Brás, Bexiga e Barra Funda - COC Educação
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Análise de obrAs literáriAs<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
Antônio de<br />
AlcântArA MAchAdo<br />
Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700<br />
CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP<br />
www.sistemacoc.com.br
Análise de obrAs literáriAs<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
Antônio de<br />
AlcântArA MAchAdo<br />
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<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
Antônio de<br />
AlcântArA MAchAdo
Aol-11 1. Contexto soCial e HistÓRiCo<br />
7<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
na história do brasil, o período compreendido entre os anos de 1894 e 1930,<br />
aproximadamente, é chamado de república Velha, “a política do café com leite”,<br />
porque ocupava a Presidência da república ora um governo mineiro, ora um<br />
paulista, o que revela a importância dada à lavoura cafeeira somada à pecuária.<br />
A manutenção desse regime dependia, sobretudo, do equilíbrio entre a produção<br />
e a exportação de café. A elite agropecuária brasileira delegava ao estado o papel<br />
de comprador dos excedentes para garantir o preço em face das oscilações de<br />
mercado. exemplo típico dessa política foi o chamado acordo de taubaté, em 1906,<br />
segundo o qual são Paulo, rio de Janeiro e Minas Gerais se comprometiam a retirar<br />
do mercado os excedentes da produção cafeeira para garantir o nível dos preços.<br />
A sociedade brasileira, no início do século XX, sofreu transformações graças<br />
ao processo de urbanização e à vinda dos imigrantes europeus para a região<br />
centro-sul do país. entretanto, ao mesmo tempo em que principiou o processo de<br />
industrialização na região Sudeste, a mão de obra desqualificada dos ex-escravos<br />
foi marginalizada, deslocando-se para a periferia e para os morros; a cultura<br />
canavieira do nordeste entrou em declínio, pois ela não tinha como competir<br />
com o apoio dado pelo governo federal à “política do café com leite”.<br />
No final do século XIX e início do século XX, duas realidades coexistiam<br />
no brasil: de um lado, a urbanização da região centro-sul , com sua consequente<br />
industrialização, e, de outro, o atraso das regiões norte e nordeste. e um terceiro<br />
fator, ainda mais grave, somou-se a este quadro: as oligarquias rurais com<br />
seus arranjos políticos não representavam os novos estratos socioeconômicos.<br />
o resultado foi o surgimento de um quadro caótico que teve seu término com a<br />
chamada revolução de 30 e o estado novo de Getúlio Vargas.
antônio de alcântara Machado<br />
na bahia, tivemos a chamada Guerra de canudos; em Juazeiro, no ceará, o<br />
fenômeno do jagunço e o caso do padre cícero; os movimentos operários em são<br />
Paulo; a criação do Partido comunista; o tenentismo, que teve seu ápice na coluna<br />
Prestes, combatida por Arthur bernardes e Washington luís. É claro que esses<br />
conflitos ocorreram em tempos e locais diversos, entre 1894 e 1930, parecendo<br />
exprimir, às vezes, problemas bem localizados. entretanto, no conjunto, revelam<br />
a realidade de um país que se desenvolvia à custa de graves desequilíbrios.<br />
o estouro da bolsa de nova York em 1929 e o movimento tenentista colocaram<br />
fim à República Velha com a vitória na chamada Revolução de 30, dando início<br />
ao chamado estado novo ou era Vargas.<br />
Os intelectuais brasileiros da década de 1920 não ficaram alheios a essas<br />
transformações. em são Paulo e no rio de Janeiro, sobretudo, artistas e intelectuais<br />
em contato com as novas tendências do pensamento europeu, como o<br />
futurismo, o surrealismo, o dadaísmo, o expressionismo e o cubismo, prepararam<br />
um evento, a chamada semana de Arte Moderna, com o intuito de romper com a<br />
mentalidade conservadora, representada na literatura pelos poetas parnasianos<br />
e na política pelas oligarquias rurais.<br />
de modo geral, a maneira encontrada pelos artistas da década de 1920 para<br />
combater o formalismo parnasiano e a mentalidade acadêmica foi a valorização<br />
do irracionalismo. Mário de Andrade com a sua poética do “desvairismo”, publicada<br />
no Prefácio interessantíssimo, de Pauliceia desvairada, Manuel bandeira com<br />
sua teoria do “alumbramento”, a poesia como revelação, isto é, como epifania, e<br />
toda a obra de oswald de Andrade são três bons exemplos de atitude artística e<br />
intelectual que procurava subverter a ordem existente.<br />
em 1927, Antônio de Alcântara Machado publicou <strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong><br />
<strong>Funda</strong>, apresentando, numa linguagem próxima do jornalismo, os contos e as<br />
crônicas da vida de um novo brasileiro, o imigrante italiano, e a sua inserção nas<br />
transformações da paisagem urbana paulista.<br />
A década de 1930 marcou a ascensão dos grandes ditadores da primeira<br />
metade do século: hitler na Alemanha, Mussolini na itália e, no brasil, o governo<br />
de Getúlio Vargas.<br />
em literatura, o período entre 1930 e 1945 foi o momento do posicionamento<br />
ideológico, político e social dos intelectuais brasileiros. A rebeldia estética da<br />
primeira fase modernista cedeu lugar à literatura socialmente comprometida,<br />
sobretudo no que diz respeito à prosa de ficção. Foi o momento do romance<br />
regionalista de Graciliano ramos, José lins do rego e Jorge Amado e da poesia<br />
que se ergueu para defender a dignidade humana, como foi o caso de a rosa do<br />
povo, de carlos drummond de Andrade, publicado em 1945.<br />
8
Aol-11 2. estilo liteRáRio da époCa<br />
9<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong>
antônio de alcântara Machado<br />
o movimento modernista brasileiro teve como marco inicial a semana<br />
de Arte Moderna de 1922. em fevereiro desse ano, por sugestão do pintor<br />
di cavalcanti, um grupo paulista, formado por Mário de Andrade, oswald de<br />
Andrade, Paulo Prado, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia e outros, juntamente<br />
com escritores mais jovens do rio de Janeiro, como ronald de carvalho,<br />
renato de Almeida e alguns mais, promoveu no teatro Municipal de são Paulo<br />
a chamada semana de Arte Moderna, com exposição de pintura e escultura,<br />
concertos, conferências e declamações.<br />
o Modernismo brasileiro começou pelas artes plásticas. em janeiro de 1917,<br />
a pintora paulista Anita Malfatti realizou em São Paulo uma exposição de pintura,<br />
na qual, além dos seus quadros, marcados por influências do expressionismo<br />
alemão, apresentava também alguns quadros cubistas de pintores estrangeiros.<br />
A exposição criou polêmica, ganhando a simpatia de uns e a antipatia de outros.<br />
Monteiro lobato escreveu um artigo cujo título era Paranoia ou mistificação?,<br />
negando valor artístico aos quadros. A exposição, entretanto, agradou a Mário<br />
de Andrade e a oswald de Andrade.<br />
em 1920, oswald de Andrade conheceu o escultor brecheret, cuja arte<br />
refletia influência dos movimentos da vanguarda europeia, e, em novembro<br />
desse ano, publicou um artigo intitulado O meu poeta futurista, citando versos<br />
de Mário de Andrade do livro Pauliceia desvairada, que só viria a ser publicado<br />
em 1922.<br />
de modo geral, a literatura dos modernistas, na chamada fase heroica do<br />
movimento ou primeira fase modernista, entre 1922 e 1930, provocou a subversão<br />
dos gêneros literários. A poesia aproximou-se da prosa e esta adotou processos<br />
de elaboração da linguagem poética. houve uma aproximação dos diversos<br />
ismos europeus, os movimentos de vanguarda que procuravam romper com as<br />
normas acadêmicas, como o expressionismo, o cubismo, o dadaísmo, o futurismo<br />
e o surrealismo.<br />
A poesia abandonou as formas poéticas consagradas, como o verso com<br />
métrica e rima, bastante praticado pelos poetas parnasianos. Aderiu à linguagem<br />
coloquial, ao verso livre, aos temas do cotidiano, ao humor e à ironia. os<br />
modernistas desejavam provar que a poesia estava na essência do que é dito e<br />
na sugestão ou no choque das palavras escolhidas, não nos recursos formais.<br />
na fase mais combativa do Modernismo brasileiro, de 1922 a 1930, a prosa<br />
sofreu transformações significativas. Os períodos tornaram-se curtos, fragmentados,<br />
com espaços brancos na composição tipográfica e na própria sequência do<br />
discurso, apresentando a realidade dividida em blocos sugestivos, cuja unificação<br />
exigia do leitor uma adequação aos novos processos construtivos, uma vez<br />
que dispensava a concatenação lógica. Um bom exemplo é <strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong><br />
<strong>Funda</strong>, de Alcântara Machado. A aliteração (repetição dos sons das consoantes)<br />
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<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
e a criação de neologismos passaram a integrar a linguagem da prosa. o melhor<br />
exemplo dessa técnica encontra-se em Memórias sentimentais de João Miramar, de<br />
oswald de Andrade.<br />
de 1930, data da publicação de alguma poesia, de carlos drummond de<br />
Andrade, a 1945, ano de morte de Mário de Andrade, temos o que se convencionou<br />
chamar de a segunda fase do modernismo. As grandes experiências técnicas<br />
com a linguagem cederam importância aos temas sociais. surgiu uma literatura<br />
que procurava denunciar certos aspectos da realidade brasileira, sobretudo na<br />
prosa. Aí encontram-se os romances de Graciliano ramos, como Vida secas (1938) e<br />
s. Bernardo (1934), e de Jorge Amado, Capitães da areia (1937), Terras do sem-fim (1942),<br />
entre outros.<br />
de 1945 em diante, tivemos a chamada terceira fase modernista. Alguns<br />
estudiosos delimitam essa fase entre 1945, ano da morte de Mário de Andrade,<br />
e 1964, ano do golpe militar. A linguagem era empregada como instrumento<br />
da busca do ser, sobretudo em João Guimarães rosa, sagarana (1946), e em<br />
clarice lispector, Perto do coração selvagem (1944), A paixão segundo G.H. (1964) e<br />
a hora da estrela (1977).<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong>, de Antônio de Alcântara Machado, pertence à<br />
primeira fase do movimento modernista. numa prosa objetiva, leve e bem-humorada,<br />
próxima da linguagem jornalística, retrata o cotidiano dos imigrantes<br />
italianos nos bairros que dão título à obra.
antônio de alcântara Machado<br />
3. o aUtoR<br />
alCântaRa MaCHado<br />
Antônio castilho de Alcântara Machado d’oliveira nasceu em são Paulo,<br />
em 25 de maio de 1901, numa família ilustre, cujas origens remontavam à época<br />
das capitanias hereditárias. Formou-se em Direito na Faculdade de Direito de<br />
são Paulo em 1923. Aos 19 anos, estreou como crítico literário e passou, a partir<br />
de então, a militar na imprensa, no Jornal do Comércio, como redator-chefe.<br />
em 1925, Alcântara Machado viajou para a europa: lisboa, Paris, londres,<br />
itália e espanha, de onde enviou crônicas de viagem e reportagens que mais<br />
tarde comporiam seu livro de estreia Pathé Baby (Pathé baby era o nome de uma<br />
máquina de filmar), publicado em 1926 e prefaciado por Oswald de Andrade.<br />
Além de colaborador de diversos jornais, comandou a revista Terra roxa<br />
e outras terras, em 1926; a revista de antropofagia, em 1928; e a revista nova, em<br />
1931, todas ligadas ao Modernismo. em 1927, publicou seu mais importante<br />
e conhecido trabalho, <strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong>, e, em 1928, Laranja da China<br />
foi editado.<br />
A partir de 1961, <strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong> foi editado juntamente com<br />
Laranja da China, com o título de novelas paulistanas.<br />
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Aol-11<br />
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<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
em 1929, foi publicada sua última obra em vida, anchieta na capitania de<br />
São Vicente, merecedora do Prêmio capistrano de Abreu. de outubro de 1929 a<br />
junho de 1930, viajou à europa e, ao retornar ao brasil, engajou-se como jornalista<br />
e radialista na revolução de 1932. no ano seguinte, mudou-se para o rio de<br />
Janeiro e, em 1934, elegeu-se deputado federal pelo Partido constitucionalista<br />
de são Paulo, mas não chegou a assumir, vindo a falecer aos 34 anos vítima de<br />
uma apendicite, no dia 14 de abril de 1935.<br />
CRonologia das obRas<br />
1926 – Pathé-Baby<br />
1927 – <strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
1928 – Laranja da China<br />
1928 – Anchieta na capitania de São Vicente<br />
1929 – Comemoração de Brasílio Machado<br />
Mana Maria, publicada postumamente em 1936<br />
Cavaquinho e saxofone, publicada postumamente em 1940
antônio de alcântara Machado<br />
4. a obRa<br />
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Aol-11<br />
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<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong> – notícias de São Paulo contém onze contos (que também<br />
podem ser crônicas) narrados em terceira pessoa por um narrador onisciente<br />
que capta apenas a superfície do mundo das personagens que focaliza, procurando<br />
deixar um registro desse mundo e das suas impressões como observador.<br />
com o intuito de registrar o modo de vida do imigrante italiano e o contexto<br />
urbano em que ele vive, o narrador procura reproduzir diretamente a fala<br />
das personagens (discurso direto), apresentando suas falas em italiano puro<br />
(“_ evviva il campeonissimo!”) e as fusões do italiano com o português, o chamado<br />
português macarrônico.<br />
integrado às propostas modernistas, Alcântara Machado emprega uma<br />
série de recursos oriundos da linguagem jornalística na composição de seus<br />
contos, como o uso de tipos em caixa-alta para destacar o aumento do som da<br />
voz: “solt´o rojão! rebent´a bomba! Pum! corinthians!”.<br />
outro recurso modernista é o uso de parênteses para indicar a interpolação<br />
de um grito distante num determinado contexto (“spegni la luce! súbito!<br />
Mi vuole próprio rovinare questa principessa!).<br />
Quanto ao espaço das narrativas, embora sejam citados pontos considerados<br />
“nobres” da cidade de são Paulo, as narrativas se passam nos bairros que<br />
dão título à obra.<br />
o tempo das narrativas é cronológico e normalmente breve. Mesmo em<br />
contos como “nacionalidade”, que aborda o abrasileiramento de tranquillo<br />
Zampinnetti desde a infância até o bacharelado do seu filho mais novo, a indicação<br />
da passagem do tempo é sugerida por espaço em branco entre as partes<br />
da narrativa (recurso, aliás, empregado em vários contos), o que revela o esforço<br />
do narrador em ser o mais objetivo possível.<br />
o autor tem uma nítida preocupação em caracterizar a época, o que pode<br />
ser evidenciado nos vários registros que faz das marcas de produtos, como<br />
goiabada Pesqueira, refrigerante si-si, cigarros bentevi, jornal Fanfulla e gazeta,<br />
veículos Ford, Buick, Lancia, entre outros.<br />
As personagens são retratadas em seu cotidiano, sem profundidade<br />
psicológica. suas imagens surgem, normalmente, em decorrência de fatos e dados<br />
concretos, isto é, o autor não as descreve, deixa que os fatos falem por elas.<br />
o livro principia por um prefácio que o autor chama de “Artigo de fundo”,<br />
em que deixa claros sua formação e seu propósito jornalístico.<br />
aRtigo de FUndo<br />
assim como quem nasce homem de bem deve ter a fronte altiva, quem nasce jornal<br />
deve ter artigo de fundo. a fachada explica o resto.<br />
Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram<br />
notícias. E este prefácio, portanto, também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo.
antônio de alcântara Machado<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong> é o órgão dos ítalo-brasileiros de São Paulo.<br />
Durante muito tempo a nacionalidade viveu da mescla de três raças que os poetas<br />
xingaram de tristes: as três raças tristes.<br />
a primeira, as caravelas descobridoras encontraram aqui comendo gente e desdenhosa<br />
de “mostrar suas vergonhas”. a segunda veio nas caravelas. Logo os machos<br />
sacudidos desta se enamoraram das moças “bem gentis” daquela, que tinham cabelos<br />
“mui pretos, compridos pelas espadoas”.<br />
e nasceram os primeiros mamalucos.<br />
a terceira veio nos porões dos navios negreiros trabalhar o solo e servir a gente.<br />
Trazendo outras moças gentis, mucamas, mucambas, munibandas, macumas.<br />
e nasceram os segundos mamalucos.<br />
E os mamalucos das duas fornadas deram o empurrão inicial no Brasil.<br />
O colosso começou a rolar.<br />
Então os transatlânticos trouxeram da Europa outras raças aventureiras. Entre<br />
elas uma alegre que pisou na terra paulista cantando e na terra brotou e se alastrou como<br />
aquela planta também imigrante que há duzentos anos veio fundar a riqueza brasileira.<br />
do consórcio da gente imigrante com o ambiente, do consórcio da gente imigrante<br />
com a indígena nasceram os novos mamalucos.<br />
nasceram os intalianinhos.<br />
O gaetaninho.<br />
a Carmela.<br />
Brasileiros e paulistas. até bandeirantes.<br />
e o colosso continuou rolando.<br />
No começo a arrogância indígena perguntou meio zangada:<br />
carcamano pé de chumbo<br />
calcanhar de frigideira<br />
Quem te deu a confiança<br />
de casar com brasileira?<br />
O pé de chumbo poderia responder tirando o cachimbo da boca e cuspindo de lado:<br />
a brasileira, per bacco!<br />
Mas não disse nada. Adaptou-se. Trabalhou. Integrou-se. Prosperou.<br />
E o negro violeiro cantou assim:<br />
italiano grita<br />
brasileiro fala<br />
Viva o brasil<br />
e a bandeira da itália!<br />
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Aol-11<br />
17<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong>, como membro da livre imprensa que é, tenta<br />
fixar tão somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana<br />
desses novos mestiços nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais nada. Notícia.<br />
Só. Não tem partido nem ideal. Não comenta. Não discute. Não aprofunda.<br />
Principalmente não aprofunda. Em suas colunas não se encontra uma única linha<br />
de doutrina. Tudo são fatos diversos. Acontecimentos de crônica urbana. Episódios de<br />
rua. O aspecto étnico-social dessa novíssima raça de gigantes encontrará amanhã o seu<br />
historiador. E será então analisado e pesado num livro.<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong> não é um livro.<br />
Inscrevendo em sua coluna de honra os nomes de alguns ítalo-brasileiros ilustres,<br />
este jornal rende uma homenagem à força e às virtudes da nova fornada mamaluca. São<br />
nomes de literatos, jornalistas, cientistas, políticos, esportistas, artistas e industriais.<br />
Todos eles figuram entre os que impulsionam e nobilitam neste momento a vida espiritual<br />
e material de São Paulo.<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong> não é uma sátira.<br />
A redação<br />
A intenção explícita, portanto, é a de registrar cenas e episódios dos bairros<br />
pobres e operários habitados pelos imigrantes italianos.<br />
Feito o prefácio, vem o primeiro conto do livro, talvez o mais conhecido,<br />
a célebre estória de Gaetaninho.<br />
gaetaninHo<br />
– xi, gaetaninho, como é bom!<br />
Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele<br />
não viu o Ford.<br />
O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.<br />
– eh! gaetaninho! Vem prá dentro.<br />
Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu<br />
a mãe e viu o chinelo.<br />
– subito!<br />
Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. estudando o terreno.<br />
Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu<br />
tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro.<br />
Êta salame de mestre!<br />
ali na rua Oriente, a ralé quando muito andava de bonde. de automóvel ou carro<br />
só mesmo em dia de enterro. de enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de<br />
Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.<br />
O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como?<br />
Atrás da tia Peronetta que se mudava para o Araçá*. Assim também não era vantagem.<br />
* cemitério do Araçá.
antônio de alcântara Machado<br />
Mas se era o único meio? Paciência.<br />
Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.<br />
Que beleza, rapaz! na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a tia<br />
Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos<br />
olhos. depois ele. na boleia do carro. ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e<br />
o gorro branco onde se lia: Encouraçado São Paulo. Não. Ficava mais bonito de roupa<br />
marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas<br />
pretas segurando as meias. Que beleza rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais<br />
velhos (um de gravata vermelha outro de gravata verde) e o padrinho seu salomone.<br />
Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro.<br />
sobretudo admirando o gaetaninho.<br />
Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O<br />
desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho só.<br />
gaetaninho ia berrar, mas a tia Filomena com a mania de cantar o “ahi, Mari!”<br />
todas as manhãs o acordou.<br />
Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.<br />
Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de gaetaninho.<br />
Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família alarmada com o agouro tratou<br />
logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou,<br />
matutou, e escolheu o acendedor da Companhia de gás, seu rubino, que uma vez lhe<br />
deu um cocre danado de doído.<br />
Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade<br />
quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva por não haverem logo<br />
adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.<br />
O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava<br />
ligando.<br />
– Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?<br />
– Meu pai deu uma vez na cara dele.<br />
– Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!<br />
O Vicente protestou indignado:<br />
– Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!<br />
Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.<br />
O nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco<br />
arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou<br />
pronto para a defesa.<br />
– Passa pro Beppino!<br />
Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. ela cobriu o<br />
guardião sardento e foi parar no meio da rua.<br />
– Vá dar tiro no inferno!<br />
– Cala a boca, palestrino!<br />
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<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
– Traga a bola!<br />
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e<br />
matou.<br />
no bonde vinha o pai do gaetaninho.<br />
A gurizada assustada espalhou a notícia na noite.<br />
– Sabe o Gaetaninho?<br />
– Que é que tem?<br />
– amassou o bonde!<br />
A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.<br />
Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da rua do Oriente e gaetaninho<br />
não ia na boleia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de<br />
um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas,<br />
mas não levava a palhetinha.<br />
Quem na boleia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho<br />
que feria a vista da gente era o Beppino.<br />
CoMentáRio<br />
Gaetaninho é o típico menino de família pobre; joga futebol na rua, brinca<br />
em ruas movimentadas e, por isso mesmo, a mãe o chama para dentro de casa,<br />
ameaçando uma surra. Gaetaninho entra e consegue desviar-se, num jogo de<br />
corpo, da chinelada da mãe.<br />
o menino sonha em passear de automóvel, o que, nas famílias pobres só ocorria<br />
por ocasião de casamento ou de enterro. ele chega a sonhar com a morte de sua tia<br />
Filomena , motivo que lhe proporcionaria o passeio. Relata o sonho à tia, que fica possessa,<br />
e desperta o palpite dos irmãos para o jogo do bicho. eles jogam no elefante.<br />
brincando novamente na rua, Gaetaninho faz inveja a beppino, porque<br />
passearia de carro no dia seguinte, por ocasião do velório de um amigo de seu<br />
pai. distraidamente, vai apanhar uma bola e é atropelado e morto por um bonde.<br />
no bonde, vinha o pai de Gaetaninho.<br />
A notícia corre e o enterro é preparado. no dia seguinte, Gaetaninho faz<br />
seu passeio, mas como defunto. beppino é quem usufrui do passeio.<br />
A morte de Gaetaninho é apresentada como um fato corriqueiro dos bairros<br />
pobres. o narrador procura registrar o fato sem interferências emotivas. Aliás,<br />
o que contribui para tornar a cena dramática é o fato de o pai do menino estar<br />
no bonde. o narrador, entretanto, apenas registra o fato, sem apelar para os<br />
dramas subjetivos. É a sequência dos fatos que imprime ao conto o seu ritmo; a<br />
objetividade do relato causa certo impacto no leitor porque a justaposição dos<br />
fatos (o atropelamento e a presença do pai ) fala por si, isto é, constrói um quadro,<br />
melhor seria dizer um retrato, da situação. Ao observar este retrato, o leitor<br />
sente o impacto da cena, captando as grandes tristezas e as alegrias miúdas do<br />
cotidiano dos imigrantes italianos do começo do século.
antônio de alcântara Machado<br />
CaRMela<br />
o cotidiano de uma operária é o tema deste conto.<br />
dezoito horas e meia. nem mais um minuto porque a madama respeita as horas<br />
de trabalho. Carmela sai da oficina. Bianca vem ao seu lado.<br />
A Rua Barão de Itapetininga é um depósito sarapintado de automóveis gritadores.<br />
As casas de modas (AO CHIC PARISIENSE, SÃO PAULO-PARIS, PARIS ELEGAN-<br />
TE) despejam nas calçadas as costureirinhas que riem, falam alto, balançam os quadris<br />
como gangorras.<br />
– espia se ele está na esquina.<br />
– Não está.<br />
– Então está na Praça da República. Aqui tem muita gente mesmo.<br />
– Que fiteiro!<br />
O vestido de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde. Braços nus, colo nu, joelhos<br />
de fora. sapatinhos verdes. Bago de uva Marengo maduro para os lábios dos amadores.<br />
– ai que rico corpinho!<br />
– Não se enxerga, seu cafajeste? Português sem educação!<br />
Abre a bolsa e espreita o espelhinho quebrado, que reflete a boca reluzente de carmim<br />
primeiro, depois o nariz chumbeva, depois os fiapos de sobrancelha, por último as bolas<br />
de metal branco na ponta das orelhas descobertas.<br />
Bianca por ser estrábica e feia é a sentinela da companheira.<br />
– Olha o automóvel do outro dia.<br />
– O caixa-d’óculos?<br />
– Com uma bruta luva vermelha.<br />
O caixa-d’óculos para o Buick de propósito na esquina da praça.<br />
– Pode passar.<br />
– Muito obrigada.<br />
Passa na pontinha dos pés. Cabeça baixa. Toda nervosa.<br />
– Não vira para trás, Bianca. Escandalosa!<br />
diante de álvares de azevedo (ou Fagundes Varela) o Ângelo Cuoco de sapatos<br />
vermelhos de ponta afilada, meias brancas, gravatinha deste tamanhinho, chapéu à Rodolfo<br />
Valentino, paletó de um botão só, espera há muito com os olhos escangalhados de<br />
inspecionar a Rua Barão de Itapetininga.<br />
– O Ângelo!<br />
– dê o fora.<br />
Bianca retarda o passo.<br />
Carmela continua no mesmo. Como se não houvesse nada. E o Ângelo junta-se a<br />
ela. Também como se não houvesse nada. Só que sorri.<br />
20
Aol-11<br />
21<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
– Já acabou o romance?<br />
– A madama não deixa a gente ler na oficina.<br />
– É? Sei. Amanhã tem baile na Sociedade.<br />
– Que bruta novidade, Ângelo! Tem todo domingo. Não segura no braço!<br />
– enjoada!<br />
na rua do arouche o Buick de novo. Passa. repassa. Torna a passar.<br />
– Quem é aquele cara?<br />
– Como é que eu hei de saber?<br />
– Você dá confiança para qualquer um. Nunca vi, puxa! Não olha pra ele que eu<br />
armo já uma encrenca!<br />
Bianca rói as unhas. Vinte metros atrás. Os freios do Buick guincham nas rodas e<br />
os pneumáticos deslizam rente à calçada. E estacam.<br />
– Boa tarde, belezinha...<br />
– Quem? Eu?<br />
– Por que não? Você mesma...<br />
Bianca rói as unhas com apetite.<br />
– Diga uma cousa. Onde mora a sua companheira?<br />
– ao lado de minha casa.<br />
– Onde é sua casa?<br />
– Não é de sua conta.<br />
O caixa-d’óculos não se zanga. Nem se atrapalha. É um traquejado.<br />
– Responda direitinho. Não faça assim. Diga onde mora.<br />
– na rua Lopes de Oliveira. numa vila. Vila Margarida nº 4. Carmela mora com<br />
a família dela no 5.<br />
– Ah! Chama-se Carmela... Lindo nome. Você é capaz de lhe dar um recado?<br />
Bianca rói as unhas.<br />
– Diga a ela que eu a espero amanhã de noite, às oito horas, na rua... na.... atrás da<br />
Igreja de Santa Cecília. Mas que ela vá sozinha, hein? Sem você. O barbeirinho também<br />
pode ficar em casa.<br />
– Barbeirinho nada! entregador da Casa Clark!<br />
– É a mesma cousa. Não se esqueça do recado. Amanhã, às oito horas, atrás da igreja.<br />
– Vá saindo que pode vir gente conhecida.<br />
Também o grilo já havia apitado.<br />
– Ele falou com você. Pensa que eu não vi?<br />
O Ângelo também viu. Ficou danado.<br />
– Que me importa? O caixa-d’óculos disse que espera você amanhã de noite, às<br />
oito horas, no Largo Santa Cecília. Atrás da igreja.
antônio de alcântara Machado<br />
– Que é que ele pensa? Eu não sou dessas. Eu não!<br />
– Que fita, Nossa Senhora! Ele gosta de você, sua boba.<br />
– Ele disse?<br />
– gosta pra burro.<br />
– Não vou na onda.<br />
– Que fingida que você é!<br />
– ciao.<br />
– ciao.<br />
Antes de se estender ao lado da irmãzinha na cama de ferro, Carmela abre o romance<br />
à luz da lâmpada de 16 velas: Joana a desgraçada ou A odisseia de uma Virgem,<br />
fascículo 2º.<br />
Percorre logo as gravuras. Umas teteias. A da capa então é linda mesmo. No fundo<br />
o imponente castelo. No primeiro plano a íngreme ladeira que conduz ao castelo. Descendo<br />
a ladeira numa disparada louca o fogoso ginete. Montado no ginete o apaixonado caçula do<br />
castelão inimigo de capacete prateado com plumas brancas. E atravessada no cachaço do<br />
ginete a formosa donzela desmaiada entregando ao vento os cabelos cor de carambola.<br />
Quando Carmela reparando bem começa a verificar que o castelo não é mais um<br />
castelo mas uma igreja, o tripeiro Giuseppe Santini berra no corredor:<br />
– spegni la luce! subito! Mi vuole proprio rovinare questa principessa!<br />
e – raatá! – uma cusparada daquelas.<br />
– Eu só vou até a esquina da Alameda Glette. Já vou avisando.<br />
– Trouxa. Que tem?<br />
No Largo Santa Cecília atrás da igreja o caixa-d’óculos, sem tirar as mãos do<br />
volante, insiste pela segunda vez:<br />
– Uma voltinha de cinco minutos só... Ninguém nos verá. Você verá. Não seja<br />
má. suba aqui.<br />
Carmela olha primeiro a ponta do sapato esquerdo, depois a do direito, depois a do<br />
esquerdo de novo, depois a do direito outra vez, levantando e descendo a cinta. Bianca<br />
rói as unhas.<br />
– só com a Bianca...<br />
– Não. Para quê? Venha você sozinha.<br />
– Sem a Bianca não vou.<br />
– Está bem. Não vale a pena brigar por isso.<br />
– Você vem aqui na frente comigo. a Bianca senta atrás.<br />
– Mas cinco minutos só. O senhor falou...<br />
– Não precisa me chamar de senhor. Entrem depressa.<br />
depressa o Buick sobe a rua Viridiana.<br />
só para no Jardim américa.<br />
22
Aol-11<br />
23<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
Bianca no domingo seguinte encontra Carmela raspando a penugenzinha que lhe<br />
une as sobrancelhas com a navalha denticulada do tripeiro giuseppe santini.<br />
– Xi, quanta cousa pra ficar bonita!<br />
– ah! Bianca, eu quero dizer uma cousa pra você.<br />
– Que é?<br />
– Você hoje não vai com a gente no automóvel. Foi ele que disse.<br />
– Pirata!<br />
– Pirata por quê? Você está ficando boba, Bianca.<br />
– É. Eu sei porquê. Piratão. E você, Carmela, sim senhora! Por isso é que o Ângelo<br />
me disse que você está ficando mesmo uma vaca.<br />
– Ele disse assim? Eu quebro a cara dele, hein? Não me conhece.<br />
– Pode ser, não é? Mas namorado de máquina não dá certo mesmo.<br />
saem à rua suja de negras e cascas de amendoim. no degrau de cimento ao lado<br />
da mulher giuseppe santini torcendo a belezinha do queixo cospe e cachimba, cachimba<br />
e cospe.<br />
– Vamos dar uma volta até a Rua das Palmeiras, Bianca?<br />
– Andiamo.<br />
depois que os seus olhos cheios de estrabismo e despeito vêem a lanterninha traseira<br />
do Buick desaparecer, Bianca resolve dar um giro pelo bairro. imaginando cousas.<br />
Roendo as unhas. Nervosíssima.<br />
Logo encontra a ernestina. Conta tudo à ernestina.<br />
– E o Ângelo, Bianca?<br />
– O Ângelo? O Ângelo é outra cousa. É pra casar.<br />
– ahm!...<br />
CoMentáRio<br />
o conto principia com um retrato em branco e preto da cidade de são Paulo às<br />
seis e meia da tarde, num bairro operário, no início do século XX, no momento em<br />
que os operários estão deixando a fábrica. o narrador faz questão de mencionar o<br />
nome das ruas e das lojas da época, usando como pretexto o momento em que duas<br />
costureiras deixam a fábrica. carmela, em companhia de sua amiga bianca, arrumase<br />
para encontrar o namorado ângelo cuoco, entregador da casa clark.<br />
como era de costume, os homens assediavam as moças que saíam da fábrica.<br />
Um sujeito num automóvel buick tenta conquistar carmela. Quando ela<br />
se encontra com o namorado, este arma uma cena de ciúme.<br />
bianca, que havia deixado a amiga a sós com o namorado e seguia pela<br />
calçada logo atrás deles, conversa com o motorista do buick, que deseja marcar<br />
um encontro com carmela. bianca acaba por lhe fornecer o nome e o endereço<br />
da amiga, marcando, inclusive, um encontro entre eles para o dia seguinte.
antônio de alcântara Machado<br />
Ao saber do encontro que bianca havia marcado, carmela diz à amiga que<br />
não irá comparecer. À noite, no seu quarto, lê um folhetim que alimenta suas<br />
fantasias românticas. Fantasias, aliás, que são interrompidas por um grito do<br />
pai, que lhe ordena em italiano que apague a luz.<br />
no dia seguinte, vai ao encontro do motorista do buick, mas leva sua<br />
amiga junto.<br />
no domingo seguinte, dispensa a companhia de bianca e vai sozinha para<br />
o encontro. As duas, entretanto, saem juntas de casa para que os pais de carmela<br />
não desconfiem de nada.<br />
sozinha, bianca relata o episódio a uma outra amiga, explicando que o<br />
ângelo “é pra casar”.<br />
o objetivo do conto é registrar aspectos da paisagem urbana dos bairros<br />
italianos de são Paulo. cerca de dez nomes de lojas e ruas são mencionados no<br />
conto, o que permite ao leitor uma visualização do cenário por onde carmela<br />
passeia. o deslocamento da personagem pelo cenário conduz o leitor a um passeio<br />
pelas ruas da antiga cidade de são Paulo. o narrador preocupa-se em registrar<br />
os elementos que compõem a paisagem, mas preocupa-se também em registrar,<br />
ainda que superficialmente, as aspirações e os preconceitos das personagens. A<br />
linguagem direta das personagens, ora em português ora em italiano, confere ao<br />
conto certa ironia, porque sugere o caráter temperamental que seria típico dos<br />
imigrantes italianos, segundo o narrador.<br />
tiRo de gUeRRa nº 35<br />
o terceiro conto aborda a vida e o patriotismo ingênuo de Aristodemo<br />
Guggiani, que no “grupo escolar da <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong> aprendeu em três anos a roubar<br />
com perfeição no jogo e nas bolinhas (garantindo o tostão para o sorvete) e ficou<br />
sabendo na ponta da língua que o brasil foi descoberto sem querer e é o país<br />
maior, mais belo e mais rico do mundo”. Após o grupo, Aristodemo trabalhou<br />
na oficina do cunhado, namorou Josefina e apanhou do seu primo, ajudou a<br />
empastelar O fanfulla, um jornal que falou mal do brasil, e pensou em ser artista<br />
de circo. Aos vinte anos, brigou com o cunhado, empregou-se como cobrador de<br />
bonde da companhia Gabrielle d´Annunzio e arrumou uma admiradora.<br />
subitamente, desapareceu das vistas da admiradora. A revista a cigarra,<br />
na seção “colaboração das leitoras”, comenta seu desaparecimento. Aristodemo<br />
havia se tornado soldado do tiro de Guerra nº 35.<br />
Aristodemo, influenciado pelo sargento cearense Aristóteles Camarão<br />
de Medeiros, torna-se ainda mais nacionalista, obtendo o cargo de ajudante de<br />
ordens e ficando encarregado de providenciar a letra do hino nacional para o<br />
ensaio da companhia.<br />
na noite seguinte, o ensaio é interrompido por Aristodemo, que dá um tabefe<br />
num alemãozinho, porque estava escrachando com a letra do hino nacional.<br />
24
Aol-11<br />
25<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
o sargento repreende severamente os soldados, desligando o alemão<br />
da companhia e dando uma suspensão de um dia para Aristodemo, dizendo,<br />
entretanto, que o seu patriotismo deveria ser seguido, mas sem tanta violência.<br />
o nacionalismo de Aristodemo chega a tal ponto que ele troca o emprego<br />
de cobrador da companhia Autoviação Gabrielle d´Annunzio pelo mesmo emprego<br />
na sociedade de transporte rui barbosa.<br />
aMoR e sangUe<br />
“não adiantava nada que o céu estivesse azul porque a alma de nicolino<br />
estava negra”. Um amigo lhe diz, no caminho, que a Grazia havia passado por<br />
ele sem ser vista. nicolino a xinga “– des-gra-ça-da!”<br />
na barbearia Ao barbeiro submarino, nicolino ouve o comentário de um<br />
freguês sobre um crime passional noticiado no estado: o criminoso seria solto<br />
porque havia alegado “privações de sentidos”. Nicolino fingia que não estava<br />
ouvindo os comentários sobre o crime.<br />
nicolino tenta falar com Grazia, na saída da fábrica, mas ela se recusa e<br />
o manda procurar a “fedida da rua cruz branca”. enraivecido, ele “apertou o<br />
fura-bolos entre os dentes”.<br />
no outro dia, na saída da fábrica, sendo rejeitado por Grazia, ele a<br />
derruba com uma punhalada. Preso, alega que matou porque estava louco,<br />
privado dos sentidos. sua desculpa ganha fama e vira letra de música.<br />
a soCiedade<br />
“– Filha minha não casa com filho de carcamano!<br />
A esposa do conselheiro José bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi<br />
brigar com o italiano das batatas. teresa rita misturou lágrimas com gemidos e<br />
entrou no seu quarto batendo a porta. o conselheiro José bonifácio limpou as<br />
unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque.” Adriano Melli,<br />
filho de carcamano, está interessado em Teresa Rita e por isso passa e repassa<br />
com seu automóvel lancia na frente da casa da namorada.<br />
na vesperal do clube Paulistano, teresa rita e Adriano Melli dançam e<br />
conversam. A mãe de teresa reitera ao marido que não quer saber de casamento<br />
de sua filha com filho de carcamano.<br />
O pai de Adriano, o carcamano Cav. Uff. Salvatore Melli (Cavaglieri Ufficiali,<br />
literalmente Cavalheiro Oficial, um título vendido pela coroa italiana, contrastando<br />
com o título de conselheiro, dado pelo império), em visita ao pai de teresa<br />
rita propõe-lhe sociedade. o conselheiro José bonifácio entraria com terrenos<br />
ociosos e gerenciaria o negócio, enquanto ele entraria com o capital “io tenho o<br />
capital. o capital sono io”.<br />
Mediante tal proposta, a mulher libera o conselheiro para que aceite a<br />
sociedade.
antônio de alcântara Machado<br />
seis meses depois, Adriano pede teresa rita em casamento.<br />
no chá do noivado o Cav. Uff. Adriano Melli na frente de toda a gente recordou à mãe<br />
de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia cebolas e batatas, Olio di Lucca e<br />
bacalhau português quase sempre fiado e até sem caderneta.<br />
lisetta<br />
Quando Lisetta subiu no bonde (o condutor ajudou) viu logo o urso. Felpudo,<br />
felpudo. E amarelo. Tão engraçadinho.<br />
Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.<br />
Lisetta começou a namorar o bicho. Pôs o pirulito de abacaxi na boca. Pôs, mas<br />
não chupou. Olhava o urso. O urso não ligava. Seus olhinhos de vidro não diziam absolutamente<br />
nada. no colo da menina de pulseira de ouro e meias de seda parecia um urso<br />
importante e feliz.<br />
– Olha o ursinho que lindo, mamãe!<br />
– Stai zitta!<br />
A menina rica viu o enlevo e a inveja da Lisetta. E deu de brincar com o urso.<br />
Mexeu-lhe com o toquinho do rabo: e a cabeça do bicho virou para a esquerda, depois<br />
para a direita, olhou para cima, depois para baixo. Lisetta acompanhava a manobra.<br />
Sorrindo fascinada. E com um ardor nos olhos! O pirulito perdeu definitivamente toda<br />
a importância.<br />
Agora são as pernas que sobem e descem, cumprimentam, se cruzam, batem umas<br />
nas outras.<br />
– As patas também mexem, mamã. Olha lá!<br />
– stai ferma! [Fica quieta!]<br />
Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho. Jeitosamente procurou alcançá-lo.<br />
A menina rica percebeu, encarou a coitada com raiva, fez uma careta horrível e apertou<br />
contra o peito o bichinho que custara cinquenta mil-réis na Casa São Nicolau.<br />
– Deixa pegar um pouquinho, um pouquinho só nele, deixa?<br />
– ah!<br />
– scusi, senhora. Desculpe por favor. A senhora sabe, essas crianças são muito<br />
levadas. scusi [desculpe-me]. desculpe.<br />
A mãe da menina rica não respondeu. Ajeitou o chapeuzinho da filha, sorriu para<br />
o bicho, fez uma carícia na cabeça dele, abriu a bolsa e olhou o espelho.<br />
Dona Mariana, escarlate de vergonha, murmurou no ouvido da filha:<br />
– in casa me lo pagherai! [em casa, tu me pagarás]<br />
E pespegou por conta um beliscão no bracinho magro. Um beliscão daqueles.<br />
Lisetta então perdeu toda a compostura de uma vez. Chorou. Soluçou. Chorou.<br />
Soluçou. Falando sempre.<br />
– Hã! Hã! Hã! Hã! Eu que...ro o ur...so! O ur...so! Ai, mamãe! Ai, mamãe! Eu<br />
que...ro o... o... o... Hã! Hã!<br />
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Aol-11<br />
27<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
– stai ferina o ti amazzo, parola d’onore! [Fica quieta ou te estrangulo, palavra<br />
de honra!]<br />
– Um pou...qui...nho só! Hã! E... hã! E... hã! Um pou...qui...<br />
– Senti, Lisetta. Non ti porterò più in città! Mai più! [Presta atenção, Lisetta.<br />
Não te trarei mais à cidade! Nunca mais!]<br />
um escândalo. e logo no banco da frente. O bonde inteiro testemunhou o feio que<br />
Lisetta fez.<br />
O urso recomeçou a mexer com a cabeça. Da esquerda para a direita, para cima e<br />
para baixo.<br />
– Non piangere più adesso! [Não chores mais agora!]!<br />
Impossível.<br />
O urso lá se fora nos braços da dona. E a dona só de má, antes de entrar no palacete<br />
estilo empreiteiro português, voltou-se e agitou no ar o bichinho. Para Lisetta ver.<br />
E Lisetta viu.<br />
dem-dem! O bonde deu um solavanco, sacudiu os passageiros, deslizou, rolou,<br />
seguiu. dem-dem!<br />
– Olha à direita!<br />
Lisetta como compensação quis sentar-se no banco. Dona Mariana (havia pago<br />
uma passagem só) opôs-se com energia e outro beliscão.<br />
A entrada de Lisetta em casa marcou época na história dramática da família Garbone.<br />
Logo na porta um safanão. Depois um tabefe, outro no corredor. Intervalo de dois<br />
minutos. Foi então a vez das chineladas. Para remate. Que não acabava mais.<br />
O resto da gurizada (narizes escorrendo, pernas arranhadas, suspensórios de<br />
barbante) reunido na sala de jantar sapeava de longe.<br />
Mas o Ugo chegou da oficina.<br />
– Você assim machuca a menina, mamãe! coitadinha dela!<br />
Também Lisetta já não aguentava mais.<br />
– Toma pra você. Mas não escache.<br />
Lisetta deu um pulo de contente. Pequerrucho. Pequerrucho e de lata. Do tamanho<br />
de um passarinho. Mas urso.<br />
Os irmãos chegaram-se para admirar. O Pasqualino quis logo pegar no bichinho.<br />
Quis mesmo tomá-lo à força. Lisetta berrou como uma desesperada:<br />
– ele é meu! O ugo me deu!<br />
Correu para o quarto. Fechou-se por dentro.<br />
CoMentáRio<br />
Mais um conto com sabor de crônica, um típico episódio das famílias<br />
italianas do começo do século: a menina Lisetta, acompanhada da mãe, vê no<br />
bonde em que está uma menina rica brincando com um ursinho. A menina rica a
antônio de alcântara Machado<br />
provoca, mostrando-lhe o brinquedo. Lisetta deseja tocá-lo, mas a menina faz-lhe<br />
uma careta e lhe recusa o ursinho.<br />
A mãe de Lisetta pede desculpas à mãe da menina, que finge não ouvir<br />
o pedido. Envergonhada, a mãe de Lisetta lhe dá um beliscão. A menina chora,<br />
grita, mas, como nada consegue, acaba sentando no banco para se consolar, o<br />
que lhe vale outro beliscão, pois a mãe só havia pagado uma passagem.<br />
Quando chegam em casa, a mãe lhe dá uma surra. os irmãos observam<br />
de longe. Quando o mais velho chega do trabalho, toma o partido da menina,<br />
que não aguenta mais apanhar.<br />
no dia seguinte, ganha um urso de lata do irmão. Um urso feio, mas que<br />
ela deseja que seja somente dela, e por isso tranca-se no quarto para que ninguém<br />
possa tocá-lo.<br />
As reações da mãe diante das vontades da filha dão ao conto uma atmosfera<br />
de compaixão, pois o que impedia a menina de ter um ursinho era a sua condição<br />
de pobreza. Condição que a mãe deseja ocultar e que fica explícita quando ela<br />
pede desculpas à outra mãe e esta ignora o seu pedido. daí vem a raiva da mãe<br />
de Lisetta, que desconta na filha a humilhação sofrida.<br />
CoRintHians (2) vs. palestRa (1)<br />
tratando-se de um livro sobre o registro dos costumes dos imigrantes<br />
italianos em são Paulo, não poderia faltar o futebol.<br />
Prrrrii!<br />
– Aí, Heitor!<br />
a bola foi parar na extrema esquerda. Melle desembestou com ela.<br />
A arquibancada pôs-se em pé. Conteve a respiração. Suspirou:<br />
– aaaah!<br />
Miquelina cravava as unhas no braço gordo da Iolanda. Em torno do trapézio verde<br />
a ânsia de vinte mil pessoas. de olhos ávidos. de nervos elétricos. de preto. de branco.<br />
de azul. de vermelho.<br />
Delírio futebolístico no Parque Antártica.<br />
Camisas verdes e calções negros corriam, pulavam, chocavam-se, embaralhavam-se,<br />
caíam, contorcionavam-se, esfalfavam-se, brigavam. Por causa da bola de couro amarelo<br />
que não parava, que não parava um minuto, um segundo. Não parava.<br />
– neco! neco!<br />
Parecia um louco. driblou. escorregou. driblou. Correu. Parou. Chutou.<br />
– gooool! gooool!<br />
Miquelina ficou abobada com o olhar parado. Arquejando. Achando aquilo um<br />
desaforo, um absurdo.<br />
Aleguá-guá-guá! Aleguá-guá-guá! Hurra! Hurra! Corinthians!<br />
Palhetas subiram no ar. Com os gritos. Entusiasmos rugiam. Pulavam. Dançavam.<br />
28
Aol-11<br />
29<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
E as mãos batendo nas bocas:<br />
– go-o-o-o-o-o-ol!<br />
Miquelina fechou os olhos de ódio.<br />
– Corinthians! Corinthians!<br />
Tapou os ouvidos.<br />
– Já me estou deixando ficar com raiva!<br />
A exaltação decresceu como um trovão.<br />
– O Rocco é que está garantindo o Palestra. Aí, Rocco! Quebra eles sem dó!<br />
A Iolanda achou graça. Deu risada.<br />
– Você está ficando maluca, Miquelina. Puxa! Que bruta paixão!<br />
Era mesmo. Gostava do Rocco, pronto. Deu o fora no Biagio (o jovem e esperançoso<br />
esportista Biagio Panaiocchi, diligente auxiliar da firma desta praça G. Gasparoni &<br />
Filhos e denodado meia-direita do S. C. Corinthians Paulista, campeão do Centenário)<br />
só por causa dele.<br />
– Juiz ladrão, indecente! Larga o apito, gatuno!<br />
Na Sociedade Beneficente e Recreativa do <strong>Bexiga</strong> toda a gente sabia de sua história<br />
com o Biagio. Só porque ele era frequentador dos bailes dominicais da Sociedade não pôs<br />
mais os pés lá. E passou a torcer para o Palestra. E começou a namorar o Rocco.<br />
– O Palestra não dá pro pulo!<br />
– Fecha essa latrina, seu burro!<br />
Miquelina ergueu-se na ponta dos pés. Ergueu os braços. Ergueu a voz:<br />
– Centra, Matias! Centra, Matias!<br />
Matias centrou. a assistência silenciou. imparato emendou. a assistência berrou.<br />
– Palestra! Palestra! aleguá-guá! Palestra aleguá! aleguá!<br />
O italianinho sem dentes, com um soco, furou a palheta ramenzoni de contentamento.<br />
Miquelina nem podia falar. e o menino de ligas saiu de seu lugar, todo ofegante,<br />
todo vermelho, todo triunfante, e foi dizer para os primos corinthianos na última fileira<br />
da arquibancada:<br />
– Conheceram, seus canjas?<br />
O campo ficou vazio.<br />
– Ó... lh’a gasosa!<br />
Moças comiam amendoim torrado sentadas nas capotas dos automóveis. A sombra<br />
avançava no gramado maltratado. Mulatas de vestidos azuis ganhavam beliscões. E riam.<br />
Torcedores discutiam com gestos.<br />
– Ó... lh’a gasosa!<br />
um aeroplano passeou sobre o campo.<br />
Miquelina mandou pelo irmão um recado ao Rocco.<br />
– diga pra ele quebrar o Biagio que é o perigo do Corinthians.
antônio de alcântara Machado<br />
Filipino mergulhou na multidão.<br />
Palmas saudaram os jogadores de cabelos molhados.<br />
Prrrrii!<br />
– O Rocco disse pra você ficar sossegada.<br />
Amilcar deu uma cabeçada. A bola foi bater em Tedesco que saiu correndo com<br />
ela. E a linha toda avançou.<br />
– Costura, macacada.<br />
Mas o juiz marcou um impedimento.<br />
– Vendido! Bandido! assassino!<br />
Turumbamba na arquibancada. O refle do sargento subiu a escada.<br />
– Não pode! Põe pra fora! Não pode!<br />
Turumbamba na geral. a cavalaria movimentou-se.<br />
Miquelina teve medo. O sargento prendeu o palestrino. Miquelina protestou<br />
baixinho:<br />
– nem torcer a gente pode mais! nunca vi!<br />
– Quantos minutos ainda?<br />
– Oito.<br />
Biagio alcançou a bola. Aí, Biagio! Foi levando, foi levando. Assim, Biagio! Driblou<br />
um. Isso! Fugiu de outro. Isso! Avançava para a vitória. Salame nele, Biagio! Arremeteu.<br />
Chute agora! Parou. Disparou. Parou. Aí! Reparou. Hesitou. Biagio Biagio! Calculou.<br />
Agora! Preparou-se. Olha o Rocco! É agora. Aí! Olha o Rocco! Caiu.<br />
– Ca-Va-LO!<br />
Prrrrii!<br />
– Pênalti!<br />
Miquelina pôs a mão no coração. Depois fechou os olhos. Depois perguntou:<br />
– Quem é que vai bater, Iolanda?<br />
– O Biagio mesmo.<br />
– Desgraçado.<br />
O medo fez silêncio.<br />
Prrrrii!<br />
Pan!<br />
– go-o-o-o-ol! Corinthians!<br />
– Quantos minutos ainda?<br />
Pri-pri-pri!<br />
– acabou, nossa senhora!<br />
acabou.<br />
as árvores da geral derrubaram gente.<br />
30
Aol-11<br />
31<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
– abr’a porteira! rá! Fech’a porteira! Prá!<br />
O entusiasmo invadiu o campo e levantou o Biagio nos braços.<br />
– Solt’o rojão! Fiu! Rebent’a bomba! Pum! Corinthians!<br />
O ruído dos automóveis festejava a vitória. O campo foi-se esvaziando como um<br />
tanque. Miquelina murchou dentro de sua tristeza.<br />
– Que é-que é? É jacaré? Não é!<br />
Miquelina nem sentia os empurrões.<br />
– Que é-que é? É tubarão? Não é!<br />
Miquelina não sentia nada.<br />
– Então que é? Corinthians!<br />
Miquelina não vivia.<br />
Na Avenida Água Branca os bondes formando cordão esperavam campainhando<br />
o zé-pereira.<br />
– aqui, Miquelina.<br />
Os três espremeram-se no banco onde já havia três. e gente no estribo. e gente na<br />
coberta. e gente nas plataformas. e gente do lado da entrevia.<br />
a alegria dos vitoriosos demandou a cidade. Berrando, assobiando e cantando. O<br />
mulato com a mão no guindaste é quem puxava a ladainha:<br />
– O Palestra levou na testa!<br />
E o pessoal entoava:<br />
– ora pro nobis!<br />
Ao lado de Miquelina o gordo de lenço no pescoço desabafou:<br />
– Tudo culpa daquela besta do rocco!<br />
– Ouviu, não é Miquelina? Você ouviu?<br />
– Não liga pra esses trouxas, Miquelina.<br />
– Como não liga?<br />
– O Palestra levou na testa!<br />
– Cretinos.<br />
– ora pro nobis!<br />
– só a tiro.<br />
– Diga uma cousa, Iolanda. Você vai hoje na Sociedade?<br />
– Vou com o meu irmão.<br />
– Então passa por casa que eu também vou.<br />
– Não!<br />
– Que bruta admiração! Por que não?<br />
– E o Biagio?<br />
– Não é de sua conta.<br />
Os pingentes mexiam com as moças de braço dado nas calçadas.
antônio de alcântara Machado<br />
CoMentáRio<br />
Miquelina e iolanda assistem à partida de futebol no Parque Antártica.<br />
Miquelina torce para o Palestra, em que joga seu atual namorado, o rocco. o<br />
namorado anterior, biagio, joga no corinthians. como biagio é frequentador da<br />
Sociedade Beneficente e Recreativa do <strong>Bexiga</strong>, ela trocou de time e deixou de<br />
frequentar a sociedade.<br />
durante o intervalo do primeiro tempo, Miquelina pede ao seu irmão para<br />
procurar pelo rocco no vestiário e recomendar que ele quebre o biagio.<br />
no segundo tempo, faltando oito minutos para terminar o jogo, rocco<br />
segue as recomendações e faz pênalti em biagio, que converte o lance em gol e<br />
desempata para o corinthians.<br />
A torcida corinthiana comemora a vitória. na volta para casa, no bonde<br />
lotado, Miquelina escuta ofensas dirigidas ao rocco.<br />
À noite, Miquelina pede a iolanda que ela e o irmão a levem à sociedade,<br />
onde pretende ver biagio.<br />
o conto registra como era uma partida de futebol e como se comportava<br />
a torcida; o que acontecia após o jogo; os casos de amor entre jogadores e torcedoras;<br />
a rivalidade entre as duas torcidas. Alcântara Machado fixa no conto<br />
alguns aspectos da sociedade paulistana nos bairros italianos durante e após<br />
uma partida de futebol.<br />
notas biogRáFiCas de UM novo depUtado<br />
O coronel recusou a sopa.<br />
– Que é isso, Juca? Está doente?<br />
O coronel coçou o queixo. Revirou os olhos. Quebrou um palito. Deu um estalo<br />
com a língua.<br />
– Que é que você tem, homem de Deus?<br />
O coronel não disse nada. Tirou uma carta do bolso de dentro. Pôs os óculos.<br />
Começou a ler:<br />
exmo. snr. coronel Juca<br />
– De quem é?<br />
– do administrador da santa inácia.<br />
– Já sei. Geada?<br />
– escute. exmo. snr. coronel Juca. Rospeitosas saudações. em primeiro<br />
lugar saudo-vos. v. ecia. e d. nequinha. Coronel venho por meio desta respeitosamente<br />
comunicar para v. e. que o cafezal novo agradeceu bastante as<br />
chuvarada desta semana. e tal e tal e tal. Me acho doente diversos incomodos<br />
divido o serviço.<br />
– Coitado.<br />
– Mas não é isso. o major domingo neto mandou buscar a vacca... Oh<br />
senhor! Não acho...<br />
32
Aol-11<br />
33<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
– na outra página, Juca.<br />
– está aqui. Vá escutando. em último lugar, vos communico que o seu<br />
comprade João intaliano morreu...<br />
– Meu Deus, não diga?!<br />
– ... morreu segunda que passou de uma anemia nos rim. por esses<br />
motivos recolhi em casa o vosso afilhado e orpham Gennarinho. Pesso para<br />
v.e. que me mande dizer o distino e tal. e agora, mulher?<br />
dona nequinha suspirou. Bebeu um gole de água. Mandou levar a sopa.<br />
– E então?<br />
Dona Nequinha passou a língua nos lábios. Levantou a tampa da farinheira.<br />
arranjou o virote.<br />
– E então? Que é que eu respondo?<br />
Dona Nequinha pensou. Pensou. Pensou. E depois:<br />
– Vamos pensar bem primeiro, Juca. Não coma o torresmo que faz mal. Amanhã<br />
você responde. e deixe-se de extravagâncias.<br />
Gennarinho desceu na estação da Sorocabana com o nariz escorrendo. Todo chibante.<br />
De chapéu vermelho. Bengalinha na mão. Rebocado pelo filho mais velho do administrador.<br />
e com uma carta para o Coronel J. Peixoto de Faria.<br />
Tomou o coche Hudson que estava à sua espera.<br />
Veio desde a estação até a Avenida Higienópolis com a cabeça para fora do automóvel<br />
soltando cusparadas. Apertou o dedo no portão. Disse uma palavra feia. Subiu as<br />
escadas berrando.<br />
– Tire o chapéu.<br />
Tirou.<br />
– diga boa noite.<br />
disse.<br />
– Beije a mão dos padrinhos.<br />
Beijou.<br />
– Limpe o nariz.<br />
Limpou com o chapéu.<br />
...........................................................................................................................................<br />
entre a carta recebida pelo coronel Juca comunicando a morte do compadre<br />
italiano e pedindo instruções sobre o destino a ser dado ao afilhado órfão Gennarinho<br />
e a chegada dele à casa do coronel, o tempo é indicado por um espaço<br />
em branco entre os dois acontecimentos.<br />
Afeiçoando-se ao menino, o coronel e sua esposa não tardam a aportuguesar<br />
o nome do menino para Januário e acabam por matriculá-lo num colégio de<br />
padres, o Ginásio de são bento.
antônio de alcântara Machado<br />
o coronel em pessoa leva o menino para a escola, no carro fechado, com<br />
motorista. A merenda do menino foi preparada por dona neguinha.<br />
O menino é apresentado ao reitor do colégio como Januário Peixoto de Faria.<br />
o coronel seguiu para o são Paulo clube pensando em fazer testamento.<br />
O título do conto contém certa dose de ironia, pois as notas biográficas contêm<br />
um detalhe importante, que vem a ser a adoção do menino pelo coronel, motivo<br />
mais que suficiente para introduzi-lo no seio de uma família tradicional e fazer dele<br />
um deputado. Assim nasciam os deputados em são Paulo, ou seja, nada como um<br />
padrinho importante para se conseguir um cargo na política brasileira.<br />
o MonstRo de Rodas<br />
O nino apareceu na porta. Teve um arrepio. Levantou a gola do paletó.<br />
– ei, Pepino! escuta só o frio!<br />
Na sala discutiam agora a hora do enterro. A Aída achava que de tarde ficava melhor.<br />
Era mais bonito. Com o filho dormindo no colo Dona Mariângela achava também. A fumaça<br />
do cachimbo do marido ia dançar bem em cima do caixão.<br />
– ai, nossa senhora! ai, nossa senhora<br />
Dona Nunzia descabelada enfiava o lenço na boca.<br />
– ai, nossa senhora! ai, nossa senhora.<br />
Sentada no chão a mulata oferecia o copo de água de flor de laranja.<br />
– Leva ela pra dentro!<br />
– Não! Eu não quero! Eu... não... quero!...<br />
Mas o marido e o irmão a arrancaram da cadeira e ela foi gritando para o quarto.<br />
enxugaram-se lágrimas de dó.<br />
– Coitada da dona nunzia!<br />
A negra de sandália sem meia principiou a segunda volta do terço.<br />
– Ave Maria, cheia de graça, o Senhor...<br />
Carrocinhas de padeiro derrapavam nos paralelepípedos da Rua Sousa Lima. Passavam<br />
cestas para a feira do Largo do arouche. garoava na madrugada roxa.<br />
– ... da nossa morte. amém. Padre nosso que estais no Céu...<br />
O soldado espiou da porta. Seu Chiarini começou a roncar muito forte. Um bocejo.<br />
dois bocejos. Três. Quatro.<br />
– ... de todo o mal. amém.<br />
A Aída levantou-se e foi espantar as moscas do rosto do anjinho.<br />
Cinco. seis.<br />
O violão e a flauta recolhendo de farra emudeceram respeitosamente na calçada.<br />
na sala de jantar Pepino bebia cerveja em companhia do américo Zamponi<br />
(Salão Palestra Itália – Engraxa-se na perfeição a 200 réis) e o Tibúrcio<br />
(– O Tibúrcio... – O mulato? – Quem mais há de ser?).<br />
34
Aol-11<br />
35<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
– Quero só ver daqui a pouco a notícia do Fanfulla. deve cascar o almofadinha.<br />
– Xi, Pepino! Você é ainda muito criança. Tu é ingênuo, rapaz. Não conhece a<br />
podridão da nossa imprensa. Que o quê, meu nego. Filho de rico manda nesta terra que<br />
nem a Light. Pode matar sem medo. É ou não é, Seu Zamponi?<br />
Seu Américo Zamponi soltou um palavrão, cuspiu, soltou outro palavrão, bebeu,<br />
soltou mais outro palavrão, cuspiu.<br />
– É isso mesmo, Seu Zamponi, é isso mesmo!<br />
O caixãozinho cor-de-rosa com listas prateadas (Dona Nunzia gritava) surgiu<br />
diante dos olhos assanhados da vizinhança reunida na calçada (a molecada pulava) nas<br />
mãos da Aída, da Josefina, da Margarida e da Linda.<br />
– Não precisa ir depressa para as moças não ficarem escangalhadas.<br />
A Josefina na mão livre sustentava um ramo de flores. Do outro lado a Linda tinha<br />
a sombrinha verde, aberta. Vestidos engomados, armados, um branco, um amarelo, um<br />
creme, um azul. O enterro seguiu.<br />
O pessoal feminino da reserva carregava dálias e palmas-de-são-josé. E na calçada<br />
os homens caminhavam descobertos.<br />
O Nino quis fechar com o Pepino uma aposta de quinhentão.<br />
– A gente vai contando os trouxas que tiram o chapéu até a gente chegar no Araçá.<br />
Mais de cinquenta você ganha. Menos, eu.<br />
Mas o Pepino não quis. E pegaram uma discussão sobre qual dos dois era o melhor:<br />
Friedenreich ou Feitiço.<br />
– Deixa eu carregar agora, Josefina?<br />
– Puxa, que fiteira! Só porque a gente está chegando na Avenida Angélica. Que<br />
mania de se mostrar, que você tem!<br />
O grilo fez continência. automóveis disparavam para o corso com mulheres de<br />
pernas cruzadas mostrando tudo. Chapéus cumprimentavam dos ônibus, dos bondes.<br />
sinais da santa cruz. gente parada.<br />
Na Praça Buenos Aires, Tibúrcio já havia arranjado três votos para as próximas<br />
eleições municipais.<br />
– Mamãe, mamãe! Venha ver um enterro, mamãe!<br />
Aída voltou com a chave do caixão presa num lacinho de fita. Encontrou Dona Nunzia<br />
sentada na beira da cama olhando o retrato que a gazeta publicara. sozinha. Chorando.<br />
– Que linda que era ela!<br />
– Não vale a pena pensar mais nisso, Dona Nunzia...<br />
O pai tinha ido conversar com o advogado.<br />
CoMentáRio<br />
o espaço em branco é empregado para demarcar o tempo e os ambientes da<br />
casa. no primeiro parágrafo, na sala da casa, ante o desespero de dona nunzia,<br />
que perdeu a filha atropelada, vizinhos prestam-lhe solidariedade, velando o
antônio de alcântara Machado<br />
corpo da menina. chove na madrugada. ouve-se o barulho das carrocinhas do<br />
padeiro e dos foliões que voltam para casa, pois é madrugada de carnaval.<br />
na sala de jantar, os homens discutem se quem atropelou e matou a menina<br />
será punido ou fará parte do rol dos impunes da terra.<br />
no dia seguinte, o enterro parte.<br />
durante o percurso até o cemitério do Araçá, os acompanhantes falam<br />
sobre futebol, alguns procuram ganhar votos para uma eleição, pessoas rendem<br />
homenagem tirando o chapéu ou fazendo o sinal da cruz. Perto da Avenida Angélica,<br />
as moças disputam as alças do caixão.<br />
na última cena, uma das moças traz a chave do caixão para dona nunzia,<br />
que admira a fotografia da filha publicada num jornal. O pai saiu para procurar<br />
um advogado para tentar indenização.<br />
o conto apresenta um contraste, um velório em pleno carnaval. como o<br />
olhar de Alcântara Machado procura registrar acontecimentos típicos, temos<br />
aqui uma cena comum da realidade brasileira (comum desde o começo do século):<br />
um motorista (certamente alguém da elite, pois o automóvel nessa época<br />
é um veículo de pessoas ricas) durante o carnaval atropela e mata uma pessoa,<br />
fugindo em seguida. os aspectos do velório, do choro da mãe ao percurso pela<br />
Avenida Angélica, justapostos à folia do carnaval, dão ao conto uma atmosfera<br />
paradoxal, mostrando a tristeza dos pobres ao lado da alegria das pessoas bem<br />
postas na sociedade paulistana.<br />
aRMazéM pRogResso de são paUlo<br />
O armazém do Natale era célebre em todo o <strong>Bexiga</strong> por causa deste anúncio:<br />
AVISO ÀS EXCELENTÍSSIMAS MÃES DE FAMÍLIA!<br />
O<br />
ARMAZÉM PROGRESSO DE SÃO PAULO<br />
36<br />
de<br />
naTaLe PienOTTO<br />
TeM arTigOs de TOdas as QuaLidades<br />
DÁ-SE UM CONTO DE RÉIS A QUEM PROVAR<br />
O COnTráriO
Aol-11<br />
n. B. – Jogo de bocce com serviço de restaurante<br />
nos fundos.<br />
37<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
Isso em letras formidáveis na fachada e em prospectos entregues a domicílio.<br />
O filho do doutor da esquina, que era muito pândego e comprava cigarros no<br />
armazém mandando-os debitar na conta do pai com outro nome, bulia todos os santos<br />
dias com o Natale:<br />
– Seu Natale, o senhor tem pneumáticos balão aí?<br />
– Que negócio é esse?<br />
– Ah, não tem? Então passe já para cá um conto de réis.<br />
– Você não vê logo, Zezinho, que isso é só para tapear os trouxas? Que é que você<br />
quer? Um maço de Sudan Ovais? E como é na caderneta?<br />
– Bote hoje uma si-si que é também pra tapear o trouxa.<br />
O Natale achava uma graça imensa e escrevia:<br />
Duas Si-Si pro Sr. Zézinho - 1$200.<br />
...........................................................................................................................................<br />
o armazém de seu natale e sua mulher está prosperando, antes só havia<br />
uma porta e agora já possui quatro.<br />
natale observa a confeitaria Paiva couceiro, seu vizinho de frente, que<br />
possui grande estoque de cebola, produto barato e por isso mesmo incapaz de<br />
levar o português a quitar suas dívidas.<br />
A esposa de natale, dona bianca, diz ao marido que ouviu dos homens que<br />
estavam no bocce que o preço da cebola vai subir, e sugere ao marido que aceite<br />
o estoque do português como forma de pagamento de uma dívida.<br />
O marido confirma a informação com o funcionário do Abastecimento José<br />
espiridião, que o aconselha a obter todo o estoque do português. o funcionário<br />
do Abastecimento recebe do italiano a promessa de uma comissão.<br />
Natale fecha negócio e comunica o fato à mulher, que coloca o filho para<br />
dormir. A ocasião merece uma comemoração, ainda não com vinho italiano, mas<br />
com cerveja.<br />
A mulher, antes de dormir, olha para o filho doente e se imagina num caro<br />
palacete da Avenida Paulista.<br />
naCionalidade<br />
O barbeiro Tranquilo Zampinetti da Rua do Gasômetro não perde seu amor<br />
pela itália. Vibra a cada notícia que lê nos jornais sobre as vitórias da itália na<br />
guerra e surra os dois filhos que não querem falar italiano.
antônio de alcântara Machado<br />
o barbeiro sonha em regressar para a itália, assunto que costuma conversar<br />
com a mulher e os amigos, à noite, sentados nas cadeiras na calçada.<br />
Um conterrâneo de tranquilo, que aspirava a um cargo político, o convence<br />
a votar aqui no brasil, sem deixar sua cidadania italiana. o meio é ilegal, mas<br />
tranquilo experimenta e toma gosto pela falcatrua.<br />
com o passar do tempo, torna-se proprietário de vários imóveis, tem amigos<br />
influentes e participa da política local. O filho mais velho, Lorenzo, fica noivo e<br />
o mais jovem, bruno, cursa o Ginásio do estado. Quando solicitado a emprestar<br />
dinheiro para a guerra na europa, sua mulher protesta indignada. “tranquillo deu<br />
dois gritos patrióticos. dona emília deu três econômicos. tranquilo cedeu”.<br />
Pouco a pouco, o dinheiro o vai persuadindo a falar português. Ainda mais rico,<br />
fecha a barbearia e manda construir uma capela para a família no cemitério Araçá.<br />
Nasce seu neto brasileiro, filho de Lorenzo, e Bruno conclui o curso de<br />
direito. o primeiro trabalho do novo bacharel é o de requerer a naturalização<br />
do pai, cidadão italiano residente em são Paulo.<br />
CoMentáRio<br />
De cidadão italiano convicto, a ponto de surrar os filhos que não queriam<br />
falar italiano, tranquilo vai pouco a pouco se abrasileirando. o “abrasileiramento”<br />
do italiano é apresentado de forma cômica, porque vêm a ser as práticas desonestas<br />
que lhe conferem dinheiro e, por conseguinte, a nacionalidade brasileira.<br />
A renúncia em voltar para a itália pode ser constatada no fato de mandar erguer<br />
uma capela para a família num cemitério paulista. em outras palavras, tranquillo<br />
Zampinetti não retorna mais para a Itália nem morto.<br />
5. exeRCíCios<br />
1.<br />
texto 1<br />
...) no fundo o imponente castelo. no primeiro plano<br />
a íngreme ladeira que conduz ao castelo. Descendo a<br />
ladeira numa disparada louca o fogoso ginete. Montado<br />
no ginete o apaixonado caçula castelão inimigo de<br />
capacete prateado com plumas brancas. e atravessada<br />
no ginete a formosa donzela desmaiada entregando ao<br />
vento os cabelos cor de carambola.<br />
Antônio de Alcântara Machado, “carmela”<br />
38
Aol-11<br />
39<br />
<strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
texto 2<br />
(...) Íamos, se não me engano, pela rua das Mangueiras, quando voltando-nos, vimos<br />
um carro elegante que levavam a trote largo dois fogosos cavalos. uma encantadora<br />
menina, sentada ao lado de uma senhora idosa, se recostava preguiçosamente sobre<br />
o macio estofo e deixava pender pela cobertura derreada do carro a mão pequena que<br />
brincava com um leque de penas escarlates.<br />
José de Alencar, Lucíola<br />
Nesses excertos, observa-se que a maioria dos substantivos são modificados por<br />
adjetivos ou expressões equivalentes.<br />
comparando os dois textos:<br />
a) aponte em cada um deles o efeito produzido por tal recurso linguístico;<br />
b) justifique sua resposta.<br />
2.<br />
Alcântara Machado faz a seguinte apresentação para <strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong><br />
em “Artigo de Fundo”:<br />
Este livro não nasceu livro; nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram<br />
notícias. E este prefácio portanto também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo.<br />
dessa apresentação, pode-se concluir que:<br />
a) os jornais brasileiros da época eram determinantes absolutos das vanguardas<br />
artísticas e a literatura sofreu essa determinação.<br />
b) o livro referido transformou-se em jornal, ou melhor, houve uma transposição<br />
dos fatos e das personagens do mundo real para o literário.<br />
c) o livro em questão é jornalístico, porque está preocupado em dar opiniões<br />
sobre notícias da comunidade.<br />
d) a linguagem do livro de Alcântara Machado, ao aproximar-se jornalisticamente<br />
do cotidiano, afasta-se dos meios literários modernistas de sua época.<br />
e) o livro está impregnado de uma atmosfera de reportagem, o que o aproxima<br />
do jornal por captar o fato, o instantâneo da vida cotidiana.<br />
3.<br />
o conto “Gaetaninho” começa com a fala “Xi, Gaetaninho, como é bom!” e termina<br />
com a seguinte afirmação: “Quem na boleia de um dos carros do cortejo mirim<br />
exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o beppino”.<br />
A fala inicial é de beppino, mencionado também no último parágrafo.<br />
a) A que ele se refere como sendo bom?<br />
b) Ambos os trechos citados têm relação direta com o núcleo central da narrativa.<br />
Que núcleo é esse?<br />
c) Que relação há entre os nomes próprios e o título do livro?<br />
4.<br />
A obra <strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e Berra <strong>Funda</strong>, de Antônio de Alcântara Machado, foi escrita<br />
em 1927. Dessa obra como um todo, é possível afirmar que:<br />
a) configura a vida do imigrante italiano e do ítalo-brasileiro, em processo de<br />
aculturação na cidade de são Paulo.
antônio de alcântara Machado<br />
b) representa a caricatura do brasileiro classe média, homem da cidade, vivendo<br />
momentos de revolta e indignação, arroubos de patriotismo e comicidades<br />
cotidianas.<br />
c) faz uma sátira às raças que constituem a nacionalidade brasileira: a que estava<br />
aqui, a que veio nas caravelas e nos porões dos navios e a que os transatlânticos<br />
trouxeram da europa.<br />
d) descreve a europa em situações vividas pelo português, pelo espanhol, pelo italiano,<br />
pelo francês etc., num cenário consoante à rapidez turística da viagem do autor.<br />
e) busca, no tema do homem brasileiro, o recorte paulistano da família bandeirante,<br />
de raízes históricas e de tradições sociais.<br />
5.<br />
em <strong>Brás</strong>, <strong>Bexiga</strong> e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong>, Antônio de Alcântara Machado registra aspectos<br />
do cotidiano dos imigrantes italianos ou “novos mamalucos”, a quem declara<br />
homenagear com seus contos. diz o autor em seu “Artigo de fundo” que a origem<br />
dos onze contos é jornalística, pois eles registram cenas paulistanas, apresentadas<br />
como notícias efêmeras, com grande objetividade. Isso significa que o autor:<br />
a) pretende fazer uma complexa análise psicológica das personagens.<br />
b) pretende analisar as relações sociais entre os imigrantes italianos e os brasileiros<br />
de são Paulo.<br />
c) deseja apenas registrar cenas da vida cotidiana dos bairros habitados principalmente<br />
pelos imigrantes italianos.<br />
d) deseja apenas registrar cenas da vida cotidiana dos bairros habitados principalmente<br />
pelos imigrantes italianos, empregando, para isso, recursos da<br />
sociologia e da psicologia.<br />
e) tem como objetivo maior apresentar a contribuição intelectual e acadêmica<br />
do imigrante italiano na constituição da cultura brasileira.<br />
gabaRito<br />
1.<br />
a) os adjetivos ou expressões equivalentes conferem<br />
às cenas um clima de beleza e luxo. no<br />
texto 1, há ainda uma questão de paixão, de<br />
amor proibido. em ambos os textos ocorre<br />
também a idealização da realidade.<br />
b) O clima de sofisticação e beleza revela-se em adjetivos<br />
como “imponente”, “fogoso”, “formosa”,<br />
“de capacete prateado”, “com plumas brancas”,<br />
no primeiro texto; “elegante”, “fogosos”,<br />
“encantadora”, “de penas escarlates”, no segundo<br />
texto. A paixão, no primeiro texto, é indicada<br />
pelos adjetivos “apaixonado” e “louca”.<br />
40<br />
2. e<br />
3.<br />
a) beppino referia-se à sensação agradável de<br />
passear de carro, passeio que ele realizou<br />
durante o enterro de sua tia Peronetta.<br />
b) Trata-se do sonho de Gaetaninho de desfilar<br />
de carro.<br />
c) os nomes das personagens são de origem<br />
italiana elas habitam os bairros (brás, bexiga<br />
e <strong>Barra</strong> <strong>Funda</strong>) que dão título ao livro.<br />
4. A<br />
5. c