5 , passárão em fiir. , como os outros
, depois de muitas vicissitudes
ao domínio da Corôa.
Foi na ilha de Tanlaraca , ou
Tamaríca , alguns gráos mais perto
da linha , que Lopes de Souza
fundou seu primeiro estabelecimento
colonial. Provida»de hum porto
muito bom , está illiá não teai,
Historia
99 não tres léguas de comprimento,
e duas de largura , e he separada
do continente apenas por hum es*
treito canal. Lopes vio-se obrigado
a sustentar nella frequentes ataques
feitos pelos Pitaguarés , que
vierão cercal-o na sua mesma ilha,
Elie por então conseguio rechaçai-os
, e excluil-os da cosra visijiha
; mas pouco tempo depois nau»
fragou , e morreu na foz do Kio
da Prata.
Hum de seus companheiros, que
escapou deste desastre , não perdeu
o valor , nem pela sorte de seu
desgraçado amigo , nem pelo risco ,
porque el'e mesmo tinha passado,
Era hum Fidalgo , ou Nobre Portuguez
, chamado Pedro de, Góes,
que apaixonado pelas descubertas
do Brasil sollicitou huma capitania
em huma época , em que o Rei de
Portugal as dispunha com prodigalidade.
Porém Góes tinha muito
pouco credito na Corte de Lisboa ;
por isso o dominio , que se lhe deu,
foi apenas de trinta légua« de cos«
Do Braqit. a
fli40 Historia
annos, e foi funesta para a colônia
nascente. Hum carto intervallo
de paz não deu tempo á Góes de
fazer prosperar seu estabelecimento.
Os colonos fracos , e desanimados
instárão fortemente com Goes
para deixarem a desgraçada situação
do Paraiba. Góes opprimido
pelos selvagens , que lhe ficavão
perto , cedeu aos clamores de seus
compatriotas, evacuando a colônia ,
e embarcando-se em navios, que
obteve do visinho estabelecimento
de S. Vicente.
Esta capitania tinha sido pedida ,
e obtida pelo Fidalgo Vasco Fernandes
Coutinho , que depois de
ter passado sua mocidade na índia
, onde tinha ajuntado grandes
riquezas, aventurou todos os seus
teres, e perdeu-os nos seus projectos
de fazer colonia no Brasil. Coutinho
metteu-se ao mar com hum a
expedição considerável, tendo com
sigo sessenta Fidalgos, muitos obreiros
, e artistas.; elle estava encarregado
alem disso pela Corte de-
Do Brasil. í2t)
L i s b o a a-transportar ao Brasil , como
degradados , a D. Simão da
Castelío Branco , e a D. ]orge de
Menezes. Este ultimo , que era
qualificado de senhor das Molucas,
onde tinha sido Governador , devia
ter commettido grandes crimes, para
merecer o desterro ao Brasil no
momento mesmo , em que os primeiros
authores das crueldades excita-,
das nas índias Portuguezas escapavão
ao castigo do Governo. A.
expedição chegou depois de huma
feliz viagem ao porto do seu destino
, sessenta léguas ao Norte do
Rio de Janeiro, e ancorou em huma
bahia de medíocre grandeza,
cuja entrada se faz conhecer ao
longe por huma montanha configurada
á maneira de hum pao de
assucar , que serve como de alvo
aos pilotos. Os colonos Portuguezes
derão ahi principio ao seu estabelecimento
, fundando huma villa ,
que elles chamárão Nossa Senhora
da Victoria, ainda mesmo antes
de terem entrado e.m combates i
fli40 Historia
mas este titulo foi logo verificado;
Os Guayanafes , seus primeiros
inimigos , forão completamente derrotados
, bem como todos os selvagens
da America , no primeiro encontro
pela superioridade das armas
de fogo. Os vencedores , huma
vez. senhores da costa , começárão
a fundar casas, e edifícios, a cul*
tivar as terras, a plantar cannas ,
e a estabecer engenhos. Logo que
Coutinho vio, que tudo prosperava
rapidamente , voltou á Lisboa
para ajuntar hum grande numero
de colonos, e sollicitar tudo, oque
lhe era necessário para emprehender
huma expedição ao interior do
Brasil em busca das minas. Os limites
da sua província devião começar
onde acabava ao Sul a capitania
de Porto Seguro.
Esta tinira sido dada a Pedro de
Campos Tourinho , nascido em Vianna
de Foz de Lima , de huma família
distincta. Votado felizmente
á arte da navegação, elle amava
as viagens, e as novas empresas;
Do Brasil.
í2t)
por tanto apressou-se em vender
tudo, o que tinha em Portugal,
para vir fundar no Brasil hnma
colônia , de que devia ser o chefe
; e fazendo-se á véla com sua
mulher, e filhos, e hum grande
numero de colonos, apportou felizmente
na mesma enseada , em
que Cabral tinha tomado posse cio
Brasil. Hum dos dois criminosos,
que este Official ahi havia deixado
, vivia ainda , e sérvio de interprete
á Tourinho , e aos Portugueses
da expedição. No cume de
hum rochedo, situado na barra de
hum rio , fundarão a villa de Porto
Seguro , hoje o lugar principal
da provinda , que tem conservado
çste nome dado por Cabral á costa
por causa da bondade de. seu
porto. Tres léguas separão Porto
Seguro de Santa Cruz , onde apportou
Cabral, quando descubrio o
Brasil. Os Tupiniquins , que possuião
o paiz , se oppuzerâo Ioga
ás empresas dos companheiros de
Tourinho não só nesta provincía
Historia
mas também nas duas capitanias
visinhas. Porém elles tentarão debalde
defender seu territorio contra
os invasores. Seja porque elles reconhecessem
a superioridade dos
Europeus , seja porque estes os ti*
vessem attrahido por negociações
astutas, e presentes , elles fizerão
a paz , observárão-na fielmente ,
voltárão suas armas contra os Tujjinacs
, tribu Brasiliense da mesma
raça , e que acabando em alliança
, e mistura com os Tupiniquins ,
compõem hum só, e mesmo povo.
ToUrinho teve muita influencia sobre
estes naturaes á ponto de os
ajuntar em suas aldeias, e amoldai-os
á disciplina, e aos hábitos
da civilisação. Isto he hum a pro va ,
de que elle portou-se com sabedoria
, e de que não deve ter parte
na accusaçao de tirannia , que merecerão
muitas vezes os primeiros
colonos Portuguezes. Elle fundou
engenhos cie assucar em Porto Seguro
com tal felicidade , que em
pouco tempo a exportação dos assu-
Do Brasil. í2t)
eares para a Metropole se fez considerável
, e lucrativa.
Em meio do continente do Brasil
se levantou quasi ao mesmo tempo
a Capitania dos Ilheos , que
deve o seu nome ao Rio das Ilhas ,
assim chamado, porque tem tres
ilhas na sua íoz. Jorge de Figueiredo
Corrêa , historiographo de D.
João III. , foi o concessionário delia.
Retido em Lisboa pelas suas occupações
, e trabalhos , elle enviou
hum Cavalleiro Castelhano , chamado
Francisco Romera , para tomar
posse da sua provinda. Romera
fundeou no porto de Tinharé , e
fundou huma nova villa na eminência
, ou Morro de S. Paulo :
ella foi ao depois transferida para
a extremidade da bailia , onde está
presentemente. Deu-se-lhe então o
nome de S. Jorge em honra do
concessionário , porém o nome de
Ilheos prevalesceu , e communicouse
ao depois , bem que impropriamente,
á toda a capitania. Os Tupiuiquins
, senhores então da coita,
fli40 Historia
erão os mais tractaveis de todos os
povos do Brasil. Por tanto viverão
em paz com os colonos Portugueses,
eemhuma tão estreita união,
que a colonia se levantou sem perturbação
, e prosperou logo. O filho
de Figueiredo , tendo herdado esta
capitania , vendeu-a á Lucas Giraldes,
que melhorou-a com grandes
augmentos, e a fez tão florescente ,
que nella se estabelecêrâo em pouco
tempo oiro , ou nove engenhos
de assucar.
Na mesma época levantou-se ao
Norte do continente do Brasil a
capitania de Pernambuco , erradamente
chamada Pernambuco pelos
Europêos. Seu nome quer dizer
Bocca cio Inferno por causa de hum
vasto recife , que guarnecendo a
costa , occulta abismos , e escolho»
na entrada do porto , onde está
afundada a cidade capital. Neila se
havia erigido provisoriamente liuma
feitoria. Hum corsário de Marselha
se fez senhor delia , e deixou
setenta homens para conservarem a
Do Brasil. í2t)
posse. Porém tendo sido o sen navio
tomado na volta á França , a
Côrte de Lisboa tomou medidas 'immediatas
para recobrar a colon ia
nascente. Eduardo Coelho Pereira
pedio-a em propriedade , como recompensa
dos seus serviços na índia..
Deu-se-lhe a extensão da costa
situada entre o Rio de S. Francisco
j e o Rio Juruva.
Coelho embarcou-se logo com
sua mulher » e filhos, e hum grande
numero de parentes, e amigos,
para irem fundar hurna colonia ao
Norte do Brasil, Navegando com
venta favoravel para a costa , cuja
posse o Rei lhe havia conferido
, chega em fim á vista da entrada
practicada no immenso recife,
que cobre a costa ue Pernambuco
, e grita maravilhado: " Oh í
„ linda situação para^ se fnndac
„ huma villa! „ e o nome de O-
1 lá da , formado das primeiras palavras
da sua exclamação , deu-se á
cidade , de que ellç foi a fundador.
fli40 Historia
Quasi toda a costa de Pernafflj
buco estava então em poder cios
Cahetés , tribn barba»a, e selvagem
, notável entre todas as outras ;
porque fazia uso de canoas muito
grandes , capazes de suster dez á
doze pessoas. Coelho, diz o historiador
Rocha Pita, vio-se obrigado
a conquistar toeza por toeza á esta
tribu temivel, o que se lhe dera
por léguas; Os Cahetés o atacárão
, e cercárão na sua nova villaí
Elles erão numerosos , e dirigidos
pelos Francezes, que vinhão com
navios armados para traficar nesta
mesma costa. A colonia teria sido
ariiquillada no seu mesmo nascimento
, se Coelho tivesse menos experiência
da guerra. Foi ferido nc
sitio: hum grande numero dos seus
colonos mouêrão á sua vista cora
as armas nas mãos: vio a praça reduzida
aos últimos extremos ; mas
sua firmeza , e sua coragem o livrarão
finalmente do perigo: bateu
, e rechaçou o inimigo ; fez alliança
com os 'Taba] ar as , e teve
Do Brasil. í2t)
então muitas forças para se sustentar
, e zombar de todos os ataques.
Os Tabayarés forão os primeiros
naturaes do Brasil , que se ligarão
com os Portuguezes. Hum de
seus chefes, chamado Tabyra , tinha
grandes talentos para a guerra.
Era o terror dos selvagens inimigos
: ia elle mesmo espial-os em seu
campo para descubrir seus projectos
; porque a tribu delle , sendo da
mesma raça , que os Cahetés , fallava
o mesmo idioma. Tabyra armava-lhes
ciladas , atacava-os de
noite, e fatigava-os com rebates
continuados. Por fim os Cahetés
ajuntarão todas as suas forças, marchárão
sobre elle , e o cercárão.
Huma flexa vasou-lhe hum Olho.
Tabyra sem se abalar arrancou-a
com a pupilla ; e voltando-se para
os que o seguião , disse-lhes, que
com hum só olho Tabyra via bem
para combater seus inimigos: com
effeito apezar do grande numero
elle os poz em fugida.
Seu lugar-tenente , ,e séu digpo-
Tom• l> k
fli40 Historia
emulo Hagyse ( braço de ferro')
foi hum dos Tabayarés , que se
distinguirão mais no mesmo partido:
e Piragyba (braço de peixe)
fez tantos serviços aos Portugueses
, que em recompensa recebeu
o Habito da Ordem de Christo , e
huma pensão cio Governo.
Ajudado destes intrépidos alijados
lançou Coelho os fundamentos
da cidade de Olinda , e da Capitania
de Pernambuco , situada cem
léguas ao Norte da Bahia , e hoje
linma das mais ricas Províncias da
America Portugueza. Alguns annos
de paz permittírão á Coelho fundar
engenhos de assucar , e cortar
o precioso páo brasil de íórma , que
esta Capitania quasi só forneceu
delle a Europa inteira.
Mas estas differentes colónias
não podião conservar , e estender-se
se não peia chegada successiva de
novos colonos. Huma circunstancia
pouco honrosa ao reinado de D.
João III., e desgraçada para Portugal
, se tornou em pouco tempo
Do Brasil. í2t)
favorável ao augmento da populalação
Europea do Brasil. A Inquisição
Religiosa , estabelecida na
Hespanha em 1482 , acabava de
ser aclmittida em Lisboa por D.
João III. , que deslustrou , entregando-se
á bum systema pernicioso ,
as "bellas qualidades , pelas quaes
elle se tinha mostrado digno dos
seus predecessores. Numerosas victimas
da nova instituição , Judeos
principalmente , que o Tribunal da
Inquisição perseguia incessantemente
, forão desterrados em multidão
para o Brasil, onde acharão
meio de estabelecer alguma cultura.
A nova colonia se povoou rapidamente
ranto pelos Judeos , como
pelos vassallos catholicos, e por
outros Europeus , attrahidos pelos
felizes trabalhos de seus antepassados.
.
Bem depressa o Governo Portuguez
deixou de menoscabar, como
ao principio , a immensa possessão ,
que a sorte tinha unido ás suas
conquistas. A popoiução Européa
L 3
fli40
Historia
não cessou de crescer , e passou a
dividir successivamente entre si as
marinhas do Brasil, onde ella podia
esperar manter-se com mais vantagem.
He ás guerras continuadas , suscitadas
contra os novos colonos pelos
antropophagos , que se deve principalmente
attribuir a aversão , que
os Portuguezes mostrarão desde o
principio aos estabelecimentos formados
no interior. Por isso a maior
parte forão situados beira mar em
distancias desiguaes , e muitas vezes
muito consideráveis.
Ao Norte de Pernambuco , no
Equador , os Portuguezes não tinlião
ainda reconhecido o bello rio
do Maranhão , ou Amazonas , que
pela primeira vez tinha sido aescuberto
em 1499 por Ianez Pinçon ,
que deu-lhe o nome de Mar d"agua
doce , crendo então , que o
concurso de muitos rios tinha realmente
alterado , e adoçado o mar
nesta costa. O navegante Castelhano.tinha
descuberto ao depois, que
Do Brasil. í2t)
estava na embocadura do grande
rio Maranhão , e que os natura es
chamavêo a este continente Mariatambal:
porém ehe tinha passado
outra vez a linha , sem adiantar
suas investigações. Quarenta
annos depois da descuberta do continente
Brasiliense, restando ainda
muita incerteza á respeito do Maranhão,
os Portuguezes não tinhão
ainda , se não noções vagas , e confusas
sobre este grande rio , e sobre
as costas visinhas da sua foz.
Mão obstante isso a Côrte de Portugal
comprehendeu o Maranhão
nos limites da America Poitugueza ;
e D. João Hl. deu em 1539 esta
Província, ou Capitania em propriedade
á João de Barros , historiador
, e homem de estado , com
a condição de fazer nella estabelecimentos.
* >
Porém João de Barros, não era
nem muito oppulento , para fazer
só as dispezas de hum armamento
marítimo, nem muito moço, para
ir e'le mesmo á huma expedição ar-
fli40 Historia
riscada , e remota: não tinha além
disso noção alguma positiva do continente
, de que acabava de ser
nomeado senhor feudatario No tempo
, era que elle tractava de se informar
, chegou á Portugal Luiz
de Mello da Silva , que vinha do
Maranhão sollicitar a authorisação
de fazer nelle hum estabelecimento
estável. Este mancebo Portuguez ,
immediatamente depois que Orellana
em a sua espantosa expedição
ao Amazonas primeiro, que todos ,
desceu por este rio até a sua foz ,
tinha-se feito á véla de Pernambuco
, e impellido para o Norte ao
longo da costa , approximou-se á
este mar d* agua doce. Cheio de espanto,
e de admiração ao olhar para
estas praias magnificas , chegou
á ilha de Santa Margarida , onde
yio os companheiros de Orellana ;
deste intrépido aventureiro, que
apaixonado pelas descubertas tinha
abandonado os conquistadores do
Perú. Pouco desanimados pelos seus
soüri.mentos, aconselharão á Silva ,
Do Brasil. í2t)
que renovasse as tentativas sobre
o Amazonas, que tinhão sido para
elles tão desgraçadas : tal era o
projecto , que o levava á Portugal.
João de Barros cedeu-lhe os seus
direitos á Capitania do Maranhão ;
e o mesmo Rei o aijudou , não tendo
elle meios sufficientes. Deu á
véla , acompanhado cie dois filhos
cle João de Barros, e tendo debaixo
cias suas ordens tres náos , e
duas caravellas: mas o armamento
se perdeu nas baixias á vista do
•Brasil, cem léguas abaixo do grande
rio. Huma só caravella escapou
ao naufragio , e salvou o Commandante
, e os dois filhos cie João de
Barros. Silva foi para a índia , onde
enriqueceu , e tornou a embarcar-se
para Lisboa com a resolução
de aventurar outra vez sua fortuna
, e sua pessoa , para.se estabelecer
no Maranhão: porém não se
ouvio mais fallar do seu navio , que
se chamava S. Francisco , que provavelmente
naufragou em huma
passagem tempestuosa."
fli40 Historia
Neste intervallo João de Barros,
que outra vez tinha entrado em
seus direitos , repartió a propriedade
da sua provincia com Fernando
Alvares de Andrade, e Ayres da
Cunha; e formando todos tres hum
plano de colonisação , fizerão hum
armamento mais considerável, que
todos os precedentes. Cunha tomou
o commando da expedição , levando
com sigo os dois filhos de Barros
, que tinhão escapado ao primeiro
naufragio. Toda a frota , chagando
ao Brasil , foi destruida nas
mesmas baixias , onde se tinha perdido
o armamento de Mello da Silva.
Cunha foi hum , dos que se
aífogárão. Os desgraçados naufragantes
, que crião estar na entrada
do Maranhão , posto que estivessem
pouco mais, ou menos cem
leguas ao ,Sul , ganhárão a ilha,
que depois do seu engano chamarão
a Ilha Maranhão , nome que
ella perdeu , passado meio século ,
para tomar o de Ilha das Vaccas.
Chegarão á salvar do naufragio
Do Brasil. í2t)
apenas alguns effeitos; e para terem
viveres traficarão com os Tapui]as
, que então habitavâo 11a ilha.
Porém elles forão muito tempo miseráveis
, em quanto não purlerão
fazer ver sua triste situação ao estabelecimento
mais visinho. ]oão
de Barros enviou-lhes soccorros ,
logo que soube da sua desgraça:
porém'o navio, que sahio de Lisboa
, partio muito tarde. Seus dois
filhos acabav§o de ser mortos no
Rio Pequeno pelos Pítaguares , e
todos os naufragantes tinheo deixado
a ilha, Victima de hum duplicado
desastre , o Historiador Barros
mostrou huma firmeza , e huma
sublimidade d'alma , dignas de melhor
sorte. Pagou todas as dividas
dos seus socios , que tinhão perecido
; e ficou devedor á Coròa de
perto de stis centos mil,réis , procedidos
da artilhtria , e de ourros
objectos do armamento ; quantia ,
que El-Rei D. Sebastião lhe perdoou
muito tempo ., ao depois por
huma liberalidade , de" que Barros
fli40 Historia
teria tirado mais vantagem , se ella
tivesse sido menos tardia.
Estas tentativas desgraçadas á
embocadura do Amazonas , e ás
costas visinhas desanimarão o Governo
, e os armadores Portuguezes.
Passou-se muito tempo , até
que os colonos do Brasil, illustrados
em fim pela experiencia, e pela
frequentação destas paragens ,
fundárão no Maranhão estabelecimentos
duráveis , e villas florescentes.
Com tudo os esforços dos primeiros
colonos não tinirão sido todos
infructuosos : a imprudencia , e a
desgraça não tinhão destruido inteiramente
as esperanças destes homens
emprehendedores, e valorosos
, e que nenhum obstáculo podia
desgostar. Vio-se também 'no
espaço de dea annos a maior parte
dos primeiros estabelecimentos se
augmentar , prosperar , e espalharse
, para formar , tres séculos mais
tarde , hurr: dos mais bellos imperios
do mundo.
livro quinto.
Naufragio , e aventuras de Caramurú.
Caracter da qrande povoação
Brasileira dos Tupinambos
da Bahia. Descripção do
Reconcavo , e quadro das suas
revoluções. Primeira origem de
S. Salvador da Bahia. Tomada
de posse da Capitania da
Bahia por Francisco Pereira
Coutinho. Primeiras hostilidades
entre os Tupinambos , eos
Portugueses. Expulsão , e morte
de Coutinho,
o
I5I0—-1540.
A Origem de S. Salvador da Bailia
, posto que romanesca, não sç
fli40 Historia
perde na noite cios tempos , nem
nas tradições fabulosas. Esta cidade
celebre , successivamente destruida,
reedificada , tomada, e retomada
, tem sido no decurso cie
mais de dois séculos a Metropole
do Brasil. Hoje mesmo , que o Rio
de Janeiro lhe rouba a sua preeminencia
, ella he ainda por sua
extensão , fortificações , e edificios ;
pela sua população, estaleiros , armazéns
, e vasta bailia , huma das
mais importantes cidades do Novo
Mundo.
Logo que o navegante Christovão
Jacqnes visitou esta bailia
magnifica, e suas paragens, como'
vimos no segundo livro, deu disso
conta á D. João 111. , bem como
da belleza , e da fertilidade do territorio
adjacente.
Porém foi somente alguns anuos
depois da viagem deste navegante
, que o systema de concessões
foi definitivamente ordenado. Então
o Rei de Portugal deu a provincia
marítima , comprehendida
Do Brasil. í2t)
desde o grande Rio de S. Francisco
até a Ponta do Padrão da Bahia
ao fidalgo Francisco Pereira
Coutinho com a condição de fundar
nella liuma cidade , e estabelecimentos
permanentes, quer subjugando
os naturaes, quer civilisando-os.
A mesma Bahia com todas
as suas enseadas foi ao depois
addida á esta graça verdadeiramente
Real. Coutinho, que havia pouco
, chegara da índia, "onde se tinha
distinguido , familiarisaclo além
disso com as descubertas, e expedições
, de mais animado pelo desejo
de ser conquistador , e fundador
, aprestou logo liuma pequena
esquadra em Lisboa , e ajuntou hum
numero muito grande de soldados ,
e de aventureiros , para ir emprehencler
a colonisação da Bahia.
No em tanto hum caso singular
tinha já posto estes sitios em poder
de hum mancebo compatriota de
Coutinho , inflamado , como elle ,
pela paixão das viagens , e descubertas.
Este Portuguez?, chamado
fli40
Historia
Dioqo Alvares Corrêa Vianna ¿
ia para as índias Grientaes. Batido
por huma tempestade, bem como
tinha sido Cabral, foi do mesmo
modo irapeliido ao Occidente
para o Brazii. Menos feliz , ou
menos hábil , que este celebre navegante
, e não podendo mais governar
seu navio , Diogo Alvares
naufragou nas baixias ao Norte da
barra da Bahia. Hurna parte da
equipagem pereceu ; os que escapárão
ás vagas, soffrêrão huma morte
mais horrorosa. Fazendo força
para ganharem a costa , e aventurando-se
sem precaução , os naturaes
os apanharão , e devorárão á
vista de Diogo Alvares, que tinha
ficado perto do navio , que dera á
costa , não com a esperança de o
concertar , mas para recuperar differentes
objectos próprios para lhe
conciliar a benevolencia dos selvagens.
Então elle conheceu perfeitamente
, que não lhe restava outro
partido para salvar a vida , se
não fazer-se á hum tempo util , e
Do Brasil. í2t)
temível á estes cannibaes; e teve
a felicidade de salvar entre outros
efteitos naufragados hum mosquete
que poz em estado de servir , e aí-'
guns barris de pólvora. Os selvagens
depois do seu abominavel banquete
entrarão para a sua aldeia,
ou habitação; e Diogo Alvares,
subtrahido como por milagre á voracidade
delles , e ao furor das vagas
, ousou avançar-se só sobre esta
costa liumicida para reconhecer
o paiz.
Rochedos dentados, costas verdejantes,
bosques espessos, huma
bailia profunda , porém mansa , taes
são os objectos , que íerem sua vista.
Penetrando ao longo deste immenso
golfo , que fôrma á direita
o continente, e ã esquerda a ilha
oblonga de Itajwrica , elle o vê arreclondar-se
, e estender-se para o
Norte á perder de vista , tendo ao
Sul três léguas de largura , doze
de diâmetro, c trinta eseis decircumferencia.
Ahi bem como no Rio
de Janeiro na mesma ecteta , o mar
fli40
Historia
parece ter penetaado as terras: póde-se
mesmo conjecturar, que hum
grande lago , quebrando sua barreira
, abrio huma communicação
com o Occeano. Seis grandes rios
navegáveis desaguão neste golfo ,
ou antes neste lago pacifico , e crystalliuo
, que se divide em muitos
braços, e entra também pelas terras
, formando difterentes direcções,
•Huma cadeia cle ilhas vivificão este
pequeno Mediterrâneo do Brasil.
Diogo Alvares , encantado da
belleza, e da magnificência deste
sitio , cuja existencia elle não suspeitava
, deu-lhe o nome de S. Salvador
; porque ahi tinha achado a
sua salvação. Porém não percebendo
mais vivente algum , temia verse
em hum lugar selvagem , exposto
á todas as necessidades , e á discrição
da£ íeras; quando appareceu
cle repente huma multidão de
Brasileiros armados cle flexas , e de
massas, sem todavia mostrar intento
algum hostil. Muitos d'entre elles.
tinhão visco como s ali ir do mar a
Do Brasil.
joven Alvares, tendo então se conservado
occultos; porém avançando
ao depois cheios dc espanto,
elles correspondêrSo aos signaes de
benevolencia , e de paz , que lhes
fez Diogo Alvares, aproximárãose
para receberem os presentes, e
o tractarão com amizade. Conduzido
á mais próxima aldeia , foi
appresentado ao Chefe , ou Cacique
, de quem elle foi feito captivo:
mas recebeu delle, bem como
de roda a povoação , tanta consideração
, como cuidados.
Estes índios erão da raça dos
Tupinambás , cujo nome significa
Bravos , e que de todos os naturaes
do Brasil são os mais zelosos
da sua independência. Elles reúnem
no mais alto gráo os caracteres
communs , debaixo dos quaes
lemos representado as Nações Tiipicas.
Sua estatura , que não excede
a ordinaria , he em geral bem
proporcionada. São cio numero dos
Brasileiros, que tracem o cabello
comprido. O oleo de rotu , de quc
Tom. /. M
r
fli40
Historia
elles íazem hum uso continuado ,
dá huma côr de azeitona á sua pel*
le , naturalmente tão branca , como
a dos Europeos.
Os Tupinambos se estabelecem
de ordinario no meio dos bosques ,
que hcão mais visinhos ao mar , e
aos rios. Começão por formar ,
queimando as arvores, huma praça
proporcionada ao numero , em que
para ahi concorrem , e construem
neste espaço vastas , e longas cabanas
, cuberías de folhas cie palmeira
, e que nenhum tabique, ou
separação divide no interior. Estas
grandes cabanas de cento e cin»
eoenta pés de comprimento com
quatorze de largura , e doze de altura
contém huma vintena de familias
alliadas humas ás outras; e
tilas são construidas de maneira ,
que vão .cercar 110 centro huma
praça , onde se matão os captivos.
Cada cabana tem tres portas, toclas
tres para a parte da praça da matança,
A aldeia lie composta de
hum pequeno numero de cabanas,
Do Brasil. í2t)
c sempre estacada com intervallos
regulados para atirar flexas, e femados
com hum primeiro circulo de
grossas estacas , menos cerradas,
que a paliçada do centro. Os Tupinambás
põem na entrada sobre
estas estacas algumas das cabeças
dos inimigos, que elles cem devorado.
EUes não habitão mais , do que
cinco , ou seis annos na mesma aldeia:
destroem, passado este tempo
, seus estabelecimentos , e vão
em pouca distancia formar outros
novos , aos quaes elles com tudo
tem o cuidado de dar o nome cia»
quelles , que acabão de abandonar.
Esta mudança tem por objecto o
utilisarem-se da fertilidade de hum
terreno , ainda não cansado pela
vegetação das raizes , que fazem a
base da sua nutrição. *
As familias se distinguem pela
união a mais terna. Em parte nenhuma
o amor paternal pôde ser
elevado á mais alto gráo v este sen?
timento hepago da parte dos filhe-s-
M 2
fli40
Historia
por hum respeito inviolável. A amizade
, a liberalidade , a hospitalidade
apertão sem cessar entre clles
laços indissolúveis ; e sua ferocidade
, que não se pode desconhecer »
se reserva inteiramente para a vingança
, de que elles fazem contra
os seus inimigos o maior dos gozos,
e o primeiro dos deveres.
Seu sentimento natural he exquisito
, seu juizo recto , seu espirito
justo. A rasão , e a persuasão
encontrão nelles hum accesso fácil,
com tanto que não se pertenda
subjugal-os. Seus orgãos finos , e
delicados; sua memoria segura , e
fácil os fazem susceptíveis cie instrucção.
Por isso elles se tem elevado
por si mesmos á alguns conhecimentos
prácticos , cujo uso
não deixa de ser util. Não só elles
tem dado ñomes ás estrellas, mas
também tem conhecido sua posição
relativa. Depois de ter notado o
curso annual do sol, elles tem dividido
o tempo ou pela marcha deste
astro, ou pelas chuvas , pelas
Bo Brasil. i8i
fcrizas e pelos ventos. Conhecem
também algumas das propriedade?
dos seus vegetaes , e das suas prochicçóes
mineraes. Pelo que toca á
Religião , ou antes á falta de Religião
, á guerra , á politica , e ao
pequeno numero de hábitos, que
compõem a única legislação , que
elles conhecem , pode se formar a
idéa de seus usos , olhando para o
quadro geral dos costumes primitivos
dos indígenas do Brasil.
Estes selvagens passão em hum a
ociosidade quasi absoluta o tempo ,
em que a guerra cessa de os occupar.
A cassa, e a pescaria, cujos
productos elles ajuntão á mandioca
, e ás outras substancias vegetaes
, enchem com tudo huma parte
do seu ocio. Elles dizem , segundo
huma clas suas tradições as mais
acreditadas, que duai? personagens
desconhecidas , das quaes huma se
chamava Zomé , lhes ensinára a
colher, e a preparar a mandioca:
accrescentão , que .seus antepassados
, procurando motivo de dispu-
fli40 Historia
ta contra estes bemfeitores, atirárão-lhes
flexas ; mas que estas, voltando
atraz , matarão os que as tinirão
vibrado. Os bosques abrirão
caminho a Zomé na sua fugida ,
e os rios se abrirão igualmente para
lhe oíferecerem passagem. Pertendem
também que as duas personagens
mysteriosas promettêião visital-os
de novo, e mostrarão seus
vestígios milagrosos , impressos na
arêa.
A recreação quasi única dos
Tupin ambas he a dança : são muito
dados á elia, e se ajuntão muitas
vezes nas suas aldeias , para se
entregarem ao som da voz , e de
hum instrumento chamado maraca ,
espécie de roquinha , feito de hum
fructo ôco , no qual introduzem
pequenos grãos , e o agitão como
hum tambor de biscainho , acompanhando
orhythmo de suas canções.
O maraca serve também de guiso
de adevinhação aos seus adevinho?.
Nas. sitas, festas , . e sobre tudo
Do Brasil. í2t)
si a ceremonia da matança dos captivos
os Tupinambos bebem em
abundancia çumo defriictos, e cías
raízes fermentadas. Além do licor ,
que elles extrahem da mandioca ,
e de que fazem bum uso immoderado
, preparão outro ainda melbor
do fructo da acayaba. Porém posto
que apaixonados pelas bebidas
fermentadas, elles não são menos
melindrosos na escolha cl' agua :
preferem a mais doce , mais leve ,
e que não deposita sedimento algum
, e a conservão constantemente
fresca pela transudação em
vasos de barro poroso. Agua pura ,
exposta ao orvalho de manha, era
O sen remedio favorito.
Ta es erão os Brasileiros , que
accolhêrão Pedro Alvares Correa.
Elles tiverão logo occasião cle admirar
sua intelligencia e sua destreza.
Hum dia tendo com seu mosquete
matado huma ave perante
estes selvagens, as mulheres, e os
filhos gritarão: Carjimurúl Caramuru
! que quer dizei'.homem-dc
fli40 Historia
fogo ; e testemunhárão o temor de
perecerem também ás mãos delle.
Pedro Alvares voltando-se então
para os homens, cujo espanto estava
misturado com hum temor menor
, lhes fez saber , que iria com
elles á guerra , e que mataria seus
inimigos. Elles marcharão logo contra
os Tapuyas. A fama da arma
terrível do homem de fogo os precedia
, e os Tapuyas fugirão. Caramurú
foi o nome , com que Pedro
Alvares foi conhecido dahi em
diante entre os Portuguezes.
Tocados dos effeitos espantosos
das armas de fogo , e de outras invenções
Européas, que Caramurú
tinha o cuidado de appresentar a
seus olhos, os Brasileiros da Bahia
lhe attribuírão hum poder sobrenatural
, que lhe attrahio logo suas
homenagens t e até mesmo suas
adorações. Deste modo aquelle mesmo
Alvares, que se tinha julgado
em circumstancias de ser devorado ,
como os seus compatriotas, que tinliao
cabido nas mãos destes stlva-
Do Brasil. í2t)
gens antropopliagos, vio-se poucos
dias depois ainda mais poderoso ,
que seus próprios chefes , felizes
em lhe obedecerem , e em fazerem-
110 acceitar suas filhas por esposas.
Então foi firmada a estreita alliança
, que unio Caramará com os
Tupinambas , de quem elle se fez ,
por assim dizer , soberano absoluto.
Em signal de respeito elles o vestirão
com huma especie de manto ,
ou túnica de algodão; fizerão-lhe
offerta de suas mais bellas pennas ,
e de suas melhores armas , e lhe
prodigalisárão o producto de suas
cassadas, e dos fructos os mais deliciosos
dç> seu paiz. Caramurú estabeleceu
sua habitação no lugar ,
onde foi ao depois fundada a Villa
Velha. Tornou-se o pai de hinna
numerosa familia ; e ainda hoje as
casas mais distinctas da, Bahia referem
á elle sua origem. Fez levantar
logo algumas cabana^ sobre
a praia desta bahia espaçosa , e
commoda , onde se poz em seguro ,
açiianao em huma pescaria *buu-
fli40 Historia
dante , e nas provisões , que Ih«
trazião os índios, huma nutrição
sã ; provisões na verdade sobrepujantes
á necessidades da sua colonia
nascente.
As primeiras cabanas feitas á
pressa forão logo substituidas por
habitações mais convenientes: huma
especie de politica , eu de disciplina
foi introduzida , e conservada
por Cararnurú , chefe, e regulador
do novo estabelecimento. Dos
pedaços de hum navio naufragado
eUe fez construir barcas mais sólidas
, que as pirogas dos Brasileiros ;
não porque elle esperasse servir-se
delias para huma navegação longa ;
mas elle se lisongeava de reconhecer
logo todo o golfo , de que não
tinha ainda idéa , por não ter tido
noticia alguma da relação de Christovão
Jacques. Com effeito desde o
instante , em que naufragou , elle
tinha suspeitado, que estava no
Brasil , onde seus compatriotas começavão
a estabelecer-se; porém
perdendo a espeiança de se unir á
[
Do Brasil. 187
elles, julgava-se para sempre separado
deli es , e da Europa.
Familiarisado logo com o idioma
dos Tupis , achou-se em estado
de interrogar aos naturaes sobre a
sua origem, e sobre o paiz , que
habita vão. Os velhos conservavão
•a lembrança de tres revolnçoes
accontecidas 110 Reconcavo ; he este
o nome , que elles dão á Bahia com
todas as suas enseadas. Segundo a
mais remota lembrança, que os homens
podião ter entre estes selvagens
, elles tinhão per hum facto
certo , que os Tapuyas tinhão possuído
o Reconcavo: mas como esta
•parte do Brasil he , debaixo de algumas
relações, hum dos lugares
mais favorecidos cla tetra , estes
•não podião esperar o go^.ar pacificamente
de huma possessão tão desejável,
principalmente não havendo
entre elles outras leis , se não
a da força. Por tanto os Tapinaes
expellírão os Tapuyas , e conser-
•várão o Reconcavo oor muitos an^
nos bem que sempre' em gueira
fli40 Historia
com os que elles havião desempossado,
e que ainda queriao lançar
mais para o interior. Os Tupinambas
, passando ao depois o Rio de
S. Francisco, invadirão também
o Reconcavo , donde excluirão os
Tupinaes , que lançando-se de novo
sobre os Tapuyas , levarão-nos
diante de si. Os últimos conquistadores
estavão senhores do continente
, quando Caramurú chegou
entre elles; porém já se tinhão dividido
sobre a posse da sua preza.
A povoação , que tinha ficado entre
o Rio de S. Francisco , e Rio
Real fazia huma guerra sanguinolenta
ás tribus, que acabavão de
tomar posse do Reconcavo; e estes
mesmos se tractavão como inimigos,
os que habitavão de huma parte
da bahia dos que habitavão da outra
: cada partido exercia hostilidades
por mar , e por terra , e devorava
seus prisioneiros. Hum novo
motivo de discórdia acabava de excitar-se
entre os Tupinambas , q«e
¡habitavão a costa oriental ; e era.
Do Brasil.
í2t)
ó que nas épocas semibarbaras,
que nós chamamos heróicas , tem
dado assumpto á poesia ,• e á histoiia.
A filha de hum chefe tinha
sido roubada á seu pai, e o raptor
tinha recusado entregál-a. O
pai. , não tendo bastantes forças
para o obrigar á isso, tinha-se retirado
com a sua tribu para a ilha
de ltaporica. As povoações habitantes
das margens do grande rio
Paraguassú , tendo feito liga com
os fugitivos, travarão huma guerra
obstinada com o outro partido. A
Ilha de Nodo, ou da Pena traz
este nome das emboscadas, e dos
combates frequentes, de que ella
foi então o theatro. A tribu emigrada
augmentou-se, e estendeuse
ao longo da costa dos llheos ,
e a contenda se prolongou com
muita energia. • „
Tal era a situação dos Tupinambas
no Reconcavo , quando
Caramuru com seu temivel mosquete
veio fazer inclinar-se a balança
á favor da tribu hospitalei-
fli40 Historia
ra , de que elle se tinha tornado
chefe. Feliz , e tranquillo entre
estes selvagens , elle fazia esforço
por civilisai-os: fazia mesmo disposições
para dar á seu estabelecimento
mais consistencia , e huma forma
, que íosse mais regular , erendo-se
desterrado para sempre entre
os Tupinambüs, quando appareceu
de repente na entrada da Babia
hum navio Normando , que
partira de Dieppe para fazer no
Brasil huma viagem de descubertas
, e commercio. Depois de ter
entrado na bahia , lançou ancora
á vista de Caramuru , e dos Indios
reunidos: poz-se logo em correspondencia
com elles , de quem recebeu
viveres , e hum accolhimento
amigavel. De parte á parte fizerao-se
trocas de huma utilidade
reciproca. chegada imprevista,
do navio Francez fez nascer em
Caramuru 0 projecto de voltar á
Europa, e ir á Lisboa dar conta
ao Rei cle Portugal de seu naufragio
, e de seu feüz estabelecimento
Do Brasil. í2t)
em S. Salvador. Elie esperava merecer
por este meio a protecção , e
a animação do Monarcha. Caramiirü
facilmente obteve passagem
para si, e para Paraguazú , sua
mulher estimada , de quem elle não
queria separar-se. Prometteu á seus
hospedes, que voltaria logo , eembarcou-se
, levando com sigo amostras
da riqueza , e das curiosidades
do Brasil: mas as outras suas mulheres
índias não puderão supportar
este abandono, posto que* por
hum tempo limitado: ellas á nado
seguirão o navio com a esperança
de serem recebidas abordo. Amais
valorosa , ou a mais apaixonada
avança tão longe , que antes de
poder chegar á praia , suas forças
a abandonão. Em vão pede ella
soccorro ; Cciramurú não ouve mais
suas vozes : em vão'intenta ella
sustentar-se ainda sobre as va«as:
fraca , desfalecida , desesperada ,
ella succumbe , e morre nas ondas
victirfm do seu amor para com Caramuru,.
Historia
O navio apporrou com feliz
viagem nas costas da Normandia.
Henrique II. reinava então na
França. Altivo , generoso . e bemfazejo
, elle convidava os prazeres ,
e as artes á sua Corte. Caramurâ
appareceu nella debaixo cios auspícios
do Capitão , a quem elle devia
sua volta á Europa. Elle foi accolhido
, bem como sua mulher Paraguaia
, junto do Hei , e da Rainha.
Henrique , e Catharina cie
Medicis receberão estes viajantes
com hum prazer occulto ; por que
a Europa inteira então retumbava
com o arruido das descubertas maravilhosas
feitas nas duas índias
pelos Hespanhoes, e Portuguezes.
As outras Potencias marítimas não
vião sem hum sentimento de inveja
tantos paizes , e riquezas
exclusivamente invadidas , e cultivadas
, por duas únicas Nações
, que em outro tempo encantoadas
na Península Hespanhola ,
se estendião agora sobre os pontos
os mais remotos do globo. Henri-
Do Brasil. í2t)
que II. não se tinha esquecido das
palavras do Rei seu Pai á respeito
da America. " Eu quizera ( tinha
„dito Francisco I.) que se me
„ mostrasse o artigo do testamento
„ de Adão , que divide o Novo
„ Mundo entre meus irmãos olm-
„ perador Carlos V., e o Rei cie
,, Portugal , excluindo-me da suc-
„ cessão. ,, O Monarcha Francez
manifestou evidentemente a intenção
de participar da conquista do
novo hemisferlo , soüicitada além
disso pelos navegantes de Dieppe ,
que espreitavão as occasiões de terem
accesso á America. Henrique ,
e Catharina testemunhárão o desejo
de favorecer suas emprezas distantes.
Por tanto prodigalisárão com
os estrangeiros vindos do Brasil os
signaes do mais vivo interesse. A
moça índia attrahia principalmente
a curiosa attenção dos Cortezãos
Francezes , admirados de verem a
filha de hum chefe dos selvagens
no meio da Côrte a mais polida da
Europa. Deu-sç pressá á ganhal-a
Tom, /. N
fli40 Historia
para a Religião , e ParacjuaÇÜ foi
baptizada solemnemente. A Rainha ,
dando o seu nome de Catharina á
esta nova Christã , servio-lhe de
Madrinha , e o Rei de Padrinho.
Fez-se-lhe conhecer, não sem trabalho
, mas com feliz successo , a
Religião , que ella acabava de abraçar
, e os usos da Europa. Seu marido
Caramuru , bem que lisongeado
pelo accolhimento , que lhe fazia
a Côrte de França , não perdia
de vista Lisboa , sua patria, e se
dispunha a partir para ella : porém
o Governo Francez lhe negou o
consentimento. As honras , que se
lhe tinirão dado , não erão nada
menos, que gratuitas: o Rei pertendia
servir-se delle no paiz , que
elle tinha descuberto. Caramuru
deixou-se facilmente persuadir a
conduzir hurra expedição mercante
á Costa dos Tupinambas da Bahia
, e de favorecer nella as relações
de troca , e commercio entre
os Francezes, e os naturaes. Com
effeito elle chegou a enviar á D.
Do Brasil. í2t)
João III. por intervenção de Pedro
Fernandes Sardinha , joven Portuguez
, que tinha concluído os
seus estudos em Pariz , e que ao
depois foi o primeiro Bispo do Brasil
, as informações , que não se
permittia , que elle mesmo levasse:
elle por cartas exhortava o Rei de
Portugal para colonisar o paiz delicioso
, que tinha cahido em seu
poder de hum modo tão estranho.
Ao depois com hum rico commerciante
Francez fez huma convenção
, em virtude da qual os navios
carregados de objectos úteis para
o trafico com os naturaes do Brasil
forão sujeitos á sua disposição ,
bem como as munições , e a artilheria
destes navios , logo que chegassem
á Bahia. Caramarú obrigou-se
da sua parte a carregal-os
de pio brasil, e de oatros generos
uteis ao commercio para a volta.
Elle partio com estes dois navios
, conduzindo com sigo sua mulher
Catharina ; e .favorecido por
huma navegação rapida, ancorou
N 2
içô Historia
logo em S. Salvador , achando sua
pequena colonia no mesmo estado, 4
em que a tinha deixado. Os Tupinambos
tornárão a ver com transportes
de alegria aquelle, que elles
consideravão ao mesmo tempo
como seu pai, e seu chefe supremo.
Sua primeira operação foi fortificar
seu pequeno estabelecimento.
Sua mulher Paragua^u , entusiasmada
com o nome de Catharina ,
e com os talentos , que tinha adquirido
na Europa, fez todos os
esforços para converter , e para civilisar
seus selvagens compatriotas.
]á no meio das primeiras cabanas
se acaba de fundar huma Igreja:
já o mesmo Caramuru tinha distribuido
muitas plantas de cannas,
começado a cultura das terras , attrahido
, e ajuntado por meio de
beneficios o? naturaes , até então
errantes, e dispersos, quando appareceii
na Bahia a expedição preparada
em Lisboa , e commandada
' por Pereira Coutinho , para vir
tomar posse da provincia inteira;
I
Do Brasil. í2t)
apparição funesta , que espalhou a
consternação em toda a colonia.
Armado da authoridade real ,
Coutinho assentou o seu estabelecimento
na Bahia no lugar agora
chamado Villa Velha , que era a
habitação de Caramuru , á quem
recorreu logo para ter bom êxito
na sua empreza colonial. Dois de
seus companheiros, que erão de
prigem nobre , casarão se com duas
das filhas de Caramurú ; e por
causa deste forão seus compatriotas
estimados pelos naturaes de sorte ,
que tudo continuou em socego por
algum tempo. Mas Coutinho não
vio logo em Caramuru , se não
hum occulto inimigo de seu poder:
elle tinha servido nas Grandes índias
; e se fazia então muito preciso
, que as índias fossem para
os Portnguezes huma escolla de humanidade
, e de politica. Coutinho
servio-se do meio da força; condemnou
tudo , o que se tinha feito
até então , e censurou principalmente
os meios de doçura , empre?
Historia
gados para captar a benevolencia ,
e a amizade dos naturaes. Estes
não virão neste novo cheíe , se
não hum senhor intractavel , despótico
, decidido a se estabelecer
no seu paiz pelo direito de conquista.
Seus soldados , ou antes
seus aventureiros , que elle tinha
ajuntado , e trazido em seu seguimento
, assignalárão sua chegada
com todas as especies de violencias ,
e de rapinas: hum delles matou o
filho de hum chefe dos naturaes.
Coutinho pagou caro esta cruel
offensa. Os ferozes Tupinambas ,
os mais temiveis de todos os selvagens
Brasileiros , não respirárão
mais, que vingança. Então começou
huma longa perseguição contra
toda esta horda , tão pouco acostumada
ase ver á prova de actos de
severidadee de rigor. Em vão
Caramuru pertendeu livrar da oppressão
os índios hospitaleiros , ao
mesmo tempo seus alliados, seus
' hospedes, e seus amigos. Olhado
como importuno , e suspeito, foi
Do Brasil.
preso por ordem de Coutinho, tirado
de sua mulher , e passado para
bordo de huma embarcação. O
rumor cia sua morte falsamente espalhado
, lançou a desesperação na
alma de Paragua^á , que para vingal-a
armou não só os selvagens
da sua nação , mas até chamou em
seu soccorro os Tamoyós , seus
visinhos.
Aos dias felizes, e tranquillos
que tinhão acompanhado a chegada
, e o estabelecimento de Caramurá
na Bahia, succedêrão dias
de tristeza, e de carnagem. Apezar
da superioridade, que as armas de
fogo parecião dever assegurar aos
Portuguezes , os Brasileiros , furiosos
, e reunidos em grande numero ,
inflammados além disso pelos clamores
de raiva de Paraguaia , queimarão
os engenhos de sssucar , destruirão
as plantações, matarão hum
filho de Coutinho ; e depois de huma
guerra sanguinolenta, que durou
muitos annos „ arrasárão em
fim. as. obras erigidas pelos Porfu-
fli40
Historia
guezes, e obrigárão seu chefe a
procurar sua salvação nos navios.
Reduzido á esta vergonhosa extremidade
, Coutinho se retirou com
os restos da sua equipagem , e com
os seus dois navios para a visinha
Capitania dos Ilheos, que Jorge de
Figueiredo começava a colonisar.
Caramuru , sempre preso , foi conduzido
oelos Portuguez.es. Mas apenas
se tinhão retirado , quando os
Tupinambas sentirão a falta das
mercadorias da Europa , que consideradas
por elles ao principio como
objectos de luxo , e de ornato,
se tinhão ao depois tornado em necessidades.
Logo que se socegárão
as differenças , concluio-se huma
convenção entre os enviados de
Coutinho , e alguns chefes dos Tupiri
ambas , que tractárão com tudo
sem participação de todas as povoações.
Coutinho, tendo procurado ai*
guns reforços, embarcou-se em huma
caravella e deu á vela para
a Bahia. Caramurá seguio-o em.
Do Brasil. í2t)
outra caravella. Mas apenas chegárão
a avistar o golfo, quando
huma tempestade , que se levantou
de repente , assaltou as embarcações
, e as fez encalhar , antes de
passar, a barra nas baixias da illia
A de ltaporica. Os Tupinambos ,
que presenceavão este naufragio ,
eque tinhão conhecido, e assignalado
seu oppressor , avanção se com
suas massas de guerra , apezar cía
opposição dos chefes , que tinhão
chamado Coutinho , e embarcándose
em tropel nas suas canoas , unemse
com os da ilha, queestavão em
peleja com a equipagem de Coutinho.
Este Capitão tinha já ganhado
a praia ; mas elle não acabava
de escapar ao furor das ondas
, se não para soffrer a vingança
dos Brasileiros. Atracado rodeado
por huma multidão de inimigos
furiosos , morreu ferido de hum
grande golpe de massa. Sua cabeça ,
separada do corpo , e ornada de
pennas , foi levada em triumfo pelos
vencedores, que manifes árão
l
fli40
Historia
huma alegria acompanhada de grir
tos, devorarão seus prisioneiros, e
se regozijarão de terem principalmente
fartado sua raiva contra o
mais cruel inimigo da sua povoa»
ção. As equipagens de Caramurá
forão poupadas em attenção á elle
que tornou a entrar em sua antiga
povoação, e a levantar sua colonia
com o soccorro dos Tupinambas ,
sobre os quaes elle tornou a tomar
seu antiga ascendente. A mulher ,
e os filhos! de Coutinho não perecerão
com elle ne*ta luta cruel;
por que he provável, que elles tivessem
sido deixados nos Ilheos ;
mas perderão seu dominio , e tudo ,
que Coutinho havia obtido dos Brasileiros.
Passárão o resto da vida
miseravelmente ; porque não tinhão
outro recurso , se não a caridade
publica; e morrerão victimas da
imprudente tyranaia de Coutinho.
livro sexto.
Progresso da. Capitania de S. Vicente.
Tentativas desgraçadas
de Aleixo Garcia , e de George
Sedenho para chegarem ao Brasil
por Paraguay. Primeiras
hostilidades entre os Hespanhoes
do Paraguay , c os Portugueses
do Brasil. Renovação
da guerra em Pernambuco. Cerco
do Garassú pelos Cahetés.
Chegada de D. Thomé de Sou-
7,a , primeiro Governador Geral
, ao Brasil. Fundação da
cidade de S. Salvador. Regularisação
politica la. colonia.
1540 —1550.
Ei M quanto os Tupinamba? da
Bahia sahião vencedores da su? " i-
204 Histori a
meira luta com os Portugueses , a
cobiça, e a inveja sopravao a discordias
e a guerra entre os colonos
de S. Vicente, e os Hespanhoes
seus visinhos , já senhores
das margens do Paraguay , e do
rio da Prata. <
Estas contendas entre duas Nações
, quasi sempre rivaes , terião
ensopado de sangue os dois hemis-
. ferios ^ se os laços da benevolencia,
e d r parentesco não tivessem
unido estreitamente Carlos V. , e o
Rei de Portugal.
Apenas tinhão-se passado deseseis
annos depois da descuberta do
Brasil, e já florescia a colonia de
S. Vicente , situada em hum pequeno
golfo á quarenta leguas ao
Sul do Rio de Janeiro.
Hum clima temperado , altas ,
e ricas montanhas, rios límpidos ,
e abundantes de peixe , valles ferteis,
e habitados por naturaes mansos,
e sociáveis , muitos golfos profundos
, e sobre toda a costa hum
gY Je numero de ilhas pictorescas,
Do Brasil. í2t)
taes erão as numerosas vantagens,
que esta bella parte do Brasil offerecia
á seus novos possessores.
Por tanto o estabelecimento de S.
Vicente foi hum , dos que mais rapidamente
chegárão a colonisar-se.
Ao Sul , e á Oeste estão as
fronteiras do Paraguay , ou o paiz
da Prata , que recebe este duplicado
nome de dois rios . ciue o régão.
O Paraguay recoii decido por
Solis , foi submettido á Gorda de
Castella quasi no mesmo tempo ,
em que o Brasil entrava no dominio
Portuguez : elle ainda mais particularmente
passou a ser liuma
conquista dos Missionários da Companhia
de Jesus , aos quaes deveu
em parte sua civilisação. Desde a
sua origein as províncias do Paraguay
, limitrophes do Brasil , forão
muitas vezes o obj, ;ro , e o theatro
de mais de hum debate politica
entre as duas Nações rivaes. As
novas possessões Hespanholas, podendo
servir de passagem pa*a ir
do Brasil ao Peru , era princ' i-
Historia
mente por este motivo , que o conhecimento
geográfico , e a frequentação
do Paraguay se fazião de hum
grande interesse para os Portugueses
de S.Vicente. Começava então
a espalhar-se o rumor , que os Hespanlioes
tiravão immensas riquezas
do Perú , e logo os Portuguezes
conceberão o desejo de terem nellas
parte com JS seus visinhos da America.
• Afto'iso de Souza , Capitão
General^ a colonia, julgando dever
ceder ás instancias deseuscom¿
patriotas , permirtio á Aleixo Garcia
que unia a actividade á intrepidez
, que partisse acompanhado
de seu filho , e de outros tres Portuguezes
, para indagar as minas
dtí^oiro , e abrir á colonia hum caminho
até o Perú. Garcia dirigióse
para o Occidente , e encontrou
nas* margens ) Paraná a grande
povoação dos Chanai^es, índios
hospitaleiros , aos quaes elle se nnío
pelos laços da amizade , e do casamei
to. Perto de mil se resolverão
a ¿nil-o na sua espantosa expe-
Do Brasil. í2t)
dição. Alguns índios Tarupecocios
e Chiri guanos engrossárão seu pe*
queno exercito. Garcia passou 0
rio ; e abrindo a derrota ou á força
descuberta , ou alliando-se á novas
povoações , ajuntou oiro , e
penetrou até as fronteiras doPerú.
Na volta para o Paraná , no ponto
intermedio cia sua partida , concebeu
o projecto deform _ _Jii hum
estabelecimento estável , q lt- servisse
de pouso á seus com -atriotas ,
que qnizessem aproveitar-se de suas
descubertas. Com esta intenção envioit
ao Brasil dois Portuguezes da
sua comitiva para informarem a
Affonso de Souza do successo da
sua viagem , e para lhe communicar
seus planos ulteriores: além
disso enviou também algumas barras
de oiro para convencer a
seus compatriotas, sua viagem
tinha sabido á medida dos seus desejos.
Apenas os dois emissários de
Garcia se apartáráo delle , quando
os índios, que o acompanha vi ^ ,
6 assassináruo , se apoderárão >
fli40
Historia
seu thesoiro , e aprisfòiiárão s»tt
filho. Eisaqui ao menos, o que a
tradição tem conservado com mais
verosimilhança entre os índios Chanaipes
á respeito da historia deste
aventureiro Portuguez: deve sentir-se
o não se terem recolhido todas
as relações á este respeito. Garcia
devia ser dotado de talentos
extraor-Aries; pois que não sendo
a^ n ip-.iihado , se não por cinco
Europêoí, , tinha chegado a levantar
hum exercito entre os selvagens
, e a abrir até o meio do caminho
, no continente da America
Meridional, derrotas até então desconhecidas.
O respeito , que os índios
destes paizes tributão á sua
memoria, prova bem , que elle era
tão hábil , e tão denodado , como
nenhum dos co r quistadores da America
; e he r> jvavcl , que os excedesse
em humanidade. Os velhos
índios dizião ainda muito tempo
depois da sua morte , que erão ami-
¿[os Ch,í*sCãos, depois que Garc
viera visital-o?, e fazer trocas.
Do Brasil. í2t)
Depois de ter feito celebrar huma
Missa ao Espirito Santo , Souza
lançou os fundamentos da nova cidade
meia - legua pouco mais . ou
menos distante cio estabelecimento
antigo , ao laclo direito do golfo ,
sobre huma eminencia escarpada,y
abundante de agitas perennes , e
que se eleva em p'brttai distancia
cia praia. Elle deu o 'nome de S.
Salvador á esta Metrop >ie,dn Brasil
, situada aos treze gi^js de latitude
austral, perto de ,mm porto
vasto, e comino cia., que se dilata
na Bahia de Todos os Santos. A
cidade clevia occupan lium grande
espaço por causa cjá'desigualdade
do terreno., e dos Jardins numerosos
, que se tinh&o poupado. LevantárSo-se
duas baterias cía parte
do mar , e quatro ('a parte de tetra.
Os 'Tnpinembas , ciliciados pela
influencia de Caramu 1 , pela conducta
circumspecta do Governador >•*,
e pelos generos de troca., que os
colonos oíferecião sem uas
necessidades, e á ¡>na „uiáos.», >
p a » :
228 fíistoríd.
trabalharão com deligencía na edificação
da cidade nascente. Huma
Cathedral, o palacio do Governador,
ea Alfandega forão os primeiros
edifícios traçados , e começados
logo. Em quatro mezes fundarão.se
cem cazas com cercas , e
plantações em utilidade da agricultura.
Não se poupou á dispcza alguma
para a prompta edificação
das I^rejfc >. Elias forão traçadas
sobre ln' r ia escada espaçosa , para
que ein CÍ.SO de necessidade pudessem
servir como de trincheiras , e
de cidadellas. Sua posição bem escolhida
dominava á bahia , e á todo
o campo circumvisinho. Os Missionários
jesuitas obtiverão aposse
de hum terreno immenso , onde
logo fundarão huma Igreja , e hum
Collegio magnif.cos , para os quaes
a Coroa ao d pois lli^s assignou
rendimentos
Reinava a maior actividade na
fundação d-« nova capital. O Gove,'^Uor
r-ral presidia pessoal-
V ao: trabalhos ; elie pen?
Do Braqit. a
fli40 Historia
liç^.o terrível , se abstiverâo de ir
aftoutamente ao meio dos selvagens.
Dentro em pouco tempo levantou-se
hutn muro de terra ao redor
da cidade , como huma fortificação
temporaria de huma força sufficiente
contra as hordas dos índios. Os
colonos , pacíficos possuidores do
-territoric ^. costa , virão a Capital
do Br a, J levantar-se, dominar
á hum poi o espaçoso , e commodo ,
tendo de hum lado o vasto mar ,
e de outro hum lago , que se alargava
, e terminava na praia , cercava
, e defendia a cidade pela
parte do Norte. Huma tão feliz
situação a fazia naturalmente muir
o forte. Fossos , paliçadas , e muitas
peças de artilheria a puzerão
logo á abrigo de qualquer surpreza.
Passou 9 ..er o centro do governo
, e da colônia , e se estabeleceu
nella h:.m Tribunal Real. Thomé
de Souza voltou logo sua att^jjík}
par as differentes capitanj';?.
c|ue se tinhão successivamente
Do Brasil. í2t)
levantado em todas as partes da
marinha do Brasil. Visitou-as, examinou
suas fortificações, regulou a
administração cia ]usriça , e ordenou
aos clifferentes Commandantes,
ou senhores concessionários , que
não emprehendessem descnberta alguma
nova , ou expedição alguma
hostil sem huma ordt-m especial ,
emanada delle ; porque não queria
(dizia elle) oppôr , senãihuma defeza
legitima ás aggressnp/ das povoações
selvagens. Restringidos assim
em justos limites os privilégios
dos grandes concessionários não
servirão de obstáculo á acção
do governo geral, que desde então
pôde dar hum impulso uniforme ao
systema de defeza commum , e á
administração colonial.
No anno seguinte a Corte de
Lisboa enviou soccc-os de toda a
qualidade á Capital cu.s novas posi
sessões. A dispeza total dos dois
armamentos foi avaliada em trezentos
mil cruzados.
Chegou igualmente outra- iro» a
Historia
de Lisboa á Bahia no terceiro anV
no, Neila tinha a Rainha de Portugal
feito embarcar muitas órfãs
de famílias nobres, que devião ser
casadas com officiaes , ou com sugeitos
, que tivessem empregos públicos.
Derão-selhes em dote, á
custa da Fazenda Real , negtos ,
vaccas, e cavallos: erão estes os
objectos, que constituião a primeira
riqueza da colônia nascente. Forão
também enviados de Lisboa meninos
orfãos para serem educados
pelos Missionários Jesuítas; e todos
os annos chegavão á Bahia navios
, que trazião os mesmos soccorros
, as mesmas addiiçoes de
meios, e de forças. Taes medidas
fizerão prosperar rapidamente tanto
a Capital do Brasil , como as
cidades , e víllas da costa , que participavão
do seu augmento súccessivo.
Mas isto não era , por assim dizer
, se não huma prosperidade mater'
' , e p 'itica ; por que a mo-
& a Religião são os únicos fun-
Do Brasil. í2t)
damentos reaes das sociedades. Debaixo
desta ultima relação tndo estava
ainda por crear no Brasil;
todas as desordens , os excessos de
toda a qualidade estavão levados
ao maior gráo entre os colo ios. Para
impedir o curso desta devassidão
nada menos era preciso , que restabelecer
o. império dos costumes.
Este triumfo estava reservado á
Religião , e aos Missionários Jesuítas.
"Nós vamos vêl-os esnalhar por
todas as partes as luzes da civili»
sação , e como verdadeiros Apóstolos
multiplicar seus esforços , para
leprimir a cubiça feroz dos invasores
Portuguezes, e a vingança
talvez muito justa dos povos selvagens.
FIM DO PRIMEIRO TOMO.
M
(« i
h\
L I S T A
Dos Senhores Subscritores
para a Historia do Brasil.
.Â. Gostinho Coelho de Almeida."
Alexandre Fortes de Bustamante
Sá.
Alexandre Gil Vaz Lobo.
Angelo de Proença Unhão.
Antonio Alves.
Antonio Alves de Brito.
Antonio de Abreu Froes.
Antonio Firmino Chaves.
Antonio Garcia Pacheco de Almeida.
Antonio Gomes Fogaça.
Antonio José Lopes de Araujo ,
filho.
Antonio José de Medeiros.
Antonio José Moreira .Guimaraens.
Antonio José Pinto.
Antonio Manoel dos Santos.
* Antonio Mauricio Salgueiro Nogueira.
' ;
Antonio Nascentes Pinto.
«i
Antonio Pereira Gonçalves.
Antonio Pinheiro de S. Paio
Bernardo, Carneiro Pinto de Almeida.
Bernardo Joaquim da Costa.
Bbpo Eleito de Meliapor.
Camillo Caetano dos Reis.
Candido Lazaro de Moraes.
Carlos dos Santos de Oliveira Pinto.
Cezareo Marianno.
Claudiano José cie Matos.
Claudio José dos Santos.
Damião Pereira da Costa.
Domingos Alves Loureiro.
Emiliano Faustino Lins.
Estanisláo Francisco Lopes,
Eugénio Martins Pimentel.
Felizardo Joaquim da Silva Moraes.
Fernando Carneiro Leão.
Fidelis Honorio da Silva dos Santos
Pereira.
Filipp e J 0sé fie Medeiros.
Francisco Antonio da Fonceca Cunha.
Francisco Caetano da Silva.
Francisco Claudio Pinto da Cunha t,
f Souza.
Francisco Joaquim de Lima.
fA
Francisco ]osé Alves da Silva.
Francisco José de Brito.
Francisco José Gomes da Silvai
Francisco José Guimarães.
Francisco José Nicoláo.
Francisco ]o é Rodrigues.
Francisco Julio Xavier.
Francisc de Lemos de Faria Pereira
Coutinho.
Fra ncisco Maria Gordilho Velozo
Barbuda.
Francisco Manoel da Silva e Mello.
Francisco de Paula Cominho.
Francisco Pinto de Barros.
Francisco da Silva Alves.
Francisco da Silva Barros.
Francisco Xavier Dantas Moreira.
Gaspar Jose de Matos Ferreira Lucena.
Geraldo Carneiro Belleus.
Henrique José Pinto Ribeiro de Vasconcellos
, e Sousa.
Jacinto de Mello Menezes Palliares.
Januário Mathtns do Kego.
Jeronimo Gonçalves Guimarães.
João Alves de Souza Guimarães.
João Antonio Airoza.
João Baptista de. Almeida.
JoSo Baptista c!e Freiras.
João Baptista Trancozo de Lira.
João Carneiro de Campos.
João Coireia de Figueiredo.
João ria Cruz dos Reis.
João Diniz Vieira.
João Francisco Leal.
Jof.o )osé rle Mello. > '
j ão Manoel Martins da Costa,
jnão Martins Lourenço Viana.
João Nt-pomuceno de Souza.
João de Oltveira Cunha.
João Pedre de Carvalho.
João Rodiigues da Costa.
João de Souza Murça.
Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro.
Joaquim Dias Medronho.
Joaquim Dias Moreira.
Joaquim Gonçalves de Moraes.
Joaquim Ignacio Moreira Dias.
Fr. Joaquim de S. José.
Joaquim José Cardo?o.
Joaquim José da Cruz Secco.
Joaquim Jqeé Cornet da Silva , filho-
Joaquim José Pereira do Faro.
Joaquim José ¡da Silva.
JoaOTim José de Siqueira,
joa^r.im d?,. Mtilo Rodrigues.