Revista Acad.3 - Academia Sul-Mato-Grossense de Letras
Revista Acad.3 - Academia Sul-Mato-Grossense de Letras
Revista Acad.3 - Academia Sul-Mato-Grossense de Letras
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
engrenagem <strong>de</strong>stinada a satisfazer caprichos. Inconscientemente você fez <strong>de</strong><br />
mim a mãe <strong>de</strong> que ele precisava, com quem se sentia bem, porque eu tinha<br />
paciência e sabia ouvi-lo, quando vinha <strong>de</strong>sabafar a ira contida <strong>de</strong><br />
ter nascido <strong>de</strong> um casal sem amor, <strong>de</strong> uma mãe que não sabia compreen<strong>de</strong>r-lhe<br />
as angústias. Sim, fui eu que lhe <strong>de</strong>i a moto, quando foi aprovado<br />
num dos primeiros lugares no vestibular da universida<strong>de</strong> fe<strong>de</strong>ral. Mas o<br />
aci<strong>de</strong>nte aconteceu, <strong>de</strong>pois que você o humilhou diante dos amigos e ele<br />
saiu como louco, cego, na contra-mão da vida até ser esmagado por um<br />
caminhão.<br />
A adoção <strong>de</strong> Maria Nilce foi para aplacar o remorso <strong>de</strong> não ter<br />
<strong>de</strong>ixado seu marido fazer o parto da mãe <strong>de</strong>la, que viera do interior confiante<br />
na <strong>de</strong>dicação do irmão, para estar a seu lado na hora da cesariana.<br />
Quando sua cunhada morreu, você transformou-se em mãe lacrimosa,<br />
pedindo ao pai <strong>de</strong>sorientado para adotar a criança, que a seu lado cresceria<br />
em meio ao maior conforto teria educação superior e a <strong>de</strong>dicação que<br />
nenhuma outra mulher conseguiria dar. Só que foram palavras vãs. Você<br />
nunca colocou Maria Nilce no colo, Quando pequenina, nunca lhe fez<br />
um afago. Na adolescência da menina, você nunca <strong>de</strong>sistiu <strong>de</strong> uma reunião<br />
com as amigas, das aulas <strong>de</strong> canto, das idas ao cinema, para se interessar<br />
por seus problemas. Que estímulo teve essa menina para estudar, trabalhar,<br />
entregue ao <strong>de</strong>scaso <strong>de</strong> um falso lar, marcado pelo <strong>de</strong>samor, em que<br />
a mãe só <strong>de</strong>scobria em seu comportamento motivos para censurá-la? As<br />
pequenas inquietações ela <strong>de</strong>sabafava comigo, a dor <strong>de</strong> conhecer a verda<strong>de</strong><br />
da adoção ela extravasou numa carta para mim em que justificava o<br />
<strong>de</strong>sgosto <strong>de</strong> pertencer a um lar que nunca reconheceu como verda<strong>de</strong>iramente<br />
seu. Depois que ela nos <strong>de</strong>ixou, viramos sombras <strong>de</strong> uma mansão<br />
<strong>de</strong> luxo, cujas pare<strong>de</strong>s transpiravam mágoas recolhidas.<br />
Na realida<strong>de</strong> não a culpo por ter-me colocado nesta clínica. Aqui<br />
me sinto bem melhor do que a seu lado.É uma gaiola dourada, todos dizem.<br />
Mas para que uma mulher <strong>de</strong> oitenta anos precisa <strong>de</strong> confortos e <strong>de</strong><br />
liberda<strong>de</strong>? Aqui tenho a amiza<strong>de</strong> <strong>de</strong> outras idosas como eu, que nada<br />
exigem <strong>de</strong> mim, não me censuram, esperam tranqüilas, como eu, como<br />
eu a chegada do trem da viagem sem retorno.<br />
Não lhe guardo rancor. Peço a Deus para iluminar sua mente,<br />
para que se reconheça, enfrente a realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>scubra na verda<strong>de</strong> o caminho<br />
da paz.<br />
n. 3 – março <strong>de</strong> 2004<br />
67