Papel e pel-355cula da montagem liter-341ria - Centro de Ensino ...
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CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DE JUIZ DE FORA<br />
ÉRICA FERNANDES COSTA DUARTE<br />
PAPEL E PELÍCULA:<br />
DA MONTAGEM LITERÁRIA À<br />
CINEMATOGRÁFICA EM<br />
VIDAS SECAS<br />
Juiz <strong>de</strong> Fora<br />
2007
ÉRICA FERNANDES COSTA DUARTE<br />
PAPEL E PELÍCULA:<br />
DA MONTAGEM LITERÁRIA À<br />
CINEMATOGRÁFICA EM<br />
VIDAS SECAS<br />
Dissertação apresenta<strong>da</strong> ao <strong>Centro</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Ensino</strong> Superior <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora, como<br />
requisito parcial para a conclusão do<br />
Curso <strong>de</strong> Mestrado em Letras, Área <strong>de</strong><br />
Concentração: Literatura Brasileira.<br />
Linha <strong>de</strong> Pesquisa: Literatura brasileira:<br />
tradição e ruptura.<br />
Orientadora: Professora Doutora Maria <strong>de</strong><br />
Lour<strong>de</strong>s Abreu <strong>de</strong> Oliveira.<br />
Juiz <strong>de</strong> Fora<br />
2007
Ficha Catalográfica elabora<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a Biblioteca Es<strong>de</strong>va – CES/JF<br />
Bibliotecária: Alessandra C. C. Rother <strong>de</strong> Souza – CRB6-1944<br />
DUARTE, Érica Fernan<strong>de</strong>s Costa.<br />
<strong>Pa<strong>pel</strong></strong> e <strong>pel</strong>ícula: <strong>da</strong> <strong>montagem</strong> <strong>liter</strong>ária à cinematográfica em<br />
Vi<strong>da</strong>s secas. [manuscrito] / Érica Fernan<strong>de</strong>s Costa. – Juiz <strong>de</strong> Fora:<br />
<strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Ensino</strong> Superior <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora, 2007.<br />
96 p.<br />
Dissertação (mestrado em Letras) – <strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Ensino</strong> Superior<br />
<strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora (MG), Área <strong>de</strong> concentração: Literatura brasileira.<br />
“Orientadora: Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Abreu <strong>de</strong> Oliveira”<br />
1. Literatura brasileira. 2. Graciliano Ramos, 1892-1953. 3.<br />
Ficção brasileira – Cr´tica e interpretaçãoI. <strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Ensino</strong><br />
Superior <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora. II. Título.<br />
CDD – B869.09
FOLHA DE APROVAÇÃO<br />
DUARTE, Érica Fernan<strong>de</strong>s Costa. <strong>Pa<strong>pel</strong></strong> e<br />
<strong>pel</strong>ícula: <strong>da</strong> <strong>montagem</strong> <strong>liter</strong>ária à<br />
cinematográfica em Vi<strong>da</strong>s secas. Dissertação<br />
apresenta<strong>da</strong> ao <strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Ensino</strong> Superior <strong>de</strong><br />
Juiz <strong>de</strong> Fora, como requisito parcial para a<br />
conclusão do Curso <strong>de</strong> Mestrado em Letras.<br />
Área <strong>de</strong> concentração: Literatura Brasileira.<br />
Linha <strong>de</strong> Pesquisa: Literatura brasileira:<br />
tradição e ruptura. Realiza<strong>da</strong> no 1º semestre <strong>de</strong><br />
2007.<br />
BANCA EXAMINADORA<br />
Professora Doutora Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Abreu <strong>de</strong> Oliveira<br />
Orientadora Acadêmica<br />
Professora Doutora Thereza <strong>da</strong> Conceição Appareci<strong>da</strong> Domingues<br />
Examinado(a) em: ____/____/______<br />
Conceito: ______________________<br />
Professor Doutor Alexandre Graça Faria
Dedico este trabalho à minha família, que<br />
galgou junto a mim todos os <strong>de</strong>graus que<br />
levaram a esta gran<strong>de</strong> vitória.
AGRADECIMENTOS<br />
Agra<strong>de</strong>ço a Deus por ter me guiado e protegido, tanto a mim, quanto a minha<br />
família, e nos <strong>da</strong>do muita saú<strong>de</strong>, ao longo <strong>de</strong> to<strong>da</strong> esta jorna<strong>da</strong>.<br />
Agra<strong>de</strong>ço a meus amados pais Roberto e Fátima <strong>pel</strong>o incentivo, amor e atenção,<br />
principalmente <strong>pel</strong>a aju<strong>da</strong> no cui<strong>da</strong>do com as crianças, que tanto me foi útil na<br />
confecção <strong>de</strong>ste trabalho.<br />
Agra<strong>de</strong>ço à minha irmã Roberta e as minhas queri<strong>da</strong>s vovós Leontina e Ítala <strong>pel</strong>o<br />
orgulho que <strong>de</strong>monstram sentir por mim, um sentimento que se mostra recíproco.<br />
Agra<strong>de</strong>ço à professora Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s, minha gran<strong>de</strong> orientadora, exemplo <strong>de</strong><br />
garra feminina, e a pessoa responsável <strong>pel</strong>a minha aventura cinematográfica<br />
<strong>de</strong>scrita neste trabalho.<br />
Agra<strong>de</strong>ço à professora Thereza Domingues <strong>pel</strong>o imenso carinho que me foi<br />
dispensado ao longo <strong>de</strong> todo o convívio no Mestrado do CES, além, <strong>da</strong>s preciosas<br />
dicas bibliografias, sem dúvi<strong>da</strong>, importantíssimas.<br />
Agra<strong>de</strong>ço ao professor William <strong>pel</strong>as competentes aulas sobre as teorias<br />
contemporâneas, vitais na escolha <strong>da</strong>s correntes <strong>liter</strong>árias utiliza<strong>da</strong>s neste trabalho.<br />
Agra<strong>de</strong>ço à professora Nícea <strong>pel</strong>a imensa confiança que <strong>de</strong>positou em mim, além <strong>de</strong><br />
servir-me como um gran<strong>de</strong> exemplo <strong>de</strong> profissional competente e mãe carinhosa.<br />
Agra<strong>de</strong>ço principalmente a meus amados filhos Eduardo e Gabriela <strong>pel</strong>as longas<br />
ausências e <strong>pel</strong>as faltas. O sacrifício foi <strong>de</strong> todos nós. Obriga<strong>da</strong> por enten<strong>de</strong>rem<br />
isso.<br />
Finalizando, agra<strong>de</strong>ço muito a meu marido André, meu maior incentivador, meu<br />
amor, companheiro, compreensivo e paciente, mas acima <strong>de</strong> tudo meu parceiro,<br />
nesta e em outras empreita<strong>da</strong>s <strong>de</strong>sta vi<strong>da</strong>.
“Os inimigos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> torcem o nariz diante<br />
<strong>da</strong> narrativa crua, <strong>da</strong> expressão áspera.<br />
Querem que se fabrique nos romances um<br />
mundo diferente <strong>de</strong>ste, uma confusa<br />
humani<strong>da</strong><strong>de</strong> só <strong>de</strong> almas, cheias <strong>de</strong><br />
sofrimentos atrapalhados que o leitor<br />
comum não enten<strong>de</strong>. Põe essas almas<br />
longe <strong>da</strong> terra, soltas no espaço. Um<br />
espiritismo <strong>liter</strong>ário excelente como<br />
tapeação. [...] A miséria é incômo<strong>da</strong>. Não<br />
toquemos em monturos. [...] São<br />
<strong>de</strong>licados, são refinados, os seus nervos<br />
sensíveis em <strong>de</strong>masia não toleram a<br />
imagem <strong>da</strong> fome e o palavrão obsceno.<br />
Façamos frases doces. Ou arranjemos<br />
torturas interiores, sem causa. [...] E a<br />
<strong>liter</strong>atura se purificará, tornar-se-á<br />
inofensiva e cor-<strong>de</strong>-rosa, não provocará o<br />
mau humor <strong>de</strong> ninguém, não perturbará a<br />
digestão dos que po<strong>de</strong>m comer. Amém”.<br />
(Graciliano Ramos, 1938)<br />
"Este filme não é apenas uma<br />
transposição fiel para o cinema <strong>de</strong> uma<br />
obra imortal <strong>da</strong> <strong>liter</strong>atura brasileira. É<br />
antes <strong>de</strong> tudo, um <strong>de</strong>poimento sobre uma<br />
dramática reali<strong>da</strong><strong>de</strong> social <strong>de</strong> nossos dias<br />
e a extrema miséria que escraviza 27<br />
milhões <strong>de</strong> nor<strong>de</strong>stinos e que nenhum<br />
brasileiro po<strong>de</strong> ignorar”.<br />
(Nélson Pereira dos Santos, 1964)
RESUMO<br />
DUARTE, Érica Fernan<strong>de</strong>s Costa. <strong>Pa<strong>pel</strong></strong> e <strong>pel</strong>ícula: <strong>da</strong> <strong>montagem</strong> <strong>liter</strong>ária à<br />
cinematográfica em Vi<strong>da</strong>s secas. 96 p. Dissertação (Mestrado em Letras). <strong>Centro</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Ensino</strong> Superior <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora, 2007.<br />
O romance Vi<strong>da</strong>s secas, obra do escritor alagoano Graciliano Ramos, foi escrito no<br />
ano <strong>de</strong> 1938. A saga <strong>de</strong> Fabiano e sua família <strong>pel</strong>o sertão nor<strong>de</strong>stino é uma<br />
<strong>de</strong>núncia <strong>da</strong> triste reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> seca, que há séculos escraviza e mata brasileiros<br />
que habitam o sertão do Nor<strong>de</strong>ste brasileiro. Em 1963, Nélson Pereira dos Santos,<br />
com os mesmos i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia, a<strong>da</strong>ptou <strong>pel</strong>a ótica do Cinema Novo o romance<br />
para o cinema, levando às platéias ao redor do mundo a dura situação do interior<br />
nor<strong>de</strong>stino. Este trabalho, <strong>de</strong>nominado <strong>Pa<strong>pel</strong></strong> e <strong>pel</strong>ícula: <strong>da</strong> <strong>montagem</strong> <strong>liter</strong>ária à<br />
cinematográfica em Vi<strong>da</strong>s secas, tem por principal objetivo analisar a transposição<br />
<strong>de</strong>sta obra, do hipotexto para o hipertexto. A presente dissertação apresenta a<br />
biografia e as concepções políticas marxistas <strong>de</strong> Graciliano Ramos, enfocando os<br />
personagens oprimidos e opressores, em constantes choques. A seguir, é analisa<strong>da</strong><br />
a <strong>de</strong>s<strong>montagem</strong> <strong>da</strong> narrativa <strong>liter</strong>ária. É <strong>de</strong>scrito também o Cinema Novo, bem como<br />
são abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s as questões relativas à transposição cinematográfica, fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />
cultura <strong>de</strong> massa. Finalmente, o hipertexto Vi<strong>da</strong>s secas e a <strong>de</strong>s<strong>montagem</strong> <strong>de</strong>sta<br />
narrativa fílmica são objetos <strong>de</strong> análise. Este trabalho apóia-se teoricamente na<br />
Crítica Literária Sociológica, na Semiótica e na Dialética. Como conclusão, explicitase<br />
que a transposição <strong>da</strong> <strong>montagem</strong> <strong>liter</strong>ária à cinematográfica do diretor Nélson<br />
Pereira dos Santos, empregando os recursos específicos <strong>da</strong> narrativa fílmica,<br />
conseguiu manter o caráter <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia social <strong>da</strong> obra <strong>liter</strong>ária <strong>de</strong> Graciliano<br />
Ramos.<br />
Palavras-chave: Vi<strong>da</strong>s secas; Graciliano Ramos; Literatura Brasileira; Nélson<br />
Pereira dos Santos; Marxismo; Cinema Novo.
ABSTRACT<br />
The Barren Lives novel, from the Brazilian writer Graciliano Ramos, was written in<br />
the year of 1938. Fabiano and his family’s miserable wan<strong>de</strong>ring in the Northeastern<br />
interior is an accusation of the aridity’s sad reality, whom for centuries enslaves and<br />
kills inhabitants of the Brazilian Northeast interior. In 1963, Nélson Pereira dos<br />
Santos, with the same accusation i<strong>de</strong>als, a<strong>da</strong>pted this novel to the movies, by the<br />
Cinema Novo Movement optics. I took to the audiences around of the world the sad<br />
situation of the Northeastern interior. This study is <strong>de</strong>nominated Paper and film: from<br />
the <strong>liter</strong>ary to the cinematographic mounting in Barren Lives. It has for main objective<br />
analyzing the transposition from the hipotext for the hipertext. This dissertation<br />
presents the Graciliano Ramos' biography and his Marxist political conceptions,<br />
focusing the oppressed characters and their oppressors, in constant shocks. The<br />
<strong>liter</strong>ary narrative dismounting is analyzed. It is also <strong>de</strong>scribed the Cinema Novo<br />
Mouvement, as well as the relative subjects of the cinematographic transposition,<br />
fi<strong>de</strong>lity and mass culture. Finally, the hipertext and its filmic narrative dismounting are<br />
objects of analysis. This work is theoretically based on the Sociological Literary<br />
Criticism, the Semiotics and the Dialectics. As conclusion, the cinematographic<br />
transposition from director Nélson Pereira dos Santos, using the filmic narrative’s<br />
specific resources, reached the goal of maintaining the social accusation character of<br />
Graciliano Ramos' <strong>liter</strong>ary work.<br />
Key-words: Barren lives; Graciliano Ramos; Brazilian Literature; Nélson Pereira dos<br />
Santos; Marxism; Cinema Novo.
SUMÁRIO<br />
INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 10<br />
1 BIOGRAFIA E MILITÂNCIA POLITICA DE GRACILIANO........................ 14<br />
2 OPRIMIDOS E OPRESSORES: PERSONAGENS EM CHOQUE............. 22<br />
2.1 UM OLHAR MARXISTA............................................................................... 22<br />
2.1.1 Contexto histórico........................................................................................ 22<br />
2.1.2 Características básicas do marxismo.......................................................... 24<br />
2.1.3 O marxismo e a <strong>liter</strong>atura............................................................................. 25<br />
2.2 O MARXISMO PRESENTE EM VIDAS SECAS.......................................... 27<br />
2.2.1 Fabiano X patrão......................................................................................... 28<br />
2.2.2 Fabiano X sol<strong>da</strong>do amarelo......................................................................... 31<br />
2.2.3 Fabiano X ci<strong>da</strong><strong>de</strong>......................................................................................... 34<br />
3 DO PAPEL À PELÍCULA............................................................................ 36<br />
3.1 DESMONTAGEM DA NARRATIVA LITERÁRIA......................................... 36<br />
3.1.1 Questão temporal........................................................................................ 39<br />
3.1.2 Questão <strong>da</strong> linguagem................................................................................. 40<br />
3.1.3 Questão <strong>da</strong> paisagem................................................................................. 47<br />
3.1.4 Questão dos personagens........................................................................... 48<br />
3.2 CINEMA E IMAGEM.................................................................................... 56<br />
3.2.1 Brasil e Cinema Novo.................................................................................. 59<br />
3.2.2 Transposição cinematográfica, fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> e cultura <strong>de</strong> massa.................... 61<br />
3.3 VIDAS SECAS: HIPERTEXTO.................................................................... 66<br />
3.4 DESMONTAGEM DA NARRATIVA FÍLMICA.............................................. 69<br />
3.4.1 A questão <strong>da</strong> fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> na transposição <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s secas 74<br />
3.4.2 Baleia - do <strong>liter</strong>ário ao cinematográfico e vice-versa................................... 79<br />
CONCLUSÂO........................................................................................................ 85<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................... 89
INTRODUÇÃO<br />
No início do século XX, começou a surgir um movimento <strong>liter</strong>ário no Brasil<br />
cuja gran<strong>de</strong> intenção era a <strong>de</strong> promover um resgate cultural <strong>da</strong> arte no país, já que<br />
os precursores <strong>da</strong> mesma acreditavam que até aquele momento nossa pátria não<br />
havia sido realmente mostra<strong>da</strong>.<br />
A este movimento <strong>de</strong>u-se o nome <strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rnismo, e passou-se a buscar<br />
então, uma reinterpretação do país por meio <strong>de</strong> textos neo-realistas e poesias <strong>de</strong><br />
libertação, abrindo novos caminhos para produções culturais <strong>de</strong> maior intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
O movimento abarcava varia<strong>da</strong>s correntes vanguardistas como o surrealismo e o<br />
futurismo e tinha como meta incitar uma renovação <strong>de</strong> conceitos, basea<strong>da</strong> na troca<br />
dos valores antigos que permeavam as correntes anteriores, por outros, mais<br />
próximos à reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, buscando a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
A <strong>liter</strong>atura mo<strong>de</strong>rnista <strong>da</strong> primeira fase procurava retratar, principalmente, as<br />
cores reais do País, suas diversi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, e fazia isso por meio <strong>de</strong> obras que<br />
privilegiavam a utilização <strong>de</strong> versos livres, a valorização do cotidiano e <strong>da</strong> livre<br />
associação <strong>de</strong> idéias, a utilização <strong>de</strong> períodos curtos e a fala coloquial.<br />
O homem representado na obra mo<strong>de</strong>rnista era ligado às suas raízes, porém,<br />
sem ufanismos, e podia se <strong>de</strong>ixar mostrar através <strong>de</strong> sua incerteza contemporânea,<br />
provoca<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a força social que o comprimia.<br />
O Mo<strong>de</strong>rnismo se mostrou tão fecundo que acabou se dividindo em outras<br />
duas fases. A segun<strong>da</strong> fase foi marca<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a presença <strong>de</strong> uma certa liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />
linguagem, conquista<strong>da</strong> <strong>pel</strong>o rompimento com a tradição inicia<strong>da</strong> na primeira, e<br />
acabou se mostrando um campo fértil para a produção <strong>de</strong> romances. Essa fase se<br />
mostrou, portanto, como um movimento <strong>de</strong> balanço, trazendo à tona críticas sociais<br />
alia<strong>da</strong>s a um engajamento i<strong>de</strong>ológico.<br />
A prosa <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> fase mo<strong>de</strong>rnista po<strong>de</strong> ser dividi<strong>da</strong> em regionalista,<br />
urbana e intimista. A faceta regionalista procurava retratar o panorama sócio-político<br />
do Brasil, e o seu gran<strong>de</strong> enfoque eram as reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s regionais do país.<br />
A prosa regionalista tem seu ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> com a obra “A bagaceira”<br />
(1928), <strong>de</strong> José Américo <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>. A partir <strong>de</strong>la outras obras surgiram, buscando<br />
retratar o brasileiro <strong>da</strong>s diversas partes do território nacional.
Graciliano Ramos, autor <strong>da</strong> obra Vi<strong>da</strong>s secas, é consi<strong>de</strong>rado um dos<br />
principais expoentes do movimento regionalista, embora o mesmo nunca tenha se<br />
consi<strong>de</strong>rado como tal. A sua produção <strong>liter</strong>ária, <strong>de</strong> maneira geral, po<strong>de</strong> ser dividi<strong>da</strong><br />
em romances psicológicos, romances sócio-politicos e romances autobiográficos,<br />
todos escritos sob a marcação do estilo seco e conciso do autor.<br />
O romance Vi<strong>da</strong>s secas foi escrito no ano <strong>de</strong> 1938, o que o situa na segun<strong>da</strong><br />
fase do movimento mo<strong>de</strong>rnista. Este romance <strong>de</strong> Graciliano Ramos é<br />
especificamente o objeto <strong>de</strong> estudo <strong>de</strong>sta pesquisa.<br />
Vi<strong>da</strong>s secas realiza uma singular junção entre a técnica <strong>liter</strong>ária e o campo<br />
<strong>da</strong> não-ficção. A construção fragmenta<strong>da</strong>, com atos que se justapõem, traduz uma<br />
concepção <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que remete o leitor à triste saga <strong>de</strong> Fabiano e sua família<br />
<strong>pel</strong>o sertão nor<strong>de</strong>stino. A obra é marca<strong>da</strong> <strong>pel</strong>o tom <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia <strong>da</strong> triste reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> seca, que há séculos escraviza e mata brasileiros que habitam o sertão do<br />
Nor<strong>de</strong>ste brasileiro.<br />
Ao narrar o Nor<strong>de</strong>ste, o “velho Graça” não se <strong>de</strong>ixou nem por um momento<br />
levar <strong>pel</strong>o pitoresco local, mas fez <strong>de</strong> sua obra um veículo <strong>de</strong> exposição <strong>da</strong> dura e<br />
amarga reali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos Fabianos que ele conheceu e tão bem soube retratar ao longo<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, expressando <strong>de</strong> forma crua e autêntica um drama tão doloroso quanto a<br />
fome e fazendo <strong>de</strong> sua <strong>liter</strong>atura instrumento <strong>de</strong> análise e conscientização crítica dos<br />
problemas sociais e políticos do Brasil.<br />
A técnica utiliza<strong>da</strong> por Graciliano Ramos na composição <strong>da</strong> obra Vi<strong>da</strong>s secas<br />
associa<strong>da</strong> ao processo <strong>de</strong> fragmentação <strong>da</strong> mesma, levou a autora <strong>de</strong>ste trabalho,<br />
como professora <strong>de</strong> <strong>liter</strong>atura brasileira, a observar com gran<strong>de</strong> interesse as<br />
colocações semânticas e estilísticas que tanto enriquecem este texto.<br />
Após esta percepção relativa à Vi<strong>da</strong>s secas, a autora ficou instiga<strong>da</strong> a tentar<br />
compreen<strong>de</strong>r até que ponto estes recursos lingüísticos acima expostos contribuíram<br />
na estruturação <strong>da</strong> obra, o que explicaria, a princípio, <strong>de</strong> que maneira o autor<br />
conseguiu escrever um texto tão completo e claro, sem que as ligações comuns em<br />
uma narrativa fossem manti<strong>da</strong>s. Existiria, porventura, um tênue fio narrativo que<br />
ligaria a obra, organiza<strong>da</strong> <strong>de</strong> forma espirala<strong>da</strong> por treze capítulos justapostos sem<br />
aparentes nexos lógicos?<br />
Ao <strong>de</strong>parar-se com a transposição fílmica <strong>de</strong>ste livro, aumentou a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
e a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> investigar outras matizes liga<strong>da</strong>s à triste e ao mesmo tempo bela<br />
história <strong>de</strong> Fabiano, sinha Vitória, os meninos e a cachorra Baleia. Com efeito, em<br />
12
1963, com os mesmos i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia, Nélson Pereira dos Santos a<strong>da</strong>ptou o<br />
romance Vi<strong>da</strong>s secas para o cinema, levando ao conhecimento <strong>da</strong>s platéias ao<br />
redor do mundo o flagelo <strong>da</strong> seca que assolava o Nor<strong>de</strong>ste já na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 30,<br />
época do lançamento do romance, retratando a triste situação que permanece<br />
praticamente imutável até hoje.<br />
Este trabalho tem por principal objetivo analisar a transposição <strong>da</strong> <strong>montagem</strong><br />
<strong>liter</strong>ária à cinematográfica <strong>da</strong> obra Vi<strong>da</strong>s secas, escrita por Graciliano Ramos,<br />
buscando respon<strong>de</strong>r ao questionamento sobre <strong>de</strong> que forma ocorreu a transposição<br />
<strong>da</strong> <strong>montagem</strong> <strong>liter</strong>ária à cinematográfica <strong>de</strong>ste romance.<br />
Para tentar respon<strong>de</strong>r a estas perguntas e atingir o objetivo a que se propõe,<br />
esta dissertação <strong>de</strong>screverá, primeiramente, a biografia e militância política <strong>de</strong><br />
Graciliano Ramos, <strong>de</strong> forma a interligar as facetas pessoais, <strong>liter</strong>árias e políticas<br />
<strong>de</strong>ste autor.<br />
A seguir, serão enfocados os personagens <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s secas em constantes<br />
choques, na sua condição <strong>de</strong> oprimidos e opressores. Desta forma, um olhar<br />
marxista permitirá ao leitor um contato mais real com as concepções e intenções<br />
político-<strong>liter</strong>árias do autor. Neste olhar, serão aprofun<strong>da</strong>dos o contexto histórico, as<br />
características básicas e o marxismo presente em Vi<strong>da</strong>s secas. Abor<strong>da</strong>r-se-á<br />
também a estruturação capitular autônoma e espirala<strong>da</strong> <strong>da</strong> obra.<br />
Além do acima exposto, esta dissertação também investigará se, na<br />
transposição <strong>da</strong> <strong>montagem</strong> <strong>liter</strong>ária à cinematográfica do romance Vi<strong>da</strong>s secas, o<br />
diretor Nélson Pereira dos Santos manteve o caráter <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia social na sua<br />
releitura <strong>da</strong> obra. A <strong>de</strong>finição aristotélica do conceito <strong>de</strong> verossimilhança remete à<br />
idéia <strong>de</strong> tudo o que faz sentido aos olhos do senso comum. A obra <strong>de</strong> a<strong>da</strong>ptação do<br />
cineasta seria, portanto, verossímil? Teria ela conseguido transpor o romance para o<br />
cinema, relatando <strong>de</strong> forma contun<strong>de</strong> a injustiça e a <strong>de</strong>sumani<strong>da</strong><strong>de</strong>? O espectador<br />
teria sido levado a se conscientizar <strong>da</strong> <strong>de</strong>gra<strong>da</strong>ção humana, nasci<strong>da</strong> <strong>da</strong>s precárias<br />
condições <strong>de</strong> sobrevivência que arrastam o sertanejo <strong>da</strong> trama a um processo <strong>de</strong><br />
zoomorfização?<br />
A <strong>de</strong>s<strong>montagem</strong> <strong>da</strong> narrativa <strong>liter</strong>ária será analisa<strong>da</strong>, iniciando-se por um<br />
breve histórico do cinema no Brasil e o Cinema Novo, abor<strong>da</strong>ndo inclusive a questão<br />
<strong>da</strong> transposição cinematográfica e <strong>da</strong> cultura <strong>de</strong> massa.<br />
13
O filme Vi<strong>da</strong>s secas e a <strong>de</strong>s<strong>montagem</strong> <strong>da</strong> narrativa fílmica também serão<br />
objetos <strong>de</strong> estudo, <strong>de</strong> modo a aprofun<strong>da</strong>r-se uma análise que permita embasar as<br />
conclusões às quais o leitor terá acesso ao final <strong>de</strong>ste trabalho.<br />
Finalmente, <strong>de</strong> maneira a reforçar e exemplificar a análise <strong>de</strong>scrita no<br />
parágrafo anterior, a transposição fílmica do personagem Baleia será especialmente<br />
abor<strong>da</strong><strong>da</strong>, com ênfase na questão <strong>da</strong> fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> transposição do hipotexto para o<br />
hipertexto.<br />
Os <strong>da</strong>dos <strong>de</strong>ste trabalho foram coletados, avaliados e interpretados durante<br />
cerca <strong>de</strong> 15 meses, por meio <strong>de</strong> extensa e comprometi<strong>da</strong> pesquisa bibliográfica, a<br />
qual preten<strong>de</strong>u abarcar obras relaciona<strong>da</strong>s aos campos do conhecimento <strong>da</strong><br />
<strong>liter</strong>atura e <strong>da</strong> mídia, pesquisas já concluí<strong>da</strong>s sobre transposições fílmicas e artigos<br />
publicados em periódicos.<br />
Os pressupostos teóricos que dão embasamento ao trabalho <strong>de</strong> coleta <strong>de</strong><br />
<strong>da</strong>dos e veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> aos resultados <strong>de</strong>sta dissertação compreen<strong>de</strong>m o imenso<br />
arsenal teórico e <strong>liter</strong>ário que reúne correntes importantes como o Marxismo (<strong>de</strong><br />
importância vital, <strong>da</strong><strong>da</strong> a concepção política do autor, e a contribuição <strong>de</strong>sta na sua<br />
produção <strong>liter</strong>ária), a Crítica Literária Sociológica, além <strong>da</strong> Semiótica e <strong>da</strong> Dialética.<br />
O arsenal teórico acima <strong>de</strong>scrito permite, no âmbito <strong>de</strong>sta dissertação, que se<br />
crie um mosaico <strong>de</strong> interligação e exclusão <strong>de</strong> princípios relacionados à transposição<br />
fílmica <strong>da</strong> obra em questão.<br />
A autora preten<strong>de</strong> que a temática e a natureza <strong>liter</strong>ário-midiática do conteúdo<br />
a ser abor<strong>da</strong>do ao longo <strong>de</strong>ste trabalho sejam <strong>de</strong> interesse para a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
acadêmica e para todos que <strong>de</strong>sejem <strong>de</strong> alguma forma se aprofun<strong>da</strong>r no livro Vi<strong>da</strong>s<br />
secas, <strong>de</strong> Graciliano Ramos e no filme homônimo, <strong>de</strong> Nelson Pereira dos Santos.<br />
Serão utilizados ao longo <strong>de</strong>ste trabalho, os conceitos <strong>de</strong> hipotexto e<br />
hipertexto. O hipotexto refere-se à obra <strong>liter</strong>ária <strong>de</strong> origem, que baseia, norteia o<br />
hipertexto. Já o hipertexto é uma obra midiática, que nasce <strong>de</strong> uma obra <strong>liter</strong>ária,<br />
servindo-se <strong>de</strong>sta como pano <strong>de</strong> fundo.<br />
14
1 BIOGRAFIA E MILITÂNCIA POLÍTICA DO ESCRITOR GRACILIANO RAMOS<br />
O escritor Graciliano Ramos nasceu em 27 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1892, na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Quebrângulo, no Estado <strong>de</strong> Alagoas. O regime familiar era severo, as crianças<br />
viviam presas em casa, sem po<strong>de</strong>r sair, como que numa prisão (RAMOS, 1979, p.<br />
36-45).<br />
O pai <strong>de</strong> Graciliano Ramos era um homem miúdo, que se casou com a filha<br />
<strong>de</strong> um criador <strong>de</strong> gado, e obe<strong>de</strong>cendo os conselhos <strong>de</strong> sua mãe, comprou uma<br />
fazen<strong>da</strong> em Buíque, Pernambuco, e se mudou para lá com to<strong>da</strong> a família. A seca<br />
matou o gado, e seu Sebastião Ramos <strong>de</strong> Oliveira abriu uma loja na vila <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
por volta <strong>de</strong> 1895.<br />
A mãe, Maria Amélia Ferro e Ramos, concebeu <strong>de</strong>zesseis filhos, sendo<br />
Graciliano seu primogênito. Era uma senhora enfeza<strong>da</strong>, agressiva e ranzinza. Em<br />
raros momentos <strong>de</strong> ternura e afeição por Graciliano, a mãe o <strong>de</strong>clarava “um animal”,<br />
por causa dos questionamentos sobre cometas ou o fogo do inferno.<br />
Graciliano Ramos sofria <strong>da</strong> vista, e tinha consciência <strong>de</strong> que este fato<br />
contribuía para um certo <strong>de</strong>sprezo e impaciência que as pessoas sentiam por ele,<br />
principalmente sua mãe, que o a<strong>pel</strong>idou, em uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> bastante cruel<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />
“bezerro-encourado” e “cabra cega”.<br />
A solidão <strong>da</strong> cegueira provisória fez com que o menino Graciliano percebesse<br />
o gran<strong>de</strong> valor <strong>da</strong>s palavras, ouvindo as cantigas <strong>da</strong> mãe a as histórias que lhe eram<br />
conta<strong>da</strong>s.<br />
A alfabetização inicia<strong>da</strong> em casa foi se arrastando ao longo <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a infância<br />
<strong>de</strong> Graciliano. A cartilha foi aprendi<strong>da</strong> no próprio lar, e o primeiro livro foi lido na<br />
escola em apenas uma semana. Porém, a partir do segundo livro, a leitura foi se<br />
tornando ca<strong>da</strong> vez mais difícil (LEITÃO, 2003, p. 121).<br />
Aos nove anos, Graciliano era um quase analfabeto, e se consi<strong>de</strong>rava menos<br />
feliz que as crianças vizinhas a sua casa. Estas usavam roupas limpas, riam alto e<br />
freqüentavam escolas <strong>de</strong>centes, ao contrário <strong>da</strong> sua, que possuía bancos estreitos e<br />
sem encosto. Estes bancos, quando eram lavados, ficavam molhados por dias, e os<br />
alunos eram obrigados a sentar na ma<strong>de</strong>ira molha<strong>da</strong>. A professora, segundo o autor,<br />
uma “mulata sarará enjoa<strong>da</strong> e enxeri<strong>da</strong>”, ensinava as lições <strong>de</strong> tal forma que os
alunos a percebiam tão ignorante quanto eles próprios (GARBUGLIO et al., 1987, p.<br />
23).<br />
Em outubro <strong>de</strong> 1927, Graciliano Ramos foi eleito por 443 votos prefeito <strong>de</strong><br />
Palmeira dos Índios (AL). Dentro <strong>de</strong> uma gestão que fugia à normali<strong>da</strong><strong>de</strong> do sertão<br />
nor<strong>de</strong>stino <strong>da</strong> época, Graciliano enviou ao então governador <strong>de</strong> Alagoas dois<br />
relatórios que servem, até hoje, como precioso acervo no entendimento do Brasil<br />
rural e nor<strong>de</strong>stino. Os textos falavam <strong>da</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m na qual o município se<br />
encontrava, <strong>da</strong>s inúmeras administrações paralelas feitas por prefeitos coronéis e do<br />
“cabi<strong>de</strong> <strong>de</strong> empregos públicos”, comum já naquela época.<br />
Por tentar mu<strong>da</strong>r este quadro, Graciliano relatava nos documentos que<br />
encontrara obstáculos na prefeitura e fora <strong>de</strong>la. Alguns moradores achavam<br />
inclusive que o mesmo não levaria três meses para levar um tiro <strong>de</strong> algum <strong>de</strong>safeto.<br />
Os textos, <strong>de</strong> linguagem ru<strong>de</strong>, clara e principalmente irônica trouxeram muita<br />
repercussão, já que falavam <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> política <strong>de</strong> uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira <strong>de</strong> modo<br />
objetivo, sem meias palavras.<br />
O primeiro relatório chegou a ser publicado na íntegra por alguns jornais, e<br />
chamou a atenção <strong>de</strong> várias pessoas, <strong>de</strong>ntre elas Augusto Fre<strong>de</strong>rico Schmidt, poeta<br />
e editor no Rio <strong>de</strong> Janeiro, que supôs ser aquele prefeito alagoano um bom escritor<br />
<strong>de</strong> romances. Foi Augusto Fre<strong>de</strong>rico Schmidt quem mais tar<strong>de</strong>, em 1937, publicou<br />
Caetés.<br />
Em março <strong>de</strong> 1930, um mês após sua renúncia ao cargo <strong>de</strong> prefeito,<br />
Graciliano é nomeado <strong>pel</strong>o então governador do Estado <strong>de</strong> Alagoas para o cargo <strong>de</strong><br />
diretor <strong>da</strong> Imprensa Oficial do Estado, e se mu<strong>da</strong> em segui<strong>da</strong> para Maceió. Com esta<br />
mu<strong>da</strong>nça, o autor passou a travar seus primeiros contatos com jovens intelectuais<br />
contestadores, que viriam a gravar, anos mais tar<strong>de</strong>, seus nomes na história <strong>liter</strong>ária<br />
brasileira. Dentre os vários intelectuais <strong>de</strong>ste grupo po<strong>de</strong>-se citar Rachel <strong>de</strong> Queirós<br />
e José Lins do Rego.<br />
A Revolução <strong>de</strong> 1930 eclodiu no mês <strong>de</strong> outubro e uma semana após este<br />
fato, tropas provenientes <strong>da</strong> Paraíba marcharam em direção ao Estado <strong>de</strong> Alagoas,<br />
já tendo tomado Pernambuco. Foi encomen<strong>da</strong>do <strong>pel</strong>o governador do Estado, ao<br />
escritor Graciliano Ramos, um boletim que tinha por objetivo acalmar a população.<br />
No boletim, se afirmava que esta podia ficar tranqüila, já que o governo havia<br />
tomado to<strong>da</strong>s as providências no intuito <strong>de</strong> garantir a <strong>de</strong>fesa do Estado. Este<br />
documento referia-se aos revolucionários como almas <strong>de</strong> outro mundo.<br />
16
Graciliano realmente acreditava que o povo alagoano estava protegido, e em<br />
carta a sua mulher Heloísa Ramos, <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> <strong>de</strong> 07 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1930, o mesmo<br />
relatou: “Não há, parece-me, inimigos do governo em Maceió” (RAMOS, 1982,<br />
p.107).<br />
Para a surpresa do autor, o governador do Estado abandona o governo logo<br />
<strong>de</strong>pois e foge com o dinheiro público, entregando-o aos revolucionários.<br />
Na época em que estes acontecimentos tiveram lugar, a <strong>liter</strong>atura brasileira<br />
tomou novas formas. Com traquejo e boas maneiras, a produção <strong>liter</strong>ária passou a<br />
beirar o convencional, o banal. To<strong>da</strong>s as expressões <strong>de</strong> arte eram monitora<strong>da</strong>s <strong>pel</strong>a<br />
crítica policial, que fiscalizava obras e escolas, e prendia os consi<strong>de</strong>rados contrários<br />
ao governo. A resistência, dolorosamente dissolvi<strong>da</strong> com mortes e torturas, obrigava,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> operários a escritores e jornalistas, a serem <strong>de</strong> direita, sem voz, meros<br />
fantoches <strong>de</strong> uma ditadura sem limites morais.<br />
Sobre a <strong>de</strong>magogia militarista que se instaurava, o autor refletiu: “[…]<br />
ladroagens, uma on<strong>da</strong> <strong>de</strong> burrice a inun<strong>da</strong>r tudo, confusão, mal-entendidos,<br />
charlatanismo, energúmenos microcéfalos vestidos <strong>de</strong> ver<strong>de</strong> a esgoelar-se em<br />
discursos imbecis, a semear <strong>de</strong>lações” (RAMOS, 1954, p. 70).<br />
Graciliano Ramos permaneceu no cargo <strong>de</strong> diretor <strong>da</strong> Imprensa Oficial até<br />
<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1931, quando o abandonou, vitimado <strong>pel</strong>as pressões dos interventores<br />
militares, retornando para Palmeira dos Índios.<br />
Segundo consta na Coleção Escritores Brasileiros, <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> a Graciliano<br />
Ramos, a recusa do autor em a<strong>de</strong>rir à Revolução <strong>de</strong> 30 po<strong>de</strong> ter sido causa<strong>da</strong> por<br />
compromissos pessoais, <strong>de</strong>vido a uma nomeação para um cargo <strong>de</strong> confiança que o<br />
mesmo ocupava no governo, e/ou uma disposição bem antiga contra a retórica<br />
<strong>de</strong>magógica (GARBUGLIO et al.,1987, p. 80).<br />
Percebe-se, porém, que Graciliano era contra a Revolução, mas não <strong>de</strong>fendia<br />
a idéia <strong>de</strong> se manter os interesses <strong>da</strong>s oligarquias. Devido a esta situação, o autor<br />
passou a crer que talvez só o socialismo pu<strong>de</strong>sse ser uma saí<strong>da</strong> realmente viável.<br />
Graciliano Ramos relacionava estas idéias à escritura <strong>de</strong> São Bernardo<br />
(1934) e dizia que estas eram idéias “vermelhas” (GARBUGLIO et al.,1987, p. 81),<br />
subversivas. Esta obra traz como personagem principal Paulo Honório, um matuto,<br />
brasileiro nato, que se expressa por meio <strong>de</strong> uma linguagem bem original, composta<br />
por períodos confusos para os letrados, neste caso, os fazen<strong>de</strong>iros. Expressões<br />
típicas do nor<strong>de</strong>ste brasileiro, bem como palavrões e frases bem apimenta<strong>da</strong>s<br />
17
também compunham o enredo, como que numa afronta, levando-se em<br />
consi<strong>de</strong>ração o clima <strong>de</strong> repressão mantido <strong>pel</strong>a Revolução (BRAYNER, 1978, p.<br />
165).<br />
Em janeiro <strong>de</strong> 1933, o autor foi nomeado diretor <strong>da</strong> Instrução Pública <strong>de</strong><br />
Alagoas. Este cargo tinha as funções <strong>de</strong> um Secretário <strong>de</strong> Educação do Estado,<br />
sendo, portanto, <strong>de</strong> importância e <strong>de</strong> confiança. O autor, to<strong>da</strong>via, tomou atitu<strong>de</strong>s que<br />
<strong>de</strong>sagra<strong>da</strong>vam o governo e que favoreceram pessoas <strong>de</strong> menor po<strong>de</strong>r aquisitivo e<br />
grau <strong>de</strong> instrução. Com a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> que o cargo lhe permitia, Graciliano Ramos<br />
distribuiu gratuitamente roupas, calçados e mantimentos às crianças carentes <strong>da</strong><br />
re<strong>de</strong> estadual alagoana; efetivou as professoras <strong>da</strong> zona rural, <strong>de</strong>spreza<strong>da</strong>s por<br />
serem consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s “matutas e ignorantes” <strong>pel</strong>as professoras <strong>de</strong> Maceió; permitiu a<br />
matrícula <strong>de</strong> crianças pobres em escolas <strong>de</strong> bairros <strong>de</strong> gente rica.<br />
O mais grave, porém, foi que Graciliano entrou em conflito com o Interventor<br />
do Estado, o capitão Afonso <strong>de</strong> Carvalho, justamente aquele que o havia nomeado<br />
ao cargo, já que não concor<strong>da</strong>va com a abertura <strong>de</strong>senfrea<strong>da</strong> <strong>de</strong> novas escolas,<br />
com a única intenção <strong>de</strong> produzir mais votos nas eleições, favorecendo <strong>de</strong>sta forma<br />
não o povo, mas os políticos.<br />
Conforme <strong>de</strong>scrito no início <strong>de</strong>ste capítulo, Graciliano Ramos foi uma criança<br />
nor<strong>de</strong>stina <strong>da</strong> zona rural, estudou em uma escola pública com instalações precárias<br />
(apesar <strong>de</strong> não ter tido uma condição social tão ruim, se compara<strong>da</strong> à maioria dos<br />
habitantes <strong>da</strong>quela região), sofreu preconceitos, e mais tar<strong>de</strong>, como prefeito <strong>de</strong><br />
Palmeira dos Índios, conheceu <strong>de</strong> perto as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s do povo. Desta forma, ele<br />
sabia que somente a criação <strong>de</strong> novas escolas não resolveria os problemas <strong>da</strong>s<br />
crianças pobres <strong>de</strong> Alagoas. Para ele, as crianças <strong>de</strong>veriam ser alimenta<strong>da</strong>s,<br />
vesti<strong>da</strong>s, ter um ensino <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong>, e as professoras <strong>da</strong> área rural reconheci<strong>da</strong>s,<br />
por <strong>de</strong>sempenharem seu pa<strong>pel</strong> em situação tão difícil.<br />
As atitu<strong>de</strong>s do autor foram encara<strong>da</strong>s como uma afronta a alguns interesses<br />
políticos, já que o mesmo se dizia incapaz <strong>de</strong> executar mandos <strong>de</strong> figurões. Porém,<br />
o ato <strong>de</strong> Graciliano à frente do cargo <strong>de</strong> diretor <strong>da</strong> Instrução Pública que mais gerou<br />
repercussão foi a extinção <strong>da</strong> obrigatorie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se cantar o hino do Estado <strong>de</strong><br />
Alagoas nas escolas públicas. Isto foi consi<strong>de</strong>rado como um ataque ao Estado, e o<br />
autor foi consi<strong>de</strong>rado como um antipatriota.<br />
No ano <strong>de</strong> 1935, o governo do então presi<strong>de</strong>nte Getúlio Vargas <strong>de</strong>creta uma<br />
Lei <strong>de</strong> Segurança Nacional, com a intenção <strong>de</strong> aumentar a vigilância e a repressão a<br />
18
movimentos contrários ao governo. Em resposta a esta ação do governo, a Aliança<br />
Nacional Libertadora (ANL) promove um movimento que tinha como ban<strong>de</strong>ira “Pão,<br />
terra e liber<strong>da</strong><strong>de</strong>”, basea<strong>da</strong> nos i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> extrema esquer<strong>da</strong> <strong>da</strong> Internacional<br />
Comunista (BRAYNER, 1978, p. 100).<br />
Na esteira <strong>da</strong> Revolução, cresceram também movimentos <strong>de</strong> direita, ligados<br />
ao fascismo e ao nazismo, sendo o principal <strong>de</strong>les a Ação Integralista Brasileira,<br />
fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por Plínio Salgado, que também li<strong>de</strong>rava o grupo mo<strong>de</strong>rnista batizado <strong>de</strong><br />
Ver<strong>de</strong>-amarelo. Estes grupos eram a favor do combate ao comunismo, e <strong>de</strong> uma<br />
<strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong> base liberal.<br />
Em resposta ao movimento <strong>da</strong> ANL, que chegou a ter 500 mil simpatizantes,<br />
o presi<strong>de</strong>nte Getúlio Vargas <strong>de</strong>cretou Estado <strong>de</strong> Sítio, atitu<strong>de</strong> apoia<strong>da</strong> <strong>pel</strong>os<br />
integralistas, cancelando as eleições presi<strong>de</strong>nciais e dissolvendo o Congresso. Esta<br />
<strong>de</strong>cisão levou à prisão muitos dos envolvidos no movimento <strong>de</strong> esquer<strong>da</strong>, também<br />
pren<strong>de</strong>ndo e torturando inocentes.<br />
Graciliano Ramos foi preso, sob a acusação <strong>de</strong> comunismo, em sua casa, por<br />
volta <strong>da</strong>s 19:00 horas do dia 03 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1936 (LEITÃO, 2003, p. 51). A prisão<br />
do autor foi <strong>de</strong>creta<strong>da</strong> <strong>pel</strong>o General Newton Cavalcanti, amigo próximo <strong>de</strong> Plínio<br />
Salgado, que como o integralista, queria “salvar” o Brasil do comunismo.<br />
Os pretextos para a prisão po<strong>de</strong>m ser assim <strong>de</strong>finidos: o autor possuía uma<br />
opinião sarcástica e corrosiva sobre os tenentes e a Revolução <strong>de</strong> 30; simpatias, nas<br />
idéias, <strong>pel</strong>o comunismo; seus dois filhos mais velhos, estu<strong>da</strong>ntes, eram militantes <strong>da</strong><br />
Juventu<strong>de</strong> Comunista; <strong>de</strong>sobrigara o hino <strong>de</strong> Alagoas nas escolas públicas;<br />
publicara dois romances pouco edificantes (Caetés e São Bernardo) para os<br />
critérios reacionários; ironizava o integralismo; contrariara muitos interesses fortes,<br />
<strong>de</strong> militares e <strong>da</strong>s oligarquias, tentando impedir o favoritismo e o nepotismo nas<br />
escolas; convivia com um grupo <strong>de</strong> intelectuais <strong>de</strong>ntre os quais alguns eram <strong>de</strong><br />
esquer<strong>da</strong>.<br />
Era, portanto, um homem “extremamente perigoso”, cuja liber<strong>da</strong><strong>de</strong> constituía<br />
“um risco imediato para a segurança do Estado” (GARBUGLIO et al., 1987, p. 65),<br />
sendo por isso preso. O autor foi levado para prisões <strong>de</strong> Alagoas, além do Recife e<br />
do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
Ele sofreu humilhações <strong>de</strong> todo o tipo nas ca<strong>de</strong>ias sujas, on<strong>de</strong> os presos se<br />
amontoavam entre gemidos e moscas. Na obra Memórias do cárcere (1953), <strong>de</strong><br />
publicação póstuma, o autor narra a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> cruel do tempo em que esteve preso.<br />
19
Graciliano Ramos tinha noção <strong>de</strong> ter sido pego como “bo<strong>de</strong> expiatório” <strong>da</strong><br />
Revolução, porém, não achava digno se sentir um coitado. Heloísa Ramos, esposa<br />
do autor, alia<strong>da</strong> a vários intelectuais, contratou um advogado e fez visitas a generais<br />
e políticos, pedindo a libertação do marido. Apesar <strong>de</strong> ser uma mulher simples,<br />
Heloísa soube traçar caminhos corretos que levariam à soltura <strong>de</strong> Graciliano Ramos.<br />
A pedido do escritor José Lins do Rego, seu assessor Herman Lima leva a<br />
Getúlio Vargas um pedido <strong>de</strong> revisão <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> prisão <strong>de</strong> Graciliano Ramos.<br />
Getúlio, <strong>de</strong> forma bastante irônica, disse ao assessor <strong>de</strong> Lins do Rego que assim<br />
como ele não havia or<strong>de</strong>nado a prisão <strong>de</strong> ninguém, também não po<strong>de</strong>ria man<strong>da</strong>r<br />
libertar. Porém, permitiu que o assessor procurasse o General Pinto, e que este<br />
verificasse junto às partes competentes se algum <strong>da</strong>do havia sido apurado contra<br />
Graciliano Ramos. Como na<strong>da</strong>, <strong>de</strong> fato, havia sido encontrado que ligasse o autor ao<br />
Movimento Comunista, ele foi libertado em janeiro <strong>de</strong> 1937, tendo passado, portanto,<br />
10 meses preso.<br />
Depois <strong>de</strong> ser libertado, Graciliano Ramos resolve se mu<strong>da</strong>r em <strong>de</strong>finitivo<br />
para a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro e ser “somente” um escritor. Contudo, apesar do<br />
autor já ter lançado Vi<strong>da</strong>s secas (1938), e continuar escrevendo artigos para jornais<br />
e revistas, sua ren<strong>da</strong> é muito baixa para sustentar a mulher e as filhas pequenas,<br />
que tinham vindo <strong>de</strong> Maceió para morar com ele.<br />
Em 1939, ele foi obrigado a aceitar o cargo <strong>de</strong> Inspetor do <strong>Ensino</strong> Fe<strong>de</strong>ral,<br />
além <strong>de</strong> um emprego no Departamento <strong>de</strong> Imprensa e Propagan<strong>da</strong> (DIP), órgão que<br />
tinha como principais funções divulgar uma boa propagan<strong>da</strong> do governo, e censurar<br />
todo e qualquer material social, cultural e político produzido no país.<br />
No DIP, Graciliano Ramos, <strong>de</strong>ntre vários outros intelectuais, escreveu artigos<br />
para a revista Ciência Política, especializa<strong>da</strong> em divulgar os ensinamentos do<br />
Estado Novo. Esta publicação permitia escritos <strong>de</strong> oposição ao governo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />
os mesmos não atrapalhassem o jogo <strong>de</strong> interesses políticos, fato que permitia,<br />
portanto, que o autor escrevesse artigos que não renegassem sua escolha<br />
i<strong>de</strong>ológica, e ain<strong>da</strong> recebesse por isso.<br />
Em 1943, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi reorganizado a partir <strong>da</strong><br />
Conferência <strong>da</strong> Mantiqueira, a qual garantiu o funcionamento legal do Partido. Nesta<br />
época, a casa <strong>de</strong> Graciliano funcionava como um ponto <strong>de</strong> encontro <strong>de</strong> intelectuais<br />
simpatizantes à causa comunista, o que fez com que o autor tivesse ain<strong>da</strong> mais<br />
acesso a estas idéias.<br />
20
Somente em 18 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1945, Graciliano Ramos se filiou formalmente<br />
ao PCB, a convite <strong>de</strong> Luís Carlos Prestes. A filiação <strong>de</strong> um escritor tão consagrado<br />
foi encara<strong>da</strong> como um prêmio, um troféu, pois os dirigentes do Partido acreditavam<br />
que a presença do mesmo atrairia outros intelectuais ao Partido.<br />
Porém, a relação <strong>de</strong> Graciliano Ramos com os dirigentes do PCB era<br />
conflituosa e autônoma. Ele questionava diversas or<strong>de</strong>ns, como por exemplo, as que<br />
<strong>de</strong>terminavam que os filiados exercessem tarefas iguais, sendo eles operários ou<br />
intelectuais. E se <strong>de</strong>clarava incapaz para exercer tarefas como pichar pare<strong>de</strong>s e<br />
fazer flores <strong>de</strong> pa<strong>pel</strong>, que seriam vendi<strong>da</strong>s em feiras e quermesses.<br />
Graciliano foi, portanto, um comunista discreto, que só freqüentava a célula<br />
Theodore Dreiser, composta na sua maioria por escritores comunistas, fazendo<br />
discursos quando solicitado, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> sua dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> falar em público.<br />
O autor chegou a concorrer <strong>pel</strong>o PCB ao cargo <strong>de</strong> Deputado Fe<strong>de</strong>ral <strong>pel</strong>o<br />
Estado <strong>de</strong> Alagoas, mas como se não quisesse ser eleito, não saiu em campanha,<br />
como seria <strong>de</strong> se esperar. Limitou-se a enviar aos amigos um manifesto que<br />
comunicava sua candi<strong>da</strong>tura, e talvez por este motivo tenha perdido a eleição.<br />
As células partidárias do PCB espalha<strong>da</strong>s <strong>pel</strong>o Brasil, segundo a visão <strong>de</strong><br />
Graciliano, po<strong>de</strong>riam servir para <strong>de</strong>scobrir talentos <strong>liter</strong>ários por todo o país,<br />
aumentado, portanto, a chance <strong>de</strong> pessoas <strong>da</strong>s classes sociais mais baixas terem<br />
reconhecimento. As ramificações do Partido <strong>pel</strong>o Brasil ficariam responsáveis por<br />
recolher o material, e enviá-lo para a célula Theodore Dreiser, que ficaria<br />
responsável por ler o material enviado, selecionar aqueles que <strong>de</strong>monstrassem<br />
quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>liter</strong>ária, e preparar estes autores para uma possível carreira como<br />
escritores. A idéia <strong>de</strong> Graciliano vazou para a imprensa antes mesmo do autor<br />
comunicá-la à direção do Partido.<br />
A iniciativa <strong>de</strong> Graciliano foi mal recebi<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a direção do Partido, que<br />
encarou a atitu<strong>de</strong> <strong>da</strong> sua célula como uma quebra <strong>de</strong> hierarquia. Como punição, a<br />
mesma foi dissolvi<strong>da</strong>.<br />
Graciliano Ramos, apesar <strong>de</strong> ter sido preso em 1936 por comunismo, só<br />
participou realmente do Movimento Comunista <strong>de</strong> 1945 a 1953, ano <strong>de</strong> seu<br />
falecimento. Vale a pena ressaltar que em 1947 o PCB voltou à clan<strong>de</strong>stini<strong>da</strong><strong>de</strong>, e<br />
este autor permaneceu filiado, só que <strong>de</strong>sta vez a polícia não o incomodou, apesar<br />
<strong>de</strong> ter ciência do fato.<br />
21
A relação conturba<strong>da</strong> entre o autor e Partido impediu, portanto, Graciliano <strong>de</strong><br />
exprimir melhor suas idéias, sua experiência, enfim, sua visão <strong>de</strong> mundo sobre o<br />
povo brasileiro, tema que poucos autores souberam como ele abor<strong>da</strong>r <strong>de</strong> forma tão<br />
realista.<br />
22
2 OPRIMIDOS E OPRESSORES: PERSONAGENS EM CHOQUE<br />
2.1 UM OLHAR MARXISTA<br />
O marxismo po<strong>de</strong> ser interpretado como uma teoria econômica, social e<br />
política, e fun<strong>da</strong>menta-se nas idéias do alemão Karl Marx e <strong>de</strong> seus discípulos. Marx<br />
era oriundo <strong>de</strong> uma família judia alemã, porém seu pai se converteu ao<br />
protestantismo. Estudou em várias universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s na Alemanha, e em sua<br />
dissertação <strong>de</strong> doutorado apresentou um estudo sobre os materialistas gregos<br />
Demócrito e Epicuro.<br />
Karl Marx, juntamente com seu compatriota Friedrich Engels, que na época<br />
atuava como diretor <strong>de</strong> fábrica, publicou em 1848 o Manifesto do partido<br />
comunista, documento até hoje conhecido e aclamado como um dos maiores textos<br />
<strong>de</strong> filosofia política já escritos.<br />
O filósofo e político Karl Marx morreu em 1883, na Inglaterra. Nesta época,<br />
ele se <strong>de</strong>dicava a escrever sobre política e economia. As ramificações <strong>da</strong> doutrina<br />
marxista po<strong>de</strong>m ser encontra<strong>da</strong>s, atualmente, em ambientes que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os<br />
filosóficos e econômicos até os políticos e históricos.<br />
2.1.1 Contexto histórico<br />
O pensamento ligado ao socialismo surgiu na Europa, em resposta a um<br />
crescimento do capitalismo, cuja formação tinha i<strong>de</strong>ais que se afastavam do modo<br />
<strong>de</strong> vi<strong>da</strong> rural e beneficiava poucos ci<strong>da</strong>dãos ricos, normalmente proprietários <strong>de</strong><br />
fábricas. Esta nova formação social transformava os industriais em homens ca<strong>da</strong> vez<br />
mais ricos, e <strong>de</strong>ixava os assalariados ca<strong>da</strong> vez mais pobres.<br />
O capitalismo substituiu o feu<strong>da</strong>lismo como sistema econômico. Porém,<br />
conforme o capitalismo se <strong>de</strong>senvolvia, o número <strong>de</strong> assalariados também crescia. A<br />
relação <strong>de</strong> trabalho no capitalismo era basea<strong>da</strong> em salários. Os capitalistas<br />
pagavam aos trabalhadores salários em troca <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado número <strong>de</strong> horas <strong>de</strong><br />
trabalho, o que na prática acabava não ocorrendo <strong>de</strong> forma justa, o que <strong>de</strong>u início à<br />
luta <strong>de</strong> classes.
Os socialistas, motivados por esta situação, começaram a questionar o<br />
problema <strong>da</strong> distribuição <strong>de</strong> ren<strong>da</strong>s e do direito à proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>, passando a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />
a idéia <strong>da</strong> igual<strong>da</strong><strong>de</strong> econômica, com a instituição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> comum <strong>da</strong>s terras<br />
e fábricas.<br />
O pensamento dos socialistas baseava-se no conceito <strong>de</strong> camara<strong>da</strong>gem: os<br />
homens só podiam se <strong>de</strong>senvolver culturalmente e se livrar do capitalismo se<br />
fossem camara<strong>da</strong>s uns com os outros. Essa idéia acabou por batizar o movimento<br />
em 1832. Socius é um vocábulo latino que significa “aliado” (AZEVEDO,1957, p.<br />
192).<br />
Estes primeiros socialistas eram chamados por Karl Marx <strong>de</strong> utópicos, porque<br />
tentavam atingir seus objetivos <strong>de</strong> maneira romântica, sem nenhuma teoria política<br />
sobre a conquista do po<strong>de</strong>r e tampouco sobre o <strong>de</strong>senvolvimento econômico <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, passos necessários para a realização dos i<strong>de</strong>ais socialistas.<br />
Marx concor<strong>da</strong>va com os socialistas utópicos a respeito <strong>da</strong> exploração dos<br />
trabalhadores, porém consi<strong>de</strong>rava o capitalismo um <strong>de</strong>grau importante, e <strong>de</strong>sta<br />
forma necessário, no progresso histórico <strong>de</strong> uma nação. No Manifesto do partido<br />
comunista, este pensador explica que o sistema econômico dominante em ca<strong>da</strong><br />
período histórico <strong>de</strong>termina a estrutura social e intelectual do período. Desta forma, a<br />
história <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s seria a história <strong>da</strong> luta <strong>de</strong> classes, entre exploradores e<br />
explorados.<br />
Esta tensão, segundo Marx (e o Manifesto), resultaria na toma<strong>da</strong> do po<strong>de</strong>r<br />
<strong>pel</strong>os operários. Como medi<strong>da</strong>s contra o capitalismo, as terras e fábricas passariam<br />
a ser proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> coletiva. Quando este processo estivesse completo, e to<strong>da</strong> as<br />
proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s fossem coletivas, a diferença entre classes <strong>de</strong>sapareceria, juntamente<br />
com a luta <strong>de</strong> classes, nascendo <strong>da</strong>í uma nova socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, sem classes, atingindo<br />
<strong>de</strong>sta forma, o objetivo final do marxismo.<br />
Neste momento <strong>de</strong> transição, caberia aos operários o controle do Estado<br />
(ditadura do proletariado), porém o i<strong>de</strong>al do marxismo seria uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> sem<br />
classes, não havendo necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> existir um governo central. Para Marx, seria<br />
neste período que o indivíduo então experimentaria um estado <strong>de</strong> paz, felici<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />
liber<strong>da</strong><strong>de</strong> (HELLERN, 2000, p. 252).<br />
Com a morte <strong>de</strong> Karl Marx, os socialistas passaram a <strong>da</strong>r <strong>de</strong>senvolvimento às<br />
idéias marxistas. Surgiram então, duas correntes distintas <strong>de</strong>ntro do movimento<br />
socialista: a social-<strong>de</strong>mocracia e o leninismo.<br />
24
Os social-<strong>de</strong>mocratas se pren<strong>de</strong>ram à teoria <strong>de</strong> que as condições econômicas<br />
faziam parte do <strong>de</strong>senvolvimento social, e que, sob <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s variantes, as<br />
maiores indústrias <strong>de</strong>veriam ser <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> coletiva.<br />
Para este grupo, o fim do capitalismo <strong>de</strong>veria ser conseguido por meios<br />
pacíficos, e não por atitu<strong>de</strong>s revolucionárias. Esta visão ain<strong>da</strong> é manti<strong>da</strong> nos<br />
gran<strong>de</strong>s partidos social-<strong>de</strong>mocratas <strong>da</strong> Europa Oci<strong>de</strong>ntal.<br />
O leninismo tem gran<strong>de</strong> status histórico, mas hoje em dia está em <strong>de</strong>clínio.<br />
Sua atuação teve início após a revolução russa <strong>de</strong> 1917, com a toma<strong>da</strong> do po<strong>de</strong>r por<br />
Lenin e o Partido Comunista.<br />
Com as gran<strong>de</strong>s reformas sociais e a total reconstrução <strong>da</strong> economia, o<br />
direito à liber<strong>da</strong><strong>de</strong> ficou comprometido, acarretando um soterramento <strong>de</strong>mocrático,<br />
<strong>de</strong>ntro e fora do Partido. Depois <strong>de</strong> Lenin, Josef Stalin <strong>de</strong>u continui<strong>da</strong><strong>de</strong> ao plano <strong>de</strong><br />
ampliação do Estado Soviético. A antiga União Soviética, bem como muitos outros<br />
países que estavam sob a regência <strong>de</strong> governos <strong>de</strong> estilo comunista, viveram<br />
épocas <strong>de</strong> total ditadura e boicote aos direitos humanos.<br />
Além <strong>de</strong>stas duas correntes cita<strong>da</strong>s, outros pensadores políticos se<br />
<strong>de</strong>dicaram durante o último século a analisar e <strong>de</strong>senvolver os i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> Marx e a<br />
buscar novos mo<strong>de</strong>los marxistas que se a<strong>de</strong>quassem às socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s capitalistas<br />
mo<strong>de</strong>rnas.<br />
2.1.2 Características básicas do marxismo<br />
O marxismo baseia-se numa visão cientificista e materialista do mundo. Para<br />
Marx e Engels, suas idéias não eram filosofias <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, mas sim uma maneira<br />
científica <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>r condições reais. Eles comparavam seus estudos sobre as<br />
relações sociais aos estudos sobre as relações na natureza executados por Charles<br />
Darwin.<br />
Para Karl Marx, a base econômica era forma<strong>da</strong> em primeira instância <strong>pel</strong>o<br />
trabalho e <strong>pel</strong>as ferramentas, meios essenciais <strong>de</strong> produção, e em segundo plano,<br />
<strong>pel</strong>os donos <strong>de</strong> fábricas e oficinas que lucravam com elas.<br />
A luta <strong>de</strong> classes, segundo a doutrina marxista, era referente à batalha entre a<br />
burguesia, forma<strong>da</strong> por proprietários <strong>de</strong> fábricas, capitalistas, e os operários. A luta<br />
<strong>de</strong> classes po<strong>de</strong>ria ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> um exemplo <strong>de</strong> evolução dialética, já que inclui<br />
elementos <strong>de</strong> tese, antítese e síntese, e esta última resultaria numa socie<strong>da</strong><strong>de</strong> sem<br />
classes (LEFEBVRE, 1979, pg. 33).<br />
25
Segundo o marxismo, o homem se difere dos outros animais por ser criativo,<br />
por po<strong>de</strong>r mol<strong>da</strong>r as coisas naturais com elementos criados por ele próprio,<br />
aten<strong>de</strong>ndo suas necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s vitais; também por fatores sociais, que lhe permitem a<br />
vi<strong>da</strong> em socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e, conseqüentemente, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> seu lado criativo.<br />
Desta forma, o trabalho e a vi<strong>da</strong> em socie<strong>da</strong><strong>de</strong> são vitais para o homem no<br />
marxismo. Tudo, <strong>da</strong> cultura à religião, teria surgido <strong>da</strong> produção material, do<br />
econômico, porém <strong>de</strong> forma não mecanicista, mas integra<strong>da</strong>, em prol <strong>de</strong> uma<br />
organização dos meios <strong>de</strong> produção e do trabalho.<br />
A ética era consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> na época como um dos gran<strong>de</strong>s princípios que<br />
moviam as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Porém, para o marxismo, a ética <strong>de</strong>pendia <strong>da</strong>s condições<br />
econômicas em voga. Caso ocorressem modificações na base econômica, os<br />
princípios éticos também se modificariam. Assim sendo, para Marx, o que realmente<br />
importava, quanto à ética, era o fato <strong>de</strong>sta ser mais uma forma <strong>de</strong> promoção dos<br />
interesses <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> classe, servindo apenas àquela que <strong>de</strong>tinha o po<strong>de</strong>r, a<br />
classe dominante. Por este fato, a teoria marxista, em seus primórdios, <strong>de</strong>u pouca<br />
importância à ética e à moral.<br />
2.1.3 O marxismo e a <strong>liter</strong>atura<br />
Segundo Engels, “a <strong>liter</strong>atura é, por natureza, partidária, ten<strong>de</strong>nciosa, tanto<br />
no que diz explicitamente, quanto no que <strong>de</strong>ixa subenten<strong>de</strong>r nas entrelinhas<br />
[...]”(TRINGALI, 1994, p. 218).<br />
No panorama <strong>liter</strong>ário mundial, po<strong>de</strong>-se indicar o nascimento do Realismo<br />
socialista como o ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> na produção <strong>de</strong> obras marca<strong>da</strong>s por críticas<br />
sociais e políticas.<br />
Este movimento baseava-se nos i<strong>de</strong>ais do socialismo científico <strong>de</strong> Karl Marx e<br />
Engels, e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> passou a ser retrata<strong>da</strong> <strong>de</strong> acordo com os i<strong>de</strong>ais filosóficos e<br />
sociológicos dos autores. As histórias acabam sempre tendo finais <strong>de</strong> acordo com os<br />
interesses do povo, e o governo, na maioria dos casos, era representado <strong>de</strong> forma<br />
burocrática e centralizadora (TRINGALI, 1994, p. 227).<br />
Dentro <strong>da</strong> teoria <strong>liter</strong>ária, a preocupação residia na representação fiel do<br />
conflito e <strong>da</strong> distinção <strong>de</strong> classes. Po<strong>de</strong>-se citar, <strong>de</strong>ntre vários nomes ligados ao<br />
movimento <strong>liter</strong>ário marxista, George Lukács, que trabalhou em prol <strong>da</strong><br />
compreensão entre o materialismo histórico e a forma <strong>liter</strong>ária; e Walter Benjamim,<br />
26
que abriu novos caminhos com seus estudos sobre estética e reprodução <strong>da</strong> obra <strong>de</strong><br />
arte.<br />
Herbert Marcuse teve pa<strong>pel</strong> essencial na introdução <strong>da</strong>s <strong>de</strong>duções marxistas<br />
sobre cultura na vi<strong>da</strong> acadêmica americana, e na fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Frankfurt<br />
<strong>de</strong> filósofos, liga<strong>da</strong> diretamente a um movimento conhecido como “Teoria Crítica”.<br />
Este movimento criou uma distinção entre a alta herança cultural <strong>da</strong> Europa e a<br />
cultura <strong>de</strong> massa produzi<strong>da</strong> <strong>pel</strong>as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s capitalistas, como um instrumento <strong>de</strong><br />
dominação. A "Teoria Crítica" via nas formas <strong>de</strong> cultura <strong>de</strong> massa - cinema<br />
hollywoodiano, publici<strong>da</strong><strong>de</strong> - uma réplica <strong>da</strong> estrutura capitalista.<br />
As principais influências marxistas na teoria <strong>liter</strong>ária <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Escola <strong>de</strong><br />
Frankfurt têm sido Raymond Williams e Terry Eagleton na Grã-Bretanha e Frank<br />
Lentricchia e Fredric Jameson, nos Estados Unidos.<br />
No presente, a crítica marxista procura intertextualizar a arte com a história, a<br />
sociologia e outras áreas do saber científico social.<br />
No panorama <strong>liter</strong>ário brasileiro, po<strong>de</strong>-se apontar a fase pré-mo<strong>de</strong>rnista como<br />
um início <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nças no enfoque <strong>da</strong> <strong>liter</strong>atura nacional. Nesta fase, o regionalismo<br />
<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser puramente documental e passa a assumir uma postura mais crítica,<br />
porém, ain<strong>da</strong> liga<strong>da</strong> ao cientificismo e ao <strong>de</strong>terminismo, características <strong>da</strong>s fases<br />
realista e naturalista.<br />
Pretendia-se que a produção <strong>liter</strong>ária, a partir <strong>da</strong>quele momento, fosse mais<br />
comprometi<strong>da</strong> com a problemática do excluído, e tratasse, <strong>de</strong>ntre outros assuntos,<br />
do problema do latifúndio; <strong>da</strong> seca; <strong>da</strong>s instituições arcaicas ou sobrevivências<br />
coloniais; <strong>da</strong> exploração <strong>da</strong> mão-<strong>de</strong>-obra; <strong>da</strong> violência social, representa<strong>da</strong> <strong>pel</strong>o<br />
jaguncismo, cangacerismo e misticismo fanático; <strong>da</strong> família patriarcal e <strong>da</strong>s<br />
conseqüências <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>sagregação; <strong>da</strong> corrupção e o coronelismo; e dos<br />
contrastes sociais (ANDRADE, p. 127).<br />
Esta geração <strong>liter</strong>ária, apesar <strong>de</strong> manter-se presa a possíveis mol<strong>de</strong>s realistas<br />
e naturalistas, incorporou a postura crítica <strong>da</strong> primeira fase do movimento<br />
mo<strong>de</strong>rnista.<br />
A conduta i<strong>de</strong>ológica <strong>de</strong>ste momento <strong>liter</strong>ário brasileiro, em particular, muito<br />
se assemelha aos preceitos marxistas já mencionados neste trabalho. As obras<br />
conscientemente políticas funcionavam como documentos sociológicos, e na maioria<br />
<strong>da</strong>s vezes mostravam o oprimido sob a pressão <strong>de</strong> forças atávicas que o im<strong>pel</strong>iam à<br />
aceitação fatalista do <strong>de</strong>stino.<br />
27
2.2 O MARXISMO PRESENTE EM VIDAS SECAS<br />
O romance Vi<strong>da</strong>s secas pertence a uma tendência <strong>liter</strong>ária, nasci<strong>da</strong> <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>da</strong> segun<strong>da</strong> fase do Movimento Mo<strong>de</strong>rnista. A idéia, para este novo movimento, <strong>de</strong><br />
<strong>liter</strong>atura engaja<strong>da</strong> e comprometi<strong>da</strong>, surgiu após o Congresso Regionalista do<br />
Recife, em 1926.<br />
Dentro <strong>de</strong>sta temática regionalista, conheci<strong>da</strong> como Prosa Regionalista <strong>de</strong><br />
1930 (BOSI, 1994, p. 370) <strong>de</strong>stacam-se autores como Jorge Amado, José Lins do<br />
Rego, Rachel <strong>de</strong> Queiroz e Érico Veríssimo, este último retratando o Rio Gran<strong>de</strong> do<br />
Sul.<br />
O autor Graciliano Ramos, ao ser classificado como um regionalista<br />
contestava que não o era, já que seus personagens eram bem diferentes dos<br />
criados <strong>pel</strong>os autores ligados ao movimento. Para ele, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira figura do<br />
sertanejo bronco, hostil e selvagem só era encontra<strong>da</strong> em suas obras, que não<br />
tinham interesse em mostrar também a beleza <strong>da</strong> paisagem nor<strong>de</strong>stina, como as<br />
obras regionalistas, mas a hostili<strong>da</strong><strong>de</strong> do meio físico e a injustiça humana. Seu<br />
interesse era o homem, o sertanejo, conforme as palavras do próprio autor:<br />
[...] o que me interessa é o homem, e o homem <strong>da</strong>quela região aspérrima.<br />
Julgo que é a primeira vez que esse sertanejo aparece na <strong>liter</strong>atura. Os<br />
romancistas do Nor<strong>de</strong>ste têm pintado geralmente o homem do brejo. É o<br />
sertanejo que aparece na obra <strong>de</strong> José Américo e José Lins. Procurei<br />
auscultar a alma do ser ru<strong>de</strong> e quase primitivo que mora na zona mais<br />
recua<strong>da</strong> do sertão, observar a reação <strong>de</strong>sse espírito bronco ante o mundo<br />
exterior, isto é, a hostili<strong>da</strong><strong>de</strong> do meio físico e <strong>da</strong> injustiça humana. Por<br />
pouco que o selvagem pense, e os meus personagens são quase<br />
selvagens, o que ele pensa merece anotação. Foi essa pesquisa<br />
psicológica que procurei fazer; pesquisa que os escritores regionalistas não<br />
fazem nem mesmo po<strong>de</strong>m fazer, porque comumente não conhecem o<br />
sertão, não são familiares do ambiente que <strong>de</strong>screvem (VERDI, 1989, p.<br />
123).<br />
Vi<strong>da</strong>s secas retrata a região <strong>de</strong> Buíque, área <strong>de</strong>vasta<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a seca, no interior<br />
do Nor<strong>de</strong>ste brasileiro. Segundo <strong>de</strong>claração do autor acerca do romance, este era o<br />
retrato fiel <strong>de</strong> uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, sem meias palavras:<br />
28
Fiz o livrinho sem paisagens, sem diálogos. E sem amor. Ausência <strong>de</strong><br />
tabaréus bem-falantes, queima<strong>da</strong>s, cheias e poentes vermelhos, namoro<br />
<strong>de</strong> caboclos. A minha gente, quase mu<strong>da</strong>, vive numa casa velha <strong>de</strong><br />
fazen<strong>da</strong>. As pessoas adultas, preocupa<strong>da</strong>s com o estômago, não têm<br />
tempo <strong>de</strong> abraçar-se (GARBUGLIO, 1987, p. 155).<br />
Um paralelismo entre as idéias exprimi<strong>da</strong>s por Graciliano Ramos em Vi<strong>da</strong>s<br />
secas e os i<strong>de</strong>ais marxistas po<strong>de</strong> ser traçado, ligando esta obra aos pressupostos<br />
i<strong>de</strong>ológicos <strong>de</strong> Marx e Engels.<br />
O romance funciona como que uma bíblia dos marginalizados brasileiros.<br />
Segundo SANTIAGO (1981, p. 49), “a sensação é a <strong>de</strong> que o livro não foi escrito<br />
apenas por um só homem, mas por muitos profetas”, e relata a coragem e a fé <strong>de</strong><br />
um povo sofrido, que trava a ca<strong>da</strong> dia uma luta <strong>pel</strong>a sobrevivência, residindo nesta<br />
reali<strong>da</strong><strong>de</strong> narra<strong>da</strong> a importância <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s secas para uma leitura política.<br />
A problemática do Nor<strong>de</strong>ste brasileiro que envolve a seca, as instituições<br />
arcaicas, a corrupção, a exploração <strong>da</strong> mão-<strong>de</strong>-obra, o coronelismo e o latifúndio<br />
são retratados fielmente <strong>pel</strong>o autor, que mostra a figura <strong>de</strong> um sertanejo sofrido,<br />
acossado <strong>pel</strong>os fazen<strong>de</strong>iros <strong>da</strong> região e até <strong>pel</strong>a polícia que, ao contrário <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>fendê-lo, também o marginaliza.<br />
Os choques entre os personagens oprimidos e opressores serão a seguir<br />
abor<strong>da</strong>dos, com o pano <strong>de</strong> fundo <strong>da</strong>s concepções marxistas até aqui explica<strong>da</strong>s.<br />
2.2.1 Fabiano X patrão<br />
No capítulo intitulado “Fabiano”, o sertanejo, sinha Vitória e os meninos se<br />
alojam em uma fazen<strong>da</strong> abandona<strong>da</strong>. O dono <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong> chega e os expulsa.<br />
Fabiano faz-se <strong>de</strong> <strong>de</strong>sentendido, sorri com aflição, e oferece seus préstimos <strong>de</strong><br />
vaqueiro, quase que implorando. O fazen<strong>de</strong>iro aceita, e permite que a família fique<br />
ali, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que Fabiano trabalhe para arcar com suas <strong>de</strong>spesas. As <strong>de</strong>spesas<br />
sempre seriam maiores do que o salário <strong>de</strong> Fabiano, situação muito comum naquela<br />
região, o que o mantinha preso ao patrão, que reclamava <strong>de</strong> seu serviço e<br />
ameaçava mandá-lo embora.<br />
Embora Fabiano soubesse que o trabalho estava sendo bem feito, não tinha<br />
meios <strong>de</strong> contestar as críticas do patrão, não sabia como se colocar perante a<br />
autori<strong>da</strong><strong>de</strong> do mesmo, não sabia sequer dialogar, e apenas se <strong>de</strong>sculpava,<br />
prometendo melhorar, com o chapéu <strong>de</strong> palha embaixo do braço. Ele sabia que no<br />
29
momento que <strong>de</strong>ixasse a fazen<strong>da</strong> teria que <strong>de</strong>ixar tudo, até os sapatos <strong>de</strong> couro cru,<br />
para o próximo vaqueiro que ocupasse seu lugar: “Fabiano, uma coisa <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong>,<br />
um traste, seria <strong>de</strong>spedido quando menos esperasse” (RAMOS, 2000, p.17).<br />
Neste capítulo percebe-se, portanto, o que o marxismo julga por pressão <strong>de</strong><br />
quem <strong>de</strong>tém o potencial financeiro, em cima do excluído, que não conhece meios <strong>de</strong><br />
se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r do abuso; além <strong>da</strong> má distribuição <strong>da</strong> terra, numa dura crítica à<br />
proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong>.<br />
Nestes momentos, Fabiano se lembrava <strong>de</strong> Tomás <strong>da</strong> bolan<strong>de</strong>ira, que apesar<br />
<strong>de</strong> ter sido um latifundiário, como o proprietário <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong> on<strong>de</strong> Fabiano trabalhava,<br />
tratava com respeito os trabalhadores <strong>de</strong> suas terras, além <strong>de</strong> ter o dom <strong>da</strong> palavra,<br />
algo que Fabiano não possuía: “[...] se ele soubesse falar como sinha Terta,<br />
procuraria serviço noutra fazen<strong>da</strong>, haveria <strong>de</strong> arranjar-se. Não sabia. Nas horas <strong>de</strong><br />
aperto <strong>da</strong>va para gaguejar, embaraçava-se [...] Por isso esfolavam-no. Safados”<br />
(RAMOS, 2000, p.98).<br />
Segundo reflexão <strong>de</strong> Mikhail Bakhtin em sua obra intitula<strong>da</strong> Marxismo e<br />
filosofia <strong>da</strong> linguagem:<br />
As características <strong>da</strong> palavra enquanto signo i<strong>de</strong>ológico fazem <strong>de</strong>la um dos<br />
mais a<strong>de</strong>quados materiais para orientar o problema no plano dos<br />
princípios. Não é tanto a pureza semiótica <strong>da</strong> palavra que nos interessa,<br />
mas sua ubiqüi<strong>da</strong><strong>de</strong> social. Tanto é ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que a palavra penetra<br />
<strong>liter</strong>almente em to<strong>da</strong>s as relações entre indivíduos, nas relações <strong>de</strong><br />
colaboração, nas <strong>de</strong> base i<strong>de</strong>ológica, nos encontros fortuitos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
cotidiana, nas relações <strong>de</strong> caráter político, etc. As palavras são teci<strong>da</strong>s a<br />
partir <strong>de</strong> uma multidão <strong>de</strong> fios i<strong>de</strong>ológicos e servem <strong>de</strong> trama a to<strong>da</strong>s as<br />
relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a palavra<br />
sempre será o indicador mais sensível <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as transformações sociais,<br />
mesmo <strong>da</strong>quelas que apenas <strong>de</strong>spontam, que ain<strong>da</strong> não tomaram forma,<br />
que ain<strong>da</strong> não abriram caminho para sistemas i<strong>de</strong>ológicos estruturados e<br />
bem formados (1981, p. 39).<br />
Na base <strong>da</strong> pirâmi<strong>de</strong> social, Fabiano, sinha Vitória e os meninos são<br />
animalizados, <strong>de</strong>stituídos <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> realização como seres humanos.<br />
Fabiano é o retrato do não-ci<strong>da</strong>dão, <strong>de</strong>samparado, vítima <strong>da</strong> distribuição <strong>de</strong>sigual do<br />
capital e dos meios <strong>de</strong> produção. A “festa” amedronta Fabiano porque o comprime, e<br />
o mesmo só consegue pensar <strong>de</strong> modo agressivo, <strong>de</strong>safiando e reagindo àquela<br />
opressão quando fortalecido <strong>pel</strong>a bebi<strong>da</strong>.<br />
No capítulo “Contas”, Graciliano Ramos mostra explicitamente a exploração<br />
do homem. A figura aterrorizante do patrão reaparece e mostra porque este é um<br />
30
dos gran<strong>de</strong>s responsáveis <strong>pel</strong>a <strong>de</strong>sestrutura e <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> sociais encontra<strong>da</strong>s no<br />
Nor<strong>de</strong>ste do final dos anos 30, conforme retratado por Graciliano Ramos, e<br />
atualmente ain<strong>da</strong> estampa<strong>da</strong>s em jornais e revistas do País.<br />
Baseado possivelmente em idéias socialistas, este autor insinua que a raiz do<br />
problema social no Nor<strong>de</strong>ste po<strong>de</strong>ria ser explica<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a presença <strong>de</strong> um governo<br />
oligárquico, e <strong>de</strong> proprietários <strong>de</strong> terra que exploram insensivelmente os vitimados<br />
<strong>pel</strong>a seca.<br />
Em “Contas”, a exploração é gritante. Fabiano trabalha duro, e no momento<br />
do acerto <strong>de</strong> contas é enganado <strong>pel</strong>o patrão. Sinha Vitória havia feito os cálculos, e<br />
Fabiano acreditava na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> mulher, sabia que se alguém tivesse errado,<br />
haveria <strong>de</strong> ser o patrão. Quando tenta argumentar, o patrão ameaça <strong>de</strong>spedí-lo <strong>pel</strong>a<br />
insolência do ato. Fabiano acha melhor <strong>de</strong>sculpar-se, fingir para si próprio que o erro<br />
<strong>da</strong>s contas tinha sido <strong>da</strong> mulher, aceitar a quantia in<strong>de</strong>vi<strong>da</strong>, além <strong>de</strong> ouvir os<br />
conselhos do patrão sobre dinheiro e futuro.<br />
Fabiano, ao justificar sua atitu<strong>de</strong> perante o patrão, <strong>de</strong>clara: “Era bruto, não<br />
fora ensinado. Atrevimento não tinha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar<br />
questão com gente rica? Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os homens”<br />
(RAMOS, 2000, p.93).<br />
Este personagem, oprimido e ignorante, fôra <strong>de</strong>srespeitado em to<strong>da</strong> a sua<br />
essência. E, apesar <strong>de</strong> ter consciência <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>srespeito, se orgulhava <strong>de</strong> ser<br />
respeitoso com o amo que lhe roubava.<br />
Percebe-se aqui o que a teoria marxista chamaria <strong>de</strong> escravidão informal e<br />
abuso do po<strong>de</strong>r cultural. Por necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>, Fabiano se obrigava a ven<strong>de</strong>r por preços<br />
irrisórios seu gado, e para po<strong>de</strong>r morar naquela fazen<strong>da</strong>, era obrigado a aceitar<br />
condições aviltantes, sempre <strong>de</strong>vendo favores, sendo roubado e humilhado, num<br />
círculo vicioso, num processo <strong>de</strong> coisificação do ser humano. Para o marxismo, a<br />
estrutura socioeconômica reduzia Fabiano a um instrumento <strong>de</strong> produção, uma<br />
máquina.<br />
O patrão, por perceber que Fabiano é um pobre diabo, faminto, impõe sua<br />
superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural e o rouba, <strong>de</strong> forma impunível. O vaqueiro, retrato <strong>da</strong><br />
opressão, permite o abuso. Por não ter opções, mora na casa do patrão,<br />
trabalhando para ele somente até que este o permita. Submete-se ou morre <strong>de</strong> fome<br />
com a família. “Nascera com esse <strong>de</strong>stino, ninguém tinha culpa <strong>de</strong> ele haver nascido<br />
com um <strong>de</strong>stino ruim. Que fazer? [...]” (RAMOS, 2000, p, 96).<br />
31
Nos capítulos acima expostos, Vi<strong>da</strong>s secas retrata a triste reali<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />
nor<strong>de</strong>stino pobre, do meio que agri<strong>de</strong> o homem, e principalmente <strong>da</strong> exploração<br />
entre dominantes e dominados. A luta <strong>de</strong> classes, conceito cultivado <strong>pel</strong>o marxismo,<br />
bem como a coletivização dos meios <strong>de</strong> produção e a partilha do resultado do<br />
trabalho são pontos abor<strong>da</strong>dos <strong>pel</strong>o autor <strong>de</strong> maneira sutil, porém incisiva.<br />
A seca, fenômeno aparentemente <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ador <strong>da</strong> tragédia, e a or<strong>de</strong>m<br />
social vigente constituem, num enfoque <strong>de</strong> leitura simbólico, agentes figurizadores.<br />
Representam marcos metafóricos dos percalços com que o homem se <strong>de</strong>para e que<br />
o impe<strong>de</strong>m <strong>de</strong> ultrapassar a limitação ontológica para realizar sua plenitu<strong>de</strong> no ser<br />
(NASCIMENTO, 1980, p, 41).<br />
Graciliano Ramos utiliza Vi<strong>da</strong>s secas como veículo <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> quem<br />
conviveu com a seca e a miséria, <strong>da</strong>ndo voz ao marginalizado. O próprio nome do<br />
personagem Fabiano - segundo o dicionário Aurélio – chega aos nossos dias com o<br />
significado <strong>de</strong> “indivíduo inofensivo, pobre diabo, um qualquer”. (HOLANDA, 1993, p,<br />
869).<br />
Segundo Tringali (1984, p.45), “<strong>de</strong>seja-se instalar no mundo uma autêntica<br />
retórica [...] Tanto o po<strong>de</strong>roso quanto o fraco <strong>de</strong>vem ter direito ao discurso”. Em<br />
Vi<strong>da</strong>s secas, o oprimido fez sua retórica, e seu porta-voz foi o autor Graciliano<br />
Ramos.<br />
2.2.2 Fabiano X sol<strong>da</strong>do amarelo<br />
Segundo carta <strong>de</strong> Graciliano Ramos a José Condé, em Vi<strong>da</strong>s secas “é<br />
perfeita a a<strong>de</strong>quação <strong>da</strong> técnica <strong>liter</strong>ária à reali<strong>da</strong><strong>de</strong> expressa. Fabiano, sua mulher,<br />
seus filhos, ro<strong>da</strong>m num âmbito exíguo, sem saí<strong>da</strong> […]” (RAMOS, 1982, p, 217).<br />
Esta obra funciona, portanto, como que um documento concreto <strong>da</strong>s<br />
perspectivas limita<strong>da</strong>s do sertanejo, castigado <strong>de</strong> forma impetuosa <strong>pel</strong>a seca e<br />
oprimido <strong>pel</strong>os que <strong>de</strong>têm o po<strong>de</strong>r.<br />
Graciliano Ramos, além <strong>de</strong> criticar a oligarquia, que explora o marginalizado,<br />
critica o Estado que não o protege, e para isso cria o personagem do sol<strong>da</strong>do<br />
amarelo. Este aparece em dois momentos do romance, e <strong>de</strong>monstra como o Estado<br />
enxerga o marginalizado e vice-versa.<br />
No capítulo “Ca<strong>de</strong>ia”, Fabiano vai à ci<strong>da</strong><strong>de</strong> fazer compras, e é convi<strong>da</strong>do por<br />
um sol<strong>da</strong>do, adjetivado na obra como amarelo, para jogar uma parti<strong>da</strong> <strong>de</strong> baralho. O<br />
32
sol<strong>da</strong>do amarelo representa a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> governamental, e Fabiano aceita jogar por<br />
este motivo: o sol<strong>da</strong>do era autori<strong>da</strong><strong>de</strong>, man<strong>da</strong>va, e merecia respeito.<br />
Fabiano per<strong>de</strong> dinheiro no jogo, sai furioso, e não aten<strong>de</strong> quando o sol<strong>da</strong>do<br />
amarelo lhe or<strong>de</strong>na que fique. Ao sair <strong>da</strong> bo<strong>de</strong>ga, o vaqueiro achava que seu único<br />
problema seria explicar a sinha Vitória o que tinha acontecido com o dinheiro, até<br />
que é abor<strong>da</strong>do <strong>pel</strong>o sol<strong>da</strong>do amarelo, que o provoca, insulta, e agri<strong>de</strong>, buscando<br />
pretextos para prendê-lo.<br />
À luz do marxismo, o sol<strong>da</strong>do representa o abuso gratuito <strong>da</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Quando o sol<strong>da</strong>do consegue que Fabiano o <strong>de</strong>sacate, chama o grupamento e<br />
pren<strong>de</strong> o vaqueiro.<br />
Na ca<strong>de</strong>ia, Fabiano recebe uma acusação que não compreen<strong>de</strong>, é agredido e<br />
enclausurado. Tentando enten<strong>de</strong>r sua situação, percebe-se como um pai <strong>de</strong> família,<br />
e crê que, ao ter man<strong>da</strong>do prendê-lo, o sol<strong>da</strong>do provavelmente o confundira com<br />
outro homem.<br />
O vaqueiro acreditava no Governo, e por este motivo não consegue relacioná-<br />
lo ao sol<strong>da</strong>do amarelo. Para ele o po<strong>de</strong>r constituído era perfeito, sem erros. Nesta<br />
situação, ele se lembra <strong>de</strong> colegas que foram presos <strong>pel</strong>a polícia, e que diziam que<br />
apanhar <strong>de</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong> não era <strong>de</strong>sfeita, mas se sente injustiçado, não merecia<br />
aquele castigo. O sol<strong>da</strong>do amarelo seria, portanto, sob a ótica <strong>de</strong> Fabiano, uma<br />
mancha no governo.<br />
O personagem novamente se sente inferiorizado por não ter estudo, não<br />
conseguir se expressar. Para Fabiano, as palavras eram inúteis e perigosas. Não<br />
conseguia enten<strong>de</strong>r porque tinha sido preso, e muito menos conseguiu se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />
no momento <strong>da</strong> prisão. Sentia-se novamente vítima <strong>da</strong> violência e <strong>da</strong> injustiça, e<br />
pensou que se não fosse a família, mataria o sol<strong>da</strong>do amarelo, que espancava<br />
criaturas inofensivas, e também mataria os homens que o dirigiam.<br />
É possível que Fabiano, com estes pensamentos, tentasse indiretamente<br />
proteger seus filhos <strong>de</strong> possíveis injustiças no futuro, <strong>da</strong> influência do meio, pois não<br />
era possível imaginar para os mesmos <strong>de</strong>stinos muito diferentes do seu: “Os<br />
meninos eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem, guar<strong>da</strong>riam as reses <strong>de</strong><br />
um patrão invisível, seriam pisados, maltratados, machucados por um sol<strong>da</strong>do<br />
amarelo” (RAMOS, 2000, p, 38).<br />
Na cena <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> prisão, percebe-se ain<strong>da</strong> outras figuras do po<strong>de</strong>r<br />
público, inseri<strong>da</strong>s no contexto a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar o total abandono do oprimido.<br />
33
Nem o doutor juiz <strong>de</strong> direito, muito menos o cobrador <strong>da</strong> prefeitura, ninguém tomou<br />
partido <strong>de</strong> Fabiano. Até mesmo o vigário, representante do po<strong>de</strong>r divino, havia lhe<br />
abandonado naquele instante.<br />
Este trabalho, nos próximos parágrafos, ligará <strong>da</strong>dos biográficos relevantes<br />
<strong>de</strong> Graciliano aos acontecimentos narrados em Vi<strong>da</strong>s secas, renegando teorias <strong>de</strong><br />
crítica imanentista, inaugura<strong>da</strong>s <strong>pel</strong>o Formalismo Russo que “se caracterizava por<br />
uma recusa categórica às interpretações extra<strong>liter</strong>árias do texto” (EIKHENBAUM,<br />
1970, p.71), a qual po<strong>de</strong>ria produzir - <strong>de</strong>ntre outros resultados - uma análise<br />
marca<strong>da</strong> por reducionismos críticos, visões unilaterais <strong>da</strong>s obras <strong>liter</strong>árias, ou até<br />
mesmo uma análise beirando o tecnicismo puro.<br />
Graciliano Ramos conhecia <strong>de</strong> perto a lei invisível que permitia atitu<strong>de</strong>s<br />
arbitrárias dos governantes. Quando criança, o autor presenciou seu pai, na figura<br />
<strong>de</strong> juiz substituto, pren<strong>de</strong>r impulsivamente um homem humil<strong>de</strong> (assim como o<br />
sol<strong>da</strong>do amarelo pren<strong>de</strong>u Fabiano) que não cometera falta alguma, não praticara<br />
nenhum crime. Foi testemunha do abuso <strong>de</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong> já na infância, o que<br />
provavelmente contribuiu para com sua <strong>de</strong>sconfiança em relação à mesma. Além<br />
disso, teve <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo a percepção <strong>da</strong> <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> entre os homens: “o gibão <strong>de</strong><br />
meu pai tinha diversos enfeites; no <strong>de</strong> Amaro havia numerosos buracos”<br />
(RAMOS,1979, p. 180).<br />
O próprio Graciliano Ramos, pouco tempo antes do lançamento do romance<br />
Vi<strong>da</strong>s secas, esteve preso, conforme já abor<strong>da</strong>do neste trabalho, sem chances <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>fesa, sofrendo humilhações físicas e psicológicas, mesmo não havendo uma<br />
acusação formal contra ele.<br />
Voltando ao romance, após o episódio <strong>da</strong> prisão, Fabiano passa a ser movido<br />
<strong>pel</strong>o sentimento <strong>de</strong> vingança. Deseja reencontrar o sol<strong>da</strong>do amarelo e vingar-se <strong>da</strong><br />
humilhação que este lhe fez sofrer. A se<strong>de</strong> <strong>de</strong> vingança guia Fabiano.<br />
No capítulo “Inverno”, porém, a ira <strong>de</strong> Fabiano contra o sol<strong>da</strong>do, o juiz, o<br />
promotor e o <strong>de</strong>legado, aos quais o vaqueiro <strong>de</strong>sejava matar, <strong>de</strong>saparece<br />
momentaneamente com a chuva, que traz esperança <strong>de</strong> nova vi<strong>da</strong> para ele e sua<br />
família.<br />
O encontro final e surpreen<strong>de</strong>nte entre Fabiano e seu agressor ocorre no<br />
capítulo “Sol<strong>da</strong>do Amarelo”. O vaqueiro reencontra o amarelo só que, <strong>de</strong>sta vez,<br />
ambos estão sozinhos, em meio à caatinga. A situação se inverte: agora é o sol<strong>da</strong>do<br />
que teme Fabiano. Este sente raiva do sol<strong>da</strong>do, por estar sendo tão covar<strong>de</strong>.<br />
34
Fabiano achava que <strong>pel</strong>o fato do sol<strong>da</strong>do usar far<strong>da</strong>, o mesmo <strong>de</strong>veria tentar<br />
enfrentá-lo, mas o sol<strong>da</strong>do permanece aterrorizado, perante um Fabiano confuso. O<br />
vaqueiro chega a se sentir pior que seu antagonista, já que tinha sido preso sem<br />
motivos por um ser tão <strong>de</strong>sprezível.<br />
O final <strong>de</strong>ste capítulo tem dois significados distintos: o primeiro po<strong>de</strong> ser<br />
interpretado no que se refere à posição <strong>de</strong> Fabiano frente ao sol<strong>da</strong>do, ao opressor.<br />
O vaqueiro não ataca o sol<strong>da</strong>do porque acha que não valeria a pena matar um<br />
covar<strong>de</strong>, uma “fraqueza far<strong>da</strong><strong>da</strong>” (RAMOS. 2000, p,107), que só se mostrava<br />
corajoso junto do seu <strong>de</strong>stacamento, pren<strong>de</strong>ndo pobres e inocentes. Fabiano teria<br />
se sentido, portanto, melhor que o sol<strong>da</strong>do, e neste caso, vencido o opressor.<br />
O segundo significado, porém, se refere à luta entre oprimidos e opressores.<br />
Fabiano não mata o sol<strong>da</strong>do porque ele representava o governo, e o sertanejo lhe<br />
<strong>de</strong>via respeito. Submete-se a ele. Portanto, estaria configura<strong>da</strong> a vitória do opressor,<br />
que até psicologicamente acossava o oprimido, não permitindo que este reagisse.<br />
Seria possível, ain<strong>da</strong>, fazer algumas interpretações sobre o uso <strong>da</strong> cor<br />
amarela, que adjetivou o sol<strong>da</strong>do. Po<strong>de</strong>-se dizer que esta estaria relaciona<strong>da</strong> à<br />
reação do sol<strong>da</strong>do, enten<strong>de</strong>ndo-se que o mesmo ficou “amarelo” <strong>de</strong> medo ao se<br />
<strong>de</strong>parar com o vaqueiro. Po<strong>de</strong>r-se-ia também aludir o amarelo à cor <strong>da</strong> far<strong>da</strong> do<br />
sol<strong>da</strong>do, ou até mesmo à cor característica do sertanejo, habitante <strong>da</strong>quela região.<br />
2.2.3 Fabiano X ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
No capítulo “Festa”, a família resolve ir à festa <strong>de</strong> Natal <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Nesta<br />
passagem, é a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> que marginaliza estes personagens. Sinha Vitória, com a<br />
esperança <strong>de</strong> que eles possam se parecer “um pouco” com pessoas civiliza<strong>da</strong>s,<br />
encomen<strong>da</strong> roupas novas que, por falta <strong>de</strong> tecido, acabam ficando curtas e<br />
<strong>de</strong>sconfortáveis. As roupas remen<strong>da</strong><strong>da</strong>s, soma<strong>da</strong>s aos sapatos que apertavam os<br />
seus pés, não acostumados a usar calçados, os ridicularizam.<br />
Ao chegarem à ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, Fabiano se sente ro<strong>de</strong>ado por inimigos. A situação <strong>de</strong><br />
incômodo gera<strong>da</strong> na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> o fez lembrar do sol<strong>da</strong>do amarelo, personagem <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> importância no <strong>de</strong>senrolar <strong>da</strong> trama.<br />
Os meninos também sentiam medo <strong>da</strong>s pessoas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, e tentavam<br />
caminhar sem se fazer notar. As pessoas pareciam enormes, maiores até mesmo<br />
que seus pais.<br />
35
Neste capítulo fica clara a <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> existente entre a família <strong>de</strong> Fabiano e<br />
os moradores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Esta família <strong>de</strong> sertanejos, segundo a idéia marxista,<br />
representaria o oprimido, o ignorante, mas, sobretudo, representaria o homem em<br />
seu estado puro.<br />
Apesar <strong>de</strong> tentar se vestir como aquelas pessoas, a família estava muito<br />
distante <strong>da</strong>quela reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, distante <strong>da</strong> civilização, o que aumenta em Fabiano o<br />
sentimento <strong>de</strong> inferiori<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong> menosprezo:<br />
Comparando-se aos tipos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, Fabiano reconhecia-se inferior. Por<br />
isso <strong>de</strong>sconfiava que os outros mangavam <strong>de</strong>le. Fazia-se carrancudo e<br />
evitava conversas. Só lhe falavam com o fim <strong>de</strong> tirar-lhe qualquer coisa<br />
(RAMOS, 2000, p.76).<br />
O capítulo “Festa” é <strong>de</strong>senhado com base também na dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
expressão oral <strong>da</strong> família. O domínio <strong>da</strong> linguagem é justamente um dos pontos<br />
fun<strong>da</strong>mentais para que se faça distinção entre homens e animais. A família <strong>de</strong><br />
Fabiano era forma<strong>da</strong> por seres silenciosos, que só tinham conceitos fragmentados<br />
sobre sua reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e sobre o mundo que os cercava, incapazes <strong>de</strong> estabelecer uma<br />
comunicação, um discurso convincente, que lhes permitisse ao menos se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />
verbalmente <strong>da</strong> opressão que sofriam. Os personagens não falavam, apenas<br />
grunhiam, rosnavam e gesticulavam.<br />
Para o autor Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’ana, a linguagem é coerente com os<br />
processos <strong>de</strong> zoomorfização <strong>da</strong>s personagens: “[...] Vi<strong>da</strong>s secas vem a ser um<br />
romance <strong>de</strong> não-linguagem, em que a incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> comunicativa <strong>da</strong>s personagens<br />
é a forma mais imediata <strong>de</strong> sua manifestação” (1973, p.179).<br />
36
3 DO PAPEL À PELÍCULA<br />
3.1 DESMONTAGEM DA NARRATIVA LITERÁRIA<br />
O escritor Graciliano Ramos, alguns meses após ter sido libertado <strong>da</strong> prisão,<br />
escreveu um conto sobre uma ca<strong>de</strong>la, cuja morte, segundo artigo publicado <strong>pel</strong>o<br />
Jornal do Brasil <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1998, ele realmente havia presenciado quando<br />
criança no interior <strong>de</strong> Pernambuco.<br />
Neste conto, o autor procurou transmitir os sentimentos <strong>da</strong> cachorra à beira<br />
<strong>da</strong> morte, servindo <strong>de</strong>ssa forma, como porta-voz e tradutor dos temores caninos.<br />
Após escrevê-lo, Graciliano o ven<strong>de</strong>u para publicação em um jornal.<br />
Devido às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s financeiras que o autor enfrentava, o dinheiro ganho<br />
com a publicação lhe era indispensável. O mesmo chegou a se arrepen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> ter<br />
vendido o conto, porém não podia pegá-lo <strong>de</strong> volta e per<strong>de</strong>r o dinheiro já embolsado.<br />
O autor Graciliano teve ao seu lado, durante boa parte <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>, uma<br />
mulher <strong>de</strong> muita fibra. A segun<strong>da</strong> esposa, Heloísa Ramos, alagoana, foi umas <strong>da</strong>s<br />
gran<strong>de</strong>s responsáveis <strong>pel</strong>a libertação do marido <strong>da</strong> prisão, período no qual teve suas<br />
filhas pequenas espalha<strong>da</strong>s <strong>pel</strong>as casas <strong>de</strong> parentes, enquanto buscava quem<br />
lutasse <strong>pel</strong>os direitos do marido.<br />
Após sua libertação, trabalhava durante as manhãs, assumindo as contas <strong>da</strong><br />
família, e diariamente, após o almoço, levava as crianças ao Largo do Machado, um<br />
bairro <strong>da</strong> capital carioca, para que o marido pu<strong>de</strong>sse dormir, já que ele consumia<br />
suas madruga<strong>da</strong>s na elaboração <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s secas. A esposa era a sua mais fiel<br />
ouvinte, atenta à sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> do romance, que aos poucos ia se concretizando.<br />
Temeroso com uma possível má reação <strong>de</strong> seus amigos intelectuais, frente a<br />
um conto que tratava <strong>da</strong> morte <strong>de</strong> um animal, e certo <strong>de</strong> que tinha errado ao vendê-<br />
lo, Graciliano permaneceu recluso em sua casa durante os dois dias seguintes à<br />
publicação <strong>de</strong>ste. Quando resolveu sair, foi surpreendido <strong>pel</strong>as opiniões que ele<br />
tanto temia. Seus amigos, ao contrário do que ele esperava, o parabenizaram <strong>pel</strong>o<br />
trabalho.<br />
A boa recepção <strong>de</strong> “Baleia” estimulou Graciliano a <strong>da</strong>r continui<strong>da</strong><strong>de</strong> à história<br />
envolvendo a cachorra. Ele passou a escrever contos sobre uma família <strong>de</strong>
nor<strong>de</strong>stinos (<strong>da</strong> qual a cachorra fazia parte), <strong>de</strong>sola<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a seca, que vagava <strong>pel</strong>o<br />
interior do Nor<strong>de</strong>ste numa batalha árdua e diária <strong>pel</strong>a sobrevivência.<br />
A história sobre a família <strong>de</strong> retirantes garantiu por um bom tempo o sustento<br />
do autor, <strong>de</strong> sua esposa e <strong>de</strong> suas filhas pequenas, além <strong>da</strong> pensão que <strong>da</strong>va a<br />
seus filhos do primeiro casamento. O autor <strong>de</strong>cidiu após sua prisão ser apenas um<br />
escritor, afastando-se <strong>de</strong>ssa forma <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> política, e <strong>de</strong>dicando seu tempo a<br />
escrever sobre o sertanejo Fabiano e sua família.<br />
Sobre este momento <strong>liter</strong>ário, Graciliano <strong>de</strong>clarou que:<br />
[...] <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> escrever Baleia, que saiu como conto em jornal, <strong>de</strong>diquei em<br />
segui<strong>da</strong> várias páginas aos donos do animal. Essas coisas foram vendi<strong>da</strong>s<br />
em retalho, a jornais e revistas. E como José Olympio me pediu um livro,<br />
arranjei outras narrações que tanto po<strong>de</strong>m ser contos como capítulos <strong>de</strong><br />
romance. Assim nasceram Fabiano, a mulher, os dois filhos e a cachorra<br />
Baleia (RAMOS apud BRAYNER et al.,1978, p.204).<br />
A fragmentação narrativa <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s secas foi comprova<strong>da</strong> <strong>pel</strong>o escritor<br />
Francisco <strong>de</strong> Assis Barbosa. Entrevistando a autor, o mesmo teve acesso aos<br />
originais <strong>da</strong> obra, o que lhe permitiu verificar que além dos contos não terem uma<br />
continuação (o autor chegou até mesmo a ven<strong>de</strong>r o mesmo conto a diferentes<br />
publicações, somente mu<strong>da</strong>ndo o título dos mesmos), a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> produção dos<br />
mesmos não foi obe<strong>de</strong>ci<strong>da</strong> na publicação.<br />
Conforme já citado neste capítulo, “Baleia” foi o primeiro conto/capítulo a ser<br />
escrito, e foi <strong>da</strong>tado em 4 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1937. No dia 18 <strong>de</strong> junho, Graciliano terminou<br />
o conto/capítulo “Sinha Vitória”. Porém, na organização para a publicação, “Baleia” é<br />
o nono capitulo, e “Sinha Vitória” o quarto. A obra Vi<strong>da</strong>s secas foi totalmente<br />
composta <strong>de</strong>sta forma, sem obe<strong>de</strong>cer a nenhum plano antecipado (GARBUGLIO et<br />
al.,1987, p.64).<br />
Segundo Letícia Malard (1976, p.70), Graciliano informou a seu amigo José<br />
Con<strong>de</strong>, em carta <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1944, a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> composição dos capítulos e<br />
suas <strong>da</strong>tas: “Baleia” (4/5/37); “Sinha Vitória” (18/6/37); “Ca<strong>de</strong>ia” (21/6/37); “O menino<br />
mais novo” (26/6/37); “O menino mais velho” (8/7/37); “Inverno” (14/7/37); “Mu<strong>da</strong>nça”<br />
(16/7/37); “Festa” (22/7/37); “Contas” (29/7/37); “Fabiano” (22/8/37); “O mundo<br />
coberto <strong>de</strong> penas” (27/8/37); “O sol<strong>da</strong>do amarelo” (6/9/37) e “Fuga” (6/10/37).<br />
Comparando-se esta or<strong>de</strong>m com a do romance, verifica-se que a estrutura<br />
inicial (fazen<strong>da</strong>-retira<strong>da</strong>-fazen<strong>da</strong>) transformou-se em retira<strong>da</strong>-fazen<strong>da</strong>-retira<strong>da</strong>. Esta<br />
38
or<strong>de</strong>m compõe-se <strong>de</strong>: “Mu<strong>da</strong>nça”, “Fabiano”, “Ca<strong>de</strong>ia”, “Sinha Vitória”, “Menino mais<br />
novo”, “Menino mais velho”, “Inverno”, “Festa”, “Baleia”, “Contas”, “O sol<strong>da</strong>do<br />
amarelo”, “O mundo coberto <strong>de</strong> penas” e “Fuga”.<br />
“O menino mais novo”, “O menino mais velho”, e “Inverno” constituem uma<br />
trilogia capitular manti<strong>da</strong>, e “Fuga”, último a ser escrito, é o último também do<br />
romance. A or<strong>de</strong>m dos <strong>de</strong>mais foi altera<strong>da</strong>. Segundo pensamento <strong>de</strong> Tzvetan<br />
Todorov em sua obra intitula<strong>da</strong> As estrutura narrativas:<br />
O romance é um ser vivo, uno e contínuo, que vive à medi<strong>da</strong> que em ca<strong>da</strong><br />
uma <strong>de</strong> suas partes aparecem aspectos <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as outras. O crítico que, a<br />
partir <strong>da</strong> textura fecha<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma obra termina<strong>da</strong>, preten<strong>de</strong>r traçar a<br />
geografia <strong>de</strong> suas uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, será levado a colocar fronteiras tão artificiais,<br />
temo eu, quanto to<strong>da</strong>s aquelas que a história conheceu (2003, p.82)<br />
Os capítulos que levam os nomes dos personagens permitem que o leitor<br />
conheça-os interiormente, lançando uma luz sobre a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> particular <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um<br />
<strong>de</strong>les, seus sonhos e expectativas.<br />
Ao observar-se a obra Vi<strong>da</strong>s secas, percebe-se que a composição em quadros<br />
apresenta um estudo psicológico variado, que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do personagem a ser<br />
estu<strong>da</strong>do.<br />
Graciliano, ao criar a família <strong>de</strong> retirantes, inspirou-se em suas próprias<br />
lembranças familiares, alia<strong>da</strong>s a sua experiência como político, preocupado com o<br />
bem-estar <strong>da</strong>queles <strong>de</strong> pouca sorte que cruzaram seu caminho, e consciente <strong>da</strong>s<br />
possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s em fazer <strong>de</strong> sua obra importante veículo <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia. De acordo com<br />
Sartre (1993, p.21), a função do intelectual é <strong>de</strong>spertar consciências, impedindo que<br />
os homens se alienem ou se resignem diante <strong>da</strong>s interrogações a sua volta.<br />
Fabiano e seus familiares não são, por um certo prisma, personagens fictícios<br />
<strong>de</strong> um autor <strong>de</strong> romance. São, sim, verossímeis, retratos <strong>de</strong> uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> cruel,<br />
porém viva, que castiga <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pais preocupados com a sobrevivência <strong>da</strong> família até<br />
crianças pequenas que sonham em ser como estes pais, calejados <strong>pel</strong>o sofrimento,<br />
mas admirados em sua essência <strong>pel</strong>os seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes.<br />
O distanciamento <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> traduzia, no enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Graciliano, um tipo <strong>de</strong><br />
<strong>liter</strong>atura inútil...<br />
[...] que só se ocupa <strong>de</strong> coisas agradáveis, não se molha em dias <strong>de</strong> inverno<br />
e por isso ignora que há pessoas que não po<strong>de</strong>m comprar capas <strong>de</strong><br />
39
orracha, [...] acha que tudo está direito, que o Brasil é um mundo e que<br />
somos felizes [...] insincera a <strong>liter</strong>atura exerci<strong>da</strong> por ci<strong>da</strong>dãos gordos,<br />
banqueiros, acionistas, comerciantes, proprietários, indivíduos que não<br />
acham que os outros tenham motivo para estar <strong>de</strong>scontentes (RAMOS apud<br />
LINS, 1963, p.154).<br />
Consi<strong>de</strong>rando-se todos os elementos que compõem a obra, <strong>de</strong>stacam-se como<br />
os <strong>de</strong> maior importância no transcorrer <strong>da</strong> narrativa as questôes temporal, <strong>da</strong><br />
linguagem e <strong>da</strong> paisagem, trabalha<strong>da</strong>s <strong>pel</strong>o autor ao mesmo tempo, como num<br />
emaranhado, intrínsecas à composição dos personagens. Levando-se em<br />
consi<strong>de</strong>ração esta observação acima, este capítulo, a partir <strong>de</strong> agora, <strong>de</strong>dicar-se-à a<br />
analisar estas questões.<br />
3.1.1 Questão temporal<br />
A passagem <strong>de</strong> tempo na história fica subentendi<strong>da</strong>. Percebe-se a mesma<br />
apenas em alguns trechos <strong>da</strong> obra. O leitor compreen<strong>de</strong> que houve uma passagem<br />
<strong>de</strong> tempo, mas ela é mostra<strong>da</strong> no texto sutilmente, como por exemplo, no episódio<br />
do reencontro entre Fabiano e o sol<strong>da</strong>do amarelo, on<strong>de</strong> o narrador sinaliza que um<br />
ano já havia se passado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro encontro entre os dois na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, o qual<br />
resultou na prisão do sertanejo.<br />
Outra maneira sutil <strong>de</strong> se perceber uma pseudocronologia dos fatos po<strong>de</strong> ser<br />
observa<strong>da</strong> após a morte <strong>da</strong> cachorra Baleia. Nos capítulos que se seguem (“Contas”<br />
e “Sol<strong>da</strong>do amarelo”) a personagem não é menciona<strong>da</strong>, como que numa espécie <strong>de</strong><br />
luto <strong>da</strong> narrativa. No capítulo seguinte (“O mundo coberto <strong>de</strong> penas”), Fabiano se<br />
lembra <strong>de</strong> Baleia, e arrepen<strong>de</strong>-se <strong>de</strong> tê-la sacrificado, e em “Fuga”, último capítulo,<br />
(conforme seqüência já aludi<strong>da</strong> neste trabalho), o sertanejo é assombrado <strong>pel</strong>a<br />
imagem <strong>da</strong> cachorra, que lhe traz culpa e sau<strong>da</strong><strong>de</strong>, ficando marca<strong>da</strong>, portanto, uma<br />
lógica <strong>de</strong> fatos que se suce<strong>de</strong>ram. Conclui-se então, que “a obra <strong>de</strong> arte é<br />
inteiramente construí<strong>da</strong>, to<strong>da</strong> a sua matéria é organiza<strong>da</strong>” (TODOROV, 2003, p.60).ç<br />
A fazen<strong>da</strong> on<strong>de</strong> a história se <strong>de</strong>senrola, a época em que ocorreram os fatos,<br />
na<strong>da</strong> é <strong>de</strong>clarado, cabendo ao leitor imaginar, por conseguinte, essas informações.<br />
Esta possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> criação <strong>da</strong><strong>da</strong> ao leitor, novamente remete à obra um<br />
emaranhado <strong>de</strong> significados, que permite uma gran<strong>de</strong> varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leituras. Este<br />
po<strong>de</strong>, por exemplo, imaginar a localização <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong> on<strong>de</strong> a família morou por<br />
algum tempo, ou até mesmo, a i<strong>da</strong><strong>de</strong> dos meninos.<br />
40
Sendo assim, a história po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> a-histórica, <strong>de</strong>finindo-se mais<br />
por um tipo <strong>de</strong> anacronia, uma vez que não se situa em nenhum tipo específico<br />
(SANT’ANA, 1977, p.165).<br />
3.1.2 Questão <strong>da</strong> linguagem<br />
A construção <strong>da</strong> linguagem <strong>da</strong> obra Vi<strong>da</strong>s secas mereceria sem dúvi<strong>da</strong> uma<br />
pesquisa exclusiva. Como o intuito <strong>de</strong>ste capítulo é o <strong>de</strong> <strong>de</strong>smontar a narrativa como<br />
um todo, abor<strong>da</strong>r-se-á este assunto, salientando apenas os aspectos que mais se<br />
coadunam com esta pesquisa.<br />
A seca é a mola propulsora <strong>da</strong> obra, tanto em sentido real quanto figurado. A<br />
ari<strong>de</strong>z do solo ressecado on<strong>de</strong> pisavam Fabiano e a família é transposta para o<br />
pa<strong>pel</strong> por meio <strong>da</strong> linguagem conti<strong>da</strong> e enxuta <strong>de</strong> seu criador. O estilo reservado <strong>de</strong><br />
Graciliano permeia to<strong>da</strong> a obra. Num árduo trabalho <strong>de</strong> refinamento, o escritor<br />
passava noites em claro lendo e relendo seus manuscritos <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s secas, sempre<br />
escritos a lápis, em folhas <strong>de</strong> pa<strong>pel</strong> sem pauta, retirando <strong>de</strong>les tudo que consi<strong>de</strong>rava<br />
excessivo, utilizando-se <strong>de</strong> uma régua, com a qual fazia dois traços sobre a palavra<br />
a ser retira<strong>da</strong>.<br />
Segundo Moraes (1992, p.87), “o autor precisou apenas <strong>de</strong> folhas <strong>de</strong> pa<strong>pel</strong> e<br />
frases enxutas para lançar um facho <strong>de</strong> luz sobre os contornos precários <strong>de</strong> um<br />
mundo alienado. Para ele, sua arma era o lápis”.<br />
Estas “gorduras” textuais iam sendo rigorosamente subtraí<strong>da</strong>s do texto, a fim<br />
<strong>de</strong> se chegar a uma versão simples, sem rebor<strong>da</strong>mentos, inúteis e <strong>de</strong>snecessários<br />
na visão do autor, que buscava mostrar ao leitor unicamente a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, por pior que<br />
ela pu<strong>de</strong>sse parecer, representa<strong>da</strong> num texto tão cru.<br />
A objetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> excessiva, uma particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>monstra<strong>da</strong> não só em Vi<strong>da</strong>s<br />
secas como em to<strong>da</strong>s as suas outras obras, alia<strong>da</strong> a uma dura crítica social, realista<br />
ao extremo, aproxima-se bastante do estilo <strong>de</strong> escrita <strong>de</strong> Eça <strong>de</strong> Queirós, <strong>de</strong> quem<br />
Graciliano era admirador intelectual, e que ain<strong>da</strong> no século XVIII <strong>de</strong>safiava<br />
socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s egoístas e hipócritas, levando o leitor a se questionar principalmente<br />
sobre a transitorie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a inconstância do ser humano e quanto aos seus<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros valores.<br />
O trabalho meticuloso <strong>de</strong> aperfeiçoamento <strong>da</strong> linguagem textual, numa busca<br />
vigorosa <strong>pel</strong>o termo exato, fazia com que Graciliano revisasse até mesmo as provas<br />
tipográficas, e transformasse impiedosamente quatro lau<strong>da</strong>s <strong>de</strong> escritos em uma<br />
41
única, <strong>de</strong>finitiva. Segundo Todorov, a <strong>liter</strong>atura goza <strong>de</strong> um estatuto particularmente<br />
privilegiado no seio <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s semióticas:<br />
Ela tem a linguagem ao mesmo tempo como ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> e como ponto<br />
<strong>de</strong> chega<strong>da</strong>; ela lhe fornece tanto sua configuração abstrata quanto sua<br />
matéria perceptível, é ao mesmo tempo mediadora e mediatiza<strong>da</strong>. A<br />
<strong>liter</strong>atura se revela, portanto, não só como primeiro campo que se po<strong>de</strong><br />
estu<strong>da</strong>r a partir <strong>da</strong> linguagem, mas também como o primeiro cujo<br />
conhecimento possa lançar uma nova luz sobre as proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> própria<br />
linguagem (2003, p.54).<br />
O Romance Vi<strong>da</strong>s secas mudou <strong>de</strong> nome várias vezes. Segundo Graciliano<br />
contou ao amigo Octávio Dias Leite, em uma carta escrita em 3 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong><br />
1937, ele não po<strong>de</strong>ria se ausentar do Rio <strong>de</strong> Janeiro para visitá-lo em Belo<br />
Horizonte, porque estava muito atarefado escrevendo sobre uma família <strong>de</strong><br />
retirantes nor<strong>de</strong>stinos, narrativa batiza<strong>da</strong> por ele nessa ocasião <strong>de</strong> “Cardinheiras”.<br />
Para o pesquisador Wan<strong>de</strong>r Melo Miran<strong>da</strong> (2004, p.39), o significado <strong>de</strong>ste<br />
título está ligado às aves <strong>de</strong> arribação – aves par<strong>da</strong>s, com duas manchas pretas<br />
junto aos olhos, que entre março e abril, se encontram no Nor<strong>de</strong>ste para a <strong>de</strong>sova.<br />
Além <strong>de</strong>ste título, o livro também teve o nome provisório <strong>de</strong> “O mundo coberto <strong>de</strong><br />
penas”, que acabou nomeando o capítulo marcado <strong>pel</strong>a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong>s aves <strong>de</strong><br />
arribação, sinal <strong>de</strong> mau agouro, e acabou, nas vésperas <strong>de</strong> seu lançamento, sendo<br />
batizado <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s secas, num trocadilho estilístico no qual fica clara a antítese<br />
forma<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a vi<strong>da</strong> versus a seca.<br />
O personagem Fabiano, usando um recurso metafórico, é comparado a um<br />
bicho, como se po<strong>de</strong> perceber no trecho: “Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o<br />
tiraria <strong>da</strong>li. Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho [...]” (RAMOS,<br />
2000, p. 19).<br />
Já a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> uma Baleia humaniza<strong>da</strong> é marca<strong>da</strong> <strong>pel</strong>o uso <strong>da</strong><br />
prosopopéia, como por exemplo:<br />
O menino mais velho agarrou-a. Estava segura. Tentaram explicar-lhes que<br />
tinham tido um susto enorme por causa <strong>de</strong>la, mas Baleia não ligou<br />
importância à explicação. Achava é que perdiam tempo num lugar<br />
esquisito, cheio <strong>de</strong> odores <strong>de</strong>sconhecidos. Quis latir, expressar oposição a<br />
tudo aquilo, mas percebeu que não convenceria ninguém [...] (RAMOS,<br />
2000, p. 83).<br />
42
Po<strong>de</strong>-se perceber também a utilização bastante lógica <strong>da</strong>s elipses, um<br />
recurso bastante viável na contenção <strong>de</strong> vocábulos, como, por exemplo, no trecho:<br />
“Chegou. Pôs a cuia no chão, escorou-a com pedras, matou a se<strong>de</strong> <strong>da</strong> família”<br />
(RAMOS, 2000, p. 15) e <strong>da</strong>s onomatopéias, utiliza<strong>da</strong>s no que se referia ao falar dos<br />
personagens e ao barulho, por exemplo, <strong>da</strong>s sandálias do sertanejo (“chape-chape”)<br />
(RAMOS, 2000, p.19).<br />
A sinestesia, casando cores e sentidos, e a justaposição <strong>de</strong> orações<br />
coor<strong>de</strong>na<strong>da</strong>s, como representação <strong>de</strong> morosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>monstram, <strong>de</strong>ntre outros<br />
aspectos, a sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do autor, que ao empregar estes tipos <strong>de</strong> recursos<br />
estilísticos, permite ao leitor interpretações muito mais livres e criativas <strong>da</strong> sua obra<br />
<strong>liter</strong>ária, levando a leitura <strong>da</strong> mesma para o campo do figurado, do original. O estilo<br />
próprio <strong>de</strong> escrever é "uma linguagem autárquica que mergulha na mitologia pessoal<br />
e secreta do autor" (BARTHES, 1970, p.34).<br />
O autor Graciliano, apesar <strong>de</strong> não ter cursado nenhuma facul<strong>da</strong><strong>de</strong>, era um<br />
autodi<strong>da</strong>ta, tinha um conhecimento profundo <strong>de</strong> gramática, e o aplicava em suas<br />
obras, porém sutilmente, surpreen<strong>de</strong>ndo leitores mais atentos que conseguem<br />
perceber o jogo <strong>de</strong> palavras intencionalmente montado.<br />
Os tempos verbais sofrem variações <strong>de</strong> conjugação conforme o efeito que o<br />
autor quer atingir. Ao longo <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a narrativa, po<strong>de</strong>-se observar a colocação <strong>de</strong><br />
verbos no pretérito perfeito do indicativo e no imperfeito, conjugados tanto no modo<br />
indicativo quanto no subjuntivo, além <strong>de</strong> verbos no presente. Uma leitura atenta <strong>da</strong><br />
obra faz com que um estranhamento aconteça, levando a um questionamento sobre<br />
a utilização <strong>de</strong>ssas formas verbais, numa tentativa <strong>de</strong> eluci<strong>da</strong>r os motivos que<br />
levaram o autor a trabalhar <strong>de</strong>sta maneira. Que razão lógica ele haveria <strong>de</strong> ter<br />
seguido?<br />
De acordo com Bechara (2003, p.221), os tempos do verbo são: presente, em<br />
referência a fatos que se passam ou se esten<strong>de</strong>m ao momento em que falamos.<br />
Pretérito, que faz referência a fatos anteriores ao momento em que falamos,<br />
subdividindo-se em imperfeito, perfeito e mais-que-perfeito; e futuro, em referência a<br />
fatos ain<strong>da</strong> não realizados, subdivididos em futuro do presente e do pretérito. Os<br />
modos do verbo po<strong>de</strong>m ser indicativo, em referência a fatos verossímeis, ou tidos<br />
como tal, e subjuntivo, em referência a fatos incertos, classificação conforme a<br />
posição do falante em face <strong>da</strong> relação entre a ação verbal e seu agente.<br />
43
No capítulo “Mu<strong>da</strong>nça”, o primeiro levando-se em consi<strong>de</strong>ração a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />
publicação, Fabiano <strong>de</strong>vaneia: “Eram todos felizes. Sinha Vitória vestiria uma saia<br />
larga <strong>de</strong> ramagens. A cara murcha <strong>de</strong> Sinha Vitória remoçaria [...]” (RAMOS, 2000,<br />
p.15). O primeiro verbo que constrói este trecho <strong>da</strong> narrativa foi utilizado no pretérito<br />
imperfeito enunciando um fato passado, porém não concluído, prolongado. A<br />
presença <strong>de</strong>ste verbo na construção <strong>da</strong> narrativa é bem <strong>de</strong>staca<strong>da</strong>.<br />
Os verbos seguintes utilizados neste exemplo estão no futuro do pretérito,<br />
caracterizando a expectativa do sertanejo no campo <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Quando<br />
Fabiano sonha, <strong>de</strong>seja algo, os verbos se apresentam <strong>de</strong>sta forma ao longo do<br />
romance, marcando um pensamento i<strong>de</strong>alizado, porém, não concretizado.<br />
Em outro trecho <strong>da</strong> obra, por exemplo, outras duas conjugações são<br />
utiliza<strong>da</strong>s simultaneamente:<br />
Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca <strong>de</strong> ponta, esgaravatou as<br />
unhas sujas. Tirou do aió um pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong> fumo, picou-o, fez um cigarro com<br />
uma palha <strong>de</strong> milho, acen<strong>de</strong>u-o ao binga, pôs-se a fumar regalado.<br />
- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.<br />
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirarse<br />
ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era um homem: era<br />
apenas um cabra ocupado em guar<strong>da</strong>r coisas dos outros. (RAMOS, 2000,<br />
p.18).<br />
Os verbos pisar, puxar, esgaravatar, tirar, picar e acen<strong>de</strong>r foram utilizados no<br />
pretérito perfeito, indicando ações completas. Logo em segui<strong>da</strong>, aparece a fala <strong>de</strong><br />
Fabiano, on<strong>de</strong> o verbo ser aparece no presente do indicativo, exprimindo algo que<br />
para o sertanejo era real, <strong>pel</strong>o menos naquele momento, que ele tem coragem <strong>de</strong> se<br />
ver como um homem.<br />
A seguir aparecem os verbos conter, notar, estar, ir, novamente o verbo ser,<br />
admirar e ouvir. O pronome “se” que aparece nestes exemplos é parte integrante<br />
dos mesmos, já que exprimem idéias <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> estado, associando-se<br />
somente a eles, não possuindo, portanto, função sintática <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>.<br />
Os verbos acima citados aparecem no pretérito perfeito, no imperfeito, no<br />
gerúndio, <strong>da</strong>ndo idéia <strong>de</strong> ação continua<strong>da</strong>, e finalmente num momento <strong>de</strong> reflexão<br />
sobre o que havia dito, Fabiano volta atrás e <strong>de</strong>clara que não era um homem, numa<br />
construção que utiliza novamente o pretérito imperfeito.<br />
Percebe-se, portanto, nessa pequena passagem, o jogo verbal montado <strong>pel</strong>o<br />
autor na caracterização dos personagens. Fabiano em um momento crê ser um<br />
44
homem, e afirma isso usando um verbo no presente. Um pouco mais adiante, ele se<br />
arrepen<strong>de</strong>, e volta a se julgar um relés empregado, que não merece ser consi<strong>de</strong>rado<br />
um homem. Neste momento, o verbo é conjugado no pretérito imperfeito, o que<br />
marca a impermanência, a provisorie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ste sentido.<br />
O jogo verbal teria, <strong>de</strong>ssa forma, a função principal <strong>de</strong> fazer com que o leitor<br />
perceba as mu<strong>da</strong>nças <strong>de</strong> pensamentos dos personagens e a presença do narrador,<br />
que se mostra através do uso dos imperfeitos e do pretérito mais-que-perfeito, já que<br />
as poucas frases atribuí<strong>da</strong>s à Fabiano são compostas por verbos no presente do<br />
indicativo, contrastando claramente com as que marcam a presença do narrador.<br />
O recurso <strong>da</strong> metalinguagem na composição do texto favoreceu em muito a<br />
relação narrador/leitor, e a reflexão <strong>de</strong>ste leitor sobre a sua própria língua, já que<br />
permite um retorno constante <strong>da</strong> linguagem em direção a seu próprio código,<br />
funcionando como a explicação <strong>da</strong> língua por ela própria, sendo, portanto, um<br />
recurso <strong>da</strong> auto-reflexão poética.<br />
Segundo Mesquita (1997, p.17), metalinguagem é um fenômeno <strong>da</strong><br />
linguagem, pois, esta tem função metalingüística quando discorre sobre o seu<br />
próprio conteúdo. É, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a própria linguagem que está em jogo. O emissor<br />
utiliza-se do código lingüístico para transmitir reflexões sobre si mesmo. O que<br />
ocorre é que a própria linguagem é discuti<strong>da</strong> e posta em <strong>de</strong>staque. O emprego <strong>da</strong><br />
função metalingüística em <strong>liter</strong>atura discute a própria criação artística.<br />
Os diversos recursos utilizados por Graciliano na <strong>montagem</strong> <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s secas<br />
são notáveis, porém, nenhum é tão especial quanto a posição do narrador. Este<br />
ocupa o lugar <strong>da</strong> terceira pessoa do discurso, e este romance marca a estréia do<br />
autor nesta mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> escrita. A escolha <strong>pel</strong>o uso <strong>da</strong> terceira pessoa acabou<br />
gerando uma questão prática que influenciaria no <strong>de</strong>senrolar <strong>da</strong> trama. Como a<br />
família se manifestaria, já que não era articula<strong>da</strong>? Quem falaria por eles? Ficariam<br />
lançados à própria sorte, abandonados até mesmo <strong>pel</strong>o narrador nos seus<br />
<strong>de</strong>sencantos?<br />
Para suprir a carência lingüística <strong>da</strong> família, o autor lançou mão <strong>de</strong> uma<br />
importante característica <strong>da</strong> narração em terceira pessoa, a onisciência narrativa,<br />
além <strong>da</strong> presença do discurso indireto livre. Graciliano teria visto na escolha <strong>de</strong>ste<br />
foco narrativo um modo <strong>de</strong> se sol<strong>da</strong>r “no mesmo fluxo o mundo interior e o mundo<br />
exterior”, sem romper a verossimilhança <strong>da</strong> construção narrativa (CÂNDIDO, 1992,<br />
p. 90).<br />
45
O personagem, cujo pensamento é expresso através <strong>de</strong>stes estilos <strong>de</strong><br />
construção, tem os mesmos reproduzidos a partir <strong>da</strong> perspectiva <strong>de</strong> si próprio,<br />
porém, a manutenção <strong>da</strong> terceira pessoa e do imperfeito “fingem” o relato impessoal<br />
do narrador. De acordo com Todorov, as pessoas envolvi<strong>da</strong>s no discurso,<br />
contribuem com diferentes valores à narrativa:<br />
Existe uma dialética <strong>de</strong> pessoali<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong> impessoali<strong>da</strong><strong>de</strong> entre o eu do<br />
narrador (implícito) e o ele <strong>da</strong> personagem (que po<strong>de</strong> ser um eu explícito),<br />
entre o discurso e a história. O eu do narrador aparece constantemente<br />
através do ele do herói, como um narrador onisciente (2003, p.62).<br />
No caso específico <strong>de</strong>sta obra, a colocação do narrador po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong><br />
uma pseudo-onisciência. O autor pô<strong>de</strong> se aproximar ou se afastar <strong>da</strong> família,<br />
partilhar com eles o foco narrativo, ora mostrando secamente a triste reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />
mesma, ora se soli<strong>da</strong>rizando com o seu <strong>de</strong>stino, porém, sem <strong>de</strong>ixar a crítica social à<br />
<strong>de</strong>riva. Assumindo esta posição <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> narrativa, Graciliano uniu dois aspectos <strong>da</strong><br />
obra: as <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong>s sociais e o mundo psicológico dos personagens.<br />
Neste caso, o narrador sabe mais que seu personagem, não se preocupando<br />
em nos explicar como adquiriu este conhecimento: “vê através dos muros <strong>da</strong> casa<br />
tanto quanto através do crânio <strong>de</strong> seu herói. Seus personagens não têm segredos<br />
para ele” (TODOROV, 2003, p. 120).<br />
O discurso indireto livre é uma variante dos discursos direto e indireto, e<br />
representa também o vivido ou representado, além <strong>de</strong> ser louvável inovação<br />
estilística. Nele o escritor aproxima o narrador e o personagem, dispensa o verbo<br />
discendi e o conectivo subordinativo e constrói períodos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. Este<br />
discurso é consi<strong>de</strong>rado um recurso livre para preservar, através <strong>da</strong> informação, a<br />
manifestação psíquica e o a<strong>pel</strong>o (CÂMARA JR,1978, p. 22).<br />
Percebe-se que, ao longo <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a narrativa, são empregados três tipos <strong>de</strong><br />
discurso: o direto, o indireto e o indireto livre. Porém, carregado <strong>de</strong> maestria, o texto<br />
funciona perfeitamente com as variações discursivas, monta<strong>da</strong>s com tamanho<br />
empenho, que se mesclam <strong>de</strong> maneira quase imperceptível, naturalmente.<br />
Dentre as várias passagens encontra<strong>da</strong>s, será <strong>de</strong>staca<strong>da</strong> a que se segue,<br />
como comprovação do emprego dos vários tipos <strong>de</strong> discurso:<br />
46
Um mormaço levantou-se <strong>da</strong> terra queima<strong>da</strong>. Estremeceu lembrando-se <strong>da</strong><br />
seca, o rosto moreno <strong>de</strong>sbotou, os olhos pretos arregalaram-se. Diligenciou<br />
afastar a recor<strong>da</strong>ção, temendo que ela virasse reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Rezou baixinho<br />
uma ave-maria, já tranqüila, a atenção <strong>de</strong>svia<strong>da</strong> para um buraco que havia<br />
na cerca do chiqueiro <strong>da</strong>s cabras. Esfarelou a <strong>pel</strong>e <strong>de</strong> fumo entra as palmas<br />
<strong>da</strong>s mãos grossas, encheu o cachimbo <strong>de</strong> barro, foi consertar a cerca.<br />
Voltou, circulou a casa atravessando o cercadinho do oitão, entrou na<br />
cozinha.<br />
-É capaz <strong>de</strong> Fabiano ter-se esquecido <strong>da</strong> vaca laranja (RAMOS, 2000, p.<br />
41-42).<br />
No exemplo acima, o autor inicia o parágrafo com o discurso indireto, logo em<br />
segui<strong>da</strong> insere sutilmente o indireto livre, marcado nas lembranças <strong>de</strong> sinha Vitória.<br />
Neste momento, confun<strong>de</strong>-se com o personagem, numa simbiose discursiva, on<strong>de</strong><br />
apenas uma tênue linha separa narrador e personagem. Em segui<strong>da</strong>, retorna<br />
novamente para o indireto, e finaliza com o discurso direto, através <strong>da</strong> fala <strong>da</strong><br />
mesma.<br />
Fábio Freixeiro concluiu, em O estilo indireto livre em Graciliano Ramos<br />
(1959, p.150), que a presença <strong>de</strong>ste estilo peculiar nas obras do autor possui o<br />
mérito <strong>de</strong> se manter o cunho lingüístico originário <strong>da</strong>s frases <strong>da</strong> personagem, sem<br />
que seja necessário transcrevê-las em seu nome.<br />
Outro fato marcante no trecho citado é a presença <strong>de</strong> verbos carregados <strong>de</strong><br />
expressivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, como <strong>de</strong>sbotar, estremecer e diligenciar, que <strong>pel</strong>a presença do<br />
discurso indireto livre, pu<strong>de</strong>ram transmitir to<strong>da</strong> a essência do momento.<br />
A linguagem do romance Vi<strong>da</strong>s secas, composta quase que totalmente por<br />
períodos simples, frases curtas, diretas, econômicas e <strong>pel</strong>a presença do discurso<br />
indireto, permitiu que o autor pu<strong>de</strong>sse controlar a pouca fala <strong>de</strong> seus personagens,<br />
ou até mesmo falar por eles, po<strong>de</strong>ndo assim manter seu estilo objetivo, e fazendo<br />
até com que a obra se aproxime <strong>de</strong> um monólogo, on<strong>de</strong> só existe um narrador.<br />
Para Roland Barthes (1976, p. 64), uma narrativa po<strong>de</strong>ria ser sustenta<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a<br />
linguagem articula<strong>da</strong>, oral ou escrita, <strong>pel</strong>a imagem fixa ou móvel, <strong>pel</strong>o gesto ou <strong>pel</strong>a<br />
mistura or<strong>de</strong>na<strong>da</strong> <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s estas substâncias. Graciliano soube mesclar variados<br />
olhares sobre uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, fazendo com que o resultado <strong>da</strong> obra se apresente<br />
como que um caleidoscópio <strong>liter</strong>ário, surpreen<strong>de</strong>nte e intrigante.<br />
47
3.1.3 Questão <strong>da</strong> paisagem<br />
Descrição é a representação verbal <strong>de</strong> um objeto sensível (ser, objeto,<br />
paisagem), através <strong>da</strong> indicação dos seus aspectos mais característicos, dos<br />
pormenores que o individualizam, que o distinguem. (GARCIA, 1973, p.145).<br />
Em Vi<strong>da</strong>s secas, esta <strong>de</strong>scrição do ambiente que cerca a família <strong>de</strong> errantes<br />
é composta apenas <strong>pel</strong>o necessário. As passagens on<strong>de</strong> o cenário é abor<strong>da</strong>do são<br />
bastante plausíveis, monta<strong>da</strong>s com vocabulários <strong>de</strong>notativos. Como o esperado, não<br />
existe beleza na <strong>de</strong>scrição, esta é seca, assim como o solo e a linguagem.<br />
O primeiro trecho <strong>da</strong> obra mostra a família <strong>de</strong> retirantes caminhando sob o sol<br />
intenso, à procura <strong>de</strong> uma sombra. O leitor enxerga a paisagem <strong>pel</strong>o olhar dos<br />
retirantes. É ele quem monta a imagem, e a transpõe. Como não po<strong>de</strong>m expressar o<br />
que vêem, é o narrador quem <strong>de</strong>screve a paisagem.<br />
A estética do olhar utiliza<strong>da</strong> neste primeiro trecho embarca o leitor na trama,<br />
constrói e explicita a paisagem, apresenta e emoldura a dura reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um lugar<br />
inóspito, seco, cercado <strong>pel</strong>a morte.<br />
As duas manchas ver<strong>de</strong>s que a família avistava, funcionam como que uma<br />
miragem, uma alucinação. As imagens aproximavam-se, recuavam, sumiam, num<br />
processo provocado muito provavelmente <strong>pel</strong>a fadiga e <strong>pel</strong>a fome. Era um cenário<br />
movediço (LEITÃO, 2003, p. 20).<br />
As cores predominantes na paisagem são o vermelho, o amarelo, o branco, o<br />
preto e o azul. Setenta por cento <strong>da</strong>s vezes vermelho, amarelo e negro (MIRANDA,<br />
2004, p. 45). O vermelho e amarelo são ligados ao sol, ao solo, adjetivando uma<br />
planície castiga<strong>da</strong> e um céu muito quente nos fins <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>.<br />
O branco e o preto se complementam, porque o branco representa as várias<br />
ossa<strong>da</strong>s <strong>de</strong> gado encontra<strong>da</strong>s <strong>pel</strong>o caminho e o negro os pontos voadores que<br />
buscavam a carniça <strong>de</strong>ntre essas ossa<strong>da</strong>s e animais moribundos.<br />
O ver<strong>de</strong>, que é muito pouco, quando presente, é a esperança distante dos<br />
infelizes, e o azul é a cor que no romance tem a colocação mais especial. Enquanto<br />
que numa situação normal um dia <strong>de</strong> céu azul é sinônimo <strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, o azul que<br />
coloria o céu <strong>de</strong> Fabiano era um azul terrível, que <strong>de</strong>slumbrava e endoi<strong>de</strong>cia<br />
(RAMOS, 2000, p.13), pois marcava dias que se seguiam ensolarados, sem a menor<br />
possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> chuvas, que a principio apaziguariam o sofrimento <strong>da</strong> família<br />
advindo <strong>da</strong> falta <strong>de</strong> água.<br />
48
O cenário <strong>de</strong>sencantado, envolto em vermelho e amarelo, que retoma <strong>de</strong>ntre<br />
outros aspectos labare<strong>da</strong>s <strong>de</strong> fogo, bem como a imagem do inferno, trazem na sua<br />
essência a proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> com o Nor<strong>de</strong>ste real que o autor tanto buscava. A utilização<br />
<strong>da</strong>s cores é expressiva, consciente, estilística (MIRANDA, 2004, p.46).<br />
Segundo Genette (1976, p. 55) “a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong>de</strong>scrição é transmitir uma<br />
impressão sensorial. Daí a importância <strong>de</strong> saber selecionar os <strong>de</strong>talhes, analisá-los<br />
e reagrupá-los, a fim <strong>de</strong> conseguir uma imagem expressiva”. Os <strong>de</strong>talhes do meio<br />
físico que são mostrados na obra fazem com que o leitor tenha a noção exata <strong>de</strong><br />
que o mesmo é mais um agressor <strong>da</strong> família. A seca, <strong>de</strong>terminante no ciclo que<br />
envolve o sertanejo, é o seu algoz.<br />
A natureza castiga a família, que além <strong>de</strong> sofrer com a seca, mais adiante é<br />
acua<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a chuva. A inun<strong>da</strong>ção que matava o gado e cobria os currais era vista <strong>de</strong><br />
duas formas antagônicas por Fabiano e sua mulher. Enquanto ele, feliz com a<br />
chuva, tentava contar histórias incompreensíveis para os meninos, sinha Vitória<br />
(representação <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> família) temia que a água invadisse a casa,<br />
obrigando-os a morar em um morro, como bichos, numa comparação entre animais<br />
e seres humanos, igualados na tentativa <strong>de</strong> sobreviver às agruras do clima.<br />
3.1.4 Questão dos personagens<br />
Os personagens criados por Graciliano para compor a obra Vi<strong>da</strong>s secas são<br />
a representação exata <strong>da</strong> economia do autor, em relação a tudo que não se<br />
mostrasse estritamente necessário para que a mensagem embuti<strong>da</strong> no livro pu<strong>de</strong>sse<br />
ser entendi<strong>da</strong>. Segundo Cândido, o personagem vive o enredo e as idéias, e os<br />
torna vivos:<br />
Ele representa a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são afetiva e intelectual do leitor,<br />
<strong>pel</strong>os mecanismos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação, projeção, transferência. E é ain<strong>da</strong> o<br />
que há <strong>de</strong> mais vivo no romance. A leitura <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> aceitação <strong>da</strong><br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> personagem por parte do leitor. (2005, p. 65).<br />
Ca<strong>da</strong> personagem <strong>da</strong> obra ganhou para si um capítulo, que indiretamente não<br />
servia para homenageá-los em separado, mas para mostrar que apesar <strong>de</strong> viverem<br />
juntos, <strong>de</strong> serem uma família, os mesmos viviam encarcerados <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seu mundo<br />
particular. Eram solitários.<br />
49
O falar, ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> para qualquer diálogo, não existia entre o grupo. Não<br />
por falta <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong>, mas sim <strong>pel</strong>a carência lingüística propriamente dita. A língua<br />
po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> <strong>pel</strong>o concurso <strong>de</strong> dois processos fun<strong>da</strong>mentais: a articulação (ou<br />
segmentação) que produz uni<strong>da</strong><strong>de</strong>, e a integração, que recolhe estas uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s em<br />
outras <strong>de</strong> nível superior (sentido) (BARTHES, 1972, pg. 54).<br />
Internamente, os personagens tinham vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar entre si, <strong>de</strong> se impor,<br />
ou até mesmo se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r <strong>da</strong>s injustiças por meio <strong>da</strong>s palavras. Externamente, no<br />
entanto, as tentativas <strong>de</strong> comunicação <strong>da</strong> família eram frustra<strong>da</strong>s.<br />
Serão a seguir apresentados os aspectos mais significativos dos principais<br />
personagens <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s secas. Os personagens do sol<strong>da</strong>do amarelo e do fazen<strong>de</strong>iro,<br />
relacionados diretamente ao personagem Fabiano, por não apresentam<br />
características físicas, tem, no âmbito <strong>de</strong>ste trabalho, a sua análise restrita em 2<br />
“Oprimidos e opressores”, no qual é enfocado o prisma marxista. A cachorra Baleia,<br />
por sua vez, será objeto <strong>de</strong> análise mais específica no capítulo 3 “<strong>Pa<strong>pel</strong></strong> e <strong>pel</strong>ícula”.<br />
• Fabiano<br />
O chefe <strong>da</strong> família Fabiano (já abor<strong>da</strong>do sob a ótica marxista neste trabalho) é<br />
retratado como um homem simplório, servil e matuto. De suas características físicas,<br />
sabe-se, que o mesmo tinha olhos azuis, cabelos e barba ruivos, corpo magro e<br />
franzino, mãos grossas e cabelu<strong>da</strong>s.<br />
A criação do sertanejo foi inspira<strong>da</strong> no avô <strong>de</strong> Graciliano, o criador <strong>de</strong> gado<br />
Pedro Ferro: “Meu avô materno [...] não <strong>de</strong>sperdiçava tempo em caatinga nem se<br />
fadigava em miuçalhas [...]. Homem <strong>de</strong> imenso vigor, resistente à seca, ora na<br />
prosperi<strong>da</strong><strong>de</strong>, ora no <strong>de</strong>smantelo” (RAMOS apud FELINTO, 1992, p. 7).<br />
Consi<strong>de</strong>rava-se um amarelo. Para ele, brancos eram os homens. Ele era um<br />
bicho. Orgulhava-se <strong>de</strong> ser um bicho, pois esta característica indicava sua<br />
capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> resistir às dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s do meio. Era entendido apenas por seu<br />
cavalo, já que montado nele ambos se confundiam. Na obra intitula<strong>da</strong> Análise<br />
estrutural dos romances brasileiros, Afonso Romano <strong>de</strong> Sant’ana <strong>de</strong>finiu <strong>de</strong>sta<br />
forma o personagem Fabiano:<br />
Esse sertanejo é o que se po<strong>de</strong>ria chamar <strong>de</strong> personagem lexema. Não se<br />
flexiona. Não há qualquer <strong>de</strong>rivação em seu estado primitivo nem<br />
composição com o mundo exterior. Tanto no plano ontogenético quanto<br />
50
• Sinha Vitória<br />
filogenético ele se acha miseravelmente situado. Não evolui. Não soma.<br />
Não articula (SANT’ANA, 1973, p.179).<br />
O personagem feminino representado por sinha Vitória é bastante<br />
surpreen<strong>de</strong>nte. Concebi<strong>da</strong> por um nor<strong>de</strong>stino no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 30, época on<strong>de</strong><br />
as mulheres ain<strong>da</strong> eram vistas como seres bem inferiores, essa mulher em questão<br />
era bem diferente.<br />
Nor<strong>de</strong>stina, mestiça, era ela, sem dúvi<strong>da</strong> a mais inteligente entre os<br />
componentes <strong>da</strong> família. Responsável <strong>pel</strong>as contas familiares, tinha noção <strong>de</strong> que<br />
estavam sendo enganados <strong>pel</strong>o patrão, porém, como também era incapaz <strong>de</strong> se<br />
articular verbalmente, acabava <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> <strong>pel</strong>o marido, quando afirmava<br />
estarem sendo roubados.<br />
Era tarefa <strong>de</strong>la também carregar o baú <strong>de</strong> folha na cabeça, on<strong>de</strong> estavam<br />
<strong>de</strong>positados os únicos bens <strong>da</strong> família. Foi ela quem enten<strong>de</strong>u a aproximação <strong>de</strong><br />
uma nova seca, apenas <strong>pel</strong>a observação <strong>da</strong>s arribações. Fabiano, ao contrário, não<br />
entendia a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong>s aves, e muito menos compreendia a fala <strong>de</strong> sinha Vitória<br />
que creditava a morte do gado a tal fato:<br />
[...] Aves matarem bois e cabras, que lembrança! Olhou a mulher<br />
<strong>de</strong>sconfiado, julgou que ela tivesse tresvariando. Foi sentar-se no banco do<br />
copiar, examinou o céu lindo, cheio <strong>de</strong> clari<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> mau agouro que a<br />
sombra <strong>da</strong>s arribações cortava. Um bicho <strong>de</strong> penas matar o gado!<br />
Provavelmente sinha Vitória não estava regulando (RAMOS, 2000, p.108).<br />
Além <strong>da</strong> cor amulata<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>pel</strong>e, <strong>da</strong> cara murcha, do cabelo preso num coque,<br />
<strong>da</strong> saia <strong>de</strong> ramagem e do colar <strong>de</strong> contas azuis e brancas no pescoço, conhece-se<br />
pouco <strong>da</strong> aparência <strong>da</strong> nor<strong>de</strong>stina. Para Graciliano, foi muito mais útil <strong>de</strong>screver<br />
suas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s e anseios do que suas características físicas.<br />
O autor batizou seu personagem <strong>de</strong> sinha, sem acento, ao contrário <strong>de</strong> sinhá,<br />
vocábulo mais comum, que possui um acento agudo 1 . A origem do vocábulo sinhá<br />
remete ao tempo <strong>da</strong> escravidão, já que era a forma com que os escravos tratavam<br />
as esposas <strong>de</strong> seus senhores. Com a abolição, o vocábulo acabou caindo em<br />
<strong>de</strong>suso.<br />
1 Segundo a Gramática <strong>da</strong> Língua Portuguesa, <strong>de</strong> Roberto Melo Mesquita (2001, p.120), os termos<br />
têm distinções bastante claras em Alagoas: as sinhás são as mulheres ricas, as esposas dos<br />
fazen<strong>de</strong>iros, e as sinhas são as mulheres pobres, humil<strong>de</strong>s.<br />
51
Esta <strong>de</strong>sejava pouco <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Quando tentava se arrumar, colocar sapatos,<br />
era ridiculariza<strong>da</strong> <strong>pel</strong>o marido, que a comparava com o papagaio, por causa do seu<br />
an<strong>da</strong>r cambaleante, causado <strong>pel</strong>a falta <strong>de</strong> costume com os calçados.<br />
Fabiano achava que podiam cortar <strong>de</strong>spesas, como os gastos <strong>de</strong> roupa e<br />
querosene. Ela sabia que isto era impossível, já que praticamente não gastavam<br />
com estas coisas, visto que não tinham dinheiro. Ele achava que se ela não<br />
comprasse os sapatos conseguiriam economizar. Ela tinha certeza que se ele não<br />
gastasse o pouco que tinham com bebi<strong>da</strong> e jogo, o dinheiro não acabaria tão rápido.<br />
Ela consciente e resigna<strong>da</strong>, ele iludido e conformado.<br />
O gran<strong>de</strong> sonho <strong>de</strong> sinha Vitória era o <strong>de</strong> ter uma cama <strong>de</strong> couro, igual a <strong>de</strong><br />
Tomás <strong>da</strong> bolan<strong>de</strong>ira. Ela acreditava que seriam pessoas iguais a outras tantas, que<br />
dormiam em camas <strong>de</strong> lastro. Queria po<strong>de</strong>r comprar uma cama. A idéia <strong>de</strong>ste móvel,<br />
que numa primeira leitura po<strong>de</strong> ser encara<strong>da</strong> como um simples <strong>de</strong>sejo por algo<br />
material, po<strong>de</strong> apresentar novos contornos, levando-se em consi<strong>de</strong>ração o que<br />
po<strong>de</strong>ria representar o objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> sinha Vitória.<br />
Os pertences <strong>da</strong> família, conforme já foi <strong>de</strong>scrito, cabiam num único baú, que<br />
a mulher carregava nas longas fugas <strong>da</strong> seca. Porém, se tivessem uma cama, não<br />
po<strong>de</strong>riam levá-la, arrastá-la com eles, conforme estavam acostumados com o baú. A<br />
aquisição <strong>da</strong> cama, para ela, obrigaria-os a permanecer no mesmo lugar,<br />
abandonando o nomadismo que eram obrigados a se submeter. A cama <strong>de</strong> couro,<br />
portanto, representava uma segurança, e não um luxo. E mais que isso, a cama<br />
remetia indiretamente ao final <strong>da</strong>s agruras com a seca.<br />
Outra ligação lógica que se po<strong>de</strong> traçar a partir <strong>da</strong> cama é com relação à<br />
casa. Se tivessem uma cama, logicamente <strong>de</strong>veriam ter uma casa. A casa do patrão<br />
passara a ser o lar <strong>da</strong> família, um lugar seguro, que os abrigava, ao contrário <strong>da</strong><br />
caatinga, que os re<strong>pel</strong>ia. Ela queria manter-se segura, dona-<strong>de</strong>-casa, no mais<br />
primitivo significado, e a cama garantia-lhe a casa, e logicamente, a proteção.<br />
A fenomenologia po<strong>de</strong> explicar a fundo a relação psicológica entre a<br />
personagem e a casa, através <strong>da</strong> investigação e análise <strong>da</strong> imagem poética. “Esse<br />
ramo científico estu<strong>da</strong> o fenômeno <strong>da</strong> imagem poética no momento em que ela<br />
emerge na consciência como um produto direto do coração, <strong>da</strong> alma, do ser, do<br />
homem tomado na sua atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>” (BACHELARD, 1988, p. 142).<br />
Segundo a Poética do espaço <strong>de</strong> Bachelard, a casa integra lembrança e<br />
sonho, além <strong>de</strong> representar um refúgio, o resguardo, a intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> que todo homem<br />
52
sonha e precisa. A casa seria, portanto, um abrigo, uma proteção só compara<strong>da</strong> ao<br />
útero materno. A dialética interior/exterior que o autor propôs em sua obra, levando<br />
em consi<strong>de</strong>ração a leitura <strong>da</strong>s imagens poéticas, em função <strong>de</strong> um conhecimento <strong>de</strong><br />
mundo do indivíduo, representa uma forma eficaz <strong>de</strong> leitura dos valores dos espaços<br />
que o cercam.<br />
A casa <strong>de</strong> sinha Vitória seria, <strong>de</strong>ssa forma, uma celebração <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong><strong>de</strong>, do<br />
reconforto, um signo <strong>de</strong> acalento. Seguindo este mesmo raciocínio, baseado na<br />
poética <strong>da</strong> casa como ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong>, a mesma seria a mola mestra. Ligados<br />
diretamente a ela, estariam os valores que a compõem. Neste caso específico, a<br />
cama <strong>de</strong> couro. A casa funcionaria, portanto, como um ninho no mundo; um ninho<br />
que é o centro <strong>de</strong> um mundo.<br />
Em tempo: um fato surpreen<strong>de</strong>nte em torno <strong>de</strong> sinha Vitória, Tomás <strong>da</strong><br />
bolan<strong>de</strong>ira e a cama foi revelado <strong>pel</strong>o filho do próprio escritor, Ricardo Ramos 2 , em<br />
uma obra biográfica sobre o pai:<br />
• Meninos<br />
[...] não fica tão fácil, <strong>de</strong> um prisma histórico, localizar a mulata sinha Vitória<br />
e o alourado Fabiano em plena ascensão do fascismo, com o mito <strong>da</strong><br />
superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> racial ariana, ela cafusa e inteligente a dirigir o marido branco<br />
e bruto. Mas que isso, o que poucos percebem, capaz <strong>de</strong> enganá-lo.<br />
(Como é que ia saber <strong>da</strong> cama <strong>de</strong> couro <strong>de</strong> seu Tomás <strong>da</strong> bolan<strong>de</strong>ira?) [...]<br />
Confesso: se não tivesse ouvido do próprio Graciliano, dificilmente chegaria<br />
a tal aproximação (1992, p.40).<br />
As crianças <strong>da</strong> família <strong>de</strong> retirantes são o retrato do que é ser uma criança<br />
assola<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a seca e abandona<strong>da</strong> <strong>pel</strong>o Estado. Por serem tantas estas crianças,<br />
que nascem e morrem aos montantes, o autor nem sequer as batizou, lembrando<br />
que os filhos <strong>da</strong> seca não tem direito a na<strong>da</strong>, nem mesmo i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em um<br />
trabalho intitulado A personagem do romance, Antônio Cândido <strong>de</strong>clarou que:<br />
A personagem <strong>de</strong> um romance constitui uma espécie <strong>de</strong> paradoxo, pois é<br />
uma ficção que, no entanto, ao mesmo tempo, existe. Há uma relação entre<br />
o ser vivo e o ser fictício que se po<strong>de</strong> exemplificar com a categoria<br />
“personagem”. (2005, p.60).<br />
2 Ricardo <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros Ramos, filho mais velho <strong>de</strong> Graciliano e Heloísa, morreu em 20 <strong>de</strong> março <strong>de</strong><br />
1992. Mesmo dia e mês que seu pai morrera, trinta e nove anos antes, e <strong>da</strong> mesma causa: câncer.<br />
53
Os meninos <strong>de</strong> Graciliano permanecem ain<strong>da</strong> hoje sem nome, numa<br />
“verossimilhança que não se po<strong>de</strong> evitar”, <strong>de</strong> acordo, por exemplo, com um artigo<br />
recentemente publicado no Diário <strong>de</strong> Alagoas (2005). Nele, lê-se que <strong>da</strong>s vinte e<br />
sete milhões <strong>de</strong> pessoas que vivem no semi-árido brasileiro, onze milhões são<br />
crianças, com elevado risco <strong>de</strong> mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> entre zero e <strong>de</strong>zessete anos.<br />
Ain<strong>da</strong> segundo a publicação, que coletou os <strong>da</strong>dos <strong>de</strong> um relatório do Fundo<br />
<strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s para a Infância (Unicef), a mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil é acima <strong>da</strong> média<br />
nesta região, que abrange municípios do interior <strong>de</strong> nove estados do Nor<strong>de</strong>ste, norte<br />
<strong>de</strong> Minas Gerais e do Espírito Santo. Estas áreas são marca<strong>da</strong>s por chuvas<br />
irregulares e reservas insuficientes <strong>de</strong> água. Com efeito, <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> 1.444<br />
municípios examinados, em 95% <strong>de</strong>les a taxa <strong>de</strong> mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> é bem superior a<br />
média nacional, <strong>de</strong> 36,1 por mil habitantes. A <strong>de</strong>snutrição, por sua vez, atinge 10%<br />
<strong>da</strong>s crianças <strong>da</strong>quela região, que estão na faixa etária <strong>de</strong> dois anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
A morte e a <strong>de</strong>snutrição são, portanto, os maiores inimigos <strong>de</strong>stes jovens, e a<br />
gran<strong>de</strong> ameaça a seus futuros e o <strong>da</strong> região. A ren<strong>da</strong> <strong>de</strong>stas famílias, em 75% dos<br />
casos, não ultrapassa meio salário mínimo, e em conseqüência disto, uma a ca<strong>da</strong><br />
seis crianças <strong>de</strong> 10 a 15 anos trabalha. Cerca <strong>da</strong>s trezentos e cinqüenta mil entre 10<br />
e 14 anos estão fora <strong>da</strong> escola. Para completar o quadro, acrescenta-se que, do<br />
total <strong>de</strong> não-alfabetizados entre 12 e 17 anos no Brasil, 43% estão no Semi-Árido.<br />
Estes <strong>da</strong>dos acima expostos mostram porque os meninos <strong>de</strong> Graciliano não<br />
tinham nome. Provavelmente porque viveriam tão pouco, que acabariam não<br />
precisando <strong>de</strong>les. Eram, e são ain<strong>da</strong> hoje, mais duas crianças famintas, no meio <strong>de</strong><br />
uma multidão <strong>de</strong>las.<br />
Os meninos <strong>de</strong> Fabiano e sinha Vitória, assim como os pais, mal<br />
concatenavam suas idéias, e muito menos a linguagem, fato que já aponta que os<br />
mesmos também sofreriam injustiças sociais no futuro.<br />
O menino mais velho aparece em <strong>de</strong>staque em dois momentos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />
impacto na narrativa. Logo no início <strong>da</strong> mesma, a criança cai <strong>de</strong> cansaço, por estar<br />
an<strong>da</strong>ndo com os pais por horas segui<strong>da</strong>s, embaixo <strong>de</strong> um sol escal<strong>da</strong>nte. Nessa<br />
passagem, a morte ron<strong>da</strong> o menino por duas vezes. A primeira, motiva<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a<br />
fraqueza <strong>da</strong> <strong>de</strong>snutrição que o assolava. A segun<strong>da</strong>, encarna<strong>da</strong> na ira <strong>de</strong> Fabiano, o<br />
qual via no menino extenuado mais uma carga que atrapalharia a viagem <strong>da</strong> família,<br />
pensa em matá-lo ou até mesmo abandoná-lo ali, ato que fatalmente culminaria com<br />
a morte do mesmo.<br />
54
O pai o<strong>de</strong>ia momentaneamente o menino, mas seu coração, apesar <strong>de</strong><br />
grosso, era movido <strong>pel</strong>o amor paterno. O sertanejo jamais po<strong>de</strong>ria abandonar seu<br />
filho. O recolhe nos braços, o carrega, protege seu corpo esquálido, <strong>de</strong>sfalecido <strong>pel</strong>a<br />
fome.<br />
Outro momento <strong>da</strong> obra que envolve diretamente o menino mais velho diz<br />
respeito à inserção do caráter religioso na mesma. A criança quer saber dos pais o<br />
significado <strong>da</strong> palavra “inferno”, que ouviu saindo <strong>da</strong> boca <strong>de</strong> sinha Terta, numa<br />
seção <strong>de</strong> benzedura. Como os pais não conseguem lhe explicar o sentido do<br />
vocábulo, ralham com ele, motivados por sua própria ignorância. O menino, triste por<br />
ter sido re<strong>pel</strong>ido, confuso <strong>pel</strong>as poucas palavras que ouviu <strong>da</strong> mãe na explicação <strong>de</strong><br />
sua dúvi<strong>da</strong>, e principalmente ressentido <strong>pel</strong>a má atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>la, se fecha em seu<br />
mundo, tendo como única companhia a cachorra Baleia.<br />
O significado <strong>de</strong> inferno é entendido <strong>de</strong> maneiras bastante diferentes. Para o<br />
menino, a princípio o inferno não po<strong>de</strong>ria ser um lugar tão ruim quanto lhe explicou<br />
sua mãe, já que se tratava <strong>de</strong> uma palavra tão bonita. Após muito refletir, concluiu<br />
sozinho que o inferno era o que tinham passado quando eram nôma<strong>de</strong>s, sem ter o<br />
que comer. A morte evi<strong>de</strong>nte era o inferno para o menino.<br />
Para a mãe, o simples mencionar <strong>da</strong> palavra já apavorava, apesar <strong>de</strong> chamar<br />
<strong>de</strong> capeta o filho mais novo. Viviam imersos no mítico, crendo em Deus e nas<br />
benzas, se apegando a qualquer crença que lhes trouxesse algum conforto. A<br />
<strong>de</strong>voção <strong>de</strong> Fabiano o levava a igreja uma vez por ano. Sinha Vitória tinha uma<br />
imagem <strong>de</strong> santo em casa. Fabiano amarrou em Baleia um rosário <strong>de</strong> sabugos <strong>de</strong><br />
milho queimados para curar-lhe a hidrofobia. Sinha Vitória acreditava que a<br />
reza<strong>de</strong>ira curaria o espinhaço <strong>de</strong> Fabiano.<br />
O menino mais novo, só <strong>de</strong>sejava ser igual ao pai. Para ele, Fabiano era um<br />
vaqueiro <strong>de</strong>stemido, e queria ser como ele, vestir seu gibão, assumir seu lugar,<br />
fumando cigarros <strong>de</strong> palha e dormindo numa cama <strong>de</strong> varas. Ele seria o homem<br />
montado no cavalo bravo, trajado com guar<strong>da</strong>-peito e chapéu <strong>de</strong> couro. Suas<br />
esporas tilintantes causariam espanto e a admiração em todos, principalmente no<br />
menino mais velho, e na cachorra Baleia. Ain<strong>da</strong> era um menino como qualquer<br />
outro, com sonhos e expectativas, que enxergam na figura paterna um arquétipo do<br />
gran<strong>de</strong> herói <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>.<br />
55
Os pais eram a representação dos seus antepassados. As crianças eram a<br />
repetição futura dos pais, sem possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nças, sem chance <strong>de</strong> melhoria,<br />
envolvidos no ciclo vicioso <strong>da</strong> <strong>de</strong>sgraça.<br />
Além do exposto acima, mais na<strong>da</strong> se sabe dos meninos. Nem mesmo a<br />
i<strong>da</strong><strong>de</strong> dos mesmos é relata<strong>da</strong>. Ao leitor cabe imaginar duas crianças pequenas,<br />
franzinas, mãozinhas finas e cara suja <strong>de</strong> lama. O autor, no entanto, fez um pequeno<br />
afago na triste reali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos meninos: somente as construções frasais relaciona<strong>da</strong>s<br />
a eles e à Baleia trazem diminutivos, numa possível <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> afeto.<br />
A falta <strong>de</strong> comunicação entre os componentes <strong>da</strong> família os remete à<br />
condição <strong>de</strong> animais, incapazes <strong>de</strong> se manifestar verbalmente. Fabiano e os seus<br />
são reduzidos a criaturas, num processo <strong>de</strong>nominado zoomorfização, que teve início<br />
na <strong>liter</strong>atura brasileira <strong>de</strong>ntro do movimento naturalista, influenciado diretamente<br />
<strong>pel</strong>as teorias <strong>da</strong>rwinistas do século XX.<br />
A família, composta por seres analfabetos, ignorantes, não <strong>de</strong>monstra sinais<br />
<strong>de</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>. A opressão <strong>da</strong> natureza, alia<strong>da</strong> ao grave problema social que os<br />
cercava, tirou <strong>de</strong>les qualquer sinal que os aproximasse <strong>de</strong> homens. Eram bichos,<br />
capazes <strong>de</strong> sobreviver as agruras diárias. Se fossem homens, certamente a seca os<br />
venceria, conforme o fez com Tomás <strong>da</strong> bolan<strong>de</strong>ira. A zoomorfização <strong>da</strong> família fez-<br />
se necessária, portanto vital, na relação simbiótica que eles <strong>de</strong>senvolviam com o<br />
meio.<br />
A análise estrutural <strong>da</strong> narrativa, executa<strong>da</strong> por Afonso Romano <strong>de</strong> Sant’ana<br />
(1973, p.178), afirmou que o romance apresenta mais aspecto <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia do que<br />
<strong>de</strong> análise, <strong>de</strong>vido à colocação dos sujeitos <strong>da</strong> narrativa num grau zero <strong>de</strong> valores,<br />
Vi<strong>da</strong>s secas é, portanto, a obra <strong>da</strong> linguagem sobre a não-linguagem (dialética<br />
essencial <strong>da</strong> obra), on<strong>de</strong> o autor é o inverso simétrico <strong>de</strong> seus personagens. Sendo<br />
uma obra sobre a miséria <strong>da</strong> não-linguagem, a mesma edifica-se como obra <strong>de</strong><br />
linguagem totalizante que abrange dialeticamente seus contrários. Com efeito, só a<br />
linguagem conscientemente articula<strong>da</strong> po<strong>de</strong> refletir a imagem <strong>da</strong> não-linguagem, e<br />
neste caso o fracasso do personagem é inversamente proporcional ao êxito <strong>de</strong> seu<br />
autor.<br />
Ao autor Graciliano coube a tarefa <strong>de</strong> mostrar pessoas fragmenta<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ntro para fora, estados <strong>de</strong> alma, reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s verossímeis, embora abafa<strong>da</strong>s <strong>pel</strong>a<br />
negação do lógico.<br />
56
Ao leitor coube a catarse, motiva<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a imersão nas hostis condições<br />
humanas que vivem os retirantes, e na lembrança eterna dos mesmos, que lhe fará<br />
companhia, martelando, ruminando o porquê <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> ser tão dura e o mundo<br />
tão indiferente.<br />
3.2 CINEMA E IMAGEM<br />
A possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> dramatizar fatos por meio <strong>de</strong> encenações sempre causou<br />
nos homens curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong>slumbre. Aristóteles já refletia sobre o pathos produzido<br />
no espectador <strong>da</strong>s tragédias gregas, que era embalado num clima <strong>de</strong> suspense até<br />
o <strong>de</strong>sfecho <strong>da</strong> trama, momento no qual a catarse levava o público ao êxtase.<br />
Muitos séculos <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>scobertas científicas liga<strong>da</strong>s ao movimento <strong>da</strong>s<br />
imagens possibilitaram a sua captação e projeção, causando no espectador<br />
emoções inéditas e abrindo caminho para o advento cinematográfico que chegaria<br />
logo em segui<strong>da</strong>. Esta inovação somente foi possível por causa <strong>da</strong>s persistentes<br />
pesquisas inaugura<strong>da</strong>s por Newton e seu disco <strong>de</strong> cartão, <strong>de</strong>scoberta fun<strong>da</strong>mental<br />
para a captação <strong>de</strong> imagens.<br />
Deve-se, porém, aos irmãos Auguste Marie e Louis Jean Lumière e seu<br />
aparelho <strong>de</strong> projeção, o cinematógrafo, a primeira sessão <strong>de</strong> cinema, ocorri<strong>da</strong> no<br />
final do século XVIII. Esta invenção comoveu e assombrou um grupo seleto <strong>de</strong><br />
espectadores, formado por pouco mais <strong>de</strong> trinta pessoas, e alçou os irmãos ao título<br />
<strong>de</strong> pais do cinema.<br />
O cinematógrafo consistia num aperfeiçoamento do cinetoscópio criado por<br />
Thomas Edison, e permitia o armazenamento prévio <strong>de</strong> uma seqüência <strong>de</strong><br />
fotogramas, que durante certo tempo se sucediam diante <strong>de</strong> uma lente fotográfica e<br />
<strong>de</strong>pois eram reproduzidos numa tela.<br />
Com o nascimento do cinematógrafo, surgiu a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se trabalhar<br />
com as imagens capta<strong>da</strong>s. Na Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> Clássica, a questão <strong>da</strong> imagem já<br />
suscitava reflexões por parte <strong>de</strong> Platão (2006, p.245): “Chamo imagens em primeiro<br />
lugar às sombras, em segui<strong>da</strong>, aos reflexos que vemos nas águas ou à superfície<br />
dos corpos opacos, polidos e brilhantes e to<strong>da</strong>s as representações <strong>de</strong>ste gênero”. A<br />
imagem estaria, portanto, envolvi<strong>da</strong> diretamente no processo <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> uma<br />
57
mímesis <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ela po<strong>de</strong>ria ser encara<strong>da</strong>, seguindo esta perspectiva, como<br />
um segundo objeto, baseado numa imagem inicial que o mesmo representasse.<br />
No caminho aberto <strong>pel</strong>os irmãos Lumière, surgiu George Meliès, que passou<br />
a fazer filmes com efeitos que incluíam a interrupção temporária <strong>da</strong> câmera, com o<br />
propósito <strong>de</strong> criar ilusão <strong>de</strong> movimento, e em segui<strong>da</strong> passou a criar cenários para<br />
seus filmes que transportavam para a tela sensação <strong>de</strong> profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>, além <strong>de</strong><br />
trabalhar com cortes nas cenas que refletiam espaços temporais. A partir <strong>da</strong>í o<br />
cinema passou a proporcionar ao telespectador pequenos fragmentos verossímeis,<br />
segundo Jean-Clau<strong>de</strong> Bernar<strong>de</strong>t:<br />
O cinema é parecido com um sonho: o que fazemos num sonho não é real,<br />
mas só sabemos <strong>de</strong>pois, quando acor<strong>da</strong>mos. Enquanto dura o sonho,<br />
pensamos que é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Essa ilusão <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, que se chama<br />
impressão <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, foi provavelmente a base do gran<strong>de</strong> sucesso do<br />
cinema (1991, p.12).<br />
No transcorrer <strong>da</strong> história, outros tantos cientistas foram se <strong>de</strong>dicando ao<br />
aprimoramento do cinema, sempre em busca <strong>da</strong> emoção do espectador. Ain<strong>da</strong> nos<br />
anos 10 do século XX, o russo Kulechov fez um filme no qual eram mostrados seis<br />
planos on<strong>de</strong> eram mostra<strong>da</strong>s cenas diferentes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> uma criança brincando até um<br />
caixão. O interessante era que o rosto <strong>de</strong> um homem aparecia entre as cenas.<br />
No final <strong>da</strong> projeção, os telespectadores se mostraram bastante impressionados com<br />
a atuação do homem que aparecia entre as cenas, já que este conseguiu<br />
transpassar as suas emoções para a tela. Contudo, as três imagens do homem que<br />
apareciam entre as seis imagens eram as mesmas. A emoção com as cenas não era<br />
do homem, do ator, mas sim <strong>da</strong> platéia influencia<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a <strong>montagem</strong> feita com as<br />
figuras. De acordo com Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Abreu <strong>de</strong> Oliveira, o cinema se constitui<br />
em uma nova arte, na medi<strong>da</strong> em que dispõe <strong>de</strong> uma nova maneira <strong>de</strong> expressar o<br />
visto:<br />
A câmara conduz o olhar do espectador que já não se mantém à distancia<br />
mas participa dos acontecimentos. Embora sentado na platéia, <strong>pel</strong>a mágica<br />
<strong>da</strong> câmara, ele se insere no visto, não permanece à margem como um<br />
curioso qualquer <strong>de</strong>sligado dos fatos, mas se i<strong>de</strong>ntifica às personagens,<br />
enxergando a partir <strong>de</strong> seus posicionamentos (2004, p. 26).<br />
A interpretação <strong>da</strong>quelas cenas, conforme já relatado, foi o resultado <strong>da</strong><br />
leitura do espectador, influenciado <strong>pel</strong>a colagem <strong>de</strong> duas imagens. A esta técnica<br />
58
<strong>de</strong> se trabalhar as imagens buscando uma relação significativa entre elas chamou-se<br />
<strong>montagem</strong>, e seu gran<strong>de</strong> mestre foi Sergei Eisenstein. Nascido na Letônia em 1898,<br />
este foi um dos mais inovadores homens <strong>da</strong> história do cinema, até hoje consi<strong>de</strong>rado<br />
nome <strong>de</strong> referência para cineastas como Jean Luc Go<strong>da</strong>rd, Brian <strong>de</strong> Palma e Oliver<br />
Stone, <strong>de</strong>ntre muitos outros. Para Bernar<strong>de</strong>t, a idéia <strong>de</strong> junção <strong>de</strong> imagens<br />
apresenta<strong>da</strong> na teoria <strong>de</strong> Eisenstein foi vital:<br />
[...] <strong>da</strong> soma <strong>de</strong> duas imagens, sempre haveria <strong>de</strong> nascer uma terceira, não<br />
reproduzindo o real, o produzindo. A <strong>montagem</strong> seria, portanto, iguala<strong>da</strong> a<br />
estrutura do pensamento, e ao cinema não caberia mais somente o contar<br />
estórias, mas o produzir idéias (1991, p.49).<br />
Segundo as obras “A forma do filme” e “O sentido do filme”, ambas<br />
representantes do legado <strong>de</strong> Eisenstein, existiriam, segundo o próprio, cinco tipos <strong>de</strong><br />
<strong>montagem</strong>:<br />
A <strong>montagem</strong> métrica, que se refere à duração <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um dos planos.<br />
In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> seu conteúdo, encurtar os planos diminui o tempo que o<br />
público tem para absorver a informação <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les. Este procedimento<br />
aumenta a tensão <strong>da</strong> cena. Uma série <strong>de</strong> planos próximos cria uma seqüência<br />
mais intensa;<br />
A <strong>montagem</strong> rítmica, que se relaciona à continui<strong>da</strong><strong>de</strong> visual entre os planos. A<br />
continui<strong>da</strong><strong>de</strong> basea<strong>da</strong> na ação e nas entra<strong>da</strong>s e saí<strong>da</strong>s do quadro são<br />
exemplos <strong>da</strong> <strong>montagem</strong> rítmica. Este tipo <strong>de</strong> procedimento tem consi<strong>de</strong>rável<br />
potencial para <strong>de</strong>monstrar conflitos porque a oposição <strong>de</strong> forças po<strong>de</strong> ser<br />
representa<strong>da</strong> a partir <strong>de</strong> diferentes direções dos elementos no quadro, assim<br />
como por diferentes enquadramentos <strong>de</strong> uma mesma imagem;<br />
A <strong>montagem</strong> tonal, on<strong>de</strong> se busca exaltar uma característica emocional <strong>da</strong><br />
cena, o que po<strong>de</strong> mu<strong>da</strong>r durante a seqüência. O tom ou o modo é usado<br />
como guia para interpretar a <strong>montagem</strong> tonal;<br />
59
A <strong>montagem</strong> atonal, que é uma conjugação <strong>da</strong>s montagens métrica, rítmica e<br />
tonal, manipulando o tempo do plano, idéias e emoções a fim <strong>de</strong> conquistar o<br />
efeito <strong>de</strong>sejado na platéia;<br />
A <strong>montagem</strong> intelectual, que é a intenção <strong>de</strong> inserir idéias em uma seqüência<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> carga emocional.<br />
É importante ressaltar que, para o presente trabalho, o legado sobre<br />
<strong>montagem</strong> <strong>de</strong>ixado por Eisenstein é <strong>de</strong> suma importância, não se levando em<br />
consi<strong>de</strong>ração, portanto, uma possível obsessão do mesmo por uma <strong>montagem</strong>-rei<br />
(METZ, 1972, p.78).<br />
3.2.1 Brasil e Cinema Novo<br />
A <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> 9 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1896 marca a chega<strong>da</strong> do cinema no Brasil, mais<br />
precisamente no Rio <strong>de</strong> Janeiro, com várias interrupções <strong>da</strong> imagem, causa<strong>da</strong>s <strong>pel</strong>a<br />
precarie<strong>da</strong><strong>de</strong> do sistema elétrico <strong>da</strong> época, que não comportava tamanha<br />
tecnologia.<br />
A chega<strong>da</strong> do primeiro cinematógrafo permanente no Brasil é credita<strong>da</strong> aos<br />
irmãos Gaetano e Afonso Segreto, dois italianos a quem se <strong>de</strong>ve também as<br />
primeiras filmagens aqui efetua<strong>da</strong>s.<br />
O primeiro filme <strong>de</strong> longa metragem ro<strong>da</strong>do no Brasil, “Os estranguladores”,<br />
é <strong>da</strong>tado <strong>de</strong> 3 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1908 (<strong>da</strong>ta <strong>da</strong> estréia) e consiste <strong>de</strong> uma transposição<br />
cinematográfica, já que o mesmo foi baseado numa peça teatral chama<strong>da</strong> “A<br />
quadrilha <strong>da</strong> morte”.<br />
O sucesso com a transposição <strong>de</strong>u início a uma produção cinematográfica<br />
brasileira quase que totalmente basea<strong>da</strong> neste recurso. O ano <strong>de</strong> 1915 é o marco<br />
inicial <strong>de</strong>ste processo, e o gran<strong>de</strong> sucesso cinematográfico <strong>de</strong>ste período é o filme<br />
Lucíola, a<strong>da</strong>ptado do romance homônimo <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar.<br />
As produções <strong>de</strong>sta época lembravam mais cópias dos livros <strong>de</strong> origem do<br />
que transposições. Os diálogos eram repetidos no cinema, praticamente <strong>da</strong> mesma<br />
forma que apareciam nas obras <strong>liter</strong>árias.<br />
A evolução cinematográfica brasileira passou a ter como gran<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo, a<br />
partir dos anos 40, os gêneros americanos. Tentava-se somente obe<strong>de</strong>cer e copiar<br />
60
tais gêneros, transformando-se, neste sentido, a arte cinematográfica brasileira em<br />
cópia mal feita <strong>de</strong> algo longe <strong>de</strong> sua reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>spi<strong>da</strong> <strong>de</strong> qualquer i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
nacional.<br />
A partir do sonho <strong>de</strong> se fazer cinema no Brasil, surge a companhia<br />
cinematográfica Atlânti<strong>da</strong>, em 16 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1941. O primeiro gran<strong>de</strong> sucesso <strong>da</strong><br />
Atlânti<strong>da</strong>, Moleque Tião, é <strong>da</strong>tado <strong>de</strong> 1943 e foi encenado por Gran<strong>de</strong> Otelo.<br />
Infelizmente, o filme foi perdido com o passar dos anos, e não existe nenhuma cópia<br />
do mesmo.<br />
A chancha<strong>da</strong>, introduzi<strong>da</strong> por Luís Severiano Ribeiro Júnior à Atlânti<strong>da</strong> em<br />
1947, foi a marca registra<strong>da</strong> <strong>da</strong> companhia cinematográfica. Na sátira aos filmes<br />
americanos, carnavalizava-se o enredo, utilizando, na maior parte <strong>da</strong>s vezes, a<br />
figura estereotipa<strong>da</strong> do vilão, do mocinho (sempre acompanhado por um séqüito <strong>de</strong><br />
aju<strong>da</strong>ntes) e <strong>da</strong> mocinha. Gran<strong>de</strong>s nomes do cinema brasileiro como Oscarito e<br />
Anselmo Duarte surgiram na Atlânti<strong>da</strong>. Em 1962, após 66 filmes produzidos, a<br />
Atlânti<strong>da</strong> encerrou suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. O motivo principal que levou a companhia à<br />
falência foi o esgotamento <strong>da</strong> fórmula <strong>da</strong>s chancha<strong>da</strong>s, que permaneceu imutável<br />
durante os 25 anos <strong>de</strong> permanência <strong>da</strong> mesma no mercado cinematográfico<br />
brasileiro.<br />
Esse sonho <strong>de</strong> tornar o Brasil uma megalópole cinematográfica levou também<br />
um grupo <strong>de</strong> ricos empresários paulistas a fun<strong>da</strong>r, em 1949, a Vera Cruz,<br />
concorrente <strong>da</strong> Atlânti<strong>da</strong>. Os estúdios mo<strong>de</strong>rnos, que contavam com maquinaria e<br />
profissionais estrangeiros, além <strong>de</strong> um elenco <strong>de</strong> estrelas que participavam <strong>da</strong>s<br />
produções não impediram que a Vera Cruz falisse, quatro anos após sua fun<strong>da</strong>ção.<br />
A falência foi causa<strong>da</strong> principalmente <strong>pel</strong>os altos custos <strong>de</strong> produção, que não se<br />
pagavam com as bilheterias arreca<strong>da</strong>s <strong>pel</strong>os filmes.<br />
Além <strong>da</strong> Atlânti<strong>da</strong> e <strong>da</strong> Vera Cruz, um outro movimento cinematográfico ia<br />
brotando no Brasil. Inspirado nos movimentos Nouvelle Vague <strong>da</strong> França e no Neo-<br />
Realismo italiano, a base <strong>de</strong>ssas obras seria a preocupação com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> social,<br />
mostra<strong>da</strong> por meio <strong>de</strong> uma renovação tanto <strong>de</strong> linguagem, quanto <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>gem,<br />
numa tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>scolonizar a cultura brasileira (LEITE, 1984, p.34).<br />
A este movimento <strong>de</strong> resgate <strong>de</strong> valores foi <strong>da</strong>do o nome <strong>de</strong> Cinema Novo, e<br />
seu início é <strong>da</strong>tado em 1952, ano no qual ocorreram o I Congresso Paulista <strong>de</strong><br />
Cinema Brasileiro e o I Congresso Nacional do Cinema Brasileiro. Estes encontros<br />
foram o ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> para as discussões acerca <strong>da</strong> produção fílmica nacional.<br />
61
O Cinema Novo reunia jovens cineastas, principalmente do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
São Paulo e Bahia, interessados em produzir filmes <strong>de</strong> baixo custo, feitos <strong>de</strong> forma<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, on<strong>de</strong> a intenção primordial era a <strong>de</strong> retratar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira o<br />
mais claramente possível, além <strong>de</strong> fazer uma oposição <strong>de</strong>clara<strong>da</strong> à imitação que se<br />
fazia até então <strong>de</strong> padrões cinematográficos norte-americanos. Outra intenção do<br />
movimento era a <strong>de</strong> ressaltar a importância do autor e rejeitar, <strong>de</strong>ssa maneira, o<br />
predomínio do produtor e <strong>da</strong> indústria cinematográfica.<br />
O lema <strong>de</strong>ste grupo era “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”, e a<br />
partir <strong>da</strong>í uma gama <strong>de</strong> filmes nacionais engajados passou a ser produzi<strong>da</strong>,<br />
<strong>de</strong>ixando para trás muitos anos <strong>de</strong> alienação:<br />
Os filmes não pretendiam tratar em específico do camponês nor<strong>de</strong>stino ou<br />
<strong>da</strong> violência dos cangaceiros. Procuravam <strong>da</strong>r uma visão abrangente dos<br />
problemas básicos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira e, po<strong>de</strong>-se acrescentar, do<br />
Terceiro Mundo em geral. Esse esforço intencional para alcançar uma<br />
compreensão global do social sub<strong>de</strong>senvolvido era algo totalmente novo no<br />
cinema brasileiro. Intencionalmente, também, estes filmes <strong>de</strong>viam levar a<br />
um público popular informações que o conscientizassem <strong>de</strong> sua situação<br />
social. Problemas diversos (distribuição, questão <strong>da</strong> temática e <strong>da</strong><br />
linguagem, etc.) dificultaram sobremaneira o acesso o acesso dos filmes ao<br />
público (BERNADET, 1991, p.95).<br />
Os gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>staques <strong>de</strong>sta busca <strong>pel</strong>a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> sociológica no cinema<br />
brasileiro foram, <strong>de</strong>ntre outros, Glauber Rocha, Ruy Guerra e Nélson Pereira dos<br />
Santos.<br />
O ano <strong>de</strong> 1964 representou o gran<strong>de</strong> marco do Cinema Novo. Nele foram<br />
lança<strong>da</strong>s três gran<strong>de</strong>s obras, relaciona<strong>da</strong>s diretamente ao resgate cultural e social<br />
no país: Vi<strong>da</strong>s secas (Nélson Pereira dos Santos, 1964), obra a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong> do romance<br />
homônimo <strong>de</strong> Graciliano Ramos; Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha,<br />
1964) e Os fuzis (Ruy Guerra, 1964).<br />
3.2.2 Transposição cinematográfica, fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> e cultura <strong>de</strong> massa<br />
A idéia <strong>da</strong> transposição acompanha o cinema <strong>de</strong>s<strong>de</strong> primórdios. Porém, a<br />
forma como este movimento foi percebido foi se transformando <strong>de</strong> simples cópia até<br />
o que representa hoje: oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> interligação e intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
No momento em que uma obra <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser somente um hipotexto, e passa a<br />
condição <strong>de</strong> hipertexto, uma gama <strong>de</strong> modificações acontece, a fim <strong>de</strong> se preservar<br />
a essência <strong>da</strong> obra-base na releitura. A a<strong>da</strong>ptação seria, portanto, o processo on<strong>de</strong><br />
62
um cineasta ou roteirista parte <strong>de</strong> um romance único e faz <strong>de</strong>le um filme <strong>de</strong> ficção<br />
(MOUREN, 1993, p.70).<br />
O trabalho <strong>de</strong> passagem <strong>de</strong> uma obra escrita para uma obra filma<strong>da</strong> é<br />
intenso. Uma cena que num hipotexto po<strong>de</strong>rá durar várias páginas, po<strong>de</strong>ria ser<br />
transposta <strong>de</strong> maneira bem mais conti<strong>da</strong>, para que a seqüência não fique monótona<br />
e tire a atenção do espectador.<br />
O tempo do romance se compara ao espaço do cinema aliado ao processo <strong>de</strong><br />
<strong>montagem</strong>, e cabe ao cineasta fazer com que o espectador enten<strong>da</strong>, em apenas<br />
algumas cenas, que aconteceram mu<strong>da</strong>nças na narrativa, como por exemplo, uma<br />
passagem <strong>de</strong> tempo, por meio <strong>de</strong> envelhecimento <strong>de</strong> personagens, ou alteração no<br />
espaço físico.<br />
O tempo narrativo do cinema é nomeado <strong>de</strong> tempo diegético, e se liga<br />
intimamente à articulação seqüencial do filme. Aliado a ele, se encontra o trabalho<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>cupagem, que consiste na fragmentação dos planos filmados, que serão<br />
montados num trabalho posterior. O montador po<strong>de</strong>, portanto, dirigir e controlar as<br />
emoções do espectador, reorganizando a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>scrita <strong>pel</strong>os planos e fazendo<br />
com que este seja envolvido <strong>pel</strong>o filme.<br />
A <strong>de</strong>cupagem diz respeito, portanto, ao trabalho relacionado ao preparo do<br />
roteiro, enquanto que a <strong>montagem</strong> representa a organização do roteiro, on<strong>de</strong><br />
ocorrem o corte e a colagem dos fragmentos filmados. Segundo Gennete em um<br />
trabalho intitulado As fronteiras <strong>da</strong> narrativa:<br />
O tempo no cinema apresenta três aspectos, <strong>de</strong>ntre eles, a or<strong>de</strong>m, que<br />
marcaria ligações entre a cronologia dos fatos na diegese e sua or<strong>de</strong>m<br />
posicional na narrativa. As anacronias possíveis receberiam os nomes <strong>de</strong><br />
prolepse (antecipação <strong>de</strong> fatos) e analepse (retoma<strong>da</strong> <strong>de</strong> fato passado),<br />
além <strong>da</strong> elipse e <strong>da</strong> paralipse, que correspon<strong>de</strong>riam, respectivamente, a<br />
um avanço no tempo, e à omissão dos elementos <strong>da</strong> narrativa, porém, sem<br />
a alteração do tempo (1976, p.256).<br />
A comparação entre as diferentes abor<strong>da</strong>gens imagéticas no hipertexto e no<br />
hipotexto faz com que se perceba que as mesmas apresentam seus próprios<br />
códigos interacionais em relação ao <strong>de</strong>stinatário <strong>da</strong> obra, estabelecendo, <strong>de</strong>sta<br />
maneira, um feixe próprio <strong>de</strong> relações. A <strong>montagem</strong> <strong>liter</strong>ária se faz com palavras, e a<br />
cinematográfica com imagens, nasci<strong>da</strong>s <strong>da</strong>quelas.<br />
63
A obra escrita, quando filma<strong>da</strong>, admite uma série <strong>de</strong> inserções, <strong>de</strong> jogos <strong>de</strong><br />
câmera e luz, que a tornam mais objetiva. Numa única cena filma<strong>da</strong>, o olho humano<br />
é capaz <strong>de</strong> perceber várias mensagens embuti<strong>da</strong>s, só precisando <strong>de</strong> uma fração <strong>de</strong><br />
segundos para tal. A câmera funciona, portanto, como o olho do espectador,<br />
apresentando a ele uma imagem já pronta, imediata, ao contrário <strong>da</strong> imagem<br />
<strong>liter</strong>ária, que se constrói aos poucos, por meio do avanço <strong>da</strong> leitura. Seria, portanto,<br />
<strong>de</strong> acordo com Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Abreu <strong>de</strong> Oliveira, o cinema que aproximaria o<br />
homem do sonho <strong>da</strong> imagem total, na busca <strong>da</strong> recuperação <strong>da</strong> forma integral, na<br />
busca narcisística <strong>de</strong> sua imagem:<br />
Aju<strong>da</strong>do <strong>pel</strong>a máquina, perscruta o universo, estica olhos curiosos,<br />
<strong>de</strong>compõe e recompõe o mundo. O olho <strong>da</strong> televisão e o olho do cinema<br />
tornaram-se extensões dos órgãos visuais. De olhos armados, ele recupera<br />
a figura humana estilhaça<strong>da</strong> <strong>pel</strong>os caminhos e <strong>de</strong>scaminhos <strong>de</strong> seu<br />
percurso (2004, p. 24).<br />
A reflexão sobre a transposição <strong>liter</strong>ária leva, fatalmente, a uma discussão<br />
mais prática do que filosófica: a questão <strong>da</strong> fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>. Esta importante discussão<br />
será posteriormente retoma<strong>da</strong>, em um momento <strong>de</strong>ste trabalho, mais precisamente<br />
em 3.4.1 A questão <strong>da</strong> fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> na transposição <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s secas.<br />
A a<strong>da</strong>ptação cinematográfica <strong>de</strong> uma obra tem como marco inicial a leitura<br />
que o cineasta faz <strong>da</strong> mesma. Ele relê a obra a seu modo, sem que um pacto <strong>de</strong><br />
fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>liter</strong>al com o autor <strong>da</strong> mesma seja travado, e atribui a ela conceitos e<br />
juízos particulares. E, ao tentar a<strong>da</strong>ptar o que leu para as telas, é obrigado a<br />
transpô-lo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> suas reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, isto é, <strong>de</strong> acordo com o fato <strong>de</strong> que o cinema e<br />
a <strong>liter</strong>atura são dois meios únicos, on<strong>de</strong> diferenças essenciais impe<strong>de</strong>m<br />
comparações. A <strong>liter</strong>atura permite explorações que o cinema não. E vice-versa:<br />
Em caso <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>, esta constituirá, ao abrigo <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> textual,<br />
o que o realizador julgará ser uma transposição intersemiótica fiel do que<br />
leu, entendido sob o seu ponto <strong>de</strong> vista individual e pessoal. Um texto<br />
nunca está dito <strong>de</strong> uma vez por to<strong>da</strong>s. São, por essa razão, muitos os<br />
exemplos <strong>de</strong> a<strong>da</strong>ptações cinematográficas que ilustram precisamente<br />
concretizações diferi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> uma mesma obra <strong>liter</strong>ária, sem que ca<strong>da</strong> uma<br />
<strong>de</strong>ssas transposições semióticas <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> representar, para quem as<br />
realizou, uma fiel conversão em produto cinematográfico do que se leu<br />
(LEONE; MOURÃO, 1997, p. 60).<br />
64
A história li<strong>da</strong> sofre várias mu<strong>da</strong>nças ao ser transposta, e é este o momento<br />
<strong>de</strong> epifania que liga as duas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> transformação do<br />
pa<strong>pel</strong> para a tela.<br />
O cinema não permite pausas. O livro, em certos momentos, exige que se<br />
pare. O cinema é automático, registra e representa. O romance analisa. O cinema<br />
comporta variados materiais <strong>de</strong> expressão. O romance conta somente com a<br />
construção <strong>da</strong> linguagem verbal, que po<strong>de</strong> ser valoriza<strong>da</strong> <strong>pel</strong>o uso <strong>de</strong> figuras <strong>de</strong><br />
linguagem, mas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> unicamente <strong>de</strong>la.<br />
A <strong>liter</strong>atura e o cinema, como se vê, são campos <strong>de</strong> produção distintos,<br />
embora altamente relacionáveis, como que num dialogismo intertextual. É<br />
impossível, portanto, estabelecer uma comparação <strong>de</strong> valores entre a <strong>liter</strong>atura e o<br />
cinema, já que, como <strong>de</strong>monstrado, tratam-se <strong>de</strong> dois meios <strong>de</strong> produção cultural<br />
distintos. A idéia perfeita <strong>de</strong> comparação entre os campos seria, portanto, basea<strong>da</strong><br />
num diálogo, já que se esperar <strong>de</strong> um cineasta a mesma perspectiva <strong>de</strong> um autor,<br />
distanciados por condutas <strong>de</strong> trabalho e até mesmo <strong>de</strong> tempo seria, antes <strong>de</strong> tudo,<br />
um <strong>de</strong>vaneio.<br />
A obra escrita <strong>de</strong>verá assumir unicamente o pa<strong>pel</strong> <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong><br />
para a transposição. O autor <strong>da</strong> obra <strong>liter</strong>ária <strong>de</strong>veria assumir, portanto, postura<br />
<strong>de</strong>sprendi<strong>da</strong> semelhante, já que em muitos casos, este renega a transposição<br />
cinematográfica <strong>da</strong> sua obra, por acreditar que a mesma não alcançou o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro<br />
sentido <strong>da</strong> obra, ou pior, por absoluto fun<strong>da</strong>mentalismo autoral. Segundo Umberto<br />
Eco, existe a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o autor “morrer” <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter escrito, para não<br />
perturbar o caminho do texto:<br />
Desta forma, cabe ao produtor <strong>de</strong> <strong>liter</strong>atura apagar-se em prol <strong>de</strong> leituras<br />
plurais, que a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> produtiva dos textos solicita, <strong>de</strong> maneira a não<br />
cair em tentação autoral <strong>de</strong> fixar o sentido dos textos que produz, ce<strong>de</strong>ndo<br />
o “seu” texto ao cinema, esperando <strong>da</strong> sétima arte <strong>de</strong>sempenhos<br />
interpretativos que briguem com o(s) sentido(s) <strong>de</strong>sse texto, que o<br />
enriqueçam com um constante conflito <strong>de</strong> interpretações, reconduzindo<br />
dinamicamente a sua produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> significativa (1976, p.14).<br />
Um outro empecilho que impe<strong>de</strong> a exigência <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> no momento <strong>da</strong><br />
transposição é o público alvo, aquele que <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> a quem a obra se <strong>de</strong>stina.<br />
Uma obra escrita exige uma série <strong>de</strong> competências para ser entendi<strong>da</strong>. O cinema,<br />
por sua vez, mostra-se, na maioria dos casos, <strong>de</strong> entendimento mais simples.<br />
65
O ato <strong>de</strong> ler exige, <strong>de</strong>ntre outras capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, percepção, conhecimento <strong>de</strong><br />
mundo (para que se possa compreen<strong>de</strong>r as nuances narrativas que fatalmente<br />
estarão embuti<strong>da</strong>s no texto) e paciência, principalmente.<br />
O cinema, porém, po<strong>de</strong> não exigir tamanho preparo, já que abarca dois tipos<br />
<strong>de</strong> espectadores. O tipo mais incomum é aquele interessado na arte<br />
cinematográfica. A este público são reserva<strong>da</strong>s poucas salas, por se tratar <strong>de</strong> um<br />
grupo pouco numeroso, sendo o retorno financeiro que provém <strong>de</strong>le muito pequeno.<br />
O segundo tipo, bem mais numeroso, é o que enxerga o cinema <strong>pel</strong>o prisma<br />
do divertimento. Para ele o fator mais importante do filme não é o diretor ou o<br />
enredo, e sim o elenco. Quanto mais famosas são as estrelas envolvi<strong>da</strong>s na<br />
produção, mais sucesso ela faz. Estes filmes comerciais são compostos na sua<br />
quase totali<strong>da</strong><strong>de</strong>, por obras <strong>de</strong> fácil entendimento, feitas unicamente para agra<strong>da</strong>r,<br />
sem questionar, o maior número possível <strong>de</strong> pessoas, com o único objetivo <strong>de</strong><br />
geração <strong>de</strong> lucros com o entretenimento propiciado.<br />
Enquanto o admirador cinematográfico busca a arte <strong>pel</strong>a arte, o espectador<br />
casual enxerga o cinema como apenas mais uma forma <strong>de</strong> distração. “Para a<br />
massa, a obra <strong>de</strong> arte seria objeto <strong>de</strong> diversão, e para o conhecedor, objeto <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>voção” (BENJAMIN, 1985, p.15).<br />
O gran<strong>de</strong> problema que surge <strong>de</strong>ssa dicotomia entre os espectadores é que<br />
os filmes produzidos para o grupo seleto não têm a<strong>pel</strong>o às massas. O gran<strong>de</strong><br />
público, por sua vez, por estar plenamente a<strong>da</strong>ptado e acomo<strong>da</strong>do ao pouco que lhe<br />
é oferecido, não amplia seus horizontes, portanto, não apura seu gosto.<br />
A diferença <strong>de</strong> nível entre os produtos não constitui, a priori, uma diferença <strong>de</strong><br />
valor, mas sim uma diferença <strong>de</strong> relação fruitiva, na qual ca<strong>da</strong> leitor/espectador<br />
alterna<strong>da</strong>mente se coloca. Assim:<br />
Para o espectador inserido na cultura <strong>de</strong> massa, ler um livro ten<strong>de</strong> a ser<br />
uma tarefa muito árdua, por isso ele vai ao cinema, buscando prazer<br />
momentâneo, livre <strong>da</strong>s reflexões e digressões que o texto <strong>liter</strong>ário e o<br />
cinema arte oferecem, e que ele provavelmente não alcançaria. A<br />
comunicação <strong>de</strong> massa dirige-se, portanto, a uma totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
consumidores dificilmente redutíveis a um mo<strong>de</strong>lo unitário, estabelecendose,<br />
<strong>de</strong> forma empírica, harmoniosamente com circunstâncias históricas e<br />
sociológicas, bem como com diferenciações do público receptor (ECO<br />
1976, p.74).<br />
66
Os argumentos até aqui expostos acerca <strong>de</strong> transposição, fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> e cultura<br />
<strong>de</strong> massa servirão como arcabouço teórico, bem como <strong>de</strong> ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> para a<br />
análise, interpretação e vali<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> transposição <strong>liter</strong>ária do romance Vi<strong>da</strong>s secas,<br />
que passam a ser expostas a seguir.<br />
3.3 VIDAS SECAS: HIPERTEXTO<br />
O filme Vi<strong>da</strong>s secas foi lançado em 1964, oriundo <strong>de</strong> uma a<strong>da</strong>ptação<br />
cinematográfica do romance <strong>de</strong> Graciliano. A idéia <strong>de</strong> se abor<strong>da</strong>r a calami<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />
seca surgiu em 1958, quando o cineasta Nélson Pereira dos Santos estava filmando<br />
um documentário sobre a região do Alto São Francisco, e passou a se <strong>de</strong>parar<br />
diariamente com famílias e famílias <strong>de</strong> retirantes. Estas, ao tentarem fugir <strong>de</strong> mais<br />
uma seca que assolava a região, colocavam-se a vagar em busca do <strong>de</strong>sconhecido.<br />
O cineasta nunca havia presenciado cenas tão aterradoras. Era a primeira<br />
vez que ele tinha um contato tão próximo com vitimados <strong>pel</strong>a seca. A visão dos<br />
flagelados lhe remetia à lembrança prisioneiros <strong>de</strong> campos <strong>de</strong> concentração, <strong>de</strong>vido<br />
à forma esquáli<strong>da</strong> e doentia que os corpos tomavam, conforme a estiagem ia se<br />
apo<strong>de</strong>rando do lugar.<br />
Foi então que vi <strong>pel</strong>a primeira vez, com meus próprios olhos, aqueles seres<br />
que conhecia do livro do Graciliano. Os retirantes Fabianos e,<br />
principalmente, as centenas <strong>de</strong> crianças que iam sendo abriga<strong>da</strong>s nos<br />
grupos escolares, recebendo uma cesta básica que consistia em um<br />
pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong> carne seca e farinha jamais saiu <strong>da</strong> minha cabeça. (SANTOS<br />
apud GARDNIER; CAETANO, 2007).<br />
Com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> fome martelando-lhe a cabeça, Nélson Pereira resolveu<br />
mostrar no cinema o que seria o flagelo <strong>da</strong> seca. Após essa <strong>de</strong>cisão, o cineasta se<br />
<strong>de</strong>dicou a tentar transpor para a tela a calami<strong>da</strong><strong>de</strong> que havia presenciado, e a obra<br />
que serviu <strong>de</strong> base, <strong>de</strong> inspiração nestes momentos, foi Vi<strong>da</strong>s secas, livro que o<br />
cineasta admirava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos <strong>de</strong> colégio.<br />
Após várias tentativas <strong>de</strong> a<strong>da</strong>ptação fali<strong>da</strong>s, Nélson Pereira percebeu que<br />
na<strong>da</strong> seria mais real, mais próximo do que ele presenciou do que o próprio texto do<br />
romance Vi<strong>da</strong>s secas, e resolveu então transpô-lo diretamente para o cinema.<br />
67
O filme foi lançado em 1963, sob o prisma <strong>da</strong> estética <strong>da</strong> fome, um dos<br />
preceitos realísticos do Cinema Novo. O personagem Fabiano e a família se<br />
apresentam no filme, assim como no romance, como seres discretos e submissos<br />
em relação ao trabalho, à proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> terra, às instituições, à repressão policial, à<br />
submissão e à violência. Assim como no hipotexto já focado anteriormente, os<br />
personagens no hipertexto também apresentam fortes marcas socialistas.<br />
As filmagens tiveram início em 1962. O cineasta Nélson Pereira e sua equipe<br />
viajaram para Palmeira dos Índios, ci<strong>da</strong><strong>de</strong> natal <strong>de</strong> Graciliano Ramos, para trabalhar<br />
na a<strong>da</strong>ptação. A maior parte do elenco que compôs o filme era oriundo <strong>da</strong> própria<br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. O ator Jofre Soares, um ex-militar apaixonado <strong>pel</strong>a arte <strong>de</strong> interpretar, vivia<br />
na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, e trabalhou na produção do filme. Sua tarefa principal era arrumar<br />
pessoas que se dispusessem a compor o elenco, e acabou, ele próprio compondo-o,<br />
interpretando o fazen<strong>de</strong>iro e lançando-se a uma respeitável carreira nacional.<br />
O personagem <strong>de</strong> sinha Vitória foi vivido por Maria Ribeiro, que era técnica <strong>de</strong><br />
um laboratório cinematográfico, e apenas os personagens <strong>de</strong> Fabiano e do sol<strong>da</strong>do<br />
amarelo foram vividos por atores profissionais: Átila Iório e Orlando Macedo,<br />
respectivamente.<br />
A transposição <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s secas gerou o primeiro longa-metragem a mostrar<br />
ao restante do país, sem retoques ou quaisquer mistificações, a miséria e a fome<br />
dos sertanejos nor<strong>de</strong>stinos, causa<strong>da</strong>s <strong>pel</strong>a ganância latifundiária e <strong>pel</strong>o problema<br />
<strong>da</strong>s constantes secas que assolavam e ain<strong>da</strong> assolam a região.<br />
A recepção pública do filme teve duas vertentes totalmente divergentes entre<br />
si. Para os críticos, o filme foi um marco, uma obra-prima. Para o público, a massa<br />
em geral, o filme foi consi<strong>de</strong>rado ruim, incompreensível, já que se afastava muito <strong>da</strong>s<br />
chancha<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Atlânti<strong>da</strong>, ou dos filmes que a Vera Cruz produzia, à base <strong>de</strong><br />
enlatados americanos.<br />
O não-entendimento do filme po<strong>de</strong> ter sido resultado <strong>da</strong> inserção do <strong>de</strong>bate<br />
político na obra, que abrangia, <strong>de</strong>ntre outros aspectos, o problema social no Brasil.<br />
Era a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira face do brasileiro pobre e nor<strong>de</strong>stino que estava sendo mostra<strong>da</strong>, e<br />
diferentemente do habitual, <strong>de</strong> forma muito realista.<br />
O processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cupagem iniciado no Cinema Novo, aliado ao uso <strong>de</strong> planos<br />
mais abertos, mais longos, e cortes secos, utilizados numa tentativa <strong>de</strong> transpor a<br />
fragmentação espacial <strong>da</strong> obra, além <strong>de</strong> uma preocupação com o continuum do fato<br />
68
narrado, uma influência do Neo-realismo, causaram assombro no exterior (SOUZA,<br />
2004).<br />
A fotografia utiliza<strong>da</strong> por Luiz Carlos Barreto, e cria<strong>da</strong> especialmente para o<br />
filme, foi consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> inovadora e surpreen<strong>de</strong>nte, ao criar uma maneira inédita <strong>de</strong><br />
colocação <strong>da</strong> luz em uma <strong>montagem</strong> cinematográfica.<br />
Ao contrário do habitual, a luz do filme era medi<strong>da</strong> no rosto dos personagens,<br />
<strong>de</strong> maneira seca. O filtro <strong>da</strong>s lentes foi retirado, a fim <strong>de</strong> imitar a luminosi<strong>da</strong><strong>de</strong> real<br />
do Nor<strong>de</strong>ste, estoura<strong>da</strong>, como a forte clari<strong>da</strong><strong>de</strong> proveniente <strong>de</strong> dias <strong>de</strong> sol muito<br />
intenso e céu sem nuvens.<br />
O resultado final <strong>de</strong>sta fotografia causou muita preocupação na produção do<br />
filme, principalmente, em Barreto e Nélson Pereira, segundo consta no relato do<br />
próprio cineasta:<br />
[...] normalmente vinham rolos <strong>de</strong> negativo para revelar, e se tirava um<br />
metro <strong>de</strong> ponta para fazer o teste. Marcava ali, o laboratório fazia o teste e<br />
<strong>da</strong>va o tempo <strong>de</strong> revelação. E a gente escrevia assim: Tem que revelar<br />
normal, não faça testes, porque sabia que, fazendo testes, eles iam corrigir<br />
o tempo <strong>de</strong> revelação, estava estourado, então era assim, não po<strong>de</strong> fazer<br />
teste, revela normal direto. O cara não aceitava! Foi uma briga, até que<br />
finalmente o cara aceitou, e o material chegou em Alagoas, Fomos ver o<br />
copião no cinema <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, durante o dia, entrava luz no cinema, foi<br />
horrível, não se via na<strong>da</strong>, que tristeza... Vamos para Maceió, ver no<br />
cinema São Luiz, e <strong>de</strong> noite, <strong>de</strong>pois que acabar a sessão, vamos ver o<br />
copião lá, com uma projeção boa, com tudo fechado. Aí foi um <strong>de</strong>sbun<strong>de</strong>.<br />
Apareceu aquilo e a gente Ah, finalmente!, foi uma batalha [...] (SANTOS<br />
apud GARDNIER; CAETANO, 2007).<br />
O filme <strong>de</strong> Nélson Pereira dos Santos ganhou o prêmio OCIC 3 dos cinemas<br />
<strong>de</strong> arte em Cannes (1964); prêmio <strong>de</strong> melhor filme na resenha <strong>de</strong> cinema <strong>de</strong> Gênova<br />
(1965); além ser um dos dois únicos filmes brasileiros 4 a ser indicado <strong>pel</strong>o British<br />
Film Institute, como uma <strong>da</strong>s 360 obras fun<strong>da</strong>mentais em uma cinemateca.<br />
Os prêmios internacionais permitiram que o filme Vi<strong>da</strong>s secas se pagasse.<br />
Apesar dos baixos orçamentos propostos <strong>pel</strong>o Cinema Novo na produção<br />
cinematográfica, a transposição <strong>de</strong> Nélson Pereira consumiu doze milhões <strong>de</strong><br />
cruzeiros. Os prêmios internacionais que o mesmo ganhou totalizaram por volta <strong>de</strong><br />
vinte milhões. (GARDNIER; CAETANO, 2007).<br />
3 OCIC - Organização Católica Internacional para o Cinema.<br />
4 O outro é Pixote - A Lei do Mais Fraco (1981), com roteiro <strong>de</strong> Hector Babenco e Jorge Durán,<br />
baseado no livro Infância dos mortos <strong>de</strong> José Louzeiro.<br />
69
A transposição <strong>liter</strong>ária <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s secas não foi unicamente uma a<strong>da</strong>ptação<br />
cinematográfica. Acabou se tornando um marco do cinema brasileiro, vitorioso e<br />
fi<strong>de</strong>digno, no que se refere ao âmago <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira. Para José Carlos<br />
Avellar em A <strong>de</strong>sinvenção <strong>da</strong> fronteira:<br />
Um filme, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, é o que inventamos no imaginário a partir do<br />
estímulo <strong>da</strong> projeção. E, é bem isso que faz <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s Secas um filme<br />
especialmente significativo: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o instante <strong>da</strong> projeção, arrastado por<br />
uma câmera que se recusa a observar a cena <strong>de</strong> uma posição tranqüila e<br />
confortável, o espectador é instigado a não se reduzir a um espectador, é<br />
chamado a participar <strong>da</strong> invenção ali mesmo, a imagem ain<strong>da</strong> acesa na<br />
tela. Os espectadores são convi<strong>da</strong>dos a inventar novos cinemas [...]<br />
(2006).<br />
3.4 DESMONTAGEM DA NARRATIVA FÍLMICA<br />
A cena inicial do filme Vi<strong>da</strong>s secas mostra a caatinga num plano geral. Logo<br />
em segui<strong>da</strong> surgem os personagens, acompanhados <strong>pel</strong>o som do carro <strong>de</strong> boi,<br />
mostrados em um plano <strong>de</strong> conjunto, que vai aumentando, como que invadindo a<br />
tela, conforme a família vai tomando a cena. Surge uma <strong>da</strong>ta, 1940, marcando o<br />
início <strong>da</strong> narrativa.<br />
A partir <strong>da</strong>í, a cena é filma<strong>da</strong> em plano médio. A câmera acompanha os<br />
movimentos <strong>de</strong> Baleia, que segue na frente <strong>da</strong> família, e corta para sinha Vitória,<br />
que carrega engatado no quadril o menino mais novo. Devido à posição <strong>de</strong> sinha<br />
Vitória no quadro, o plano médio dá conta <strong>de</strong> alcançar Fabiano e o menino mais<br />
velho, que caminham logo atrás <strong>de</strong>la.<br />
A cena seguinte mostra uma toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> plano psicológico, on<strong>de</strong> a família<br />
aparece senta<strong>da</strong> para comer o pouco que ain<strong>da</strong> lhes restava. Acontece então uma<br />
toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> primeiro plano, e um jogo <strong>de</strong> câmera que une Baleia, sinha Vitória e o<br />
papagaio. A câmera subjetiva marca a expressão <strong>da</strong> mulher, engajando o<br />
espectador na cena. Por meio <strong>de</strong>ste artifício, percebe-se que algo está para<br />
acontecer. Sinha Vitória mata o papagaio e Fabiano o assa.<br />
Novo corte. A família volta a caminhar. A câmera foca<strong>da</strong> direto nos<br />
personagens dá a impressão <strong>de</strong> que se caminha com eles. Novo jogo <strong>de</strong> câmera,<br />
<strong>de</strong>ssa vez envolvendo Baleia e o menino mais velho.<br />
A seguir, o menino mais velho cai. É nesta cena que se percebe, <strong>pel</strong>a<br />
primeira vez, o que seria a luz estoura<strong>da</strong> cria<strong>da</strong> por Luiz Carlos Barreto. O menino,<br />
70
segundos antes <strong>de</strong> cair, olha para o céu, a câmera subjetiva encarna o olhar do<br />
menino, e po<strong>de</strong>-se então ter a dimensão <strong>da</strong> intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> luz solar.<br />
Ao cair, to<strong>da</strong> a movimentação do menino é acompanha<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a câmera, num<br />
primeiro plano. A seguir, ela se afasta e foca a família, porém, na distância exata do<br />
menino para os <strong>de</strong>mais membros. A visão que o espectador tem é a mesma do<br />
menino caído. Fabiano finalmente socorre o filho, após chutá-lo e espetá-lo.<br />
A luz estoura<strong>da</strong> aparece na cena seguinte, novamente mostra<strong>da</strong> através do<br />
subjetivismo <strong>da</strong> câmera, acompanhando o olhar do menino mais velho, que chora.<br />
Fabiano o carrega <strong>pel</strong>o caminho empoeirado.<br />
A cena então corta para a casa, que aparece em meio primeiro plano. A<br />
câmera filma a casa e a paisagem, ain<strong>da</strong> com o mesmo plano. Os olhos do<br />
espectador são os <strong>da</strong> família. A seguir, surge Baleia, que enxerga uma preá.<br />
Fabiano e a mulher, sentados, em meio primeiro plano se abraçam e comentam que<br />
vai chover. Baleia acha a preá. Sinha Vitória beija o focinho <strong>de</strong> Baleia. Chove.<br />
Fabiano aparece na última cena <strong>de</strong>sta toma<strong>da</strong>, filma<strong>da</strong> em plano médio, a recolher<br />
raízes.<br />
A seguir, aparece a família <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> casa, em meio primeiro plano. Sentados<br />
no chão, Fabiano e sinha falam ao mesmo tempo. A câmera ora foca a mulher, ora o<br />
marido. Comentam sobre Tomás <strong>da</strong> bolan<strong>de</strong>ira. Ele refere-se a Tomás, ela faz<br />
alusão à cama <strong>de</strong> couro.<br />
O fazen<strong>de</strong>iro faz a sua primeira aparição. Nesta toma<strong>da</strong>, o dono <strong>da</strong>s terras<br />
expulsa Fabiano <strong>da</strong> casa. Ele se oferece como vaqueiro. O fazen<strong>de</strong>iro pergunta<br />
sobre a família. Ele respon<strong>de</strong> que são quatro, mais Baleia. O fazen<strong>de</strong>iro aceita.<br />
Fabiano aparece em segui<strong>da</strong> cui<strong>da</strong>ndo do gado, os meninos brincando com as<br />
cabras.<br />
Nova toma<strong>da</strong>, agora <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> em 1941, significando a passagem <strong>de</strong> um ano.<br />
Fabiano encontra uma vaca perdi<strong>da</strong> e amansa um cavalo, sob os olhos atentos do<br />
menino mais novo, que tenta imitar o an<strong>da</strong>r do pai ao <strong>de</strong>scer do cavalo. Em meio<br />
primeiro plano, Fabiano aparece tirando a indumentária <strong>de</strong> vaqueiro, sempre<br />
observado <strong>pel</strong>o menino.<br />
Fabiano, o patrão e outros vaqueiros aparecem em segui<strong>da</strong> numa toma<strong>da</strong> em<br />
plano médio. O patrão rouba Fabiano na ven<strong>da</strong> do gado. A câmera próxima <strong>de</strong><br />
Fabiano marca com precisão o olhar confuso do sertanejo enganado.<br />
71
Em segui<strong>da</strong>, o vaqueiro aparece contando à mulher sobre o dinheiro. Ela faz<br />
contas com grãos e diz ao marido que vão ter que economizar para po<strong>de</strong>r comprar a<br />
cama <strong>de</strong> couro, ou seja, cortar gastos.<br />
A cena seguinte mostra Fabiano, num plano médio, sentando num carro <strong>de</strong><br />
boi. A cena tem como fundo o som do mesmo. O sertanejo chega à casa do<br />
fazen<strong>de</strong>iro. O som do carro <strong>de</strong> boi se mistura a um outro, tão estri<strong>de</strong>nte quanto o<br />
primeiro. Fabiano entra na casa do patrão. Sentados na mesa, ambos aparecem em<br />
meio primeiro plano. Fabiano vai receber. O patrão pe<strong>de</strong> a ca<strong>de</strong>rneta. Fabiano, ao ir<br />
buscá-la em outro cômodo <strong>da</strong> casa, vê um homem tocando um violino, o qual era a<br />
origem do segundo som estri<strong>de</strong>nte. A câmera é objetiva.<br />
O patrão paga Fabiano. Este reclama que falta dinheiro. O patrão explica ao<br />
vaqueiro que o dinheiro faltante é <strong>de</strong>vido aos juros <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>rneta, e ameaça <strong>de</strong>spedir<br />
o vaqueiro, que se <strong>de</strong>sculpa e diz que a culpa era <strong>da</strong> mulher, que com certeza teria<br />
se enganado nas contas. A câmera aqui focaliza Fabiano sob o olhar do patrão.<br />
A toma<strong>da</strong> a seguir mostra a primeira aparição do sol<strong>da</strong>do amarelo, além <strong>da</strong><br />
figura do fiscal <strong>da</strong> prefeitura, ambos representantes do Estado. A cena, grava<strong>da</strong> em<br />
plano médio, mostra o fiscal acuando Fabiano, que tentava ven<strong>de</strong>r carne <strong>de</strong> porco,<br />
mas não tinha licença <strong>da</strong> prefeitura para tal, pois não pagava os impostos. Ele diz ao<br />
fiscal nem saber que existiam, já que a carne era sua. O vaqueiro vai embora sem<br />
ven<strong>de</strong>r o produto.<br />
A festa marca a cena a seguir. A família sai <strong>de</strong> casa rumo à ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, todos<br />
vestidos e calçados. A cena corta então para a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma ban<strong>da</strong> <strong>de</strong> música<br />
aparece. É a primeira e única vez que uma música compõe a narrativa. A família<br />
caminha, filma<strong>da</strong> em plano médio. O som <strong>da</strong> ban<strong>da</strong> se mistura ao som do carro <strong>de</strong><br />
boi, que marca a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> mesma à ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Fabiano se incomo<strong>da</strong> com a roupa<br />
aperta<strong>da</strong> e sai <strong>da</strong> igreja, on<strong>de</strong> ficam a mulher e os meninos. Ele tira o sapato,<br />
caminha um pouco e entra no bar. Num plano <strong>de</strong> meio conjunto, o bar é focalizado.<br />
O sertanejo reclama <strong>da</strong> pinga, que acredita estar mistura<strong>da</strong> a água. Ao sair do bar,<br />
encontra o sol<strong>da</strong>do amarelo, que lhe convi<strong>da</strong> para uma parti<strong>da</strong> <strong>de</strong> jogo <strong>de</strong> azar.<br />
Enquanto isso, a câmera corta para sinha Vitória e os meninos. A câmera<br />
subjetiva, como um olho armado, marca a preocupação mu<strong>da</strong> <strong>da</strong> mulher com o<br />
marido. Os meninos querem Baleia. A cena volta para Fabiano, que aparece em<br />
plano <strong>de</strong> meio conjunto, jogando com o policial. Fabiano aposta todo o seu dinheiro,<br />
per<strong>de</strong>, e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> abandonar o jogo. O sol<strong>da</strong>do chama Fabiano, que não aten<strong>de</strong>.<br />
72
Provocado <strong>pel</strong>o amarelo, o sertanejo reage e é preso. A câmera corta para a mulher<br />
e os meninos que continuam em frente à igreja. Na ca<strong>de</strong>ia, Fabiano apanha e chora.<br />
Anoitece, e a câmera se divi<strong>de</strong> entre dois planos. Ao mesmo tempo em que filma<br />
Fabiano preso, filma a festa dos coronéis, comendo e se divertindo, ao som <strong>de</strong> uma<br />
apresentação folclórica.<br />
Na toma<strong>da</strong> seguinte, em plano médio, surgem os cangaceiros, e em segui<strong>da</strong><br />
sinha Vitória e os meninos, que dormiram na calça<strong>da</strong> <strong>da</strong> igreja, a esperar por<br />
Fabiano. Nessa passagem aparece também a figura do padre, que obe<strong>de</strong>ce uma<br />
or<strong>de</strong>m do chefe dos cangaceiros e chama o coronel para libertar um prisioneiro, o<br />
qual era companheiro <strong>de</strong> cela <strong>de</strong> Fabiano. Ao ver Fabiano preso, o fazen<strong>de</strong>iro<br />
or<strong>de</strong>na que também o libertem. A cena termina com a câmera no sertanejo, montado<br />
num cavalo, espingar<strong>da</strong> em punho, sendo convi<strong>da</strong>do <strong>pel</strong>o cangaceiro para entrar no<br />
bando.<br />
A seguir, o menino mais velho ouve a palavra inferno, durante uma sessão <strong>de</strong><br />
benzedura do pai. Após várias tentativas <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir do que se tratava aquela<br />
palavra, o menino vai para o quintal, e é focalizado junto com a cachorra num plano<br />
psicológico (num único momento on<strong>de</strong> a natureza não parece hostil). Ele repete<br />
infinitas vezes a palavra inferno.<br />
A personagem <strong>de</strong> sinhá vitória aparece sozinha em to<strong>da</strong> a toma<strong>da</strong> seguinte,<br />
filma<strong>da</strong> ora em meio plano, ora em plano americano, subjetivamente. A mulher<br />
reclama <strong>de</strong> não possuir uma cama <strong>de</strong> couro e chora.<br />
As aves <strong>de</strong> arribação marcam presença a seguir, filma<strong>da</strong>s sempre em plano<br />
geral. Fabiano e a mulher brigam por causa <strong>de</strong> dinheiro, se culpam <strong>pel</strong>os gastos.<br />
Sinha Vitória, na porta <strong>da</strong> casa, numa cena em meio primeiro plano, interpreta nas<br />
aves a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> seca. Fabiano aparece em outra cena, atirando nas aves, que<br />
para ele bebem a água do gado. O sertanejo diz, numa toma<strong>da</strong> em primeiro plano,<br />
que vai embora, pois o sertão vai pegar fogo.<br />
A toma<strong>da</strong> seguinte marca o reencontro entre Fabiano e o sol<strong>da</strong>do amarelo. A<br />
cena se inicia com Fabiano a olhar o gado morrendo, e corta para o patrão filmado<br />
em meio primeiro plano dizendo para o sertanejo que no dia seguinte voltaria para<br />
acertar as contas com o mesmo e lhe tirar o cavalo. O vaqueiro <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> então sair em<br />
busca <strong>de</strong> uma vaca sumi<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a caatinga.<br />
A câmera corta para o sol<strong>da</strong>do na caatinga, e para Fabiano, que se encontra<br />
atrás do mesmo, peixeira em punho. Cenas em close, meio primeiro plano e plano<br />
73
médio se fun<strong>de</strong>m, ao tentar exprimir o pensamento fragmentado e lento do sertanejo<br />
em relação ao que fazer com o sol<strong>da</strong>do. Por fim, este liberta o sol<strong>da</strong>do sem<br />
machucá-lo, porque respeita sua posição <strong>de</strong> representante do Estado.<br />
A seguir, Fabiano mata Baleia (seqüência que será abor<strong>da</strong><strong>da</strong> neste trabalho<br />
<strong>de</strong> forma mais abrangente num próximo momento) e os cangaceiros reaparecem.<br />
A última toma<strong>da</strong> do filme mostra a família em plano médio voltando a an<strong>da</strong>r<br />
em busca <strong>de</strong> um novo lugar, agora o Sul. Num plano geral, o sertão é mostrado, e<br />
pouco a pouco a família vai se misturando à paisagem, filma<strong>da</strong> agora num plano <strong>de</strong><br />
conjunto, e sumindo lentamente, ao som do carro <strong>de</strong> boi. A seguir, aparecem as três<br />
últimas frases que encerram a obra <strong>liter</strong>ária: “E o sertão man<strong>da</strong>ria para a ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
homens fortes, brutos, como Fabiano, sinha Vitória e os dois meninos” (RAMOS,<br />
2000, p.128), num claro diálogo com a mesma, e a <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> 1942.<br />
Este sucinto relato <strong>da</strong> narrativa fílmica <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s Secas mostra que a intenção<br />
primordial do cineasta Nélson Pereira era mostrar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> sertaneja. A<br />
<strong>de</strong>cupagem privilegia cenas diretas, rígi<strong>da</strong>s, e a <strong>montagem</strong> é feita, basicamente, em<br />
cima <strong>de</strong> cortes secos. As toma<strong>da</strong>s são feitas praticamente em planos médios ou<br />
americanos, afastando o espectador. Somente algumas cenas se utilizam do<br />
primeiro plano, o <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong><strong>de</strong>, já que a intenção do cineasta era <strong>de</strong> mostrar a<br />
condição <strong>da</strong> família, sem que para isso laços afetivos fossem criados. Outros<br />
recursos que <strong>da</strong>riam mais beleza as cenas, como plongés, contre-plongés,<br />
travellings, campos e contra-campos, <strong>de</strong>ntre outros, são praticamente inexistentes<br />
na diegese.<br />
Os poucos sons que compõem a narrativa são na sua maioria diegéticos,<br />
como o ruído estri<strong>de</strong>nte do carro <strong>de</strong> boi, ou o tilintar do sino <strong>da</strong>s vacas. Uma<br />
consi<strong>de</strong>ração importante em relação à sonoplastia é o jogo que se faz entre o som<br />
diegético do carro <strong>de</strong> boi, que entra em cena <strong>de</strong> modo selvagem, <strong>de</strong>monstrando o<br />
primitivismo em que viviam os personagens, e logo se confun<strong>de</strong> com o barulho<br />
também estri<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> um violino, elemento não-diegético, colocado<br />
intencionalmente para <strong>de</strong>monstrar o abismo social que existia entre o patrão e o<br />
sertanejo, o grupo do po<strong>de</strong>r econômico e o dos sem-po<strong>de</strong>r (SANT’ANA, 1973,<br />
p.157). O cineasta Nélson Pereira não busca a catarse do espectador, por isso<br />
dispensa os elementos não-diegéticos:<br />
74
A música <strong>de</strong>sempenha a dupla função <strong>de</strong> apoiar a intensificação formal do<br />
pathos e a evolução temática. O tema surge, portanto, para propiciar um<br />
total envolvimento emocional do espectador à cena mostra<strong>da</strong>, casando,<br />
<strong>de</strong>ssa forma, imagem e som (LEONE; MOURÃO, 1993, p.12).<br />
A fotografia, bem como a composição dos personagens e a iluminação são<br />
fi<strong>de</strong>dignas ao ambiente nor<strong>de</strong>stino que compõe o espaço diegético. A luz do sertão<br />
parece saltar <strong>da</strong> tela e queimar a todos que estão em volta. Os personagens são<br />
compostos como sertanejos reais, sem truques <strong>de</strong> maquiagem ou belos figurinos, e<br />
a luz <strong>de</strong> todo o filme é natural.<br />
A narração <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptação cinematográfica aqui <strong>de</strong>scrita, em certos momentos<br />
em muito se assemelha a um episódio épico, como a Ilía<strong>da</strong> <strong>de</strong> Homero, já que se<br />
trata <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>scrição heróica, extensa, dos feitos <strong>de</strong> Fabiano e <strong>da</strong> família, uma<br />
pseudo-exaltação à <strong>de</strong>terminação e à coragem. To<strong>da</strong>via, a conduta dos<br />
personagens em cena, bem como a forma que a narrativa se <strong>de</strong>senvolve também<br />
lembram em muito o gênero dramático.<br />
A presença <strong>da</strong> tensão e <strong>da</strong> tragédia, bem como o processo <strong>de</strong> encenação dos<br />
personagens, motivado <strong>pel</strong>a ausência <strong>da</strong> narração em terceira pessoa, como que<br />
obriga a família a representar, dramatizar suas ações. Esta presença remete a obra<br />
também ao gênero dramático.<br />
Segundo Aristóteles (COSTA, 2000, p.22), o gênero épico seria a palavra<br />
narra<strong>da</strong>, e o gênero dramático a palavra representa<strong>da</strong>, e ambas estão inseri<strong>da</strong>s à<br />
obra, o que faz com que, por meio do hibridismo dos gêneros <strong>liter</strong>ários, não se<br />
classifique a mesma como um único tipo <strong>de</strong> gênero <strong>liter</strong>ário, mas como uma mesclas<br />
<strong>de</strong>les:<br />
Em lugar <strong>de</strong> sublinhar a distinção entre as várias espécies, interessa, <strong>pel</strong>o<br />
caráter único <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> “gênio original” e <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte, <strong>de</strong>scobrir o<br />
<strong>de</strong>nominador comum <strong>de</strong> uma espécie, os seus processos e objetivos<br />
<strong>liter</strong>ários (WELLEK; WARREN, 1962, p. 297).<br />
3.4.1 A questão <strong>da</strong> fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> na transposição <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s Secas<br />
A fragmentação narrativa do hipotexto, conforme já <strong>de</strong>monstrado neste<br />
trabalho, permite uma leitura em separado dos capítulos como pequenos contos,<br />
<strong>de</strong>smontáveis e maleáveis, abrindo várias possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>montagem</strong>.<br />
75
Esta estrutura <strong>de</strong> composição <strong>da</strong> obra abarca várias narrativas nucleares<br />
secciona<strong>da</strong>s com relativa autonomia, exceto <strong>pel</strong>os capítulos que abrem e fecham o<br />
ciclo <strong>da</strong> seca:<br />
Este encontro do fim com o começo [...] forma um anel <strong>de</strong> ferro, em cujo<br />
círculo sem saí<strong>da</strong> se fecha a vi<strong>da</strong> esmaga<strong>da</strong> <strong>da</strong> pobre família <strong>de</strong> retirantesagregados-retirantes,<br />
mostrando que a po<strong>de</strong>rosa visão social <strong>de</strong> Graciliano<br />
Ramos neste livro não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> [...] do fato <strong>de</strong> ele ter feito romance<br />
regionalizado ou romance proletário. Mas do fato <strong>de</strong> ter sabido criar em<br />
todos os níveis, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o pormenor do discurso até o <strong>de</strong>senho geral <strong>da</strong><br />
composição, os modos <strong>liter</strong>ários <strong>de</strong> mostrar a visão dramática <strong>de</strong> um mundo<br />
opressivo (CÂNDIDO, 1992, p. 65).<br />
A organização <strong>de</strong>scontínua, não-linear, que constrói a obra por fragmentos,<br />
possibilita que várias leituras sejam feitas, favorecendo uma interpretação singular<br />
do texto a ca<strong>da</strong> novo contato com o mesmo.<br />
Os fatores acima expostos, portanto, permitiram que o cineasta Nélson<br />
fizesse sua leitura individual do hipotexto Vi<strong>da</strong>s Secas. Um reler <strong>da</strong> obra crítico e<br />
criativo, mais acima <strong>de</strong> tudo dialógico, uma vez que <strong>de</strong>ve enten<strong>de</strong>r-se o objeto<br />
<strong>liter</strong>ário como uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> passível <strong>de</strong> leituras plurais, mas não <strong>de</strong> quaisquer<br />
leituras (LEONE; MOURÃO, 1993, p. 89).<br />
A transposição para o cinema apresenta algumas mu<strong>da</strong>nças <strong>de</strong> elementos,<br />
buscando, no entanto, não trair a essência do romance. A seqüência capitular do<br />
filme foi refeita. Neste, o inverno chega logo que a família ocupa a casa; acontece<br />
uma junção entre os capítulos “Festa” e “Ca<strong>de</strong>ia”, o que permite que o espectador<br />
enxergue a situação <strong>da</strong> família no momento <strong>da</strong> prisão <strong>de</strong> Fabiano, sob o ponto <strong>de</strong><br />
vista do sertanejo e <strong>de</strong> sinha Vitória; a morte <strong>de</strong> Baleia marca o reinício <strong>da</strong> saga <strong>pel</strong>a<br />
sobrevivência, já que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>la a família parte novamente, <strong>de</strong>ssa vez para o Sul.<br />
A cena do reencontro entre Fabiano e o sol<strong>da</strong>do amarelo também é atrasa<strong>da</strong><br />
em relação ao hipotexto, o qual traz esta passagem antes <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> <strong>da</strong>s aves <strong>de</strong><br />
arribação. No hipertexto, este reencontro ocorre <strong>de</strong>pois, sendo seguido <strong>pel</strong>a morte<br />
<strong>de</strong> Baleia. Estes fatos comprovam que o montador po<strong>de</strong>, portanto, “dirigir e controlar<br />
as emoções do espectador, reorganizando a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>scrita <strong>pel</strong>os planos,<br />
fazendo com que ele seja envolvido <strong>pel</strong>o filme” (EISENSTEIN, 1990, p. 75).<br />
O tempo também sofreu modificações na transposição. Enquanto na obra<br />
<strong>liter</strong>ária a marcação do tempo é praticamente inexistente, só percebi<strong>da</strong> por algumas<br />
pequenas menções que o autor faz ao longo do texto, o tempo diegético é bastante<br />
76
marcado. A cena inicial é <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> em 1940. Um pouco mais adiante, na toma<strong>da</strong> on<strong>de</strong><br />
o menino mais novo observa o pai domando um cavalo bravo, outra <strong>da</strong>ta aparece:<br />
1941, evi<strong>de</strong>nciando, portanto, a passagem <strong>de</strong> um ano. E, na última cena, a <strong>da</strong>ta <strong>de</strong><br />
1942 é mostra<strong>da</strong>, marcando, portanto, a passagem <strong>de</strong> dois anos.<br />
A fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> que interessa a esta pesquisa leva em consi<strong>de</strong>ração,<br />
principalmente, as circunstâncias político-culturais que envolveram os autores do<br />
hipotexto e do hipertexto no momento <strong>da</strong> transposição. A leitura <strong>de</strong> Nélson Pereira<br />
evi<strong>de</strong>ncia a dura reali<strong>da</strong><strong>de</strong> do sertão nor<strong>de</strong>stino, que <strong>de</strong> 1938, ano <strong>de</strong> lançamento do<br />
hipotexto, à 1963, ano <strong>de</strong> produção <strong>da</strong> obra fílmica, pouco se alterara. O aspecto <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>núncia <strong>da</strong> obra, portanto, se mantém, mostrando as questões <strong>da</strong> <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
social, provoca<strong>da</strong>s <strong>pel</strong>a expropriação <strong>da</strong> terra, apropriação in<strong>de</strong>vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> mão <strong>de</strong> obra,<br />
e porque não, a escravidão, mantendo-se, portanto, a linha <strong>de</strong> pensamento marxista<br />
do hipotexto na transposição.<br />
Esta coerência i<strong>de</strong>ológica existente entre Nélson e Graciliano, segundo Eco,<br />
“ocorre justamente por ser a a<strong>da</strong>ptação parte <strong>de</strong> uma teoria geral <strong>da</strong> repetição, já<br />
que as narrativas são repeti<strong>da</strong>s <strong>de</strong> diversas maneiras, e em meios culturais distintos”<br />
(1976, p.81).<br />
Os personagens do filme se mostram mais capazes <strong>de</strong> se comunicar<br />
verbalmente do que os criados por Graciliano Ramos, apesar <strong>de</strong> as cenas dos<br />
diálogos serem em pequeno número e os mesmos se apresentarem <strong>de</strong> forma<br />
bastante grotesca. Este fato se explica <strong>pel</strong>a lógica <strong>da</strong> transposição, já que seria<br />
bastante difícil mostrar nas cenas o conflito interno <strong>de</strong> Fabiano causado <strong>pel</strong>a<br />
carência lingüística, uma vez que o filme não tem um narrador verbal.<br />
A questão <strong>da</strong> linguagem utiliza<strong>da</strong> no hipotexto adquire, <strong>de</strong>ssa maneira, outra<br />
conotação. O estilo indireto livre, aliado à onisciência, recursos utilizados por<br />
Graciliano para ser a voz dos personagens, ao mesmo tempo em que lhes narrava o<br />
interior, era impossível <strong>de</strong> ser transposto. A solução encontra<strong>da</strong>, <strong>de</strong>ssa maneira, na<br />
<strong>montagem</strong> <strong>de</strong> Nélson Pereira, foi a <strong>de</strong> trabalhar mais a questão <strong>da</strong> linguagem dos<br />
seus personagens:<br />
A teoria sobre o cinema, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do ponto <strong>de</strong> vista adotado:<br />
semiológico, estrutural ou narratológico, muito cedo confirmou a<br />
possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> aproximação entre o texto narrativo fílmico e o narrativo<br />
<strong>liter</strong>ário, em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> utilização idêntica que ambos fazem <strong>da</strong> veiculação<br />
<strong>de</strong> uma história através <strong>de</strong> um discurso peculiar a ca<strong>da</strong> texto, discurso este<br />
manipulado por uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> narradora que combina personagens, os<br />
77
quais protagonizam ações, situando-se num <strong>de</strong>terminado espaço e num<br />
<strong>da</strong>do momento na linha do tempo diegético (METZ, 1972, p112).<br />
Na passagem do hipotexto ao hipertexto, dois acontecimentos foram<br />
adicionados à narrativa. O primeiro diz respeito ao grupo <strong>de</strong> cangaceiros, que<br />
aparece em cena duas vezes, sem nenhuma explicação prévia a respeito dos<br />
mesmos. A inserção do cangaço é bem subjetiva. Porém, numa análise mais<br />
cui<strong>da</strong>dosa, basea<strong>da</strong> no significado do cangaceiro no Nor<strong>de</strong>ste, percebe-se que a<br />
mesma tem a intenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar o po<strong>de</strong>r paralelo que atuava no local. Fabiano<br />
temia o sol<strong>da</strong>do amarelo e o fazen<strong>de</strong>iro. Contudo, seus opressores temiam a força<br />
do cangaço.<br />
A festa do bumba-meu-boi também só aparece no hipertexto. O boi tem com<br />
a família uma ligação bastante significativa. É do trabalho com o gado que Fabiano<br />
consegue sustentar a família, e é a carne salga<strong>da</strong> do mesmo que a alimenta. É o<br />
animal o responsável <strong>pel</strong>o reencontro <strong>de</strong> Fabiano com o sol<strong>da</strong>do amarelo, quando o<br />
sertanejo vai em busca <strong>de</strong> uma vaca fugi<strong>da</strong> em meio à caatinga. Além disso, é o<br />
som do carro <strong>de</strong> boi que marca a presença dos sertanejos nas cenas e os insere na<br />
narrativa, já que vai <strong>da</strong> posição não-diegética à diegética, conforme os mesmos<br />
a<strong>de</strong>ntram na história.<br />
O bumba-meu-boi é uma tradição <strong>da</strong>s regiões Norte e Nor<strong>de</strong>ste, e é<br />
inspirando numa historia envolvendo um boi mágico, capaz até <strong>de</strong> <strong>da</strong>nçar, uma<br />
grávi<strong>da</strong> e um sertanejo. Esta festa resgata a história <strong>da</strong>s relações socioeconômicas<br />
do período colonial, marcado <strong>pel</strong>a monocultura, a criação extensiva <strong>de</strong> gado e a<br />
escravidão:<br />
A valorização do boi reflete [...] o inconsciente coletivo, preso ao que<br />
consi<strong>de</strong>ra forças vitais [...] o boi é a própria participação do homem no<br />
trabalho cotidiano nas zonas <strong>de</strong> gado, é visto por ele quase como um<br />
prolongamento seu, como quem comunica através do aboio (AGUIAR et<br />
al., 2003, p. 53).<br />
Na a<strong>da</strong>ptação <strong>de</strong> Nélson Pereira, um personagem <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância na<br />
narrativa <strong>liter</strong>ária não aparece fisicamente, só é mencionado <strong>pel</strong>os personagens em<br />
várias passagens. A figura <strong>de</strong> Tomás <strong>da</strong> bolan<strong>de</strong>ira não per<strong>de</strong> sua importância na<br />
narrativa, continua representando as aspirações <strong>de</strong> valores <strong>da</strong> família, culturais para<br />
78
Fabiano e materiais para sinha Vitória, porém, o cineasta optou unicamente <strong>pel</strong>a<br />
alusão ao personagem.<br />
A dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> transposição <strong>de</strong> Tomás <strong>da</strong> bolan<strong>de</strong>ira baseou-se no fato <strong>de</strong><br />
que o romance trazia poucas informações sobre o personagem, e essas vinham por<br />
intermédio <strong>de</strong> Fabiano e sinha Vitória, o que fazia com que as mesmas fossem<br />
precárias, fato explicável <strong>pel</strong>a incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> articulatória <strong>da</strong> família, alia<strong>da</strong> ao estilo<br />
seco <strong>de</strong> Graciliano.<br />
Um outro empecilho que o cineasta encontrou na criação <strong>de</strong> Tomás foi o fato<br />
<strong>de</strong> que as referências àquele personagem eram feitas somente sob a forma <strong>de</strong><br />
lembranças, no passado. Dessa forma, o cineasta teria que mu<strong>da</strong>r o fluxo narrativo a<br />
to<strong>da</strong> aparição <strong>de</strong>le, o que causaria uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> rebor<strong>da</strong>mento, fugindo,<br />
portanto, do objetivo proposto na transposição, calcado nas diretrizes do Cinema<br />
Novo.<br />
Eu não sabia como Seu Tomás vivia, velho, moço [...] não tinha condições<br />
<strong>de</strong> criar o Seu Tomás como gente [...] por outro lado, no plano <strong>da</strong><br />
linguagem cinematográfica, eu teria que utilizar flash-back: em<br />
<strong>de</strong>terminados momentos, seria obrigado a interromper a ação do presente<br />
para colocar o Seu Tomás na existência anterior dos personagens, numa<br />
outra fazen<strong>da</strong>, com a bolan<strong>de</strong>ira, etc. Mas essa linguagem se chocaria<br />
totalmente com a linguagem que eu pretendia <strong>da</strong>r ao filme: a linguagem a<br />
mais direta. O flash-back é sempre muito falso; é o passado mas não o é; é<br />
a interrupção do presente para voltar a outro presente, porque o tempo<br />
cinematográfico está sempre na perspectiva do futuro (SANTOS, 2006).<br />
Aristóteles <strong>de</strong>fine o verossímil como sendo tudo o que faz sentido aos olhos<br />
do senso comum. A obra <strong>de</strong> a<strong>da</strong>ptação do cineasta Nélson Pereira dos Santos,<br />
neste sentido, mostra-se bastante verossímil, na medi<strong>da</strong> em que procurou transpor o<br />
romance para o cinema, relatando <strong>de</strong> forma contun<strong>de</strong>nte a injustiça e a<br />
<strong>de</strong>sumani<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Ao fazer sua própria leitura e re<strong>montagem</strong> <strong>da</strong> obra Vi<strong>da</strong>s Secas, o cineasta<br />
buscou preservar o que <strong>de</strong> mais importante uma obra <strong>de</strong> arte apresenta: sua<br />
essência. A vonta<strong>de</strong> que predominava em ambos, escritor e cineasta, era a mesma,<br />
a <strong>de</strong> incitar o <strong>de</strong>bate sobre a dura reali<strong>da</strong><strong>de</strong> do país, e <strong>de</strong>sta forma <strong>de</strong>smascará-lo.<br />
Segundo Oliveira a câmara cria uma nova reali<strong>da</strong><strong>de</strong>:<br />
Uma vez que não se po<strong>de</strong> ver o mundo como nos é mostrado através dos<br />
novos recursos trazidos <strong>pel</strong>a máquina. Lírica, tanto é capaz <strong>de</strong> tornar<br />
79
manifestos os pensamentos quanto as lembranças, fazendo visíveis as<br />
coisas invisíveis, produzindo sobre a tela diferentes efeitos visuais,<br />
i<strong>de</strong>ntificando-se com a alma do cineasta, permitindo-lhe criar no filme, seu<br />
estilo pessoal (2004, p. 27).<br />
3.4.2 Baleia - do <strong>liter</strong>ário ao cinematográfico e vice-versa<br />
O conto Baleia foi inspirado num cachorro do avô <strong>de</strong> Graciliano Ramos, e foi a<br />
primeira obra produzi<strong>da</strong> <strong>pel</strong>o autor no Rio <strong>de</strong> janeiro. Com um nome bastante<br />
curioso, ligado ao folclore brasileiro e a crença <strong>de</strong> que ao se colocar em cães nomes<br />
relacionados a água ten<strong>de</strong>-se a evitar que os mesmos contraiam hidrofobia, já que<br />
por conta <strong>de</strong>stes nomes peculiares eles estariam habituados a água, a personagem,<br />
batiza<strong>da</strong> <strong>de</strong> Baleia, era uma criatura <strong>de</strong>cente, nas palavras do próprio Graciliano,<br />
“porque na vizinhança não existiam galãs caninos” (GARBUGLIO et al.,1987, p.<br />
104).<br />
A cachorra era dota<strong>da</strong> <strong>de</strong> várias virtu<strong>de</strong>s, o que fazia <strong>de</strong>la parte importante na<br />
estrutura familiar. No hipotexto ela não é trata<strong>da</strong> com um animal, mas como um ser<br />
humano, que raciocina e tem sentimentos <strong>de</strong> amor e soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> por to<strong>da</strong> a<br />
família. Foi Baleia quem salvou a família <strong>da</strong> fome em uma ocasião, ao caçar um<br />
preá, do qual só lhe restou os ossos.<br />
Os troços minguados ajuntavam-se no chão: a espingar<strong>da</strong> <strong>de</strong> pe<strong>de</strong>rneira, o<br />
aió, a cuia <strong>de</strong> água e o baú <strong>de</strong> folha pinta<strong>da</strong>. A fogueira estalava. O preá<br />
chiava em cima <strong>da</strong>s brasas.<br />
Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E como não podia ocupar-se<br />
<strong>da</strong>quelas coisas, esperava com paciência a hora <strong>de</strong> mastigar ossos.<br />
Depois iria dormir (RAMOS, 2000, p.16).<br />
To<strong>da</strong> a percepção no romance relaciona<strong>da</strong> aos pensamentos <strong>de</strong> Baleia é<br />
garanti<strong>da</strong> <strong>pel</strong>o uso do discurso indireto livre, em junção com a onisciência. O que<br />
permite que o leitor “ausculte” e penetre no mundo íntimo do animal.<br />
O tipo <strong>de</strong> narração utiliza<strong>da</strong> no hipotexto po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado, portanto, a<br />
chave-mestra na composição do capítulo Baleia. Somente com a utilização do<br />
discurso indireto livre, o autor pô<strong>de</strong> <strong>da</strong>r voz a uma cachorra, fazendo com que o<br />
leitor se questione ao ler a obra sobre o que difere Baleia <strong>de</strong> Fabiano, já que o ser<br />
humano representado por Fabiano é bestializado. A cachorra, por sua vez,<br />
apresenta capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> raciocínio, <strong>de</strong> organização <strong>de</strong> consciência, e no momento<br />
<strong>de</strong> sua morte apresenta uma notável concatenação <strong>de</strong> pensamentos.<br />
80
Ironicamente, é a cachorra Baleia o ser mais social, amoroso e pensante <strong>da</strong><br />
família. A obra mostra o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sumanização <strong>de</strong> Fabiano, e <strong>da</strong> ascensão<br />
Baleia à condição humana. Ela representa a construção mais humana do livro.<br />
Fabiano consi<strong>de</strong>rava a cachorra um bicho, on<strong>de</strong> estará empregado o sentido<br />
duplo do termo: “animal/esperteza, positivo/negativo” (SANT’ANA, 1973, p.156). E<br />
sua esperteza permitia que ela sonhasse com um osso com tutano, boiando em<br />
caldo grosso, enquanto faz companhia solidária ao menino mais velho, chateado por<br />
não enten<strong>de</strong>r a palavra inferno:<br />
O menino continuava a abraçá-la. E Baleia encolhia-se para não magoá-lo,<br />
sofria a carícia excessiva. O cheiro <strong>de</strong>le era bom, mas estava misturado<br />
com emanações que vinham <strong>da</strong> cozinha. Havia ali um osso. Um osso<br />
graúdo, cheio <strong>de</strong> tutano e com alguma carne (RAMOS, 2000, p.62).<br />
A cachorra humaniza<strong>da</strong> representava o integrante mais afetivo e mais<br />
sociável <strong>da</strong> família. As aparições <strong>de</strong>la no romance são cerca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> diminutivos, que<br />
acabam <strong>de</strong>ixando o texto, tão seco, um pouco mais gracioso.<br />
A <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Baleia na obra, influencia<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a ação <strong>da</strong> antropomorfização,<br />
alia<strong>da</strong> aos adjetivos, encanta o leitor. Emociona a posição <strong>da</strong> cachorra em relação à<br />
família. Ela enten<strong>de</strong> que precisa cui<strong>da</strong>r <strong>de</strong>les, sabe <strong>de</strong> suas responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, está<br />
sempre à frente <strong>de</strong>les, escolhendo o melhor caminho, protegendo Fabiano e os<br />
meninos.<br />
O processo <strong>de</strong> humanização <strong>de</strong> Baleia tem seu ápice no episódio que narra a<br />
sua morte. Este é sem dúvi<strong>da</strong> o capítulo mais belo <strong>da</strong> narrativa <strong>liter</strong>ária, embora seja<br />
o mais trágico.<br />
A cachorra tem plena consciência <strong>de</strong> que algo vai lhe acontecer. Estranha a<br />
atitu<strong>de</strong> do dono, tem medo <strong>de</strong>le. Tenta fugir do <strong>de</strong>sconhecido, mas é atingi<strong>da</strong> por um<br />
tiro <strong>da</strong>do por Fabiano. As crianças <strong>de</strong>sespera<strong>da</strong>s sofrem por Baleia. Os adultos<br />
também. Fabiano, porém, obrigou-se a matar a cachorra, que doente, podia, quem<br />
sabe, mor<strong>de</strong>r os meninos. O sertanejo ain<strong>da</strong> tentou salvá-la com uma simpatia<br />
amarra<strong>da</strong> no pescoço, mas a mesma não surtiu efeito, e o sacrifício se mostrou<br />
como a única maneira <strong>de</strong> se proteger as crianças do ataque do cão hidrofóbico.<br />
A chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> morte fez com que Baleia tivesse pensamentos entrecortados,<br />
próximos ao fluxo <strong>de</strong> consciência. Ela queria mor<strong>de</strong>r o dono, mas ao mesmo tempo<br />
81
sabia que essa atitu<strong>de</strong> lhe era impossível. Ela o amava, nasceu embaixo <strong>de</strong> sua<br />
cama, era sua companheira no trabalho com o gado.<br />
O entorpecimento causado com a proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> morte faz com que Baleia<br />
pense que vai dormir. Porém, ela se mostra preocupa<strong>da</strong> com a proteção do terreiro<br />
<strong>da</strong> casa:<br />
Uma angustia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras:<br />
àquela hora cheiros <strong>de</strong> suçuaranas <strong>de</strong>viam an<strong>da</strong>r <strong>pel</strong>as ribanceiras, ron<strong>da</strong>r<br />
as moitas afasta<strong>da</strong>s. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo<br />
do caritó, on<strong>de</strong> sinha Vitória guar<strong>da</strong>va o cachimbo (RAMOS, 2000, p.90).<br />
A aflição <strong>da</strong> cachorra é narra<strong>da</strong> em pormenores. Esta é a única passagem <strong>da</strong><br />
narrativa que Graciliano Ramos permitiu construções <strong>de</strong>ste tipo. Ca<strong>da</strong> sentimento<br />
que Baleia sente, o leitor conhece, vive com ela a aflição <strong>da</strong> morte imanente, o<br />
escurecimento <strong>da</strong>s vistas, os <strong>de</strong>lírios e o frio que iam tomando conta do corpo <strong>da</strong><br />
cachorra, à medi<strong>da</strong> que a dormência ia subindo, até chegar em seu peito, on<strong>de</strong><br />
havia um coração que ain<strong>da</strong> batia.<br />
O último parágrafo do capítulo “Baleia” é cercado <strong>de</strong> lirismo. Embutido nele,<br />
encontra-se a idéia <strong>de</strong> que ao acor<strong>da</strong>r do sono mortal Baleia seria feliz <strong>de</strong> novo,<br />
liberta <strong>da</strong> dor e do frio, cerca<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a família que ela tanta amava, imensa, na sua<br />
visão <strong>de</strong> pequenina. E os preás gordos e enormes também estariam lá, povoando o<br />
mundo <strong>de</strong> Baleia e <strong>da</strong> família, que por conta disso jamais sentiriam fome <strong>de</strong> novo, e<br />
po<strong>de</strong>riam seguir juntos, embalados por uma felici<strong>da</strong><strong>de</strong> que, na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, eles só<br />
viveriam nos <strong>de</strong>vaneios <strong>de</strong> Baleia.<br />
A morte <strong>da</strong> cachorra é marca<strong>da</strong> por emoções, recor<strong>da</strong>ções e <strong>de</strong>sejos,<br />
embalados por uma subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> lírica que permeia to<strong>da</strong> a <strong>de</strong>scrição. Essa<br />
aproximação do leitor <strong>da</strong> alma do animal, em muito se assemelha aos episódios<br />
líricos, tanto <strong>pel</strong>a beleza do relato, quanto no momento <strong>de</strong> pura poesia que produz.<br />
Segundo Emil Staiger, em Conceitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> poética, “po<strong>de</strong>-se dizer que<br />
o gênero lírico é a expressão do sentimento pessoal. É a maneira como a alma, com<br />
seus juízos subjetivos, alegrias e admirações, dores e sensações, toma consciência<br />
<strong>de</strong> si mesma no âmago <strong>de</strong>ste conteúdo (1997, p.25)”.<br />
A opção <strong>de</strong> Graciliano Ramos <strong>pel</strong>o uso do discurso indireto livre e <strong>da</strong><br />
onisciência transformou o capítulo “Baleia” num marco. A <strong>de</strong>scrição minuciosa <strong>da</strong><br />
morte do animal (ressaltando-se que o minucioso usado aqui não se refere a uma<br />
82
cena <strong>de</strong> morte narra<strong>da</strong> em todos os seus <strong>de</strong>talhes mais dolorosos ou violentos)<br />
emociona o leitor, que inserido na cena, acaba sofrendo com Baleia, através do<br />
relato dos seus pensamentos.<br />
A linguagem, portanto, foi o gran<strong>de</strong> trunfo utilizado na construção <strong>de</strong> Baleia<br />
no hipotexto, e este representou um gran<strong>de</strong> problema na transposição <strong>da</strong><br />
personagem para o cinema. O hipertexto não tinha um narrador verbal, conforme já<br />
<strong>de</strong>scrito, fazendo com que a cachorra não tivesse um porta-voz. A opção <strong>de</strong> um<br />
narrador em off <strong>de</strong>ixaria o relato frio, distante, o que prejudicaria o resultado <strong>da</strong><br />
transposição, já que se afastaria em muito do sentido do hipotexto, além do fato <strong>de</strong><br />
que a presença do animal em cena per<strong>de</strong>ria todo o brilho.<br />
O cineasta Nélson Pereira teve a resposta para suas dúvi<strong>da</strong>s quanto à<br />
transposição <strong>de</strong> Baleia ao chegar em Palmeira dos Índios e avistar em uma feira,<br />
embaixo <strong>de</strong> uma barraca, sua Baleia. O dono <strong>da</strong> barraca só aceitou ven<strong>de</strong>r a<br />
cachorra se o menino ao lado <strong>de</strong>la, que era sobrinho do mesmo, também<br />
trabalhasse nas filmagens. Acerto feito, o cineasta já tinha sua cachorra e um dos<br />
meninos. O curioso para o cineasta foi saber mais tar<strong>de</strong>, através do relato do próprio<br />
menino, que este não era sobrinho do homem, e que a ca<strong>de</strong>la também não era <strong>de</strong>le.<br />
Estavam ali só por acaso, para se proteger do sol.<br />
Nas primeiras filmagens, Nélson tentava instruir o operador <strong>de</strong> câmera sobre<br />
<strong>de</strong> que forma ele <strong>de</strong>veria focalizar a cachorra. No momento em que se iniciava a<br />
filmagem, porém, na<strong>da</strong> que havia sido combinado entre o cineasta e o câmera<br />
acontecia, pois a cachorra não ia para o lado esperado, e a câmera não conseguia<br />
acompanhá-la. A cena tinha que ser corta<strong>da</strong> e refeita, gastando muito filme, e<br />
conseqüentemente aumentando os gastos com a produção.<br />
A solução encontra<strong>da</strong> <strong>pel</strong>o cineasta foi a <strong>de</strong> assumir pessoalmente a câmera<br />
nas cenas <strong>da</strong> cachorra, e improvisar a seqüência <strong>da</strong> mesma, baseando-se no<br />
comportamento do animal, conforme relato do próprio Nélson:<br />
Se ela saísse para a direita e saísse bem, do ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong><br />
enquadração e composição, eu, imediatamente após, teria que compor o<br />
filme <strong>de</strong> acordo com a saí<strong>da</strong> <strong>de</strong>la. O plano seguinte se fazia em função do<br />
movimento <strong>da</strong> Baleia. De maneira que a Baleia é co-roteirista do filme em<br />
várias seqüências (SANTOS apud GARDNIER; CAETANO, 2007).<br />
83
O resultado <strong>da</strong> transposição <strong>da</strong> morte <strong>de</strong> Baleia, no que se refere à sinha e<br />
aos meninos, é idêntica, tanto no hipertexto quanto no hipotexto. Assistir à toma<strong>da</strong> é<br />
exatamente como ler o livro.<br />
No filme, a câmera subjetiva se encarrega <strong>de</strong> mostrar o <strong>de</strong>sespero <strong>da</strong>s<br />
crianças ao ouvirem o tiro que o pai dá na cachorra, e sinha Vitória faz o sinal <strong>da</strong><br />
cruz, para encomen<strong>da</strong>r a alma do cão.<br />
As toma<strong>da</strong>s que envolveram Fabiano e a cachorra, justamente as mais<br />
difíceis, foram salvas <strong>pel</strong>os jogos <strong>de</strong> câmera, aliados às montagens perfeitas <strong>de</strong><br />
imagem, que conseguem o que a princípio parecia impossível: <strong>da</strong>r emoção à cena<br />
<strong>da</strong> morte <strong>da</strong> cachorra sem a presença <strong>da</strong> fala interior <strong>da</strong> mesma.<br />
A câmera baixa acompanha to<strong>da</strong> a cena, sob o ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> cachorra.<br />
Por este motivo to<strong>da</strong> a carga dramática <strong>da</strong> seqüência é partilha<strong>da</strong> com o espectador,<br />
a ponto <strong>da</strong> imagem ficar turva <strong>de</strong>pois que Baleia toma o tiro, numa tentativa <strong>de</strong><br />
mostrar o torpor <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> lenta <strong>da</strong> morte à envolver a mesma, segundo Christian<br />
Metz, buscando uma impressão <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>:<br />
Vemos a todo momento o fato fílmico ser consi<strong>de</strong>rado, na sua reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
mais geral, como coisa natural e óbvia [...] <strong>de</strong> todos estes problemas <strong>de</strong><br />
teoria do filme, um dos mais importantes é o <strong>da</strong> impressão <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
vivi<strong>da</strong> <strong>pel</strong>o espectador diante do filme. Mais do que o romance, mais do<br />
que a peça <strong>de</strong> teatro [...] o filme nos dá o sentimento <strong>de</strong> estarmos<br />
assistindo diretamente a um espetáculo quase real. Desenca<strong>de</strong>ia no<br />
espectador um processo ao mesmo tempo perceptivo e afetivo <strong>de</strong><br />
participação (1972, p.16).<br />
A última cena do cão mostra somente sua cara, em primeiríssimo plano, e<br />
corta para a imagem <strong>de</strong> preás no terreiro, transpondo o sonho <strong>de</strong> Baleia, numa cena<br />
carrega<strong>da</strong> <strong>de</strong> sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. A cena <strong>da</strong> morte <strong>da</strong> cachorra, portanto, acaba por se<br />
mostrar a mais feliz <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a transposição, por conseguir a<strong>da</strong>ptar para a tela to<strong>da</strong> a<br />
poética que a cena necessitava, tanto na obra <strong>de</strong> saí<strong>da</strong>, quanto na obra <strong>de</strong> chega<strong>da</strong>.<br />
A <strong>montagem</strong> <strong>da</strong> morte <strong>de</strong> Baleia acabou ficando tão perfeita que muitos<br />
acreditavam que a cachorra realmente tinha sido executa<strong>da</strong> durante as filmagens,<br />
tamanha a veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> cena <strong>da</strong> cachorra se arrastando <strong>pel</strong>o terreiro <strong>da</strong> casa,<br />
finaliza<strong>da</strong> <strong>pel</strong>o cerrar <strong>de</strong> olhos <strong>da</strong> mesma:<br />
A <strong>montagem</strong> é o processo em que texturas são manipula<strong>da</strong>s, não só do<br />
ponto <strong>de</strong> vista técnico, mas, também, como meio que conduz o a<br />
espectador a penetrar inadverti<strong>da</strong>mente nos recintos mais escondidos do<br />
84
imaginário: as ilusões se tornam perceptíveis, e, o que é mais importante<br />
ain<strong>da</strong>, visíveis (METZ, 1972, p.19).<br />
O cineasta Nélson Pereira, acompanhado por Luís Carlos Barreto, foi<br />
convi<strong>da</strong>do ain<strong>da</strong> em 1964 para receber o prêmio em Cannes <strong>de</strong>stinado ao filme<br />
Vi<strong>da</strong>s Secas e foi surpreendido <strong>pel</strong>a notícia <strong>de</strong> que, apesar do filme ser um sucesso,<br />
as pessoas estavam muito assusta<strong>da</strong>s com o sacrifício <strong>da</strong> cachorra, fato que gerou<br />
inclusive protestos <strong>de</strong> associações <strong>de</strong> proteção dos animais. A única solução<br />
encontra<strong>da</strong> foi man<strong>da</strong>r a Baleia do hipertexto para Cannes. Segundo Barreto, “fomos<br />
pegá-la no aeroporto e ela foi a gran<strong>de</strong> ve<strong>de</strong>te do festival” (apud GARDNIER;<br />
CAETANO, 2007). A cachorra acabou indo morar com Luís Carlos Barreto, <strong>de</strong>vido<br />
ao tamanho apego que se criou entre eles.<br />
Como num processo <strong>de</strong> tradução intersemiótica, a passagem do texto ao<br />
filme remete à representação <strong>de</strong> signos não verbais a signos verbais. De acordo<br />
com André Bazin “semioticamente o processo <strong>de</strong> a<strong>da</strong>ptação é o prolongamento e a<br />
ampliação <strong>da</strong> essência originária <strong>de</strong> um texto fonte. Dito <strong>de</strong> outra forma: o texto<br />
a<strong>da</strong>ptado proce<strong>de</strong> à renovação e duplicação <strong>da</strong> imanência do original” (1991, p.61).<br />
A transposição pertinente do capítulo Baleia comprova, portanto, a<br />
possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma relação dialógica enriquecedora entre a obra <strong>liter</strong>ária e o<br />
cinema, como o foi na transposição fílmica <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s secas.<br />
85
CONCLUSÃO<br />
Um trabalho <strong>de</strong> pesquisa envolve vários sentimentos, que vão se<br />
transformando até que o mesmo se conclua. Num primeiro momento, quando se tem<br />
apenas o objeto <strong>de</strong> estudo eleito e seu problema, os sentimentos misturam euforia,<br />
com o fato <strong>de</strong> já se ter escolhido um objeto, bem como o que vai ser pesquisado<br />
sobre ele, e preocupação, motiva<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> não se concluir a pesquisa<br />
<strong>da</strong> maneira espera<strong>da</strong>, ou pior, <strong>de</strong> o resultado <strong>da</strong> pesquisa surpreen<strong>de</strong>r<br />
negativamente o pesquisador, que via a obra apenas com olhos <strong>de</strong> leitor, não com<br />
um olhar crítico.<br />
A escolha <strong>da</strong> obra Vi<strong>da</strong>s secas como objeto <strong>de</strong> pesquisa, feita, sem sombra<br />
<strong>de</strong> dúvi<strong>da</strong>s, ain<strong>da</strong> na graduação, provoca<strong>da</strong> por um misto <strong>de</strong> fascínio, curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />
reverência mostrou-se, ao longo do trabalho, indubitavelmente satisfatória. Roland<br />
Barthes usou a expressão “lisibles et scriptibles” (2004, p.18) para <strong>de</strong>finir a diferença<br />
circunstancial que existe entre textos legíveis e escrevíveis. Há textos que<br />
simplesmente se esgotam num prazer <strong>de</strong> leitura, porém outros textos provocam o<br />
leitor no sentido <strong>de</strong> avançar a<strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>quela obra, a escrever e reescrever sobre<br />
ela. A possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> reler o romance sob uma nova perspectiva, mais madura,<br />
criou uma re<strong>de</strong> infinita <strong>de</strong> interpretações <strong>da</strong>s treze narrativas individuais que<br />
compõem a obra.<br />
Vi<strong>da</strong>s secas apresenta seqüência lógica <strong>de</strong> começo, meio e fim, po<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>pel</strong>a<br />
meticulosi<strong>da</strong><strong>de</strong> do autor Graciliano Ramos, que combatia exageros retóricos em<br />
nome <strong>de</strong> um texto limpo, seco, real.<br />
Os preceitos socialistas do autor encontram-se embutidos na obra, no que se<br />
refere à construção dos personagens. Este <strong>da</strong>do se comprova <strong>pel</strong>o fato do autor ter<br />
colocado o governo oligárquico como gran<strong>de</strong> responsável <strong>pel</strong>o sofrimento humano<br />
naquela região. Governo este que <strong>de</strong>fendia interesses <strong>de</strong> uma minoria e permitia<br />
abusos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />
No capítulo “oprimidos e opressores: personagens em choque”, percebe-se<br />
uma crítica severa à proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>, sendo interessante ressaltar-se que o interior<br />
nor<strong>de</strong>stino, ain<strong>da</strong> hoje, é dominado por gran<strong>de</strong>s proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> gado,<br />
pertencentes às mesmas famílias por gerações.
Esta crítica gera outras, relaciona<strong>da</strong>s à má distribuição <strong>de</strong> ren<strong>da</strong>s e, por<br />
conseguinte, à luta <strong>de</strong> classes. Fabiano tinha sua mão-<strong>de</strong>-obra expropria<strong>da</strong> porque<br />
precisava sustentar sua família, e era extorquido <strong>pel</strong>o dominante, o patrão, que se<br />
sentia confortável com a situação do vaqueiro, não se importando em mantê-la. Já<br />
Fabiano se sentia injustiçado, mas permanecia entre a revolta e a passivi<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
aceitando a segun<strong>da</strong> opção, <strong>de</strong>vido a sua impotência.<br />
A escravidão informal também é retrata<strong>da</strong> por Graciliano com bastante<br />
sutileza. Ele mostra que Fabiano tinha para com o patrão uma dívi<strong>da</strong> crônica,<br />
trabalhando para se endivi<strong>da</strong>r ca<strong>da</strong> vez mais. O vaqueiro era obrigado a recorrer ao<br />
patrão para tudo, até mesmo as botinas <strong>de</strong> couro que lhe calçavam os pés<br />
pertenciam a este último. Fabiano <strong>de</strong>via tudo ao patrão, mas acreditava que não<br />
tinha direito <strong>de</strong> queixar-se. Seu <strong>de</strong>stino era fugir. Sem condições <strong>de</strong> sal<strong>da</strong>r suas<br />
dívi<strong>da</strong>s, <strong>de</strong>spojado <strong>de</strong> quase tudo, inclusive do orgulho, acuado <strong>pel</strong>a estrutura social,<br />
<strong>pel</strong>a miséria e <strong>pel</strong>a seca, fugiu, com a pouca mu<strong>da</strong>nça nas costas, carregando<br />
consigo a família e os sonhos.<br />
A estrutura capitular maleável <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s Secas permitiu que a mesma fosse<br />
remonta<strong>da</strong> no cinema. Um filme, a principio, conta com uma história muito bem<br />
liga<strong>da</strong>, seqüencial, com diversos personagens, que se utilizam <strong>de</strong> variados recursos,<br />
como por exemplo, a fala, para se fazerem enten<strong>de</strong>r. O romance Vi<strong>da</strong>s secas,<br />
apesar <strong>de</strong> não aten<strong>de</strong>r aos aspectos acima expostos, foi transposto para o cinema<br />
por Nélson Pereira dos Santos que, ao a<strong>da</strong>ptá-lo, aproveitou-se <strong>da</strong> <strong>montagem</strong><br />
<strong>liter</strong>ária fragmenta<strong>da</strong> <strong>de</strong> Graciliano para fazer sua própria leitura <strong>da</strong> obra,<br />
remontando-a a seu modo.<br />
A gran<strong>de</strong> questão que envolveu to<strong>da</strong> a pesquisa foi até que ponto a<br />
a<strong>da</strong>ptação do cineasta foi pertinente. Não importando, por conseguinte, para o<br />
corpus <strong>de</strong>ste trabalho, investigar a beleza <strong>da</strong> <strong>montagem</strong> cinematográfica do<br />
romance, mas sim sua quali<strong>da</strong><strong>de</strong> como obra transposta do hipotexto para o<br />
hipertexto. A transposição <strong>de</strong> um trabalho <strong>liter</strong>ário para o cinema exige, sobretudo,<br />
a<strong>de</strong>quação às especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> linguagem, sem que as obras percam sua<br />
autonomia.<br />
A análise do hipertexto Vi<strong>da</strong>s Secas, levando-se em consi<strong>de</strong>ração os fatores<br />
políticos e culturais que cercaram a transposição, além é claro, <strong>da</strong> época na qual as<br />
filmagens ocorreram, é a mais positiva possível. O cineasta Nélson Pereira dos<br />
Santos soube colocar a fragmentação do romance a seu favor, o que possibilitou<br />
87
que o mesmo relesse a obra a seu modo, sem feri-la, somente <strong>da</strong>ndo a ela novos<br />
contornos.<br />
A relação dialógica entre o hipertexto e o hipotexto aconteceu <strong>de</strong> forma<br />
bastante coerente e principalmente, respeitosa. O cineasta soube, acima <strong>de</strong> tudo,<br />
incorporar a sua releitura os i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> luta e <strong>de</strong>núncia que compunham o romance, e<br />
os retratou mostrando o flagelo <strong>da</strong> seca através <strong>de</strong> lentes sem filtro e toma<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />
cena subjetivas, que inserem sem perdão o espectador à crua reali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos<br />
personagens.<br />
A transposição <strong>da</strong> cena <strong>da</strong> morte <strong>da</strong> cachorra Baleia, tão lírica na obra escrita,<br />
não se mostrou menos comovente na sua passagem para o hipertexto, levando-se<br />
em consi<strong>de</strong>ração to<strong>da</strong>s as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s físicas que a mesma apresentava.<br />
Ao estu<strong>da</strong>r a a<strong>da</strong>ptação fílmica <strong>de</strong> um romance tão representativo como<br />
Vi<strong>da</strong>s secas, preten<strong>de</strong>u-se contribuir <strong>de</strong> forma direta para com os estudos que hoje<br />
relacionam a ruptura provoca<strong>da</strong> <strong>pel</strong>a leitura cinematográfica à tradição do texto<br />
<strong>liter</strong>ário, além <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> real <strong>de</strong> somar a estudos já concluídos um novo olhar<br />
sobre o Mo<strong>de</strong>rnismo e o Cinema Novo, movimentos tão fecundos quanto vitais no<br />
que se relaciona à produção <strong>de</strong> arte engaja<strong>da</strong> e comprometi<strong>da</strong> no Brasil.<br />
O romance Vi<strong>da</strong>s secas e a catarse que ele provoca merecem sucessivas e<br />
eluci<strong>da</strong>tivas leituras. Essa obra <strong>de</strong>sperta no pesquisador uma sensação <strong>de</strong> respeito,<br />
reverência, mas acima <strong>de</strong> tudo curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> intelectual. A história <strong>da</strong> família<br />
nor<strong>de</strong>stina flagela<strong>da</strong> é, em si, muito comovente. Muito maior, porém, é o<br />
“estranhamento” provocado <strong>pel</strong>o contato direto com o entrelaçamento <strong>da</strong> narrativa,<br />
tão inteligente, tão intrigante e tão maleável, aberta a várias possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
remontagens.<br />
A intersemiótica proposta na a<strong>da</strong>ptação entre o hipertexto e o hipotexto <strong>de</strong><br />
Vi<strong>da</strong>s secas baseia-se, portanto, não na fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> à obra <strong>de</strong> origem, mas sim em<br />
uma nova leitura <strong>da</strong> mesma, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, capaz <strong>de</strong> reviver, criticar e até mesmo<br />
recriar o texto base.<br />
O cineasta Nélson Pereira dos Santos, após a análise <strong>de</strong>sta pesquisa, po<strong>de</strong><br />
ser consi<strong>de</strong>rado duplamente vitorioso. Num primeiro momento, por ter conseguido<br />
transpor <strong>de</strong> forma tão coerente um romance marcado por <strong>de</strong>lica<strong>da</strong>s nuances, e, em<br />
segundo, por oferecer a segui<strong>da</strong>s gerações a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ver na tela uma obra<br />
<strong>liter</strong>ária tão importante, transposta com maestria.<br />
88
O romance Vi<strong>da</strong>s secas, às vésperas <strong>de</strong> completar setenta anos, já ven<strong>de</strong>u<br />
por volta <strong>de</strong> dois milhões <strong>de</strong> cópias, e po<strong>de</strong> ser lido em aproxima<strong>da</strong>mente vinte e oito<br />
idiomas, em trinta e dois paises diferentes. Com certeza, ele <strong>de</strong>ve muito <strong>de</strong> seu<br />
sucesso ao trabalho competente <strong>de</strong> Nélson Pereira dos Santos, que levou a saga <strong>da</strong><br />
família nor<strong>de</strong>stina ao conhecimento e reconhecimento do mundo.<br />
Po<strong>de</strong>-se concluir, portanto, que a hipótese lança<strong>da</strong> nesta pesquisa, basea<strong>da</strong><br />
na idéia <strong>de</strong> que na transposição <strong>da</strong> <strong>montagem</strong> <strong>liter</strong>ária à cinematográfica o diretor<br />
Nélson Pereira dos Santos manteve o caráter <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia social <strong>da</strong> obra, se<br />
confirmou.<br />
Os limites <strong>de</strong>ste trabalho encontram-se na abor<strong>da</strong>gem mais aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
recepção nacional ao filme Vi<strong>da</strong>s secas, levando-se em consi<strong>de</strong>ração a dicotomia<br />
existente entre a opinião favorável <strong>da</strong> crítica cinematográfica, e a <strong>de</strong>sfavorável,<br />
atribuí<strong>da</strong> a gran<strong>de</strong> massa.<br />
Futuras pesquisas <strong>de</strong>vem, no enten<strong>de</strong>r <strong>da</strong> autora, ser realiza<strong>da</strong>s com vistas a<br />
respon<strong>de</strong>r estes questionamento a respeito <strong>da</strong>s opiniões contraditórias sobre o filme<br />
Vi<strong>da</strong>s Secas ocorri<strong>da</strong>s em meios distintos.<br />
O romance Vi<strong>da</strong>s secas e sua a<strong>da</strong>ptação cinematográfica são excelentes<br />
contribuições para a arte nacional, volta<strong>da</strong> a lançar o olhar do Brasil para si mesmo,<br />
como um gigante que <strong>de</strong>sperta para os seus, as vi<strong>da</strong>s que, ain<strong>da</strong> que secas, teimam<br />
em continuar o seu caminho.<br />
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