Contos escolhidos - 1ª série – ensino médio – manhã – Literatura ...
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<strong>Contos</strong> <strong>escolhidos</strong> - <strong>1ª</strong> <strong>série</strong> <strong>–</strong> <strong>ensino</strong> <strong>médio</strong> <strong>–</strong> <strong>manhã</strong> <strong>–</strong> <strong>Literatura</strong> <strong>–</strong> Profa. Rosângela Gueriero<br />
UM APÓLOGO <strong>–</strong> Machado de Assis<br />
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:<br />
- Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?<br />
- Deixe-me, senhora.<br />
- Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre<br />
que me der na cabeça.<br />
- Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual<br />
tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.<br />
- Mas você é orgulhosa.<br />
- Decerto que sou.<br />
- Mas por quê?<br />
- É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?<br />
- Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?<br />
- Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...<br />
- Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu<br />
faço e mando...<br />
- Também os batedores vão adiante do imperador.<br />
- Você é imperador?<br />
- Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai<br />
fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...<br />
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma<br />
baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha,<br />
pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a<br />
melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana - para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:<br />
- Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo;<br />
eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima.<br />
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como<br />
quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e<br />
foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a<br />
costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou<br />
esperando o baile.<br />
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho,<br />
para dar algum ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui<br />
ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:<br />
- Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é<br />
que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das<br />
mucamas? Vamos, diga lá.<br />
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre<br />
agulha:<br />
- Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de<br />
costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.<br />
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: - Também eu tenho servido de<br />
agulha a muita linha ordinária! Fonte: <strong>Contos</strong> Consagrados - Machado de Assis - Coleção Prestígio - Ediouro - s/d<br />
A CAUSA SECRETA - Machado de Assis<br />
Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da<br />
janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera<br />
excelente, - de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três<br />
personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço.<br />
Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para<br />
tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de<br />
Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual.<br />
Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação.
Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com<br />
Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim,<br />
tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras<br />
distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca<br />
achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite,<br />
estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.<br />
A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular<br />
interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que<br />
o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não<br />
esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia<br />
devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia<br />
andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem<br />
saber mais nada.<br />
Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada;<br />
desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que alguns<br />
homens conduziam, escada acima, ensangüentado. O preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram<br />
confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico.<br />
- Já aí vem um, acudiu alguém.<br />
Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas<br />
rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele<br />
assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens.<br />
Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que<br />
se passara.<br />
- Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito<br />
grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um<br />
daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele,<br />
meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo.<br />
- Conhecia-o antes? perguntou Garcia.<br />
- Não, nunca o vi. Quem é?<br />
- É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouvêa.<br />
- Não sei quem é.<br />
Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou<br />
chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o<br />
curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando<br />
friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o patamar da<br />
escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram, ele e o<br />
estudante ficaram no quarto.<br />
Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das<br />
calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e<br />
fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria<br />
quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava<br />
logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo<br />
tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como<br />
parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios.<br />
Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída,<br />
desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número.<br />
- Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente.<br />
Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deulhe<br />
uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouvêa, defronte dele, sentado e calado,<br />
alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez<br />
minutos, pediu licença para sair, e saiu.<br />
- Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se.<br />
O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou<br />
perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e<br />
exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como<br />
uma simples idéia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão.<br />
Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os<br />
caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o<br />
segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem<br />
recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum.<br />
2
Tempos depois, estando já formado e morando na rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma<br />
gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a freqüência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali<br />
perto, em Catumbi.<br />
- Sabe que estou casado?<br />
- Não sabia.<br />
- Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo.<br />
- Domingo?<br />
- Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo.<br />
Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que<br />
era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não<br />
eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era<br />
pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e<br />
cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma<br />
dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que<br />
transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a Maria Luísa<br />
se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido.<br />
- Não, respondeu a moça.<br />
- Vai ouvir uma ação bonita.<br />
- Não vale a pena, interrompeu Fortunato.<br />
- A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico.<br />
Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao<br />
marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com<br />
indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras<br />
atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o<br />
riso dele era jovial e franco.<br />
" Singular homem!" pensou Garcia.<br />
Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a<br />
referir a dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar<br />
uma casa de saúde, irei convidá-lo.<br />
- Valeu? perguntou Fortunato.<br />
- Valeu o quê?<br />
- Vamos fundar uma casa de saúde?<br />
- Não valeu nada; estou brincando.<br />
- Podia-se fazer alguma coisa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma<br />
casa que vai vagar, e serve.<br />
Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a idéia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais.<br />
Na verdade, era uma boa estréia para ele, e podia vir a ser um bom negócio para ambos. Aceitou finalmente, daí a dias, e foi<br />
uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a idéia de que o marido tivesse de viver em contato<br />
com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é<br />
que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de<br />
enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas.<br />
Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na<br />
própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia<br />
aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia.<br />
Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos.<br />
- Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.<br />
A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os<br />
dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o<br />
encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada,<br />
ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por<br />
ele, quis expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas<br />
trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.<br />
No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça.<br />
Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os<br />
guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os<br />
sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como coisa sua, alcançasse do marido a<br />
cessação de tais experiências.<br />
- Mas a senhora mesma...<br />
Maria Luísa acudiu, sorrindo:<br />
- Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz<br />
mal; e creia que faz...<br />
3
Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube,<br />
mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia<br />
de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada.<br />
- Deixe ver o pulso.<br />
- Não tenho nada.<br />
Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era<br />
preciso observá-la e avisar o marido em tempo.<br />
Dois dias depois, - exatamente o dia em que os vemos agora, - Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato<br />
estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita.<br />
- Que é? perguntou-lhe.<br />
- O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.<br />
Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunato queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas<br />
estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um<br />
prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja<br />
ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao<br />
rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira,<br />
pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.<br />
- Mate-o logo! disse-lhe.<br />
- Já vai.<br />
E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas,<br />
Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se,<br />
guinchando, ensangüentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e<br />
estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo,<br />
com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar,<br />
acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez,<br />
até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.<br />
Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tãosomente<br />
um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua<br />
divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente<br />
esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda<br />
um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao<br />
fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue.<br />
Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera<br />
o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.<br />
"Castiga sem raiva", pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode<br />
dar: é o segredo deste homem".<br />
Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe<br />
preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma<br />
explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula.<br />
Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe<br />
mansamente:<br />
- Fracalhona!<br />
E voltando-se para o médico:<br />
- Há de crer que quase desmaiou?<br />
Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas,<br />
e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras<br />
coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram<br />
jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a<br />
algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por<br />
ela e cuidou de os vigiar.<br />
Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável,<br />
que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a<br />
seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, re<strong>médio</strong>s, ares, todos os recursos<br />
e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal.<br />
Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição.<br />
Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela<br />
criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe<br />
perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele<br />
ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.<br />
De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando<br />
o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco.<br />
4
- Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois.<br />
Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir<br />
outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a<br />
parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado.<br />
Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois,<br />
como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta.<br />
Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a<br />
natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao<br />
ressentimento.<br />
Olhou assombrado, mordendo os beiços.<br />
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em<br />
soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável<br />
desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa,<br />
deliciosamente longa. Fonte: Várias Histórias - Machado de Assis - W. M. Jackson Inc Editores - 1946.<br />
5<br />
A NOVA CALIFÓRNIA- Lima Barreto<br />
Ninguém sabia donde viera aquele homem. O agente do Correio pudera apenas informar que acudia ao nome de Raimundo<br />
Flamel, pois assim era subscrita a correspondência que recebia. E era grande. Quase diariamente, o carteiro lá ia a um dos<br />
extremos da cidade, onde morava o desconhecido, sopesando um maço alentado de cartas vindas do mundo inteiro, grossas<br />
revistas em línguas arrevesadas, livros, pacotes...<br />
Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço em casa do novo habitante, todos na venda perguntaram-lhe que trabalho<br />
lhe tinha sido determinado.<br />
— Vou fazer um forno, disse o preto, na sala de jantar.<br />
Imaginem o espanto da pequena cidade de Tubiacanga, ao saber de tão extravagante construção: um forno na sala de jantar! E,<br />
pelos dias seguintes, Fabrício pôde contar que vira balões de vidros, facas sem corte, copos como os da farmácia —um rol de<br />
coisas esquisitas a se mostrarem pelas mesas e prateleiras como utensílios de uma bateria de cozinha em que o próprio diabo<br />
cozinhasse.<br />
O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante de moeda falsa; para outros, os crentes e simples, um<br />
tipo que tinha parte com o tinhoso.<br />
Chico da Tirana, o carreiro, quando passava em frente da casa do homem misterioso, ao lado do carro a chiar, e olhava a<br />
chaminé da sala de jantar a fumegar, não deixava de persignar-se e rezar um "credo" em voz baixa; e, não fora a intervenção do<br />
farmacêutico, o subdelegado teria ido dar um cerco à casa daquele indivíduo suspeito, que inquietava a imaginação de toda uma<br />
população.<br />
Tomando em consideração as informações de Fabrício, o boticário Bastos concluirá que o desconhecido devia ser um sábio, um<br />
grande químico, refugiado ali para mais sossegadamente levar avante os seus trabalhos científicos.<br />
Homem formado e respeitado na cidade, vereador, médico também, porque o doutor Jerônimo não gostava de receitar e se<br />
fizera sócio da farmácia para mais em paz viver, a opinião de Bastos levou tranqüilidade a todas as consciências e fez com que a<br />
população cercasse de uma silenciosa admiração a pessoa do grande químico, que viera habitar a cidade.<br />
De tarde, se o viam a passear pela margem do Tubiacanga, sentando-se aqui e ali, olhando perdidamente as águas claras do<br />
riacho, cismando diante da penetrante melancolia do crespúsculo, todos se descobriam e não era raro que às "boas noites"<br />
acrescentassem "doutor". E tocava muito o coração daquela gente a profunda simpatia com que ele tratava as crianças, a<br />
maneira pela qual as contemplava, parecendo apiedar-se de que elas tivessem nascido para sofrer e morrer.<br />
Na verdade, era de ver-se, sob a doçura suave da tarde, a bondade de Messias com que ele afagava aquelas crianças pretas, tão<br />
lisas de pele e tão tristes de modos, mergulhadas no seu cativeiro moral, e também as brancas, de pele baça, gretada e áspera,<br />
vivendo amparadas na necessária caquexia dos trópicos.<br />
Por vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual a razão de ter Bernardin de Saint-Pierre gasto toda a sua ternura com Paulo e<br />
Virgínia e esquecer-se dos escravos que os cercavam...<br />
Em poucos dias a admiração pelo sábio era quase geral, e não o era unicamente porque havia alguém que não tinha em grande<br />
conta os méritos do novo habitante.<br />
Capitão Pelino, mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão local e filiado ao partido situacionista, embirrava com o<br />
sábio. "Vocês hão de ver, dizia ele, quem é esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez um ladrão fugido do Rio."<br />
A sua opinião em nada se baseava, ou antes, baseava-se no seu oculto despeito vendo na terra um rival para a fama de sábio de<br />
que gozava. Não que Pelino fosse químico, longe disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém escrevia em Tubiacanga que não<br />
levasse bordoada do Capitão Pelino, e mesmo quando se falava em algum homem notável lá no Rio, ele não deixava de dizer:<br />
"Não há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: "um outro", "de resto"..." E contraía os lábios como se tivesse engolido<br />
alguma cousa amarga.<br />
Toda a vila de Tubiacanga acostumou-se a respeitar o solene Pelino, que corrigia e emendava as maiores glórias nacionais. Um<br />
sábio...<br />
Ao entardecer, depois de ler um pouco o Sotero, o Cândido de Figueiredo ou o Castro Lopes, e de ter passado mais uma vez a<br />
tintura nos cabelos, o velho mestre-escola saía vagarosamente de casa, muito abotoado no seu paletó de brim mineiro, e
encaminhava-se para a botica do Bastos a dar dois dedos de prosa. Conversar é um modo de dizer, porque era Pelino avaro de<br />
palavras, limitando-se tão-somente a ouvir. Quando, porém, dos lábios de alguém escapava a menor incorreção de linguagem,<br />
intervinha e emendava. "Eu asseguro, dizia o agente do Correio, que..." Por aí, o mestre-escola intervinha com mansuetude<br />
evangélica: "Não diga "asseguro" Senhor Bernardes; em português é garanto."<br />
E a conversa continuava depois da emenda, para ser de novo interrompida por uma outra. Por essas e outras, houve muitos<br />
palestradores que se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro dos seus deveres, continuava o seu apostolado de<br />
vernaculismo. A chegada do sábio veio distraí-lo um pouco da sua missão. Todo o seu esforço voltava-se agora para combater<br />
aquele rival, que surgia tão inopinadamente.<br />
Foram vãs as suas palavras e a sua eloqüência: não só Raimundo Flamel pagava em dia as suas contas, como era generoso - pai<br />
da pobreza - e o farmacêutico vira numa revista de específicos seu nome citado como químico de valor.<br />
6<br />
II<br />
Havia já anos que o químico vivia em Tubiacanga, quando, uma bela <strong>manhã</strong>, Bastos o viu entrar pela botica adentro. O prazer do<br />
farmacêutico foi imenso. O sábio não se dignara até aí visitar fosse quem fosse e, certo dia, quando o sacristão Orestes ousou<br />
penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma esmola para a futura festa de Nossa Senhora da Conceição, foi com visível enfado que<br />
ele o recebeu e atendeu.<br />
Vendo-o, Bastos saiu de detrás do balcão, correu a recebê-lo com a mais perfeita demonstração de quem sabia com quem<br />
tratava e foi quase em uma exclamação que disse:<br />
—Doutor, seja bem-vindo.<br />
O sábio pareceu não se surpreender nem com a demonstração de respeito do farmacêutico, nem com o tratamento<br />
universitário. Docemente, olhou um instante a armação cheia de medicamentos e respondeu:<br />
— Desejava falar-lhe em particular, Senhor Bastos.<br />
O espanto do farmacêutico foi grande. Em que poderia ele ser útil ao homem, cujo nome corria mundo e de quem os jornais<br />
falavam com tão acendrado respeito? Seria dinheiro? Talvez... Um atraso no pagamento das rendas, quem sabe? E foi<br />
conduzindo o químico para o interior da casa, sob o olhar espantado do aprendiz que, por um momento, deixou a "mão"<br />
descansar no gral, onde macerava uma tisana qualquer.<br />
Por fim, achou ao fundo, bem no fundo, o quartinho que lhe servia para exames médicos mais detidos ou para as pequenas<br />
operações, porque Bastos também operava. Sentaram-se e Flamel não tardou a expor:<br />
— Como o senhor deve saber, dedico-me à química, tenho mesmo um nome respeitado no mundo sábio...<br />
— Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho disso informado, aqui, aos meus amigos.<br />
— Obrigado. Pois bem: fiz uma grande descoberta, extraordinária...<br />
Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio fez uma pausa e depois continuou:<br />
— Uma descoberta... Mas não me convém, por ora, comunicar ao mundo sábio, compreende?<br />
— Perfeitamente.<br />
— Por isso precisava de três pessoas conceituadas que fossem testemunhas de uma experiência dela e me dessem um atestado<br />
em forma, para resguardar a prioridade da minha invenção... O senhor sabe: há acontecimentos imprevistos e...<br />
— Certamente! Não há dúvida!<br />
— Imagine o senhor que se trata de fazer ouro...<br />
— Como? O quê? fez Bastos, arregalando os olhos.<br />
— Sim! Ouro! disse, com firmeza, Flamel.<br />
— Como?<br />
— O senhor saberá, disse o químico secamente. A questão do momento são as pessoas que devem assistir à experiência, não<br />
acha?<br />
— Com certeza, é preciso que os seus direitos fiquem resguardados, porquanto...<br />
— Uma delas, interrompeu o sábio, é o senhor; as outras duas, o Senhor Bastos fará o favor de indicar-me.<br />
O boticário esteve um instante a pensar, passando em revista os seus conhecimentos e, ao fim de uns três minutos, perguntou:<br />
— O Coronel Bentes lhe serve? Conhece?<br />
— Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém aqui.<br />
— Posso garantir-lhe que é homem sério, rico e muito discreto.<br />
— E religioso? Faço-lhe esta pergunta, acrescentou Flamel logo, porque temos que lidar com ossos de defunto e só estes<br />
servem...<br />
— Qual! E quase ateu...<br />
— Bem! Aceito. E o outro?<br />
Bastos voltou a pensar e dessa vez demorou-se um pouco mais consultando a sua memória... Por fim, falou:<br />
— Será o Tenente Carvalhais, o coletor, conhece?<br />
— Como já lhe disse...<br />
— E verdade. E homem de confiança, sério, mas...<br />
— Que é que tem?<br />
— E maçom.<br />
— Melhor.
— E quando é?<br />
— Domingo. Domingo, os três irão lá em casa assistir à experiência e espero que não me recusarão as suas firmas para<br />
autenticar a minha descoberta.<br />
— Está tratado.<br />
Domingo, conforme prometeram, as três pessoas respeitáveis de Tubiacanga foram à casa de Flamel, e, dias depois,<br />
misteriosamente, ele desaparecia sem deixar vestígios ou explicação para o seu desaparecimento.<br />
III<br />
Tubiacanga era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes, muito pacífica, em cuja estação, de onde em onde, os<br />
expressos davam a honra de parar. Há cinco anos não se registrava nela um furto ou roubo. As portas e janelas só eram usadas...<br />
porque o Rio as usava.<br />
O único crime notado em seu pobre cadastro fora um assassinato por ocasião das eleições municipais; mas, atendendo que o<br />
assassino era do partido do governo, e a vítima da oposição, o acontecimento em nada alterou os hábitos da cidade,<br />
continuando ela a exportar o seu café e a mirar as suas casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a<br />
batizara.<br />
Mas, qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando se veio a verificar nela um dos repugnantes crimes de que se tem<br />
memória! Não se tratava de um esquartejamento ou parricídio; não era o assassinato de uma família inteira ou um assalto à<br />
coletoria; era cousa pior, sacrílega aos olhos de todas as religiões e consciências: violavam-se as sepulturas do "Sossego", do seu<br />
cemitério, do seu campo-santo.<br />
Em começo, o coveiro julgou que fossem cães, mas, revistando bem o muro, não encontrou senão pequenos buracos. Fechouos;<br />
foi inútil. No dia seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos saqueados; no outro, um carneiro e uma sepultura rasa.<br />
Era gente ou demônio. O coveiro não quis mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado e a notícia espalhou-se<br />
pela cidade.<br />
A indignação na cidade tomou todas as feições e todas as vontades. A religião da morte precede todas e certamente será a<br />
última a morrer nas consciências. Contra a profanação, clamaram os seis presbiterianos do lugar - os bíblicos, como lhes chama<br />
o povo; clamava o Agrimensor Nicolau, antigo cadete, e positivista do rito Teixeira Mendes; clamava o Major Camanho,<br />
presidente da Loja Nova Esperança; clamavam o turco Miguel Abudala, negociante de armarinho, e o cético Belmiro, antigo<br />
estudante, que vivia ao deus-dará, bebericando parati nas tavernas. A própria filha do engenheiro residente da estrada de ferro,<br />
que vivia desdenhando aquele lugarejo, sem notar sequer os suspiros dos apaixonados locais, sempre esperando que o expresso<br />
trouxesse um príncipe a desposá-la - , a linda e desdenhosa Cora não pôde deixar de compartilhar da indignação e do horror que<br />
tal ato provocara em todos do lugarejo. Que tinha ela com o túmulo de antigos escravos e humildes roceiros? Em que podia<br />
interessar aos seus lindos olhos pardos o destino de tão humildes ossos? Porventura o furto deles perturbaria o seu sonho de<br />
fazer radiar a beleza de sua boca, dos seus olhos e do seu busto nas calçadas do Rio?<br />
Decerto, não; mas era a Morte, a Morte implacável e onipotente, de que ela também se sentia escrava, e que não deixaria um<br />
dia de levar a sua linda caveirinha para a paz eterna do cemitério. Aí Cora queria os seus ossos sossegados, quietos e<br />
comodamente descansando num caixão bem feito e num túmulo seguro, depois de ter sido a sua carne encanto e prazer dos<br />
vermes...<br />
O mais indignado, porém, era Pelino. O professor deitara artigo de fundo, imprecando, bramindo, gritando: "Na estória do<br />
crime, dizia ele, já bastante rica de fatos repugnantes, como sejam: o esquartejamento de Maria de Macedo, o estrangulamento<br />
dos irmãos Fuoco, não se registra um que o seja tanto como o saque às sepulturas do "Sossego". "<br />
E a vila vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam paralisados; os namoros suspensos. Dias e dias<br />
por sobre as casas pairavam nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos, gemidos, barulhos sobrenaturais... Parecia que os<br />
mortos pediam vingança...<br />
O saque, porém, continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas abertas e esvaziadas de seu fúnebre conteúdo. Toda a<br />
população resolveu ir em massa guardar os ossos dos seus maiores. Foram cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono,<br />
retirou-se um, depois outro e, pela madrugada, já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verificou que duas<br />
sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados para destino misterioso.<br />
Organizaram então uma guarda. Dez homens decididos juraram perante o subdelegado vigiar durante a noite a mansão dos<br />
mortos.<br />
Nada houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira; mas, na quarta, quando os vigias já se dispunham a<br />
cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto esgueirando-se por entre a quadra dos carneiros. Correram e conseguiram apanhar<br />
dois dos vampiros. A raiva e a indignação, até aí sopitadas no animo deles, não se contiveram mais e deram tanta bordoada nos<br />
macabros ladrões, que os deixaram estendidos como mortos.<br />
A notícia correu logo de casa em casa e, quando, de <strong>manhã</strong>, se tratou de estabelecer a identidade dos dois malfeitores, foi<br />
diante da população inteira que foram neles reconhecidos o Coletor Carvalhais e o Coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente<br />
da Câmara. Este último ainda vivia e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para fazer ouro e 0<br />
companheiro que fugira era 0 farmacêutico.<br />
Houve espanto e houve esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele homem rico, respeitado, como<br />
desceria ao papel de ladrão de mortos se a cousa não fosse verdade!<br />
Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse fazer alguns contos de réis, como não seria bom para<br />
todos eles!<br />
7
O carteiro, cujo velho sonho era a formatura do filho, viu logo ali meios de consegui-la. Castrioto, o escrivão do juiz de paz, que<br />
no ano passado conseguiu comprar uma casa, mas ainda não a pudera cercar, pensou no muro, que lhe devia proteger a horta e<br />
a criação. Pelos olhos do sitiante Marques, que andava desde anos atrapalhado para arranjar um pasto, pensou logo no prado<br />
verde do Costa, onde os seus bois engordariam e ganhariam forças...<br />
Às necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro viriam atender, satisfazer e felicitá-los; e aqueles dois ou três<br />
milhares de pessoas, homens, crianças, mulheres, moços e velhos, como se fossem uma só pessoa, correram à casa do<br />
farmacêutico.<br />
A custo, o subdelegado pôde impedir que varejassem a botica e conseguir que ficassem na praça, à espera do homem que tinha<br />
o segredo de todo um Potosi. Ele não tardou a aparecer. Trepado a uma cadeira, tendo na mão uma pequena barra de ouro que<br />
reluzia ao forte sol da <strong>manhã</strong>, Bastos pediu graça, prometendo que ensinaria o segredo, se lhe poupassem a vida. "Queremos já<br />
sabê-lo," gritaram. Ele então explicou que era preciso redigir a receita, indicar a marcha do processo, os reativos—trabalho<br />
longo que só poderia ser entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio, alguns chegaram a gritar, mas o subdelegado<br />
falou e responsabilizou-se pelo resultado.<br />
Docilmente, com aquela doçura particular às multidões furiosas, cada qual se encaminhou para casa, tendo na cabeça um único<br />
pensamento: arranjar imediatamente a maior porção de ossos de defunto que pudesse.<br />
O sucesso chegou à casa do engenheiro residente da estrada de ferro. Ao jantar, não se falou em outra cousa. O doutor<br />
concatenou o que ainda sabia do seu curso, e afirmou que era impossível. Isto era alquimia, cousa morta: ouro é ouro, corpo<br />
simples, e osso é osso, um composto, fosfato de cal. Pensar que se podia fazer de uma cousa outra era "besteira". Cora<br />
aproveitou o caso para rir-se petropolimente da crueldade daqueles botocudos; mas sua mãe, Dona Emilia, tinha fé que a cousa<br />
era possível.<br />
À noite, porém, o doutor percebendo que a mulher dormia, saltou a janela e correu em direitura ao cemitério; Cora, de pés nus,<br />
com as chinelas nas mãos, procurou a criada para irem juntas à colheita de ossos. Não a encontrou, foi sozinha; e Dona Emília,<br />
vendo-se só, adivinhou o passeio e lá foi também. E assim aconteceu na cidade inteira. O pai, sem dizer nada ao filho, saía; a<br />
mulher, julgando enganar o marido, saía; os filhos, as filhas, os criados—toda a população, sob a luz das estrelas assombradas,<br />
correu ao satânico rendez-vous no "Sossego". E ninguém faltou. O mais rico e o mais pobre lá estavam. Era o turco Miguel, era o<br />
professor Pelino, o doutor Jerônimo, o Major Camanho, Cora, a linda e deslumbrante Cora, com os seus lindos dedos de<br />
alabastro, revolvia a sânie das sepulturas, arrancava as carnes, ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o<br />
seu regaço até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas, que se abriam em asas rosadas e quase transparentes, não<br />
sentiam o fétido dos tecidos apodrecidos em lama fedorenta...<br />
A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas,<br />
tiros, cachações. Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e mesmo entre as famílias questões surgiram. Unicamente, o<br />
carteiro e o filho não brigaram. Andaram juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança de onze<br />
anos, até aconselhou ao pai: "Papai vamos aonde está mamãe; ela era tão gorda..."<br />
De <strong>manhã</strong>, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera em trinta anos de existência. Uma única pessoa lá não<br />
estivera, não matara nem profanara sepulturas: fora o bêbedo Belmiro.<br />
Entrando numa venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém, enchera uma garrafa de parati e se deixara ficar a beber<br />
sentado na margem do Tubiacanga, vendo escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito de granito - ambos, ele e o<br />
rio, indiferentes ao que já viram, mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu Potosi e o seu segredo, sob o dossel eterno das<br />
estrelas. (10-11-1910)<br />
- Xi, Gaetaninho, como é bom!<br />
8<br />
GAETANINHO <strong>–</strong> Antônio de Alcântara Machado<br />
Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o Ford.<br />
O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.<br />
- Eh! Gaetaninho! Vem prá dentro.<br />
Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.<br />
- Subito!<br />
Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou<br />
o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta<br />
adentro.<br />
Êta salame de mestre!<br />
Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de<br />
casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.<br />
O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da tia Peronetta que se<br />
mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem.
Mas se era o único meio? Paciência.<br />
Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.<br />
Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a tia Filomena para o cemitério. Depois o padre.<br />
Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o<br />
gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova<br />
que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza rapaz! Dentro do carro o pai os dois irmãos<br />
mais velhos (um de gravata vermelha outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas<br />
e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Caetaninho.<br />
Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem<br />
por um instantinho só.<br />
Gaetaninho ia berrar mas a tia Filomena com a mania de cantar o "Ahi, Mari!" todas as <strong>manhã</strong>s o acordou.<br />
Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.<br />
Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para<br />
sossego da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho.<br />
Matutou, matutou, e escolheu o acendedor da Companhia de Gás, Seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído.<br />
Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles<br />
ficaram loucos de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.<br />
O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava ligando.<br />
- Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?<br />
- Meu pai deu uma vez na cara dele.<br />
- Então você não vai a<strong>manhã</strong> no enterro. Eu vou!<br />
O Vicente protestou indignado:<br />
- Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!<br />
Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.<br />
O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços<br />
estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.<br />
- Passa pro Beppino!<br />
Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.<br />
- Vá dar tiro no inferno!<br />
- Cala a boca, palestrino!<br />
- Traga a bola!<br />
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.<br />
No bonde vinha o pai do Gaetaninho.<br />
A gurizada assustada espalhou a noticia na noite.<br />
- Sabe o Gaetaninho?<br />
- Que é que tem?<br />
- Amassou o bonde!<br />
A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.<br />
9
Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho não ia na boléia de nenhum dos carros do<br />
acompanhamento. Ia no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as<br />
ligas, mas não levava a palhetinha.<br />
Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.<br />
- Filha minha não casa com filho de carcamano!<br />
10<br />
A SOCIEDADE <strong>–</strong> Antônio de Alcântara Machado<br />
A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas. Teresa Rita misturou<br />
lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O Conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito,<br />
suspirou e saiu de casa abotoando o fraque.<br />
O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita do escritório para o terraço.<br />
O Lancia passou como quem não quer. Quase parando. A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia - uiiiia!<br />
Adriano MeIli calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos<br />
metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-C já sabe: uiiiiiauiiiiia!<br />
- O que você está fazendo aí no terraço, menina.<br />
- Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais?<br />
Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido do Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no<br />
terraço.<br />
- Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar!<br />
- Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus!<br />
Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a Avenida Paulista.<br />
Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçorra para gritar:<br />
Dizem que Cristo nasceu em Belém...<br />
Porque os pais não a haviam acompanhado (abençoado furúnculo inflamou o pescoço do Conselheiro José Bonifácio) ela estava<br />
achando um suco aquela vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais.<br />
Os pares dançarmos maxixavam colados. No meio do salão eram um bolo tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs,<br />
moças feias e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe.<br />
O banjo é que ritmava os passos.<br />
- Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade.<br />
- Não!<br />
- Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu.<br />
... mas a história se enganou!<br />
As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da Faculdade<br />
de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum!<br />
- Meu pai quer fazer um negocio com o seu.<br />
- Ah sim?<br />
Cristo nasceu na Bahia, meu bem...
O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bon mas a destra espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e<br />
sons.<br />
... e o baiano criou!<br />
- Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de Teresa para o filho, você aponte o olho da rua para ele,<br />
compreendeu?<br />
- Já sei, mulher, já sei.<br />
Mas era cousa muito diversa.<br />
O Cav. Uff. Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a bigodeira. Falou como homem de negócios que enxerga longe.<br />
Demonstrou cabalmente as vantagens econômicas de sua proposta.<br />
- O doutor...<br />
- Eu não sou doutor, Senhor Melli.<br />
- Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense bem. E poi me dê a sua resposta. Domani, dopo domani,<br />
na outra semana, quando quiser. lo resto à sua disposição. Ma pense bem!<br />
Renovou a proposta e repetiu os argumentos pró. O conselheiro possuía uns terrenos em São Caetano. Cousas de herança. Não<br />
lhe davam renda alguma. O Cav. Uff. tinha a sua fábrica ao lado. 1.200 teares. 36.000 fusos. Constituíam uma sociedade. O<br />
conselheiro entrava com os terrenos. O Cav. Uff. com o capital. Armavam os trinta alqueires e vendiam logo grande parte para<br />
os operários da fábrica. Lucro certo, mais que certo, garantidíssimo.<br />
- É. Eu já pensei nisso. Mas sem capital e senhor compreende é impossível...<br />
- Per Bacco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io. O doutor entra com o terreno, mais nada. E o lucro se divide no<br />
meio.<br />
O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando a emoção. A negra de broche serviu o café.<br />
- Dopo o doutor me dá a resposta. lo só digo isto: pense bem.<br />
O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou para um quadro.<br />
- Bonita pintura.<br />
Pensou que fosse obra de italiano. Mas era de francês.<br />
- Francese? Não é feio non. Serve.<br />
Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo.<br />
Decidiu-se.<br />
- Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... Sob a minha direção, si capisce.<br />
- Sei, sei... O seu filho?<br />
- Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele?<br />
O silêncio do Conselheiro desviou os olhos do Cav. Uff. na direção da porta.<br />
- Repito un'altra vez: O doutor pense bem.<br />
O Isotta Fraschini esperava-o todo iluminado.<br />
- E então? O que devo responder ao homem?<br />
- Faça como entender, Bonifácio...<br />
- Eu acho que devo aceitar.<br />
- Pois aceite.<br />
E puxou o lençol.<br />
A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois.<br />
11<br />
O Conselheiro José Bonifácio ----------O Cav. Uff. Salvatore Melli<br />
de Matos e Arruda ------------------------------------e-------<br />
--------e ----------------------------------------senhora<br />
senhora ------------------------------------------
12<br />
têm a honra de participar -------------- têm a honra de participar<br />
a V. Ex.a e Ex.ma família o ------------a V. Ex.a e Ex.ma família o<br />
contrato de casamento de sua ----contrato de casamento de seu<br />
filha Teresa Rita com o Sr.------- filho Adriano com a Senhorinha<br />
---------Adriano Melli.---------------Teresa Rita de Matos Arruda.<br />
Rua da Liberdade, n. 0 259-C. ------Rua da Barra Funda, n. 0 427.<br />
S. Paulo 19 de fevereiro de 1927.<br />
No chá do noivado o Cav. Uff. Adriano Melli na frente de toda a gente recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em<br />
que lhe vendia cebolas e batatas, Olio di Lucca e bacalhau português, quase sempre fiado e até sem caderneta.<br />
Negrinha - Monteiro Lobato<br />
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.<br />
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e<br />
trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.<br />
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo<br />
reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o<br />
vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio<br />
da religião e da moral”, dizia o reverendo.<br />
Ótima, a dona Inácia.<br />
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de<br />
sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo<br />
nervosa:<br />
— Quem é a peste que está chorando aí?<br />
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com<br />
ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.<br />
— Cale a boca, diabo!<br />
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos<br />
doer...<br />
Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato<br />
sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o<br />
mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de<br />
que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.<br />
— Sentadinha aí, e bico, hein?<br />
Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.<br />
— Braços cruzados, já, diabo!<br />
Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco<br />
horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha,<br />
arrufando as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante.<br />
Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.<br />
Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa,<br />
pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de<br />
apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e<br />
Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava<br />
escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste...<br />
O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse<br />
motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em<br />
cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e<br />
ver a careta...<br />
A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas<br />
ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a<br />
branco e qualquer coisinha: a polícia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor;<br />
uma novena de relho porque disse: “Como é ruim, a sinhá!”...<br />
O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como re<strong>médio</strong><br />
para os frenesis. Inocente derivativo:<br />
— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...<br />
Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que<br />
cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas<br />
mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão
de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível,<br />
cortante: para “doer fino” nada melhor!<br />
Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as<br />
saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.<br />
Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho de carne que ela vinha<br />
guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta — atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias.<br />
— “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa.<br />
Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.<br />
— Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias.<br />
— Traga um ovo.<br />
Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns<br />
minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma<br />
coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou:<br />
— Venha cá!<br />
Negrinha aproximou-se.<br />
— Abra a boca!<br />
Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na<br />
boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou<br />
surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:<br />
— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?<br />
E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que chegava.<br />
— Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária — mas que trabalheira me<br />
dá!<br />
— A caridade é a mais bela das virtudes cristas, minha senhora —murmurou o padre.<br />
— Sim, mas cansa...<br />
— Quem dá aos pobres empresta a Deus.<br />
A boa senhora suspirou resignadamente.<br />
— Inda é o que vale...<br />
Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas<br />
e criadas em ninho de plumas.<br />
Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a<br />
vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os<br />
anjos invasores o raio dum castigo tremendo.<br />
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado — e findo o seu inferno — e<br />
aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.<br />
Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os<br />
dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga”?<br />
Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral —sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos<br />
— a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.<br />
— Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.<br />
— Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de<br />
Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora.<br />
— Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só<br />
brincara em imaginação com o cuco.<br />
Chegaram as malas e logo:<br />
— Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.<br />
Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.<br />
Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E<br />
mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava “mamã”... que dormia...<br />
Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que<br />
era uma criança artificial.<br />
— É feita?... — perguntou, extasiada.<br />
E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha<br />
esqueceu o beliscão,o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem<br />
ânimo de pegá-la.<br />
As meninas admiraram-se daquilo.<br />
— Nunca viu boneca?<br />
— Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?<br />
Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.<br />
— Como é boba! — disseram. — E você como se chama?<br />
— Negrinha.<br />
13
As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava, disseram, apresentando-lhe a<br />
boneca:<br />
— Pegue!<br />
Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a<br />
boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de<br />
olhos para a porta. Fora de si, literalmente... era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe<br />
tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou,<br />
feroz, e esteve uns instantes assim, apreciando a cena.<br />
Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que<br />
o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se.<br />
Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de<br />
castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos.<br />
Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo — estas palavras, as primeiras que ela ouviu,<br />
doces, na vida:<br />
— Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?<br />
Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais a fera antiga. Compreendeu vagamente<br />
e sorriu.<br />
Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha...<br />
Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo<br />
enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca — preparatório —, e o momento dos<br />
filhos — definitivo. Depois disso, está extinta a mulher.<br />
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo<br />
que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de<br />
ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!<br />
Assim foi — e essa consciência a matou.<br />
Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao ramerrão habitual. Só não voltou a si<br />
Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.<br />
Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida.<br />
Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os<br />
agora nostálgicos, cismarentos.<br />
Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno, envenenara-a.<br />
Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar<br />
os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma.<br />
Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior<br />
beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno,<br />
numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.<br />
Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas,<br />
longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.<br />
Mas, imóvel, sem rufar as asas.<br />
Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...<br />
E tudo se esvaiu em trevas.<br />
Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira — uma miséria, trinta quilos mal pesados...<br />
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas.<br />
— “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”<br />
Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.<br />
— “Como era boa para um cocre!...”<br />
14<br />
Antes do baile verde <strong>–</strong> Lygia Fagundes Telles<br />
Há um desfile do Rancho Azul e Branco com seus passistas. O negro do bumbo vê duas mulheres debruçadas na janela e faz uma<br />
referência para elas. Lu, a empregada, diz que seu homem é mais bonito e que ficou de pegá-la “às dez na esquina”. Ela não<br />
quer se atrasar para que ele não fique brabo e daí “não sai mais nada”.<br />
Então, Tatisa pegou a empregada pelo braço e arrastou-a até a mesa de cabeceira. O quarto estava escolhumbado. Tatisa tinha<br />
que vestir um saiote verde e ainda faltava pregar muita coisa na roupa. Lu aproximou-se, temendo pelo atraso. Raimundo já<br />
deveria estar chegando. “<strong>–</strong> Mas não posso perder o desfile, viu, Tatisa? Tudo, menos perder o desfile!”<br />
Lu vê que não vai dar para pregar todas as lantejoulas verdes no saiote, mas mesmo assim prossegue no trabalho. Tatisa está de<br />
biquíni, meias, unhas e cabelos verdes: iam a um baile verde, com direito até a nota pela aparência. E ainda faltava mais da<br />
metade.<br />
Enquanto Tatisa preocupa-se com o calor e o com o vestido, Lu franziu a testa e disse em tom baixo de voz “ele está morrendo”.<br />
Um carro passa buzinando, crianças gritavam e Tatisa continua preocupada consigo. Não deu importância ao que Lu falou.<br />
De repente, Tatisa pergunta, num tom sombrio: “<strong>–</strong> Você acha, Lu? <strong>–</strong> Acha o quê? <strong>–</strong> Que ele está morrendo? <strong>–</strong> Ah, está sim.
Conheço bem isso, já vi um monte de gente morrer, agora já sei como é. Ele não passa desta noite. <strong>–</strong> Mas você já se enganou<br />
uma vez, lembra? Disse que ele ia morrer, que estava nas últimas... E no dia seguinte ele já pedia leite, radiante. <strong>–</strong> Radiante? <strong>–</strong><br />
espantou-se a empregada. Fechou num muxoxo os lábios pintados de vermelho-violeta. <strong>–</strong> E depois, eu não disse não senhora<br />
que ele ia morrer, eu disse que ele estava ruim, foi o que eu disse. Mas hoje é diferente, Tatisa. Espiei da porta, nem precisei<br />
entrar para ver que ele está morrendo. <strong>–</strong> Mas quando fui lá ele estava dormindo tal calmo, Lu. <strong>–</strong> Aquilo não é sono. É outra<br />
coisa”<br />
Tatisa então se levanta e toma um copo de uísque, preocupada se sua pintura não estava derretendo. “Nunca transpirei tanto,<br />
sinto o sangue ferver. <strong>–</strong> Você está bebendo demais”. Já Lu fica preocupada novamente com o atraso, com o pensamento no<br />
Raimundo lá na esquina. “<strong>–</strong> Você é chata, não, Lu? Mil vezes fica repetindo a mesma coisa, taque-taque-taque-taque! Esse cara<br />
não pode esperar um pouco?”<br />
Lu lembra que no carnaval passado se divertiu muito; já Tatisa diz que estava na cama, com muita gripe, e que neste queria se<br />
esbaldar. “<strong>–</strong> E seu pai?” Volta a tomar um gole de uísque: “<strong>–</strong> Você quer que eu fique aqui chorando, não é isso que você quer?<br />
Quer que eu cubra a cabeça com cinza e fique de joelhos rezando, não é isso que você está querendo?” “<strong>–</strong> Que é que eu posso<br />
fazer? Não sou Deus, sou? Então? Se ele está pior, que culpa tenho eu?” “<strong>–</strong> Não estou dizendo que você é culpada, Tatisa. Não<br />
tenho nada com isso, ele é seu pai, não meu. Faça o que bem entender."<br />
Lu volta a falar no carnaval passado, mas Tatisa diz que ela já se enganou uma vez. “<strong>–</strong> Ele não pode estar morrendo, não pode.<br />
Também estive lá antes de você, ele estava dormindo tão sossegado. E hoje cedo até me reconheceu, ficou me olhando, me<br />
olhando e depois sorriu. Você está bem, papai?, perguntei e ele não respondeu, mas vi que entendeu perfeitamente o que eu<br />
disse. <strong>–</strong> Ele se fez de forte, coitado. <strong>–</strong> De forte, como? <strong>–</strong> Sabe que você tem o seu baile, não quer atrapalhar”.<br />
Tatisa se irrita; porém, arrepende-se: “<strong>–</strong> Escuta, Luzinha, escuta <strong>–</strong> tenho certeza de que ainda hoje cedo ele me reconheceu.<br />
uma lágrima foi escorrendo daquele lado paralisado. Nunca vi ele chorar daquele lado, nunca. Chorou só daquele lado, uma<br />
lágrima tão escura... <strong>–</strong> Ele estava se despedindo”.<br />
Tatisa culpa o médico por ter deixado o pai no quarto, sem ela saber tratar de doente. E se indigna com Lu: “<strong>–</strong> Se você fosse<br />
boazinha, você me ajudava, mas você não passa de uma egoísta, uma chata que não quer saber de nada. Sua egoísta! <strong>–</strong> Mas,<br />
Tatisa, ele não é meu pai, não tenho nada com isso”.<br />
A jovem abre a porta do armário e se vê no espelho e pede para que Lu não demore, pois à meia-noite virão buscá-la. Então Lu<br />
pergunta por que não deixou o pai no hospital, e Tatisa diz que não podem ficar com um doente “que não resolve”. "Ele viveu<br />
sessenta e dois anos. Não podia viver mais um dia?”. Tatisa faz uma proposta a Lu: para que ela fique cuidando de seu pai;<br />
ganhará, com isso, um vestido e calçados. Porém, a empregada rejeita. Oferece mais um casaco, mas é em vão.<br />
Tatisa bebe mais alguns goles de uísque. Diz que Lu estava enganada, e que o pai estava dormindo, e não morrendo. Então,<br />
pegam as bolsas e ficam juntas na escada. Tatisa quer espiar o pai, mas Lu desce as escadas. De repente, Tatisa pede para<br />
esperar e também desce rapidamente. “Quando bateu a porta atrás de si, rolaram pela escada algumas lantejoulas verdes na<br />
mesma direção, como se quisessem alcançá-la”.<br />
15<br />
Venha ver o pôr-do-sol <strong>–</strong> Lygia Fagundes Telles<br />
ELA SUBIU sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem<br />
simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas<br />
crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.<br />
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e<br />
desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante.<br />
- Minha querida Raquel.<br />
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.<br />
- Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do<br />
taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima<br />
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.<br />
- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância...Quando você andava comigo,<br />
usava uns sapatões de sete-léguas, lembra?<br />
- Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. -<br />
Hem?!<br />
- Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço rindo.<br />
- Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado...Juro que eu tinha que ver uma vez toda<br />
essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal?<br />
- Podia ter escolhido um outro lugar, não? <strong>–</strong> Abrandara a voz <strong>–</strong> E que é isso aí? Um cemitério?<br />
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.<br />
- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas<br />
brincam sem medo <strong>–</strong> acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a<br />
fumaça na cara do companheiro. Sorriu. - Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o programa?<br />
Brandamente ele a tomou pela cintura.<br />
- Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do<br />
mundo.
Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.<br />
- Ver o pôr do sol!...Ah, meu Deus...Fabuloso, fabuloso!...Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz<br />
vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério...<br />
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.<br />
- Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais<br />
pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo<br />
buraco da fechadura...<br />
- E você acha que eu iria?<br />
- Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua<br />
afastada...- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras<br />
rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa<br />
expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar<br />
vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento <strong>–</strong>Você fez bem em vir.<br />
- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?<br />
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.<br />
- Mas eu pago.<br />
- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio<br />
mais decente, não concorda comigo? Até romântico.<br />
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.<br />
- Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim,<br />
quero ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.<br />
- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que<br />
um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado <strong>–</strong> prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. <strong>–</strong><br />
Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.<br />
- É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.<br />
- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado<br />
aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo...<br />
O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrandose<br />
ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta<br />
força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de<br />
sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os<br />
pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma<br />
ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.<br />
- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente <strong>–</strong> exclamou ela atirando a ponta do<br />
cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.<br />
- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da<br />
<strong>manhã</strong> nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa<br />
bandeja e você se queixa.<br />
- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.<br />
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.<br />
- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.<br />
- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.<br />
- Ele é tão rico assim?<br />
- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu<br />
caro...<br />
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A<br />
fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.<br />
- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?<br />
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.<br />
- Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã...Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele!<br />
Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como agüentei tanto, imagine um ano.<br />
- É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo<br />
agora. Hem?<br />
- Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: - A minha querida<br />
esposa, eternas saudades - leu em voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade.<br />
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.<br />
Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida<br />
intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o<br />
musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas...Esta a morte perfeita, nem<br />
lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.<br />
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.<br />
16
- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como<br />
você podia me fazer divertir assim <strong>–</strong> Deu-lhe um rápido beijo na face. - Chega Ricardo, quero ir embora.<br />
- Mais alguns passos...<br />
- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! <strong>–</strong> Olhou para atrás. <strong>–</strong> Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar<br />
exausta.<br />
- A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio <strong>–</strong> lamentou ele, impelindo-a para frente. <strong>–</strong> Dobrando esta alameda, fica o jazigo da<br />
minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. <strong>–</strong> E, tomando-a pela cintura: - Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos<br />
dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa<br />
capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo<br />
tantos planos. Agora as duas estão mortas.<br />
- Sua prima também?<br />
- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos...Eram assim verdes<br />
como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas...Penso agora que toda a beleza<br />
dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.<br />
- Vocês se amaram?<br />
- Ela me amou. Foi a única criatura que...- Fez um gesto. <strong>–</strong> Enfim não tem importância.<br />
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o<br />
- Eu gostei de você, Ricardo.<br />
- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?<br />
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.<br />
- Esfriou, não? Vamos embora.<br />
- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.<br />
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de<br />
cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas,<br />
cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira<br />
a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha<br />
tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do<br />
Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em<br />
caracol para a catacumba.<br />
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.<br />
- Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?<br />
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.<br />
- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?<br />
- Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro<br />
mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.<br />
Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se<br />
estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.<br />
- E lá embaixo?<br />
- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada.<br />
Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. <strong>–</strong> A cômoda de<br />
pedra. Não é grandiosa?<br />
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.<br />
- Todas estas gavetas estão cheias?<br />
- Cheias?...- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe-<br />
prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.<br />
Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.<br />
- Vamos, Ricardo, vamos.<br />
- Você está com medo?<br />
- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!<br />
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão<br />
frouxamente iluminado:<br />
- A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer... Prendeu<br />
os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?...- Falava agora consigo mesmo, doce e<br />
gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos...Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.<br />
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.<br />
- Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando...<br />
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.<br />
- Pegue, dá para ver muito bem...- Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.<br />
- Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça...- Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra.<br />
Leu em voz alta, lentamente.- Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida...- Deixou cair o palito e ficou<br />
um instante imóvel <strong>–</strong> Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...<br />
17
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No<br />
topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.<br />
- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! <strong>–</strong> exclamou ela, subindo rapidamente a escada.<br />
<strong>–</strong> Não tem graça nenhuma, ouviu?<br />
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da<br />
fechadura e saltou para trás.<br />
- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! <strong>–</strong> ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira,<br />
você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!<br />
- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem<br />
devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo.<br />
Ela sacudia a portinhola.<br />
- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a<br />
ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. - Ouça, meu bem, foi<br />
engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...<br />
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.<br />
- Boa noite, Raquel.<br />
- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.- Cretino! Me<br />
dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por<br />
uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo.<br />
Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.<br />
- Não, não...<br />
Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.<br />
- Boa noite, meu anjo.<br />
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão<br />
embrutecida.<br />
- Não...<br />
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando<br />
úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:<br />
- NÃO!<br />
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado.<br />
Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão<br />
do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado.<br />
Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.<br />
18<br />
LIXO - Luís Fernando Veríssimo<br />
Encontram-se na área de serviço. Cada um com o seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.<br />
- Bom dia.<br />
- Bom dia.<br />
- A senhora é do 610.<br />
- E o senhor do 612.<br />
- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...<br />
- Pois é ... - Desculpe a minha indiscrição, mastenho visto o seu lixo ...<br />
- O meu quê?<br />
- O seu lixo.<br />
- Ah...<br />
- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena.<br />
- Na verdade sou só eu.<br />
- Humm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.
- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar .<br />
- Entendo.<br />
- A senhora também .<br />
- Me chama de você.<br />
- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim.<br />
- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas como moro sozinha, às vezes sobra.<br />
- A senhora... Você não tem família?<br />
- Tenho, mas não aqui.<br />
- No Espírito Santo.<br />
- Como é que você sabe?<br />
- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.<br />
- É. Mamãe escreve todas as semanas.<br />
- Ela é professora?<br />
- Isso é incrível! Como você adivinhou?<br />
- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.<br />
- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.<br />
- Pois é ...<br />
- No outro dia, tinha um envelope de telegrama amassado.<br />
- É.<br />
- Más notícias?<br />
- Meu pai. Morreu.<br />
- Sinto muito.<br />
- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.<br />
- Foi por isso que você recomeçou a fumar?<br />
- Como é que você sabe?<br />
- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.<br />
- É verdade. Mas consegui parar outra vez.<br />
- Eu, graças a Deus, nunca fumei.<br />
- Eu sei, mas tenho visto uns vidrinhos de comprimidos no seu lixo...<br />
- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.<br />
19
- Você brigou com o namorado, certo?<br />
- Isso você também descobriu no lixo?<br />
- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.<br />
- É, chorei bastante, mas já passou.<br />
- Mas hoje ainda tem uns lencinhos.<br />
- É que estou com um pouco de coriza.<br />
- Ah.<br />
- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.<br />
- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.<br />
- Namorada?<br />
- Não.<br />
- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.<br />
- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.<br />
- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.<br />
- Você está analisando o meu lixo!<br />
- Não posso negar que o seu lixo me interessou.<br />
- Engraçado. Quando examinei o seu lixo,decidi que gostaria de conhecê-la . Acho que foi a poesia.<br />
- Não! Você viu meus poemas?<br />
- Vi e gostei muito.<br />
- Mas são muito ruins!<br />
- Se você achasse eles ruins mesmos, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.<br />
- Se eu soubesse que você ia ler ...<br />
- Só não fiquei com ele porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?<br />
- Acho que não. Lixo é domínio público.<br />
- Você tem razão. Através dos lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos<br />
outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?<br />
- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...<br />
- Ontem, no seu lixo.<br />
- O quê?<br />
- Me enganei, ou eram cascas de camarão?<br />
- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.<br />
20
- Eu adoro camarão.<br />
- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode... Jantar juntos?<br />
- É. Não quero dar trabalho.<br />
- Trabalho nenhum.<br />
- Vai sujar a sua cozinha.<br />
- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.<br />
- No seu lixo ou no meu...<br />
21<br />
Dois velhinhos- Dalton Trevisan<br />
Dois pobres inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo.<br />
Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um podia olhar lá fora.<br />
Junto à porta, no fundo da cama, o outro espiava a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz. Com inveja,<br />
perguntava o que acontecia. Deslumbrado, anunciava o primeiro:<br />
— Um cachorro ergue a perninha no poste.<br />
Mais tarde:<br />
— Uma menina de vestido branco pulando corda.<br />
Ou ainda:<br />
— Agora é um enterro de luxo.<br />
Sem nada ver, o amigo remordia-se no seu canto. O mais velho acabou morrendo, para alegria do segundo, instalado afinal<br />
debaixo da janela.<br />
Não dormiu, antegozando a <strong>manhã</strong>. Bem desconfiava que o outro não revelava tudo.<br />
Cochilou um instante — era dia. Sentou-se na cama, com dores espichou o pescoço: entre os muros em ruína, ali no beco, um<br />
monte de lixo.