17.04.2013 Views

Sentimento do mundo - COC Educação

Sentimento do mundo - COC Educação

Sentimento do mundo - COC Educação

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Análise de obrAs literáriAs<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

CArlos druMMond<br />

de AndrAde<br />

Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700<br />

CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP<br />

www.sistemacoc.com.br


Aol-11<br />

suMário<br />

1. Contexto soCiAl e HistóriCo .................................................... 7<br />

2. estilo literário dA époCA ........................................................... 9<br />

3. o Autor ................................................................................................. 12<br />

4. A obrA .................................................................................................... 15<br />

5. exerCíCios ........................................................................................... 39


<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

CArlos druMMond<br />

de AndrAde


Aol-11 1. Contexto SoCIAL e HIStórICo<br />

7<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

na história <strong>do</strong> brasil, o perío<strong>do</strong> compreendi<strong>do</strong> entre os anos de 1894 e<br />

1930, aproximadamente, é chama<strong>do</strong> de república Velha, “a política <strong>do</strong> café com<br />

leite”, porque ocupava a presidência da república ora um governo mineiro,<br />

ora um paulista, o que revela a importância dada à lavoura cafeeira somada à<br />

pecuária. A manutenção desse regime dependia, sobretu<strong>do</strong>, <strong>do</strong> equilíbrio entre<br />

a produção e a exportação de café. A elite agropecuária brasileira delegava ao<br />

esta<strong>do</strong> o papel de compra<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s excedentes para garantir o preço em face das<br />

oscilações <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>. exemplo típico dessa política foi o chama<strong>do</strong> acor<strong>do</strong> de<br />

taubaté, em 1906, segun<strong>do</strong> o qual são paulo, rio de Janeiro e Minas Gerais se<br />

comprometiam a retirar <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> os excedentes da produção cafeeira para<br />

garantir o nível <strong>do</strong>s preços.<br />

A sociedade brasileira, no início <strong>do</strong> século xx, sofreu transformações graças<br />

ao processo de urbanização e à vinda <strong>do</strong>s imigrantes europeus para a região<br />

Centro-sul <strong>do</strong> país. entretanto, ao mesmo tempo em que principiou o processo de<br />

industrialização na região Sudeste, a mão de obra desqualificada <strong>do</strong>s ex-escravos<br />

foi marginalizada, deslocan<strong>do</strong>-se para a periferia e para os morros; a cultura<br />

canavieira <strong>do</strong> nordeste entrou em declínio, pois ela não tinha como competir<br />

com o apoio da<strong>do</strong> pelo governo federal à “política <strong>do</strong> café com leite”.<br />

No final <strong>do</strong> século XIX e início <strong>do</strong> século XX, duas realidades coexistiam<br />

no brasil: de um la<strong>do</strong>, a urbanização da região Centro-sul, com sua consequente<br />

industrialização e, de outro, o atraso das regiões norte e nordeste. e um terceiro<br />

fator, ainda mais grave, somava-se a esse quadro: as oligarquias rurais, com<br />

seus arranjos políticos, não representavam os novos estratos socioeconômicos.<br />

o resulta<strong>do</strong> disso foi o surgimento de um quadro caótico, que teria seu término<br />

com a chamada revolução de 1930 e o esta<strong>do</strong> novo, de Getúlio Vargas.


Carlos drummond de Andrade<br />

na bahia, ocorreu a chamada Guerra de Canu<strong>do</strong>s; em Juazeiro, no Ceará,<br />

o fenômeno <strong>do</strong> jagunço e a política <strong>do</strong> padre Cícero; os movimentos operários,<br />

em são paulo; a criação <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> Comunista; o tenentismo, que teve seu ápice<br />

na Coluna prestes, combatida por Arthur bernardes e Washington luís. é claro<br />

que esses conflitos ocorreram em tempos e locais diversos, entre 1894 e 1930,<br />

parecen<strong>do</strong> exprimir, às vezes, problemas bem localiza<strong>do</strong>s. entretanto, no conjunto,<br />

revelaram a realidade de um país que se desenvolvia à custa de graves<br />

desequilíbrios. A queda da bolsa de nova York em 1929 e o movimento tenentista<br />

colocaram fim à República Velha, com a vitória na chamada Revolução de 1930,<br />

dan<strong>do</strong> início ao chama<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> novo ou era Vargas.<br />

Os intelectuais brasileiros da década de 1920 não ficaram alheios a todas<br />

essas transformações. em são paulo e no rio de Janeiro, sobretu<strong>do</strong>, artistas e intelectuais,<br />

em contato com as novas tendências <strong>do</strong> pensamento europeu, como o<br />

futurismo, o surrealismo, o dadaísmo, o expressionismo e o cubismo, preparam<br />

um evento, a chamada semana de Arte Moderna, com o intuito de romper com a<br />

mentalidade conserva<strong>do</strong>ra, representada, na literatura, pelos poetas parnasianos<br />

e, na política, pelas oligarquias rurais.<br />

de um mo<strong>do</strong> geral, a maneira encontrada pelos artistas da década de 1920<br />

para combater o formalismo parnasiano e a mentalidade acadêmica foi a valorização<br />

<strong>do</strong> irracionalismo. Mário de Andrade, com a sua poética <strong>do</strong> “desvairismo”,<br />

publicada no “prefácio interessantíssimo” de Pauliceia desvairada, e Manuel bandeira,<br />

com sua teoria <strong>do</strong> “alumbramento”, a poesia como uma revelação, isto é,<br />

como epifania, e toda a obra de oswald de Andrade são três bons exemplos da<br />

atitude artística e intelectual que procurou subverter a ordem existente.<br />

Manuel bandeira publica em 1930 seu quarto livro de poesia, cujo título<br />

revela o intuito de romper definitivamente com a norma poética: Libertinagem.<br />

A década de 1930 marcou a ascensão <strong>do</strong>s grandes dita<strong>do</strong>res da primeira<br />

metade <strong>do</strong> século: Hitler na Alemanha, Mussolini na itália e, no brasil, o governo<br />

de Getúlio Vargas.<br />

em literatura, o perío<strong>do</strong> entre 1930 e 1945 foi o momento <strong>do</strong> posicionamento<br />

ideológico, político e social <strong>do</strong>s intelectuais brasileiros. A rebeldia estética da<br />

primeira fase modernista cedeu lugar à literatura socialmente comprometida,<br />

sobretu<strong>do</strong> no que diz respeito à prosa de ficção. Foi o momento <strong>do</strong> romance<br />

regionalista de Graciliano ramos, José lins <strong>do</strong> rego, Jorge Ama<strong>do</strong> e da poesia<br />

que se ergueu para defender a dignidade humana, como é o caso de A rosa <strong>do</strong><br />

povo, de Carlos drummond de Andrade, publicada em 1945.<br />

8


Aol-11 2. eStILo LIterárIo dA époCA<br />

9<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>


Carlos drummond de Andrade<br />

o ModernISMo brASILeIro<br />

o movimento modernista brasileiro teve como marco inicial a semana de<br />

Arte Moderna de 1922. em fevereiro desse ano, por sugestão <strong>do</strong> pintor di Cavalcanti,<br />

um grupo paulista, forma<strong>do</strong> por Mário de Andrade, oswald de Andrade,<br />

Paulo Pra<strong>do</strong>, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia e outros, juntamente<br />

com escritores mais jovens <strong>do</strong> rio de Janeiro, como ronald de Carvalho, renato<br />

de Almeida e alguns mais, promoveram, no teatro Municipal de são paulo, a<br />

chamada semana de Arte Moderna, com exposição de pintura e escultura, concertos,<br />

conferências e declamações.<br />

o Modernismo brasileiro começou pelas artes plásticas. em janeiro de 1917,<br />

a pintora paulista Anita Malfatti realizou em São Paulo uma exposição de pintura,<br />

na qual, além <strong>do</strong>s seus quadros, marca<strong>do</strong>s por influências <strong>do</strong> expressionismo<br />

alemão, apresentava também alguns quadros cubistas de pintores estrangeiros.<br />

A exposição criou polêmica, ganhan<strong>do</strong> a simpatia de uns e a antipatia de outros.<br />

Monteiro Lobato escreveu um artigo cujo título era ”Paranoia ou mistificação?“,<br />

negan<strong>do</strong> valor artístico aos quadros. A exposição agra<strong>do</strong>u, entretanto, a Mário<br />

de Andrade e a oswald de Andrade.<br />

de um mo<strong>do</strong> geral, a literatura <strong>do</strong>s modernistas, na chamada fase heroica<br />

<strong>do</strong> movimento ou Primeira Fase Modernista, entre 1922 e 1930, provocou a<br />

subversão <strong>do</strong>s gêneros literários. A poesia aproximou-se da prosa e esta a<strong>do</strong>tou<br />

processos de elaboração da linguagem poética. Houve uma aproximação <strong>do</strong>s diversos<br />

“ismos” europeus, os movimentos de vanguarda que procuravam romper<br />

com as normas acadêmicas, como o expressionismo, o cubismo, o dadaísmo, o<br />

futurismo, e o surrealismo.<br />

A poesia aban<strong>do</strong>nou as formas poéticas consagradas, como o verso metrifica<strong>do</strong><br />

e rima<strong>do</strong>, exageradamente pratica<strong>do</strong> pelos poetas parnasianos. Aderiu à<br />

linguagem coloquial, ao verso livre, aos temas <strong>do</strong> cotidiano, ao humor e à ironia.<br />

os modernistas desejavam provar que a poesia estava na essência <strong>do</strong> que é dito<br />

e na sugestão ou no choque das palavras escolhidas, não nos recursos formais.<br />

na fase mais combativa <strong>do</strong> Modernismo brasileiro, de 1922 a 1930, a prosa<br />

sofreu transformações significativas. Os perío<strong>do</strong>s tornaram-se curtos, fragmenta<strong>do</strong>s,<br />

com espaços brancos na composição tipográfica e na própria sequência <strong>do</strong><br />

discurso, apresentan<strong>do</strong> a realidade dividida em blocos sugestivos, cuja unificação<br />

exige <strong>do</strong> leitor uma adequação aos novos processos construtivos, uma vez que<br />

dispensa a concatenação lógica. A aliteração (repetição <strong>do</strong>s sons das consoantes)<br />

e a criação de neologismos passaram a integrar a linguagem da prosa. o melhor<br />

exemplo dessa técnica encontra-se em memórias sentimentais de João miramar, de<br />

oswald de Andrade.<br />

10


Aol-11<br />

11<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

de 1930, data da publicação de Alguma poesia, de Carlos drummond de<br />

Andrade, a 1945, ano da morte de Mário de Andrade, tivemos o que se convencionou<br />

chamar de a segunda fase <strong>do</strong> Modernismo. As grandes experiências técnicas<br />

com a linguagem cederam importância aos temas sociais. surgiu uma literatura<br />

que procurava denunciar certos aspectos da realidade brasileira, sobretu<strong>do</strong> na<br />

prosa. Aí encontram-se os romances de Graciliano ramos, como Vidas secas (1938)<br />

e São Bernar<strong>do</strong> (1934), e de Jorge Ama<strong>do</strong>, como Capitães da areia (1937), terras <strong>do</strong><br />

sem-fim (1942), entre outros.<br />

de 1945 em diante, tivemos a chamada terceira fase modernista. Alguns estudiosos<br />

delimitam esta fase entre 1945, ano da morte de Mário de Andrade, e 1964,<br />

ano <strong>do</strong> Golpe Militar. nela a linguagem é empregada como instrumento da busca<br />

<strong>do</strong> ser, sobretu<strong>do</strong> em João Guimarães rosa, na obra Sagarana (1946) e em Clarice lispector,<br />

nos romances Perto <strong>do</strong> coração selvagem (1944), A paixão segun<strong>do</strong> G.H. (1964) e<br />

A hora da estrela (1977).<br />

é importante ressaltar que a obra poética de Carlos drummond de Andrade<br />

atravessa as três fases <strong>do</strong> modernismo.


Carlos drummond de Andrade<br />

3. o AUtor<br />

Quan<strong>do</strong> nasci, um anjo torto<br />

desses que vivem na sombra<br />

disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida.<br />

12<br />

Carlos drummond de Andrade<br />

Gauche – pronuncia-se gôch, palavra francesa cujo significa<strong>do</strong> literal é<br />

esquer<strong>do</strong>; no poema significa inapto, desajeita<strong>do</strong>.<br />

Carlos drummond de Andrade era mineiro de itabira <strong>do</strong> Mato dentro, nasci<strong>do</strong><br />

em 1902, nono filho de Carlos de Paula Andrade, fazendeiro, e de D. Julieta<br />

Augusta Drummond de Andrade. Expulso <strong>do</strong> colégio ao findar o ano letivo de<br />

1919, em consequência de um incidente com o professor de português, passou a<br />

residir em belo Horizonte, onde fez estu<strong>do</strong>s de farmácia. dedicou-se ao jornalismo<br />

e entrou em contato com o Modernismo paulista, integran<strong>do</strong> o grupo funda<strong>do</strong>r de<br />

A Revista, órgão que divulgava as ideias modernistas em Minas Gerais.<br />

em 1926, sem interesse pela profissão de farmacêutico e sem aptidão para<br />

a vida de fazendeiro, lecionou geografia e português no Ginásio Sul-Americano<br />

de itabira. Ainda em 1926, retornou a belo Horizonte, como redator e depois<br />

redator-chefe <strong>do</strong> diário de minas. em 1928, a Revista de Antropofagia publicou seu poema<br />

no meio <strong>do</strong> caminho, provocan<strong>do</strong> escândalo nos meios mais conserva<strong>do</strong>res.


Aol-11<br />

13<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

em 1934, deixou belo Horizonte e foi para o rio de Janeiro (onde viveu até<br />

o fim da vida, em 1987), como chefe de gabinete <strong>do</strong> ministro Gustavo Capanema,<br />

Ministro da educação e da saúde pública.<br />

poeta, contista, cronista e ensaísta, Carlos drummond soube usar com precisão<br />

a linguagem, sempre de forma elegante e correta, com riqueza vocabular.<br />

os temas e os motivos de sua obra são sempre cotidianos, observan<strong>do</strong> de perto<br />

os homens e as sutilezas e brutalidades da vida.<br />

em 1962, em sua Antologia poética, o poeta dividiu sua poesia em nove<br />

áreas temáticas:<br />

1) o indivíduo: “um eu to<strong>do</strong> retorci<strong>do</strong>”<br />

2) A terra natal: “uma província: esta”<br />

3) A família: “a família que me dei”<br />

4) Amigos: “cantar de amigos”<br />

5) Choque social: “na praça de convites”<br />

6) o conhecimento amoroso: “amar-amaro”<br />

7) A própria poesia: “poesia contemplada”<br />

8) exercícios lúdicos: “uma, duas argolinhas”<br />

9) uma visão, ou tentativa da existência: “tentativa de exploração e de interpretação<br />

<strong>do</strong> estar-no-mun<strong>do</strong>”<br />

obrA<br />

poesia<br />

1930 – Alguma poesia<br />

1934 – Brejo das almas<br />

1940 – <strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

1942 – Poesias<br />

1945 – Rosa <strong>do</strong> povo<br />

1948 – Poesia até agora<br />

1951 – Claro enigma<br />

1952 – Viola de bolso<br />

1954 – Fazendeiro <strong>do</strong> ar & Poesia até agora<br />

1955 – Viola de bolso novamente encor<strong>do</strong>ada<br />

1959 – Poemas<br />

1959 – A vida passada a limpo<br />

1962 – Lição das coisas<br />

1967 – Versiprosa<br />

1968 – Boitempo & A falta que ama<br />

1973 – menino antigo Boitempo ii


Carlos drummond de Andrade<br />

1973 – As impurezas <strong>do</strong> branco<br />

1975 – Amor, amores<br />

1977 – A visita<br />

1978 – o marginal colorin<strong>do</strong> gato<br />

1978 – discurso da primavera & Algumas sombras<br />

1979 – esquecer para lembrar – Boitempo iii<br />

1980 – A paixão medida<br />

1982 – Carmina drummondiana<br />

1984 – Corpo<br />

1985 – Amar, sinal estranho<br />

1985 – Amar se aprende aman<strong>do</strong><br />

1988 – Poesia errante<br />

1992 – o amor natural<br />

1996 – Farewell<br />

prosa<br />

1944 – Confissões de minas<br />

1951 – Contos de aprendiz<br />

1952 – Passeios na ilha<br />

1957 – Fala, amen<strong>do</strong>eira<br />

1962 – A bolsa e a vida (crônicas e poemas)<br />

1970 – Cadeira de balanço (crônicas e poemas)<br />

1970 – Caminhos de João Brandão<br />

1978 – o poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso<br />

1978 – os dias lin<strong>do</strong>s<br />

1979 – de notícias e não-notícias faz-se a crônica<br />

1979 – Historinhas<br />

1981 – Contos plausíveis<br />

1984 – Boca de luar<br />

1985 – o observatório escritório<br />

1986 – tempo vida poesia<br />

1987 – o avesso das coisas<br />

1987 – moça deitada na grama<br />

1983 – o elefante<br />

1985 – História de <strong>do</strong>is amores (com ilustrações de Ziral<strong>do</strong>)<br />

14


Aol-11 4. A obrA<br />

15<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>


Carlos drummond de Andrade<br />

A obra <strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> é composta pelos 28 poemas seguintes:<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

Confidência <strong>do</strong> itabirano<br />

Poema da necessidade<br />

Canção da moça-fantasma de Belo Horizonte<br />

tristeza <strong>do</strong> império<br />

operário no mar (prosa)<br />

menino choran<strong>do</strong> na noite<br />

morro da Babilônia<br />

Congresso internacional <strong>do</strong> me<strong>do</strong><br />

os mortos de sobrecasaca<br />

Privilégio <strong>do</strong> mar<br />

inocentes <strong>do</strong> Leblon<br />

Canção <strong>do</strong> berço<br />

indecisão <strong>do</strong> méier<br />

Bolero de Ravel<br />

La possession du monde<br />

ode no cinquentenário <strong>do</strong> poeta brasileiro<br />

os ombros suportam o mun<strong>do</strong><br />

mãos dadas<br />

dentaduras duplas<br />

Revelação <strong>do</strong> subúrbio<br />

A noite dissolve os homens<br />

madrigal lúgubre<br />

Lembrança <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> antigo<br />

elegia 1938<br />

mun<strong>do</strong> grande<br />

noturno à janela <strong>do</strong> apartamento<br />

Análise da obra<br />

o livro <strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> foi publica<strong>do</strong> em 1940, num momento de<br />

absoluta censura (vivíamos a época de ascensão <strong>do</strong>s grandes dita<strong>do</strong>res, como<br />

Getúlio Vargas no Brasil, Hitler na Alemanha, Franco na Espanha, Mussolini<br />

na itália, salazar em portugal, perón na Argentina, stalin na união soviética), o<br />

que explica a sua publicação fora <strong>do</strong> comércio, com uma tiragem de apenas 150<br />

16


Aol-11<br />

17<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

exemplares. o livro mostrou a adesão explícita <strong>do</strong> poeta aos temas sociais, aos<br />

problemas de um mun<strong>do</strong> marca<strong>do</strong> pelas injustiças sociais (o “mun<strong>do</strong> caduco”),<br />

mun<strong>do</strong> que marchava em direção aos campos de concentração da Alemanha e<br />

à explosão da bomba de Hiroshima.<br />

escrito dentro <strong>do</strong>s princípios preconiza<strong>do</strong>s pelo Modernismo, os 28 poemas<br />

<strong>do</strong> livro apresentam linguagem coloquial, com versos pre<strong>do</strong>minantemente<br />

livres, mas para compreendê-los melhor, é preciso retroceder aos <strong>do</strong>is primeiros<br />

livros <strong>do</strong> autor.<br />

em Alguma poesia, de 1930, primeiro livro de Carlos drummond de Andrade,<br />

o poeta escreve no poema de abertura:<br />

Quan<strong>do</strong> nasci, um anjo torto<br />

desses que vivem na sombra<br />

disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida.<br />

o “anjo torto” anuncia, já no primeiro poema, o destino <strong>do</strong> poeta: “ser<br />

gauche na vida”, o que significa não ter jeito ou aptidão para a vida. O tema <strong>do</strong><br />

“eu to<strong>do</strong> retorci<strong>do</strong>” que o poeta assinalou na Antologia poética de 1962 estava na<br />

raiz de sua poesia. A imagem que o poeta tem de si é sempre a de um ser torto,<br />

retorci<strong>do</strong> sobre si mesmo, incapaz de se ajustar às normas e às transgressões <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>.<br />

em Brejo das almas, de 1934, no poema Segre<strong>do</strong>, o poeta dirá:<br />

A poesia é incomunicável.<br />

Fique torto no seu canto.<br />

não ame.<br />

o destino “torto” previsto pelo anjo no primeiro livro parece não ser apenas<br />

o destino <strong>do</strong> eu poético, mas de to<strong>do</strong>s os homens. Cada ser humano parece<br />

carregar em seu interior uma carga pesada capaz de deformá-lo, tornan<strong>do</strong>-o<br />

inapto para as coisas da vida. A deformidade interior parece impossibilitar uma<br />

correspondência satisfatória <strong>do</strong> eu com o mun<strong>do</strong>. este, aliás, será precisamente<br />

o tema <strong>do</strong> <strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

Desde o início, pois, é perceptível na poesia <strong>do</strong> autor a noção de conflito<br />

entre o que chamamos eu e o que chamamos Mun<strong>do</strong>. o “eu” poético na poesia<br />

drummondiana, embora tenha níti<strong>do</strong>s traços autobiográficos, transcende a esfera<br />

da singularidade e estabelece um parentesco com to<strong>do</strong>s os seres exteriores, de<br />

tal maneira que, ao falar de si, o poeta fala também de cada um de nós. o “eu”<br />

poético carrega consigo toda a carga que lhe foi atribuída desde o seu nascimento,<br />

em primeira instância pelas regras <strong>do</strong> grupo familiar e, posteriormente, pelas<br />

regras <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> social. Regras de conduta moral, social, profissional, religiosa,


Carlos drummond de Andrade<br />

enfim, to<strong>do</strong> o peso da civilização em suas nuanças que o ser humano acaba por<br />

absorver, quase sempre contra a sua vontade, e que acaba por sufocá-lo, deformálo<br />

e isolá-lo num labirinto de solidão e incomunicabilidade.<br />

em <strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, o poeta deliberadamente procura estabelecer<br />

um vínculo entre o “eu” e o “mun<strong>do</strong>” através da linguagem poética. A poesia<br />

expressa, pois, os problemas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> exterior e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> interior.<br />

A poesia é o veículo que torna possível a construção de uma ponte entre esses<br />

<strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s.<br />

no universo interior, o homem é marca<strong>do</strong> pelos fantasmas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, já<br />

que to<strong>do</strong>s nós somos feitos daquilo que fomos, o que significa que as nossas raízes,<br />

a nossa família, a cidade em que nascemos e vivemos durante certo tempo, a nossa<br />

formação (ou deformação) moral atravessam o tempo e chegam ao momento<br />

presente como parte integrante e indissociável da nossa existência. A família é<br />

a primeira instituição a impor ao indivíduo o princípio da realidade, isto é, ela<br />

procura despertar na criança a capacidade de restringir as próprias vontades,<br />

ten<strong>do</strong> em vista a <strong>do</strong>s outros, e a adiar ou moderar a satisfação de determina<strong>do</strong>s<br />

prazeres imediatos em nome de uma satisfação posterior. o problema maior<br />

desse “princípio de realidade” é que dele provém o me<strong>do</strong>. o me<strong>do</strong> é a primeira<br />

reação <strong>do</strong> indivíduo ao encarar suas limitações.<br />

no universo exterior, a política ditatorial, a corrupção, a violência, a ganância<br />

e a luta pelo poder revelam que o mun<strong>do</strong> é um lugar mal feito, torto,<br />

deforma<strong>do</strong>, capaz de amesquinhar a vida e reduzi-la à impossibilidade, fazen<strong>do</strong><br />

com que to<strong>do</strong>s nós tenhamos me<strong>do</strong> da realidade. Me<strong>do</strong> que nos paralisa e nos<br />

impossibilita de lutar contra o que nos oprime. Assim como existem os fantasmas<br />

interiores, existem, no mun<strong>do</strong> exterior, as injustiças sociais e os fantasmas <strong>do</strong><br />

autoritarismo de uma política repressora.<br />

A poesia de Carlos drummond de Andrade surge, portanto, como uma<br />

possibilidade de libertar o “eu” de seus fantasmas interiores e, simultaneamente,<br />

como possibilidade de libertar a consciência <strong>do</strong> me<strong>do</strong> e da culpa em relação à realidade<br />

exterior. dessa forma, em <strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, a poesia é um instrumento<br />

de libertação e de participação social, porque permite ao poeta compreender o<br />

me<strong>do</strong> desperta<strong>do</strong> na infância pela autoridade familiar e amadurecer e raciocinar<br />

a partir desse me<strong>do</strong>, conferin<strong>do</strong>-lhe pouco a pouco a coragem necessária<br />

para enfrentar os me<strong>do</strong>s e terrores de uma realidade marcada pelos rigores de<br />

uma política autoritária. Assim, o poeta substitui os problemas interiores pelos<br />

problemas exteriores, atingin<strong>do</strong> a confluência entre o Eu e o Mun<strong>do</strong>, o que faz<br />

surgir o sentimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

A partir, sobretu<strong>do</strong>, de <strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, percebemos que o eu e o<br />

Mun<strong>do</strong> estão intimamente relaciona<strong>do</strong>s e que muitas vezes, ao falar de si, o poeta<br />

está falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e, ao abordar os problemas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ele está, de fato,<br />

procuran<strong>do</strong> compreender seu próprio universo interior.<br />

18


Aol-11<br />

no poema de abertura, intitula<strong>do</strong> <strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, lemos:<br />

tenho apenas duas mãos<br />

e o sentimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />

mas estou cheio de escravos,<br />

minhas lembranças escorrem<br />

e o corpo transige<br />

na confluência <strong>do</strong> amor.<br />

Quan<strong>do</strong> me levantar, o céu<br />

estará morto e saquea<strong>do</strong>,<br />

eu mesmo estarei morto,<br />

morto meu desejo, morto<br />

o pântano sem acordes.<br />

os camaradas não disseram<br />

que havia uma guerra<br />

e era necessário<br />

trazer fogo e alimento.<br />

Sinto-me disperso,<br />

anterior a fronteiras,<br />

humildemente vos peço<br />

que me per<strong>do</strong>eis.<br />

Quan<strong>do</strong> os corpos passarem,<br />

eu ficarei sozinho<br />

desfian<strong>do</strong> a recordação<br />

<strong>do</strong> sineiro, da viúva e <strong>do</strong> microcopista<br />

que habitavam a barraca<br />

e não foram encontra<strong>do</strong>s<br />

ao amanhecer<br />

esse amanhecer<br />

mais noite que a noite.<br />

19<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

o poeta estende a mão para o seu semelhante, abre a mão para a humanidade.<br />

A mão representa aqui a consciência, o desejo de aproximar-se <strong>do</strong> outro;<br />

por isso o eu poético afirma ter duas mãos e o “sentimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”, a mão é a<br />

consciência que lhe permite sentir o mun<strong>do</strong>. Mas, embora seja capaz de senti-lo,


Carlos drummond de Andrade<br />

o eu lírico afirma estar “cheio de escravos”, isto é, ele sente-se preso e incapaz<br />

de vivenciar a vida e a humanidade. Assim como percebe as forças que interiormente<br />

o prendem e o privam da liberdade (“mas estou cheio de escravos”), ele<br />

percebe também as forças sociais que escravizam e impossibilitam os homens<br />

de se humanizarem, como sugerem os versos “os camaradas não disseram / que<br />

havia uma guerra / e que era necessário / trazer fogo e alimento”. por isso, ainda<br />

na terceira estrofe, pede perdão aos seus semelhantes, pois se sente desprepara<strong>do</strong><br />

para ajudá-los: “sinto-me disperso, / anterior a fronteiras / humildemente vos peço<br />

/ que me per<strong>do</strong>eis.” O que ele constata no final <strong>do</strong> poema é que o “amanhecer”,<br />

ou seja, o ingresso consciente no mun<strong>do</strong> exterior, está marca<strong>do</strong> pela “noite”, pela<br />

privação da luz, pela supressão da clareza, maneira sutil de dizer que o homem<br />

está priva<strong>do</strong> da liberdade: “esse amanhecer / mais noite que a noite”.<br />

Como o eu poético traz consigo os problemas que também pertencem a<br />

to<strong>do</strong>s nós, a ausência de liberdade de um representa a ausência de liberdade<br />

<strong>do</strong> outro, o que significa que as tradições que oprimem o indivíduo oprimem<br />

também a sociedade.<br />

em seguida, vem o famoso poema Confidência <strong>do</strong> itabirano:<br />

Alguns anos vivi em itabira.<br />

Principalmente nasci em itabira.<br />

Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.<br />

noventa por cento de ferro nas calçadas.<br />

oitenta por cento de ferro nas almas.<br />

e esse alheamento <strong>do</strong> que na vida é porosidade e comunicação.<br />

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,<br />

vem de itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.<br />

e o hábito de sofrer, que tanto me diverte,<br />

é <strong>do</strong>ce herança itabirana.<br />

de itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:<br />

este São Benedito <strong>do</strong> velho santeiro Alfre<strong>do</strong> duval;<br />

esta pedra de ferro, futuro aço <strong>do</strong> Brasil;<br />

este couro de anta, estendi<strong>do</strong> no sofá da sala de visitas;<br />

este orgulho, esta cabeça baixa...<br />

tive ouro, tive ga<strong>do</strong>, tive fazendas.<br />

hoje sou funcionário público<br />

Itabira é apenas uma fotografia na parede.<br />

mas como dói!<br />

20


Aol-11<br />

21<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

repare que as heranças oriundas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> sobrecarregam o ser, enrigecen<strong>do</strong><br />

a sua sensibilidade, chegan<strong>do</strong> o poeta a afirmar: “por isso sou triste,<br />

orgulhoso: de ferro”. por mais que o passa<strong>do</strong> esteja distante e a cidade natal seja<br />

apenas uma fotografia na parede, o eu lírico sofre. Daí vem a necessidade de<br />

estabelecer um vínculo com o que está fora.<br />

Poema da necessidade<br />

É preciso casar João,<br />

é preciso suportar Antônio,<br />

é preciso odiar melquíades,<br />

é preciso substituir nós to<strong>do</strong>s.<br />

É preciso salvar o país,<br />

é preciso crer em deus,<br />

é preciso pagar as dívidas,<br />

É preciso comprar um rádio,<br />

É preciso esquecer fulana.<br />

É preciso estudar volapuque 1 ,<br />

é preciso estar sempre bêbe<strong>do</strong>,<br />

é preciso ler Baudelaire 2 ,<br />

é preciso colher as flores<br />

de que rezam velhos autores.<br />

É preciso viver com os homens,<br />

É preciso não assassiná-los,<br />

é preciso ter mãos pálidas<br />

e anunciar o Fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

1 Volapuque = língua artificial criada pelo padre alemão Martin Schleyer, no final <strong>do</strong> século XIX, com a finalidade de ser uma<br />

língua universal.<br />

2 baudelaire = poeta francês <strong>do</strong> século xix.


Carlos drummond de Andrade<br />

A consciência impele o poeta a procurar o que está fora dele, a estabelecer<br />

um vínculo com elementos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> exterior. o poeta faz uso da anáfora, da<br />

repetição de uma palavra ou expressão no início <strong>do</strong> verso para intensificar a ideia<br />

de necessidade. O último verso “E anunciar o FIM DO MUNDO” evidencia a<br />

necessidade de anunciar o fim de um mun<strong>do</strong> que aprisiona, que impõe sofrimentos<br />

e privações. Desta maneira, o fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> deseja<strong>do</strong> é o fim de todas<br />

as tradições que (nos) aprisionam, sejam elas os recalques interiores ou a política<br />

autoritária que rege o mun<strong>do</strong> exterior.<br />

Ao anunciar o fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, o poeta recusa o convencionalismo da linguagem<br />

e anuncia um mun<strong>do</strong> novo, num poema em prosa intitula<strong>do</strong> o operário<br />

no mar. nesse mun<strong>do</strong> fabuloso de contradições extintas que então se anunciava<br />

( “...mensagens que contam da rússia, <strong>do</strong> Araguaia, <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s uni<strong>do</strong>s”), é<br />

possível ao operário caminhar sobre as águas. Mas a consciência de culpa <strong>do</strong><br />

poeta o leva a findar o texto com uma interrogação, pois ele se considera parte<br />

integrante da antiga ordem opressora (é importante lembrar aqui a origem latifundiária<br />

de drummond e o seu trabalho no gabinete de um ministro durante<br />

o governo de Getúlio Vargas) e, por isso, tem dúvidas sobre sua capacidade de<br />

compreender um operário.<br />

O operário no mar<br />

Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama,<br />

no discurso político, a <strong>do</strong>r <strong>do</strong> operário está na sua blusa azul, de pano grosso, nas mãos<br />

grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. esse é um homem comum, apenas<br />

mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios<br />

e segre<strong>do</strong>s. Para onde vai ele, pisan<strong>do</strong> assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás.<br />

Adiante é só campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os<br />

fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem<br />

mensagens, que contam da Rússia, <strong>do</strong> Araguaia, <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s uni<strong>do</strong>s. não ouve, na<br />

Câmara <strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>s, o líder oposicionista vociferan<strong>do</strong>. Caminha no campo e apenas<br />

repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria<br />

vergonha de chamá-lo meu irmão. ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos<br />

entenderemos nunca. e me despreza...ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus<br />

olhos. tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular<br />

a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar-lhe que suste a<br />

marcha. Agora está caminhan<strong>do</strong> no mar. eu pensava que isso fosse privilégio de alguns<br />

santos e de navios. mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas e nem<br />

hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovar<strong>do</strong>u e deixou-o<br />

passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o<br />

operário está cansa<strong>do</strong> e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de<br />

suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmi<strong>do</strong>. A palidez e a confusão <strong>do</strong><br />

seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos<br />

22


Aol-11<br />

23<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

irremediavelmente separa<strong>do</strong>s pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no<br />

meio <strong>do</strong> mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio<br />

atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas<br />

da costa, as medusas, atravessa tu<strong>do</strong> e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança<br />

de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?<br />

no poema menino choran<strong>do</strong> na noite, ocorre uma comparação sutil entre o<br />

remédio ministra<strong>do</strong> a uma criança e a situação política <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Assim como<br />

o remédio, muitas vezes amargo, se faz necessário, as políticas autoritárias da<br />

época justificavam as suas arbitrariedades comparan<strong>do</strong>-as ao remédio necessário<br />

para curar os males que afligiam o mun<strong>do</strong>. Por isso, o “fio oleoso que escorre<br />

pelo queixo <strong>do</strong> menino, / escorre pela rua, escorre pela cidade...”. A <strong>do</strong>r, embora<br />

seja de to<strong>do</strong>s, parece ser apenas de um: “e não há ninguém mais no mun<strong>do</strong> a<br />

não ser esse menino choran<strong>do</strong>.” Mais uma vez surge a relação entre o individual<br />

e o coletivo.<br />

na noite lenta e morna, morta noite sem ruí<strong>do</strong>, um menino chora.<br />

o choro atrás da parede, a luz atrás da vidraça<br />

perdem-se na sombra <strong>do</strong>s passos abafa<strong>do</strong>s, das vozes extenuadas.<br />

e no entanto se ouve até o rumor da gota de remédio cain<strong>do</strong> na colher.<br />

um menino chora na noite, atrás da parede, atrás da rua,<br />

longe um menino chora, em outra cidade talvez,<br />

talvez em outro mun<strong>do</strong>.<br />

e vejo a mão que levanta a colher, enquanto a outra sustenta a cabeça<br />

e vejo o fio oleoso que escorre pelo queixo <strong>do</strong> mendigo,<br />

escorre pela rua, escorre pela cidade (um fio apenas).<br />

e não há ninguém mais no mun<strong>do</strong> a não ser esse menino choran<strong>do</strong>.<br />

em Congresso internacional <strong>do</strong> me<strong>do</strong>, o sentimento de me<strong>do</strong> se alastra pelo<br />

mun<strong>do</strong> e paralisa os homens impedin<strong>do</strong>-os de se rebelarem contra a ordem<br />

estabelecida. o me<strong>do</strong> se faz presente em to<strong>do</strong>s os lugares, em todas as pessoas<br />

e em to<strong>do</strong>s os níveis, impedin<strong>do</strong> as ações e culminan<strong>do</strong> na paralisia geral da<br />

morte. na própria forma <strong>do</strong> poema, a palavra “me<strong>do</strong>” vai se espalhan<strong>do</strong> por<br />

to<strong>do</strong>s os versos e o som da sibilante contínuo /s/ no último verso <strong>do</strong> poema<br />

Sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas parece sugerir que os efeitos<br />

<strong>do</strong> me<strong>do</strong> prolongam-se para além <strong>do</strong> ponto final. Ou seja, o me<strong>do</strong> não encontra<br />

obstáculos que o interrompa.


Carlos drummond de Andrade<br />

Congresso internacional <strong>do</strong> me<strong>do</strong><br />

Provisoriamente não cantaremos o amor,<br />

que se refugiou mais abaixo <strong>do</strong>s subterrâneos.<br />

cantaremos o me<strong>do</strong>, que esteriliza os abraços,<br />

não cantaremos o ódio porque esse não existe,<br />

existe apenas o me<strong>do</strong>, nosso pai e nosso companheiro,<br />

o me<strong>do</strong> grande <strong>do</strong>s sertões, <strong>do</strong>s mares, <strong>do</strong>s desertos,<br />

o me<strong>do</strong> <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s, o me<strong>do</strong> das mães, o me<strong>do</strong> das igrejas,<br />

cantaremos o me<strong>do</strong> <strong>do</strong>s dita<strong>do</strong>res, o me<strong>do</strong> <strong>do</strong>s democratas,<br />

cantaremos o me<strong>do</strong> da morte e o me<strong>do</strong> de depois da morte,<br />

depois morreremos de me<strong>do</strong><br />

e sobre os nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.<br />

no poema os mortos de sobrecasaca, o tema da família, ou melhor, o tema<br />

das heranças que trazemos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> ressurge, não numa fotografia de Itabira,<br />

terra natal <strong>do</strong> poeta, mas através de um álbum de fotografia <strong>do</strong>s familiares.<br />

Os mortos de sobrecasaca<br />

Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,<br />

alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,<br />

em que to<strong>do</strong>s se debruçavam<br />

na alegria de zombar <strong>do</strong>s mortos de sobrecasaca.<br />

um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes<br />

e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira <strong>do</strong>s retratos.<br />

Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava<br />

que rebentava daquelas páginas.<br />

repare que o álbum também pode ser um jazigo, um túmulo, o que está<br />

sugeri<strong>do</strong> na hipérbole (exagero) <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> verso “alto de muitos metros e<br />

velho de infinitos minutos”. Perceba também que a ideia de jazigo ganha mais<br />

senti<strong>do</strong> na segunda estrofe, pois os vermes roem as sobrecasacas <strong>do</strong>s mortos.<br />

Mas, embora estejam to<strong>do</strong>s mortos e sepulta<strong>do</strong>s, apesar da destruição física, os<br />

sentimentos de vida permanecem vivos, estão presentes, por exemplo, no eu<br />

lírico. por mais que este possa “zombar <strong>do</strong>s mortos de sobrecasaca”, as regras e<br />

valores <strong>do</strong> núcleo familiar <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> integram a sua vida.<br />

24


Aol-11<br />

Brinde no juízo final<br />

Poetas de camiseiro, chegou vossa hora,<br />

poetas de elixir de inhame e de tonofosfã,<br />

chegou vossa hora, poetas <strong>do</strong> bonde e <strong>do</strong> rádio,<br />

poetas jamais acadêmicos, último ouro <strong>do</strong> Brasil.<br />

em vão assassinaram a poesia nos livros,<br />

em vão houve putschs, tropas de assalto, depurações.<br />

os sobreviventes aqui estão, poetas honra<strong>do</strong>s,<br />

poetas diretos da Rua Larga.<br />

(As outras ruas são muito estreitas,<br />

só nesta cabem a poeira,<br />

o amor<br />

e a Light.)<br />

25<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

nesse poema, de mo<strong>do</strong> sutil, o que, aliás, é típico <strong>do</strong> autor, o poeta tece<br />

uma crítica aos autores acadêmicos que se afastavam <strong>do</strong>s problemas sociais, enquanto,<br />

ao mesmo tempo, tece um elogio aos poetas populares que empregavam<br />

a linguagem poética para anunciar desde medicamentos, como “elixir de inhame<br />

e de tonofosfã”, à luz da light, empresa de energia elétrica.<br />

em Privilégio <strong>do</strong> mar, o poeta condena a alienação <strong>do</strong>s que desconhecem ou<br />

fingem desconhecer a existência <strong>do</strong>s horrores de um conflito mundial, beben<strong>do</strong>,<br />

tranquilamente, no alto de um edifício, suas cervejas.<br />

Privilégio <strong>do</strong> mar<br />

neste terraço mediocremente confortável,<br />

bebemos cerveja e olhamos o mar.<br />

Sabemos que nada nos acontecerá.<br />

o edifício é sóli<strong>do</strong> e o mun<strong>do</strong> também.<br />

Sabemos que cada edifício abriga mil corpos<br />

labutan<strong>do</strong> em mil compartimentos iguais.<br />

Às vezes, alguns se inserem fatiga<strong>do</strong>s no eleva<strong>do</strong>r<br />

e vêm cá em cima respirar a brisa <strong>do</strong> oceano,<br />

o que é privilégio <strong>do</strong>s edifícios.<br />

o mun<strong>do</strong> é mesmo de cimento arma<strong>do</strong>.


Carlos drummond de Andrade<br />

Certamente, se houvesse um cruza<strong>do</strong>r louco,<br />

fundea<strong>do</strong> na baía em frente da cidade,<br />

a vida seria incerta... improvável...<br />

Mas nas águas tranquilas só há marinheiros fiéis.<br />

Como a esquadra é cordial!<br />

Podemos beber honradamente nossa cerveja.<br />

no poema inocentes <strong>do</strong> Leblon, o poeta repete sua crítica à alienação e chama<br />

de inocentes aqueles que ignoram a realidade nociva que rodeia a to<strong>do</strong>s, aqueles<br />

que, mergulha<strong>do</strong>s no universo pessoal, acabam por ignorar os problemas exteriores,<br />

os problemas sociais:<br />

Inocentes <strong>do</strong> Leblon<br />

os inocentes <strong>do</strong> Leblon<br />

não viram o navio entrar.<br />

Trouxe bailarinas?<br />

trouxe imigrantes?<br />

trouxe um grama de rádio?<br />

Os inocentes, definitivamente inocentes, tu<strong>do</strong> ignoram,<br />

mas a areia é quente, e há óleo suave<br />

Que eles passam nas costas, e esquecem.<br />

no poema intitula<strong>do</strong> os ombros suportam o mun<strong>do</strong>, encontramos o ponto de<br />

confluência entre o sentimento individual e o sentimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>: as limitações<br />

e imperfeições interiores levam o poeta a substituir os problemas pessoais pelos<br />

problemas coletivos. O sentimento interior de insuficiência faz com que o poeta<br />

deseje atingir a completude através <strong>do</strong> próximo. o irremediável da condição<br />

humana é percebi<strong>do</strong> na condição pessoal e a desarmonia entre os homens e seus<br />

atos revela a inevitável condição solitária <strong>do</strong> ser humano.<br />

Os ombros suportam o mun<strong>do</strong><br />

Chega um tempo em que não se diz mais: meu deus.<br />

tempo de absoluta depuração.<br />

tempo em que não se diz mais: meu amor.<br />

Porque o amor resultou inútil.<br />

e os olhos não choram.<br />

e as mãos tecem apenas o rude trabalho.<br />

e o coração está seco.<br />

26


Aol-11<br />

em vão as mulheres batem à porta, não abrirás.<br />

Ficaste sozinho, a luz apagou-se,<br />

mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.<br />

És to<strong>do</strong> certeza, já não sabes sofrer.<br />

e nada esperas de teus amigos.<br />

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?<br />

teus ombros suportam o mun<strong>do</strong><br />

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.<br />

As guerras, as fomes, as discussões dentro <strong>do</strong>s edifícios<br />

provam apenas que a vida prossegue<br />

e nem to<strong>do</strong>s se libertaram ainda.<br />

Alguns, achan<strong>do</strong> bárbaro o espetáculo,<br />

preferiram (os delica<strong>do</strong>s) morrer.<br />

Chegou um tempo em que não adianta morrer.<br />

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.<br />

A vida apenas, sem mistificação.<br />

27<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

no primeiro verso <strong>do</strong> poema, a experiência de vida não permite ao homem<br />

que ele se surpreenda com coisa alguma, por isso não se diz mais “meu deus”. A<br />

experiência, aliás, parece revelar ao homem que to<strong>do</strong> sentimento é inútil, como<br />

sugere o restante da primeira estrofe.<br />

na segunda estrofe, as ações e situações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> cotidiano revelam que<br />

o homem atinge uma fiel indiferença com a vida, aceitan<strong>do</strong>-a mecanicamente.<br />

isso lhe permite viver sem sofrer, sem temer a morte e aceitar a existência sem<br />

nenhuma esperança.<br />

Mas, desse mo<strong>do</strong>, o mun<strong>do</strong> parece caduco, e por isso não merece ser canta<strong>do</strong>.<br />

é preciso, então, agarrar-se ao presente e tentar construir um mun<strong>do</strong> mais<br />

solidário. é preciso que caminhemos de Mãos dadas:<br />

Mãos dadas<br />

não serei o poeta de um mun<strong>do</strong> caduco.<br />

também não cantarei o mun<strong>do</strong> futuro.<br />

estou preso à vida e olho meus companheiros.<br />

estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.<br />

ente eles, considero a enorme realidade.<br />

o presente é tão grande, não nos afastemos.<br />

não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.


Carlos drummond de Andrade<br />

não serei o cantor de uma mulher, de uma história,<br />

não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,<br />

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,<br />

não fugirei para as ilhas nem serei rapta<strong>do</strong> por serafins.<br />

o tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,<br />

a vida presente.<br />

O poeta afirma sua consciência <strong>do</strong>s problemas sociais, afirma que não será<br />

o poeta de um mun<strong>do</strong> caduco, de um mun<strong>do</strong> que celebra a indiferença e o ódio, já<br />

que se vivia na época o clima de repressão política e de preparação para a segunda<br />

Guerra Mundial. Afirma estar preso à vida e a seus companheiros, com os quais<br />

busca união. daí a renúncia, na segunda estrofe, <strong>do</strong>s temas pessoais, pois agora o<br />

seu interesse maior é o outro e a realidade, o “tempo presente”, que afeta a to<strong>do</strong>s.<br />

Mas o “eu” <strong>do</strong> poeta sofre também pelas mutilações que lhe são impostas<br />

pela ação <strong>do</strong> tempo, como aparece em dentaduras duplas:<br />

Dentaduras duplas<br />

dentaduras duplas!<br />

inda não sou bem velho<br />

para merecer-vos...<br />

Há que contentar-me<br />

com uma ponte móvel<br />

e esparsas coroas.<br />

(Coroas sem reino<br />

os reinos protéticos<br />

de onde proviestes<br />

quan<strong>do</strong> produzirão<br />

a tripla dentadura,<br />

dentadura múltipla,<br />

a serra mecânica,<br />

sempre desejada,<br />

jamais possuída<br />

que acabará<br />

com o tédio da boca,<br />

a boca que beija,<br />

a boca romântica?...)<br />

A onestal<strong>do</strong> de pennafort<br />

28


Aol-11<br />

Resolvin! Hecolite!<br />

Nomes de países?<br />

Fantasmas femininos?<br />

nunca: dentaduras,<br />

engenhos modernos,<br />

práticos, higiênicos,<br />

a vida habitável:<br />

a boca morden<strong>do</strong>,<br />

os delirantes lábios<br />

apenas entreabertos<br />

num sorriso técnico,<br />

e a língua especiosa<br />

através <strong>do</strong>s dentes<br />

buscan<strong>do</strong> outra língua,<br />

afinal sossegada...<br />

A serra mecânica<br />

não tritura amor.<br />

e to<strong>do</strong>s os dentes<br />

extraí<strong>do</strong>s sem <strong>do</strong>r.<br />

e boca liberta<br />

Das funções poético-<br />

-sofístico-dramáticas<br />

de que rezam filmes<br />

e velhos autores.<br />

dentaduras duplas:<br />

dai-me enfim a calma<br />

que Bilac não teve<br />

para envelhecer.<br />

Desfibrarei convosco<br />

<strong>do</strong>ces alimentos,<br />

serei casto, sóbrio,<br />

não vos aplican<strong>do</strong><br />

na deleitação convulsa<br />

de uma carne triste<br />

em que tantas vezes<br />

me eu perdi.<br />

29<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>


Carlos drummond de Andrade<br />

Largas dentaduras,<br />

vosso riso largo<br />

me consolará<br />

não sei quantas fomes<br />

ferozes, secretas<br />

no fun<strong>do</strong> de mim.<br />

não sei quantas fomes<br />

jamais compensadas.<br />

dentaduras alvas,<br />

antes amarelas<br />

e por que não de âmbar?<br />

e por que não de âmbar?<br />

de âmbar! de âmbar!<br />

feéricas dentaduras,<br />

admiráveis presas<br />

mastigan<strong>do</strong> lestas<br />

e indiferentes<br />

a carne da vida!<br />

embora o poema contenha certa <strong>do</strong>se de humor, a visão pre<strong>do</strong>minante é<br />

melancólica. o desejo humano não cede à ação <strong>do</strong> tempo, mas o corpo, mutila<strong>do</strong> e<br />

despoja<strong>do</strong> de suas forças, não pode conseguir mais a satisfação desejada. por isso,<br />

a substituição da dentição natural pela artificial funciona como um consolo ante a<br />

tomada de consciência da impossibilidade das realizações desejadas. o “eu” <strong>do</strong> poeta<br />

procura aceitar com alguma serenidade o peso negativo das etapas vencidas, mas está<br />

ciente de que certa <strong>do</strong>se de indiferença para com as coisas da vida é necessária.<br />

no poema seguinte, intitula<strong>do</strong> Revelação <strong>do</strong> subúrbio, o poeta, recolhi<strong>do</strong> ao<br />

espaço interior de um trem, durante uma viagem para Minas Gerais, observa,<br />

através da janela, a realidade externa. o interior <strong>do</strong> veículo parece representar<br />

no poema o interior <strong>do</strong> poeta, enquanto o subúrbio mineiro parece ser uma metonímia<br />

<strong>do</strong> brasil pobre e esforça<strong>do</strong>.<br />

Revelação <strong>do</strong> subúrbio<br />

Quan<strong>do</strong> vou para Minas, gosto de ficar de pé, contra a vidraça <strong>do</strong> carro,<br />

ven<strong>do</strong> o subúrbio passar.<br />

o subúrbio to<strong>do</strong> se condensa para ser visto depressa,<br />

com me<strong>do</strong> de não repararmos suficientemente<br />

30


Aol-11<br />

em suas luzes que mal têm tempo de brilhar.<br />

A noite come o subúrbio e logo o devolve,<br />

ele reage, luta, se esforça,<br />

até que vem o campo onde pela manhã repontam laranjais<br />

e à noite só existe a tristeza <strong>do</strong> Brasil.<br />

31<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

os 42 versos, dividi<strong>do</strong>s em três estrofes, <strong>do</strong> poema A noite dissolve os homens<br />

podem ser dividi<strong>do</strong>s em <strong>do</strong>is segmentos: o primeiro apresenta uma imagem da<br />

noite, <strong>do</strong> universo da guerra, da tristeza e da desesperança, enquanto o segun<strong>do</strong><br />

apresenta uma imagem da aurora associada à ideia de esperança, de crença numa<br />

vida melhor <strong>do</strong> que a proposta pelos ideais nazifascistas.<br />

A noite dissolve os homens<br />

A noite desceu. Que noite!<br />

Já não enxergo meus irmãos.<br />

e nem tampouco os rumores<br />

que outrora me perturbavam.<br />

A noite desceu. nas casas,<br />

nas ruas onde se combate,<br />

nos campos desfaleci<strong>do</strong>s,<br />

a noite espalhou o me<strong>do</strong><br />

e a total incompreensão.<br />

A noite caiu. tremenda,<br />

sem esperança... os suspiros<br />

acusam a presença negra<br />

que paralisa os guerreiros.<br />

e o amor não abre caminho<br />

na noite. A noite é mortal,<br />

completa, sem reticências,<br />

a noite dissolve os homens,<br />

diz que é inútil sofrer,<br />

a noite dissolve as pátrias,<br />

apagou os almirantes<br />

cintilantes! nas suas fardas.<br />

A noite anoiteceu tu<strong>do</strong>...<br />

o mun<strong>do</strong> não tem remédio...<br />

os suicidas tinham razão.


Carlos drummond de Andrade<br />

Aurora,<br />

entretanto eu te diviso, ainda tímida,<br />

inexperiente das luzes que vais acender<br />

e <strong>do</strong>s bens que repartirás com os homens.<br />

Sob o úmi<strong>do</strong> véu de raivas, queixas e humilhações,<br />

adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsan<strong>do</strong> a treva noturna.<br />

O triste mun<strong>do</strong> fascista se decompõe ao contato de teus de<strong>do</strong>s,<br />

teus de<strong>do</strong>s frios, que ainda se não modelaram<br />

mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.<br />

minha fadiga encontrará em ti o seu ermo,<br />

minha carne estremece na certeza de tua vinda.<br />

o suor é um óleo suave, as mãos <strong>do</strong>s sobreviventes se enlaçam,<br />

Os corpos hirtos adquirem uma fluidez,<br />

uma inocência, um perdão simples e macio...<br />

Havemos de amanhecer. o mun<strong>do</strong><br />

se tinge com tintas da antemanhã<br />

e o sangue que escorre é <strong>do</strong>ce, de tão necessário<br />

para cobrir tuas pálidas faces, aurora.<br />

repare que a última estrofe revela uma crença nos valores da liberdade: o<br />

novo dia surge em função <strong>do</strong>s esforços de to<strong>do</strong>s aqueles que lutaram contra as<br />

forças das trevas e da opressão. o novo dia surgirá para revelar que os esforços<br />

<strong>do</strong>s homens não foram inúteis, pois o dia triunfará sobre a noite.<br />

observe, também, que o desejo de transformar o mun<strong>do</strong> exterior pode<br />

representar também o desejo de modificação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> interior.<br />

no poema “lembrança <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> antigo” ocorre uma oposição entre<br />

presente e passa<strong>do</strong>:<br />

Lembrança <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> antigo<br />

Clara passeava no jardim com as crianças.<br />

o céu era verde sobre o grama<strong>do</strong>,<br />

a água era <strong>do</strong>urada sob as pontes,<br />

outros elementos eram azuis, róseos, alaranja<strong>do</strong>s,<br />

o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,<br />

a menina pisou a relva para pegar um pássaro,<br />

o mun<strong>do</strong> inteiro, a Alemanha, a China, tu<strong>do</strong> era tranquilo em re<strong>do</strong>r de Clara<br />

32


Aol-11<br />

33<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

As crianças olhavam para o céu: não era proibi<strong>do</strong>.<br />

A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. não havia perigo.<br />

os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.<br />

Clara tinha me<strong>do</strong> de perder o bonde das 11 horas,<br />

esperava cartas que custavam a chegar,<br />

nem sempre podia usar vesti<strong>do</strong> novo. mas passeava no jardim, pela manhã!!!<br />

Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!<br />

o poeta resgata, através da memória (daí o título “lembrança <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

antigo”), as qualidades <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> anteriores à guerra: um mun<strong>do</strong> sem perigo,<br />

tranquilo, com crianças passean<strong>do</strong> pelos jardins. Ao passa<strong>do</strong> de tranquilidade,<br />

entretanto, se contrapõe o presente ameaça<strong>do</strong>r, capaz de tolher toda liberdade<br />

“As crianças olhavam para o céu: não era proibi<strong>do</strong>.”<br />

Mais uma vez, a censura externa da política ditatorial aparece ligada, na<br />

consciência <strong>do</strong> poeta, à ideia de censura interior. o tempo passa<strong>do</strong> pode ser<br />

percebi<strong>do</strong> como o tempo anterior à formação da consciência, e por isso seria<br />

um tempo sem culpa. Já o tempo presente, o tempo da consciência, cerceia a<br />

liberdade e impede o sujeito de realizar-se.<br />

Elegia 1938<br />

trabalhas sem alegria para um mun<strong>do</strong> caduco,<br />

onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.<br />

Praticas laboriosamente os gestos universais,<br />

sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.<br />

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,<br />

e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.<br />

À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze<br />

ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.<br />

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra<br />

e sabes que, <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, os problemas te dispensam de morrer.<br />

Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina<br />

e te repões, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.<br />

Caminhas entre mortos e com eles conversas<br />

sobre coisas <strong>do</strong> tempo futuro e negócios <strong>do</strong> espírito.<br />

A literatura estragou tuas melhores horas de amor.<br />

Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.


Carlos drummond de Andrade<br />

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota<br />

e adiar para outro século a felicidade coletiva.<br />

Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição<br />

porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.<br />

elegia é o nome atribuí<strong>do</strong> a uma forma de composição poética em que se<br />

desenvolve um tema triste. 1938 é o ano que antecede à deflagração da Segunda<br />

Guerra Mundial e é também o ano <strong>do</strong> primeiro aniversário <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> novo.<br />

portanto, nada havia para ser louva<strong>do</strong>; pelo contrário, a época é de tristeza.<br />

nesse poema, como é comum a outros <strong>do</strong> autor, o eu lírico dirige-se a si<br />

mesmo como se fosse outro, empregan<strong>do</strong> a segunda pessoa <strong>do</strong> discurso, como<br />

artifício para expor o conflito entre a atitude de consciência e desejo de mudar o<br />

mun<strong>do</strong> e o sentimento de impotência para realizá-lo. tal procedimento é esclareci<strong>do</strong><br />

na última estrofe, no início <strong>do</strong> primeiro verso: “Coração orgulhoso, tens<br />

pressa de confessar a tua derrota”. Como a identificação só ocorre no fim <strong>do</strong><br />

poema, durante to<strong>do</strong> o texto o “tu” pode estar se referin<strong>do</strong> a qualquer pessoa<br />

que se encontre presa à alienação e ao conformismo.<br />

na primeira estrofe, o poeta refere-se ao operário que, sem nenhuma alegria,<br />

contribui para a manutenção de um mun<strong>do</strong> caduco, sen<strong>do</strong> capaz, o operário,<br />

de apenas sentir aquilo que é comum a to<strong>do</strong>s os seres, como calor, frio, carência<br />

(provocada pela falta de dinheiro e, portanto, privan<strong>do</strong>-o <strong>do</strong>s bens necessários<br />

à sobrevivência), fome e desejo sexual.<br />

na segunda estrofe, como contraste às atitudes <strong>do</strong> operário, surgem os<br />

“heróis”, que por serem heróis, estão livres <strong>do</strong>s flagelos <strong>do</strong> operário. Entretanto,<br />

os “heróis”, ante qualquer mudança da natureza, como a neblina, abrem<br />

seus guarda-chuvas de bronze, símbolo de proteção e de luxo, porque são<br />

guarda-chuvas de bronze. Assim, tanto os operários como os heróis parecem<br />

não ter nenhum preparo para enfrentar a realidade.<br />

na terceira estrofe, a ausência de total consciência aparece representada<br />

pela noite e pelo sono (“e sabes que, <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, os problemas te dispensam de<br />

morrer.”). Ainda na segunda estrofe, o “despertar” surge como algo terrível,<br />

porque ele é obriga<strong>do</strong> a despertar para a Grande Máquina, ou seja, ele desperta<br />

para o mun<strong>do</strong> capitalista, símbolo <strong>do</strong> que aprisiona e aliena o sujeito.<br />

na quarta estrofe, o operário se perde entre os “mortos”, ou seja, entre o que é<br />

incapaz de provocar mudanças, representa<strong>do</strong> por meio de discursos estéreis, como<br />

“o tempo futuro” e “os negócios <strong>do</strong> espírito”, e pela própria literatura alienante.<br />

na última estrofe, o amargo sentimento de frustração é devi<strong>do</strong> à incapacidade<br />

<strong>do</strong> Eu de dinamitar a ilha de Manhattan, símbolo <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

capitalista.<br />

34


Aol-11<br />

35<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

no penúltimo poema <strong>do</strong> livro, o poeta expõe, em 53 versos e nove estrofes,<br />

a sua percepção <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>:<br />

Mun<strong>do</strong> grande<br />

não, meu coração não é maior que o mun<strong>do</strong>.<br />

É muito menor.<br />

nele não cabem nem as minhas <strong>do</strong>res.<br />

Por isso gosto tanto de me contar.<br />

Por isso me dispo,<br />

por isso me grito,<br />

por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:<br />

preciso de to<strong>do</strong>s.<br />

Sim, meu coração é muito pequeno.<br />

Só agora vejo que nele não cabem os homens.<br />

os homens estão cá fora, estão na rua.<br />

A rua é enorme. maior, muito maior <strong>do</strong> que eu esperava.<br />

mas também a rua não cabe to<strong>do</strong>s os homens.<br />

A rua é menor que o mun<strong>do</strong>.<br />

o mun<strong>do</strong> é grande.<br />

tu sabes como é grande o mun<strong>do</strong>.<br />

Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.<br />

Viste as diferentes cores <strong>do</strong>s homens,<br />

as diferentes <strong>do</strong>res <strong>do</strong>s homens,<br />

sabes como é difícil sofrer tu<strong>do</strong> isso, amontoar tu<strong>do</strong> isso<br />

num só peito de homem... sem que ele estale.<br />

Fecha os olhos e esquece.<br />

escuta a água nos vidros,<br />

tão calma. não anuncia nada.<br />

entretanto escorre nas mãos<br />

tão calma! Vai inundan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>...<br />

Renascerão as cidades submersas?<br />

Os homens submersos – voltarão?<br />

meu coração não sabe.


Carlos drummond de Andrade<br />

estúpi<strong>do</strong>, ridículo e frágil é meu coração.<br />

Só agora descubro<br />

Como é triste ignorar certas coisas.<br />

(na solidão de indivíduo<br />

desaprendi a linguagem<br />

com que os homens se comunicam.)<br />

outrora escutei os anjos,<br />

as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.<br />

nunca escutei voz de gente.<br />

em verdade sou muito pobre.<br />

outrora viajei<br />

países imaginários, fáceis de habitar,<br />

ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocan<strong>do</strong> ao suicídio.<br />

meus amigos foram às ilhas.<br />

ilhas perdem o homem.<br />

entretanto alguns se salvaram e<br />

trouxeram a notícia<br />

de que o mun<strong>do</strong>, o grande mun<strong>do</strong> está crescen<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os dias,<br />

entre o fogo e o amor.<br />

então meu coração também pode crescer.<br />

entre o amor e o fogo,<br />

entre a vida e o fogo,<br />

meu coração cresce dez metros e explode<br />

– Ó vida futura! nós te criaremos.<br />

Inicialmente, o eu lírico expõe as certezas de suas limitações, afirman<strong>do</strong><br />

que o seu coração não é maior <strong>do</strong> que o mun<strong>do</strong>. O conflito entre Eu e o Mun<strong>do</strong><br />

aparece de forma explícita e o poeta se reconhece incapaz de sentir as <strong>do</strong>res<br />

<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. As próprias <strong>do</strong>res ultrapassam o limite de sua subjetividade e, por<br />

isso, ele necessita <strong>do</strong> outro (“preciso de to<strong>do</strong>s”) para dividir a sua <strong>do</strong>r.<br />

O contraste entre o mun<strong>do</strong> grande e o coração pequeno revela a dificuldade<br />

de relacionamento entre eles. A difícil relação é produto de um eu<br />

enclausura<strong>do</strong>, fecha<strong>do</strong> e que, por isso, desaprendeu a linguagem <strong>do</strong>s homens:<br />

36


Aol-11<br />

37<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

“(na solidão de indivíduo / desaprendi a linguagem / com que os homens<br />

se comunicam.)”. Mas também é produto de mun<strong>do</strong> desordena<strong>do</strong>, “torto”,<br />

“caduco”, que cresce com as injustiças, o que faz com seja difícil “...amontoar<br />

tu<strong>do</strong> isso / num só peito de homem...”.<br />

As desordens <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> se ampliam e o sentimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> poeta<br />

também; dessa contradição nasce, então, o desejo de refazer o mun<strong>do</strong> exterior e<br />

o mun<strong>do</strong> interior: “meu coração cresce dez metros e explode. / – ó vida futura!<br />

nós te criaremos”. A destruição <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> “caduco” leva também à destruição<br />

de uma consciência marcada pela culpa e pelo sentimento de impotência ante a<br />

realidade exterior. A vida futura torna-se uma projeção <strong>do</strong> desejo de uma vida<br />

sem culpa e sem injustiças; nessa vida futura utópica, o eu e o Mun<strong>do</strong> viveriam<br />

uma fase gloriosa de contradições extintas.<br />

em noturno à janela <strong>do</strong> apartamento, o poeta contempla, à noite, “um<br />

mun<strong>do</strong> enorme e para<strong>do</strong>”. O conflito <strong>do</strong> Eu com o Mun<strong>do</strong> aparece na metáfora<br />

“silencioso cubo de treva”, que representa tanto o apartamento como o<br />

interior <strong>do</strong> poeta; daí o conflito, pois ao pequeno e “silencioso cubo de treva”<br />

contrapõe-se um “mun<strong>do</strong> enorme e para<strong>do</strong>”. Fecha<strong>do</strong> em seu apartamento e<br />

em seu silêncio (“A alma severa se interroga / e logo se cala.”), o poeta não se<br />

envolve com o mun<strong>do</strong>, apenas recolhe-se ao sentimento de tristeza, pois não<br />

tem “nenhum pensamento de infância, / nem saudade nem vão propósito.”<br />

entre o eu e o Mun<strong>do</strong> há apenas a noite que os envolve. o poeta sente o mun<strong>do</strong><br />

como algo enorme e para<strong>do</strong>.<br />

Noturno à janela <strong>do</strong> apartamento<br />

Silencioso cubo de treva:<br />

um salto, e seria a morte.<br />

mas é apenas, sob o vento,<br />

a integração da noite.<br />

nenhum pensamento de infância,<br />

nem saudade nem vão propósito.<br />

Somente a contemplação<br />

de um mun<strong>do</strong> enorme e para<strong>do</strong>.<br />

A soma da vida é nula.<br />

mas a vida tem tal poder:<br />

na escuridão absoluta,<br />

com líqui<strong>do</strong>, circula.


Carlos drummond de Andrade<br />

Suicídio, riqueza, ciência...<br />

A alma severa se interroga<br />

e logo se cala. e não sabe<br />

se é noite, mar ou distância.<br />

triste farol da ilha Rasa<br />

CoMentárIo CrÍtICo<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> é um livro que oferece ao leitor a possibilidade de<br />

uma tomada de consciência sobre as ligações entre o que chamamos eu e o que<br />

chamamos Mun<strong>do</strong>. um e outro não se isolam. o sujeito traz consigo, como<br />

heranças, quer ele goste, quer ele não goste, quer ele saiba, quer ele não saiba,<br />

os reflexos <strong>do</strong> seu mun<strong>do</strong> de origem: seu jeito de falar, seus valores morais, seu<br />

silêncio, seus me<strong>do</strong>s, sua esperança, seu jeito de querer bem. tu<strong>do</strong> isso o compõe<br />

e tu<strong>do</strong> isso o faz sentir a realidade, o mun<strong>do</strong> em que está inseri<strong>do</strong>. dito de outra<br />

maneira, ele tem a sua forma pessoal de sentir o mun<strong>do</strong>.<br />

Carlos drummond de Andrade expõe ao leitor a forma como ele construiu<br />

sua percepção <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, daquilo que está fora dele próprio. Ao mesmo tempo,<br />

deixa transparecer ao leitor que o que está fora também está dentro, porque<br />

cada ser humano que compõe o mun<strong>do</strong> possui problemas semelhantes. Cada<br />

ser humano é obriga<strong>do</strong>, pouco a pouco, a desprender-se de seu mun<strong>do</strong> interior<br />

para descobrir o mun<strong>do</strong> exterior. nesse processo, mais ce<strong>do</strong> ou mais tarde, as<br />

pessoas acabam por descobrir que a esperança de melhorar o mun<strong>do</strong> é também<br />

a esperança de promover uma melhora de si próprio.<br />

38


Aol-11 5. exerCÍCIoS<br />

39<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

1.<br />

sobre <strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, de Carlos drummond<br />

de Andrade, é correto afirmar:<br />

a) trata-se de uma obra exclusivamente subjetiva,<br />

apresentan<strong>do</strong> uma visão idealizada <strong>do</strong><br />

brasil.<br />

b) “O sentimento de insuficiência <strong>do</strong> eu, entregue<br />

a si mesmo, leva-o a querer completar-se<br />

pela adesão ao próximo, substituin<strong>do</strong> os problemas pessoais pelos problemas<br />

de to<strong>do</strong>s.”<br />

c) A obra não apresenta o problema da incomunicabilidade, tanto no plano da<br />

existência quanto no plano da criação artística.<br />

d) trata-se <strong>do</strong> primeiro livro <strong>do</strong> poeta escrito em conformidade com as novas<br />

técnicas modernistas.<br />

e) no livro, o universo interior <strong>do</strong> poeta não se relaciona com o mun<strong>do</strong> exterior,<br />

pois o livro focaliza apenas os problemas sociais.<br />

texto para as questões 2 e 3.<br />

Mãos dadas<br />

não serei o poeta de um mun<strong>do</strong> caduco.<br />

também não cantarei o mun<strong>do</strong> futuro.<br />

estou preso à vida e olho meus companheiros.<br />

estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.<br />

entre eles, considero a enorme realidade.<br />

o presente é tão grande, não nos afastemos.<br />

não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.<br />

não serei o cantor de uma mulher, de uma história,<br />

não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,<br />

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,<br />

não fugirei para as ilhas nem serei rapta<strong>do</strong> por serafins.<br />

o tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,<br />

a vida presente.


Carlos drummond de Andrade<br />

2.<br />

no primeiro verso <strong>do</strong> poema, o adjetivo “caduco” significa, no contexto, que o<br />

mun<strong>do</strong>:<br />

a) é feito de justiças e estas estão se perden<strong>do</strong>.<br />

b) está deixan<strong>do</strong> de ser um lugar tranquilo.<br />

c) é um lugar velho e sem finalidade.<br />

d) é um lugar onde as normas não têm mais razão de ser.<br />

e) é um lugar que deve manter as normas para adquirir senti<strong>do</strong>.<br />

3.<br />

no contexto da obra <strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, o poema “Mãos dadas” representa:<br />

a) a impossibilidade de contato <strong>do</strong> poeta com os seus semelhantes.<br />

b) a normalidade <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e a solidariedade entre os homens.<br />

c) uma reação <strong>do</strong> poeta à ideia de um mun<strong>do</strong> “caduco” e o desejo de sair <strong>do</strong> seu<br />

universo interior para se completar com o próximo.<br />

d) a ausência de consciência <strong>do</strong> poeta <strong>do</strong>s problemas sociais, uma vez que ele<br />

deseja apenas falar sobre a sua solidão.<br />

e) a ausência de desejo de transformar o mun<strong>do</strong>, já que isso implicaria numa<br />

transformação <strong>do</strong> “eu” <strong>do</strong> poeta.<br />

texto para as questões 4 e 5.<br />

tenho apenas duas mãos<br />

e o sentimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />

mas estou cheio de escravos,<br />

minhas lembranças escorrem<br />

e o corpo transige<br />

na confluência <strong>do</strong> amor.<br />

Quan<strong>do</strong> me levantar, o céu<br />

estará morto e saquea<strong>do</strong>,<br />

eu mesmo estarei morto,<br />

morto meu desejo, morto<br />

o pântano sem acordes.<br />

os camaradas não disseram<br />

que havia uma guerra<br />

40


Aol-11<br />

e era necessário<br />

trazer fogo e alimento.<br />

Sinto-me disperso,<br />

anterior a fronteiras,<br />

humildemente vos peço<br />

que me per<strong>do</strong>eis.<br />

Quan<strong>do</strong> os corpos passarem,<br />

eu ficarei sozinho<br />

desfian<strong>do</strong> a recordação<br />

<strong>do</strong> sineiro, da viúva e <strong>do</strong> microcopista<br />

que habitavam a barraca<br />

e não foram encontra<strong>do</strong>s<br />

ao amanhecer.<br />

esse amanhecer<br />

mais noite que a noite.<br />

41<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

4.<br />

na primeira estrofe <strong>do</strong> poema, as duas mãos simbolizam:<br />

a) a incapacidade <strong>do</strong> poeta de sentir o mun<strong>do</strong>.<br />

b) a consciência <strong>do</strong> poeta que se estende em direção ao outro, no intuito de sentir<br />

o mun<strong>do</strong>.<br />

c) a própria poesia e o mecanismo da criação poética.<br />

d) o sentimento de culpa <strong>do</strong> poeta, devi<strong>do</strong> à sua incapacidade de compreender<br />

seu semelhante.<br />

e) o desejo <strong>do</strong> poeta de afastar-se <strong>do</strong> seu semelhante.<br />

5.<br />

Sobre o poema, pode-se afirmar que o eu lírico:<br />

a) sente-se prepara<strong>do</strong> para auxiliar os homens.<br />

b) pede perdão ao seus semelhantes porque não trouxe armas para o combate.<br />

c) pede perdão aos seus semelhantes porque não se sente capacita<strong>do</strong> para auxiliá-los.<br />

d) acredita na construção de um mun<strong>do</strong> melhor, o que pode ser confirma<strong>do</strong><br />

pelos <strong>do</strong>is versos finais <strong>do</strong> poema.<br />

e) sente que os homens não estão prepara<strong>do</strong>s para auxiliá-lo.


Carlos drummond de Andrade<br />

texto para a questão 6<br />

A noite dissolve os homens<br />

A noite desceu. Que noite!<br />

Já não enxergo meus irmãos.<br />

e nem tampouco os rumores<br />

que outrora me perturbavam.<br />

A noite desceu. nas casas,<br />

nas ruas onde se combate,<br />

nos campos desfaleci<strong>do</strong>s,<br />

a noite espalhou o me<strong>do</strong><br />

e a total incompreensão.<br />

A noite caiu. tremenda,<br />

sem esperança... os suspiros<br />

acusam a presença negra<br />

que paralisa os guerreiros.<br />

e o amor não abre caminho<br />

na noite. A noite é mortal,<br />

completa, sem reticências,<br />

a noite dissolve os homens,<br />

diz que é inútil sofrer,<br />

a noite dissolve as pátrias,<br />

apagou os almirantes<br />

cintilantes! nas suas fardas.<br />

A noite anoiteceu tu<strong>do</strong>...<br />

o mun<strong>do</strong> não tem remédio...<br />

os suicidas tinham razão.<br />

Aurora,<br />

entretanto eu te diviso, ainda tímida,<br />

inexperiente das luzes que vais acender<br />

e <strong>do</strong>s bens que repartirás com os homens.<br />

Sob o úmi<strong>do</strong> véu de raivas, queixas e humilhações,<br />

adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsan<strong>do</strong> a treva noturna.<br />

O triste mun<strong>do</strong> fascista se decompõe ao contato de teus de<strong>do</strong>s,<br />

42


Aol-11<br />

teus de<strong>do</strong>s frios, que ainda se não modelaram<br />

mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.<br />

minha fadiga encontrará em ti o seu ermo,<br />

minha carne estremece na certeza de tua vinda.<br />

o suor é um óleo suave, as mãos <strong>do</strong>s sobreviventes se enlaçam,<br />

Os corpos hirtos adquirem uma fluidez,<br />

uma inocência, um perdão simples e macio...<br />

Havemos de amanhecer. o mun<strong>do</strong><br />

se tinge com tintas da antemanhã<br />

e o sangue que escorre é <strong>do</strong>ce, de tão necessário<br />

para cobrir tuas pálidas faces, aurora.<br />

43<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

6.<br />

o poema “A noite dissolve os homens” pode ser dividi<strong>do</strong> em <strong>do</strong>is segmentos.<br />

a) Quais são os <strong>do</strong>is segmentos? Indique o verso que os inicia.<br />

b) Qual a visão <strong>do</strong> poeta em cada segmento?<br />

texto para as questões 7 e 8.<br />

Poema da necessidade<br />

É preciso casar João,<br />

é preciso suportar Antônio,<br />

é preciso odiar melquíades,<br />

é preciso substituir nós to<strong>do</strong>s.<br />

É preciso salvar o país,<br />

é preciso crer em deus,<br />

é preciso pagar as dívidas,<br />

É preciso comprar um rádio,<br />

É preciso esquecer fulana.<br />

É preciso estudar volapuque,<br />

é preciso estar sempre bêbe<strong>do</strong>,<br />

é preciso ler Baudelaire,<br />

é preciso colher as flores


Carlos drummond de Andrade<br />

de que rezam velhos autores.<br />

É preciso viver com os homens,<br />

É preciso não assassiná-los,<br />

é preciso ter mãos pálidas<br />

e anunciar o Fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

7.<br />

No poema anterior, que nome recebe a figura de linguagem que repete a mesma<br />

palavra ou expressão no início de cada verso?<br />

a) Anáfora<br />

b) Metáfora<br />

c) Metonímia<br />

d) pleonasmo<br />

e) Hipérbole<br />

8.<br />

toman<strong>do</strong> como referência a leitura da obra <strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, qual a explicação<br />

cabível ao último verso <strong>do</strong> “Poema da necessidade”?<br />

texto para as questões 9 e 10.<br />

Os ombros suportam o mun<strong>do</strong><br />

Chega um tempo em que não se diz mais: meu deus.<br />

tempo de absoluta depuração.<br />

tempo em que não se diz mais: meu amor.<br />

Porque o amor resultou inútil.<br />

e os olhos não choram.<br />

e as mãos tecem apenas o rude trabalho.<br />

e o coração está seco.<br />

em vão as mulheres batem à porta, não abrirás.<br />

Ficaste sozinho, a luz apagou-se,<br />

mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.<br />

És to<strong>do</strong> certeza, já não sabes sofrer.<br />

e nada esperas de teus inimigos.<br />

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?<br />

44


Aol-11<br />

teus ombros suportam o mun<strong>do</strong><br />

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.<br />

As guerras, as fomes, as discussões dentro <strong>do</strong>s edifícios<br />

provam apenas que a vida prossegue<br />

e nem to<strong>do</strong>s se libertaram ainda.<br />

Alguns, achan<strong>do</strong> bárbaro o espetáculo,<br />

preferiram (os delica<strong>do</strong>s) morrer.<br />

Chegou um tempo em que não adianta morrer.<br />

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.<br />

A vida apenas, sem mistificação.<br />

45<br />

<strong>Sentimento</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

9.<br />

Que relação pode ser estabelecida entre o primeiro e o último verso <strong>do</strong> poema?<br />

10.<br />

dê uma explicação para o título <strong>do</strong> poema.


Carlos drummond de Andrade<br />

gAbArIto<br />

1. b 2. d 3. C<br />

4. b 5. b<br />

6.<br />

a) o <strong>do</strong>is segmentos são compostos pela contraposição<br />

entre a noite e a aurora.<br />

o primeiro segmento começa com o primeiro<br />

verso da primeira estrofe: “A noite<br />

desceu! Que noite!”, enquanto o segun<strong>do</strong><br />

segmento começa com o primeiro verso da<br />

segunda estrofe: “Aurora”<br />

b) no primeiro segmento, o poeta manifesta<br />

uma visão pessimista, já que a “noite”,<br />

ou seja, a guerra, a política totalitária <strong>do</strong><br />

fascismo e sua repressão impossibilitam a<br />

liberdade <strong>do</strong> homem. A “noite” pode ser<br />

vista como a privação da luz, como metáfora<br />

da ausência de lucidez e de liberdade.<br />

7. A<br />

no segun<strong>do</strong> segmento, o poeta manifesta<br />

uma visão esperançosa em um mun<strong>do</strong><br />

melhor, mun<strong>do</strong> que virá com a “aurora”,<br />

com a queda <strong>do</strong>s regimes totalitários e com<br />

o resgate da liberdade<br />

46<br />

8. Em “e anunciar o FIM DO MUNDO”, último<br />

verso <strong>do</strong> “poema da necessidade”, o mun<strong>do</strong><br />

que o poeta deseja anunciar o fim é o mun<strong>do</strong><br />

das guerras e das injustiças sociais, o mun<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> isolamento e da privação. não se trata,<br />

portanto, de uma visão pessimista, mas de<br />

um desejo de mudar as regras que tornam<br />

o mun<strong>do</strong> “caduco”, como dirá o poeta em<br />

“Mãos dadas”, outro poema <strong>do</strong> livro.<br />

9. Pode-se estabelecer uma relação de afinidade,<br />

pois o primeiro verso “Chega um tempo<br />

em que não se diz mais: Meu deus” revela<br />

que nada mais surpreende o poeta, nada<br />

mais pode motivá-lo ou desmotivá-lo, e o<br />

último verso “A vida apenas, sem mistificação”<br />

apresenta a ideia da vida como algo<br />

mecânico, artificial e sem encantos, sem<br />

surpresas e sem motivação.<br />

10. Assim como na mitologia grega Atlas foi<br />

condena<strong>do</strong> por Zeus a carregar o mun<strong>do</strong><br />

nas costas, o poeta sente-se condena<strong>do</strong> a<br />

carregar o mun<strong>do</strong> nos seus ombros. A vida,<br />

sen<strong>do</strong> mecânica e despojada de prazeres,<br />

torna-se apenas uma obrigação, um far<strong>do</strong><br />

que o ser humano está condena<strong>do</strong> a carregar<br />

sobre seus ombros.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!