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ANUNCIATA E SEU HUMOR - CES/JF

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CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DE JUIZ DE FORA<br />

MARIA ANUNCIATTA ELIAS CANTUDO<br />

OS ARTIFÍCIOS DO <strong>HUMOR</strong>:<br />

UMA LEITURA INTERDISCIPLINAR DAS<br />

FÁBULAS FABULOSAS, DE MILLÔR<br />

FERNANDES<br />

Juiz de Fora<br />

2007


MARIA ANUNCIATTA ELIAS CANTUDO<br />

OS ARTIFÍCIOS DO <strong>HUMOR</strong>:<br />

UMA LEITURA INTERDISCIPLINAR DAS<br />

FÁBULAS FABULOSAS, DE MILLÔR<br />

FERNANDES<br />

Juiz de Fora<br />

2007<br />

Dissertação apresentada ao Centro de<br />

Ensino Superior de Juiz de Fora, como<br />

requisito parcial para a conclusão do<br />

Curso de Mestrado em Letras, Área de<br />

Concentração: Literatura Brasileira.<br />

Linha de Pesquisa: Literatura Brasileira:<br />

interdisciplinaridade e intertextualidade.<br />

Orientadora: Dra. Thereza da Conceição<br />

A. Domingues


FOLHA DE APROVAÇÃO<br />

CANTUDO, Maria Anunciatta<br />

Elias. Os artifícios do humor: uma<br />

leitura interdisciplinar das<br />

Fábulas fabulosas, de Millôr<br />

Fernandes. Dissertação<br />

apresentada como requisito<br />

parcial a conclusão do curso de<br />

Mestrado em Letras, área de<br />

concentração: Literatura<br />

Brasileira, do Centro de Ensino<br />

Superior de Juiz de Fora,<br />

realizada no 1º semestre de<br />

2007.<br />

BANCA EXAMINADORA<br />

_________________________________________________________________<br />

Prof. Dr a. Thereza da Conceição Apparecida Domingues<br />

Orientadora Acadêmica<br />

_________________________________________________________________<br />

Prof. Dr a. Maria de Lourdes Abreu de Oliveira<br />

Convidada<br />

________________________________________________________________<br />

Examinado(a) em: ____/____/______.<br />

Conceito: ______________________<br />

Prof. Dr. José Luiz Cazarotto<br />

Convidado


Às forças espirituais, em primeiro lugar;<br />

AGRADECIMENTOS<br />

À minha orientadora, Dra. Thereza da Conceição Apparecida Domingues, que não<br />

mediu esforços para acompanhar os caminhos e descaminhos desta dissertação;<br />

À Dra. Maria de Lourdes Abreu de Oliveira, por tudo que, ela sabe, foi e é para mim;<br />

À Dra. Nícea Helena de Almeida Nogueira, uma luz ;<br />

Ao Dr. José Luiz Cazarotto, por sua inestimável contribuição para que o percurso em Winnicott<br />

pudesse ocorrer com as devidas consistência e segurança;<br />

Ao psiquiatra e psicanalista João Carlos Borges da Silva, cujo entusiasmo e respeito<br />

no trato com o texto freudiano, desde o início incentivou e propiciou a leitura<br />

criteriosa das formulações de Freud sobre os teores do riso;<br />

Aos meus colegas que me apoiaram e alavancaram quando o impulso era preciso;<br />

Ao Dr. William Valentine Redmond, que soube compreender o esforço e amenizá-lo<br />

com seu discreto e fundamental amparo;<br />

Ao Marcos, parceiro de todas as horas;<br />

À minha mãe, Judith, o esteio eterno;<br />

A meus filhos, Marcelo e Bárbara, razões de meu viver e de meu continuar;<br />

Ao William Bosich, por tudo.;<br />

À Maria Elizabeth Sachetto, sempre presente em todos os momentos, nos mais<br />

difíceis, principalmente;<br />

À Sandra Duque, pelo apoio fundamental.


APRESENTAÇÃO<br />

Era uma vez uma menina que continua a imaginar coisas. E de imagem e<br />

imagem passa-lhe um filme na memória, o presente inventando o passado e lhe<br />

dando contornos que só agora, com a nitidez do percurso, se tornam claros.<br />

Era uma vez uma casa humilde, com sua arquitetura sólida e seus problemas<br />

domésticos: por vezes um cano de emoções rachava e inundava o ambiente,<br />

exigindo muitos panos-de-chão para secar tudo e proteger o piso.<br />

No piso onde essa menina andava, havia – quase que por sem mais nem<br />

menos – livros. E em meio a consonâncias e dissonâncias, que às vezes se<br />

alternavam hermeticamente chegando à cacofonia, as letras mantinham sempre ali,<br />

no mesmo lugar, alinhadas da mesma forma, imunes a descompassos, alinhavadas<br />

firmemente. A ela acheguei, nela me aconcheguei.<br />

Conversar, brincar era enfadonho. Gostava mesmo de outros lugares, outras<br />

roupagens, de castelos e carruagens de outras épocas, de países longínquos. E já<br />

que os livros até lá me levavam, lá estava eu excursionando por eles. E como ainda<br />

havia, por gosto de meu pai, livros de aprender outras línguas sem mestre (assim<br />

diziam os títulos) e bonecas, por meu gosto, vestidas a caráter com roupas típicas<br />

de seus países, não podia dar em outra coisa: o gosto por línguas estrangeiras, o<br />

fascínio por mundos repletos de imaginação. Isso se tornou meu maior divertimento<br />

nas horas folgadas do dia e assim quase nada substituía o prazer de mergulhar em<br />

fábulas e contos de fadas. Ali eu podia ser muitas, me multiplicar em Cinderelas e<br />

Belas Adormecidas, ficar avisada da existência de lobo na floresta em que, cada vez<br />

mais, me embrenhava. E quem sabe houvesse, para além disto, algum príncipe?<br />

Isto sim, seria bom!<br />

Sem exageros, encontrei do princípio até hoje, fadas madrinhas e até um<br />

mago que me incentivaram a ficar envolta em folhas e folhas de mais e mais livros.<br />

Desde que fiz o curso de Letras ( na UF<strong>JF</strong> ) e o de Psicologia e o Mestrado em<br />

Educação ( no <strong>CES</strong>-<strong>JF</strong> ) até agora, onde retorno ao princípio como final da trajetória<br />

até aqui – sei lá quantas jornadas me esperam por aí afora nesse mundo muito mais<br />

inverossímil que todos os fabulosos por onde andei me construindo – eis-me às<br />

voltas com um Mestrado em Letras.


Como ninguém está isento de si mesmo, emergem a psicóloga e a pedagoga<br />

(se é que o fato de lecionar há tanto tempo pode ser assim intitulado) para<br />

partilharem com esta, que ora se apresenta, o fato de que as fábulas da infância<br />

adquiriram um outro teor: o recheio. Nada que uma menina cheia de fantasia<br />

pudesse perceber de inédito, mas que a imaginação agitada, como numa colcha de<br />

retalhos, juntou agora pela própria permanência da fantasia. O fato é que há<br />

literatura, psicologia e pedagogia nos contos de fadas e, principalmente, nas fábulas.<br />

Mas que humor é esse? Um que já reside em La Fontaine, um que de livro<br />

em livro, de autor em autor, se encontrava explicitamente num Millôr Fernandes que<br />

se atreve, a esta altura do andar das coisas, a escrever declaradamente fábulas<br />

fabulosas. Então, sem vacilo, decerto seria este o tema de minha dissertação. Mais<br />

que isso se expressa sob este título de Apresentação, todo o texto que reuniu num<br />

só feixe as múltiplas partes de mim, da minha história, num verdadeiro esforço de<br />

fiandeira que sou eu mesma, minhas fantasias, minha imaginação pródiga, meus<br />

alicerces e meus telhados, meu jogo com o mundo e as superações que pude<br />

conquistar ante as contradições que, dentro de mim, calavam fundo e teimavam em<br />

não ficar caladas.<br />

Ah, sim! Eu nasci em Juiz de Fora. Mas esta é outra história, e já que<br />

biografia não é a mesma coisa que memórias, de memórias há o cheiro de um livro<br />

novo, o cheiro de um antigo livro amarelado. Minhas memórias são fábulas de mim<br />

mesma. Mas devo, dado o procedimento – cuidado!!! Quem escreve está envolvido<br />

com a questão do homem – me apresentar formal e sentimentalmente.<br />

Eu me chavama Maria Anunciatta Elias, e meus pais são Judith Bellei E José<br />

Elias. Quando me casei com Marcos Perotti Cantudo, passei a anunciar-me como<br />

Maria Anunciatta Elias Cantudo.<br />

Tenho dois filhos, para mim, fabulosos: Marcelo Elias Perotti Cantudo e<br />

Bárbara Elias Perotti Cantudo.<br />

Que mais posso dizer de mim?! Não sei, acho que nada mais. Se for para<br />

falar de pessoas amigas, não tenho – realmente – palavras. Talvez um dia as<br />

encontre, para dizer melhor e de forma mais apurada, o quanto ela, com sua<br />

aparição neste ou naquele momento, fizeram de mim alguém melhor do que eu<br />

podia supor, mesmo nas minhas fantasias com princesas, castelos, e tudo mais.


RESUMO<br />

CANTUDO, Maria Anunciatta Elias. Os artifícios do humor: uma leitura<br />

interdisciplinar das Fábulas Fabulosas, de Millôr Fernandes. Dissertação (Mestrado<br />

em Letras). Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2007.<br />

Da teoria freudiana extrai-se toda a textura do riso que aqui nos interessa, pois é<br />

esta mesma que Millôr avaliza quando se trata de questões de Humor. Segundo<br />

Freud, há sempre um teor de agressividade e, até mesmo, de crueldade quando o<br />

riso provém de arquiteturas humorísticas. Winnicott concorda e, um pouco adiante,<br />

vincula agressividade e criatividade, até ao ponto de assegurar a toda arte uma<br />

crueldade constitutiva. Millôr não fica atrás e impõe ao Humor, ao seu Humor<br />

sobretudo, uma lucidez impiedosa que, perpassando-lhe as fábulas, confere-lhes<br />

uma moral que nunca é moralizante, mas enfrentamento, e até mesmo<br />

afrontamento, de toda e qualquer realidade que se pretenda restritiva e imutável em<br />

seus parâmetros. Dialoga, risonhamente, com La Fontaine e chega a servir-se de<br />

escopo para apenas brincar com o som das palavras, jogando com estas até obrigá-<br />

las a perderem o sentido para dar lugar aos sentidos, pluralizando assim suas<br />

possibilidades para melhor livrá-las de qualquer impossibilidade. Mas quando chega<br />

a hora de apontar o cenário em que se encenam as vãs filosofias, é efetivamente,<br />

alerta e alertador; sem nunca deixar de ser o humorista que prefere indicar como<br />

verdadeiro cerne de sua multifacetada produção.<br />

Palavras-chave: Literatura Brasileira; Psicologia; Cômico; Humor; Agressividade;<br />

Millôr Fernandes.


ABSTRACT<br />

From Freudian theory we extract all the laughter’s texture that interests us here,<br />

since it is this one that Millôr takes out when questions of humor are the matter.<br />

According to Freud, there is always some aggressiveness and even cruelty when<br />

laughter arises from humoristic schemes. Winnicott agrees and, further on, unites<br />

aggressiveness and creativity, up to the point where he insures a constructive cruelty<br />

to all art. Millôr does not stay himself far from that and imposes to Humor, to his own<br />

Humor above all, a pitifuless lucidity that, throughout the fables, he states them some<br />

morale that is never moralizing, but it provokes confront, and even confrontation, of<br />

all and any reality that intends to be constraining and immutable in its parameters. It<br />

dialogues, smilingly, with La Fontaine and turns out to be a scope only to play with<br />

the sound of words, fiddling with them until they lose meaning to give place to<br />

multiple meanings, pluralizing in this way their possibilities to free them from any<br />

impossibility. But when it is time to indicate the setting in which vain philosophies are<br />

acted out, it is effectively caution and cautionary; without ever giving up being a<br />

humorist who prefers to indicate it as the true heart of his multifaceted production.<br />

Keywords: Brazilian Literature; Psychology; Comic; Humor; Aggressiveness; Millor<br />

Fernandes.


SUMÁRIO<br />

INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 9<br />

1 A TEXTURA DOS LAÇOS......................................................................... 12<br />

2 ARQUITETURAS DO RISO....................................................................... 22<br />

2.1 CONCLUSÕES INTRODUTÓRIAS............................................................ 22<br />

2.2 CHISTE OU DITO ESPIRITUOSO............................................................. 24<br />

2.2.1 Jogo de palavras ........................................................................................ 27<br />

2.2.2 Gracejo ...................................................................................................... 28<br />

2.2.3 Chistes inocentes ....................................................................................... 28<br />

2.2.4 Chistes tendenciosos ................................................................................. 29<br />

2.3 CÔMICO .................................................................................................... 36<br />

2.3.1 Cômico ingênuo ......................................................................................... 39<br />

2.3.2 Cômico propriamente dito........................................................................... 43<br />

2.4 <strong>HUMOR</strong> ..................................................................................................... 47<br />

3 LÓGICA DA AGRESSIVIDADE................................................................. 50<br />

3.1 CRIATIVIDADE COMO PREMISSA........................................................... 51<br />

3.2 PRO<strong>CES</strong>SO TRANSITIVO E ESPAÇO POTENCIAL................................ 51<br />

3.3 AGRESSIVIDADE PARA ULTRAPASSAR-SE.......................................... 55<br />

3.4 CRUELDADE E CRIATIVIDADE................................................................ 61<br />

4 FÁBULOSAS E FERINAS MORAIS DO <strong>HUMOR</strong>..................................... 65<br />

4.1 NOVAS CONCLUSÕES INTRODUTÓRIAS.............................................. 65<br />

4.2 MILLÔR E FREUD: CONVERGÊNCIAS.................................................... 67<br />

4.3 LA FONTAINE E MILLÔR: TRADIÇÃO E RUPTURA?.............................. 73<br />

4.3.1 Justificativas................................................................................................ 73<br />

4.3.2 Esclarecimentos.......................................................................................... 74<br />

4.3.3 Contrapontos.............................................................................................. 80<br />

4.4 FÁBULAS FABULOSAS E UM POUCO MAIS ALÉM................................ 85<br />

CONCLUSÃO ...................................................................................................... 93<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 96<br />

ANEXOS .............................................................................................................. 101


INTRODUÇÃO<br />

A trajetória parte de interseções, intertextualidades e interdisciplinaridade em<br />

recortes que aproximam, propriamente, literatura e psicanálise com o fio<br />

fundamental que enlaça e conjuga os dois saberes humanos ao Humor, para<br />

demarcar o território onde Millôr, enfim, se inscreve e constrói suas especificidades.<br />

Uma delas – a que o presente trabalho tomou por foco – é a de fabulista.<br />

Esta primeira investida envereda, então, pelos estudos literários sobre a<br />

paródia e a estilização, de forma sumária. E situa Millôr onde lhe cabe exercer sua<br />

arte quando se trata das Fábulas fabulosas. Outros conceitos correlatos movem-se<br />

fora do âmbito dessa dissertação e não por causa de Millôr, mas sim por conta do<br />

foco escolhido para abordar sua inquieta multiplicidade.<br />

Dentro desta restrição, contudo, deu-se a ele a devida autoridade para<br />

determinar os parceiros de percurso, exceto um: Winnicott. Este entra em cena por<br />

convocação.<br />

Nunca citado por Millôr, têm contudo muito a dizer e a ouvir um e outro.<br />

Apresentá-los sempre foi o propósito primeiro desta dissertação. Sem dispensar<br />

todas as outras perspectivas, a de Winnicott, seguramente a mais prevista, não<br />

poderia faltar.<br />

Este estudo das Fábulas de Millôr Fernandes não se faz sem enfrentar<br />

algumas dificuldades sendo a maior parte delas oriundas das escolhas que se<br />

tornaram imperativas.<br />

Logo de início, cabia abordar uma teoria do riso e dela extrair o que<br />

peculiarmente dizia respeito ao Humor e sua essência. Dentre as várias existentes,<br />

e seus enfoques diversos, deu-se voz exclusiva às formulações freudianas; o que,<br />

num primeiro momento pareceria bastante impróprio, dada a crítica ferina e<br />

contumaz que Millôr faz à psicanálise. A contradição entre os termos, mais tarde se<br />

revelará apenas aparente, para surpresa dos mais apressados.<br />

As concepções de Freud sobre a questão do riso foram apresentadas na<br />

íntegra, pois era imprescindível seguir-lhe o percurso nos ditames do chiste, do<br />

cômico e do Humor para que a caracterização deste se tornasse clara, por<br />

intermédio de uma análise diferencial. Esta tarefa ocupa toda a primeira parte do<br />

trabalho em curso.<br />

9


Embora as três arquiteturas do riso se componham com algum teor de<br />

agressividade, no Humor — grafado assim, com maiúscula, devido à específica e<br />

especial posição que Freud lhe confere — este elemento adquire extrema<br />

importância, dada não só por seu caráter imprescindível como também pelo<br />

específico contexto que toma como alvo: a realidade opressiva e constrangedora.<br />

Vista por este ângulo, esta agressividade se reveste de uma função eminentemente<br />

transformadora, se comporta como ultrapassagem dos contornos estabelecidos. E<br />

convoca uma teoria própria, onde se apresente exatamente com tais feições.<br />

Este é o lugar de Winnicott, a quem se dedica a segunda parte do trabalho.<br />

Ao enveredar, cada vez mais profundamente, pelo papel representado pela<br />

agressividade na construção do sujeito humano em suas relações com o ambiente<br />

(com o outro), Donald Winnicott abre um horizonte insuspeitado. Antes, toda<br />

potência agressiva já trazia em seu bojo uma destrutividade imperiosa, e depois dele<br />

esse procedimento se torna um último recurso no processo de ultrapassagem, este<br />

sim o verdadeiro sentido das experimentações agressivas.<br />

Winnicott, ao aproximar intrinsecamente criatividade e agressividade, confere<br />

a esta última um valor absolutamente distinto daquele que, na maioria das vezes, lhe<br />

era atribuído. Esta concepção é fundamental para reconhecer seu papel no<br />

engendramento do riso que deriva do Humor.<br />

Por fim, e numa terceira parte, passa-se a tratar propriamente do Humor de<br />

Millôr Fernandes e, mais uma vez, a questão da escolha se apresenta como<br />

dificuldade. É que sua produção é não só volumosa como dispersa em revistas,<br />

jornais e livros — estes, muitas vezes, há muito não reeditados —, além do feitio<br />

múltiplo que vai de charges a poemas e hai-kais e peças de teatro e artigos e<br />

fábulas. Optou-se por estas, por algumas devidas razões que serão apresentadas e<br />

justificadas logo antes de iniciar-se a abordagem das mesmas.<br />

Esta custosa delimitação do material não aboliu todos os incômodos, uma vez<br />

que as fábulas de Millôr são numerosas e uma restrição a mais não poderia ser<br />

evitada. Esta foi a complicação mais difícil de contornar. De opção em opção,<br />

chegou-se ao seguinte critério: primeiro apresentar as fábulas de Millôr que são<br />

correspondentes às do mais conhecido e divulgado dos fabulistas: La Fontaine<br />

(sendo ele mesmo alguém que dialogou com seus principais antecessores);<br />

segundo, aquelas que representam os temas mais caros e recorrentes em Millôr;<br />

10


terceiro, aquelas cuja contundência do Humor não deixa dúvidas quanto à essência<br />

e função desse.<br />

Os anexos representam, como de costume, aquilo que interromperia o fluxo<br />

do texto, caso dele participassem, mas que não podem ser excluídos do corpo do<br />

trabalho sem incorrer no temível risco de torná-lo muito precário na realização de<br />

seus propósitos.<br />

Dito isto, não é sem importância salientar que enquanto as teses sobre a<br />

agressividade e seu verdadeiro âmbito são desenvolvidas exclusivamente dentro<br />

dos textos winnicottianos pertinentes, as concepções freudianas sobre o riso e, mais<br />

especificamente sobre o Humor, e as declarações que Millôr faz a este respeito,<br />

dialogam todo o tempo e se servem das mais variadas oportunidades, nem sempre<br />

contidas nos textos aqui escolhidos para melhor representá-los. Assim, cartas e<br />

alguns artigos esparsos de Freud e muitas intervenções de Millôr, para além do<br />

campo das fábulas, são convocados para entrar em cena.<br />

Não se pode dizer, pelo exposto, que o entrelaçamento seja fácil, mas<br />

procurou-se manter os diversos fios em suas devidas e necessárias posições no<br />

tear. Vejamos que tecido daí resulta.<br />

11


1 A TEXTURA DOS LAÇOS: Interdisciplinaridade e intertextualidade<br />

O jogo interdisciplinar que se torna mais e mais presente a partir da segunda<br />

metade do século XX, tem em Edgar Morin seu agenciador mais presente,<br />

persistente e produtivo. De fato, “ é imperativo creditar a Edgar Morin o papel de<br />

grande artesão do pensamento complexo e da idéia de complexidade”. (ALMEIDA,<br />

1997, p.30).<br />

Com uma obra volumosa, onde reúne rigor, método e poesia, Morin encontra-<br />

se no cerne das discussões sobre interdisciplinaridade ou, como ele prefere,<br />

pensamento complexo:<br />

O pensamento complexo tenta religar o que o pensamento disciplinar e<br />

compartimentado disjuntou e parcelarizou. Ele religa não apenas domínios<br />

separados do conhecimento, como também — dialogicamente — conceitos<br />

antagônicos como ordem e desordem, certeza e incerteza, a lógica e a<br />

transgressão da lógica. É um pensamento da solidariedade entre tudo o que<br />

constitui nossa realidade; que tenta dar conta do que significa<br />

originariamente o termo complexus: ‘o que tece em conjunto’, e responde ao<br />

apelo do verbo latino complexere: ‘abraçar’. O pensamento complexo é um<br />

pensamento que pratica o abraço. Ele se prolonga na ética da<br />

solidariedade.<br />

Ao mesmo tempo, o pensamento complexo redescobre o individual, o<br />

contingente e o perecível que haviam sido desprezados pela metafísica,<br />

pela ciência e pela técnica ocidental (1997, p.11-12).<br />

O entrelaçamento que aqui se faz entre Freud, Winnicott e Millôr segue<br />

exatamente tal perspectiva, mantendo todos os requisitos que exige a cautela.<br />

1.1 PSICANÁLISE E LITERATURA: um diálogo visceral<br />

Com a emergência dos estudos interdisciplinares em oposição ao paroxismo<br />

das especializações tornaram-se cada vez mais evidentes os nexos entre a literatura<br />

e as outras áreas do conhecimento e do lazer humanos. Os agenciamentos da<br />

interdisciplinaridade “ instigam a uma ampliação dos campos de pesquisa e à<br />

aquisição de competências” (CARVALHAL, 1998, p.74), que antes estavam<br />

totalmente fragmentadas, apontando ou estabelecendo as relações entre literatura e<br />

outras formas de arte ou áreas de conhecimentos e expressão.<br />

Lançando o olhar em direção à literatura, “hoje em dia, todo um cabedal de<br />

conhecimentos foi posto à disposição da crítica literária — da sociologia à<br />

12


psicanálise, da matemática à cibernética —, abrindo-se novos horizontes para uma<br />

compreensão global do fenômeno literário” (DOMINGUES, 2002, p.19). Neste<br />

sentido a crítica intertextual, “ embora reconheça a autonomia do fenômeno literário<br />

[...], abre-se para o princípio interdisciplinar da investigação literária, ao considerar<br />

que todo texto insere-se na história e na sociedade [...]” (IBIDEM).<br />

De fato,<br />

Quem trabalha com literatura sabe de seu caráter interdisciplinar. Este traço<br />

básico tem proporcionado a multiplicidade de abordagens do texto literário a<br />

partir do que se convencionou chamar de “correntes críticas” ou “escolas<br />

teóricas”. Quanto mais complexas e variadas as ramificações do<br />

pensamento artístico, científico e filosófico, maior número de “leituras” tornase<br />

possível. Pode-se falar de leituras sociológicas, históricas, psicanalíticas<br />

ou filosóficas, para ficar em alguns exemplos. O crítico literário ou o<br />

estudioso de literatura tem obrigação de se informar sobre a dinâmica de<br />

tais formas de conhecimento, devido aos enigmas propostos pelo texto<br />

literário como discurso simbólico (KHÉDE, 1984, p.7).<br />

Sabemos que a psicanálise — que, dentre os vários saberes que se<br />

entrelaçam com os estudos literários no campo da interdisciplinaridade é o que aqui,<br />

particularmente, interessa — tem claras e evidentes relações com a literatura, e em<br />

sua maior parte, de dívida.<br />

Cinco anos antes de publicar o livro que viria ser considerado o inaugurador<br />

da psicanálise — o volumoso e detalhado texto sobre os sonhos — Freud era um<br />

neurologista às voltas com um novo método para o tratamento dos distúrbios<br />

histéricos e escreve, com Breuer, artigos teóricos e relatos de casos com o intuito de<br />

apresentar os elementos constitutivos deste método terapêutico à comunidade<br />

científica.<br />

observar:<br />

Na descrição de um destes percursos clínicos, Freud faz questão de<br />

Nem sempre fui psicoterapeuta. Como outros neuropatologistas, fui<br />

preparado para empregar diagnósticos locais e eletroprognose, e ainda me<br />

surpreende que os históricos de casos que escrevo pareçam contos e que,<br />

como se poderia dizer, eles se ressintam do ar de seriedade da ciência.<br />

Devo consolar-me com a reflexão de que a natureza do assunto é<br />

evidentemente a responsável por isso, antes do que qualquer preferência<br />

minha (1974c, p.209-210).<br />

13


Após a publicação de A interpretação dos sonhos uma nova surpresa o<br />

aguarda. Um jovem psiquiatra de Zurique — Carl Gustav Jung —, que se interessara<br />

profundamente pelo livro e vinha mantendo constantes contatos com Freud, chama<br />

sua atenção para uma novela, editada em 1903, de Wilhelm Jensen onde a<br />

personagem central aparece às voltas com sonhos que se mostram perfeitos<br />

representantes da arquitetura que Freud lhes atribuiu. Interessado e preso à certeza<br />

de que Jensen se servira de sua obra sobre os sonhos para compor as expressões<br />

oníricas ali descritas, Freud leu atentamente a pequena novela e escreveu sobre ela.<br />

Chegou a propor um encontro com Jensen e só então soube que ele sequer o<br />

conhecia, nem jamais havia lido o que escrevera.<br />

Então alguém escrevera um sonho inventado exatamente como ele seria se<br />

fosse efetivamente sonhado? Mas como?<br />

Sua tentativa de correspondência com escritores, como Jensen, por<br />

exemplo, foram totalmente malogradas no objetivo de encontrar nos<br />

mesmos o reconhecimento das fontes de onde emana a criação. Isto não<br />

impede contudo que Freud consiga revelar o quão aparentada é a atividade<br />

do psicanalista com a do poeta (CHEBABI, 1984, p.110).<br />

Isto ficará explícito um pouco mais tarde quando escreve o ensaio sobre<br />

Escritores criativos e devaneio. Mas já se encontra no ensaio sobre a Gradiva, de<br />

Jensen, a seguinte afirmação:<br />

os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser<br />

levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de<br />

coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos<br />

deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento<br />

da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à<br />

ciência (FREUD, 1976c, p.18).<br />

O que aproximaria tão intrinsecamente estes dois parceiros: A literatura e a<br />

psicanálise? Pergunta crucial que requer consistente resposta:<br />

Para tanto é preciso retroceder à fonte comum de ambos os saberes. Se é<br />

verdade que em cada ser humano mora um poeta também é verdade que a<br />

ocupação mais querida e intensa da criança é o brinquedo ou o jogo (Spiel,<br />

em alemão) (CHEBABI, 1984, p.110).<br />

Freud, rigorosamente, brinca com as palavras que estão à disposição em sua<br />

língua, pois “o brinquedo da palavra é muito sério” (IBIDEM, p.111), mas isto só<br />

14


pode ser devidamente levado às últimas conseqüências se a atenção perceber que<br />

“a antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real”. (FREUD, 1976, p.149).<br />

Assim, “os dispositivos de que se utiliza o artista tornam-se apresentáveis como<br />

Spiele (como brinquedos): Lustspiel (comédia), Trauerspiel (tragédia) e o ator de<br />

teatro é o Schauspieler (aquele que brinca para se olhar). A arte realiza o milagre de<br />

transformar em fonte de prazer muita coisa que tem o caráter doloroso,<br />

precisamente pelo brinquedo da fantasia”, da ficção (CHEBABI, 1984, p.111).<br />

Wilson de Lima Chebabi, no conciso e preciso artigo sobre literatura e<br />

psicanálise, que tem surgido aqui com tanta freqüência exatamente pelo fato de<br />

representar esta admirável sinergia, é quem reúne os diversos elementos, num<br />

conjunto onde a interdisciplinaridade se torna evidente e produtiva.<br />

Cada criança que brinca comporta-se como um poeta ao criar um mundo<br />

próprio, ou melhor dizendo, muda as coisas de seu mundo para uma ordem<br />

que lhe atenda melhor os desejos. Seria pois incorreto supor que a criança<br />

não leva o mundo a sério; ao contrário, ela considera o seu brinquedo algo<br />

muito grave e emprega montantes de afeto muito grandes nesse ato. Ela<br />

distingue contudo o seu brinquedo da “realidade” e apóia nas coisas visíveis<br />

do mundo “real” apreensível os seus objetos imaginários e suas relações. O<br />

que diferencia o brinquedo do fantasiar é justamente esse encosto em<br />

coisas do mundo externo. O literato faz a mesma coisa que a criança<br />

quando brinca, ele cria um mundo de fantasia que ele leva a sério, que ele<br />

equipa com grandes importâncias de afeto e que diferencia da "realidade”.<br />

(IBIDEM, p. 110-111).<br />

Quando a realidade entra em cena e cobra seus devidos impostos, o brincar<br />

infantil — tema que se tornou extremamente caro ao pediatra e psicanalista Donald<br />

Woods Winnicott — cede lugar a um brincar adulto, posto que o brincar não se deixa<br />

exonerar de seu cargo nem mesmo pela mais crua e impositiva das realidades. Um<br />

prazer conhecido jamais abre mão de continuar a sê-lo (Cf. FREUD, 1976d, p.151).<br />

Assim, “o chiste e o humor são brincadeiras de gente grande”. (CHEBABI, 1984,<br />

p.111).<br />

Eis onde outra radical interseção entre literatura e psicanálise se fazem. A<br />

paródia é que o diga.<br />

1.2 CONTRIBUIÇÕES DO RIDÍCULO NA TRAMA INTERTEXTUAL<br />

Se o termo paródia tornou-se usual apenas a partir do século XVII, isto não<br />

significa que a forma assim designada não existisse desde muito antes. Já<br />

15


Aristóteles, em sua Poética, utiliza o termo ao se referir ao uso do estilo épico para<br />

ridicularizar ao invés de enaltecer os atos heróicos (Cf. SAN’ANNA, 1985, p.11).<br />

No campo dos estudos literários, cabe distinguir paródia de estilização. No<br />

caso da primeira, um texto qualquer se calca sobre anteriores para imitá-los<br />

enquanto traça-se num sentido totalmente diverso, formando um verdadeiro<br />

antagonismo sob a capa da identificação. Por outro lado a estilização consiste em<br />

tecer outro texto com os mesmos elementos estilísticos que regem outros<br />

anteriores, sem qualquer necessidade subjacente de antagonismo.<br />

A tentativa de, efetivamente, distinguir uma e outra forma de engendrar um<br />

novo texto sobre matrizes anteriores revela, de fato, a possibilidade não pouco<br />

freqüente, de que ambas se entrelacem e confundam. Millôr Fernandes, a cuja obra<br />

se dedica o presente trabalho, em suas Fábulas fabulosas ora faz uma, ora ambas<br />

as coisas, mas nunca apenas estilização, à qual dedicou uma série específica de<br />

textos esparsos (Cf. FERNANDES, 1974b, p.22-23; p.49).<br />

Esta questão não se reduz a mero detalhismo teórico, uma vez que “podemos<br />

falar de diversos tipos de relações intertextuais — a presença da obra de um autor<br />

na de outro [...]; de determinada época numa obra [...]; de outras obras do autor em<br />

sua própria obra [...]” (DOMINGUES, 2001, p.22).<br />

De fato, ao longo da produção millôriana encontram-se diversos exemplos de<br />

declarada estilização — declarada explicitamente, quando então o título se faz<br />

acompanhar de um texto entre parênteses, com o invariável enunciado: à maneira<br />

de... .<br />

Quando Millôr é paródico, mas o principal elemento do antagonismo é a<br />

estilização, isto também é declarado, como, por exemplo no caso do “IF” ... – 1960,<br />

onde faz questão de declarar: não à maneira de Rudyard Kipling (Cf. FERNANDES,<br />

1974, p.92-93)<br />

Não é o caso das Fábulas fabulosas, quando a estilização, se existe, é<br />

também declarada — através de à maneira de(dos) — mas está sempre submetida<br />

à dominância paródica, ao jogo de oposições, ao efeito surpreendente do qual<br />

resulta o riso. Mas o Humor vai além. Se brincar com palavras é coisa séria, muito<br />

séria, então o Humor feito na palavra, é algo que mantém-se como brincar para<br />

parodiar a realidade e suas formas demasiado restritas de interlocução com o<br />

mundo humano. Se, como observava Freud, o contrário da brincadeira é a realidade,<br />

16


o brincar, para criar, parodia a realidade como melhor forma de a ela se opor e de<br />

impor-lhe sua estratégia ficcional.<br />

Eis onde a psicanálise e a poética (ou literatura, como preferirem) melhor se<br />

encontram neste trabalho sobre Millôr. Nele, Millôr, o Humor é insistência de<br />

parodiar a realidade e, se uma das facetas disto volta-se para a escrituração de<br />

fábulas, faz disto um diálogo com o mais mordaz dos fabulistas — já que todos o<br />

foram — para daí retirar morais não moralizantes e jogar com mais e mais<br />

mordacidade até chegar ao ponto de revelar os francos vínculos entre criatividade e<br />

agressividade, que Freud já havia antevisto quando se tratava de Humor e Winnicott<br />

assegurou como fundamental imbróglio em toda expressão do brincar adulto.<br />

Quando quer fazer paródia, Millôr pode ser um “estilizador desrespeitoso”<br />

(SANT’ANNA, 1985, p.46), quando quer fazer estilização, pode ser paródico ou não.<br />

Seja o que for, continua Humorista — como ele mesmo se declara 1 —, e para assim<br />

permanecer em sua relação com outros autores, determinados gêneros e mesmo<br />

com anteriores produções suas (Cf. DOMINGUES, 2001, p.22). Recentemente,<br />

aliás, Millôr reviu Vão Gôgo, seu alter-ego de muito tempo atrás e estilizou-se,<br />

parodiou-se, riu-se de si, criticou-se e refez-se, ao pé da letra (Cf. FERNANDES,<br />

1998, p. 5-160).<br />

Mas quem é Vão Gôgo? É o próprio Millôr quem o apresenta:<br />

Vão Gogo (Emmanuel). Durante muitos anos usei esse pseudônimo.<br />

Emannuel (de Kant) e Vão Gogo, paronímia de Van Gogh, pintor por quem<br />

tive grande admiração. Além disso Vão dava a idéia de leviano e Gogo é<br />

doença de garganta de aves, uma espécie de psitacose. Tudo no estilo<br />

clássico dos Humoristas usarem nomes ridículos ou de falsa pompa. Um dia<br />

percebi que não havia diferença entre o que eu escrevia como Millôr<br />

Fernandes ou Vão Gogo. E abandonei definitivamente o pseudônimo<br />

(FERNANDES, 1974b, p.233).<br />

De tudo um pouco fez Millôr e se estivéssemos aqui às voltas com tudo o que<br />

ele fez, precisaríamos perpassar por conceitos que migraram das artes plásticas<br />

para a literatura e vice-versa, por elementos de inscrição filosófica que inseminaram<br />

a criação literária e vice-versa, por acepções antropológicas, sociológicas e<br />

históricas que migraram para o campo do texto ficcional e vice-versa, por estudos<br />

literários que geraram fazeres literários e vice-versa. Mas, prudentemente, deixamos<br />

para outros investigadores o incurso na multiplicidade que habita Millôr e o tomamos<br />

1 Ver Notas de um ignorante no anexo B.<br />

17


por um único fio: o que tece suas Fábulas fabulosas. E, como se verá, não é,<br />

exatamente, pouco o esforço que requer do nosso tear tal escolha.<br />

1.3 DE VOLTA À COMPLEXIDADE INTERDISCIPLINAR<br />

Dito, então, isso, é preciso ir ainda um pouco além e voltar a Freud e suas<br />

relações com a literatura, para destacar, enfim, dois pontos importantes.<br />

Silberstein:<br />

Em 1874, quando contava 18 anos, ele escreve a seu amigo Eduard<br />

Não julgo, de forma alguma, como dizem alguns estetas, que, de acordo<br />

com a letra da lei burguesa e mosaica, tudo o que é aético é também<br />

apoético [...]. Mais do que isso, a poesia pode, apoiada no ímpeto de nossas<br />

paixões, e com segurança, transfigurar um tanto mais poeticamente o aético<br />

ou, melhor, aquilo que a sociedade declara proibido (FREUD, 1995, p.75).<br />

Pouco mais de uma semana depois, ei-lo novamente às voltas com a questão<br />

e um pouco mais:<br />

Nossas cartas [...] serão tão multiformes como a nossa própria vida. Nas<br />

nossas cartas, converteremos os seis prosaicos e brônzeos dias de trabalho<br />

em puro ouro da poesia e talvez descubramos que se possa encontrar em si<br />

próprio e no que permanece e varia em nosso redor um número suficiente<br />

de coisas interessantes, bastando que, para isso, a gente apenas se<br />

acostume a prestar atenção. Além disso, confesso que sinto necessidade de<br />

me manter informado também sobre o que acontece [...] noutras ciências, a<br />

fim de escapar ao perigo da imobilidade (p. ex.: Médico já bolorento), a que<br />

está sujeito todo indivíduo que se dedica a uma especialidade (IBIDEM,<br />

p.77).<br />

As relações de Freud com a literatura e as outras áreas do saber emergem de<br />

maneira exemplar nestas cartas de juventude.<br />

Cerca de dez anos mais tarde, em 1883, o médico recém formado já se<br />

encontrara com Breuer, de quem ouvira o relato de um caso de histeria que o<br />

deixara particularmente intrigado. “Interessado no caso de Anna O. e relendo D.<br />

Quixote, escreve à Martha que se acha dispersivo e mais interessado em ler D.<br />

Quixote do que em estudar anatomia cerebral” (PERESTRELLO, 1995, 33). De fato,<br />

Freud “já o havia lido quando criança. Por volta dos dezesseis anos, aprende<br />

espanhol para reler Cervantes. Na época da carta à Martha, já se trata de sua<br />

terceira leitura de Quixote” (IBIDEM, p.33n).<br />

18


Freud, como se pode depreender pela leitura de sua obra, de fato utilizou-se,<br />

em todo o percurso, de várias perspicácias advindas da literatura. A lista de seus<br />

autores-parceiros é enorme e não caberia nome a nome no escopo deste trabalho 2 .<br />

Mas é importante notar que ele mesmo, Freud, seria surpreendido por um prêmio<br />

literário, na verdade o único que recebeu em toda a sua vida.<br />

James Strachey, mais conhecido como editor e tradutor das obras completas<br />

de Freud para o inglês, tem esta posição largamente superada pelo inestimável<br />

trabalho representado pelas notas e comentários que acrescentou aos textos, onde<br />

realiza um verdadeiro mapeamento do território abrangido pela vasta produção<br />

freudiana. As informações a seguir são recolhidas da introdução que faz aos<br />

pequenos textos de Freud reunidos em torno do título O prêmio Goethe, e são<br />

transcritas literalmente:<br />

Em 1927, a cidade de Frankfurt criou o ‘Prêmio Goethe’, que deveria ser<br />

anualmente concedido a ‘uma personalidade de realizações já firmadas cuja<br />

obra criadora fosse digna de uma honra dedicada à memória de Goethe [...].<br />

Por sugestão de Alfons Paquet, homem de letras bem conhecido e<br />

secretário dos curadores do fundo, decidiu-se conceder o prêmio de 1930 a<br />

Freud, o que foi anunciado a este [...] numa carta de Paquet datada de 26<br />

de julho de 1930 [...], a que Freud respondeu a 3 de agosto. Era costume,<br />

como Paquet explicava em sua carta, que o prêmio fosse entregue a 28 de<br />

agosto de cada ano, numa cerimônia realizada na casa de Frankfurt em que<br />

Goethe nascera, em que o contemplado aí fizesse um discurso, ilustrando<br />

sua própria relação interna com Goethe (STRACHEY, 1974b, p.238-239).<br />

A carta-resposta de Freud a Alfons Paquet é, no mínimo, a reafirmação de<br />

que os homens de letras o fascinam pela agudeza com que captam o que a<br />

psicanálise se esforça por tentar acessível ao pensamento científico.<br />

Após dizer-se não propriamente acostumado a honrarias públicas e fazer<br />

questão de não negar o quanto aquela específica lhe enchera de prazer, ele<br />

continua inquieto:<br />

Desejo particularmente agradecer-lhe por sua carta; ela me comoveu e<br />

espantou. À parte sua penetração simpática da natureza de minha obra<br />

nunca antes encontrara as intenções pessoais e secretas por trás dela<br />

identificadas com tal clareza como o senhor o fez, e gostaria muito de lhe<br />

perguntar como veio a ter esse conhecimento (FREUD, 1974b, p.240).<br />

2 A psicanalista e poetisa Marialzira Perestrello dedicou-se a isto num livro sobre a formação cultural de Freud<br />

onde suas relações com a literatura são pontuadas com raros beleza e rigor. Vide referências bibliográficas.<br />

19


Deve-se atentar para o fato de que, nessa carta, a sintaxe “comoveu e<br />

espantou”(IBIDEM), representa uma seqüência de sentimentos onde a comoção<br />

vem antes do espanto, o que é, no mínimo, singular e pouco provável. Exceto se o<br />

homem que escreve, afeito que é ao preciso delinear dos sentimentos humanos,<br />

tenha escolhido tal encadeamento por este corresponder exatamente ao ocorrido, ou<br />

seja, que a primeira reação foi exatamente aquela, pois “nunca antes encontrara as<br />

intenções pessoais e secretas por trás dela [sua obra] identificadas com tal clareza”<br />

e contundente precisão (IBIDEM).<br />

Freud não pôde comparecer, por razões absolutamente impeditivas — “estou<br />

muito fraco para tal empreendimento” — e escreveu um discurso que seria lido por<br />

sua filha Anna, “sem dúvida [...] mais agradável de ver e ouvir”, segundo suas<br />

desculpas (IBIDEM, p.240).<br />

No discurso, “em lugar de tomar a obra de Goethe como material a ser<br />

analisado, como se faz comumente hoje em dia para alçar a psicanálise a uma<br />

posição de ascendência sobre os demais saberes [...]” (CHEBABI, 1984, p.107),<br />

Freud mostra como Goethe inseminou a psicanálise de várias formas, menos da<br />

mais fundamental: suas idéias alteraram o próprio rumo do percurso freudiano.<br />

Isto só se sabe por outro texto, anterior ao prêmio com que o honraram:<br />

Embora vivêssemos em circunstâncias muito limitadas, meu pai insistiu que,<br />

na minha escolha de uma profissão, devia seguir somente minhas próprias<br />

inclinações. Nem naquela época, nem mesmo depois, senti qualquer<br />

predileção particular pela carreira de médico [...]. Sob a influência de uma<br />

amizade formada na escola com um menino mais velho que eu, e que veio<br />

a ser conhecido político, desenvolvi, como ele, o desejo de estudar direito e<br />

dedicar-me a atividades sociais. Ao mesmo tempo, as teorias de Darwin,<br />

que eram então de interesse atual, atraíram-me fortemente, pois ofereciam<br />

esperanças de extraordinário progresso em nossa compreensão do mundo;<br />

e foi ouvindo o belo ensaio de Goethe sobre a Natureza, lido em voz alta<br />

numa conferência popular pelo professor Carl Brühl, pouco antes de eu ter<br />

deixado a escola, que resolvi tornar-me estudante de medicina (FREUD,<br />

1976e, p.18-19).<br />

Eis o que este trabalho procura demonstrar: não é nada insólito que um<br />

detrator veemente da prática psicanalítica, como o é Millôr, a privilegie como melhor<br />

enredo teórico para as instâncias do riso, especialmente quando se apresenta nos<br />

termos freudianos. Um deles, o que correlaciona a criatividade humorística com a<br />

agressividade foi, aqui, temperada com a fundamental — melhor dizendo, radical —<br />

contribuição de Winnicott.<br />

20


Todos os três principais artífices deste projeto são, par e passo, conduzidos a<br />

uma consonância orquestrada pelo texto millôriano.<br />

Pode-se inclusive dizer que este é um percurso construído de trás para frente.<br />

Tomando as observações de Millôr Fernandes, seguiu-se rigorosamente seus<br />

passos para chegar até ao privilégio conferido à arquitetura do riso em Freud e, por<br />

esta via, acrescentar o trabalho desenvolvido por Winnicott, em conformidade com o<br />

comentário de Freud sobre os aspectos de agressividade-crueldade envolvidos no<br />

processo criativo do Humor.<br />

Se qualquer equívoco existe neste trajeto, deve-se a uma leitura tortuosa de<br />

Millôr. De qualquer forma, Millôr gera leituras, mas não as garante e, assim, os<br />

riscos cabem a quem dele se serve para realizar esta ou aquela. Essa dissertação<br />

não se furta a isto.<br />

2 ARQUITETURAS DO RISO<br />

21


Desde esse passo primeiro, já se estabelecem os laços entre a teoria<br />

freudiana do riso – a única descrita neste trabalho – e o lugar de absoluto e evidente<br />

destaque que assume na produção de Millôr Fernandes. E, para tanto, cabe o<br />

aparente paradoxo de denominar como conclusões introdutórias a trama que as<br />

reúne num só tecido, explicitando os movimentos do tear.<br />

O que se segue é a exposição – necessariamente sumária embora não<br />

reducionista – de todo o escopo das formulações de Freud, partindo dos chistes e<br />

suas modalidades, atravessando os expedientes cômicos, até atingir a rebuscada<br />

arquitetura do Humor propriamente dito.<br />

Eis do que se trata a seguir.<br />

2.1 CONCLUSÕES INTRODUTÓRIAS<br />

Há numerosos trabalhos dedicados ao riso, segundo inscrições várias —<br />

filosóficas, históricas, antropológicas, literárias, e tantas outras —, de maior ou<br />

menor vulto e expressão, consagrados ou não pelo tempo conforme critérios<br />

múltiplos. Logo, num estudo sobre o Humor, alguma escolha se impõe e de acordo<br />

com um critério específico.<br />

A teoria aqui privilegiada é a da psicanálise freudiana. Na verdade é a única<br />

que participa deste estudo sobre Millôr Fernandes quando se trata de estabelecer os<br />

fundamentos e as arquiteturas do riso, e isto por dois motivos: primeiro por<br />

estabelecer o devido lugar do Humor neste exclusivo ato humano, situando-o numa<br />

posição específica frente ao chiste (ou ditos espirituosos) e ao cômico e seus<br />

formatos; segundo porque Millôr não só a aceita sem restrições, bem como chega a<br />

avalizá-la ponto por ponto.<br />

Pareceria, à primeira e rápida vista, uma impropriedade aproximar<br />

demasiadamente Freud e Millôr, quando vários dos textos deste são francamente<br />

críticos quanto ao valor da psicanálise. Mas, adiante, procuraremos demonstrar que<br />

tal alvo não diz respeito senão ao emprego terapêutico das descobertas freudianas.<br />

E, quanto a isto ele não está tão distante assim de observações do próprio Freud.<br />

De fato, Millôr não faz sequer menção de poupar a psicanálise freudiana<br />

como procedimento terapêutico — suas contundentes apreciações pretendem, de<br />

22


fato, levar ao ridículo tal coisa — mas, por outro lado, declara, com todas as letras,<br />

um franco apreço por outra faceta do constructo freudiano: a especulação teórica.<br />

Um Milton que, só mais tarde, se soube Millôr (Cf. FERNANDES, 2003, p.32-<br />

33) confere a Freud todo o poder na Universidade Humorística do Méier — nos<br />

termos que se verá algo depois — mesmo quando defende como “necessário criar a<br />

consciência de que, como conjunto, fazemos o melhor Humorismo do mundo.<br />

Individualmente, há países com melhores Humoristas, plásticos e escritores. Como<br />

nação, nenhuma tão engraçada” (FERNANDES, 2004, p.164).<br />

No desenrolar desta dissertação, a proximidade de Freud com Millôr se<br />

mostrará, também, muito maior do que poderia imaginar a nossa vã e superficial<br />

sabedoria. Nada como um pequeno mergulho na ousadia para eliminar certos<br />

efeitos de refração e constatar que nem tudo assim é se lhe parece. De riso em riso,<br />

constrói-se uma função do Humor millôriano que várias décadas antes Freud não só<br />

apontava, como valorizava.<br />

Sendo a única das concepções sobre o riso, aqui integralmente apresentada,<br />

isto se faz com o máximo de exatidão possível, podendo acarretar um certo exagero<br />

de didatismo que a fluência do texto freudiano dispensaria sem pensar duas vezes,<br />

mas uma vez que ele aqui é apenas exposto, em seus traços básicos, não coube<br />

outro recurso. Ainda assim, as citações literais procuram preservar um pouco do<br />

sabor que se perde em qualquer tentativa de impor-lhe uma esquematização. Basta<br />

dizer que a leitura da obra sobre os chistes será sempre imprescindível, mesmo que<br />

nestes cem anos poucos psicanalistas lhe tenham dedicado a devida atenção (mas<br />

esta é uma história que será assinalada e acentuada um pouco adiante).<br />

É por isto, e não apenas por um jogo de palavras (também incluído), que se<br />

tratam aqui de conclusões introdutórias, uma vez que, para apresentar os principais<br />

pontos do trajeto que virá a seguir, antecipam-se elementos que, só mais tarde,<br />

entrarão devidamente em cena.<br />

Por enquanto, basta seguir os passos mais marcantes de Freud quando<br />

procura estabelecer as arquiteturas do riso, desde os andaimes, para enfim<br />

estabelecer como privilegiada a do Humor e sua amarga superioridade, seu teor<br />

agressivo e não poucas vezes cruel.<br />

No caso do Humor, rir não é o melhor remédio (como pretenderia uma<br />

conhecida seção da Readers Digest). É um desafio à realidade restritiva e, no mais<br />

23


das vezes, opressiva. Neste caso, o riso é uma arma para ultrapassá-la, transformá-<br />

la; é um riso indignado. Como o demostrará Millôr, no encalço de Freud.<br />

2.2 CHISTE OU DITO ESPIRITUOSO<br />

Freud oferece alguns problemas a seu leitor. É reconhecida sua insistência<br />

em não revisar escritos anteriores á luz das sucessivas alterações que engendrou<br />

no corpo da teoria; além disso, se revelava cuidado extremo na precisa e detalhada<br />

exposição das idéias que o ocupavam no momento, considerava, muitas vezes,<br />

conhecidas suas formulações anteriores, ainda que não tivessem sido publicadas<br />

(como no caso do Projeto de uma psicologia científica, composto apenas de cartas )<br />

ou fossem escassa e fragmentariamente desenvolvidas. Finalmente, demonstra, não<br />

raras vezes, pouco apreço pelo rigor terminológico - mormente quando trata do<br />

mesmo assunto em pontos distintos de seu percurso intelectual.<br />

Posto isso, nossa primeira dificuldade situa-se na profusão dos termos<br />

empregados por Freud na taxonomia dos chistes. Procurando coadunar-se com a<br />

nomenclatura vigente ao mesmo tempo em que dela, por vezes, divergia, ele tece<br />

uma rede de designações nem sempre fácil de acompanhar. No sentido de reduzir<br />

os problemas daí advindos, optamos por extrair do texto freudiano - no caso Os<br />

chistes e sua relação com o inconsciente - os termos cujo uso se mostrou mais<br />

estável ao longo de todo o discurso e cuja validade se ampara no corpo da teoria<br />

desenvolvida.<br />

Assim, segundo as respectivas estruturas, os chistes necessitam ser<br />

distinguidos e classificados quanto à técnica que empregam em chistes verbais e<br />

conceituais e, quanto aos propósitos a que servem, em chistes inocentes e<br />

tendenciosos.<br />

Salientando, antes que seja tarde, a não coincidência entre os dois critérios<br />

taxonômicos e seus resultados, ou seja, recusando, com Freud, qualquer identidade<br />

em chistes verbais e conceituais e aqueles designados como inocentes e<br />

tendenciosos - as duas classificações obedecem a critérios absolutamente diversos -<br />

passemos ao que de fato nos interessa: a estrutura do chiste em suas relações com<br />

o lúdico.<br />

— Os chistes inocentes derivam prazer exclusivamente da técnica e, com<br />

isso, operam um grande alívio no trabalho psíquico.<br />

24


Para demonstrar a validade de tal asserção e estabelecer seus determinantes<br />

a nível da economia psíquica, Freud envereda pelo caminho que conduz o infante (o<br />

que não fala) à aquisição da fala articulada.<br />

Tomando por objeto de investigação o jogo de palavras, observa que sua<br />

técnica “consistia em focalizar nossa atitude psíquica em relação ao som da palavra<br />

ao invés de seu sentido - em fazer com que a apresentação (acústica) da palavra<br />

tomasse o lugar de sua significação [...]” (FREUD, 1977, p.141) 3<br />

Podemos afirmar que os jogos verbais operam, exclusivamente, ao nível do<br />

significante, tratando a matéria fônica independente do significado de que é,<br />

pretensamente, veículo. Esse processo envolve menor quantidade de energia<br />

psíquica que o pensamento lógico formal.<br />

Tal afirmação está amparada inicialmente em dois pilares:<br />

- Psicopatologia: os "estados patológicos da atividade do pensamento nos<br />

quais a possibilidade de concentração da despesa psíquica<br />

em um ponto particular é provavelmente restrita” (OC, 142)<br />

— isto é, os estados maníacos — primam por esse tipo de<br />

associações 'externas' (por assonância).<br />

- Psicologia evolutiva: o infante, no contato com a matéria da língua, opera<br />

inicialmente a nível das associações por assonância.<br />

A estes, podemos acrescentar dois outros, explícita ou implicitamente<br />

contidos nos argumentos de Freud, na medida em que atestam sua presença em<br />

outras ocasiões:<br />

- Antropologia: o pensamento mágico ou primitivo, característico das<br />

comunidades humanas menos desenvolvidas (selvagens),<br />

conferem ao jogo fônico proeminência sobre a construção<br />

lógica.<br />

- Biologia: o pensamento lógico é, ontogeneticamente, posterior ao<br />

pensamento mágico e constitui, portanto, uma complexificação em<br />

relação a este.<br />

3 FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1977. (Edição Standard<br />

brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. VIII)<br />

A partir daqui, citaremos esta obra pela abreviatura OC, seguida do número de página.<br />

E nas Referências Bibliográicas, por sua vez, todos os textos de Freud, como provêm da Edição Standard<br />

brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, serão reportados a esta pela sigla ESB seguida<br />

do número do volume em algarismos romanos.<br />

25


Tomando por equivalentes as formas de pensamento do homem primitivo e<br />

do infante, Freud observa que este "reúne as palavras, sem respeitar a condição de<br />

que elas façam sentido, a fim de obter delas um gratificante efeito de ritmo e rima"<br />

(OC, p.148). Esta é uma das grandes funções da palavra em todos os tipos de<br />

rituais. Assim, o som antecede o sentido.<br />

Desta forma, os chistes inocentes - ou seja, aqueles que constituem um fim<br />

em si mesmo, não servindo a um objetivo particular - derivam seu prazer da<br />

economia psíquica resultante das operações linguísticas ao nível estritamente<br />

significante.<br />

— Ao contrário, Os chistes tendenciosos derivam prazer não apenas da<br />

técnica, mas também e principalmente de outras fontes.<br />

A suposição da existência de um elemento adicional nos chistes tendenciosos<br />

deriva do montante de prazer que lhes sobressai na comparação com os chistes<br />

ditos inocentes:<br />

O agradável efeito dos chistes inocentes é em regra um efeito moderado<br />

[...]. Um chiste não tendencioso dificilmente merece a súbita explosão de<br />

riso que torna os chistes tendenciosos [...] irresistíveis. Já que ambos os<br />

tipos podem ter a mesma técnica, podemos suspeitar de que os chistes<br />

tendenciosos [...] devem ter fontes de prazer disponíveis, às quais os<br />

chistes inocentes não teriam acesso (OC, p.116)<br />

A observação das peculiaridades dos chistes tendenciosos permite constatar<br />

a presença de duas temáticas alojadas em sua textura: a sexual - compondo os<br />

chistes obscenos - e a agressiva - explicitada nos chistes hostis e suas subespécies.<br />

Assim, parece necessário concluir que, no caso dos chistes tendenciosos, o prazer<br />

procede de duas fontes: o jogo verbal e os impulsos sexuais e agressivos. Visto que<br />

tais impulsos - objeto de toda repressão digna desse nome - constituem a matéria<br />

prima do inconsciente e sabendo que várias são as vias pelas quais buscam<br />

expressão, cabe deduzir que:<br />

— nos chistes tendenciosos, a textura verbal serve de veículo expressivo a<br />

conteúdos inconscientes emergenciais;<br />

— essa forma de veiculação do reprimido deve apresentar características<br />

que<br />

a diferenciem de outras formas com a mesma função, razão pela qual<br />

existem e operam num sentido determinado.<br />

26


Tratemos de extrair da fenomenologia do chiste sua constituição específica.<br />

As forças que se opõem à expressão dos chistes tendenciosos têm dupla<br />

origem: externa e interna.<br />

Quando o obstáculo deriva de restrições circunstanciais, ou seja, o<br />

comentário chistoso é impróprio à ocasião e ao público, ele simplesmente não se<br />

realiza ou, se o faz, nega-se a si mesmo, pois resulta em desprazer. Num chiste que<br />

efetivamente se comporta como tal e concretiza seus propósitos, o obstáculo<br />

externo opera no sentido de erigir ou reforçar inibições internas: “Os casos de um<br />

obstáculo externo e interno só diferem em que, no último seja suspensa uma<br />

inibição interna já existente e no primeiro se evite o aparecimento de uma nova”<br />

(OC, p.140).<br />

De fato, a inibição externa não existe. Poder-se-ia tentar coagir alguém a<br />

deter seus intentos sem qualquer resultado, enquanto esta não mobilizar dentro de<br />

si barreiras efetivas:<br />

Sendo assim, não estaremos confiando demais na especulação se<br />

afirmarmos que tanto para erigir como para manter uma inibição psíquica se<br />

requer alguma 'despesa psíquica'. E já que sabemos que em ambos os<br />

casos de uso dos chistes tendenciosos obtém-se prazer é plausível<br />

portanto supor que esta produção de prazer corresponde à despesa<br />

psíquica que é economizada (OC, p.140)<br />

A partir da análise das especificidades atribuídas aos chistes inocentes e<br />

tendenciosos, Freud pretende traçar o percurso de sua constituição. Para esse fim.<br />

estabelece quatro estágios suficientes e necessários: jogo de palavras, gracejo,<br />

chistes inocentes e chistes tendenciosos.<br />

2.2.1 Jogo de palavras<br />

O jogo verbal é próprio dos estágios primitivos da aprendizagem da língua.<br />

Conferindo à matéria significante uma plasticidade que lhe permite conformá-la aos<br />

interesses da experimentação, o infante ascende à condição de falante na posição<br />

de sujeito da língua: estabelece conexões, promove sentidos ou os abole, e forja<br />

expressões num malabarismo livre de onde deriva "gratificantes efeitos de<br />

economia" (OC,p.151). Brinca-se com assonâncias, aliterações, homofonias<br />

27


sentidos denotados e conotados sem qualquer preocupação com tais sisudos<br />

conceitos.<br />

Mas a língua tem seus desígnios e gradativamente os impõe, com suprema<br />

autoridade, à revelia de qualquer particular autoria (eis do que se serve Millôr, mais<br />

tarde, para exemplo de desautorização, como compete ao âmago do Humor:<br />

Esse jogo chega ao fim pelo fortalecimento de um fator que merece ser<br />

descrito como faculdade crítica ou racionalidade. O jogo é agora rejeitado<br />

como sem sentido ou efetivamente absurdo; em conseqüência da crítica,<br />

torna-se impossível (OC, p.151).<br />

O falante torna-se sujeito à língua. Em virtude disso, o ulterior<br />

desenvolvimento em direção à complexa estrutura dos chistes é governado pelo<br />

esforço precípuo de evitar a crítica da razão.<br />

Com isso, assoma o segundo estágio preliminar dos chistes: o gracejo.<br />

2.2.2 Gracejo<br />

Diante das razões "trata-se agora de prolongar o prazer resultante do jogo,<br />

silenciando ao mesmo tempo as objeções levantadas pela crítica [...]. Há apenas um<br />

modo de alcançar esse fim: as combinações sem sentido de palavras ou as<br />

absurdas reuniões de pensamento devem, não obstante, ter um sentido” (OC,<br />

p.152).<br />

Assim, a trama lingüística deve compor-se corretamente. Não há contudo,<br />

qualquer exigência quanto ao valor do conteúdo veiculado. O gracejo não apresenta<br />

nenhuma idéia que não possa ser expressa de outra forma. Toda a engenhosidade<br />

na elaboração do discurso é convocada apenas para preservar o gozo lúdico e<br />

atender, simultaneamente às leis da língua. Em conseqüência. "todos os métodos<br />

técnicos dos chistes já são empregados aqui - nos gracejos..." (IBIDEM).<br />

Mas o juízo crítico não se deixa seduzir eternamente pela forma e faz<br />

exigências quanto à consistência do conteúdo. Para satisfazer a essas condições o<br />

gracejo revela-se impotente e cede lugar a uma estrutura mais elaborada.<br />

2.2.3 Chistes inocentes<br />

28


Onde o juízo crítico instaura exigências relativas ao sentido, desaprovando as<br />

construções vazias embora formalmente corretas, os chistes inocentes, no interesse<br />

da preservação do prazer lúdico, estabelecem jogos ideativos que promovem<br />

aproximações complexas por meio da subtração de elos intermediários com<br />

conseqüente redução da “despesa psíquica”. Assim, eles acrescentam ao perfeito<br />

emprego do material lingüístico, uma composição ideativa capaz de calar as<br />

objeções da razão:<br />

Tenhamos em mente o fato de que os comentários chistosos produzem em<br />

nós uma impressão global na qual não conseguimos separar a parte devida<br />

ao conteúdo intelectual da parte devida à elaboração do chiste (OC, p.113).<br />

A partir dessa camuflagem, onde não se pode detectar a origem do prazer<br />

usufruído com o chiste - em virtude do assim denominado princípio da confusão das<br />

fontes de prazer -, forma e conteúdo aliam-se a serviço da manutenção do gozo<br />

lúdico, burlando as oposições do juízo crítico. Obviamente, a impressão global<br />

fornecida pelo chiste deve-se à sua peculiar eficiência em atrair e distrair a atenção<br />

impedindo-a de focalizar aspectos particulares:<br />

A elaboração do chiste [...] revela-se na escolha do material verbal e das<br />

situações conceptuais que permitirão ao velho jogo com palavras e<br />

pensamentos resistir ao escrutínio da crítica; com esse fim em vista, toda<br />

peculiaridade de vocabulário e toda combinação de seqüências de<br />

pensamento deve ser explorado da maneira mais engenhosa possível (OC,<br />

p.153).<br />

O chiste, como tal, encontra-se plenamente concebido na sua forma inocente<br />

e está apto a servir de instrumento aos propósitos que se situam para além da<br />

preservação do jogo verbal que lhe deu origem.<br />

2.2.4 Chistes tendenciosos<br />

Os chistes inocentes servem ao objetivo primário de preservar o primitivo jogo<br />

de palavras e pensamentos através de construções que subornam a censura com<br />

uma fachada de sentido. A esse substrato básico, é acrescido um objetivo adicional:<br />

promover a expressão de uma idéia barrada, reprimida, surrupiando-a à crítica. Essa<br />

“finalidade adicional” lhe é imputada quando "os principais propósitos e impulsos da<br />

29


vida mental empregam-no para seus próprios fins. O chiste [...] põe-se<br />

secundariamente em relação com propósitos dos quais nada do que toma forma na<br />

mente pode escapar (OC, p.156).<br />

Submetido à sofreguidão dos impulsos reprimidos por encontrar vias de<br />

acesso à descarga, o chiste inocente cumpre agora duas funções: derivar prazer do<br />

jogo verbal e utilizar esse prazer para embotar a censura, possibilitando a<br />

emergência de conteúdos objetáveis:<br />

O pensamento procura envolver-se em um chiste pois esta é uma forma de<br />

recomendar-se à nossa atenção e parecer mais importante e mais valioso,<br />

mas acima de tudo porque esse invólucro suborna nossos poderes de<br />

crítica e os confunde (OC, p.155).<br />

O prazer derivado do tratamento lúdico dado às palavras e aos pensamentos<br />

funciona como uma espécie de suborno ou, no dizer de Freud, "bonificação de<br />

incentivo" (OC,p.160). Por seu intermédio, oferta-se à consciência um prazer<br />

preliminar, oriundo de conteúdo menos objetável, que mina-lhe as resistências Esse<br />

truque revela-se muito importante na medida em que a consciência não erige<br />

grandes obstáculos ao conteúdo próprio a estes chistes. De fato, por isso eles são<br />

chamados “inocentes”.<br />

Nesse sentido, o jogo verbal e conceitual operado pela técnica dos chistes,<br />

funciona como prazer preliminar que, reduzindo a vigilância da censura de forma a<br />

que esta não se aperceba do material reprimido que se aninha em sua textura,<br />

permite a consecução de um prazer oriundo de fontes francamente objetáveis. A<br />

inibição burlada torna-se inútil e sua energia, economizada, converte-se em riso.<br />

Não se pode subestimar contudo, a agudeza da censura. Nem todo material<br />

reprimido atinge a consciência pela via do chiste: “a presença de numerosos<br />

impulsos inibidos, cuja supressão reteve certo grau de instabilidade fornecerá a<br />

disposição mais favorável à produção de chistes tendenciosos” (OC, p.166).<br />

Assim, a censura só se deixa ludibriar onde seus instrumentos não lograram<br />

plena eficácia ou atuam, momentaneamente, abaixo de sua competência. Eis o que<br />

justifica o dinamismo e a topologia do chiste, no que concerne à sua produção,<br />

assim descritos por Freud: “um pensamento pré-consciente é abandonado por um<br />

momento à revisão do inconsciente, e o resultado disso é imediatamente capturado<br />

pela percepção consciente” (OC, p.190).<br />

30


Um impulso submetido a uma repressão de intensidade oscilante, conforma-<br />

se à textura de um jogo verbal e conceitual submetido a restrições de ordem<br />

puramente racional, que a eficácia lingüística facilmente contorna. O envoltório<br />

verbal e sua promessa de gozo lúdico é ofertado à Consciência como prazer (prazer<br />

preliminar), no intuito de, subrepticiamente, impor-lhe o conteúdo do impulso<br />

reprimido. O estratagema funciona, e material inconsciente (objetável) assoma à<br />

consciência.<br />

A energia despendida na manutenção da força repressora mostra-se,<br />

subitamente, dispensável, uma vez que seu propósito não mais se justifica. Assim,<br />

ela é, imediatamente, descarregada, ou seja, convertida em prazer.<br />

Eis o processo de elaboração do chiste tendencioso. Contudo, duas<br />

ocorrências impedem que o fenômeno se enquadre na moldura proposta:<br />

— o produtor do chiste, comumente, não ri de seu constructo;<br />

— há uma irresistível tendência a comunicar o chiste a outrem.<br />

É o que observa Freud, ciente dos fatos em causa:<br />

O processo psíquico da construção de um chiste não parece terminado<br />

quando o chiste ocorre a alguém: permanece algo que procura, pela<br />

comunicação da idéia, levar o desconhecido processo de construção do<br />

chiste a uma conclusão (OC, p.167).<br />

A elaboração do chiste não o resume. O fim que lhe serve de móvel parece<br />

solicitar, compulsoriamente, ulteriores elaborações:<br />

Somos compelidos a contar nosso chiste para mais alguém porque somos<br />

incapazes de rir dele, nós mesmos. Sendo assim, não se pode negar que<br />

suplementamos nosso prazer atingindo o riso que nos é impossível através<br />

de um desvio: através da impressão que nos causa a pessoa que fazemos<br />

rir (OC, p.180).<br />

É necessário observar que o "impulso de contar o chiste a alguém [...] é tão<br />

forte que freqüentemente se processa a despeito de sérias apreensões" (OC, p.166).<br />

Se o propósito final do chiste é a superação de uma restrição ou inibição,<br />

torna-se forçoso concluir que onde sua plena consecução depende da presença de<br />

um outro - e não se pode fugir à "impressão de quanto é indispensável a terceira<br />

pessoa para a complementação do processo chistoso" (OC, p.179) - a este deve ser<br />

atribuído algum papel na efetiva superação do obstáculo crítico. De fato, observa-se<br />

31


que a presença de um receptor só se faz necessária quando a primeira barreira<br />

crítica se ergue, ou seja, no estágio do gracejo:<br />

O chiste, no estágio inicial, enquanto jogo com as palavras e pensamentos,<br />

prescinde de uma pessoa como objeto. Mas já no estágio preliminar de<br />

gracejo [...] requer uma outra pessoa a quem se possa comunicar o<br />

resultado [...]. É como se, no caso do gracejo, a outra pessoa transmitisse a<br />

avaliação da tarefa de elaboração do chiste - como se o eu não se sentisse,<br />

nesse ponto, seguro de seu julgamento. Também os chistes inocentes [...]<br />

requerem uma outra pessoa para provar se acaso alcançaram seu objetivo<br />

(OC, p.168).<br />

Parece que a força inibitória foi parcialmente suspensa no processo de<br />

elaboração do chiste, caso contrário o próprio chiste não viria à tona, contudo, a<br />

ausência do riso no produtor-emissor demonstra que alguma cota de inibição<br />

persiste. Claro está que, à pessoa do ouvinte, cabe a função de julgamento. Ela<br />

assume as funções da instância critica. Sua aprovação ou condescendência é que<br />

consolida a suspensão das barreiras no interior do artífice do chiste. Nota-se, em<br />

virtude disso, que os obstáculos à consumação dos propósitos do chiste não foram<br />

integralmente superados pela estratégia de sua construção. No entanto, o processo<br />

avança apesar desse empecilho adicional: o chiste – ou, melhor dizendo, os<br />

interesses a que serve - não se submete passivamente ao julgamento do receptor,<br />

antes tenta controlá-lo e conduzi-lo. Esse projeto realiza-se por duas vias:<br />

— escolha da pessoa apropriada ao papel de ouvinte. "Ela deve estar em um<br />

estado de ânimo eufórico ou, ao menos, indiferente" (OC, p.168);<br />

— distração da atenção do receptor.<br />

A questão da indiferença é crucial. Freud acuradamente observa que a<br />

terceira pessoa (ouvinte) não ri de um chiste quando seu alvo (segunda pessoa)<br />

coincide com alguém que ela preza o suficiente para não desejar vê-la exposta ao<br />

ridículo. Nesse caso, a reação do ouvinte-receptor é, quase sempre, a declarada<br />

indignação.<br />

Algum grau de benevolência ou uma espécie de neutralidade, uma ausência<br />

de qualquer fator que pudesse provocar sentimentos opostos aos propósitos<br />

do chiste, constituem a condição indispensável para que uma terceira<br />

pessoa colabore na complementação do processo de realização do chiste<br />

(OC, p.169).<br />

32


Logo se vê que o emissor do chiste deve avaliar muito bem a quem o<br />

comunica. O riso do outro é o indício seguro de que acertou na escolha. Pode então<br />

livrar-se da cota de inibição não superada pelo trabalho de elaboração do chiste.<br />

Como resultado, advém-lhe, a ele também, o riso. Nesse sentido, é necessário que<br />

a terceira pessoa:<br />

Esteja em suficiente acordo psíquico com a primeira pessoa quanto a<br />

possuir as mesmas inibições internas, superadas nesta última pela<br />

elaboração do chiste [...]. Assim todo chiste requer seu próprio público:<br />

partilhar o riso diante dos mesmos chistes evidencia uma abrangente<br />

conformidade psíquica (OC, p.174).<br />

Mas a escolha precisa é ainda um instrumento sujeito a falhas. Para<br />

assegurar o êxito pretendido, a textura do chiste é especialmente talhada para<br />

impedir que a atenção do auditor focalize o material sujeito a crítica. Assim. as<br />

técnicas auxiliares dos chistes:<br />

Servem à finalidade de deslocar do processo chistoso a atenção do ouvinte<br />

e permitir que tal processo siga seu curso automaticamente [...]. Trata-se<br />

aqui apenas da manutenção de uma catexia aumentada da atenção [...]. Os<br />

chistes utilizam os seguintes métodos visando aquele propósito.<br />

Primeiro, tentam abreviar sua expressão tanto quanto possível, de modo a<br />

oferecer à atenção mínimos pontos de ataque. Em segundo lugar, observam<br />

a condição da facilidade de entendimento; tão logo requeressem trabalho<br />

intelectual demandariam uma escolha entre diferentes trajetos de<br />

pensamento, arriscando-se assim não apenas a um inevitável dispêndio de<br />

pensamento como também a um despertar da atenção (OC, p.176).<br />

Nesse propósito, emprega-se o artifício de distrair a atenção "apresentando<br />

na forma do chiste algo que a capte" (OC, p.176). O tratamento formal conferido ao<br />

chiste tem, portanto, clara função hipnótica. Freud, aliás, já demonstrara<br />

anteriormente o papel da distração da atenção, a serviço do automatismo desejado,<br />

na técnica da hipnose e nos fenômenos de massa.<br />

Para cumprir tal tarefa o chiste emprega fachadas silogísticas, cujo papel é<br />

ocupar a atenção oferecendo-lhe uma tarefa, e fachadas cômicas, que operam<br />

"como um prazer preliminar subornador" (OC, p.176). A estas vêm juntar-se o<br />

deslocamento e o non-sense como fatores de mascaramento dos objetivos que se<br />

propõe alcançar. Enfim, o arranjo propicia o riso, considerado então como "produto<br />

de um processo automático tornado possível apenas pelo descarte de nossa<br />

33


atenção consciente" (OC, p.177). Em virtude disso, explica-se o fato de um chiste já<br />

ouvido não ter qualquer eficácia:<br />

Os chistes só produzem efeito integral no ouvinte se forem novidade para<br />

este, se eles chegam como uma surpresa. Essa característica dos chistes<br />

(que determina a brevidade de suas vidas e estimula sua constante<br />

renovação) deve-se evidentemente ao fato de que a própria natureza do ato<br />

de surpreender alguém ou pegá-lo desprevenido implica em que não se<br />

possa ter êxito uma segunda vez (OC, p.178).<br />

Finalmente, quando tudo funciona, uma restrição na terceira pessoa é<br />

suspensa e ela obtém prazer, o qual "é adquirido com muito pequena despesa de<br />

sua parte [...]. Devido à introdução da idéia proscrita através da percepção auditiva,<br />

a energia usada para a inibição torna-se agora subitamente supérflua, sendo pois<br />

suspensa e [...] descarregada pelo riso". (OC, p.173).<br />

A técnica dos chistes é, portanto, determinada por dois grupos de fatores:<br />

"aqueles que possibilitam a construção do chiste na primeira pessoa" e "aqueles que<br />

pretendem garantir ao chiste um efeito maximamente agradável na terceira pessoa".<br />

(OC, p.179).<br />

Resta, por último, estabelecer que<br />

um chiste, [...] é a mais social de todas as funções mentais que objetivam a<br />

produção do prazer. Convoca freqüentemente três pessoas e sua<br />

complementação requer a participação de alguém mais no processo mental<br />

iniciado. Está, portanto, preso à condição da inteligibilidade; pode utilizar<br />

apenas a possível distorção no inconsciente, através da condensação e do<br />

deslocamento, até o ponto em que possa ser reconstruído pela<br />

compreensão da terceira pessoa. (OC, p.204).<br />

Tal asserção parece apontar para o uso dos sonhos como modelo de<br />

compreensão de tudo que, no homem, compõe sua natureza ímpar — já que<br />

ocorrem inteiramente no íntimo de cada um em sua feitura e efeitos —, ao passo<br />

que os chistes são o modelo adequado à compreensão de sua relação com seus<br />

pares no seio da Cultura, na medida em que requerem um ouvinte contextualmente<br />

apropriado para completarem sua trajetória rumo ao alvo: o prazer(Cf.OC,p.204-205)<br />

No mecanismo dos chistes ditos tendenciosos, forma última que todas as<br />

outras contêm, encontra-se traçada a via pela qual os processos inconscientes<br />

operam na língua. Assim é que um impulso, submetido a repressão de intensidade<br />

cambiante, se aninha, por deslocamento, numa trama verbal submetida a restrições<br />

34


de ordem sintática e semântica, que as estratégias lingüísticas facilmente<br />

contornam. O envoltório verbal e sua promessa de gozo lúdico são então ofertados à<br />

atenção consciente no intuito de impor-lhe, veladamente, o conteúdo do impulso<br />

reprimido.<br />

O estratagema, quando funciona, logra introduzir na consciência material que<br />

fora antes aí recusado. A energia despendida na manutenção da repressão torna-se,<br />

subitamente, inútil, uma vez que seu propósito não mais se justifica; seu destino<br />

natural seria a descarga sob a forma de prazer convertido em riso. Contudo, a<br />

elaboração do chiste é insuficiente para garantir-lhe tal resultado. Ainda algo lhe falta<br />

para tanto: suas conseqüências. Para que existam, é preciso contá-lo a outrem; para<br />

que sejam adequadas aos interesses do processo, é preciso saber como e a quem<br />

contá-lo.<br />

No processo de construção do chiste, a força inibitória deve ter sido,<br />

necessariamente, suspensa, caso contrário o próprio chiste não ocorreria; e deve ter<br />

sido suspensa, também necessariamente, apenas em parte, posto que, em não o<br />

sendo, o prazer adviria do processo que resultou no chiste. Claro está que um certa<br />

cota de inibição persiste e cabe ao receptor julgá-la, ou não, procedente. Para obter<br />

uma apreciação favorável a seus interesses que, de resto, coincidem com o<br />

esvaziamento da censura no outro a quem se dirige, ao emissor do chiste impõe-se<br />

a tarefa de bem eleger-lhe o destinatário. Esta é, contudo, uma decisão tão precisa<br />

quanto preciosa, e não se pode assumir-lhe os riscos sem tentar aboli-los ou,<br />

quando pouco, minimizá-los. Nesse sentido, o tratamento formal do chiste tem uma<br />

evidente função hipnótica, exercida nas estratégias que visam distrair a atenção do<br />

receptor, como já o fizera com a do produtor.<br />

Na fase de elaboração do chiste, como se tratava apenas de construir a<br />

máscara apropriada ao disfarce do conteúdo reprimido, estas estratégias -<br />

consideradas primárias - consistiam, apenas, na combinação de seqüências de<br />

pensamento através da peculiaridade do vocabulário. Na fase de comunicação do<br />

chiste, as estratégias primárias agregam-se àquelas, ditas secundárias, que<br />

concorrem para levá-la a bom termo: brevidade e facilidade de entendimento. Como<br />

se trata, entretanto, de evitar que a atenção seja alertada para o que se pretende, é<br />

crucial, por parte do ouvinte, o desconhecimento do fim a que tende o chiste. Daí ser<br />

fator de sucesso a novidade, sem o que tudo se perde, pois não há surpresa e a<br />

previsão resulta em indiferença ou prevenção.<br />

35


Quando tudo funciona adequadamente, as restrições do receptor à matéria<br />

conceptual do chiste são burladas e, em seguida, suspensas. As forças restritivas,<br />

agora obsoletas, convertem-se em prazer na forma de riso. Assim, o riso do outro é<br />

o indício confiável de que o processo foi exitoso e, neste caso, se consuma,<br />

facultando ao produtor do chiste a mesma forma de prazer conferida ao receptor.<br />

No trajeto que vai da concepção à consecução do chiste, os jogos verbais e<br />

ideativos revelaram sua obstinada presença e importância. O chiste é uma atividade<br />

lúdica que tem por fim último o esquivar-se das restrições da censura que age sob a<br />

tutela da razão e do juízo crítico, instâncias, a seu turno, submetidas às leis da<br />

cultura.<br />

Por fim, é preciso frisar mais uma vez que o chiste constitui um processo<br />

triádico que envolve o produtor, o objeto e o ouvinte. Sem a precisa articulação<br />

destes três elementos ele fracassa em seus intentos.<br />

2.3 CÔMICO<br />

Se, no processo de elaboração e fruição de chiste, são necessárias a<br />

presença e a precisa articulação de três pessoas (ou melhor, elementos) o<br />

procedimento cômico “pode contentar-se com duas pessoas: a primeira que<br />

constata o cômico e a segunda, em quem se constata. A terceira pessoa, a quem se<br />

conta a coisa cômica, intensifica o processo, mas nada lhe acrescenta” (OC, p.207).<br />

No chiste, a terceira pessoa é indispensável e a segunda, pelo contrário,<br />

ocupa o lugar de objeto dos impulsos que o chiste traz à tona, mas não precisa estar<br />

presente na execução do comentário chistoso. Nota-se, já nesta arquitetura, a<br />

diferença e a distância que separa um processo do outro.<br />

Mas há uma distinção mais radical entre ambos:<br />

Achamo-nos obrigados a localizar no inconsciente o prazer dos chistes; não<br />

há razão semelhante para fazer a mesma localização no caso do cômico.<br />

Pelo contrário, todas as análises que fizemos até aqui indicam que a fonte<br />

do prazer cômico é a comparação entre duas despesas, que atribuímos<br />

ambas, ao pré-consciente. Os chistes e o cômico distinguem-se<br />

principalmente em sua localização psíquica; pode-se dizer que o chiste é a<br />

contribuição feita ao cômico pelo domínio do inconsciente (OC, p.207).<br />

Por outro lado, o cômico freqüentemente serve como fachada aos chiste,<br />

substituindo o prazer preliminar ou seja ofertando uma “bonificação de incentivo”<br />

36


que, de outro modo, seria obtida por uma operação mais complexa: o sofisticado<br />

jogo verbal.<br />

Assim, embora essencialmente diversos, o chiste e o cômico podem interagir<br />

de forma que um preste ao outro, conforme o caso, um determinado serviço. Para<br />

efeito de riso, que a ambos interessa, por vezes trona-se algo difícil especificar o<br />

que advém de cada processo.<br />

Melhor aprofundar, então, as especificidades do cômico no intuito de tornar<br />

mais claras suas particulares formas de produção do riso.<br />

Freud, assim como fez com os chistes, classifica e apresenta as principais<br />

espécies do cômico, não sem antes advertir que este é um campo muito extenso<br />

onde os detalhamentos arquiteturais não podem abranger as diferenças calcadas<br />

em minúcias, por vezes, extremamente sutis. Por isto, não se espere aqui o mesmo<br />

rigor de análise que pode-se obter quando se trata dos chistes, embora se utilize do<br />

mesmo expediente taxonômico. Ele mesmo não pretende tal coisa, declarando o<br />

desconforto que a tarefa lhe impõe:<br />

Conquanto possa ser atraente acompanhar os determinantes mais íntimos<br />

da produção de prazer cômico, o autor deve ter em mente que nem sua<br />

formação nem sua ocupação diária justificam a extensão de sua<br />

investigação além da esfera dos chistes; ele deve confessar que o tópico<br />

das comparações cômicas o faz particularmente ciente de suas inabilidades<br />

(OC, p.239).<br />

As oscilações terminológicas — que aqui foram reduzidas ao mínimo,<br />

remetendo às razões mais rigorosas do texto freudiano, e assumindo , portanto e por<br />

conta própria, alguma sistematização assemelhada à dos chistes — indicam o<br />

desconforto e mesmo o desagrado de Freud com a tarefa taxonômica neste<br />

particular âmbito do riso.<br />

Assim, quanto aos propósitos, o cômico pode ser designado ingênuo ou<br />

propriamente dito.<br />

Antes, contudo, torna-se imperativa uma observação sobre o visível incômodo<br />

de Freud quanto à abordagem do riso cômico.<br />

Fala-se muito [...] da função libertária, renovadora, anti-repressiva, do riso<br />

[...] e essas coisas são todas verdadeiras. Mas são apenas um ldo da<br />

verdade. O riso é também arma de repressão, conservadorismo [...].<br />

Detesta desvios da norma, de qualquer tipo, seja a corcunda de Esopo ou<br />

seja uma teoria científica. É uma força que compele à mediania. As<br />

37


inovações costumam ser recebidas com uma mistura de indignação e riso<br />

cômico (MORAES, 1974, p.30).<br />

Não se pode deixar de notar que Freud atribui aos chistes um mecanismo<br />

altamente complexo, onde todos os elementos exigem especial acuidade e<br />

perspicácia e ao Humor confere uma especial estatura. Nada disso se encontra em<br />

sua análise do riso cômico; ali só há explícito constrangimento pelo dever de abordar<br />

tal assunto, dado o fato inequívoco de que este participava de sua exposição sobre<br />

a função do riso como expressão do eminentemente humano.<br />

Ele conhecia esse aspecto pouco agradável do cômico. Desde Bergson.<br />

O que a vida e a sociedade exigem de cada um de nós é certa atenção<br />

constantemente desperta, que vislumbre os contornos da situação presente,<br />

e também certa elasticidade de corpo e de espírito, que permitam adaptarnos<br />

a ela [...]. Contudo, a sociedade exige algo mais ainda.. Não basta viver;<br />

importa viver bem. Agora o que ela tem a temer é que cada um de nós,<br />

satisfeito em atentar para o que respeita ao essencial da vida, se deixe ir<br />

quanto ao mais pelo automatismo fácil dos hábitos adquiridos. O que<br />

também deve recear é que os membros de que ela se compõe, em vez de<br />

terem por alvo um equilíbrio cada vez mais delicado de vontades a inserir-se<br />

cada vez com maior exatidão umas nas outras, se contentem com o<br />

respeitar as condições fundamentais desse equilíbrio: um acordo prévio<br />

entre as pessoas não lhe basta, mas a sociedade há de querer um esforço<br />

constante de adaptação recíproca. Toda rigidez do caráter, do espírito e<br />

mesmo do corpo, será, pois suspeita à sociedade, por constituir indício<br />

possível de uma atividade que adormece, e também de uma atividade que<br />

se isola, tendendo a se afastar do centro comum em torno do qual a<br />

sociedade gravita; em suma, indício de uma excentricidade. E, no entanto, a<br />

sociedade não pode intervir no caso por uma repressão material, dado que<br />

não é atingida de modo material. Ela está diante de algo que a inquieta, mas<br />

título de sintomas apenas — simplesmente ameaça, no máximo um gesto.<br />

E, portanto, por um simples gesto ela reagirá. O riso deve ser algo desse<br />

gênero: uma espécie de gesto social. Pelo temor que o riso inspira, reprime<br />

as excentricidades, mantém constantemente despertas e em contato mútuo<br />

certas atividades de ordem acessória que correriam o risco de isolar-se e<br />

adormecer; suaviza, enfim, tudo o que puder restar de rigidez mecânica na<br />

superfície do corpo social (1980, p.18-19).<br />

Enfim, se há “certa rigidez do corpo, do espírito e do caráter [...], essa rigidez<br />

é o cômico, e a correção dela é o riso” (IBIDEM, p.19).<br />

Nota-se que esta perspectiva pedagógica (no pior sentido) é visceralmente o<br />

avesso do percurso de Freud ao longo de toda a sua obra. De fato, como ele fez<br />

questão de declarar, “nem sua formação nem sua ocupação diária justificam a<br />

extensão de sua investigação [...]” (OC,239) ao território do cômico, mas como este<br />

não poderia ser excluído da pauta de um estudo sobre o riso, ele prossegue,<br />

penosamente, a contragosto.<br />

38


Assim, como se disse, quanto aos propósitos, o cômico pode ser<br />

designado como ingênuo ou propriamente dito.<br />

2.3.1 Cômico ingênuo<br />

A comicidade ingênua ocorre quando “uma pessoa [...] pensa estar utilizando<br />

seus meios de expressão e processos de pensamento normais e [...] não deriva [...]<br />

o menor prazer em produzir algo ingênuo” (OC, p.211). Nesta categoria se inclui<br />

todo gesto de pura espontaneidade e, infelizmente, seus perigos. Inadvertido das<br />

imposições de um contexto crítico, o ato cômico resulta de manifestações totalmente<br />

desinibidas, cujo resultado não propicia nenhum prazer, quando não se converte, de<br />

fato, em franco desprazer com o resultado. Mas dizer que não há nenhum prazer na<br />

comicidade ingênua seria declarar a ausência de qualquer motivo para sua<br />

ocorrência. Dizer que ela emerge da desinibição é, desde o início declarado como<br />

um equívoco, pois a pessoa que produz o comentário ingênuo o faz sem o menor<br />

esforço, pois a inibição procedente da instância crítica racional está ausente nela<br />

(Cf. OC, p.211). A espontaneidade é um ganho inicial que, só depois, se perde às<br />

expensas de um resultado crítico. Na verdade,<br />

o ingênuo só ocorre quando alguém desrespeita completamente uma<br />

inibição, inexistente em si mesmo [...]. É uma condição para a produção do<br />

efeito do ingênuo que saibamos que a pessoa envolvida não possui tal<br />

inibição, de outro modo, ela não seria ingênua, mas impudente (OC,p.208).<br />

Quando Freud afirma que uma pessoa não deriva o menor prazer em produzir<br />

algo ingênuo, é preciso notar que o prazer derivado da produção, ou seja, a<br />

ausência de qualquer esforço, se perde quando esta se depara com o produto que<br />

lhe evidencia uma ingenuidade que nunca quis para si quando agiu, pois pensava<br />

estar de plena posse de seus processos mentais e da capacidade de devidamente<br />

expressá-los. Nesta fase, o prazer é transposto para o outro elemento da equação<br />

cômica, assim “a apreensão do ingênuo processa-se na pessoa que tem as<br />

inibições, obtendo ela sozinha a produção de prazer que o ingênuo deflagra” (OC,<br />

p.211), com seu produto.<br />

Entram no processo cômico, desde esta primeira inscrição, apenas duas<br />

pessoas, dois elementos fundamentais. Aquele que o produz e cujo prazer reside<br />

39


apenas em fazê-lo sem se dar conta dos efeitos disto — ou seja, um desprazer<br />

como efeito colateral que anula o efeito principal — e, portanto, não obtém<br />

efetivamente prazer final e aquele(s) que o presencia(m) e daí deriva(m) uma<br />

inquestionável forma de prazer, um largo riso, porque:<br />

Uma despesa inibitória usualmente efetuada torna-se subitamente<br />

inutilizável por ouvirmos o comentário ingênuo, e a descarregamos então<br />

pelo riso. Não é necessário aqui que a atenção seja distraída provavelmente<br />

porque a suspensão da inibição ocorre diretamente e não através da<br />

intermediação de uma operação provocada (OC, p.208).<br />

Parece claro porque Freud chega a dizer que a suspensão da inibição ocorre<br />

diretamente neste caso: alguém fez o serviço para outrem e o dispensou da tarefa.<br />

Mas por conta de quê ele se dispensaria disto? Parece apenas um mecanismo onde o<br />

trabalho de uma engrenagem dispensa o comparecimento de outra para que o fato se<br />

dê como tal e pronto e ponto e acabou e estamos conversados. Entretanto, Freud<br />

nunca deixou de lado o apreço pelos argumentos. Sua lógica, pode-se dizer, é —<br />

dados os seus dados — implacável. Quando lhe faltam os elementos comprobatórios,<br />

não deixa de sugerir uma cautelosa hipótese, fornecendo-lhe os criteriosos ares de<br />

pura especulação.<br />

Se se pudesse generalizar, seria muito atraente colocar a característica<br />

específica do cômico [...] em um despertar da infância, considerar o cômico<br />

como o ‘último riso da infância’ restabelecido. Podia-se então dizer: ‘rio-me<br />

da diferença da despesa entre uma outra pessoa e eu próprio cada vez que<br />

redescubro a criança nela’. Ou, posto mais exatamente, a completa<br />

comparação que leva ao cômico seria: ‘assim ele o faz — eu o faço de outro<br />

modo — ele o faz como eu costumava fazê-lo em criança’ (OC, p.253).<br />

Este “último riso da infância” é uma clara alusão ao trabalho de seu<br />

antecessor: Henri Bergson.<br />

Em 1900, Bergson publica seus ensaios sobre o riso cômico. De início,<br />

parece interessado em assim circunscrevê-los quando adverte que o livro ”encerra<br />

três artigos sobre o Riso (ou antes, o riso suscitado sobretudo pelo cômico )<br />

” (BERGSON,1980,p.7). A certa altura, parece antever o que Freud escreverá cinco<br />

anos mais tarde e cuja citação serviu como abertura deste paralelo. Adverte, assim,<br />

Bergson:<br />

40


Quem sabe mesmo se não nos tornamos impermeáveis, a partir de certa<br />

idade, à alegria viçosa e nova, e se as mais doces satisfações do homem<br />

maduro podem ser coisa diferente de sentimentos de infância revivificados,<br />

brisa perfumada que um passado cada vez mais distante nos envia por<br />

bafejos cada vez mais raros? Seja qual for a resposta a essa questão muito<br />

geral, um ponto fica fora de dúvida: não pode haver ruptura entre o prazer<br />

de brincar, na criança, e o mesmo prazer, no adulto. Ora, a comédia é um<br />

brinquedo, brinquedo que imita a vida (IBIDEM, p.41-42).<br />

E insiste, mais adiante. “À medida que progredimos neste estudo dos<br />

processos da comédia, compreendemos melhor o papel desempenhado pelas<br />

reminiscências da infância”. (IBIDEM, p.47).<br />

Bergson, portanto, delimita o alicerce — o brincar infantil — das construções<br />

cômicas. Mas parece não considerar o teor absolutamente espontâneo dos<br />

elementos que constituem esse alicerce, uma vez que se utiliza da Comédia, ou<br />

seja, da imitação cômica elaborada como expressão literária e teatral para arquitetar<br />

suas reflexões. Não se pode, de fato, negar que os ensaios sobre o cômico de<br />

Bérgson “continham também a sua doutrina sobre a arte”. (ABBAGNANO, 1979,<br />

p.9).<br />

Nesta perspectiva, e apenas nesta, por enquanto, Freud se distancia do<br />

antecessor quando reserva suas construções teóricas sobre o riso advindo do efeito<br />

cômico apenas para os casos em que este advém de situações espontâneas, ou<br />

seja, não elaboradas com o intuito de obtê-lo. Não se trata de um estudo sobre a<br />

arte cômica, mas sim sobre seu agenciamento inadvertido, isto é, da comicidade,<br />

pode-se assim dizer, em estado bruto.<br />

Outro ponto fundamental separa, ainda mais, as concepções de Bergson e<br />

Freud sobre o cômico, apesar do ponto em comum sobre a origem desta<br />

modalidade do riso. Bergson defende a existência de um cômico produzido pela<br />

linguagem; Freud discorda substancialmente.<br />

Muniz Sodré apresenta a divergência de forma sucinta e precisa:<br />

A vida é [...] mecanizável. Mas como pensar a mesma coisa da linguagem?<br />

A dificuldade não existe para Bergson, já que ele concebe o pensamento<br />

como uma ‘coisa viva’, ‘e a linguagem, que traduz o pensamento deveria ser<br />

tão viva quanto ele’. Graças a esta curiosa homologia (pois sabemos que a<br />

significação não se acha na simples relação entre pensamento e linguagem)<br />

entre linguagem e pensamento, o filósofo da intuição se permite estender à<br />

análise do chiste a sua idéia de ‘rigidez mecânica’ ( 1974, p.32).<br />

41


Há em Bergson um elemento teórico fundamental quando se trata da questão<br />

do riso cômico, encontrável ao longo de seus três artigos, e que se expressa de<br />

formas equivalentes como “certo efeito de rigidez [...]” (BERGSON, 1980, p.14),<br />

“certa rigidez mecânica [...]” (IBIDEM, p.15), “certo efeito de automatismo e rigidez”<br />

(IBIDEM, p.18), “essa rigidez é o cômico, e a correção dela é o riso” (IBIDEM, p.19),<br />

“atitudes, gestos e movimentos do corpo são risíveis na exata medida em que esse<br />

corpo nos leva a pensar num simples mecanismo”. (IBIDEM, p.23), e por aí insiste.<br />

Chega, enfim, a propor uma comicidade de palavras para além das repetições<br />

contumazes de certas expressôes ou frases e suas respectivas inflexôes (que hoje<br />

atendem aqui pelo nome de bordões, largamente utilizados pelos esquemas<br />

cômicos televisivos ) migrando para o campo próprio dos ditos espirituosos, onde<br />

assegura que, a partir de sua consistente análise, “o espirituoso [...] surgirá então<br />

como sendo apenas o cômico volatizado” (IBIDEM,p.60).<br />

Nesse sentido, sua argumentação não deixa qualquer dúvida quanto à intenção de<br />

de fazer equivaler toda forma de riso ao formato cômico por ele delineado:<br />

De fato, por um lado, vemos que não existe diferença essencial entre uma<br />

expressão cômica e uma frase de espírito, e por outro lado a frase de<br />

espírito, embora ligada a uma certa figura de linguagem, evoca a imagem<br />

confusa ou nítida de uma cena cômica. Isso equivale a dizer que a<br />

comicidade da linguagem deve corresponder, ponto por ponto, à comicidade<br />

das ações e das situações e que ela não passa da projeção delas no plano<br />

das palavras, se podemos nos exprimir assim (IBIDEM,p.60-61)<br />

Bergson, portanto, não considera que o riso proveniente de um hábil jogo<br />

linguageiro necessite que o ouvinte ou ouvintes percebam o não dito por detrás do<br />

dito. Contudo, não é a mecânica que faz rir, é a fluidez da sutileza, a dinâmica plena,<br />

a conotação e não a denotação. É a expressão de um outro pensamento que subjaz<br />

à aparente e singela correlação pensamento — expressão do pensado. O chiste<br />

exige agudeza e perspicácia, movimento rápido entre as possíveis significações.<br />

Qualquer rigidez ou tolice lhe é fatal.<br />

Além disso, como se viu, os chistes têm para Freud uma arquitetura triádica<br />

enquanto o cômico, como se verá mais e mais, é simplesmente dual. “O prazer do<br />

cômico surge de uma comparação mais ou menos consciente entre a perfeição do<br />

espectador e a imperfeição da outra pessoa”. (MORAES, 1974, 29).<br />

Para Bergson, o riso e o cômico, ao fim das contas, formam uma unidade,<br />

unem-se intrinsecamente. Para Freud, o cômico está extremamente longe de ser a<br />

42


melhor expressão e definição do riso, mas já que não pode sumariamente negar-lhe<br />

a existência dedica-se a estudá-lo segundo seus critérios.<br />

Como havia feito com os chistes, cravando sua raiz no jogo de assonâncias<br />

que, brincando de jogar com os sons, iria levar o infante ao acesso à Língua e à<br />

Cultura, aqui ele faz o mesmo, só que em sentido inverso. No jogo verbal que<br />

compõe o chiste do simples ao mais complexo ele, muito passo a passo, irá<br />

fundamentar o cômico do mais simples ao mais sofisticado num jogo direto e radical:<br />

o prazer da re-experimentação infantil, onde um volta a ser criança e o outro,<br />

impossibilitado de realizar tal retorno, teima em trazê-lo ao mundo dito “adulto”<br />

ridicularizando-o, embora nunca possa prescindir dele — aquele que num átimo,<br />

num momento, desarmado de tudo, realiza sua criancice para que outros a revejam<br />

prazeirozamente, recusando produtor desta satisfação ao colocá-lo numa<br />

constrangedora posição. Disto resulta que a comicidade só possa reinar nos palcos<br />

(ou nas telas de cinema), onde a distância entre a cena e o público possa garantir o<br />

prazer do espectador sem a humilhação do articulador de uma espontaneidade há<br />

muito tempo perdida. Não é à toa que as comédias lotam as cadeiras das salas de<br />

espetáculo, pois a distância crítica é fundamental nestes casos e quanto mais<br />

garantida melhor para as partes da equação (basta Chaplin ou Os Três Patetas, só<br />

para não ter que listar exemplos infindos). Afinal, não era destinada a este<br />

procedimento artificioso que Freud fez sua aguda análise do cômico.<br />

A ingenuidade cômica, quando não protegida pelo devido distanciamento<br />

artificial anteriormente descrito — onde atores, quando primorosos, reconstituem<br />

laboriosamente o ingênuo e chegam a atingir o sabor e saber infantis que isto<br />

propicia a quem os assiste — atinge, num efeito rebote, aquele que, desavisado da<br />

crítica, com ela se depara quando o outro, eivado de prazer, o submete do deboche.<br />

Com razão Freud assinala que nenhum prazer deriva do ato de produzir algo<br />

verdadeiramente ingênuo. É uma equação onde mais vale assistir que produzir e<br />

atuar.<br />

2.3.2 Cômico propriamente dito<br />

Sim, havia-se anunciado um critério distintivo da comicidade quanto a seus<br />

propósitos. Pois bem, ela se encerra aqui, uma vez que os detalhes de técnica<br />

obrigatoriamente ficam por conta do que se designa de cômico propriamente dito, e<br />

43


esta é apenas uma forma de declarar, como se pode depreender do que se disse<br />

até aqui, que no modo ingênuo do cômico não há qualquer técnica. A ingenuidade é<br />

seu fator e seu teor e ele sequer existiria se lhe fosse atribuído qualquer propósito<br />

senão a espontaneidade derivada da ausência de inibição, senão torna-se somente<br />

impudicícia (Cf. OC, p.208), segundo o rigor freudiano.<br />

Para falar, então, de técnica na produção cômica só resta expor e detalhar do<br />

que se trata a comicidade propriamente dita e, genericamente, suas facetas mais<br />

expontâneas e visíveis. Alertou-se antes que a generalidade seria preferível à<br />

minuciosa especificação, já que esta se nutre de nuanças que é despropositado<br />

enumerar e muito menos descrever.<br />

Todas as técnicas do cômico propriamente dito, podem também seguir a<br />

propósitos agressivos ou sexuais, mas este não é o sentido essencial do cômico<br />

espontâneo. O elemento básico do cômico é, de fato, a comparação e somente ela.<br />

Rimos de alguém por nos compararmos a ela naquela situação, de certa forma<br />

assegurados que não agiríamos assim.<br />

Tomando por base este elemento, distinguem-se três fontes primárias para o<br />

fenômeno da comicidade, como veremos a seguir.<br />

— Relação com o outro: cômico de movimento e pensamento<br />

A comparação, onde se funda e erige todo o cômico neste caso, situa-se em<br />

dois campos: o das atividades motoras e mentais. Assim podemos distinguir duas<br />

modalidades básicas, fundamentadas em parâmetros comparativos.<br />

O cômico de movimento (pantomima) resulta de uma comparação entre o<br />

dispêndio de energia para a realização de um determinado ato motor. Nos<br />

movimentos realizados pela pessoa que age comicamente, “verificamos uma<br />

desnecessária despesa que pouparíamos se estivéssemos executando a mesma<br />

atividade” (OC, p.216).<br />

No caso da comicidade residir nas operações mentais — o cômico de<br />

pensamento ou de ideação (Cf. OC, p.218) — trata-se, igualmente, do resultado<br />

comparativo entre o espectador e “eu” que observa, e o produtor do cômico. Só que<br />

a base de comparação é totalmente diversa daquela que regula as atividades<br />

motoras. Assim, no caso do cômico do movimento:<br />

44


era cômico que outra pessoa fizesse uma despesa de energia maior do que<br />

eu julgava necessária. No caso de uma função mental, pelo contrário, esta<br />

torna-se cômica se a outra pessoa efetua uma poupança da despesa que<br />

eu mesmo reputo indispensável (pois o nonsence e a estupidez são<br />

deficiências da função). No primeiro caso rimo-nos pela excessiva<br />

complicação, no último rimo-nos da facilitação em excesso. O efeito cômico<br />

aparentemente depende, portanto, da diferença entre duas despesas<br />

catéxicas [...] (OC, p. 221-222).<br />

Ao distinguir os agentes cômicos em dois processos — aumento inadequado<br />

da despesa de energia (cômico do movimento) e redução inadequada da despesa<br />

energia (cômico do pensamento, por assim dizer) — Freud está, como sempre o faz,<br />

levando em conta a caráter evolutivo dos processos. Afinal, a restrição do trabalho<br />

muscular e o aumento do trabalho intelectivo se adequam ao curso da evolução<br />

humana e de tal forma que “elevando nossa despesa intelectual podemos obter o<br />

mesmo resultado que com a diminuição da despesa em nossos movimento” (OC,<br />

p.222) ;<br />

— relação com o mundo externo: cômico de situação<br />

Para considerar este tipo de comicidade diverso daqueles que se fundam<br />

exclusivamente na relação dual com o semelhante (o outro) é preciso determinar<br />

seu elemento distintivo.<br />

Neste caso, as características da pessoa que proporciona o efeito cômico<br />

não desempenham uma parte essencial: rimos ainda que tenhamos de<br />

confessar que nós teríamos feito o mesmo numa situação igual. Estamos<br />

aqui extraindo o cômico da relação dos seres humanos com o<br />

frequentemente todo poderoso mundo externo [...] (OC, p.223).<br />

Assim, o efeito de comicidade só pode ser usufruído quando outra pessoa<br />

está envolvida numa situação constrangedora, pois caso nós mesmos estivéssemos<br />

em tais circunstâncias emergiriam apenas sentimentos aflitivos. “Apenas o<br />

afastamento de tais sentimentos de nós próprios capacita-nos a fruir prazer da<br />

diferença originária da comparação [...]. (OC, p.224) Trata-se do prazer que advém,<br />

sob a forma de riso, do alívio de não estar naquela situação, ou seja, da apreensão<br />

súbita de um ainda-bem-que-não-foi-comigo;<br />

— relação com o futuro: cômico de antecipação<br />

45


Há aqui um descompasso entre o que se espera (e o preparo que disto<br />

resulta) e o que efetivamente advém, portanto, esta “outra fonte do cômico [...]<br />

consiste em nossas relações com o futuro, que costumamos antecipar com nossas<br />

idéias expectantes” (OC, p. 224).<br />

Os elementos motor e intelectivo poderiam se apresentar como subtipos.<br />

Enfim, “é bem obviamente verdadeiro, quanto a inúmeros casos, que preparações<br />

motoras formam a expressão da expectativa [...]” (OC, p. 224), enquanto em outros<br />

esta expectativa se traduz no interesse com que se atenta para determinada coisa e<br />

seu desfecho.<br />

Em ambos os casos, o efeito cômico decorre de uma solução deceptiva, que<br />

torna inadequados os preparativos aparentemente requeridos. Há uma expectativa<br />

frustrada como pano de fundo nesta moralidade cômica.<br />

Alguém se apronta para erguer um objeto que em tudo e por tudo parece<br />

pesado, faz um movimento vigoroso e se depara com algo muito mais leve e, com o<br />

impulso, acaba estirado no chão ao perder o próprio equilíbrio. Outro ouve<br />

atentamente algo que soa como muito interessante e é surpreendido por um<br />

desfecho completamente banal.<br />

se expressa:<br />

No segundo caso, onde a antecipação é de caráter intelectivo, a expectativa<br />

— pela avaliação de proporcionalidade (espera-se algo de determinada<br />

magnitude e o resultado decepciona);<br />

— pelo grau de atenção mobilizada (espera-se atentamente um determinado<br />

desfecho e o resultado decepciona);<br />

— pela despesa com a abstração (espera-se algo muito elaborado e sutil e o<br />

resultado decepciona).<br />

Portanto, como se observou até aqui, o contraste quantitativo é o que se<br />

considera, primariamente, como fonte do prazer cômico.<br />

Contudo, se levarmos em consideração um outro formato, bem mais<br />

elaborado e até intencional, não é impróprio atribuir uma outra fonte — secundária,<br />

no caso — de comicidade à relação com os valores estabelecidos e admirados,<br />

onde o fator fundamental é a irreverência sob a forma de mímica, caricatura,<br />

paródia, travestismo e desmascaramentos de toda ordem. Nesta modalidade, o que<br />

propicia prazer é a degradação do sublime, do eminente, da dignidade e da<br />

46


autoridade, cujo riso resulta da economia psíquica do ato de reverência e<br />

submissão.<br />

De fato esses procedimentos cumprem a importantíssima função de<br />

demonstrar que “tal e tal pessoa, que é admirado como um semideus, é afinal de<br />

contas um ser humano como você e eu” (OC, p.229), mas por não serem<br />

exatamente espontâneos (e por isso não classificados como primários) correm o<br />

risco de perderem a comicidade se ultrapassarem uma certa e precisa condição: sua<br />

integral dependência da empatia. É que a liberação de afetos aflitivos constitui o<br />

maior obstáculo à emergência do cômico e, a contestação grotesca pode agenciar<br />

exatamente este efeito indesejado num espectador que não esteja num pleno<br />

vínculo empático com o produtor (Cf. OC, p.148-157).<br />

Dito isto e após esta apresentação (sumária) das formas e dinâmicas da<br />

comicidade, Freud não considera produtivo ir mais adiante, declarando-se, inclusive,<br />

inábil para tanto (Cf. OC, p. 239). Seu principal propósito já havia sido atingido:<br />

tocar apenas no cerne da comicidade, conferindo-lhe um lugar específico e capaz de<br />

distingui-la das artimanhas do chiste — um jogo triádico cheio de sutilezas, onde o<br />

cálculo dos fatores é imprescindível para o bom produto — e do Humor, ao qual<br />

dedicará o passo seguinte.<br />

Do cômico, surge então, como verdadeira essência, a infantilização do<br />

produtor do riso, embora Freud guarde ainda certa cautela ao apontar tal fato: “sou<br />

incapaz de decidir se a degradação à infância é apenas um caso especial de<br />

degradação cômica, ou se tudo que é cômico baseia-se na degradação à infância”<br />

(OC, p. 256).<br />

Duas observações finais: o termo degradação apresenta-se como equivalente<br />

ao Herabsetzung alemão, cujo sentido mais corriqueiro é de redução, abaixamento,<br />

abatimento; o texto freudiano, ao estabelecer a comparação entre o produtor da<br />

comicidade e seu observador, não deixa margem para dúvidas quanto ao sentido do<br />

riso que brota neste, qual seja, testemunhar a degradação (à infância) daquele.<br />

O cômico se nutre de tudo que é degradante. Eis porque Millôr dirá que a<br />

comicidade não tem nada de precisamente Humorístico (Cf.MILLÔR,2004,p.141)<br />

2.4 O <strong>HUMOR</strong><br />

47


Quando inicia sua discussão sobre o caráter do Humor, Sigmund Freud faz<br />

questão de retomar um dos pilares do cômico — tornando-o mais claro, explícito e<br />

generalizado — para melhor distingui-lo do propriamente Humorístico:<br />

Já vimos que a liberação de afetos aflitivos é o maior obstáculo à<br />

emergência do cômico. Tão logo o movimento inútil produza um dano, ou a<br />

estupidez leve à maldade, ou o desapontamento cause dor, a possibilidade<br />

de um efeito cômico chega ao fim [...]. Ora, o humor é um meio de obter<br />

prazer apesar dos afetos dolorosos que interferem com ele; atua como um<br />

substituto para geração desses afetos, coloca-se no lugar deles. As<br />

condições para seu aparecimento são fornecidas se existe uma situação na<br />

qual, de acordo com nossos hábitos usuais, devíamos ser tentados a liberar<br />

um afeto penoso [...]. O prazer do humor, se existe, revela-se [...] ao custo<br />

de uma liberação de afeto que não ocorre: procede de uma economia da<br />

despesa de afeto (OC, p. 257).<br />

Em vez de dor, riso; ao invés de sofrimento, prazer, digamos assim,<br />

arrogante, de enfrentamento. Na verdade, “a economia de compaixão é uma das<br />

mais freqüentes fontes do prazer humorístico” (OC, p. 259).<br />

Por outro lado, se a composição do chiste é triádica (produtor – objeto –<br />

espectador/ouvinte) e a do cômico é dual (comparação entre espectador e produtor,<br />

estando este numa posição degradante), o Humor “completa seu curso de uma<br />

única pessoa; a participação de alguma outra nada lhe acrescenta. Posso guardar a<br />

fruição do prazer humorístico que em mim se originou sem sentir obrigação de<br />

comunicá-lo” (OC, p.257).<br />

Este aspecto não serve apenas para distinguir o Humor das outras<br />

arquiteturas do riso, ao localizá-lo tão somente no produtor, mas revela o sua<br />

essência, pois “o próprio humor [...] origina-se da superioridade de um ego do qual<br />

nem os defeitos físicos nem os morais conseguem roubar a segurança e a alegria”<br />

(OC, p.260, n.1).<br />

É claro que os chistes e várias espécies de cômico podem se revestir de<br />

Humor, “neste caso, sua tarefa é livrar-se de uma possibilidade implícita na situação:<br />

que possa ser gerado um afeto que interfira com o resultado gratificante” (OC,<br />

p.261).<br />

Envolvendo três ou dois participantes, o chiste e o cômico, respectivamente,<br />

necessitam da precisa afinação empática entre os componentes para que surja o<br />

efeito prazeroso sob a forma de riso. Não custa repetir que qualquer falha nesta<br />

48


sintonia acarreta o efeito oposto: a emergência de um desprazer. O Humor, quando<br />

requisitado a contribuir para o bom andamento do processo,<br />

pode deter a geração desse afeto inteiramente ou apenas parcialmente;<br />

esse último é o caso mais comum já que é o mais fácil de levar a cabo,<br />

produzindo as várias formas de humor ‘interrompido’ — o Humor do sorriso<br />

entre as lágrimas. Retira parte de sua energia do afeto e em troca lhe dá um<br />

toque de humor (OC, p. 261).<br />

Falar em humor interrompido só é possível, portanto, quando este encontra-<br />

se a serviço de procedimentos chistosos ou cômicos para garantir-lhes um certo<br />

asseguramento quanto ao efeito desejado: o riso.<br />

É claro que o Humor, ele mesmo, pode se servir de procedimentos oriundos<br />

do chiste ou do cômico como apetrechos que, no entanto, nada interferem em sua<br />

textura fundamental:<br />

Obteremos alguma informação sobre o deslocamento humorístico se o<br />

encararmos à luz de um processo defensivo. Os processos defensivos [...]<br />

realizam a tarefa de impedir a geração do desprazer a partir de fontes<br />

internas [...]. O humor pode ser considerado como o mais alto desses<br />

processos defensivos. Ele desdenha retirar da atenção consciente o<br />

conteúdo ideacional que porta o afeto doloroso, tal como o faz a repressão,<br />

e assim domina o automatismo da defesa. Realiza isto descobrindo os<br />

meios de retirar energia da liberação de desprazer, já em preparação,<br />

transformando-o, pela descarga, em prazer (OC, p. 262).<br />

Esta defesa que se faz de enfrentamento e ultrapassagem, é a própria<br />

“exaltação do ego que o deslocamento humorístico testemunha [...]” (OC, p.262).<br />

Pois, “o humor não é resignado, mas rebelde” (FREUD, 1974a, p.191).<br />

Ao considerar o Humor como o mais elaborado dos processos defensivos,<br />

capaz de não interpor obstáculos à emergência da angústia mas, ao contrário servir-<br />

se dela para produzir o prazer do riso, confrontando-a com um certo ar superior e<br />

debochado, Freud lhe confere “qualquer coisa de grandeza e elevação [...]” (IBIDEM,<br />

p.190) que não se encontram nas outras duas arquiteturas do riso 4 :<br />

Essa grandeza reside claramente no triunfo do narcisismo, na afirmação<br />

vitoriosa da invulnerabilidade do ego. O ego se recusa a ser afligido pelas<br />

provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em<br />

que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na<br />

verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões para obter<br />

4 Esta posição específica do Humor é a razão pela qual ele tem sido grafado nesta dissertação, e continuará<br />

sendo, com o H maiúsculo.<br />

49


prazer. Esse último aspecto constitui um elemento inteiramente essencial do<br />

humor (IBIDEM,p.190)<br />

Tal postura envolve, indubitavelmente, uma agressividade criativa a serviço<br />

da ultrapassagem de condições restritivas de um mundo que teima em mostrar-se<br />

autoritário, obtuso e canhestro. E, ainda por cima, sem graça.<br />

Mas isto requer a contribuição de Winnicott que, no próximo passo, avança o<br />

assunto ao encontro de Millôr.<br />

2 LÓGICA DA AGRESSIVIDADE<br />

Freud, em sua aguda contribuição para o estabelecimento das razões do riso<br />

e sua arquitetura, apontou para o elemento agressivo que aparece, e se torna cada<br />

vez mais influente na medida em que a sofisticação toma conta dos subterfúgios do<br />

lúdico. Contudo, o teor e fundamento deste conteúdo agressivo na composição do<br />

humano do homem não mereceu exaustiva atenção no âmbito de sua obra, pois<br />

embora lhe dedique a devida participação em alguns textos fundamentais de sua<br />

elaboração teórica, não o desenvolve até as minúcias com que favorece outros<br />

temas. Percebendo isto, Melanie Klein, uma de suas principais deformadoras vestida<br />

com pele de cordeiro bem pastoreado, lupinamente dedicou praticamente toda sua<br />

obra a desenvolver uma detalhada teoria da agressividade. Prestou, com isso, um<br />

enorme desserviço a Freud, mas não ficou apenas aí. Quando foi contestada em<br />

seus argumentos por Donald Winnicott, tratou de torná-lo um excluído contumaz dos<br />

círculos psicanalíticos ingleses (e mais além ). Isto persiste até hoje, mas a lucidez<br />

das concepções winnicottianas vão se mostrando mais e mais valiosas e, assim,<br />

mais e mais conhecidas.<br />

Dado o escopo do trabalho ora em curso, não se pode aqui detalhar a<br />

articulação rigorosa de seus argumentos, embora a autora o tenha ousado em outra<br />

ocasião (Cf. CANTUDO,2000, p.42-59). No presente caso, basta dizer que Donald<br />

Winnicott propõe a mais elaborada teoria da agressividade ao associá-la<br />

intrinsecamente a todo ato criativo, e apresentar apenas os fios com os quais tece<br />

tal correlação. Para bom início torna-se imprescindível uma advertência.<br />

Os bebês têm necessidade de se movimentar para começar a ser no mundo<br />

[...], precisam chutar ou bater para encontrar obstáculos e assim se<br />

diferenciarem do outro de modo corpóreo: se chuto e encontro resistência<br />

então existe algo que não sou eu e que é o outro. A agressividade ou ódio<br />

50


se instalariam depois e não como algo natural da natureza humana. A<br />

motivação inicial seria a necessidade de movimento (MASSIH, 2006,p. 4).<br />

Winnicott propõe uma criatividade primária como sendo um impulso inato em<br />

direção à vida em sua plena expressão, e esta proposta está inevitavelmente<br />

vinculada a muitos elementos e processos de sua elaboração teórica. Jan Abram<br />

enumera os fundamentais:<br />

• A experiência de onipotência nas primeiras etapas da relação mãe-bebê;<br />

• A capacidade da mãe de responder ao gesto espontâneo do bebê, assim<br />

facilitando o desenvolvimento do sentimento de self (originado a partir do<br />

verdadeiro self);<br />

• O papel desempenhado pela agressão primária e pela exigência por parte<br />

do bebê de um objeto capaz de sobreviver ao seu amor cruel ( Cf.<br />

ABRAM, J. 2000, 84 )<br />

Com relação a este último aspecto, cabe retomar a advertência primeira — a<br />

motivação inicial de qualquer gesto que pareça agressivo é apenas a tendência ao<br />

movimento, o encaminhar-se para a distinção eu - não eu. Para que isto não se<br />

torne um embate, onde o movimento acaba por expressar-se de maneira<br />

violentamente vigorosa, adverte Massih — num específico cuidado que poucos têm<br />

com o texto Winnicottiano — que tal necessidade de movimento para estabelecer a<br />

diferenciação com o outro, assemelha-se efetivamente a ataques agressivos e estes<br />

precisam ser permitidos para que a inscrição do infante do mundo se realize. “Para<br />

que isto ocorra, a mãe ou o ambiente que cuida da criança deve sobreviver a seus<br />

ataques de raiva no sentido de não retaliar, não retirar o afeto e tampouco castigar<br />

de modo excessivo” (MASSIH, 2006, p. 8).<br />

Para considerar devidamente a associação entre criatividade e agressividade,<br />

tomemos os referidos passos do percurso como bússola suficiente ao trajeto.<br />

3.1 CRIATIVIDADE COMO PREMISSA<br />

O seio é constantemente vivido pelo bebê como objeto que se apresenta para<br />

a satisfação imediata de suas necessidades ou por ordem da expressa necessidade<br />

ou pela sua capacidade de amar o que lhe advém como suporte necessário (Cf.<br />

WINNICOTT, 1978, p.402 ), mas para que tal aconteça é preciso que a mãe esteja<br />

presente a cada momento de criação (Cf. WINNICOTT, 1994, p.89-90 ),<br />

51


apresentando o seio real no preciso momento em que o bebê está apto para criá-lo<br />

como parte dele mesmo. Neste contexto, seio é toda maternagem e o seio<br />

propriamente dito . Nisto consiste a experiência de onipotência do bebê ( Cf.<br />

WINNICOTT, 1978, p.402, p.408).<br />

Estamos na área dos objetos subjetivamente percebidos, expressão cunhada<br />

por Winnicott e que evidencia seu gosto pelos paradoxos. Haverá, é claro, um ponto<br />

em que estes objetos devem se tornar objetivamente percebidos e isto pareceria<br />

garantido pelo inevitável surgimento de uma capacidade de discernimento (teste de<br />

realidade). Winnicott não admite, contudo, que as coisas se processem num salto<br />

evolutivo aparentemente óbvio:<br />

A mãe, no começo, através de uma adaptação quase completa, dá ao bebê<br />

a oportunidade de ter a ilusão de que seu seio faz parte do bebê, de que<br />

está, por assim dizer, sob o controle mágico do bebê. O mesmo se pode<br />

dizer em função do cuidado infantil em geral, nos momentos tranquilos entre<br />

as excitações. A onipotência é quase um fato de experiência. A tarefa da<br />

mãe consiste em desiludir gradativamente o bebê, mas sem esperança de<br />

sucesso, a menos que, a princípio, tenha podido propiciar oportunidades<br />

suficientes para a ilusão (IBIDEM, p.402 ).<br />

Chegar a uma relação com a realidade externa, portanto, não é algo que se<br />

faça de um momento para outro, por via de salto, algo que se obtenha num lance:<br />

Desde o nascimento, portanto, o ser humano está envolvido com o<br />

problema da relação entre aquilo que é o objetivamente percebido e aquilo<br />

que é subjetivamente concebido e, na solução desse problema, não existe<br />

saúde para o ser humano que não tenha sido suficientemente bem iniciado<br />

pela mãe (IBIDEM, p. 402 ).<br />

3.2 PRO<strong>CES</strong>SO TRANSITIVO E ESPAÇO POTENCIAL<br />

Na passagem da subjetividade absoluta à percepção do mundo como<br />

alteridade, existe necessariamente, para o evolucionista (darwinista) Winnicott, uma<br />

transição. A tarefa que está diante de qualquer um ser humano ao nascer é<br />

constituir-se como sujeito e, para tanto, relacionar-se com os objetos numa posição<br />

em que estes sejam as partes não-eu do mundo. Conquistar esta condição<br />

representa, inicialmente, ser capaz de envolver-se com o mundo em processo<br />

constitutivo num ato criativo — cuja essência e fundamento reside na experiência de<br />

52


onipotência — onde a ilusão tenha seu lugar pertinente e o afastamento deve ser<br />

consolidado pelo ato de dispor eu-aqui/não-eu acolá.<br />

O processo de des-ilusão que se segue é, na verdade, uma outra construção:<br />

a construção da realidade não-eu. Esse processo constitutivo da realidade passa<br />

por um conjunto de operações que têm a função de intermediar e propiciar essa<br />

travessia entre o subjetivo e o objetivo, entre os objetos subjetiva e objetivamente<br />

percebidos:<br />

A área intermediária a que me refiro é a área concedida ao bebê, entre a<br />

criatividade primária e a percepção objetiva baseada no teste de realidade.<br />

Os fenômenos transicionais representam os primeiros estádios do uso da<br />

ilusão, sem os quais não existe, para o ser humano, significado na idéia de<br />

uma relação com um objeto que é por outros percebido como externo a<br />

esse ser (IBIDEM, p.402 ).<br />

Sair da ordem da experiência de onipotência e entrar no mundo dos objetos é<br />

entrar na experiência cultural, na realidade compartilhada. Isto significa<br />

fundamentalmente deixar uma forma de relação e entrar em contato com outra:<br />

Em essência a experiência cultural tem suas raízes calcadas na relação<br />

precoce de separação do par mãe-bebê. Uma vez que o ambiente se<br />

apresenta como facilitador e suficientemente-bom o bebê terá a ilusão de<br />

'ser Deus'. A partir desta experiência ele passa a desenvolver e elaborar um<br />

processo de desilusão onde fica evidente que ele, de fato, não é Deus. A<br />

fim de auxiliá-lo na passagem da ilusão à desilusão, o bebê que é saudável<br />

ou a criança pequena irá fazer uso de um objeto transicional (ABRAM, 2000,<br />

p.86). 5<br />

O objeto transicional, para que ocupe tal lugar, constitui-se num símbolo da<br />

união do bebê e da mãe (ou parte dela) e situa-se, exatamente, no espaço e no<br />

tempo, onde e quando a mãe se encontra, na perspectiva do bebê, entre ser<br />

concebida e ser percebida pelo bebê. "O uso de um objeto simboliza a união de<br />

duas coisas agora separados, bebê e mãe, no ponto, no tempo e no espaço, no<br />

início de seu estado de separação” (WINNICOTT, 1975,p.135 ).<br />

A questão transicional é, em Winnicott, levada ao pé da letra e de tal forma<br />

que um passo, para alcançar o outro lado, precisa saber como levantar, arquear,<br />

lançar e apoiar o pé. Não se pode pensar num avanço (numa evolução, no sentido<br />

darwiniano) sem que se tracem e encontrem os elos de união entre um ponto e outro<br />

durante todo o trajeto. O trajeto aqui concerne à separação mãe-filho, a partir de um<br />

5 Ver também, WINNICOTT, 1994, p.90.<br />

53


estado de união praticamente absoluto até a resolução em um disjuntivo ele – ela.<br />

Não se trata, portanto, de um pequeno pulo, mas sim de um árduo percurso que vai<br />

de um extremo a outro e, entre tais extremos, deve-se pensar num conectivo.<br />

Em termos de objeto podemos posicionar assim a escalada pessoal: objetos<br />

subjetivamente percebidos, objetos transicionais (possessão não-eu) e objetos<br />

objetivamente percebidos ( mãe = ela ). Neste sentido, o trajeto entre subjetividade e<br />

objetividade é "o processo através do qual é propiciada a oportunidade para a ilusão<br />

e a desilusão gradativa" ( WINNICOTT, 1978, p.404 ).<br />

Se é dada ao bebê a capacidade de fazer uso de um símbolo de união, então<br />

ele se permite uma separação ponto-por-ponto e se beneficia dela. "Este é o local<br />

que me dispus a examinar, a separação que não é uma separação, mas uma forma<br />

de união" (WINNICOTT,1975,p.136 ).<br />

Dizer que o bebê caminha da experiência de onipotência para a experiência<br />

cultural é dizer que ele avança da dependência absoluta para uma espécie de<br />

independência, expressa pelo acesso à distinção eu — não-eu. Nesse sentido,<br />

quando se encontra com o mundo dos objetos compartilhados isto significa que<br />

entra em contato com os códigos culturais. O modo como tal coisa se dá é que faz a<br />

diferença.<br />

O momento inicial em que experimenta o mundo como plenamente adaptado<br />

a seus anseios (experiência de onipotência), gradualmente se converte numa co-<br />

operação com o mundo, complementando-o com sua aptidão adaptativa e<br />

propiciando as oportunidades para tanto; envolvendo-se com ele, num contrato onde<br />

eu e não-eu se aliciam numa possessão paradoxal não-eu/eu e, finalmente, após<br />

testá-lo e testá-lo pelo uso, e constatada sua consistente sobrevivência como mundo<br />

não-eu, mergulha no mundo como herança de conquistas múltiplas (experiência<br />

cultural), oriunda da multiplicidade dos sujeitos, sendo o todo maior que as partes,<br />

mas não independente delas.<br />

O fundamental nesse processo é que o mundo está sempre em condição de<br />

parceria, propiciando e acatando acréscimos pessoais. Nesse mundo, o sujeito vive<br />

criativamente e se torna, um dia, um adulto saudável. Onde isto não existe, o mundo<br />

impõe ao sujeito um modo preconizado de ser e lhe dá como alternativa apenas a<br />

aquiescência, a submissão como única forma ser-estar nele:<br />

54


Empreguei o termo 'experiência cultural' como uma ampliação da idéia dos<br />

fenômenos transicionais e da brincadeira, sem estar certo de poder definir a<br />

palavra 'cultura'. A ênfase, na verdade, recai na experiência. Utilizando a<br />

palavra 'cultura', estou pensando na tradição herdada. Estou pensando em<br />

algo que pertence ao fundo comum da humanidade, para o qual indivíduos<br />

e grupos podem contribuir e da qual todos nós podemos fruir, se tivermos<br />

um lugar para guardar o que encontramos (WINNICOTT, 1975, p.137-138).<br />

Ora, a cultura, a tradição herdada, o 'fundo comum da humanidade' é o<br />

propriamente humano que constitui a realidade compartilhada, os códigos, a<br />

linguagem, e de tal forma que não se pode negar "o fato de que em nenhum campo<br />

cultural é possível ser original, exceto numa base de tradição [...]. A integração entre<br />

a originalidade e a aceitação da tradição como base da inventividade parece-me<br />

apenas mais um exemplo, e um exemplo emocionante, da ação recíproca entre<br />

separação e união" (IBIDEM, p.138).<br />

A criatividade se constitui, portanto, num modo de operar no mundo, num<br />

“viver criativamente”, que não se reduz ao ato criativo do objeto artístico, embora o<br />

englobe. Winnicott insere a criatividade no conceito de sujeito apto a viver, estar<br />

vivo, sentir-se real e ativo. Segundo ele,<br />

É a partir do sentimento de haver criado o mundo que se estabelece tudo<br />

aquilo que é verdadeiramente importante. A desilusão não é alcançada sem<br />

que primeiramente surja a ilusão [...]. O que funda o viver criativo é a<br />

percepção criativa que, por sua vez, se funda na experiência de fusão com<br />

a mãe. É precisamente esta experiência de 'retenção da mãe na mente' que<br />

evolui até chegar às lembranças, tornando-se o lugar por excelência da<br />

experiência cultural. É aqui que se dá uma comunicação silenciosa com os<br />

objetos subjetivos pertencentes ao mundo interno do indivíduo (ABRAM,<br />

2000, p.89).<br />

Assim, viver criativamente não significa produzir arte, embora isto seja<br />

fundamental para que tal aconteça. Mas antes da arte como produto, e portanto<br />

objeto estético, a criatividade está em ato, como produção. "Para ser criativa, uma<br />

pessoa, tem que existir; e ter um sentimento de existência, não na forma de<br />

percepção consciente, mas como uma posição básica a partir da qual operar”<br />

(WINNICOTT, 1989, p.31).<br />

3.3 AGRESSIVIDADE PARA ULTRAPASSAR-SE<br />

55


Winnicott é um teórico da perplexidade, o que, de alguma maneira, significa<br />

que rejeita as facilidades do óbvio. Daí suas querelas com Klein, que gostava de<br />

postular o inatismo de processos altamente complexos, como a inveja e a<br />

agressividade destrutiva, por exemplo. Para ele tudo era uma conquista que custava<br />

muitos investimentos e a superação de vários obstáculos. Portanto, viver e sentir-se<br />

vivo, que seriam atributos óbvios do ser humano factualmente “vivo”, na sua<br />

concepção não era um fato garantido por esta simples condição e, sim, constituía-se<br />

numa questão extremamente complexa. É nesta questão que se insere o problema<br />

da criatividade e sua essencial correlação com a agressividade. “Em consequência,<br />

a criatividade é o fazer que, gerado a partir do ser, indica que aquele que é está<br />

vivo" (WINNICOTT,1989, p.31).<br />

Devemos aqui estabelecer um fundamento: "a criatividade é, portanto, a<br />

manutenção através da vida de algo que pertence à experiência infantil: a<br />

capacidade de criar o mundo" (IBIDEM, p.32).<br />

Dentro desta perspectiva,<br />

o bebê normal [...] precisa crescer em complexidade e tornar-se um<br />

'existente' estabelecido, para que possa experimentar a procura e o<br />

encontro de um objeto como um ato criativo.<br />

E então eu volto à máxima: Ser, antes de Fazer. O Ser tem que se<br />

desenvolver antes do Fazer [...]. A origem, portanto, é a tendência [...] do<br />

indivíduo para estar e permanecer vivo e para se relacionar com os objetos<br />

que lhe surgem no caminho durante os momentos de obter algo [...]<br />

(IBIDEM, p.33).<br />

Essa capacidade de tornar criativa a vida e, consequentemente, a capacidade<br />

de sentir-se efetivamente vivo na relação com o mundo, pressupõe que o sujeito<br />

tenha tido a oportunidade de viver a experiência de onipotência — onde o mundo<br />

era criado por ele — e, gradativamente, se afastar dela pela via de um espaço<br />

potencial onde o criado e o existente coincidem sem que haja qualquer possibilidade<br />

ou necessidade de distinguí-los, e de tal forma que o subjetivo e o objetivo<br />

encontram aí um campo fértil onde um e outro traçam e somam suas condições<br />

peculiares sem, contudo, se deixarem apreender numa definição definitiva de qual<br />

está contribuindo com o quê.<br />

No espaço transicional (potencial) o processo de separação eu-não eu<br />

encontra um lugar de indistinção distintiva, de tal forma que o objeto que ocupa este<br />

56


lugar junto ao bebê sustenta o paradoxo de ser fruto de criação e dado pronto desde<br />

sempre.<br />

Atravessando essa área eu - não eu atinge-se, gradualmente, a separação<br />

eu / não-eu, mas isto apenas através da construção do outro como não-eu. Esta<br />

construção só pode advir através da agressão e seus procedimentos e realizações.<br />

A agressão, segundo Winnicott, é sinônimo de atividade e motilidade. No<br />

princípio de sua investigação sobre o tema ele estabelece a noção de agressão<br />

primária, situando-a como parte integrante do apetite (Cf.1978, p.356) e também da<br />

personalidade que se constrói agindo como uma energia proveitosa relacionada ao<br />

trabalho e ao brincar. Adverte, entretanto, que em um ambiente de privação<br />

contumaz ela poderia se tornar carregada de violência e destruição. Esse aspecto,<br />

portanto, não passava de mera conseqüência de um muito inadequado modo de<br />

lidar com esse fator fundamental. Tal concepção é inaugural e única no trajeto da<br />

pesquisa psicanalítica até hoje.<br />

A primeira referência feita por Winnicott à agressividade no contexto das<br />

relações humanas encontra-se em um trabalho de 1939, intitulado simplesmente<br />

Agressão, numa conferência dirigida a pedagogos. Suas opiniões fundamentais no<br />

que concerne ao tema nunca se modificaram essencialmente desde tal ensaio, mas<br />

foram enriquecidas e elaboradas com o decorrer de suas investigações.<br />

Nesse texto de 1939, apesar de concentrar-se na experiência do bebê com<br />

sua própria agressão, Winnicott prossegue explorando a fantasia de destruição<br />

contida na agressão primária, bem como a inibição do desejo verdadeiro de destruir.<br />

Isto é o que introduz a diferenciação, elaborada por ele, entre a destruição que<br />

ocorre na fantasia e a que é atuada ( efetivada ). Essa noção é central na teoria do<br />

uso do objeto de Winnicott, aparecida em 1968:<br />

Se é verdade... que o bebê tem uma grande capacidade para a destruição,<br />

não é menos verdadeiro que ele também tem uma grande capacidade para<br />

proteger o que ama de sua própria destrutividade, e a principal destruição<br />

existe sempre, necessariamente em sua fantasia. E, quanto a essa<br />

agressividade instintiva, é importante assinalar que, embora se torne em<br />

breve algo que pode ser mobilizado a serviço do ódio, é originalmente uma<br />

parte do apetite, ou de alguma outra forma de amor instintivo. É algo que<br />

recrudesce durante a excitação e seu exercício é sumamente agradável<br />

(WINNICOTT, 1999, p.97).<br />

57


Em sua descrição da agressão primária, aponta para o fato de que todos os<br />

aspectos da agressão do bebê podem ser percebidos pelo observador (ou sentidos<br />

pela mãe) como cruéis, dolorosos e perigosos, porém — e isso é fundamental na<br />

teoria de Winnicott (diferenciando-a radicalmente da Klein, que em tudo vê inveja e<br />

sadismo inato) —, para o bebê, todos eles são essencialmente acidentais. Ou seja,<br />

Winnicott considera que a agressão precoce do bebê pode ser entendida pelo<br />

observador como sádica mas, a princípio, não é tomada dessa forma pelo bebê e,<br />

portanto, não faz parte do seu âmbito emocional. Volta-se a repetir: esta é uma<br />

concepção que revoga todo um modo de pensar quando se tratava do assunto,<br />

numa psicanálise, até então.<br />

Em 1945, o horizonte de Winnicott quanto à agressão alargou-se<br />

consideravelmente. Em seu importante e emblemático trabalho, “ Desenvolvimento<br />

emocional primitivo” (1945), vários dos temas que continuarão a preocupá-lo pelo<br />

resto da vida são expostos como pano de fundo para todas as elaborações<br />

posteriores.<br />

Quanto à agressividade, é neste texto que ele propõe um self cruel<br />

antecedendo o self implicado na relação com experimentos objetais. Mas considera<br />

que o self com capacidade para a preocupação— ou a capacidade para sentir-se<br />

preocupado — depende, para seu desenvolvimento, que o self cruel permita sua<br />

expressão.<br />

Caso admita-se que o indivíduo está se tornando integrado e personalizado,<br />

e que deu início ao processo de realização, há ainda um longo caminho a<br />

ser percorrido antes que ele se relacione com uma pessoa total, com uma<br />

mãe total, preocupando-se com o efeito de seus próprios pensamentos e<br />

ações sobre ela.<br />

Temos que postular uma relação de objeto cruel. Esta pode de novo ser<br />

apenas uma fase teórica e, certamente, não se pode ser cruel depois do<br />

estádio de preocupação, exceto em um estado dissociado. Os estados de<br />

dissociação cruéis, porém, são comuns no início da infância e emergem em<br />

certos tipos de delinqüência e na loucura, devendo ser disponíveis na<br />

saúde. A criança normal experimenta uma relação cruel com a mãe, que<br />

fica mais evidente no jogo e necessita da mãe porque só dela pode esperar<br />

uma tolerância para com esta relação cruel estabelecida no jogo, porque<br />

isto realmente a fere e a esgota. Sem esta possibilidade de brincar<br />

cruelmente com ela, não resta à criança outra saída senão ocultar este self<br />

cruel, deixando-o vir à tona apenas em um estado de dissociação.<br />

(WINNICOTT, 1978, p.282 )<br />

Como esse self cruel é admitido e que resposta obtém da mãe? Este é um<br />

aspecto crucial da maneira pela qual a agressividade afeta o desenvolvimento<br />

58


emocional do bebê que cresce. Se o bebê é obrigado a ocultar seu self cruel, por<br />

causa de um ambiente incapaz de tolerar a agressão, isto acarreta numa<br />

dissociação — isto é, uma não-integração, um desconhecimento e uma divisão. É<br />

esta dissociação que Winnicott explora, em 1947, num outro importantes artigo: “ O<br />

ódio na contratransferência”. Este trabalho discorre, de fato, sobre os sentimentos<br />

inerentes à agressão primitiva:<br />

Mesmo que a integração possa ser atingida muito cedo — talvez a<br />

integração mais precoce ocorra no auge da excitação ou da raiva — há um<br />

estágio teórico anterior no qual as coisas ruins que o bebê faz não são feitas<br />

por ódio. Utilizei o termo ‘amor cruel’ para descrever este estágio. Isto é<br />

aceitável ? À medida que o bebê vai tornando-se capaz de sentir que é uma<br />

pessoa total, a palavra ódio passa a ter significado como uma descrição de<br />

um certo grupo dos seus sentimentos. (WINNICOTT, 1978, p.350)<br />

Para atingir a condição de Sujeito, qualquer filhote-de-homem está sujeito a<br />

várias tarefas. “No princípio, a agressão do bebê surge para ser necessariamente<br />

cruel. Assim é o bebê durante a fase de dependência absoluta”. No final, elemento<br />

que se destaca na teoria do desenvolvimento de Winnicott, “uma pessoa total [...] é o<br />

indivíduo que conseguiu alcançar um ‘status unificado’ e é capaz de destinguir entre<br />

‘eu’ e ‘não-eu’, dentro e fora” (ABRAM, 2000, 11).<br />

Do princípio da década de 1950 em diante, portanto, o pensamento de<br />

Winnicott sobre a agressividade desenvolve-se de tal forma que chega a constituir-<br />

se e consolidar-se como uma teoria própria, diversa inclusive e radicalmente da<br />

consagrada por M. Klein.<br />

Em um trabalho de 1950-54, “ Agressão e sua relação do desenvolvimento<br />

emocional” - que é uma colagem de três textos —, as quatro áreas-chave relativas à<br />

agressão são:<br />

real<br />

. a função de fusão<br />

. a necessidade de oposição<br />

. a necessidade de realidade de um objeto externo para sentir-se<br />

. a necessidade de um objeto, antes da necessidade de prazer.<br />

Para fins de apresentação de complexas tramas teóricas e lógicas, utiliza-se<br />

como bastante e suficiente, para os fins determinados pela razão de ser da<br />

59


dissertação aqui em curso, o esquema de Jan Abram, dado seu rigor conceitual (Cf.<br />

ABRAM, 2000, p.13).<br />

Winnicott entende que a fusão dos componentes erótico e agressivo não pode<br />

ser estabelecida de início e admitida como já determinada ao nascer-se filhote-de-<br />

homem (como o faz Klein, que propugna uma fusão pulsional primária); ao contrário,<br />

deve ser vista como um objetivo a ser alcançado. “Supomos a existência de uma<br />

fusão de componentes agressivos e eróticos na saúde, mas nem sempre damos a<br />

importância adequada à pré-fusão e à tarefa de fusão” (WINNICOTT, 1978, p.369 ).<br />

É num texto de 1963 — “O desenvolvimento da capacidade de se preocupar”<br />

— que Winnicott funda a idéia de que, para o bebê, existem duas mães: a mãe-<br />

objeto e a mãe-ambiente. A primeira constitui-se na mãe experimentada pelo bebê<br />

em seu estado de excitação e a segunda é aquela tomada como outro pelo bebê em<br />

seu estado de paz e tranqüilidade. O advento dessas duas mães na mente do bebê<br />

é um fator necessário ao desenvolvimento, tornando-o capaz de instituir o sentido de<br />

preocupação. Portanto, a função de fusão pode ser entendida como a primeira teoria<br />

de Winnicott para a junção de duas mães, ou melhor, dos traços erógenos e<br />

agressivos em relação a um mesmo objeto.<br />

O amor cruel do bebê inicialmente ajuda a ‘localizar o objeto’ exteriormente<br />

ao self. Esta idéia, mais tarde desenvolvida em “O uso de um objeto e o<br />

relacionamento através de identificações”, aparece originalmente em um trabalho de<br />

1954: “A posição depressiva no desenvolvimento emocional normal” (Cf.<br />

WINNICOTT,1978, p.442-445 ). A noção de círculo benigno, entendido como<br />

inserido na capacidade de estar implicado, assim como a idéia de duas mães — a<br />

mãe-objeto e a mãe-ambiente — foi apresentado nesse trabalho e desenvolvida no<br />

decorrer da década de sessenta.<br />

Foi quatro anos depois, em 1958, que ele vinculou positivamente — numa<br />

escala de valores — a crueldade à criatividade do artista. Em um parágrafo bastante<br />

enigmático intitulado O artista criativo, Winnicott demonstra sua aprovação ao self<br />

cruel do artista. “As pessoas habitualmente governadas pelo sentimento de culpa<br />

acham isso surpreendente; assim tenho um respeito sub-reptício pela falta de<br />

piedade que leva, de fato, em tais circunstâncias, a conseguir mais do que o<br />

trabalho orientado pela culpa” (WINNICOTT, 1982, p.29 ). A arte não se baseia nas<br />

virtudes domésticas; afinal “ quem se preocupa com a beleza formal atribui uma<br />

60


importância muito relativa às demais manifestações do pensamento” ( WILDE, 1995,<br />

p.34 ). Oscar Wilde tem uma posição bastante próxima à de Winnicott quando<br />

declara, além disso, que “ o verdadeiro artista não dá a menor importância ao<br />

público. Para ele, o público não existe.” (IBIDEM, 1995, 35 ). Este é, precisamente, o<br />

cerne do self cruel do artista, ou seja, algo situado além da piedade, da culpa e do<br />

horizonte de expectativas.<br />

Um pouco mais adiante, quando lhe for dada a palavra, Millôr Fernandes<br />

concordará prontamente com ambos.<br />

3.4 CRUELDADE E CRIATIVIDADE<br />

Em maio de 1960, numa conferência sobre “Agressão, culpa e reparação”,<br />

Winnicott insiste na exploração do vínculo entre crueldade e criatividade.<br />

Desejo apoiar-me na minha experiência como psicanalista para descrever<br />

um tema que se apresenta repetidamente no trabalho analítico e é sempre<br />

de grande importância. Relaciona-se com as raízes da atividade<br />

construtiva. Tem a ver com as relações entre construção e destruição<br />

(WINNICOTT,1999, p.153 ).<br />

Não se pode, portanto, pensar a criatividade sem vinculá-la a seu componente<br />

agressivo, à motilidade, à capacidade de vencer obstáculos. O aspecto agressivo,<br />

neste caso, ganha sua maior importância conforme a resposta do objeto: se ele<br />

sobrevive ou não às investidas testadoras da agressividade. “A ‘agressão primária’<br />

e a ‘crueldade’ são os diferentes aspectos de um tipo de destrutividade primária<br />

que, no caso de objeto/ambiente sobreviverem a ela, tornará o sujeito capaz de<br />

encarar o mundo real da forma com que ele realmente se apresenta” (ABRAM,<br />

2000, p.18).<br />

Esse aspecto vital, que torna o sujeito capaz de agir-no-mundo como um<br />

ente-efetivamente-vivo é um ponto central, em torno do qual giram os outros<br />

aspectos da questão. Nos “Comentários sobre meu artigo O Uso de um Objeto” ele<br />

diz: “ nesse estágio inicial vitalmente importante, a qualidade viva ‘destrutiva’ [...] do<br />

indivíduo é simplesmente um sintoma de estar vivo, e nada tem a ver com a raiva<br />

desse indivíduo com as frustrações que pertencem ao encontro do princípio da<br />

realidade” (WINNICOTT, 1994, p.186 ).<br />

61


Por outro lado, para constituir o mundo de tal forma que este se apresente<br />

como alteridade, a criança se envolve numa complexa trama:<br />

Como tentei enunciar, a pulsão é destrutiva. A sobrevivência do objeto<br />

conduz ao uso do objeto, e isto, à separação de dois fenômenos<br />

distintos:<br />

1. fantasia, e<br />

2. colocação real do objeto fora da área de projeções.<br />

Esta premência destrutiva muito inicial, portanto, tem uma<br />

função positiva vital (quando, pela sobrevivência ao objeto, ela<br />

funciona), a saber, a objetivização do objeto [...] (WINNICOTT, 1994,<br />

p.186 ).<br />

Já em 1942, no artigo “Por que as crianças brincam”, Winnicott anteciparia a<br />

questão da sobrevivência do objeto, presente em seu estudo de 1968, “O uso de um<br />

objeto e o relacionamento através de identificações”. O brincar, de 1942, envolve a<br />

presença de elementos agressivos dirigidos ao ambiente, que, por sua vez, devia<br />

suportá-los com tolerância. É esta tolerância que, em 1968, se apresenta como<br />

sobrevivência:<br />

A criança aprecia concluir que os impulsos coléricos ou agressivos podem<br />

exprimir-se num meio conhecido, sem o retorno do ódio e da violência do<br />

meio para a criança. Um bom meio ambiente, sentiria a criança, deveria ser<br />

capaz de tolerar os sentimentos agressivos, se estes fossem expressos de<br />

uma forma mais ou menos aceitável. Deve-se aceitar a presença da<br />

agressividade, na brincadeira da criança, e esta sente-se desonesta se o<br />

que está presente tiver de ser escondido ou negado (WINNICOTT, 1979,<br />

p.161-162).<br />

Assim, Winnicott passou a destacar o papel desempenhado pelo ambiente<br />

que sobrevive à quase modesta destruição perpetrada pelo infante como a primeira<br />

e privilegiada forma de fornecer ao futuro indivíduo o imprescindível acesso ao uso<br />

do objeto:<br />

O destino dessa unidade de pulsão não pode ser enunciado sem referência<br />

ao meio ambiente. A pulsão é potencialmente ‘destrutiva’, mas ser ela<br />

destrutiva ou não depende de como é o objeto; o objeto sobrevive ,isto é,<br />

mantém o seu caráter, ou reage? No primeiro caso, então, não há<br />

destruição, ou não muita, pelo menos, e há um momento seguinte em que o<br />

bebê pode tornar-se, e gradualmente se torna, cônscio de um objeto<br />

psicoenergizado, mais a fantasia de ter destruído, machucado, danificado<br />

ou provocado o objeto [...]. Mas destruição de um objeto que sobrevive, que<br />

não reagiu nem desapareceu, conduz ao uso (WINNICOTT, 1994, p.190 ).<br />

62


O objeto que sobrevive à destruição desenvolve autonomia e vida própria e<br />

pode, assim, contribuir para a constituição do sujeito conforme suas propriedades<br />

intrínsecas (Cf. IBIDEM, p.174).<br />

Neste aspecto, a teoria de Winnicott é radicalmente inovadora. Segundo ele<br />

mesmo aponta, “a teoria ortodoxa abraça a suposição de que a agressão é relativa<br />

ao encontro com o princípio da realidade, enquanto que aqui é a pulsão destrutiva<br />

que cria a qualidade de externalidade. Isto é fundamental em minha argumentação”<br />

(IBIDEM, p.176 ).<br />

De fato, a pesquisa psicanalítica costuma colocar o mundo externo e suas<br />

imposições de limite como os geradores de reações agressivas por parte do sujeito,<br />

nem sempre apto a aceitá-las; Winnicott, por outro lado, propõe a agressividade<br />

como constitutiva da noção de mundo externo, garantido como tal por sua<br />

sobrevivência às investidas experimentais deste mesmo sujeito. Num contexto, a<br />

agressividade é secundária; no outro, primária.<br />

Winnicott desce, nesta contraposição, a detalhes que se revelam cruciais:<br />

É parte importante daquilo que uma mãe faz: ser a primeira pessoa a<br />

conduzir o bebê através desta primeira versão, das muitas que serão<br />

encontradas, de ataque ao qual se sobrevive. Este é o momento certo no<br />

desenvolvimento da criança, por causa da sua relativa debilidade, de<br />

maneira que se pode com bastante facilidade sobreviver à destruição.<br />

Mesmo assim, contudo, trata-se de algo delicado, pois é muito fácil para<br />

uma mãe reagir de modo moralístico quando o seu bebê morde ou<br />

machuca. Mas esta linguagem que envolve ‘o seio’ é jargão profissional.<br />

Toda a área de desenvolvimento e manejo, na qual a adaptação está<br />

relacionada à dependência acha-se envolvida (IBIDEM, p.176 ). 6<br />

Vale sempre ressaltar que uma das principais dificuldades do texto<br />

winnicottiano advém do seu estilo, e nele e dele constam o uso contumaz do<br />

paradoxo além do aproveitamento de termos corriqueiros para estabelecer novos<br />

conceitos, quando estes não se aliam a outros muito específicos para a invenção de<br />

inusitadas expressões aparentemente simples que anunciam e enunciam, de fato,<br />

complexas formulações teóricas. No presente caso, podemos remeter o termo<br />

destruição, muito utilizado por Winnicott, ao menos carregado agressão ou<br />

6 Em “Objetos transicionais e fenômenos transicionais” , Winnicott estabelece que o termo ‘seio’ se refere a<br />

toda a maternagem. Cf. WINNICOTT, 1978, 408, nota 10 (ver, também, p. 402) .<br />

63


agressividade (Cf. ABRAM, 2000, 22 ) e ainda mais quando o próprio Winnicott<br />

adverte:<br />

Ver-se-á que embora ‘destruição’ seja a palavra que estou utilizando, esta<br />

destruição real pertence ao fracasso do objeto em sobreviver. A palavra<br />

‘destruição’ é necessária, não por causa do impulso do bebê a destruir,<br />

mas por causa do risco do objeto não sobreviver, o que também significa<br />

experimentar mudança em qualidade ou em atitude (WINNICOTT, 1994,<br />

p.176).<br />

Nos últimos anos de sua vida, a principal preocupação de Winnicott foi com o<br />

papel da agressividade na relação de objeto e no uso do objeto. O que é<br />

fundamental no desenvolvimento saudável é a capacidade de encontrar um objeto e<br />

usar este objeto. “Por esta razão”, diz ele, “suponho que essas palavras poderiam,<br />

representar a comunicação estabelecida entre o bebê e sua mãe:<br />

Eu encontrei você;<br />

Você sobrevive ao que lhe faço à medida que<br />

a reconheço como um não-eu;<br />

Uso você;<br />

Esqueço-me de você;<br />

Você, no entanto, se lembra de mim;<br />

Estou sempre me esquecendo de você;<br />

Perco você;<br />

Estou triste<br />

(WINNICOTT, 1996, p.92 ) 7<br />

Esta é uma realidade que se constitui como processo, pois ...<br />

7 Ver, ainda, ABRAM, 2000, p.22.<br />

para Winnicott, o amadurecimento humano se estende por todas as etapas<br />

da vida e nunca leva à maturidade total. Somos seres de relação,<br />

dependentes de outros seres que se igualam a nós nas buscas e carências.<br />

Estamos voltados para um futuro que desconhecemos, mas que se<br />

desdobra em motivação para dar continuidade à caminhada (MASSIH,<br />

2006, p. 3).<br />

64


3 FABULOSAS E FERINAS MORAIS DO <strong>HUMOR</strong><br />

Quando se procurou reunir aqui, neste mesmo cenário escritural, Freud,<br />

Winnicott e Millôr Fernandes, um certo clima de desconforto parecia pairar no ar. E<br />

não sem motivos, ainda que aparentes.<br />

Afinal, os psicanalistas não conferiram lá muita importância aos textos<br />

freudianos sobre o riso, preferindo tomá-los por mera incursão investigativa num<br />

campo que pouco representava na área do sofisticado modelo teórico-clínico da<br />

psicanálise propriamente dita. Além disso, não consideram particularmente<br />

imprescindíveis as contribuições de Winnicott, por julgar excessivas sua atenção ao<br />

jogo lúdico na constituição do Sujeito humano e sua linguagem teórica muito<br />

próxima da coloquial.<br />

Por outro lado, em várias oportunidades — das quais a pequena amostragem<br />

aqui contida bastará para demonstrar —, Millôr fustiga a prática psicanalítica de<br />

maneira inequivocamente sarcástica.<br />

Se juntarmos ainda, neste colóquio aparentemente inusitado, um quarto<br />

participante — no caso La Fontaine — o que poderá advir?<br />

É o que se confere em seguida.<br />

4.1 NOVAS CONCLUSÕES INTRODUTÓRIAS<br />

65


Se Freud destinara ao riso um livro inteiro (1905) e voltou ao tema cerca de<br />

vinte anos depois (1927), num artigo instigante especificamente destinado ao<br />

Humor, os psicanalistas deveriam atentar para tal fato e, conseqüentemente, sua<br />

importância. Mas isto não ocorreu e eles ignoraram solenemente a presença do<br />

Humor em seus comentários, hipóteses e práticas, favorecendo assim a suposta<br />

solenidade requerida pelo ofício.<br />

Diz-se, com a unanimidade que costuma caracterizar o falso saber, que<br />

Lacan teria sido o único a atentar para os ditames do Humor no âmbito da<br />

psicanálise, depois do gesto inaugural de Freud. Aliás, quanto a esta e outras<br />

afirmações, Freud é que se cuide, porque senão com pouco tempo não passará de<br />

autor de meras sugestões importantes só plenamente desenvolvidas, elaboradas e<br />

estruturadas por Lacan. Neste rumo, a dívida de Freud para com este se tornará<br />

impagável (no duplo sentido, é claro!).<br />

Para atrapalhar um pouco esta fácil e ridícula trajetória, basta lembrar (já que<br />

os solenes psicanalistas fazem certa questão de esquecê-lo) que Winnicott conferiu<br />

ao lúdico uma posição central em suas formulações. Por uma destas tortuosas vias<br />

em que um equívoco aponta para o verdadeiro cerne da questão, a obra mais<br />

conhecida de Winnicott atende pelo significativo título de O brincar e a realidade.<br />

Fruto de uma insistente (e, ao que tudo indica, defensiva) ignorância a<br />

respeito de uma produção delineada ao longo de décadas, em praticamente todos<br />

os cursos de graduação em Psicologia e mesmo na maioria dos de formação em<br />

Psicanálise, O brincar e a realidade é a obra que se encontra na bibliografia<br />

recomendada; a única. E qualquer um que se debruce sobre ela só encontra,<br />

praticamente, duas opções: considerá-la ininteligível ou banal. Não é difícil imaginar<br />

que o segundo destino seja preferível ao primeiro, o qual envolveria atordoamento,<br />

inquietação, curiosidade desafiadora e dedicação aos passos anteriores para refazer<br />

o percurso da indagação winnicottiana e, aí sim, apreciar devidamente as inúmeras<br />

perspicácias contidas num volume tão modesto de páginas, na verdade uma espécie<br />

de súmula onde a síntese sacrificou detalhes e delicadezas que o rigor exige. Aliás<br />

Winnicott não escreveu tal síntese.<br />

Já combalido pela doença cardíaca com que lutava há anos, Winnicott não<br />

chegou sequer a ler as provas de seu, depois, mais famoso livro, na verdade<br />

construído por Masud Khan, seu fiel amigo e discípulo. Morreu na madrugada do dia<br />

em que as tais provas lhe chegariam às mãos para que as aprovasse.<br />

66


Mesmo com todo o desserviço que freqüentemente presta à volumosa e<br />

detalhada obra Winnicottiana, O brincar e a realidade — publicado por Masud Khan<br />

— serve, no mínimo (rigorosamente) para demonstrar que o jogo lúdico encontra-se<br />

na base de toda a construção teórica de Winnicott (Cf. CANTUDO, 2000, p.54-59), e<br />

que esta nunca deixou de acentuar a provocação fundamental de Freud: “a antítese<br />

de brincar não é o que é sério, mas o que é real” (FREUD, 1976d, p.149)<br />

A contribuição de Winnicott , no presente estudo, reside exatamente no fato<br />

de avançar nesta direção e apontar no próprio brincar, os instrumentos que<br />

promovem o erguimento da realidade como fato humano. Em outras palavras, é no<br />

brincar (e na agressividade que encontra-se em sua textura) com o mundo em torno<br />

que o filhote-de-homem vai estabelecendo seus contornos e reconhecendo-os como<br />

alteridade, realidade. O brincar em Winnicott envolve, portanto, uma cota<br />

fundamental de agressividade. E quanto mais criativo é este experimentar-o-mundo,<br />

mais esta agressividade se aproxima de uma crueldade que, tornando-se arte, ainda<br />

arte do Humor, visa transformá-lo, ultrapassá-lo em seu perfil atual e ampliar os<br />

próprios contornos que o lúdico permitiu estabelecer.<br />

Mesmo em suas refinadas elaborações sobre os vínculos entre crueldade e<br />

criatividade, Winnicott não se afasta muito de Freud quando este assinalava que “ a<br />

economia da compaixão é uma das mais freqüentes fontes do prazer humorístico”.<br />

(OC, p.259). E nisto está envolvida a compaixão por si mesmo. Millôr é que o diga!<br />

Mas de fato,<br />

existe uma outra circunstância que nos leva a examinar por mais alguns<br />

instantes essa oposição entre a realidade e o brincar. Quando a criança<br />

cresce e pára de brincar, após esforçar-se por algumas décadas para<br />

encarar as realidades da vida com a devida seriedade, pode colocar-se<br />

certo dia numa situação mental em que mais uma vez desaparece essa<br />

oposição entre o brincar e a realidade. Como adulto, pode refletir sobre a<br />

intensa seriedade com que realizava seus jogos na infância; equiparando<br />

suas ocupações do presente, aparentemente tão sérias, aos seus jogos de<br />

criança, pode livrar-se da pesada carga imposta pela vida e conquistar o<br />

intenso prazer proporcionado pelo humor (FREUD, 1976d, p.150)<br />

4.2 MILLÔR E FREUD: CONVERGÊNCIAS<br />

As invectivas de Millôr Fernandes contra a psicanálise são muito<br />

contundentes para deixá-las à margem quando se quer demonstrar que seu Humor<br />

é, essencialmente, aquele descrito por Freud. Não se trata, então, de escamotear<br />

67


dificuldades para esta aproximação, mas demonstrar que estas são apenas<br />

aparentes, mas tão aparentemente claras que chegam a dificultar uma visão mais<br />

acurada. Olhe-se, por exemplo, para este foco numa perspectiva<br />

descontextualizada:<br />

ODE AO PSICANALISTA<br />

Desmembra a alma em pedaços<br />

Rotula todas as partes<br />

Ego, id, dor anseio<br />

Arquiva peça por peça<br />

Ciúmes, recalques, medo<br />

Conhece todo segredo<br />

Dos corações em desgraça<br />

Tabela paixão e angústia<br />

Computa sonho e remorso<br />

Pinça e mede sentimentos<br />

E sabe explicar por que<br />

Eu rio do meu desastre<br />

E você pensa em suicídio<br />

Só perdendo o dente siso.<br />

Com o consciente sabido<br />

Desce mais fundo e além<br />

Vai batizando a alma<br />

Com os nomes que a alma tem.<br />

E com o inconsciente explica<br />

O brilho de qualquer bossa<br />

O horror de qualquer fossa.<br />

As perversões sexuais<br />

Para ele são normais:<br />

E sabe todo trançado<br />

Dos fatores sociais.<br />

Seu tirocínio é perfeito<br />

Seu raciocínio, bacano.<br />

Tem apenas um defeito:<br />

Nunca viu um ser humano<br />

(FERNANDES, 1974b, p.158).<br />

Todos os termos psicanalíticos utilizados por Millôr já ingressaram na<br />

linguagem popular, tal a divulgação e a penetração da psicanálise, inclusive em<br />

todas as formas de mídia. Com mais de cem anos de existência, suas proposições e<br />

termos mais gerais ganharam significativo espaço na fala corriqueira. Se, contudo, o<br />

leitor dessa dissertação de mestrado requerer explicitações e aprofundamentos,<br />

pode e deve recorrer ao valioso Vocabulário da psicanálise, de J. LAPLANCHE e<br />

J.-B. PONTALIS, onde as definições são apresentadas de forma, ao mesmo tempo,<br />

simples e precisa.<br />

Voltando a Millôr, esta “Ode ao psicanalista” — visto como aquele que<br />

desmembra a alma em pedaços e rotula todas as partes — apresenta,<br />

68


inequivocamente, a radical recusa millôriana da prática da psicanálise como<br />

instrumento terapêutico, principalmente em virtude do privilégio concedido à<br />

fragmentação do discurso. Esta recusa, entretanto, não se estende à teoria de Freud<br />

(Cf. Millôr, 2004, p. 164). E para ir adiantando um pouco o assunto, não custa nada,<br />

mais uma lenha na fogueira:<br />

POEMINHA PSICOTERÁPICO<br />

O que disse o psicanalista<br />

Pra Branca de Neve?<br />

— Não é nada, não é nada,<br />

Bonitinha, não é nada.<br />

Você tem apenas uma forte repressão<br />

A espelhos, pentes<br />

E maçãs envenenadas<br />

(IBIDEM, p.145).<br />

É nítido o reducionismo que Millôr denuncia na prática psicanalítica, e que<br />

está também presente na “Ode ao psicanalista”. Neste “poeminha” sobre Branca de<br />

Neve, não existe, de fato, o ciúme, a inveja — que pode virar tentativa de destruição<br />

do possuidor dos atributos ou objetos invejados — ou, em suma, a própria realidade.<br />

Não adianta Branca de Neve declarar que está sendo ameaçada e perseguida,<br />

argumentar e arrolar motivos gerados pelo contexto em que vivia. Tudo se passa,<br />

tão somente, como efeito de forças internas que a fazem sofrer apenas por conta<br />

“de uma forte repressão a espelhos, pentes e maçãs envenenadas” (IBIDEM) que a<br />

acossam a partir do Inconsciente. Millôr é totalmente avesso a tal concepção.<br />

Nota-se, por estes primeiros elementos, que Millôr mostra-se avesso à prática<br />

da psicanálise, aos seus procedimentos terapêuticos. Mas, como ele não pára por<br />

aí, melhor deixar que ele exponha todos os termos de sua contestação, à sua<br />

maneira:<br />

Acho muito natural que muitos leitores não entendam certas posições<br />

minhas e confesso meu enorme tédio em explicá-las. Não sou dado a ficar<br />

toda hora apresentando bolhetim de bom comportamento pra [...]<br />

psicanalistas que pretendem transformar seu trabalho (jamais ciência, em<br />

seu melhor momento uma maravilhosa especulação) numa terapia a bom<br />

mercado [...] (FERNANDES, 1985a, p.77)<br />

A partir de então, a crítica millôriana tem dois alvos específicos, quando se<br />

trata da psicanálise: a pretensão científica, ou melhor, seu posicionamento como<br />

ciência, e seu próprio valor terapêutico. Este último já se tornara evidente como<br />

ponto crucial desta crítica, e o outro surge com mais nitidez no artigo acima citado.<br />

Qualquer um que se sinta tentado e disposto a atravessar toda a vasta<br />

produção de Millôr editado em livros, encontrará vários outros exemplos e formas de<br />

expressão desse combate à psicanálise como terapêutica e ciência, com o maior<br />

69


número de ocorrências incidindo como se procurou apontar sobre o primeiro<br />

aspecto.<br />

É óbvio que dentre os psicanalistas, apenas um concorda plenamente com<br />

ele: Sigmund Freud. É óbvio?! Não, mas deveria sê-lo para quem se deu, como ele,<br />

ao trabalho de ler Freud.<br />

De fato, se as invectivas de Millôr contra a psicanálise são muito<br />

contundentes, como se disse desde o início, são também muito apropriadas, quando<br />

se trata do que fizeram a maioria dos psicanalistas com a proposta freudiana, ao não<br />

trilhar palmo a palmo ser percurso e apropriar-se dela aos punhados que mal lhes<br />

cabe nas mãos e, o que é pior, manufaturando outros sentidos segundo uma<br />

originalidade duvidosa, ditada por intempestividades que só a precária avaliação<br />

sustenta (Cf. MIJOLLA, 1985, p.88).<br />

Qualquer um que se der ao trabalho de enfrentar a copiosa produção<br />

freudiana, feita de livros, artigos e cartas, para devidamente apreciar suas<br />

concepções — o que, para qualquer um que se atribua o título de psicanalista é<br />

tarefa fundamental, ou pelo menos assim seria, caso fosse sincero com suas<br />

propostas — verá que a imensa maioria do que se disse calcado nela é sumário,<br />

precário e, não poucas vezes, aleatório e descontextualizado.<br />

Esse fruto da superficialidade cômoda é vastamente colhido por ditos<br />

seguidores, revisores, ampliadores e contestadores de Freud, sendo muito difícil<br />

distinguir uns de outros, dada sua comum parcialidade, senão quando eles se<br />

autodenominam assim ou assado. É uma verdadeira salada de frutos da mesma<br />

árvore.<br />

Por isto é surpreendente encontrar Freud como avalista das críticas de Millôr<br />

à psicanálise. Ele, Freud, contudo, sabia que os elementos com os quais lidava, não<br />

eram passíveis da mensuração que as ciências naturais exigiam, e acreditava que<br />

assim permaneceriam. Sua pretensão científica visava afastar-se dos arroubos<br />

filosóficos ou até religiosos que suas investigações poderiam adquirir (o que de fato,<br />

contra ele, aconteceu). Sua proposta é clara: não pretende que a psicanálise seja<br />

mais um sistema filosófico dentre os outros ou uma crença apenas contrastante com<br />

as já existentes. Mas o valor da psicanálise para os diversos campos do saber e<br />

fazer humanos, para ele é o mais importante. E tanto, que escreve a Jung, em 5 de<br />

julho de 1910: “torno-me cada vez mais convencido do valor cultural da psicanálise e<br />

70


anseio por um espírito lúcido que dela possa extrair as inferências válidas para a<br />

filosofia e a sociologia” (FREUD & JUNG, 1976, p.396).<br />

Um espírito lúcido que não extraia apenas um valor terapêutico da<br />

psicanálise?! Para Freud, conforme declarou a Wilhelm Fliess, “o emprego da<br />

análise para o tratamento das neuroses é somente uma de suas aplicações; o futuro<br />

talvez demonstre que não é o mais importante. Seja como for, seria errôneo<br />

sacrificar todas as outras aplicações a essa única [...]” (FREUD, 1986, p.281).<br />

Como se vê, ao recusar a psicanálise como procedimento terapêutico, Millôr<br />

não fere nenhum brio, digamos assim, de Freud. Este, como se viu, o consideraria<br />

lúcido ao dar outros destinos à especulação freudiana. Quanto a não considerá-la<br />

como ciência, aí suas opiniões pouco divergem, mas isto pouco importaria a Freud,<br />

principalmente quando intentava separar a psicanálise da ameaça de tornar-se mera<br />

crença. Isto fica sublinhado em uma das cartas que escreveu ao pastor protestante<br />

Oskar Pfister:<br />

Tenho declarado freqüentemente que considero mais importante o<br />

significado científico da análise do que o médico, e na terapia considero<br />

mais eficaz sua influência na massa pelo esclarecimento e o<br />

desmascaramento de enganos do que no restabelecimento de pessoas<br />

isoladas (FREUD, 2003, p.160).<br />

O pastor protestante Oskar Pfister (1873-1956), doutor em teologia e<br />

filosofia, manteve um contato permanente com Freud, de 1909 até a morte deste,<br />

em 1939. Além do ministério religioso, atuava como educador e orientador dos<br />

jovens nas paróquias sob seu encargo, sendo este o trabalho que o levou a Freud:<br />

pretendia interligar psicanálise e pedagogia (Cf. WONDRACEK, 2003, p.10).<br />

A amizade entre os dois permaneceu sólida e íntegra, sem descartar a<br />

possibilidade de divergência. E Pfister foi um dos primeiros a questionar Freud a<br />

respeito da relação entre psicanálise e visão do mundo — Weltanschauung (Cf.<br />

IBIDEM, p.10). A carta — ou o trecho dela que se revelou mais pertinente —, citada<br />

anteriormente, constitui a resposta de Freud a tal questão.<br />

Entretanto, não é apenas quando dialoga com “o religioso que busca na<br />

psicanálise uma melhor instrumentação para entender a alma” (IBIDEM, p.7) que<br />

Freud defende uma Weltanschauung científica para a psicanálise (Cf.<br />

FREUD,1976b, p. 193-220). Numa carta a Albert Einstein, de 3 de maio de 1936,<br />

71


espondendo a expressa consideração deste por seu trabalho, ele, com refinada<br />

ironia, escreve:<br />

Naturalmente, sempre soube que só me admira ‘por delicadeza’, mas<br />

acredita muito pouco em todas as minhas asserções. Ora, muitas vezes me<br />

perguntei o que se pode realmente admirar nelas se são errôneas, isto é, se<br />

não encerram grande parcela de verdade. Não acha, aliás, que eu teria sido<br />

melhor tratado se minhas teorias tivessem contido uma percentagem maior<br />

de erro e de absurdo? (apud MIJOLLA, 1985, p.152)<br />

Não considerando, como cabe aqui, os interesses epistemológicos de Millôr e<br />

Freud, pois a estes uma explanação demasiadamente longa deveria ser dedicada se<br />

o interesse não fosse outro, então basta o que se apresentou anteriormente, com<br />

citações e indicações de leitura. O ponto crucial, ou seja, as perspectivas quanto ao<br />

valor terapêutico da psicanálise, não produziria entre ambos uma verdadeira<br />

contenda. Esta é apenas aparente, e ainda mais quando Freud sublinhava que a<br />

psicanálise lhe interessava mais “pelo esclarecimento e desmascaramento de<br />

enganos do que no restabelecimento de pessoas isoladas” (FREUD &<br />

PFISTER,2003, p.160). Em carta a Pfister, em 1928, não faz senão confirmar o que<br />

já dissera em outra, de 1896, a Wilhelm Fliess, trinta e dois anos antes:<br />

Quando jovem, eu não conhecia nenhum outro anseio senão o de<br />

conhecimentos filosóficos, e agora estou prestes a realizá-lo, à medida que<br />

vou passando da medicina para a psicologia. Tornei-me terapeuta contra a<br />

minha vontade [...] (FREUD, 1986, p.181).<br />

Portanto, não haveria porque Freud se inquietar com a acidez de Millôr<br />

quando se refere à porção clínica da psicanálise. O surpreendente, no caso, é que<br />

Millôr se desse ao trabalho de dizer aos psicanalistas o quanto ele os considerava<br />

obtusos e lhes prestasse esse serviço, caso eles de dessem conta disto. É que eles,<br />

os psicanalistas, fizeram o caminho inverso ao de Freud e foram se aproximando<br />

cada vez mais do valor terapêutico da psicanálise, de sua formulação médica e, a tal<br />

ponto, que em qualquer impasse ou dúvida especulativa recorrem ao critério clínico,<br />

fazendo lembrar mais e mais um antigo refrão da medicina: a clínica é soberana. Na<br />

contramão de Freud e da própria prática médica — que hoje se serve principalmente<br />

dos recursos de uma tecnologia desenfreada em seus supostos progressos — os<br />

psicanalistas falam sobre tudo o quanto há, até quando, engasgados com qualquer<br />

interrogação mais perspicaz, se refugiam sob as asas absolutas da clínica,<br />

72


tornando-a mítica e permeável apenas aos devidamente iniciados ( Cf. ROZEN,<br />

1978, p.206-600; THOMPSON,1976, p.11-217 )<br />

Freud e Millôr dispensam tal encarceramento.<br />

Assim, no postulado 4.123 dentre os hipotéticos 12.628 que compõem os<br />

fundamentos da Universidade Humorística do Méier, Millôr proclama: “Todo poder a<br />

Freud, como especulação intelectual. Nenhum como terapêutica” (FERNANDES,<br />

2004, p.164).<br />

Freud, já concordando, de antemão, em não discutir potências terapêuticas<br />

da psicanálise, mas ainda insistindo em lhe conferir um certo caráter científico,<br />

concordaria com o termo especulação, pois já observara que “sem especulação e<br />

teorização metapsicológica — quase disse ‘fantasiar’ — não daremos outro passo à<br />

frente” (FREUD, 1975, p.257).<br />

No campo do humano propriamente dito não há qualquer motivo para os<br />

imperativos das Ciências da Natureza; aí só importam as conquistas das Ciências<br />

da Cultura. Mas esta é uma sisuda discussão que está longe de chegar ao fim e não<br />

interessa levá-la tão adiante.<br />

4.3 LA FONTAINE E MILLÔR : TRADIÇÃO E RUPTURA?<br />

4.3.1 Justificativas<br />

Diante da volumosa e múltipla produção de Millôr Fernandes, algum ponto de<br />

ancoragem deveria ser estabelecido para a abordagem que o estudo em curso<br />

requer. Optou-se, então, por suas fábulas e não sem os devidos motivos. O primeiro,<br />

por tratar-se de uma escolha tão pertinente quanto qualquer outra, visto que Millôr<br />

utilizou (e utiliza) variadas formas de expressão, verbal e plástica, para destilar seu<br />

Humor — um painel muito ilustrado disto encontra-se no Trinta anos de mim<br />

mesmo (Cf. FERNANDES, 1974b, p.5; 236), onde exemplos colhidos entre 1943 e<br />

1972 revelam, no mínimo, tal diversidade; o segundo, por apresentarem de forma<br />

nítida e inequívoca o teor agressivo (e até cruel) da ultrapassagem que o Humor<br />

pretende e promove.<br />

Torna-se claro que este segundo motivo foi o que primeiro ocorreu, mas<br />

precisava resguardar-se do temor de estar sendo reducionista diante da caudalosa<br />

criatividade millôriana, comprimindo-a demasiadamente entre suas margens. Por<br />

73


conseqüência desta inquietação, vasculhou-se tudo o que se encontra editado no<br />

formato livro — e que corresponde a material selecionado, quando se refere ao que<br />

surgiu originalmente em jornais e revistas, ou peças teatrais, ou contribuição em<br />

obras coletivas, ou coleção de charges, ou mais ainda e além — e ao fim do<br />

mergulho, emergiram as Fábulas fabulosas como a melhor forma de conceder a<br />

Millôr uma concisão, sem contudo traí-lo em nada, porque tais fábulas são ilustradas<br />

por ele e, ao pé da letra, ilustram precisamente seu Humor. Houve, enfim, uma<br />

escolha, e a autora desta dissertação é integralmente responsável por ela.<br />

Não é pouca ousadia dizer que se concede a Millôr uma concisão ao tomar-<br />

lhe preferencialmente as fábulas. Versátil, plural, experimentador, criador profuso,<br />

não há qualquer argumento capaz de torná-lo resenhável ou procedimento<br />

resumidor que o abarque. Por isto mesmo, sem resumo, sem resenha, sem<br />

paráfrases, suas fábulas entram em cena tais como são. A ousadia consiste em<br />

constatar que em suas fábulas ele está plenamente apresentado em seu Humor e,<br />

para confirmar tal coisa, utilizam-se observações dele mesmo sobre de que se trata<br />

isto: o Humor. É aí que o percurso anterior em Freud e Winnicott encontram<br />

pertinência, pois vieram para este fim: um encontro com Millôr.<br />

Mas esta escolha da fábula ainda tem outras razões, que vão desde o caráter<br />

curto e certeiro — o que requer toda produção de riso — até discussões sobre uma<br />

originalidade que Millôr não requisitou indevidamente para si (Cf. FERNANDES,<br />

1974b, 231-236). E, mais além, o sabor de arranjar um certo encontro dele com La<br />

Fontaine antes de deixá-lo às voltas com enredos próprios.<br />

4.3.2 Esclarecimentos<br />

Terminadas as justificativas, cabe deixar claro em que consiste a fábula. De<br />

início, comedidamente, ela pode ser apresentada como:<br />

Narrativa curta, não raro identificada com o apólogo e a parábola, em razão<br />

da moral, implícita ou explícita, que deve encerrar [...] no geral, é<br />

protagonizada por animais irracionais, cujo comportamento, preservando as<br />

características próprias, deixa transparecer uma alusão, via de regra satírica<br />

ou pedagógica, aos seres humanos. Escrita em versos até o século XVII,<br />

em seguida adotou a prosa como veículo de expressão (MOISÉS, 1988,<br />

p.226).<br />

74


Vamos, segundo as indicações apresentadas, tentar distinguir então a fábula<br />

de seus pares: o apólogo e a parábola.<br />

Há quem as distinga pelas personagens: o apólogo seria protagonizado por<br />

objetos inanimados (plantas, pedras, rios, relógios, moedas, estátuas, etc.),<br />

ao passo que a fábula conteria de preferência animais irracionais, e a<br />

parábola, seres humanos (IBIDEM, p.34).<br />

Estando assim muito bem definidos cada um dos termos e estabelecidos os<br />

critérios que os distinguem, resta apenas um comentário casual, para fins de<br />

arremate: “modernamente, La Fontaine destaca-se como o mais importante dos<br />

fabulistas: suas histórias, dadas a lume entre 1668 e 1694, foram largamente<br />

traduzidas, aplaudidas e imitadas” (IBIDEM, p.226).<br />

Devidamente esclarecidos os âmbitos da fábula, do apólogo e da parábola e<br />

dado o merecido destaque a La Fontaine por suas histórias, tudo estaria no seu<br />

devido lugar, não fosse um pequeno porém. Pois, La Fontaine, afirma:<br />

Sendo tais fábulas conhecidas de todos, eu nada teria feito de mal se as<br />

tornasse novas por alguns traços que melhorassem o gosto. É o que hoje se<br />

pede: quer-se novidade e a graça. Eu não chamo de graça o que excita o<br />

riso, mas um certo encanto, um ar agradável que se pode dar a todos os<br />

assuntos até aos mais sérios (1970, p.19).<br />

Uma pergunta, interrompendo o fluxo da contradição: um ar mais agradável<br />

que se pode dar até aos assuntos mais sérios não excita o riso? Não é isto que faz o<br />

Humor? Mas isto não é assunto para agora.<br />

Pelo menos restam as especificidades da fábula, do apólogo e da parábola<br />

com os asseguramentos já obtidos. Entretanto, La Fontaine nem com isso concorda<br />

e toma a palavra outra vez:<br />

O apólogo é composto de duas partes, das quais uma pode chamar-se<br />

corpo, a outra a alma. O corpo é a fábula; a alma, é a moralidade.<br />

Aristóteles só admite na fábula os animais; ele exclui o homem e as plantas.<br />

Esta regra é menos de necessidade que de conveniência, porque nem<br />

Esopo, nem Fedro, nem nenhum dos fabulistas a cumpriu. Quanto à<br />

moralidade, ao contrário, nenhum deles a dispensou. Se a mim me cabe<br />

fazer, é apenas nos caminhos em que ela não pode penetrar com graça, e<br />

onde é fácil ao leitor supri-la [...]. Acreditei que não fosse um crime ir além<br />

dos antigos costumes, quando não pudesse pô-los em uso, sem ofendê-los<br />

(IBIDEM, p.21).<br />

75


As “definições definitivas”, como diria Millôr (Cf.1974b p.110), tornam-se<br />

precárias diante de certas aversões a postulados e afirmam, por conta própria, a<br />

criatividade e o Humor. Enquanto tentam enquadrá-la, a fábula guarda em seu cerne<br />

uma essência crítica; e uma moral que, como se viu, só se tornou implícita quando<br />

La Fontaine, sem ofender ostensivamente a tradição, indicou tal possibilidade.<br />

Construída para apresentar, no caráter aforismático explícito ou implícito de<br />

sua moral, uma instrução, um ensinamento, uma visão de mundo, ela apresenta,<br />

fundamentalmente, um erro, um equívoco, uma atitude reprovável, para, em<br />

seguida, afirmar um princípio de conduta, sob a forma de alerta, advertência,<br />

proscrição ou prescrição. Pois, “Em vez de estar a corrigir nossos hábitos, é preciso<br />

esforçar-se por torná-los bons, mesmo quando são eles ainda indiferentes ao bem<br />

ou ao mal. Ora, que método pode contribuir mais utilmente que estas fábulas? (LA<br />

FONTAINE, 1970, p.19-20)<br />

Assim, o expediente da fábula se constituiu, através dos séculos, como uma<br />

forma de sabedoria sobre as questões da vida, ou seja, como arte de dar voz aos<br />

vários elementos que o conhecimento do convívio entre os homens traz de seus<br />

percalços. Por ser disto que trata, das inquietações contumazes e quase cotidianas<br />

da vida humana, ela quase sempre recorre ao artifício de descrevê-las como<br />

situadas entre animais, vegetais (e mesmo objetos) ou em lugares muito distantes,<br />

daí extraindo um prazer que antes seria amargo reconhecimento de insensatezes<br />

que só podem ocorrer ao dito homo sapiens. É uma forma, mais ou menos, lúdica de<br />

saber-se falho, mas ao mesmo tempo buscar o caminho do acerto:<br />

Pelos raciocínios e pelas conseqüências que destas fábulas se podem tirar,<br />

formamos o juízo e os costumes [...], pois somos a súmula do que há de<br />

bom e de mau nas criaturas irracionais [...]. Assim essas fábulas são um<br />

quadro, onde cada um de nós se encontra descrito [...] (IBIDEM, p.20).<br />

Eis aí a função da moral da fábula, seu fecho: traçar o caminho para superar<br />

as insuficiências humanas onde ela mesma se nega a admiti-las. E disto se serviu o<br />

gênero, se assim se pode dizer, durante séculos.<br />

Mas o lúdico da fábula não se nutre apenas da espirituosidade de seu<br />

formato; pode avançar por um caminho mais radicalmente crítico: o Humor. Este,<br />

como se sabe desde as agudas observações de Freud, não está aí para<br />

brincadeiras de dizer-dizendo-que-não-disse ou para camuflar o risível da fragilidade<br />

76


humana na especificação de algo ridículo, num traço cômico qualquer. Ele, e apenas<br />

ele — o Humor —, é “uma funda, constante, irresistível indignação social, moral,<br />

humanística” (FERNANDES, 2004, p.141).<br />

Levada a este extremo crítico, a fábula é arrastada até à indignação moral,<br />

deixando de lado moralidades ajustadoras do contorno do bem-viver, que mantêm<br />

inatacáveis suas inconsistências, para expor as vísceras do vivido, ainda que<br />

cruelmente.<br />

Da tradição da fábula vem a própria ruptura com a moral da fábula, pois “só<br />

uma mentalidade extremamente anti-Humorística pode suportar ser ultrapassada,<br />

admitir idéias de humildade e aceitação do destino” (IBIDEM, p.164). Posta diante do<br />

Humor, a trama da fábula conduz a outro desfecho.<br />

O passado, como se sabe, não passa de uma invenção do presente, de forma<br />

que dizer que as Fábulas fabulosas, de Millôr Fernandes, constituem uma outra<br />

coisa em relação à arquitetura da fábula é, no mínimo, transformar ardiloso<br />

contraponto em banal espetáculo de desconstrução, pois “ é impressionante como<br />

esses escritores do passado já citavam tantos escritores modernos”<br />

(FERNANDES,1994, p.25). Embora, evidentemente, sejam os de hoje que citam os<br />

de antes, Millôr não perde a oportunidade de espicaçar a arrogância de certos<br />

supostos expoentes que despontam para o rápido esquecimento.<br />

Assim como o Humor não se reduz ao dito espirituoso ou à comicidade<br />

paródica e isto não significa que não se serve deles para realizar seus objetivos, a<br />

moral da fábula millôriana funda-se no formato para outros fins. “Tenho a impressão<br />

que, desde o início de minhas atividades, jamais escrevi uma moral moralizante”<br />

(FERNANDES,1974, p.233), diz ele, “mas em nossa profissão, lavradores do nada,<br />

o contato é permanente”(FERNANDES,2004,p.13). Nesse sentido, torna-se<br />

interessante esquecer, por um momento, o fato de La Fontaine ter recusado<br />

explicitamente a regra de que somente animais — e não homens, por exemplo —<br />

devem apresentar-se como personagens de uma fábula e citar outro fabulista como<br />

fiel seguidor de tal ditame. Explicitamente:<br />

77


O LEÃO E O RATO<br />

Depois que o Leão desistiu de comer o rato porque o rato estava com um<br />

espinho no pé (ou por desprezo, mas dá no mesmo) e, posteriormente, o<br />

rato, tendo encontrado o Leão envolvido numa rede de caça, roeu a rede e<br />

salvou o Leão (por gratidão ou mineirice, já que tinha que continuar a viver<br />

na mesma floresta); os dois, rato e Leão, passaram a andar sempre juntos,<br />

para estranheza dos outros habitantes da floresta (das fábulas). E, como os<br />

tempos são tão duros nas florestas quanto nas cidades, e como a poluição<br />

já devastou até mesmo as mais virgens das matas, eis que os dois se<br />

encontraram, em certo momento, sem ter comido durante muitos dias. Com<br />

licença da expressão, estavam com uma fome animal. Disse o Leão:<br />

— Nem um boi. Nem ao menos uma paca. Nem sequer uma lebre. Nem<br />

mesmo uma borboleta, como “hors-d’oeuvres” para a minha fome.<br />

Caiu estatelado no chão, irado ao mais fundo de sua alma leonina. E, do<br />

chão, onde estava, lançou um olhar ao rato, que fez este estremecer até a<br />

medula. A amizade resistiria à fome? — pensou ele. E, sem ousar<br />

responder à própria pergunta, esgueirou-se pé ante pé e sumiu da frente do<br />

amigo (?) faminto. Sumiu durante muito tempo. Quando voltou, o Leão<br />

passeava em círculos, deitando fogo pelas narinas, com ódio da<br />

humanidade. Mas o rato vinha com algo capaz de aplacar a fome do ditador<br />

das selvas: um enorme pedaço de queijo Gorgonzola que ninguém jamais<br />

poderá explicar onde conseguiu (fábulas!). O Leão, ao ver o queijo, muito<br />

embora não fosse, de usual, um animal queijífero, lambeu os beiços e<br />

exclamou:<br />

— Maravilhoso, amigo, maravilhoso! Você é uma das sete maravilhas!<br />

Comamos, comamos! Mas, antes, vamos repartir o queijo com<br />

equanimidade. E, como tenho receio de não resistir à minha natural<br />

prepotência, e sendo ao mesmo tempo um democrata nato e confirmado,<br />

deixo a você a tarefa ingrata de controlar o queijo com seus próprios e<br />

famélicos instintos. Vamos, divida você, meu irmão! A parte do rato para o<br />

rato; para o Leão a parte do Leão.<br />

A expressão ainda não existia naquela época, mas o rato percebeu que ela<br />

passaria a ter uma validade que os tempos não mais apagariam. E dividiu o<br />

queijo como o Leão queira: uma parte do rato, outra parte do Leão. Isto é:<br />

deu o queijo todo ao Leão e ficou apenas com os buracos. O Leão segurou<br />

com as patas o queijo todo e abocanhou um pedaço enorme, não sem antes<br />

elogiar o rato pelo seu alto critério:<br />

— Muito bem, meu amigo. Isso é que se chama partilha. Isso é que se<br />

chama justiça. Quando eu voltar ao poder entregarei sempre a você a<br />

partilha dos bens que me couberem no litígio com os súditos. Você é um<br />

verdadeiro e egrégio meritíssimo! Não vai se arrepender!<br />

E o ratinho, morto de fome, riu o riso menos amarelado que podia, e ainda<br />

lambeu o ar para o Leão pensar que lambia os buracos do queijo. E,<br />

enquanto lambia o ar, gritava, no mais forte que podiam os seus fracos<br />

pulmões:<br />

— Longa vida ao Rei Leão! Longa vida ao Rei Leão!<br />

MORAL: OS RATOS SÃO IGUAIZINHOS AOS HOMENS<br />

(FERNANDES, 1978, p.65-67).<br />

Esta moral, que parece inverter o quadro proposto por La Fontaine e que, de<br />

fato, ao fazê-lo, melhor o confirma, não escaparia, ao que parece, à perspicácia<br />

deste, mas não poderia ser assim exposta naquele contexto pois “na França só se<br />

considera o que agrada: é a grande regra, e por assim dizer a única”. (LA<br />

FONTAINE, 1970, p.21). Não só na França de La Fontaine vive o homem, já que<br />

78


muito depois e em outro lugar, o Jornal do Brasil se recusou a publicar um trabalho<br />

de Millôr pelas mesmas razões:<br />

Há um desenho dele que não chegamos a publicar porque nos pareceu, no<br />

momento em que foi feito, cruel demais, mas que certamente merece ser<br />

reproduzido aqui porque era e é na verdade perfeito, exato, impiedosamente<br />

verdadeiro. Reproduz a célebre fotografia de Tancredo, depois da segunda<br />

operação, posando entre D. Risoleta e os médicos de sua via crucis.<br />

Apenas, no desenho, a figura de Tancredo desapareceu; só se vê o espaço<br />

em branco que ele devia ocupar (PEDREIRA, 1985a, p.01) 8<br />

Para nos aproximarmos melhor da faceta cruel do Humor, sem incorrer no<br />

equívoco de considerá-la amoral, e revelar este aspecto nas fábulas de Millôr, vale<br />

apresentar uma delas, acompanhada de sua “explicação oportuna”, como introdução<br />

ao jogo contrapontístico que se fará a seguir. Mas antes, só um pouco antes,<br />

convém lembrar "o fato de que em nenhum campo cultural é possível ser original,<br />

exceto numa base de tradição [...]. A integração entre a originalidade e a aceitação<br />

da tradição como base da inventividade parece-me apenas mais um exemplo, e um<br />

exemplo emocionante, da ação recíproca entre separação e união"<br />

(WINNICOTT,1975, p.138).<br />

Repetido isto, deixemos a cargo do próprio Millôr o passo seguinte:<br />

O ESTUDANTE GRANDE E O PROFESSOR PEQUENININHO<br />

Ia um dia um professor bem pequenininho com sua espingarda de matar<br />

passarinho, andando pela floresta. Viu um passarinho, apontou a arma e<br />

disparou. Como não era professor de balística, mas sim de línguas<br />

neolatinas, errou o tiro, que foi pegar justamente na parte traseira de um<br />

estudante dessas línguas, que dormia no meio do mato. O estudante,<br />

levemente machucado, mas altamente enraivecido, acordou disposto a<br />

matar quem o ferira em sua honra. Pegou o professor pelo pescoço e já ia<br />

eletrocutá-lo, quando o professor lhe disse: “Pelo amor de Deus, não mate<br />

um professorzinho de línguas neolatinas”. O estudante sentiu piedade no<br />

coração e largou o pescoço que apertava com tanta vontade assassina.<br />

Dias depois, na biblioteca do colégio, o estudante tentava distinguir entre o<br />

dativo e o apelativo do verbo “colare” quando teve uma crise de desespero.<br />

Então pôs-se a gritar em altos brados que era um pobre diabo, que era um<br />

infeliz, que nascera para as violências do exercício físico e nunca para as<br />

sutilezas latínicas e algébricas. Então apareceu na biblioteca o diretor da<br />

escola e perguntou quem fazia aquela alaúsa. Todos que estavam na<br />

biblioteca silenciaram, não querendo denunciar o estudante, que se calara<br />

atemorizado. Mas o professorzinho, que lia a um canto, levantou-se e<br />

apontou o aluno e este foi expulso do colégio.<br />

8 A reprodução encontra-se no anexo A desta dissertação. E, basta olhar e ver, não é apenas o mais nítido espaço<br />

em branco que choca, mas também outros brancos espaços em meia lua. Se há algum humor negro —<br />

designação essencialmente imprópria , e, portanto, com “h” — em Millôr, este é o que mais o representaria.<br />

79


LIÇÃO.<br />

MORAL: UM PROFESSOR DEVE SEMPRE DAR UMA<br />

Explicação oportuna: Aos mais precipitados dos meus leitores, que acusam<br />

minhas morais de serem usualmente imorais ou amorais, peço que atentem<br />

sempre para o mais profundo sentido moral que empresto às minhas<br />

MORAIS.<br />

No caso do presente raconto, por exemplo, o leitor desatento é levado a um<br />

sentimento de profunda pena pela sorte do estudante e de profundo asco<br />

pela atitude do professor. Mas os meus melhores leitores verão logo que o<br />

professor só fez o que deveria fazer, estando, como estava, seu pequenino<br />

coração cheio de gratidão para com o grande estudante. Este, além de<br />

afirmar alto e bom som, na crise de desespero tida na biblioteca, que seu<br />

destino não era estudar abstrações e sim aperfeiçoar seus predicados<br />

físicos, fora já, numa prova concludente de sua inaptidão para os estudos<br />

convencionais, apanhado dormindo durante o período da aulas. Ora,<br />

denunciando-o, o nosso professor só teve um comportamento altamente<br />

moral, embora completamente anti-convencional. Fez com que o aluno<br />

pudesse ter nova oportunidade de seguir seu verdadeiro destino de<br />

brutamontes, sereno e feliz, sem doutoranças na cabeça. Encheu-se, a si<br />

mesmo, do delicioso bem-estar da gratidão devidamente paga. Estabeleceu,<br />

para si mesmo, a suprema satisfação de demonstrar sua capacidade de<br />

enfrentar o erro e o opróbrio da opinião ortodoxa, a felicidade de sentir-se<br />

um homem incompreendido quando, até então, tinha sido apenas um<br />

professor incompreendido. E a luz foi feita (FERNANDES, 1985b, p.75-77). 9<br />

O humor rascante é aqui levado à sua profunda matriz: a superação movida<br />

por irrevogável indignação, pela crueza que expõe as tolices reinantes e busca,<br />

contra todos os impropérios que lhe dirige a realidade, um orgulho de ser. Assim, um<br />

professor incompreendido, torna-se um homem incompreendido e encontra sua<br />

essência; superou a mediocridade em que o tinham pela conquista de lugar mais<br />

apropriado. Se antes era incompreendido porque ninguém lhe prestava atenção,<br />

agora é incompreendido porque todos o acusam de desumano ( ou de lídimo<br />

representante do absurdo ) e ninguém entende suas possíveis razões, o que lhe<br />

permite rir da realidade canhestra que o circunda. Ampliou seu horizonte.<br />

4.3.3 Contrapontos<br />

O diálogo entre Millôr e La Fontaine, dentro desta aparente — como se<br />

procurou demonstrar — ruptura entre anteriores e atuais originalidades, encontra<br />

ainda outros três ensejos mais explícitos para ocorrer, além dos artifícios anteriores.<br />

No primeiro, a partir de um enredo sobejamente conhecido ( que, no caso de<br />

La Fontaine, encontra-se na íntegra, em francês e português, e com o devido apreço<br />

por sua apresentação em versos, nos Anexo C deste estudo conforme arrazoados<br />

9 FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas, 10 ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1985b. A partir daqui, citaremos<br />

este texto, sempre por esta edição, pela abreviatura FF, seguida do número de página.<br />

80


prévios) estabelece-se o contraponto entre as morais moralizantes e outras,<br />

Humorísticas e amargas, bem afastadas deste caráter, e voltadas para o<br />

enfrentamento com a crueza das impropriedades humanas e sua ultrapassagem.<br />

Ao retomar o enredo, Millôr está às voltas com...<br />

A RAPOSA E AS UVAS<br />

De repente a raposa, esfomeada e gulosa, fome de quatro dias e gula de<br />

todos os tempos, saiu do areal do deserto e caiu na sombra deliciosa do<br />

parreiral que descia por um precipício a perder de vista. Olhou e viu, além<br />

de tudo, à altura de um salto, cachos de uvas maravilhosos, uvas grandes,<br />

tentadoras. Armou o salto, retesou o corpo, saltou, o focinho passou a um<br />

palmo das uvas. Caiu, tentou de novo, não conseguiu. Descansou, encolheu<br />

mais o corpo, deu tudo o que tinha, não conseguiu nem roçar as uvas<br />

gordas e redondas. Desistiu, dizendo entre dentes, com raiva: “Ah, também,<br />

não tem importância. Estão muito verdes.” E foi descendo, com cuidado,<br />

quando viu à sua frente uma pedra enorme. Com esforço empurrou a pedra<br />

até o local em que estavam os cachos de uva, trepou na pedra,<br />

perigosamente, pois o terreno era irregular e havia o risco de despencar,<br />

esticou a pata e... conseguiu! Com avidez colocou na boca quase o cacho<br />

inteiro. E cuspiu. Realmente as uvas estavam muito verdes!<br />

MORAL: A FRUSTRAÇÃO É UMA FORMA DE JULGAMENTO TÃO BOA<br />

COMO QUALQUER OUTRA (FF, p.118).<br />

Se a paródia pode ser filha do cômico, em Millôr ela, geneticamente, é filiada<br />

ao humor e serve antes à indignação firme e crítica que ao riso largo e frouxo e<br />

permissivo e passivo. No presente caso, a moral da fábula afirma que os critérios de<br />

julgamento são tão falhos no contexto humano, que qualquer suposto discernimento<br />

serve para ocupar tal posição.<br />

O humor é forma de fazer rir, mas basta um pouco de tempo para que o<br />

amargo apareça. Ele não alivia, antes opina e procura alguma reação.<br />

A “Raposa e as uvas” de Millôr é paródica, mas não é tão engraçada assim; é<br />

sarcástica, contundente. Está mais para o esgar que para o riso; é paródia com<br />

gosto de punhal.<br />

Como costuma ocorrer em sua múltipla, diversa e contínua produção, em<br />

algum outro ponto, anterior ou posterior, encontra-se a mesma idéia expressa de<br />

forma ainda mais cáustica, sem perder o riso ou muito pelo contrário. Para constatar<br />

isto, basta, por enquanto, pôr em cena outra fábula, cuja moral se entrelaça com a<br />

da anterior.<br />

81


A CAUSA DA CHUVA<br />

Não chovia há muitos e muitos meses, de modo que os animais ficaram<br />

inquietos. Uns diziam que ia chover logo, outros diziam que ainda ia<br />

demorar. Mas não chegavam a um conclusão.<br />

— Chove só quando a água cai do telhado do meu galinheiro —<br />

esclareceu a galinha.<br />

— Ora, que bobagem! — disse o sapo de dentro da lagoa. — Chove<br />

quando a água da lagoa começa a borbulhar suas gotinhas.<br />

— Como assim? — disse a lebre. — Está visto que só chove quando as<br />

folhas das árvores começam a deixar cair as gotas dágua que têm dentro.<br />

Neste momento começou a chover.<br />

— Viram? — gritou a galinha. — O telhado do meu galinheiro está<br />

pingando. Isso é chuva!<br />

— Ora, não vê que a chuva é a água da lagoa borbulhando? — disse o<br />

sapo.<br />

— Mas, como assim? — tornou a lebre. — Parecem cegos! Não vêem<br />

que a água cai das folhas das árvores?<br />

MORAL: TODAS AS OPINIÕES ESTÃO ERRADAS (FF, p.38).<br />

Millôr não é desesperançado, já que é humorista e crítico feroz, ou seja,<br />

combatente. Dizer que Millôr está querendo demonstrar que nossa visão do mundo<br />

é sempre restrita e que, noutros rumos e contextos, poderia ser diferente, não é<br />

tentar falar em seu nome, interpretá-lo. O Millôr que emerge do texto desta<br />

dissertação é apenas aquele submetido ao foco de investigação da autora; nada<br />

além de uma forma de apreciá-lo sob uma luz específica, tão boa quanto qualquer<br />

outra. Não se trata de um Millôr definitivo ou mesmo de uma definição de Millôr, mas<br />

apenas a tentativa de por em cena um possível diálogo entre ele, Freud e Winnicott.<br />

Além de La Fontaine, é claro.<br />

A segunda oportunidade de saborear as particulares soluções de La Fontaine<br />

e Millôr se apresenta quando a trama envolve um lobo e um cordeiro num jogo<br />

argumentativo. No caso de Millôr, tal jogo assume os contornos cômico que<br />

freqüentemente reinam neste tipo de contenda, mas o desfecho abandona esta<br />

roupagem para desnudar o verdadeiro caráter do Humor:<br />

O LOBO E O CORDEIRO<br />

Estava o cordeirinho bebendo água, quando viu refletida no rio a sombra do<br />

lobo. Estremeceu, ao mesmo tempo que ouvia a voz cavernosa: “Vais pagar<br />

com a vida o teu miserável crime”. “Que crime?” — perguntou o cordeirinho<br />

tentando ganhar tempo, pois já sabia que com lobo não adianta argumentar.<br />

“O crime de sujar a água que eu bebo”. “Mas como posso sujar a água que<br />

bebes se sou lavado diariamente pelas máquinas automáticas da fazenda?”<br />

— indagou o cordeirinho. “Por mais limpo que esteja um cordeiro é sempre<br />

sujo para um lobo” — retrucou dialeticamente o lobo. “E vice-versa” —<br />

pensou o cordeirinho, mas disse apenas: “Como posso eu sujar a sua água<br />

82


se estou abaixo da corrente?” “Pois se não foi você foi seu pai, foi sua mãe<br />

ou qualquer outro ancestral e eu vou comê-lo de qualquer maneira, pois<br />

como rezam os livros de lobologia, eu só me alimento de carne de cordeiro”<br />

— finalizou o lobo preparando-se para devorar o cordeirinho. “Ein moment!<br />

Ein moment!” — gritou o cordeirinho traçando lá o seu alemão Kantiano.<br />

“Dou-lhe toda razão, mas faço-lhe uma proposta: se me deixar livre atrairei<br />

para cá todo o rebanho”. “Chega de conversa” — disse o lobo — “vou comêlo<br />

logo, e está acabado”. “Espera aí” — falou firme o cordeiro — “isso não é<br />

ético. Eu tenho, pelo menos, direito a três perguntas”. “Está bem” — cedeu<br />

o lobo irritado com a lembrança do código milenar da jungle. — “Qual é o<br />

animal mais estúpido do mundo?” “O homem casado” — respondeu<br />

prontamente o cordeiro. “Muito bem, muito bem! — disse o lobo, logo<br />

refreando, envergonhado, o súbito entusiasmo. “Outra: a zebra é um animal<br />

branco de listras pretas ou um animal preto de listras brancas?” “Um animal<br />

sem cor pintado de preto e branco para não passar por burro” — respondeu<br />

o cordeiro. “Perfeito!” — disse o lobo engolindo em seco. “Agora, por último,<br />

diga uma frase de Bernard Shaw”. “Vai haver eleições em 66” — respondeu<br />

logo o cordeirinho mal podendo conter o riso. “Muito Bem, muito certo, você<br />

escapou!” — deu-se o lobo por vencido. E já ia se preparando para devorar<br />

o cordeiro quando apareceu o caçador e o esquartejou.<br />

MORAL: QUANDO O LOBO TEM FOME NÃO DEVE SE METER EM<br />

FILOSOFIAS (FF, p.20-21).<br />

Como se viu na situação anterior, também aqui pode-se encontrar outra<br />

textura para a mesma moralidade, só que ainda mais amarga e ostensivamente<br />

crítica da condição humana. As discussões são levadas a seu último termo e,<br />

portanto, às suas finalidades, em:<br />

OS PERIGOS DA FILOSOFIA<br />

E como estavam ali há tanto tempo juntos, aqueles quatros moços e o<br />

professor, um pouco mais velho, este propôs-lhes uma lição, um teste<br />

filosófico: “Meus amigos, companheiros, meus, por assim dizer, discípulos.<br />

Estamos aqui, neste aposento praticamente vazio. Pois bem, digamos que<br />

cada um de vocês tivessem que encher esse espaço. Qual seria a maneira<br />

mais rápida e mais útil de encher este quarto? Responda você primeiro,<br />

José”. E José, o mais velho dos moços, respondeu: “Eu encheria de palha.<br />

Seria uma maneira muito rápida de encher o quarto, porque a palha é leve e<br />

fácil de transportar e extremamente útil, pois com ela se poderiam tecer<br />

cestas e sobre elas se poderia descansar melhor”.<br />

O professou esclareceu: “Você deu a resposta brilhante, rápida e válida, e<br />

parece que quem errou fui eu. Embora a palha seja realmente uma coisa<br />

extremamente útil, eu preferia que a sugestão ficasse clara: é encher o<br />

quarto compacta, totalmente. Você agora, Mário”. Mário, o mais magro de<br />

todos, respondeu: “Eu encheria tudo de areia. Também é fácil de transportar<br />

e o quarto ficaria cheio. Poderíamos deitar também sobre a areia, uma vez<br />

seca, ou usá-la como defesa, nos olhos de alguém que nos atacasse”.<br />

“Muito bem”, aceitou o professor e mais velho. “Mas não haverá idéia que<br />

resolva melhor a proposta do teste, Eusébio?” Eusébio, o barbado, que já<br />

tinha tido tempo de pensar, disse: “Acho que sim. Eu encheria o aposento<br />

com água. Aí ele estaria cheio, completamente mesmo, não se poderia<br />

encher o quarto mais rapidamente, pois bastaria deixar a bica do banheiro<br />

aberta algum tempo. Além disso, todos sabem, existe coisa mais útil que a<br />

água?” “Você ganhou, realmente, na rapidez e na utilidade, Eusébio”, disse<br />

83


o professor, “mas se esqueceu de um ponto negativo — morreríamos todos<br />

afogados. Que diz você, Ivan?” E Ivan, o mais bem dotado de todos,<br />

respondeu docemente: “Da maneira mais simples, mais rápida, da única<br />

maneira verdadeiramente útil porque se poderia se poderia aproveitar o<br />

espaço”. Dirigiu-se até a parede, girou o comutador e o aposento encheu-se<br />

de luz. “Admirável! Correto! Perfeito!” disse o professor. “Realmente<br />

ninguém pode viver sem luz, a luz é que alimenta o mundo, a luz é que<br />

torna possível a saúde e a reprodução da espécie. Sem falar da simbologia,<br />

pois a luz representa o que há de mais...” Porém, antes que ele acabasse<br />

de falar, a polícia, que estava vigiando o edifício há vários dias, vendo que<br />

havia luz na janela, invadiu o aparelho e prendeu todo mundo.<br />

MORAL: QUEM ESTÁ NA MERDA NÃO FILOSOFA.<br />

SUBMORAL: DA DISCUSSÃO NASCE A LUZ. E DA LUZ? (FF, p.135-136).<br />

Eis uma cruel lucidez, ao pé da letra; e Fernando Pedreira, editor do<br />

Jornal do Brasil — onde o escritor, chargista, teatrólogo ou, enfim Humorista<br />

(Cf. FERNANDES, 1983, p.11-15), exerceu sua vasta e variada expressão<br />

criativa em páginas diárias e durante muitos anos — não deixa de constatá-la:<br />

“as observações de Millôr são quase sempre muito engraçadas,<br />

freqüentemente sábias., mas o que a meu ver lhes confere sua grandeza<br />

peculiar é a terrível, impiedosa, às vezes quase desumana, lucidez”<br />

(PEDREIRA, 1985a, p.01).<br />

Por fim, a terceira oportunidade de surpreender e pôr-se à escuta das<br />

supostas entrevistas de Millôr com La Fontaine, dá-se por ocasião dos<br />

diferentes destinos que atribuem à galinha dos ovos de ouro. E quando é<br />

Millôr quem tece os fios da trama, deve-se esperar algo de inesperado. No<br />

caso, seu artifício consiste em solapar a anterior moral moralizante, composta<br />

por La Fontaine, através de um ditado popular com igual aparência instrutiva.<br />

O resultado só pode ser um: o riso sardônico.<br />

A GALINHA DOS OVOS DE OURO<br />

Era uma vez um homem que tinha uma Galinha. Subitamente, em dia<br />

inesperado, a Galinha pôs um ovo de ouro. Outro dia, outro ovo. Outro ovo<br />

de ouro! O homem mal podia dormir. Esperava todas as manhãs pelo ovo<br />

de ouro — clara, gema, gala, tudo de ouro! — que o tirava da miséria aos<br />

poucos, e aos poucos o ia guinando ao milionarismo. O fato, que<br />

antigamente poderia passar despercebido, na data de hoje atraía<br />

verdadeiras multidões. E não só multidões. Rádios, jornais, televisão, tudo<br />

entrevistava o homem, pedindo-lhe impressões, querendo saber detalhes de<br />

como acontecera o espantoso acontecimento. E a Galinha, também, ia<br />

dando aqui e ali seus shows diante dos jornais, câmaras, microfones. Certa<br />

vez até, num esforço de reportagem, conseguiu pôr um ovo diante da<br />

câmara da TV Tupi. Porém o tempo passou e muito antes que o homem<br />

conseguisse ficar rico, a Galinha deixou de botar ovos de ouro.<br />

84


Desesperado, o homem foi ocultando o fato, até que, certo dia, não se<br />

contendo mais abriu a galinha para apanhar os ovos que ela tivesse lá<br />

dentro. Para sua decepção não havia mais nenhum.<br />

Então o homem — espírito bem moderno — resolveu explorar o nome que<br />

lhe ficara do acontecimento e abriu um enorme restaurante, com o sugestivo<br />

nome de Aos Ovos de Ouro. E isso lhe deu muito mais dinheiro do que a<br />

Galinha propriamente dita.<br />

MORAL: CRIA GALINHAS E DEITA-TE NO NINHO (FF,1985b, p.91-92).<br />

Aquele que não apenas reage às adversidades do mundo, consegue agir<br />

sobre o mundo. Ao perder a Galinha dos Ovos de Ouro o personagem de Millôr cria,<br />

por superação, uma “brincadeira” — brinca com a realidade e disto se serve para<br />

atuar sobre ela.<br />

Já conhecido de todos pela posse da tal galinha — e famoso por isto —, ao<br />

perdê-la, assintosamente resolve explorar “o nome que lhe ficara” e, afrontando a<br />

desdita passa a dono de um restaurante “com o sugestivo nome de Aos Ovos de<br />

Ouro”, rindo-se da própria insensatez ao mesmo tempo em que se serve desta para<br />

reerguer-se.<br />

Assim, quando publicou, em 1964, seus postulados básicos da Universidade<br />

Humorística do Méier, no de fictício número 3.408, ele foi — como até hoje o é —<br />

contundente quanto a este ponto:<br />

O Humorista tem que fazer tudo para que sua profissão renda o máximo,<br />

econômica e socialmente. Só assim ele poderá ter superioridade sobre os<br />

que julgam valer o dinheiro que possuem, e crêem a posição social um<br />

direito ao massacre da personalidade alheia [...] ( FERNANDES, 2004,<br />

p.164).<br />

Há aí a “irresistível indignação social, moral e humanística” (IBIDEM, p.141)<br />

que, para ele, é o fundamento do Humor que merece tal nome. Estes aspectos<br />

surgem em toda a sua produção, valendo-lhe inclusive várias expulsões de órgãos<br />

da imprensa onde há muito trabalhava. Nunca se retratou, mas sempre encontrando<br />

outro veículo onde exercer seu ofício, denunciava as razões autoritárias que<br />

cercearam sua autonomia de autor. Não poucas vezes, no próprio jornal ou revista<br />

em que publicava diária ou semanalmente, se lhe impunham qualquer censura ele a<br />

expunha a céu aberto ali mesmo. E caso houvesse recusa em veicular a denúncia,<br />

pegava sua carteira profissional, pedia demissão e ia caçar outro pouso. Seguia,<br />

ferrenhamente, o postulado básico número 3.408, por ele redigido e aprovado. Não<br />

85


há Humor sem independência. Aliás, o Humor se constrói como irrevogável<br />

afirmação desta (Cf.IBIDEM, p.164).<br />

Eis onde as fábulas millôrianas, uma das plurais formas de manifestar-se,<br />

encontram sua particular perspicácia. Alguns outros exemplos encontram-se logo<br />

adiante.<br />

4.4 FÁBULAS FABULOSAS E UM POUCO MAIS ALÉM<br />

O Humor se produz como revolta contra as restrições da realidade. Mas não<br />

se pode, indefinidamente, brincar assim com as palavras, pelo gosto dos sons, pois<br />

é imperativo se inscrever no mundo humano, ingressar na Cultura e na Língua, que<br />

é sua súmula (Cf. CÂMARA JÚNIOR, 1969, 22). O puro jogo verbal, e o prazer que<br />

dele deriva desde a infância, é abandonado em favor dos supostos rigores do<br />

sentido.<br />

Mas se a realidade impõe, o Humor a enfrenta e confronta. E depõe, quando<br />

se trata de demonstrar (inclusive sem lógicas de beca) mais e mais possibilidades<br />

— revigorando até as quase esquecidas:<br />

Eu e meu irmão Hélio (sem contar amigos, naturalmente do mesmo tipo de<br />

interesse) gostávamos de introduzir nas conversas toda espécie de jogo de<br />

palavras, trocadilho, nonsense, totais bestialógicos que deixavam os não<br />

iniciados perplexos. Acho que não existe uma espécie de experiência com<br />

palavras, da língua do pê ao último efeito de ressonância, que não<br />

tenhamos usado. [...] Fopos de Esábula é um dos resultados dessas antigas<br />

experiências lúdicas (FERNANDES, 1974b, p.234).<br />

A primeira dessas travessuras surge em 1961, na revista O Cruzeiro (Cf.<br />

IBIDEM, 98), pouco mais tarde publicada, em livro, nas Fábulas fabulosas de 1963.<br />

Constitui, como se vê, uma revogação da lei, já apontada por Freud, que impedia a<br />

permanência do jogo puro e simples de palavras para além da primeira infância e,<br />

ao mesmo tempo, uma utilização da regra segundo a qual os personagens da fábula<br />

deveriam ser, apenas, animais. Ironiza-se, portanto, uma autoridade (abstrata)<br />

servindo-se da subserviência absoluta a outra ( historicamente concreta ), enquanto<br />

ridiculariza as duas. Vamos , então, ao jogo:<br />

FOPOS DE ESÁBULA<br />

86


Uma tentativa B.N. (Bossa Nova) de escrever as fábulas de Esopo na<br />

linguagem do tempo em que os animais falavam.<br />

A BAPOSA E O RODE<br />

Por um asino do destar uma rapiu caosa, num pundo profoço do quir não<br />

consegual saiu. Um rode, passi por alando, algois tum depempo e vosa a<br />

rapendo foi mordade pela curiosidido. “Comosa rapadre” — perguntou —<br />

“que ê que esti fazá aendo?” “Voção entê são nabe?” respondosa a mapreira<br />

rateu. Vaí em a mais terrêca sível de teste a histoda do nordória. Salti aquei<br />

no foço deste pundo e guardarar a ei que brotágua sim pra mó. Porér, se<br />

vocem quisê, como é mau compedre, per me fazia companhode”. Sem<br />

pensezes duas var, o bem saltode tambou no pundo do foço. A rapente,<br />

imediatamosa, trepostas nas cou-lhes, apoifre num dos xides do bou-se e<br />

salfoço tora do fou, enquava berranto: “Adadre, compeus”.<br />

MORAL: JAMIE CONFAIS EM QUÁ ESTADE EM DIFICULDÉM (FF, p.78)<br />

Como era uma brincadeira entre Millôr e seu irmão Hélio, o que resulta de<br />

humorístico nesta fábula é o fato do jogo de palavras dar a impressão de que a<br />

moral está em francês (com alguma citação em latim); o que faz um dos maiores<br />

tradutores do pais ridicularizar a si mesmo, uma das facetas mais cruciais do humor.<br />

Há outros jogos de idêntico teor (Cf. FERNANDES,1978, p.46 ). Para realizar<br />

seus intentos, arte e artifícios não lhe faltam. A esse respeito vale lembrar, como<br />

interpolação, um caso específico. Em 1965 — atenção !! 1965 — Millôr escreve, com<br />

Flávio Rangel, a peça Liberdade, Liberdade para ser encenada no teatro Opinião.<br />

No dia seguinte ao da estréia, recebeu um telefonema de Lúcio Costa que, entre<br />

elogios, disse-lhe para tomar uma providência quanto às cadeiras do teatro que, por<br />

fazerem muito barulho, quando alguns se remexiam era impossível ouvir certos<br />

trechos do texto. Millôr promete besuntar as cadeiras de óleo e Lúcio diz que isto<br />

seria inútil, pois sendo feitas totalmente de madeira elas não deixariam de exercer<br />

sua incômoda participação no espetáculo:<br />

Era um domingo e eu cheguei na máquina, escrevi uma coisa<br />

pequena, achei que resolvia. Levei para o Flávio Rangel na praia, e o<br />

Flávio, naquela noite mesmo, pegou o Vianinha e deu para ele ler o<br />

trecho. Depois de uns vinte minutos o espetáculo começado (um<br />

espetáculo político, né?), Vianinha parava e dizia assim: “Agora,<br />

queremos que cada um tome uma posição. Este é um momento<br />

grave, importante neste espetáculo; cada um deve tomar sua<br />

posição. E uma vez tomada a sua posição, que a pessoa fique nessa<br />

posição (longa pausa), senão as cadeiras fazem muito barulho e não<br />

87


se ouve nada.” Aí era uma gargalhada total (FERNANDES, 2003,<br />

p.65-66).<br />

Em 1965 havia quase um ano que os militares governavam o país, sob a<br />

tutela do Marechal Castelo Branco. E havia tanto os que concordavam com tal<br />

disposição das ordens, como os que eram violentamente contra tal situação. Ao<br />

dizer que os ocupantes das cadeiras do teatro deviam tomar uma posição e nela se<br />

fixar, Millôr estava lidando com a ambigüidade das palavras num momento de<br />

extrema tensão entre a sociedade civil e o comando que se impunha a ela. O riso<br />

provocado por sua observação era derivado do deboche que buscava a denúncia de<br />

um vigilante e opressivo mundo externo, em relação ao qual todos deviam tomar<br />

uma posição. Era para que todos entendessem o refinado humor, menos os<br />

militares. Estes ficaram se perguntando porque a platéia ria tanto.<br />

Puro Humor, com o devido nome e assinatura, achincalhando a violenta e<br />

opressiva realidade produzida pelo golpe militar.<br />

Enfim, como sempre é preciso e imperativo escolher — renovada e arriscada<br />

tarefa —, algumas temáticas de Millôr, presentes com maior constância ao longo de<br />

seu exercício de denúncias e enfrentamentos (ou afrontamentos, melhor dizendo),<br />

estão aqui representadas por um restrito número de fábulas. Sem outros<br />

adiamentos, posiciona-se a primeira:<br />

O SOCORRO<br />

Ele foi cavando, cavando, cavando, pois sua profissão — coveiro — era<br />

cavar. Mas, de repente, na distração do ofício que amava, percebeu que<br />

cavara demais. Tentou sair da cova e não conseguiu. Levantou o olhar para<br />

cima e viu que, sozinho, não conseguiria sair. Gritou. Ninguém atendeu.<br />

Gritou mais forte. Ninguém veio. Enrouqueceu de gritar, cansou de<br />

esbravejar, desistiu com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado.<br />

A noite chegou, subiu, fez-se o silêncio das horas tardias. Bateu o frio da<br />

madrugada e, na noite escura, não se ouvia um som humano, embora o<br />

cemitério estivesse cheio de pipilos e coaxares naturais dos matos. Só<br />

pouco depois da meia-noite é que lá vieram uns passos. Deitado no fundo<br />

da cova o coveiro gritou. Os passos se aproximaram. Uma cabeça ébria<br />

aparece lá em cima, perguntou o que havia: “O que é que há”?<br />

O coveiro então gritou, desesperado: “Tire-me daqui, por favor. Estou com<br />

um frio terrível!” “Mas, coitado!” — condoeu-se o bêbado — “Tem toda razão<br />

de estar com frio. Alguém tirou a terra de cima de você, meu pobre<br />

mortinho!” E, pegando a pá, encheu-a de terra e pôs-se a cobri-lo<br />

cuidadosamente.<br />

MORAL: NOS MOMENTOS GRAVES É PRECISO VERIFICAR MUITO<br />

BEM PARA QUEM SE APELA. (FF,1985b, p.12).<br />

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Impossível não extrair deste curto texto, em forma de fábula, a agudeza de<br />

um punhal que caracteriza a lucidez de Millôr, quando retira riso das entranhas do<br />

impreciso convívio humano e seus desarranjos mais costumeiros e contumazes.<br />

Este é um dos temas que sempre retorna, de uma ou outra forma, em suas<br />

intervenções sobre a crueza do real. É a seriedade do Humor que lhe serve de arma<br />

para rir-se desta crua e obtusa realidade.<br />

E vem mais por aí. Trata-se de uma impropriedade que é de nosso<br />

conhecimento — supostos membros da coletividade e atentos a seus interesses e<br />

prerrogativas — desde há muito e que ainda se apresenta assim e pode estender-se<br />

indefinidamente caso não se possa revogar...<br />

O TRÁGICO PRECEDENTE<br />

(À MANEIRA DOS... HINDUS)<br />

Estava o rei persa saindo para a caçada, depois do seu ministro da<br />

meteorologia lhe afirmar que não ia chover durante dois meses quando, de<br />

brincadeira, perguntou ao muar que estava sendo carregado com as<br />

bagagens: “Como é muar, você concorda com a predição aqui do meu<br />

ministro? Vai chover?” O muar abanou a cabeça para baixo e para cima,<br />

peremptoriamente, afirmando que sim, que ia chover. Diante da curiosa<br />

reação do muar, ministro e rei caíram na gargalhada. Mas essa gargalhada<br />

logo se transformou num esgar de contrariedade por parte do rei e num ricto<br />

de humilhação por parte do ministro quando, estando no meio da floresta,<br />

no dia seguinte, caiu uma tremenda tempestade. Ali mesmo o rei despediu o<br />

seu ministro da meteorologia. E quando este tentou se explicar, gritou,<br />

raivoso: “Não adianta você querer se explicar. Um muar sabe mais de<br />

meteorologia do que você. Fá-lo-ei meu ministro!” E, realmente, assim que<br />

chegou ao palácio nomeou o muar ministro.<br />

MORAL: É POR ISSO QUE HOJE EM DIA QUAQUER MUAR ACHA QUE<br />

PODE FAZER PARTE DO GOVERNO E VIRAR MANDA-CHUVA (FF, 44).<br />

Com todos os equívocos, ainda assim, os membros do governo foram tidos<br />

como respeitáveis, de tempos em tempos, mesmo aos olhos dos produtores<br />

intelectuais de diversas áreas. Hoje, nem de longe, pode-se afirmar tal coisa. E<br />

Millôr, numa pequena fábula, o denuncia.<br />

Os muares com que hoje convivemos se valem de poderes auferidos através<br />

do dinheiro, da esperteza e do oportunismo bem posicionado e capaz de aproveitar<br />

os momentos propícios. O contexto favoreceu o muar e cada vez mais vem<br />

premiando os de sua espécie.<br />

89


A verdade que Millôr aponta, vem com riso feroz e ferino. É um riso delator.<br />

Esta fábula, publicada em 1963, ou seja, há quarenta e três anos atrás,<br />

demonstra sua amarga (e ridícula) atualidade, e, para aumentar tal efeito, basta uma<br />

diminuta charge, posta à margem direita da capa do Diário da nova república<br />

onde, num auto-retrato à frente da máquina de escrever (datilografia), ele se faz<br />

acompanhar do seguinte comentário: “cada país tem o profeta que merece” (Cf.<br />

FERNANDES, 1985a). Isto em 1985.<br />

Deixando de lado o que ainda não passou, outro tema caro a Millôr<br />

Fernandes volta à cena — algumas de suas expressões já emergiram aqui —,<br />

desenvolvido pelo exercício constante de seu Humor, mais e mais ferino. Não há<br />

melhor modo de mostrá-lo senão pelo recurso de devolver ao fabulista o teor do<br />

drama humano com o qual se envolve:<br />

O BRILHANTE E O OPACO<br />

O Vagalume, de vago lume esverdeado, fazia voltas e voltas em torno de si<br />

mesmo, no encanto indisfarçável de seu próprio brilho. E, enquanto revoava<br />

pela escuridão da mata, de galho em galho dos arbustos, pensava com<br />

seus botões (luminosos):<br />

— Sou todo uma esmeralda só, brilhante e viva. Deus, Todo-Poderoso,<br />

ao me fazer um inseto noturno e me dar essa luz, evidentemente quis que<br />

eu fosse superior a todos os outros insetos, guia e Orientador da mata.<br />

E voava e voava e brilhava e brilhava e pensava e pensava:<br />

— Haverá, em toda a mata, outro como eu? Pois dentro do verde que pisco<br />

ainda há outro mistério: ninguém sabe se apago-e-acendo ou se acendo-eapago.<br />

Voava mais e, descrevendo parábolas de luz por entre as flores, mais se<br />

envaidecia na comparação com os outros habitantes da floresta:<br />

— Pobres irmãos inferiores, eu vim para protegê-los das trevas. Vocês,<br />

grilos de asas cinzentas e sem brilho, formigas que trabalham e suam sem<br />

um instante de luz e de fulgor, mariposas que, por serem opacas, qualquer<br />

luz liquida, míseras lagartas imitadoras de acordeões sem som, aranhas<br />

destinadas a serem feias tecelãs de sedas que jamais verão prontas, cupins<br />

que perdem as asas e ficam tontos até morrer, oh, para vocês todos, aqui<br />

está minha luz verde. Imitem-me os que puderem, sigam meu brilho<br />

maravilhoso os que estiverem perdidos nos caminhos.<br />

E voou mais alto e se comparou às estrelas:<br />

— Sou uma de vocês, irmãs! Pisco no céu, como vocês! Sou a Vésper, a<br />

estrela da noite, sou Alba, a estrela da manhã. Faço parte da constelação<br />

da selva, vivo, vivo!<br />

Foi descendo de novo quando, súbito, sentiu uma lufada de ar que o<br />

envolvia, algo pegajoso que o segurava e logo estava fechado numa<br />

atmosfera nojenta e escorregadia. Sua luz iluminou um pouco a escuridão<br />

intensa e ele viu, em volta, centenas de insetos, apertados uns contra os<br />

outros, num cubículo úmido e sujo. Um dos insetos, uma lesma sonolenta,<br />

levantou a cabeça e gritou com voz rouca e irritada:<br />

— Idiota, idiota, se não fosse você, com essa mania de iluminação noturna,<br />

o sapo-boi jamais teria nos engulido no escuro. Vamos, idiota, apaga essa<br />

luz que eu quero dormir!<br />

90


MORAL: QUANDO A ESCURIDÃO É GRANDE FICA PERIGOSO<br />

QUALQUER BRILHO INDIVIDUAL (FERNANDES, 1978, p.33-34).<br />

Mas de qual brilho se trata? No conjunto das relações entre homens, onde<br />

reside o teor do que se poderia chamar, ingenuamente, de brilho? Que parâmetros<br />

determinam a medida das coisas, já que, desde o começo da civilização ocidental, o<br />

homem é o próprio mensurador? Pois é!? Este mesmo homem converte-se em mau<br />

versador de seus potenciais e acaba confundindo a balança onde se pesam as<br />

proporções de cada item. Dizer isto assim, parece moralismo demais para o estilo de<br />

Millôr, algo de uma eloqüência despropositada diante de sua clara secura. Seu<br />

Humor desarma tanto palavrório empolado; sua maneira de falar sobre isto não é<br />

esta. Para não traí-lo demais é melhor parar por aqui. A resposta a estas questões já<br />

declaram a pouca importância de seu ar inflamado. De que brilho se trata? Ora, não<br />

me faça rir! Ou melhor, faça!<br />

É com tal intenção que Millôr amplia o âmbito do tema ao abordá-lo noutra<br />

fábula, que agora se apresenta:<br />

O GRANDE SÁBIO E O IMENSO TOLO<br />

Por um acaso do destino, um velho e sábio professor e um jovem e estulto<br />

aluno se encontraram dividindo bancos gêmeos num ônibus interestadual. O<br />

estulto aluno, já conhecido do sábio professor exatamente por sua estultície,<br />

logo cansou o mestre com seu matraquear ininterrupto e sem sentido. O<br />

professor aguentou o quanto pôde a conversa insossa e descabida. Afinal,<br />

cansado, arranjou, na sua cachola sábia, uma maneira de desativar o papo<br />

inútil do aluno. Sugeriu: “Vamos fazer um jogo que sempre proponho nestas<br />

minhas viagens. Faz o tempo passar bem mais depressa. Você me faz uma<br />

pergunta qualquer. Se eu não souber responder, perco 100 cruzeiros.<br />

Depois eu lhe faço uma pergunta. Se você não souber responder, perde 100<br />

cruzeiros”. “Ah, mas isso é injusto! Não posso jogar esse jogo” — disse o<br />

aluno provando que não era tão tolo quanto aparentava — “eu vou perder<br />

muito dinheiro! O senhor sabe infinitamente mais do que eu. Só posso jogar<br />

com a seguinte combinação: quando eu acertar ganho 100 cruzeiros.<br />

Quando o senhor acertar ganha só 20 cruzeiros.” “Está bem” — concordou<br />

o professor — “pode começar.” “Me diz, professor” — perguntou o aluno —,<br />

“o que é que tem cabeça de cavalo, seis patas de elefante e rabo de pau?”<br />

O professor, sem sequer pensar, respondeu “Não sei; nem posso saber!<br />

Isso não existe”. “O senhor não disse se devia existir ou não. O fato é que o<br />

senhor não sabe o que é” — argumentou o aluno — “e, portanto, me deve<br />

100 cruzeiros.” “Tá bem, eu pago os 100 cruzeiros” — concordou o<br />

professor pagando —, “mas agora é minha vez. Me diz aí: o que é que tem<br />

cabeça de cavalo, seis patas de elefante e rabo de pau?” “Não sei” —<br />

respondeu o aluno. E, sem maior discussão, pagou 20 cruzeiros ao<br />

professor.<br />

91


MORAL: A SABEDORIA, NOS DIAS DE HOJE, ESTÁ VALENDO 20% DA<br />

ESPERTEZA (IBIDEM, p.47-48).<br />

Ao ser esperto, o aluno contrata o mestre como apto e consegue convencê-lo<br />

a aceitar um jogo onde as regras parecem levar em conta a superioridade deste.<br />

Dispostos os termos do contrato, resta a aceitação da armadilha: o aluno será o<br />

primeiro a perguntar. O mestre cai fácil no engodo, pois lhe parece natural que<br />

alunos lhe perguntem algo para recorrer à sua sabedoria, e como quer provar que<br />

sabe antes de efetivamente ensinar, aceita a isca. E perde a aposta.<br />

Mas a moral da fábula mostra e demonstra sua perspicácia: o mestre, ao<br />

postar-se nesse lugar, é capaz de achar que nada existe além de seu saber e é<br />

presa fácil para qualquer falácia, qualquer sofisma que o deixe satisfeito quanto a<br />

isto.<br />

O aluno, neste caso, serve-se da arrogância do professor — calcado num<br />

saber supostamente maior — para faze-lo pagar por isto? Nada mais distante de<br />

Millôr, que pretende evidenciar a inversão de valores que vigora no contexto atual.<br />

Saber vale pouco, ludibriar vale mais. Mas, ao fim das contas, isto serve tanto a<br />

alunos como a professores.<br />

O humor vigora sempre na denúncia, no desmascaramento da realidade<br />

cheia de regras e formas e contudo inapta para assegurar a subjetividade do um a<br />

um. O humor é feito de revelação sutil ou cruel; supera o óbvio e muito bem<br />

preparado jogo burocrático, introduz o inesperado, joga com a revolta e dá-lhe meios<br />

de se expressar. O humor joga na cara da tirania maquiada sua verdadeira face e<br />

reduz a prepotência às evidências de sua inoperância. Qualquer humor que mereça<br />

este nome deve ser capaz de desnudar uma impostura e torná-la ridícula.<br />

O sentido do humor é exatamente este: ridicularizar as arrogâncias afirmadas<br />

pelo mundo. Não há humor sem denúncia, cruel que seja; não há humor sem<br />

confronto, pior que seja; não há humor sem desvelamento, rude que seja; não há<br />

humor sem contundência, franqueza, revelação, raivoso riso, esgar diante do<br />

ridículo. Não há humor sem enfrentamento lúcido; o humor sabe o que quer dizer e<br />

onde quer chegar com isto.<br />

Enfim, como se disse, estas são apenas algumas das fábulas que<br />

desenvolvem os temas que participam aqui, ali e acolá, do universo crítico do Humor<br />

ao qual Millôr dedicou e dedica toda a sua vida. Quaisquer outros exemplos, que<br />

92


não os aqui propostos e apresentados, encontram-se em suas (felizmente)<br />

numerosas fábulas; basta ir ao cardápio e saboreá-las e, com isto, algo será<br />

acompanhado com não poucas pitadas de tempero amargo. Mas, enfim, é disso<br />

mesmo que se trata.<br />

CONCLUSÃO<br />

Ao mostrar, como o faz, a comédia de erros dos saberes bem estabelecidos,<br />

o Humorista — como faz questão de se declarar — Millôr Fernandes, não poupa<br />

nada e nem ninguém, demonstrando, com isso, a essência do próprio Humor. Tal<br />

essência, já descrita por Freud, há cerca de cem anos, envolve uma rebeldia, e a<br />

agressividade que a alimenta, com fim declarado: o enfrentamento e a<br />

ultrapassagem das imposições restritivas e freqüentemente obtusas de uma<br />

realidade arraigada em premissas que nada mais fazem que impedir o<br />

pronunciamento e o exercício de opções verdadeiramente criativas.<br />

O Humor engendrado por Millôr Fernandes serve-se de múltiplos artifícios<br />

para atingir seus objetivos. Pode brincar com as palavras, escarnecer das sisudezas<br />

gramaticais, apontar falácias, desnudar mentiras ricamente vestidas de pomposos<br />

argumentos ou escudadas em autoridades a serviço do autoritarismo, reverter as<br />

regras em diversos âmbitos ou instâncias, atordoar e despertar ao mesmo tempo.<br />

Alguns se servem da lógica para melhor evidenciar a tolice de certas<br />

conclusões aparentemente bem embasadas a princípio; outros da rápida bofetada<br />

que arranca maquiagens demoradamente compostas; outros ainda do punhal que só<br />

se sente quando retirado, pelo rastro que fica. Todos os artifícios do Humor, em<br />

93


suas mãos, encontram contudo o preciso algo: a denúncia de um mundo<br />

desatinadamente bem comportado demais para ser eminentemente humano.<br />

Millôr se insurge contra a cretinice e as farçantes posições de poder e este é<br />

seu propósito: jamais calar-se, como requer o coro dos contentes. O que diz (ou<br />

desenha, ou delineia) pode ser tido e havido como cruel, algo que se adjetiva assim<br />

ou assado conforme o impacto que produz. Ele, como se vê ao longo de uma<br />

produção incessante, não se deixa apanhar e engaiolar numa esquemática<br />

definição, pois propõe despropôr-se a cada intervenção de toda e qualquer<br />

estabelecida ordem. Desordena-se e desconcerta com uma lucidez que sequer<br />

conserva tal teor como último termo. Não quer ser lúcido, firme, profeta, cruel<br />

escrutinador, intelectual, ou seja, mais o que lhe tentam atribuir.<br />

Permite-se rir das impropriedades cometidas por quem quer que considere<br />

próprio dele isto ou aquilo. Não adianta pretender prendê-lo nesta ou naquela fôrma.<br />

Ele mesmo não deixa dúvidas quanto ao que resulta do fato de ver-se de cara<br />

consigo mesmo a cada dia: uma autoironia.<br />

Esse naco de Millôr, o que é lido aqui, tem algo de Freud e Winnicott, umas<br />

certas parecências que instigam o desejo de apresentá-los sem pedir-lhes a devida<br />

permissão, embora Millôr tenha dado mostras de algum apreço por Freud, ao<br />

conferir-lhe plenos poderes, como especulador teórico, na Universidade Humorística<br />

do Méier.<br />

Quando Winnicott se esforça para retirar da agressividade seu banal caráter<br />

destrutivo (última opção quando não lhe resta — à própria atitude agressiva —<br />

nenhuma outra para exercer sua criatividade) e lhe confere ares de tentativa de<br />

superação dos contornos de um mundo estático e destituído de alternativas, angaria<br />

uma suposta simpatia de Millôr, segundo tudo o que este produziu. É esta visceral<br />

solidariedade entre ambos que permitiu arranjar este encontro deles, num lugar não<br />

previamente combinado, para uma conversa pretensamente conclusiva (embora<br />

eles não se mostrem nem um pouco dispostos a conclusões conclusivas).<br />

Ao fim, para quem crê que o riso é escapismo, resta apenas uma decepção<br />

contundente. O Humor não se encolhe, não se apequena, diante da dor. Ao<br />

contrário, usa-a para afirmar-se devidamente, ao rir-se dela: esta é sua razão de<br />

existir. Agredido por sofrimentos impostos, ri na imposição, ridiculariza-a. Não é,<br />

como seus pares — o chiste e cômico — passivo ou passível de negociação; não há<br />

conforto que assegure o amansamento do riso amargo e franco do homem.<br />

94


E o humor de Millôr Fernandes é, ele mesmo, Humor (com maiúscula), ou<br />

seja, um processo onde o desmascaramento do ridículo da realidade tem no riso seu<br />

mais fiel derivado, uma conseqüência do desvelamento súbito, rápido e cortante do<br />

absurdo humano, do mundo que com suas obliterações, nunca deixa de gerenciar<br />

perplexidades. É um Humor mais que puramente revoltado, mas antes<br />

despudoradamente delator de uma solenidade que jamais admite o genuíno<br />

atordoamento que, talvez, consista no único fator de franca aproximação entre os<br />

homens. Um atordoado, efetivamente admitido como tal, poderia encontrar em outro,<br />

no mínimo, um descarado semelhante, numa sinceridade sem qualquer máscara.<br />

Parece brincadeira, e talvez seja, mas que belo brincar este que, desfazendo<br />

falsas superioridades, jogasse todo ser humano na mesma inadequação<br />

fundamental, num risível desconforto que transformasse o mundo num conluio de<br />

atônitos onde os sábios, permanentemente cientes disto, não passassem de<br />

indagadores contumazes e os espertos se exaurissem no próprio jogo tolo que<br />

aliciam. Enquanto tal não ocorre, e talvez nunca ocorra, o Humor pretende pôr à<br />

mostra todas as desfaçatezes. Solta seu incontido riso diante das grandiloqüências<br />

que viscejam à volta. Afinal, pode existir algo verdadeiramente mais ridículo que<br />

isto!?! O resto é enredo.<br />

95


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100


101


ANEXO A<br />

ANEXOS<br />

JORNAL DO BRASIL CENSURA DESENHO DE MILLÔR<br />

Esta bem poderia ser uma das manchetes de qualquer jornal ou revista que<br />

se interessasse, por motivos diversos, em denegrir a imagem de luta pela liberdade<br />

de imprensa que sempre acompanhara o JB durante os anos de chumbo, mas o<br />

país começava a sair, pisando em ovos, da truculência do regime militar e ninguém<br />

chegou a saber, à época, que tal fato ocorrera. Millõr não disse nada em público;<br />

apenas aguardou.<br />

102


(Millôr no JB 01)<br />

Via eleições indiretas, Tancredo Neves era eleito presidente e sente-se mal<br />

numa cerimônia religiosa pouco antes da posse. É levado a um hospital de Brasília<br />

e, como seu estado de saúde piorava a cada dia, transferem-no para um centro de<br />

excelência em São Paulo.Todos, boquiabertos, aguardam as notícias que chegam,<br />

às várias, todo dia. Até que uma foto, tendo Tancredo e Risoleta ladeados pelos<br />

médicos que dele agora cuidavam, surgiu em toda imprensa: todos sentados num<br />

semicírculo, o presidente mantinha os lábios erguidos em forma de sorriso enquanto<br />

os outros riam abertamente.<br />

Calcado na fotografia que se tornara o retrato da própria esperança desejada,<br />

Millõr produz um desenho, uma charge, e a envia ao JB que, prontamente recusa<br />

sua aparição nas páginas do jornal. Ali estava um possível Humor negro, já que,<br />

exceto o branco do sorriso, todas as figuras assumem exatamente essa cor; no lugar<br />

em que Tancredo deveria constar, o inteiro branco revela sua absoluta ausência e a<br />

farsa da composição.<br />

Tempos depois, a participação de Millõr no JB aparece em forma de livro e,<br />

na breve e densa introdução, Fernando Pedreira — então redator-chefe do jornal —<br />

praticamente se atém a este fato de censura: “há um desenho dele que não<br />

chegamos a publicar porque nos pareceu [...] cruel demais, mas que certamente<br />

merece ser reproduzido aqui porque era e é na verdade perfeito, exato,<br />

impiedosamente verdadeiro.” (PEDREIRA,1985:s.n.p.)<br />

Aqui está — como iria ser publicado num quadrado de meia página e sem<br />

nenhuma legenda — resgatado numa página inteira<br />

103


ANEXO B<br />

NOTAS DE UM IGNORANTE 10<br />

Entre as coisas que me surpreendem e humilham figura esta,<br />

fundamental, que é a cultura de meus amigos e conhecidos. Não só<br />

a cultura no sentido clássico, mas também o conhecimento imediato<br />

das coisas e fatos que lhes estão sob os olhos no dia-a-dia da<br />

existência. Quem está a meu lado sempre leu mais livros do que eu,<br />

10 Que sagaz maneira de prosear com a poesia de Pessoa !!! Puro intertexto entre duas formas de Humor. Ver<br />

referências bibliográficas.<br />

104


105<br />

conhece mais política do que eu, já esteve em mais países do que<br />

eu, já teve mais casos sentimentais do que eu, estudou mais do que<br />

eu, praticou e pratica mais esportes. Paro e me pergunto que fiz dos<br />

meus anos de vida. Já fui atropelado e sofri alguns acidentes, como<br />

explosão, queda e afogamento. Mas entre os acidentados não estou<br />

na primeira fila. Tenho vários amigos que já caíram de avião, outros<br />

de cavalo, alguns sofreram pavorosos desastres de automóvel, um<br />

esteve preso num armário enquanto uma casa (não a dele, é claro!)<br />

se incendiava, outro ajudou a salvar o navio Madalena em meio a<br />

tremendas ondas que ameaçavam arrebentar sua lancha a todo<br />

momento. Que fiz eu de minha vida? Em matéria de cultura encontro<br />

imediatamente quinhentas pessoas, só entre as que conheço, que<br />

sabem mais línguas do que eu, leram mais, falam melhor e mais<br />

logicamente, conhecem mais de teatro e citam com precisão escolas<br />

filosóficas, afirmando que tal pensamento pertence a esta e contradiz<br />

aquela. Que fiz eu? De esportes ignoro tudo, não sei sequer contar<br />

os pontos de vôli, só assisti até hoje a uma partida de pólo, nunca<br />

joguei futebol e quando vou ver os jogos desse esporte, só consigo<br />

reconhecer os jogadores mais famosos. Esqueço o nome de todos, e<br />

no domingo seguinte já não sei mais o escore da partida a que<br />

assisto neste. Nado mal, corro pedras, jamais consegui me levantar<br />

num esqui aquático, não guio lancha, joguei golfe uma vez, tênis seis<br />

meses, não entendo de velejar (o que já me causou uma grande<br />

humilhação diante de esportivíssimas americanas de quinze anos<br />

que me conduziram num passeio lá na terra delas), e, em matéria de<br />

mares, nunca lhes sei os ventos e fico parvo com o senso de direção<br />

de muitos e muitos de meus amigos que jamais supus tomassem<br />

nada de brisas e tufões. Guio, mas o motor de meu carro é para mim<br />

um mistério indevassável. Sei apenas abrir o capô e contemplar a<br />

máquina, atitude metafísica que até hoje não pôs carro algum em<br />

marcha.<br />

Seria eu então um homem dedicado à cultura propriamente dita, aos<br />

livros, ao estudo, ao amor da leitura e do pensamento? Não, pois<br />

meu pensamento é confuso e minha leitura parca. Conheço homens,<br />

dos que não vivem de escrever, que pensam muito melhor do que eu<br />

e leram muito mais, sem contar os especialistas, que conhecem livro<br />

pelo cheiro.<br />

Entre os que viajam também não sou dos que tenham viajado mais.<br />

Com o agravante de que nunca sei bem onde estou, não conheço a<br />

distância que vai de Roma a Paris, nem sei se Marselha está ao sul<br />

ou norte da Itália. Fico boquiaberto quando vejo amigos meus<br />

apontarem estátuas e falarem sobre os personagens que elas<br />

representam com uma facilidade com que falariam de si próprios.<br />

Mesmo o conhecimento de nomes, pessoas e fatos adquirido em<br />

viagens eu o esqueço em três semanas. Mas não adianta o leitor<br />

querer me consolar, dizendo que talvez eu seja um bonvivã, porque<br />

nunca o fui dos maiores, tendo minha vida sido conduzida sempre<br />

numa certa disciplina, necessária a quem veio de muito longe. Donde<br />

o amigo poderá concluir então que eu sou um trabalhador infatigável,<br />

um esforçado, um denodado. E isso também não é verdade porque,<br />

com raras exceções, nunca trabalhei demasiadamente e cada vez<br />

procuro trabalhar menos, numa conquista ao mesmo tempo prática e<br />

filosófica. Bebo? Bebo mal e ocasionalmente. Não sei quando a<br />

bebida é boa ou falsificada. Não sei o nome dos vinhos mais triviais e<br />

sempre me esqueço qual é o restaurante em que eles fazem um


106<br />

prato que certa vez adorei. Por mais jantares a que tenha ido e por<br />

melhores alguns lugares que tenha freqüentado, devo sempre<br />

esperar que alguém se sirva na minha frente para não pegar o talher<br />

errado e o copo idem. Além do quê, não como muito, nem tenho<br />

nenhuma particular predileção por comer. Gosto então da vida<br />

calma, sou um praticante da meditação e da ioga? Nunca dos que<br />

mais o são. Por outro lado a extrema agitação também não me é<br />

familiar.<br />

Que fiz de minha vida? Quando há um acidente de rua, vem-me o<br />

pavor de tomar partido, pois nunca tenho realmente a convicção do<br />

lado certo. Se fala o mais poderoso eu sou inclinado a ficar de seu<br />

lado por uma tendência a defender os que hoje são mais comumente<br />

acusados de todos os males, vítimas do tempo. Se fala o mais<br />

humilde sinto-me inclinado a defendê-lo por um ancestralismo que<br />

me faz seu irmão, por idéias arraigadas que fazem com que todo<br />

homem queira lutar instintivamente pelo mais fraco. Por quê? não<br />

sei. Sou bom de guardar nomes, caras, datas? Já disse que não.<br />

Sempre esqueço o nome dos conhecidos e troco o dos amigos mais<br />

íntimos num fenômeno parestésico que só a loucura mesma<br />

explicaria ou então a bobeira nata que Deus me deu. Em política<br />

meu conhecimento chega ao máximo de saber que o Sr. Plínio<br />

Salgado pertence ao PRP, o Brigadeiro à UDN e Jango ao PTB, e<br />

creio que há alguns outros partidos também. Mas mesmo essas<br />

convicções não são inabaláveis e, se alguém me pegar desprevenido<br />

e fizer dessas letras e nomes outras combinações, lá vou eu a<br />

aceitá-las, embrulhado e tonto, até que outro interlocutor crie para<br />

mim novas combinações e novas confusões.<br />

Mas peguem um puro e simples crime e eu nunca sei quem matou a<br />

empregada e em meu peito jamais se chegou a criar uma suspeita<br />

sólida a respeito do poeta de Minas. Isso aliás é o máximo a que vou<br />

— sei que houve um crime em Minas Gerais, alguém matou alguém.<br />

O morto não está na lista de minhas lembranças, não sei de quem se<br />

trata. Sei que o indiciado assassino é um poeta, vi sua cara barbada<br />

e meio calva em muitos jornais e revistas. Mas meus conhecidos<br />

sabem tudo. As mulheres de meus conhecidos então nem se fala.<br />

Que fiz eu de minha vida? — me pergunto de novo, honestamente,<br />

com a surpresa e a amargura com que o Senhor perguntava: “Caim,<br />

que fizeste de teu irmão?” Pois boêmio não sou, embora tenha gasto<br />

milhares de noites solto pelas ruas. Mas os boêmios me consideram<br />

um arrivista da boêmia assim como os homens cultos me consideram<br />

um marginal da cultura. E os esportistas a mesma coisa com relação<br />

aos parcos esportes que pratico. Todos com carradas de razão.<br />

E nem a maior parte do meu tempo foi gasta em conquistas<br />

amorosas, pois nesse terreno o Porfírio Rubirosa, se me<br />

conhecesse, me olharia com o mesmo desprezo com que me olham<br />

conhecidos galãs nacionais.<br />

Dessa mente confusa, dessa existência confusa, dessas maltraçadas-linhas<br />

de viver creio que só resta mesmo uma conclusão a<br />

que durante anos e anos me recusei por orgulho e vergonha — sou,<br />

por natureza e formação, um Humorista (FERNANDES, 1983, p.11–<br />

15).


ANEXO C<br />

TRÊS FÁBULAS DE LA FONTAINE: por ele mesmo e suas<br />

traduções para o português<br />

Fábula I : Le renard et les raisins<br />

107<br />

Certain renard gascon, d’autres disent normand, Mourant presque de<br />

faim, vit au haut d’une treille<br />

Des raisins mûrs apparemment,


Et couverts d’une peau vermeille.<br />

Le galant en eût fait volontiers um repas:<br />

Mais, comme il n’y pouvoit atteindre:<br />

“ Ils sont trop verts, dit-il, et bons pour des goujats. “<br />

Fit-il pas mieux que de se plaindre? (LA FONTAINE, 1958, p.127)<br />

A rapôsa e as uvas<br />

Contam que certa rapôsa,<br />

Andando muito esfaimada,<br />

Viu roxos, maduros cachos<br />

Pendentes d’alta latada.<br />

De bom grado os trincaria,<br />

Mas sem lhes poder chegar<br />

Disse: “Estão verdes, não prestam,<br />

Só cães os podem tragar!”<br />

Eis cai uma parra, quando<br />

Prosseguia seu caminho,<br />

E, crendo que era algum bago,<br />

Volta depressa o focinho.<br />

BOCAGE (LA FONTAINE, 1970, p. 57-58).<br />

Fábula II: Le loup et l’agneau<br />

La raison du plus fort est toujours la meilleure :<br />

Nous l’allons montrer tour à l’heure,<br />

Un agneau se désaltéroit<br />

Dans le courant d’une onde pure.<br />

Un loup survient, à jeun, qui cherchoit aventure,<br />

Et que la faim en ces lieux attiroit.<br />

“ Qui te rend si hardi de troubler mon breuvage?<br />

Dit cet animal plein de rage :<br />

Tu seras châtié de ta témérité.<br />

— Sire, répond l’agneau, que Votre Magesté<br />

Ne se mette pas en colère ;<br />

Mais plutôt qu’elle considère<br />

Que je me vas désaltérant<br />

Dans le courant<br />

Plus de vingt pas au-dessous d’Elle :<br />

Et que, par conséquent, en aucune facon.<br />

Je ne puis troubler sa boisson.<br />

— Tu la troubles, reprit cette bête cruelle ;<br />

Et je sais que de moi tu médis l’na passé.<br />

— Comment l’aurois-je fait, si je n’etois pas né ?<br />

Reprit l’agneau ; Je tett encor ma mère.<br />

— Si ce n’est toi, c’est done ton frère.<br />

— Je n’en ai point. — C’est done quelqu’un des tiens :<br />

Car vous ne m’épargnez guère,<br />

Vous, vos bergers, et vos chiens.<br />

On me l’a dit : il fout que je me venge. “<br />

108


Là-dessus, au fond des forêts<br />

Le loup l’emporte, et puis le mange,<br />

Sans autre forme de procès (LA FONTAINE, 1958, p.62-63).<br />

O lôbo e o cordeiro<br />

Na límpida corrente de um ribeiro<br />

Mata a sêde um cordeiro.<br />

Chega um lôbo em jejum que a fome atiça,<br />

A farejar carniça.<br />

______<br />

“Ousas turvar-me as águas, malcriado?”<br />

(Uiva o lôbo irritado).<br />

______<br />

CORDEIRO<br />

“Rogo, senhor, a Vossa Majestade,<br />

E com tôda a humildade,<br />

Que não se zangue com seu pobre servo;<br />

Pois, respeitoso, observo<br />

Que embaixo e no declive estou bebendo,<br />

E a água vem descendo”.<br />

______<br />

“Turvas (retruca o bárbaro animal):<br />

Demais, falaste mal,<br />

Há seis meses, de mim”.<br />

CORDEIRO<br />

_______<br />

“Não é verdade;<br />

Conto só três de idade;<br />

Não tinha inda nascido”.<br />

_______<br />

LÔBO<br />

“Pois então<br />

Falou um teu irmão”.<br />

________<br />

CORDEIRO<br />

“Não o tenho”.<br />

________<br />

LÔBO<br />

109


“Foi um dos teus parentes,<br />

Que me tem entre dentes;<br />

E eu vingo-me de vós — cães e pastôres,<br />

Que sois tão faladores”.<br />

Disse, e sôbre o cordeiro se despenha<br />

E o conduz para a brenha,<br />

Onde o como do mato no recesso,<br />

Sem forma de processo.<br />

______<br />

Qual a razão do mais forte predomina<br />

Esta fábula ensina.<br />

BARÃO DE PARANAPIACABA (LA FONTAINE, 1970, p.107-111).<br />

Fàbula III: La poule aus oeufs d’or<br />

L’avarice perd tout en voulant tout gagner.<br />

Je ne veux, pour le témoigner,<br />

Que celui dont la poule, à ce que dit la fable,<br />

Pondoit tous les jours um oeuf d’or.<br />

Il crut que dans son corps elle avoit un trésor :<br />

Il la tua, l’ouvrit, et la trouva semblable<br />

A celles dont les oeufs ne lui rapportoient rien,<br />

Belle leçon pour les gens chiches !<br />

Pendant ces derniers temps, combien en a-t-on vus<br />

Qui du soir su matin son pauvres devenus,<br />

Pour vouloir trop tôt être riches ! ( LA FONTAINE, 1958, p.195)<br />

A galinha que punha ovos de ouro<br />

Um homem tinha<br />

Uma galinha,<br />

Que Juno bela<br />

Por desenfado<br />

Tinha falado<br />

Vivia ela<br />

Dentro dum covo,<br />

E punha um ôvo<br />

D’ouro luzente<br />

Em cada um dia,<br />

Que valeria<br />

Seguramente<br />

Dobrão e meio:<br />

Mas o patrão<br />

Um dia cheio<br />

110


D’ímpia ambição<br />

Foi-se à galinha<br />

E degolou-a.<br />

Examinou-a;<br />

Porque supunha<br />

Que em si continha<br />

Rico tesouro,<br />

Visto que punha<br />

Os ovos de ouro;<br />

Mas nada achou!<br />

E por avaro<br />

Se despojou<br />

Do rico amparo<br />

Que nela tinha.<br />

Outra galinha<br />

Jamais topou<br />

Com tal condão;<br />

E assim pagou<br />

Sua ambição.<br />

CURVO SEMMEDO (LA FONTAINE, 1970, p.581-582).<br />

111

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