5 mil quelônios devolvidos ao rio
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6 ABRIL - 2007<br />
O município de Juruti<br />
comemora no dia 9 de abril<br />
124 anos de fundação. Para<br />
marcar o aniversá<strong>rio</strong>, uma<br />
extensa programação foi<br />
montada, encerrando com<br />
festa popular no Tribódromo.<br />
A origem do município<br />
remonta a uma aldeia dos<br />
“- Eu era aluna do Colégio<br />
Santo Antônio, onde<br />
estudei no período de 1942<br />
a 1949/50. Foi nesta época<br />
que ouvi uma interessante<br />
história que vou lhe contar<br />
pelo interesse que tem<br />
e porque escreve sobre este<br />
assunto de aparições, visagens<br />
e assombrações.”<br />
Quem assim falava era<br />
a senhora Maria de Nazaré<br />
Boulhosa Nassar, esposa do<br />
amigo jornalista, escritor e<br />
membro da Academia Paraense<br />
de Letras, Rafael Costa.<br />
D.Nazaré nasceu em<br />
Belém, mas era filha de fazendeiros<br />
no Município de<br />
Cachoeira do Arari, no Marajó,<br />
onde sempre passava<br />
as férias. De pais religiosos,<br />
muito católicos, na idade escolar<br />
foi estudar no Colégio<br />
Santo Antônio, das Irmãs Dorotéias,<br />
Ordem fundada pela<br />
Irmã Paula Francineti, e que<br />
fica localizado na Praça Dom<br />
Macedo Costa, 521, em Belém.<br />
Mas deixemos D. Nazaré<br />
contar a história que ouviu na<br />
década de quarenta.<br />
“- Naquele tempo tudo<br />
era muito diferente. Os meios<br />
de transportes do Sul para<br />
o Norte e vice-versa eram<br />
apenas por via marítima ou<br />
aérea. Não havia estradas, nem<br />
se falava em Belém-Brasília.<br />
Aliás, Brasília nem existia.<br />
Então qualquer encomenda<br />
comercial utilizava o frete<br />
marítimo, até porque o frete<br />
aéreo era caríssimo. Era costume<br />
as irmãs encomendarem<br />
os tecidos de São Paulo para a<br />
confecção de hábitos das reli-<br />
ascida em 1874, minha<br />
Navó paterna tinha 25<br />
anos no ano em que o padre<br />
João Braz faleceu. Na realidade,<br />
os únicos fatos seguros da<br />
incerta biografia desse sacerdote<br />
é que ele foi o primeiro<br />
vigá<strong>rio</strong> de Juruti e que faleceu<br />
em 1899. Minha avó sequer<br />
chegou a conhecê-lo pessoalmente,<br />
considerando que, na<br />
época, ele já havia sido banido<br />
para sempre da cidade. Ao longo<br />
do tempo, muitas histórias<br />
e boatos foram se espalhando<br />
sobre ele pelo Baixo-Amazonas,<br />
sendo a mais marcante<br />
e talvez a mais comentada, a<br />
história que minha avó não<br />
cansava de repetir na velhice:<br />
que esse frade foi expulso de<br />
Juruti por seu envolvimento<br />
amoroso com diversas jovens<br />
da paróquia, tendo deixado alguns<br />
descendentes por lá. Por<br />
causa das peraltices do cura,<br />
a população teria se rebelado<br />
contra ele e, para o bem da<br />
moral e dos bons costumes,<br />
achou por dever expulsá-lo da<br />
comunidade.<br />
Em seguida, <strong>ao</strong> que se<br />
conta, cheio de indignação <strong>ao</strong><br />
se ver escorraçado impiedosamente<br />
por seu rebanho, e num<br />
gesto de extremo desencanto,<br />
ele raspou das sandálias franciscanas<br />
qualquer resquício de<br />
solo jurutiense, amaldiçoando<br />
o lugar e seus habitantes por<br />
um período de cem anos.<br />
Histórias reais ou lendas<br />
sobre padres que amaldiçoaram<br />
cidades não chegam a ser<br />
tão incomuns na Amazônia.<br />
índios Mundurucus que,<br />
em 1818, ficou sob a direção<br />
de um missioná<strong>rio</strong>, com<br />
poderes paroquiais. Com<br />
a construção de uma igreja<br />
pelos índios, foi logo transformada<br />
em Freguesia, sob a<br />
proteção de Nossa Senhora<br />
da Saúde. Pela Lei nº 930,<br />
WALCYR MONTEIRO<br />
walcyr@supridados.com.br<br />
giosas e uniformes das alunas,<br />
porque o preço em Belém era<br />
muito caro.<br />
A história foi contada<br />
para mim e minhas colegas<br />
por uma irmã Dorotéia, de<br />
quem não lembro o nome.<br />
Ela disse que, em certa<br />
ocasião, na década de trinta,<br />
a direção do estabelecimento<br />
fez uma encomenda que,<br />
conforme já dito, vinha por<br />
transporte marítimo, e nada<br />
da encomenda ser entregue.<br />
Após muito procurarem, receberam<br />
a informação do diretor<br />
do Cais do Porto:<br />
- A encomenda das senhoras<br />
foi extraviada!<br />
- Mas, extraviada, como?<br />
São vá<strong>rio</strong>s fardos de fazenda<br />
e tecidos! Como pode ter se<br />
extraviado um lote de fardos?<br />
- Não sabemos lhe dizer.<br />
Só que já fizemos procuração<br />
por toda parte e nada... Não<br />
conseguimos de forma nenhuma<br />
encontrar!<br />
As irmãs ficaram desesperadas.<br />
A encomenda não<br />
O caso mais clássico que se<br />
tem notícia aconteceu na<br />
cidade de Maués, terra da<br />
minha outra avó, de onde um<br />
padre também foi expulso no<br />
século XIX, fazendo o mesmo<br />
gesto de raspar o solo das suas<br />
sandálias enquanto rogava sua<br />
célebre praga sobre a cidade,<br />
com palavras que acabaram<br />
entrando para o folclore da<br />
terra do guaraná: “Maués,<br />
mau sois e mau serás”, ele<br />
teria proclamado com a força<br />
inabalável da fé. Mas voltando<br />
<strong>ao</strong> caso do padre João Braz, o<br />
que mais me soou estranho e<br />
atiçou minha cu<strong>rio</strong>sidade, foi<br />
saber que ele estava sepultado<br />
na mesma Juruti de onde havia<br />
saído enxotado pela população<br />
há mais de cem anos. Após<br />
confirmar com um velho<br />
morador a veracidade dessa<br />
informação, aproveitei uma<br />
ida recente àquela cidade para<br />
visitar o túmulo desse controvertido<br />
religioso.<br />
O cemité<strong>rio</strong> fica na primeira<br />
rua de Juruti, no lado<br />
ocidental de quem chega no<br />
porto, e se debruça, alheio às<br />
enchentes, sobre uma grande<br />
ribanceira de terra firme.<br />
Entrei naquele lugar cheio<br />
de silêncio em torno de onze<br />
da manhã e com um calor de<br />
rachar, mas privilegiado pela<br />
bela vista do grande Amazonas<br />
correndo vivo lá embaixo. O<br />
acesso foi fácil porque o gradil<br />
da entrada estava entreaberto e<br />
não havia nenhum vigia, ninguém<br />
para indagar o que eu<br />
estava fazendo ali e muito me-<br />
Aparição no cais do porto<br />
de 15 de julho de 1879, Juruti<br />
passou a ser ponto de escala<br />
da navegação a vapor subvencionada<br />
pelo governo. Foi<br />
assim que a então Freguesia<br />
de Juruti ganhou elevação à<br />
categoria de Vila, de acordo<br />
com a Lei nº 1.152, de 9 de<br />
abril de 1883.<br />
estava no seguro e elas iam<br />
perder dinheiro, que no caso<br />
era muito preciso, pois elas<br />
não tinham de onde tirar para<br />
uma nova encomenda, sem<br />
falar no atraso que acarretaria<br />
começar tudo de novo.<br />
Então começaram a fazer<br />
uma novena à Paula Francineti.<br />
Todas as noites elas se<br />
reuniam e rezavam, fazendo<br />
o pedido para que os fardos<br />
fossem localizados.<br />
Logo depois, numa certa<br />
manhã, foi feita uma ligação<br />
telefônica para o Colégio de<br />
alguém que se identificou<br />
como um dos diretores do<br />
Cais do Porto, falando que<br />
tinha ido uma irmã lá no armazém,<br />
dizendo saber onde os<br />
fardos se encontravam.<br />
Imediatamente um grupo<br />
de irmãs se dirigiu para lá,<br />
para saber o que tinha ocorrido.<br />
É preciso que se diga que,<br />
naquela época, nenhuma irmã<br />
andava sozinha. Elas sempre<br />
saíam em grupo de três, quatro<br />
ou mais, daí estranharem<br />
a informação de que apenas<br />
uma irmã, sozinha, tivesse se<br />
dirigido <strong>ao</strong> Cais do Porto.<br />
Lá chegando, procuraram<br />
o diretor e perguntaram<br />
o que tinha acontecido.<br />
O diretor tranqüilamente<br />
respondeu:<br />
- Foi, sim! Veio uma<br />
irmã aqui e foi mostrar os fardos<br />
num lugar em que jamais<br />
ADEMAR AYRES DO AMARAL<br />
ademar@amazon.com.br<br />
Cem anos de maldição<br />
nos para me fornecer qualquer<br />
tipo de orientação. A sorte é<br />
que o túmulo do padre João<br />
Braz não é difícil de distinguir,<br />
pois de uns tempos para cá é a<br />
única sepultura daquele campo-santo<br />
que vive coberta de<br />
plantas e flores. Ela fica a uns<br />
dez metros à esquerda de uma<br />
grande cruz de madeira que<br />
chamam de cruzeiro, a qual<br />
se acha fincada sobre uma base<br />
circular de cimento, que está<br />
sempre enlameada por restos<br />
de velas derretidas, como um<br />
vestígio dos muitos promesseiros<br />
que lá vão cumprir suas<br />
obrigações com as almas.<br />
O cruzeiro está bem no<br />
centro do cemité<strong>rio</strong> e chegase<br />
a ele seguindo o único e<br />
acanhado calçamento que vai<br />
do portão de entrada até a base<br />
da cruz. O lugar onde repousa<br />
o padre João Braz é um jazigo<br />
simples, aparentando completo<br />
abandono e marcado por<br />
OPINIÃO<br />
Festa pelos 124 anos de Juruti<br />
Em Juruti, a principal<br />
manifestação religiosa é o<br />
Cí<strong>rio</strong> de Nossa Senhora<br />
da Saúde, padroeira da<br />
cidade, realizado no dia<br />
23 de junho com o Cí<strong>rio</strong><br />
Fluvial, que sai do Lago<br />
das Piranhas com destino à<br />
sede do Município. No dia<br />
seriam descobertos, a menos<br />
que fossem mostrados, como<br />
de fato ocorreu...! Nós já tínhamos<br />
dado por perdidos...<br />
As irmãs estavam incrédulas.<br />
Quem poderia ser?<br />
Olharam o diretor sem acreditar<br />
muito no que dizia.<br />
O diretor, por sua vez, se<br />
sentia um tanto desconfortável<br />
diante da situação, pois sentia<br />
o olhar de incredulidade das<br />
irmãs. De repente, olhando<br />
as medalhas que as irmãs levavam<br />
penduradas no peito,<br />
uma única carreira retangular<br />
de tijolos que quase desaparece<br />
por baixo da abundante<br />
vegetação. Apenas na cabeceira<br />
ainda permanece de pé a parte<br />
que sobrou de uma decorada<br />
estrutura de ferro, já carcomida<br />
pelos anos, onde foi fixada<br />
uma tosca placa de latão pintada<br />
de preto, com a seguinte<br />
inscrição em letras brancas:<br />
“eu sou a ressurreição e a vida”<br />
Jo.11.25, 1º Vigá<strong>rio</strong> de Juruti,<br />
Pe. João Braz, † 1899.<br />
A histórica e descuidada<br />
sepultura do Padre João Braz,<br />
no cemité<strong>rio</strong> de Juruti, é um<br />
retrato fiel do total desamparo<br />
e desleixo com a memória da<br />
cidade. Porém, o incrível da<br />
história, o mais inacreditável,<br />
foi constatar que naquele<br />
sítio dos mortos jogados <strong>ao</strong><br />
desmazelo, a campa onde<br />
descansa o sacerdote esteja<br />
sempre plena de um verde<br />
exuberante e entremeado por<br />
cachos vermelhos de jasmins<br />
de S. Benedito, sem que ninguém<br />
sequer tenha tido algum<br />
interesse ou piedade de lhe<br />
conceder um mísero regador<br />
de água. Muitas pessoas na<br />
cidade andam se perguntando<br />
a causa desse misté<strong>rio</strong> e o<br />
porquê do túmulo do padre se<br />
preservar assim tão florido nos<br />
últimos tempos. Para alguns<br />
02 de julho, as festividades<br />
são encerradas com um<br />
leilão de animais.<br />
O Festival das Tribos,<br />
que acontece desde 1986,<br />
é o ponto alto do folclore<br />
e turismo locais. O Tribódromo,<br />
palco dessa festa,<br />
tem uma arena de três <strong>mil</strong><br />
exclamou:<br />
- Olha aí, foi essa que<br />
veio...!<br />
As irmãs se<br />
entreolharam.<br />
Na medalha estava gravada<br />
a efígie de Paula Francineti...<br />
Então disseram:<br />
- Olhe, meu senhor!<br />
Esta é Paula Francineti, a fundadora<br />
de nossa Ordem. Só<br />
que ela não vive mais...<br />
O diretor ficou espantado.<br />
Então disse que ela chegou<br />
dizendo que ia mostrar onde<br />
mais idosos e sábios moradores<br />
de Juruti, a resposta que<br />
está na ponta da língua é que<br />
esse é o definitivo sinal de que<br />
a maldição dos cem anos acabou,<br />
e que, lá da eternidade, o<br />
padre faz florir seu túmulo em<br />
sinal de perdão pela velhacaria<br />
que fizeram com ele e como<br />
benção pelos bons tempos<br />
que estão chegando a reboque<br />
da bauxita.<br />
Mas ainda há dúvidas<br />
e muita controvérsia sobre o<br />
que realmente teria acontecido<br />
há mais de um século e que<br />
culminou com o banimento<br />
do pároco do município. Na<br />
verdade, ouvindo a voz do<br />
povo, a gente fica sabendo que<br />
há outra história(ou será lenda?),<br />
muito mais interessante e<br />
pouco divulgada sobre o malfadado<br />
acontecimento. Diz<br />
essa outra versão, que o real<br />
motivo da desordem não passou<br />
de um belo e tumultuado<br />
caso de amor correspondido.<br />
Jovem, bonito e comprimido<br />
pela fervura dos hormônios,<br />
o padre chega a Juruti e logo<br />
começa a ser assediado pelas<br />
moçoilas do lugar. Resistiu o<br />
quanto pôde, mas um dia foi<br />
vencido pela beleza selvagem<br />
e pelo olhar suplicante da filha<br />
de um poderoso coronel do<br />
cacau, por quem logo se apaixonou<br />
perdidamente.<br />
O caso já ia longe quando<br />
o pai da moça descobriu a<br />
tórrida paixão, fazendo espalhar<br />
o boato maldoso que o<br />
vigá<strong>rio</strong> era um devorador de<br />
donzelas e que deveria sair da<br />
metros quadrados, com<br />
capacidade para abrigar 7<br />
<strong>mil</strong> pessoas. É lá que se<br />
apresentam grupos folclóricos,<br />
danças e cantos típicos<br />
e, na apoteose, no último<br />
dia, as tribos Mundurukus<br />
e Muirapinimas disputam<br />
o título.<br />
estavam os fardos, foi acompanhando<br />
um encarregado e,<br />
após localizá-los, disse:<br />
- O senhor já pode avisar<br />
<strong>ao</strong> colégio que os fardos foram<br />
encontrados...!<br />
As irmãs Dorotéias ouviram<br />
tudo muito emocionadas<br />
e atribuíram a um <strong>mil</strong>agre de<br />
Paula Francineti, que, ouvindo<br />
os pedidos desesperados das<br />
irmãs da Ordem que havia<br />
fundado, foi pessoalmente<br />
mostrar onde estavam os<br />
fardos...”<br />
paróquia. Rico e influente, o<br />
fazendeiro conseguiu arrebanhar<br />
a população e a situação<br />
ficou tão insustentável que a<br />
igreja se viu obrigada a transferir<br />
o Padre João Braz para o<br />
vilarejo de Terra Santa<br />
Tempos depois, para<br />
lavar a honra, o fazendeiro<br />
arranjou, a seu gosto, um<br />
pretendente rico com quem<br />
obrigou a filha a se casar. A<br />
notícia do enlace não demorou<br />
chegar a Terra Santa<br />
e muito menos <strong>ao</strong> conhecimento<br />
do padre, levando-o<br />
<strong>ao</strong> desespero e mais tarde<br />
<strong>ao</strong> suicídio. Outros também<br />
contam uma história de amor,<br />
mas trocam a donzela por<br />
uma senhora casada, o que<br />
teria resultado no assassinato<br />
do sacerdote, pelo marido<br />
traído, na mesma rua que hoje<br />
leva o seu nome.<br />
Bom, junto com duas<br />
fotos do túmulo florido, isso<br />
foi tudo o que eu consegui<br />
apurar sobre o triste destino do<br />
Padre João Braz. Não é muita<br />
coisa, apenas folhas esparsas<br />
de um tesouro perdido da<br />
história de Juruti. Deixo para<br />
o leitor a opção de decidir<br />
entre o personagem do padre<br />
devorador de donzelas - que<br />
dizem ser verídica - e o da<br />
lenda que fala de uma grande<br />
paixão. Da minha parte, eu<br />
prefiro <strong>mil</strong> vezes ficar com a<br />
lenda. Ainda que trágicas, essas<br />
narrativas envolvendo amores<br />
impossíveis e paixões avassaladoras,<br />
são muito mais bonitas<br />
e melhores de sonhar.