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ser solteira e solteiro e - Programa de Pós-graduação em ciências ...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA<br />

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS<br />

MÁRCIA SANTANA TAVARES<br />

OS NOVOS TEMPOS E VIVÊNCIAS DA “SOLTEIRICE” EM<br />

COMPASSO DE GÊNERO: SER SOLTEIRA E SOLTEIRO EM<br />

ARACAJU E SALVADOR<br />

MARÇO<br />

2008


MÁRCIA SANTANA TAVARES<br />

OS NOVOS TEMPOS E VIVÊNCIAS DA “SOLTEIRICE” EM<br />

COMPASSO DE GÊNERO: SER SOLTEIRA E SOLTEIRO EM<br />

ARACAJU E SALVADOR<br />

Tese apresentada para obtenção do título <strong>de</strong><br />

Doutor <strong>em</strong> Ciências Sociais à Universida<strong>de</strong><br />

Fe<strong>de</strong>ral da Bahia, no curso <strong>de</strong> Ciências<br />

Sociais.<br />

Orientadora:<br />

Profª. Drª. Cecília Maria Bacellar Sar<strong>de</strong>nberg<br />

MARÇO<br />

2008


___________________________________________________________________________<br />

Tavares, Márcia Santana<br />

S244<br />

Os novos t<strong>em</strong>pos e vivências da “solteirice” <strong>em</strong> compasso <strong>de</strong> gênero: <strong>ser</strong><br />

<strong>solteira</strong> e <strong>solteiro</strong> <strong>em</strong> Aracaju e Salvador / Márcia Santana Tavares. – Salvador, 2008.<br />

389 f.<br />

Orientadora: Profª. Drª. Cecília Maria Bacellar Sar<strong>de</strong>nberg.<br />

Tese (doutorado) – Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia, Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia e Ciências<br />

Humanas, 2008.<br />

1. Solteiros. 2. Relações hom<strong>em</strong> – mulher.<br />

I. Sar<strong>de</strong>nberg, Cecília Maria Bacellar. II. Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia, Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Filosofia e Ciências Humanas. III.Título.<br />

CDD – 305.3<br />

___________________________________________________________________________


MÁRCIA SANTANA TAVARES<br />

TÍTULO DA TESE<br />

Aprovada <strong>em</strong> 06 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2008<br />

Banca Examinadora<br />

_____________________________________<br />

Profª. Drª. Cecília Maria Bacellar Sar<strong>de</strong>nberg<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia<br />

_____________________________________<br />

Profª. Drª. Maria Rosário Gonçalves <strong>de</strong> Carvalho<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia<br />

_____________________________________<br />

Profª. PhD. Maria Luíza Heilborn<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

_____________________________________<br />

Profª. Drª. Guaraci A<strong>de</strong>odato Alves <strong>de</strong> Souza<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia<br />

_____________________________________<br />

Profª. Drª. Alda Britto da Motta<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia<br />

Tese apresentada ao <strong>Programa</strong> <strong>de</strong> <strong>Pós</strong><br />

Graduação <strong>em</strong> Ciências Sociais da<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia, como<br />

requisito parcial para a obtenção do<br />

grau <strong>de</strong> Doutor <strong>em</strong> Ciências Sociais.


A Luciene,<br />

cuja força nunca cessa,<br />

é no recomeço que se <strong>de</strong>scobre inteira e melhor.


AGRADECIMENTOS<br />

Ao escrever as últimas linhas <strong>de</strong>ste estudo, <strong>em</strong> meio à sensação <strong>de</strong> alívio, minha<br />

m<strong>em</strong>ória recaptura momentos e episódios que marcaram os últimos quatro anos, sobre os<br />

quais não pretendo me <strong>de</strong>talhar, pois provavelmente se tornaria outra tese. Contudo, a<br />

m<strong>em</strong>ória também recupera rostos e nomes <strong>de</strong> pessoas a qu<strong>em</strong> gostaria <strong>de</strong> expressar minha<br />

gratidão, pois <strong>de</strong> forma direta ou indireta, contribuíram para que eu conseguisse cumprir<br />

mais uma etapa <strong>em</strong> meu processo <strong>de</strong> formação.<br />

À minha mãe, Hilda, pelas orações e cuidados, cujo olhar preocupado e ansioso eu<br />

flagrei tantas vezes nas horas insones e momentos <strong>em</strong> que meu alheamento percorria outras<br />

paisagens.<br />

A tia Ivanete, “Tata”, pela presença alegre e constante nos meus finais <strong>de</strong> s<strong>em</strong>ana,<br />

cujas balinhas <strong>de</strong> mel adoçavam os momentos <strong>em</strong> que as idéias cismavam <strong>em</strong> fugir.<br />

Às minhas irmãs, Isa e Lulu, pelo apoio incondicional. Não po<strong>de</strong>ria ter melhores<br />

companheiras nas minhas idas e vindas entre Aracaju e Salvador. Lulu, pelos cuidados<br />

maternais, além do refúgio que encontrei <strong>em</strong> sua casa, quando necessitava <strong>de</strong> silêncio e<br />

tranqüilida<strong>de</strong>. Isa, pela escuta incansável dos meus <strong>de</strong>vaneios madrugadas afora,<br />

questionamentos e opiniões s<strong>em</strong>pre precisas.<br />

À professora Cecília Sar<strong>de</strong>nberg, que me iniciou nas aventuras <strong>de</strong> gênero no<br />

Mestrado, faz oito anos e, t<strong>em</strong> norteado meus passos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, cuja influência é<br />

perceptível <strong>em</strong> todo o trabalho. Seu olhar arguto, ao qual nada passa <strong>de</strong>spercebido, sugere<br />

caminhos insuspeitados, lança provocações intelectuais que me instigam, ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

<strong>em</strong> que sua confiança me <strong>de</strong>ixa segura para tentar respon<strong>de</strong>r a seus <strong>de</strong>safios.


Às professoras Rosário Carvalho e Alda Motta, pelos questionamentos e preciosa<br />

orientação teórico-metodológica <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o exame <strong>de</strong> qualificação, apontando-me com precisão<br />

lacunas e fragilida<strong>de</strong>s na feitura do trabalho. Às professoras Maria Luiza Heilborn e Guaraci<br />

A<strong>de</strong>odato, pelo cuidado com que leram a tese, cujos comentários instrutivos, críticas e<br />

sugestões tentei incorporar no texto final.<br />

Aos professores Ana Alice Costa, Antônio Câmara e Or<strong>de</strong>p Serra que esquadrinharam<br />

o meu projeto <strong>de</strong> pesquisa no processo <strong>de</strong> seleção para o Doutorado e apontaram possíveis<br />

equívocos e, ou imprecisões teórico-metodológicas a <strong>ser</strong><strong>em</strong> revistos, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

me incentivaram a aprofundar os meus parcos conhecimentos acerca da solteirice.<br />

Às professoras Maria Helena Cruz e Conceição Vasconcelos (Lica), pelo apoio e<br />

incentivo durante a preparação para o processo seletivo do doutorado.<br />

A Igor, Lela, Tali e Lai que acolheram com carinho uma hóspe<strong>de</strong> pouco convencional,<br />

com a mala cheia <strong>de</strong> livros e poucas palavras para trocar, nas minhas incontáveis viagens a<br />

Salvador.<br />

A Alessandra, Roberta, Erick, Enzo, meu pequeno notável, Gabriella, a mais nova<br />

ruivinha da família e Marcella, cuja presença especial e bilhetinhos carinhosos segredados<br />

no meu computador me reavivavam as idéias.<br />

Aos amigos Emanoel Nascimento e Ana Rosa, que não pouparam esforços para<br />

agilizar meu afastamento da Prefeitura e, assim, po<strong>de</strong>r realizar o Doutorado com mais<br />

tranqüilida<strong>de</strong>. Em especial, Rosária Rabelo, amiga e companheira <strong>de</strong> luta, que abdicou da<br />

minha colaboração durante parte da sua gestão na Secretaria Municipal <strong>de</strong> Assistência<br />

Social e Cidadania, não só por sua generosida<strong>de</strong>, mas também pela capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r<br />

que a minha qualificação profissional traria benefícios para o trabalho <strong>de</strong>senvolvido pela<br />

equipe <strong>de</strong> assistentes sociais frente à política <strong>de</strong> assistência social no município <strong>de</strong> Aracaju.


Às colegas da UNIT, <strong>em</strong> especial: Magaly, anjinho barroco que pensava e organizava<br />

ativida<strong>de</strong>s nas disciplinas que compartilhamos, além <strong>de</strong> rastrear <strong>solteiro</strong>s para a pesquisa;<br />

Rose, com qu<strong>em</strong> dividi angústias; Catarina, pelo apoio na redução <strong>de</strong> carga horária e<br />

colaboração na feitura <strong>de</strong>ste estudo; Vera Núbia, com sua preocupação e vibrações.<br />

Finalmente, Jesana, companheira <strong>de</strong> incursões pelo gênero que ouvia atentamente meus<br />

monólogos entusiasmados sobre a pesquisa e cuja biblioteca eu <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong>sfalcada durante o<br />

último ano.<br />

Às alunas e alunos que compreen<strong>de</strong>ram meus momentos <strong>de</strong> dispersão e fadiga,<br />

concordaram <strong>em</strong> antecipar aulas para que pu<strong>de</strong>sse me <strong>de</strong>dicar integralmente à conclusão da<br />

tese e, com e-mails e mensagens carinhosas me incentivaram durante os momentos finais.<br />

A todas as pessoas que intermediaram possíveis entrevistados, “caçadores<br />

implacáveis” <strong>de</strong> <strong>solteira</strong>s e <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>s <strong>em</strong> Aracaju e Salvador: Maria Inês, Rosângela,<br />

Tânia, Rômulo, Téo, Ivana, Zezeca e Lourdinha. Em especial, Mônica, pela companhia<br />

solidária e divertida nas viagens, b<strong>em</strong> como livros cedidos; além <strong>de</strong> Kátia que, afetuosa como<br />

s<strong>em</strong>pre, acolheu o meu pedido <strong>de</strong> “socorro” diante da dificulda<strong>de</strong> para compor a amostra da<br />

pesquisa <strong>em</strong> Salvador.<br />

A Tereza Cristina, minha <strong>de</strong>ntista e amiga, pela generosida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sprendimento,<br />

ce<strong>de</strong>ndo-me seu computador nos momentos finais, quando o meu, cansado, <strong>de</strong>cidiu parar <strong>de</strong><br />

funcionar.<br />

A Valéria, que recebeu meus escritos às pressas e, s<strong>em</strong> reclamar, cuidou da revisão e<br />

formatação do trabalho.<br />

Às amigas e amigos que enten<strong>de</strong>ram meu afastamento t<strong>em</strong>porário e perdoaram os e-<br />

mails não respondidos, telefon<strong>em</strong>as que me esqueci <strong>de</strong> retornar, compromissos que adiei<br />

in<strong>de</strong>finidamente, aniversários que <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> com<strong>em</strong>orar, minha ausência <strong>em</strong> momentos<br />

alegres, mas principalmente difíceis <strong>em</strong> suas vidas.<br />

8


Finalmente, agra<strong>de</strong>ço às mulheres e homens entrevistados, que generosamente<br />

contaram suas histórias, <strong>de</strong>ixaram impressões e marcas da solteirice, entr<strong>em</strong>eadas por<br />

pensares e quereres, realida<strong>de</strong> e fantasia. Portanto, <strong>de</strong>ram-me <strong>de</strong> presente o pulsar da vida,<br />

que tento traduzir neste estudo.<br />

9


O olho vê, a l<strong>em</strong>brança revê, e a imaginação transvê.<br />

É preciso transver o mundo.<br />

Isto seja:<br />

[...] É preciso <strong>de</strong>sformar o mundo:<br />

Tirar da natureza as naturalida<strong>de</strong>s.<br />

Manoel <strong>de</strong> Barros (1996)


RESUMO<br />

Este estudo se propõe a refletir sobre a solteirice na socieda<strong>de</strong> brasileira cont<strong>em</strong>porânea. Mais<br />

especificamente, preten<strong>de</strong> investigar mudanças e permanências nas percepções e práticas<br />

sociais da solteirice, procurando analisar como gênero e geração intersectam na produção <strong>de</strong><br />

diferentes experiências da solteirice. O universo da pesquisa compreen<strong>de</strong> mulheres e homens<br />

<strong>solteiro</strong>s que nunca experimentaram relação <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong>, com faixa etária acima dos<br />

trinta anos, m<strong>em</strong>bros das classes médias <strong>de</strong> Aracaju e Salvador. A amostra é composta por<br />

vinte e seis sujeitos, <strong>de</strong> ambos os sexos, treze <strong>em</strong> Aracaju e treze <strong>em</strong> Salvador que, por a<strong>de</strong>são<br />

espontânea, concordaram <strong>em</strong> prestar seus <strong>de</strong>poimentos. O estudo, <strong>de</strong> natureza qualitativa,<br />

levou-me a privilegiar como técnica para a coleta dos dados as histórias <strong>de</strong> vida, cujos<br />

<strong>de</strong>poimentos pessoais dos sujeitos foram gravados e acompanhados pela organização <strong>de</strong> um<br />

diário <strong>de</strong> campo contendo <strong>de</strong>scrições e informações sobre as situações das entrevistas. A<br />

partir dos resultados <strong>de</strong>ssas entrevistas, po<strong>de</strong>-se concluir que a solteirice é concebida e<br />

vivenciada <strong>de</strong> forma distinta por mulheres e homens, o que <strong>de</strong>termina estilos e projetos <strong>de</strong><br />

vida também diferenciados. O fator geração contribui como outro diferenciador, mas apenas<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sses grupos, sendo o fator gênero o principal divisor <strong>de</strong> águas. Assim, <strong>de</strong> modo<br />

geral, as mulheres <strong>solteira</strong>s não faz<strong>em</strong> apologia do ficar sozinha, mas aquelas que são mais<br />

“liberadas” sexualmente, mais in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e melhor sucedidas na profissão, prefer<strong>em</strong><br />

permanecer sozinhas a abdicar<strong>em</strong> <strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong>, realização pessoal e profissional. Quanto<br />

aos homens entrevistados, invest<strong>em</strong> nos estudos, na carreira profissional e adiam o casamento<br />

in<strong>de</strong>finidamente, pois ao contrário das mulheres não são exilados do mercado matrimonial<br />

com o avanço da ida<strong>de</strong> e, além disso, pre<strong>ser</strong>vam a disjunção entre sexo e afetivida<strong>de</strong>, s<strong>em</strong> que<br />

isso afete sua vida sexual. Tudo indica, portanto, que as "novas <strong>solteira</strong>s" estão fadadas a<br />

continuar sozinhas, uma vez que a assimetria sexual dos papéis afetivos ainda rege a<br />

coreografia da dança a dois entre os <strong>solteiro</strong>s.<br />

PALAVRAS-CHAVE: solteirice; gênero; geração; experiência.


ABSTRACT<br />

This study proposes to reflect upon the condition of “singlehood” in cont<strong>em</strong>porary Brazilian<br />

society, focusing, more specifically, on changes and continuities in practices and perceptions<br />

about being single, and how gen<strong>de</strong>r and generation intersect in producing different<br />

experiences of singlehood. In this study, a total of 26 individuals – 13 women and 13 men –<br />

over 30 years of age and residing in the cities of Aracaju and Salvador were interviewed. The<br />

sample was restricted to women and men of the middle-classes, who have never formed a<br />

conjugal partnership and who agreed to speak about their experiences. The study was based<br />

on a qualitative methodology, privileging the collection of recor<strong>de</strong>d life-stories along with the<br />

use of a field journal as the major data-gathering techniques. On the basis of the results<br />

obtained, it may be conclu<strong>de</strong>d that the condition of singlehood is perceived and experienced<br />

differently by women and men, thus resulting in life styles and plans for life also distinct on<br />

the basis of sex. Generation contributes as another important factor of differentiation, but only<br />

within each group, gen<strong>de</strong>r <strong>em</strong>erging as the major water divisor. Thus, it may be said that, in<br />

general, though single women do not advocate in favor of being alone, those that are more<br />

“liberated” sexually, more economically in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt and better succee<strong>de</strong>d professionally<br />

prefer to r<strong>em</strong>ain single so as not to abdicate of their freedom and personal and professional<br />

realization. Concerning the men interviewed, they invest in their studies and in their<br />

professional careers, but postpone marriage in<strong>de</strong>finitely for they are not <strong>de</strong>prived of their<br />

matrimonial perspectives with the advance in the years, on the contrary to the women.<br />

Besi<strong>de</strong>s, the men maintain the disjunction between sex and affection without any reflection on<br />

their sexual life. Therefore, the differences ob<strong>ser</strong>ved along gen<strong>de</strong>r appears to indicate that the<br />

“new single women” are <strong>de</strong>stined to r<strong>em</strong>ain “single”, as gen<strong>de</strong>r asymmetry of the affective<br />

roles continues to manage the two and two choreography of the cont<strong>em</strong>porary singlehood.<br />

The ob<strong>ser</strong>ved differences along gen<strong>de</strong>r lines do indicate that the "new single women" are<br />

<strong>de</strong>stined to r<strong>em</strong>ain "single", as gen<strong>de</strong>r asymmetry continues to <strong>de</strong>termine the coreography <strong>de</strong><br />

dance between the sexes in cont<strong>em</strong>porary singlehood in Brazil.<br />

KEY WORDS: singlehood, gen<strong>de</strong>r, generation, experience.


SUMÁRIO<br />

1 Introdução 15<br />

2 Um Olhar <strong>de</strong> Gênero sobre a Solteirice na Cont<strong>em</strong>poraneida<strong>de</strong> 30<br />

2.1 Reescrevendo a Solteirice à Brasiliana 47<br />

2.2 Situando a Experiência como Categoria Analítica 87<br />

2.2.1 Conceitos e Representações sobre as Classes Médias na Contextura<br />

Atual 91<br />

2.2.2 Articulando Recortes: Classe e Geração 99<br />

2.2.3 Experiências Plurais: a intersecção entre gênero, classe social,<br />

geração e raça/etnia 106<br />

3 Caminhos e Atalhos para Decifrar a Solteirice <strong>em</strong> Aracaju e Salvador 121<br />

3.1 Notas Iniciais sobre o Fazer Etnográfico 121<br />

3.2 Percorrendo os Territórios da Solteirice <strong>em</strong> Aracaju e Salvador 125<br />

3.3 Tecendo a Re<strong>de</strong>: À Procura <strong>de</strong> Mulheres e Homens Solteiros <strong>em</strong><br />

Aracaju e Salvador. 131<br />

3.4 Apontamentos sobre as Entrevistas 138<br />

3.5 Álbum Fotográfico: retrato <strong>em</strong> 3x4 das <strong>solteira</strong>s e dos <strong>solteiro</strong>s<br />

estudados 142<br />

4 A Cartografia Da Solteirice 149<br />

4.1 A Aprendizag<strong>em</strong> dos Afetos 149<br />

4.2 O Investimento na Carreira Profissional: Um Novo Cenário Para A<br />

Solteirice? 168<br />

4.3 Solteiras e Solteiros? – Sim. – e Solteironas e Solteirões, Também? 179<br />

5 Coreografias da Solteirice <strong>em</strong> Aracaju e Salvador 205<br />

5.1 O Corpo <strong>em</strong> Movimento 205


5.2 As Experiências Sexuais: Diferenças <strong>em</strong> Gênero, Número e Grau 217<br />

5.3 Ações e Reações: vivências da solteirice na família e no trabalho 236<br />

5.4 A Estilização e Projetos <strong>de</strong> Vida 252<br />

6 Conclusão: Revelando a Solteirice <strong>em</strong> Aracaju e Salvador 287<br />

Referências Bibliográficas 310<br />

ANEXOS 324<br />

14


1 INTRODUÇÃO<br />

Eu acho engraçado você estar com esse papo <strong>de</strong> casamento, no século XXI, casa,<br />

não casa, por que não casa. Eu acho que é uma coisa interessante, uma pesquisa<br />

científica válida, [...] mas é um mundo muito longe.<br />

15<br />

Camilo<br />

Na socieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong>os, o relacionamento entre os pares é marcado pelo<br />

<strong>de</strong>scompasso e, o transitório, contingente, efêmero e/ou <strong>de</strong>scartável trama a fugacida<strong>de</strong> do<br />

encontro e fragilida<strong>de</strong> dos vínculos afetivos. Talvez por isso, um estudo sobre a solteirice<br />

f<strong>em</strong>inina e masculina causa espanto, divertimento e perplexida<strong>de</strong> entre as pessoas que, por<br />

meio <strong>de</strong> olhares enviesados, que mal disfarçam a surpresa, risos sarcásticos ou frases<br />

incompletas, <strong>de</strong>volv<strong>em</strong>-me a seguinte pergunta: Qual a relevância da solteirice? Dentre tantos<br />

t<strong>em</strong>as, porque escolher justamente a solteirice, quando as profundas transformações na<br />

tessitura social têm <strong>de</strong>flagrado a <strong>de</strong>molição <strong>de</strong> paradigmas e padrões, confrontando os sujeitos<br />

com a construção <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>s plurais e um amplo campo <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s no tocante a<br />

escolhas e experiências <strong>de</strong> vida? Para que per<strong>de</strong>r t<strong>em</strong>po com isso, quando há t<strong>em</strong>as muito<br />

mais instigantes e atuais?<br />

Neste sentido, indago: Por que não? Que razões <strong>de</strong>squalificam a solteirice como t<strong>em</strong>a<br />

<strong>de</strong> estudo? Certamente, o meu interesse não se <strong>de</strong>ve ao fato do casamento e constituição <strong>de</strong><br />

uma família permanecer como mo<strong>de</strong>lo relacional heg<strong>em</strong>ônico para formação do casal, a<br />

<strong>de</strong>speito das novas formas <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong> e arranjos familiares. Não pretendo tampouco<br />

reeditar o contraste da suposta estigmatização a que as <strong>solteiro</strong>nas são submetidas com a<br />

liberda<strong>de</strong> irrestrita atribuída aos solteirões. Isso não quer dizer que tenciono <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar o<br />

comportamento <strong>de</strong>sviante <strong>de</strong> mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s, ao contrário, proponho captar o<br />

nexos existente <strong>em</strong> suas percepções <strong>de</strong> mundo, formas <strong>de</strong> resistência ou conformismo,<br />

s<strong>em</strong>elhanças ou diferenças na maneira <strong>de</strong> agir e reagir nas molduras <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> <strong>em</strong> que


interag<strong>em</strong>. Em suma, tentarei recuperar fragmentos que se entrelaçam <strong>em</strong> suas narrativas<br />

biográficas para esboçar uma interpretação acerca das significações <strong>de</strong> que se reveste a<br />

solteirice, das expectativas e vivências sociais <strong>de</strong> mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s na socieda<strong>de</strong><br />

cont<strong>em</strong>porânea.<br />

Este estudo t<strong>em</strong> como objetivo principal investigar a trajetória <strong>de</strong> vida e práticas<br />

sociais <strong>de</strong> homens e mulheres <strong>solteiro</strong>s (as), acima <strong>de</strong> 30 anos, oriundos das classes médias,<br />

<strong>em</strong> Aracaju - Se e Salvador - Ba, ou melhor, <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r como constro<strong>em</strong> suas práticas, quais<br />

as cobranças, preconceitos com os quais se <strong>de</strong>bat<strong>em</strong> no cotidiano, quais as representações que<br />

elaboram sobre a condição <strong>de</strong> <strong>solteira</strong>s (os) e as percepções sobre o masculino e f<strong>em</strong>inino que<br />

lhes dão formatação i<strong>de</strong>ntificatória e social.<br />

A escolha do t<strong>em</strong>a começou a se <strong>de</strong>linear durante pesquisa realizada para construção<br />

<strong>de</strong> minha dis<strong>ser</strong>tação <strong>de</strong> mestrado – “Pelas Lentes do Amor: um estudo sobre o cotidiano<br />

amoroso <strong>de</strong> camadas médias urbanas <strong>em</strong> Aracaju” (TAVARES, 2002) – cuja meta precípua<br />

consistiu <strong>em</strong> rastrear o cotidiano amoroso <strong>de</strong> homens e mulheres <strong>de</strong>ste segmento <strong>em</strong> Aracaju,<br />

a partir <strong>de</strong> seus relatos biográficos.<br />

De fato, <strong>em</strong> 1999, ao pensar as consi<strong>de</strong>rações finais, <strong>de</strong>scortinaram-se outras tantas<br />

indagações, cuja centralida<strong>de</strong> apontava para o aprofundamento da condição <strong>de</strong> <strong>solteira</strong> (o), <strong>em</strong><br />

nossa socieda<strong>de</strong> cont<strong>em</strong>porânea. Senão, vejamos:<br />

• Homens e mulheres reflet<strong>em</strong>, expressam-se sobre e vivenciam o amor <strong>de</strong> forma<br />

diferenciada, ainda que tenham como balizamento, mo<strong>de</strong>lo heg<strong>em</strong>ônico, a<br />

formação <strong>de</strong> uma família, a conjugalida<strong>de</strong>;<br />

• As representações acerca da família e expectativas relacionais encontram-se<br />

<strong>em</strong>aranhadas numa justaposição entre o “arcaico e o mo<strong>de</strong>rno” (FIGUEIRA,<br />

1987), o que muitas vezes, produz um aturdimento, ambigüida<strong>de</strong>;<br />

• Apesar <strong>de</strong> suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s posicionais <strong>ser</strong><strong>em</strong> claramente contrastantes, mulheres<br />

e homens tornam-se reféns das permissíveis imagens compostas por um quadro<br />

binário do casal que o profundo con<strong>ser</strong>vadorismo da cida<strong>de</strong> lhes conce<strong>de</strong> plasmar;<br />

16


• E se <strong>solteiro</strong>s (as), separadas, tentam driblar a “or<strong>de</strong>m natural”, construir uma<br />

nova trajetória afetiva, ensaiando novos signos, os casados reprisam velhos<br />

enredos, ancorando-se <strong>em</strong> valores e padrões convencionais, apropriados<br />

socialmente.<br />

Decerto, vêm ocorrendo transformações na tessitura social que interpenetram e<br />

r<strong>em</strong>o<strong>de</strong>lam a dinâmica relacional. Estudos <strong>de</strong>senvolvidos por autores como Badinter (1986,<br />

1993), Lasch (1991) e Gid<strong>de</strong>ns (1991, 1993, 2002) entre outros, ressaltam que a felicida<strong>de</strong><br />

não mais se encontra condicionada à experimentação <strong>de</strong> uma relação erótico-amorosa, ou<br />

mesmo à perpetuida<strong>de</strong> do par, o amor reveste-se <strong>de</strong> outros tons, para tornar-se um amor<br />

amigo, contingencial, <strong>em</strong> que a solidão, para as mulheres, é preferível que pre<strong>ser</strong>var uma<br />

união cujo i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> perfeição há muito se esvaneceu.<br />

No Brasil, a partir da década <strong>de</strong> 60, a crescente in<strong>ser</strong>ção das mulheres nas<br />

universida<strong>de</strong>s e no mercado <strong>de</strong> trabalho irá re<strong>de</strong>finir o papel f<strong>em</strong>inino no âmbito público e<br />

privado, uma vez que elas passam a valorizar o trabalho extra-lar e a exercer profissões até<br />

então tidas como “masculinas” (GOLDEMBERG, 1994).<br />

Da mesma forma, os movimentos <strong>em</strong>ancipatórios f<strong>em</strong>inistas, ao <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<strong>em</strong> uma<br />

maior liberda<strong>de</strong> e autonomia sexual da mulher, vão contrarrestar as representações do<br />

f<strong>em</strong>inino, construídas a partir <strong>de</strong> uma pedagogia pietista que mo<strong>de</strong>lava a mulher como<br />

virtuosa, dócil, esposa e mãe <strong>de</strong>votada, <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> sexualida<strong>de</strong>.<br />

A<strong>de</strong>mais, a diss<strong>em</strong>inação <strong>de</strong> métodos contraceptivos contribuiu para que a mulher<br />

vivencie sua sexualida<strong>de</strong>, que agora é or<strong>de</strong>nada pelo <strong>de</strong>sejo e prazer sexual e, não mais<br />

encarcerada à relação matrimonial.<br />

Por fim, a difusão da psicanálise incita na mulher a busca por autonomia e realização<br />

pessoal, liberda<strong>de</strong>, in<strong>de</strong>pendência, igualda<strong>de</strong> no âmbito público e privado, auto-conhecimento,<br />

suas escolhas sendo <strong>de</strong>finidas conscient<strong>em</strong>ente, <strong>de</strong> forma a subverter a moral sexual imposta<br />

17


diferent<strong>em</strong>ente a mulheres e homens e, <strong>de</strong>ssa forma, apropriar-se <strong>de</strong> seu corpo e <strong>de</strong>sejos<br />

(GOLDENBERG, 1994).<br />

Entretanto, conforme ob<strong>ser</strong>va Dauster (1987), a família nuclear, composta por hom<strong>em</strong>,<br />

mulher e filhos, persiste como referência matricial das relações sociais, apesar do surgimento<br />

<strong>de</strong> novos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> outros padrões <strong>de</strong> organização doméstico-familiar e<br />

dos relacionamentos afetivo-sexuais <strong>ser</strong><strong>em</strong> regidos por um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> e<br />

compl<strong>em</strong>entarieda<strong>de</strong>. Afinal, como adverte Sar<strong>de</strong>nberg (1997), os mol<strong>de</strong>s patriarcais<br />

permanec<strong>em</strong> fort<strong>em</strong>ente arraigados e atuam como referencial imagético para a construção da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do “macho” brasileiro, impedindo que as relações <strong>de</strong> gênero, no casamento, sejam<br />

plasmadas, concretamente, <strong>de</strong> forma igualitária.<br />

Tais evidências levaram-me a pensar a condição <strong>de</strong> <strong>solteira</strong> (o) como um campo<br />

t<strong>em</strong>ático <strong>de</strong> estudo. A<strong>de</strong>mais, sou mulher, <strong>solteira</strong>, algumas vezes não só me (re)conheci nas<br />

narrativas dos sujeitos sobre seus encontros e <strong>de</strong>sencontros amorosos, como tenho sido<br />

questionada por pessoas sobre meu estado civil, ora com <strong>de</strong>sconfiança, ora com pesar. Tornei-<br />

me ainda alvo da preocupação <strong>de</strong> amigas, também <strong>solteira</strong>s, que sutilmente tentavam<br />

<strong>de</strong>mover-me da idéia <strong>de</strong> cursar o doutorado, uma vez que a mulher intelectual “<strong>de</strong>sf<strong>em</strong>iniliza-<br />

se”, assustando, portanto, possíveis preten<strong>de</strong>ntes. Afinal, <strong>de</strong>cidi-me quando uma colega,<br />

também estudiosa das relações <strong>de</strong> gênero, surpreen<strong>de</strong>u-se com o meu interesse, afirmando, <strong>de</strong><br />

forma simplista, que o não casar está relacionado à orientação sexual do hom<strong>em</strong>, repisando a<br />

dicotomia que separa o f<strong>em</strong>inino e masculino na dinâmica afetiva, <strong>em</strong> que a mulher é a<br />

escolhida e o hom<strong>em</strong> aquele que escolhe, num jogo afetivo <strong>em</strong> que os papéis <strong>de</strong> “caça e<br />

caçador” não são cambiáveis.<br />

Todavia, surgiram outras indagações: Afinal, você <strong>de</strong>seja investigar pessoas <strong>solteira</strong>s<br />

ou celibatárias? Qual <strong>de</strong>sses termos <strong>ser</strong>ia mais pertinente? Há alguma distinção entre <strong>ser</strong><br />

<strong>solteiro</strong> (a) ou celibatário (a)? Ao percorrer as páginas <strong>de</strong> dicionários (FERREIRA, 1986;<br />

18


HOUAISS, 2006), pu<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar alguns significados atribuídos às expressões <strong>solteira</strong> (o) e<br />

celibatária (o), que me ajudaram a compor o objeto <strong>de</strong> estudo: A <strong>solteira</strong> e o <strong>solteiro</strong> são<br />

<strong>de</strong>finidos respectivamente como uma mulher e um hom<strong>em</strong> que ainda não se casaram, mas<br />

vale ressaltar, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já diferenças <strong>de</strong> gênero são enunciadas, a vida da <strong>solteira</strong> se encerra na<br />

expectativa do casamento, o que parece sugerir um único <strong>de</strong>stino para a mulher. Enquanto a<br />

mulher continua <strong>solteira</strong>, o hom<strong>em</strong> está <strong>solteiro</strong>, pois a vida <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>, quando comparada à<br />

vida <strong>de</strong> casado, oferece mais diversões e menos responsabilida<strong>de</strong>s. Neste sentido, toma-se<br />

como ex<strong>em</strong>plo os versos da canção para anunciar que “a vida <strong>de</strong> casado é boa, mas a vida <strong>de</strong><br />

<strong>solteiro</strong> é melhor” 1 . Em suma, – homens, adi<strong>em</strong> o casamento enquanto pu<strong>de</strong>r<strong>em</strong>!<br />

Pu<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir também que a mulher <strong>solteira</strong> é associada à meretriz, mulher errada,<br />

perdida, ou seja, mulher pública, que não é mulher <strong>de</strong> ninguém, enquanto o termo <strong>solteiro</strong><br />

po<strong>de</strong> se referir à carência, falta <strong>de</strong> algo ou alguém, mas porque o hom<strong>em</strong> está <strong>de</strong>scasado,<br />

separado ou divorciado. A expressão “<strong>solteiro</strong>”, também é <strong>em</strong>pregada, <strong>em</strong> sentido figurado,<br />

para nomear um cabo que não está sendo utilizado, mas se mantém disponível e <strong>em</strong> perfeitas<br />

condições <strong>de</strong> uso.<br />

Desse modo, chego ao termo solteirão ou celibatário, hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> meia-ida<strong>de</strong> ou mais<br />

velho que ainda não se casou, não t<strong>em</strong> intenção <strong>de</strong> casar ou cujos votos eclesiásticos impe<strong>de</strong>m<br />

o matrimônio. Contudo, se o hom<strong>em</strong> <strong>solteiro</strong> po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> nomeado como “celibatário”, tal<br />

expressão, <strong>em</strong> sentido figurado, é atribuída a algo s<strong>em</strong> proveito, estéril e inútil.<br />

Já a <strong>solteiro</strong>na é <strong>de</strong>finida como a mulher que não achou casamento e, por isso, ficou<br />

para “titia” (tal acepção não foi encontrada no masculino) ou para galo <strong>de</strong> São Roque. Em<br />

outros termos, a <strong>solteiro</strong>na é concebida como uma mulher encravada que, por falta <strong>de</strong><br />

atrativos, ficou no “caritó” e continua encalhada na prateleira do mercado afetivo, ou seja,<br />

1 FERREIRA (1986, p. 1608) refere-se ao samba “Solteiro é melhor”, composto por Rubens Soares e Felizberto<br />

Freire <strong>em</strong> 1940.<br />

19


nenhum hom<strong>em</strong> a escolheu como esposa e, por isso, a <strong>solteiro</strong>na é consi<strong>de</strong>rada uma vitalina,<br />

moça-velha s<strong>em</strong> vida afetiva e sexual.<br />

Contudo, os estudos <strong>de</strong>senvolvidos por Berquó (1989) acerca das tendências <strong>de</strong><br />

nupcialida<strong>de</strong> no Brasil advert<strong>em</strong> que as mulheres têm chances iguais aos homens no mercado<br />

matrimonial, mas só até os 30 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, quando suas oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> casamento<br />

começam a <strong>de</strong>clinar, gradativamente, ao contrário dos homens. Além disso, tais estudos<br />

classificam como celibatários tanto mulheres quanto homens que chegam aos 50 anos <strong>de</strong><br />

ida<strong>de</strong> s<strong>em</strong> se casar<strong>em</strong>, o que me levou a optar pela expressão solteirice e limitar o universo da<br />

pesquisa a mulheres e homens acima dos 30 anos, que supostamente nunca se casaram ou<br />

nunca conviveram maritalmente com alguém.<br />

Por outro lado, <strong>em</strong> pesquisa anterior, pu<strong>de</strong> constatar que, como supunha, <strong>em</strong> Aracaju<br />

(SE), os valores e comportamentos associados à dinâmica dos afetos são, <strong>de</strong> fato,<br />

con<strong>ser</strong>vadores, provincianos, sexistas, o que me levou à proposição <strong>de</strong> um estudo comparativo<br />

entre homens <strong>solteiro</strong>s e mulheres <strong>solteira</strong>s, acima <strong>de</strong> 30 anos, que nunca vivenciaram a<br />

conjugalida<strong>de</strong>, oriundos das classes médias urbanas, resi<strong>de</strong>ntes <strong>em</strong> Aracaju (SE) e Salvador<br />

(BA), <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> da contigüida<strong>de</strong> cartográfica entre estas capitais e a aparente diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

valores e comportamentos <strong>de</strong> seus moradores <strong>em</strong> relação ao objeto a <strong>ser</strong> investigado.<br />

Todavia, a <strong>de</strong>speito dos diferentes traçados urbanos e <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mográfica entre as<br />

duas capitais, b<strong>em</strong> como os distintos espaços <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> por on<strong>de</strong> transitam mulheres e<br />

homens, pu<strong>de</strong> constatar, neste estudo, que o contraste entre os homens e mulheres<br />

investigados ultrapassa as <strong>de</strong>limitações geográficas, na medida <strong>em</strong> que suas trajetórias <strong>de</strong> vida<br />

são recortadas pela dimensão <strong>de</strong> gênero. Neste sentido, para <strong>de</strong>slindar os construtos acerca da<br />

solteirice, adoto o gênero como categoria analítica, uma vez que as relações <strong>de</strong> gênero<br />

transformam todo o tecido da vida social, o mundo é pensado, visto, a partir <strong>de</strong> elaborações<br />

das diferenças percebidas <strong>de</strong> gênero. O gênero <strong>de</strong>fine como essas relações são construídas<br />

20


histórica e socialmente, ou seja, as relações <strong>de</strong> gênero são examinadas a partir <strong>de</strong> um contexto<br />

sócio-histórico e t<strong>em</strong>poral, <strong>em</strong> que se busca apreen<strong>de</strong>r os processos que as engendram <strong>em</strong> sua<br />

dinamicida<strong>de</strong> e as formas <strong>de</strong> como o po<strong>de</strong>r as perpassa, <strong>de</strong> modo a <strong>de</strong>snaturalizar a diferença<br />

sexual (HOLLANDA, 1994).<br />

O conceito <strong>de</strong> gênero é construído a partir da cultura. As idéias formuladas <strong>em</strong> torno<br />

do que é <strong>ser</strong> hom<strong>em</strong> ou mulher variam <strong>de</strong> acordo com cada cultura, época e socieda<strong>de</strong>. Essas<br />

idéias não reflet<strong>em</strong> simplesmente dados biológicos, são produtos <strong>de</strong> processos sociais e<br />

culturais. As relações <strong>de</strong> gênero, portanto, mo<strong>de</strong>lam os indivíduos <strong>em</strong> homens e mulheres.<br />

Conforme assinala Butler (2003, p. 200),<br />

[...] o gênero é uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> tenu<strong>em</strong>ente constituída no t<strong>em</strong>po, instituído num<br />

espaço externo por meio <strong>de</strong> uma repetição estilizada <strong>de</strong> atos. [...] Essa formulação<br />

tira a concepção do gênero do solo <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo substancial da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>slocando-a para um outro que requer concebê-lo como uma t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> social<br />

constituída.<br />

O gênero adquire substancialida<strong>de</strong> mediante a incorporação <strong>de</strong> atributos performativos<br />

reprisados pelos atores sociais ao longo do t<strong>em</strong>po. O caráter performativo do gênero é<br />

construído pela incorporação <strong>de</strong> sua credibilida<strong>de</strong>, necessida<strong>de</strong>, o que o naturaliza ou ainda,<br />

pela regulação, punição aos indivíduos que contrarrestam as normas <strong>de</strong> gênero impostas. Por<br />

outro lado, a crença dos atores sociais nas performances <strong>de</strong> gênero é construída <strong>em</strong><br />

consonância com a t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> social, ou seja, os atributos e atos são permanent<strong>em</strong>ente<br />

re<strong>de</strong>finidos (BUTLER, 2003).<br />

Se os atos adquir<strong>em</strong> corporeida<strong>de</strong> mediante uma repetição estilizada <strong>de</strong> gênero,<br />

movimentos e estilos corporais, faz<strong>em</strong>-no também através <strong>de</strong> papéis internalizados, injunções<br />

discursivas que reelaboram nossa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero e social. Ora, a vida social e afetivo-<br />

sexual é generificada e, por conseguinte, comportamentos mo<strong>de</strong>lizadores, formas <strong>de</strong> pensar e<br />

expectativas relacionadas a mulheres e homens, apesar das transformações ocorridas nas<br />

últimas décadas do século XX, são permeadas por hesitações e ambigüida<strong>de</strong>s (FIGUEIRA,<br />

1987). Neste sentido, Matos (2001) pon<strong>de</strong>ra que o historiador t<strong>em</strong> como função reunir as<br />

21


peças que compõ<strong>em</strong> o “quebra-cabeças” que <strong>de</strong>fine, abstratamente, o processo i<strong>de</strong>ntificatório<br />

do <strong>ser</strong> hom<strong>em</strong>, mulher, cujo “subjetivismo” <strong>em</strong> nossa socieda<strong>de</strong> hodierna, t<strong>em</strong> se mostrado<br />

multifacetado, <strong>em</strong> permanente transformação. Para tanto, recomenda:<br />

Ao historiador, cabe tanto a tarefa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconstruir no t<strong>em</strong>po as diferenças quanto<br />

<strong>de</strong>snaturalizá-las. [...] [A autora l<strong>em</strong>bra ainda que] as associações hom<strong>em</strong> –<br />

masculino e mulher – f<strong>em</strong>inino não são óbvias, <strong>de</strong>vendo-se consi<strong>de</strong>rar as percepções<br />

sobre masculino e f<strong>em</strong>inino como <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e constitutivas às relações culturais,<br />

procurando não essencializar sentimentos, posturas e modos <strong>de</strong> <strong>ser</strong> e viver <strong>de</strong> ambos<br />

os sexos (MATOS, p. 74 – 75).<br />

Desse modo, tomo como pressuposto que os significados e estereótipos atribuídos à<br />

solteirice são re<strong>de</strong>senhados pela t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> social, apresentando novas configurações <strong>em</strong><br />

nossa socieda<strong>de</strong> cont<strong>em</strong>porânea. Entretanto, consi<strong>de</strong>ro que a solteirice é também uma<br />

representação gendrada, e por isso mesmo, inscrita ainda diferent<strong>em</strong>ente por mulheres e<br />

homens, <strong>de</strong> forma a produzir um acumpliciamento entre idéias antigas e mo<strong>de</strong>rnas. No<br />

entanto, Brito da Motta (1999) l<strong>em</strong>bra que a vida social ganha sentido ou aparência <strong>de</strong> sentido<br />

através da conexão entre os conjuntos <strong>de</strong> relações sociais que a estruturam, <strong>em</strong> que o gênero<br />

não é o único <strong>de</strong>terminante, ou seja, a vida social também é influenciada por outros sist<strong>em</strong>as<br />

relacionais, a saber, as classes sociais, as ida<strong>de</strong>s/gerações e as raças/etnias. Em outros termos,<br />

cada um <strong>de</strong>sses conjuntos forma uma dimensão fundante da vida social e, caso analisados<br />

isoladamente, são incapazes <strong>de</strong> cont<strong>em</strong>plar a complexida<strong>de</strong> da vida social, mesmo porque se<br />

interpenetram e compl<strong>em</strong>entam uns aos outros.<br />

Assim sendo, se os termos adotados para distinguir <strong>solteiro</strong>s <strong>de</strong> celibatários parec<strong>em</strong><br />

aprisionar mulheres e homens a rótulos e estigmas, a dinamicida<strong>de</strong> da vida social sugere<br />

transformações, mulheres e homens <strong>em</strong> trânsito, que se faz<strong>em</strong> e refaz<strong>em</strong> permanent<strong>em</strong>ente e<br />

buscam acumpliciar os valores antigos aos referenciais assimilados mais recent<strong>em</strong>ente nas<br />

diferentes esferas da vida social, o que suscita as seguintes interrogações: Que imagens <strong>de</strong><br />

“<strong>ser</strong> <strong>solteira</strong>/<strong>ser</strong> <strong>solteiro</strong>” são projetadas por homens e mulheres das classes médias <strong>de</strong> Aracaju<br />

e Salvador no momento atual? Como homens e mulheres vivenciam a condição <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>s?<br />

22


Mulheres e homens apresentam comportamentos diferenciados? A in<strong>de</strong>pendência financeira e<br />

<strong>em</strong>ocional da mulher t<strong>em</strong> contribuído para aumentar o número <strong>de</strong> <strong>solteira</strong>s? As mulheres<br />

estão <strong>solteira</strong>s porque estão mais exigentes ou porque <strong>de</strong>sapren<strong>de</strong>ram a conquistar os homens?<br />

A presença masculina ainda confere respeitabilida<strong>de</strong> e valor à mulher? A mulher sozinha se<br />

sente fracassada e incompleta? A presença <strong>de</strong> uma mulher confere ao hom<strong>em</strong> o status <strong>de</strong><br />

<strong>ser</strong>ieda<strong>de</strong> e atesta a sua atitu<strong>de</strong> viril? Os motivos que levam os homens a permanecer <strong>solteiro</strong>s<br />

são os mesmos das mulheres? As cobranças sociais e familiares <strong>em</strong> torno do casamento, após<br />

os 30 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, apresentam s<strong>em</strong>elhanças e ou divergências entre homens e mulheres? É<br />

possível i<strong>de</strong>ntificar transformações relativas às práticas e representações sobre <strong>ser</strong> <strong>solteira</strong> (o)<br />

na socieda<strong>de</strong> brasileira cont<strong>em</strong>porânea? Essas são algumas das questões que nortearão a<br />

investigação e análise da solteirice neste estudo.<br />

O universo da pesquisa foi composto por mulheres e homens pertencentes às classes<br />

médias urbanas, resi<strong>de</strong>ntes <strong>em</strong> Aracaju e Salvador, na faixa etária entre 33 e 67 anos. A<br />

escolha <strong>de</strong>sse segmento social assim como da faixa etária po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> justificados <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> esses indivíduos ter<strong>em</strong> vivenciado ou assimilado mudanças valorativas no tocante a<br />

padrões <strong>de</strong> comportamento e priorida<strong>de</strong>s existenciais <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ados pela revolução<br />

contracultural e sexual ensaiada no final da década <strong>de</strong> 1960, regida simultaneamente por uma<br />

lógica libertária e individualista, balizada por uma psicologização da socieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> que o<br />

sujeito psicológico torna-se a medida <strong>de</strong> todas as coisas (VELHO, 2002). A opção do recorte<br />

geracional, <strong>de</strong>finido <strong>em</strong> três grupos etários, <strong>de</strong>ve-se à varieda<strong>de</strong> e sucessão <strong>de</strong> mudanças no<br />

período, principalmente entre as classes médias, gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>vido à profissionalização da<br />

mulher.<br />

Defini como locus da pesquisa as cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Aracaju e Salvador, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> da<br />

contigüida<strong>de</strong> cartográfica entre as capitais, mas também pela expressiva concentração <strong>de</strong><br />

famílias <strong>de</strong> classe média <strong>em</strong> seus respectivos Estados, Aracaju com um percentual <strong>de</strong> 58,0% e<br />

23


Salvador com um índice <strong>de</strong> 41,4%, conforme o censo <strong>de</strong>mográfico do IBGE, 2000<br />

(GUERRA, 2006). Além disso, durante a pesquisa para o Mestrado (TAVARES, 2002), pu<strong>de</strong><br />

constatar que, como supunha, <strong>em</strong> Aracaju, os valores e comportamentos associados à<br />

dinâmica dos afetos são, <strong>de</strong> fato, con<strong>ser</strong>vadores, sexistas. Então, imaginei que <strong>em</strong> Salvador,<br />

encontraria maior diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> valores e comportamentos <strong>de</strong> seus moradores <strong>em</strong> relação à<br />

solteirice. No entanto, este estudo revelou que tanto Aracaju como Salvador apresentam muito<br />

mais s<strong>em</strong>elhanças do que diferenças no tocante à forma como os <strong>solteiro</strong>s pensam sobre e<br />

vivenciam a solteirice.<br />

As mulheres e homens que compõ<strong>em</strong> o meu universo <strong>de</strong> pesquisa se apresentam como<br />

uma categoria social peculiar <strong>em</strong> termos analíticos, na medida <strong>em</strong> que me permitirão<br />

i<strong>de</strong>ntificar especificida<strong>de</strong>s e mudanças relativas às representações e práticas sociais da<br />

solteirice. Além disso, ao atentar para a dimensão geracional, po<strong>de</strong>rei <strong>de</strong>svendar também o<br />

entrelace entre o mo<strong>de</strong>rno e o arcaico, pois <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminados momentos e contextos, os<br />

indivíduos po<strong>de</strong>m adotar tanto comportamentos e atitu<strong>de</strong>s classificadas como mo<strong>de</strong>rnas e<br />

atuais, como se apegar a visões <strong>de</strong> mundo consi<strong>de</strong>radas tradicionais, o que <strong>de</strong>nuncia a<br />

variação, a tensão e heterogeneida<strong>de</strong> presentes no campo moral (VELHO, 2002). Vale dizer,<br />

portanto, que o universo a <strong>ser</strong> estudado, <strong>em</strong>bora dotado <strong>de</strong> condições sócio-econômicas<br />

análogas, <strong>de</strong>senha enredos diferenciados, pensa e age norteado por ethos e visões <strong>de</strong> mundo<br />

distintas.<br />

Para a composição do universo da pesquisa, optei pela tessitura <strong>de</strong> um “sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong><br />

re<strong>de</strong>s”, cuja amarração envolveu familiares, amigos, alunos, colegas <strong>de</strong> trabalho e do próprio<br />

doutorado, antigos e novos colaboradores que, mais curiosos do que receptivos, <strong>em</strong> relação ao<br />

t<strong>em</strong>a, ultrapassaram limites geográficos, recorreram a contatos telefônicos, e-mails e à própria<br />

re<strong>de</strong> <strong>de</strong> amigos virtuais, para expandir o número <strong>de</strong> possíveis informantes. Neste momento,<br />

portanto, contei com o apoio <strong>de</strong> mediadores que se aproximavam <strong>de</strong> pessoas <strong>solteira</strong>s,<br />

24


integrantes do seu círculo <strong>de</strong> convivência, comentavam sobre o t<strong>em</strong>a e objetivo da pesquisa<br />

para, <strong>em</strong> seguida, convidar<strong>em</strong> essas pessoas a prestar<strong>em</strong> seu <strong>de</strong>poimento. Por essa razão,<br />

adotei a técnica <strong>de</strong> amostrag<strong>em</strong> não-probabilista intencional, na qual a escolha dos sujeitos<br />

obe<strong>de</strong>ceu aos seguintes critérios: a<strong>de</strong>são espontânea para participar da pesquisa, pertencer<strong>em</strong><br />

às classes médias – segmento social composto por profissionais liberais, como professores<br />

universitários, advogados, funcionários públicos entre outros (OUTHWAITE e<br />

BOTTOMORE, 1996) –, residir<strong>em</strong> <strong>em</strong> Aracaju e/ou Salvador, ter<strong>em</strong> ida<strong>de</strong> superior a 30 anos,<br />

<strong>ser</strong><strong>em</strong> <strong>solteiro</strong>s, nunca ter<strong>em</strong> se casado ou convivido maritalmente com alguém.<br />

A pesquisa <strong>de</strong> campo foi realizada nas cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Salvador e Aracaju, durante o<br />

primeiro s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007, período <strong>em</strong> que entrevistei seis homens <strong>em</strong> Aracaju e sete <strong>em</strong><br />

Salvador; seis mulheres <strong>em</strong> Aracaju e sete mulheres <strong>em</strong> Salvador, a amostra totalizando vinte<br />

e seis informantes. Elegi uma pesquisa <strong>de</strong> natureza qualitativa, uma vez que <strong>de</strong>svelar a teia <strong>de</strong><br />

significados que or<strong>de</strong>na as crenças, valores, interesses, hábitos, estilos <strong>de</strong> vida e experiências<br />

sociais implica <strong>em</strong> conhecer as pessoas e privilegiar a linguag<strong>em</strong>, não apenas como meio <strong>de</strong><br />

comunicação, mas, sobretudo, <strong>de</strong> construção <strong>de</strong>sses significados e <strong>de</strong> reprodução das<br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais e sexuais.<br />

Este estudo busca ultrapassar os aspectos aparentes e visíveis da realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>cifrando<br />

o processo <strong>de</strong> construção da vida cotidiana <strong>de</strong> mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s, ou melhor, a<br />

realida<strong>de</strong> subjetiva que comanda sua experiência social e, po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> revelada através da<br />

palavra, da narrativa, o que me encaminhou para uma abordag<strong>em</strong> <strong>de</strong> natureza qualitativa. Tal<br />

abordag<strong>em</strong> rompe com o distanciamento entre sujeito e objeto, tece a aproximação e<br />

envolvimento, pois o pesquisador não é neutro, <strong>de</strong>sapaixonado, sua objetivida<strong>de</strong> é também<br />

permeada por múltiplos significados subjetivos, ou seja, é impossível um distanciamento<br />

completo entre sujeito e objeto, que se interpenetram (KELLER, 1991). A<strong>de</strong>mais, o mundo é<br />

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uma construção social e para conhecê-lo, somente a partir do seu interior, e não <strong>de</strong> uma<br />

perspectiva externa, ou seja, compartilho da idéia <strong>de</strong> conhecimento situado, corporificado.<br />

Neste sentido, privilegio o uso <strong>de</strong> técnicas qualitativas, mais precisamente, as histórias<br />

<strong>de</strong> vida, registros biográficos, através dos quais o pesquisador coleciona r<strong>em</strong>iniscências<br />

antigas e mais recentes sobre o informante, centradas <strong>em</strong> aspectos consi<strong>de</strong>rados relevantes<br />

para conhecer o objeto <strong>em</strong> estudo. As histórias <strong>de</strong> vida registram os pontos <strong>de</strong> vista, visões <strong>de</strong><br />

mundo do informante e, por isso, consist<strong>em</strong> <strong>em</strong> “relato fiel da experiência e interpretação do<br />

sujeito do mundo no qual vive. [...] A história <strong>de</strong> vida, por causa da ‘própria história’ <strong>de</strong> seus<br />

atores, é uma mensag<strong>em</strong> viva e vibrante que v<strong>em</strong> <strong>de</strong> ‘lá’, que nos conta o que significa <strong>ser</strong> um<br />

tipo <strong>de</strong> pessoa que nunca encontramos” (BECKER, 1997, p. 102-111).<br />

Com efeito, Vilanova (1994) sublinha que a fonte oral é, ao mesmo t<strong>em</strong>po, parcial e<br />

política, na medida <strong>em</strong> que se mantém inconclusa, estabelece o confronto entre entrevistador e<br />

entrevistado no encontro do diverso com o uno. A<strong>de</strong>mais, durante a entrevista, como num<br />

jogo <strong>de</strong> espelhos, os olhares se cruzam, elabora-se uma nova síntese através do diálogo,<br />

engendra-se um processo <strong>de</strong> aprendizado mútuo, daí seu potencial transformador. A autora<br />

<strong>de</strong>fine as histórias <strong>de</strong> vida como uma biografia dupla, visto que almejamos saber qu<strong>em</strong> e<br />

como são os <strong>de</strong>poentes, mas, acima <strong>de</strong> tudo, ao falarmos com eles, <strong>de</strong>sejamos <strong>de</strong>scobrir qu<strong>em</strong><br />

somos nós, (re)conhecer nossa própria subjetivida<strong>de</strong>. Por sua vez, Queiroz (apud<br />

HOLZMANN, 2001, p. 46) conceitua a história <strong>de</strong> vida como:<br />

[...] o relato <strong>de</strong> um narrador sobre sua existência através do t<strong>em</strong>po, tentando<br />

reconstruir os acontecimentos que ele consi<strong>de</strong>ra significativos, através <strong>de</strong>la se<br />

<strong>de</strong>lineiam as relações com os m<strong>em</strong>bros <strong>de</strong> seu grupo, <strong>de</strong> sua profissão, <strong>de</strong> sua<br />

camada social, <strong>de</strong> sua socieda<strong>de</strong> global, que cabe ao pesquisador <strong>de</strong>svendar.<br />

Neste sentido, Meihy (1996) enfatiza que, nas histórias <strong>de</strong> vida, o sujeito principal é o<br />

<strong>de</strong>poente, a qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> assegurada liberda<strong>de</strong> para discorrer livr<strong>em</strong>ente sobre sua<br />

experiência pessoal. O roteiro da narrativa é elaborado pelo entrevistado, que esboça o seu<br />

26


etrato oficial, constrói a sua verda<strong>de</strong>, cuja versão é filtrada, isto é, realça, minimiza ou omite<br />

casos, situações e pessoas. Como pon<strong>de</strong>ra Denzin (apud MINAYO, 1998, p. 126):<br />

A História <strong>de</strong> Vida apresenta as experiências e as <strong>de</strong>finições vividas por uma pessoa,<br />

grupo, uma organização, como esta pessoa, esta organização ou este grupo<br />

interpretam sua experiência.<br />

Po<strong>de</strong>-se afirmar, portanto, que a história <strong>de</strong> vida consiste <strong>em</strong> estratégia <strong>de</strong><br />

compreensão da realida<strong>de</strong>, obtida mediante uma entrevista prolongada, na qual um roteiro <strong>de</strong><br />

perguntas, previamente elaborado pelo pesquisador, centrado no t<strong>em</strong>a que <strong>de</strong>seja investigar,<br />

associado à ob<strong>ser</strong>vação e interação entre entrevistador e entrevistado, possibilita a este último<br />

<strong>de</strong>sfiar o fio da m<strong>em</strong>ória e nuançar aspectos, acontecimentos e pessoas significativas <strong>em</strong> sua<br />

trajetória <strong>de</strong> vida. Por isso, alguns pesquisadores têm optado por <strong>em</strong>pregar a técnica mediante<br />

uma comparação <strong>de</strong> várias histórias <strong>de</strong> vida, “focalizando o diverso e o análogo, o genérico e<br />

o específico entre os sujeitos, [...] uma vez que os singulares e o coletivo não se dissociam, da<br />

mesma forma que a realida<strong>de</strong> simbólica e objetiva” (TAVARES, 2002, p. 23).<br />

Vale <strong>de</strong>stacar, entretanto, que procurei limitar minhas intervenções, fazendo-o apenas<br />

quando solicitada pelos entrevistados, para esclarecer alguma dúvida, dissuadir aqueles(elas)<br />

que se consi<strong>de</strong>ravam “pessoas comuns” da irrelevância do seu <strong>de</strong>poimento para o estudo,<br />

respon<strong>de</strong>r perguntas relativas à forma <strong>de</strong> abordag<strong>em</strong> escolhida, sobre as dificulda<strong>de</strong>s<br />

encontradas durante o processo <strong>de</strong> coleta dos dados e, <strong>em</strong> alguns casos, sobre minhas próprias<br />

experiências pessoais, o que contribuiu para estabelecer um clima <strong>de</strong> cordialida<strong>de</strong> e<br />

companheirismo durante as entrevistas e, <strong>de</strong>ssa forma, assegurar a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> narrativa do<br />

informante. Os <strong>de</strong>poimentos foram gravados, transcritos e editados por mim, a fim <strong>de</strong><br />

pre<strong>ser</strong>var o discurso e expressões, assim como o anonimato dos entrevistados.<br />

Ao estabelecer uma relação dialógica com os entrevistados, permaneci atenta para a<br />

cronologia adotada na construção <strong>de</strong> suas narrativas, o entrelaçamento entre passado e<br />

presente, avanços e recuos no t<strong>em</strong>po, além <strong>de</strong> contradições, repetições, lacunas e dispersões,<br />

27


aliadas a gestuais e silêncios, ao dito e ao não dito, ou seja, fiz uso <strong>de</strong> uma ob<strong>ser</strong>vação<br />

assist<strong>em</strong>ática, que acabou me revelando outras mensagens. Neste sentido, adotei como técnica<br />

compl<strong>em</strong>entar a organização <strong>de</strong> um diário <strong>de</strong> campo, no qual registro anotações, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os<br />

primeiros contatos, até circunstâncias e situações atípicas que acompanharam cada entrevista.<br />

As anotações no diário <strong>de</strong> pesquisa traz<strong>em</strong> informações que escapam ao <strong>de</strong>poimento<br />

gravado, pois reún<strong>em</strong> impressões, mensagens explícitas ou latentes e, subjetivida<strong>de</strong>s<br />

expressas <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>licada e sutil, através do lugar escolhido para o encontro, <strong>de</strong> um olhar<br />

ou cheiro, das maneiras como entrevistador e entrevistado formulam ou respon<strong>de</strong>m perguntas<br />

sobre o objeto <strong>em</strong> estudo. Em suma, nos apontamentos do diário procuro refletir sobre a<br />

<strong>em</strong>patia e grau <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong> estabelecido durante o diálogo com o informante, além <strong>de</strong><br />

avaliar os limites colocados pelo respon<strong>de</strong>nte para acesso do pesquisador ao seu universo,<br />

além <strong>de</strong> pre<strong>ser</strong>var dados pessoais dos informantes, tais como ida<strong>de</strong>, sexo, escolarida<strong>de</strong>,<br />

profissão, nacionalida<strong>de</strong>, orig<strong>em</strong> e cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> entre outros aspectos que caracterizam<br />

o perfil dos sujeitos investigados.<br />

No primeiro capítulo, tento esquadrinhar a construção cultural da solteirice na<br />

socieda<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal e brasileira, sob diferentes enfoques teóricos. Assim, optei por rastrear<br />

referências tangenciais <strong>em</strong> estudos sobre a socieda<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal e brasileira, pesquisas sobre a<br />

mulher, artigos <strong>de</strong> revista, filme e peças publicitárias, <strong>de</strong> forma a i<strong>de</strong>ntificar as mudanças<br />

conceituais construídas, face às transfigurações na tessitura social, que re<strong>de</strong>senham novas<br />

imagens, representações, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que conduz<strong>em</strong> à adoção <strong>de</strong> novos<br />

comportamentos mo<strong>de</strong>lizadores para mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s.<br />

No segundo capítulo, coloco <strong>em</strong> foco o enquadramento teórico-metodológico que me<br />

conduziu ao encontro do objeto <strong>de</strong> estudo; refaço andanças, <strong>de</strong>svios, avanços e <strong>de</strong>moras para<br />

tecer o diálogo com os informantes; revejo as situações e circunstâncias peculiares que<br />

marcaram as entrevistas e, finalmente, esboço um retrato dos sujeitos investigados.<br />

28


No terceiro capítulo, tento traçar um esboço das cartografias da solteirice e dialogar<br />

com os personagens <strong>de</strong>ste estudo acerca <strong>de</strong> sua aprendizag<strong>em</strong> dos afetos e prazeres, <strong>de</strong> que<br />

forma a priorida<strong>de</strong> atribuída à expansão profissional contribui para a solteirice <strong>de</strong> mulheres e<br />

homens e, procuro i<strong>de</strong>ntificar mudanças e, ou permanências nas representações que elaboram<br />

sobre <strong>ser</strong> <strong>solteira</strong> e <strong>ser</strong> <strong>solteiro</strong>.<br />

No quarto e último capítulo, arrisco gravar as coreografias da solteirice <strong>em</strong> compasso<br />

<strong>de</strong> gênero, procurando acompanhar os movimentos do corpo e do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mulheres e<br />

homens, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a iniciação sexual até suas experiências sexuais na vida adulta; procuro<br />

registrar suas ações e reações diante das cobranças <strong>em</strong> tono do não-casamento no grupo<br />

familiar e no ambiente <strong>de</strong> trabalho e, finalmente, busco recuperar os estilos e projetos <strong>de</strong> vida<br />

moldados pela solteirice para mulheres e homens acima <strong>de</strong> 30 anos.<br />

A título <strong>de</strong> conclusão, procuro realçar a conexão entre as profundas transformações na<br />

tessitura social e a elaboração <strong>de</strong> novas representações e experiências da solteirice f<strong>em</strong>inina e<br />

masculina, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que sinalizo para continuida<strong>de</strong>s, ou seja, o entrelaçamento<br />

entre mo<strong>de</strong>los arquetípicos tradicionais e mo<strong>de</strong>rnos, o que <strong>de</strong>lineia tanto para mulheres quanto<br />

para homens formas <strong>de</strong> pensar, falar sobre e vivenciar a solteirice permeadas pela contradição<br />

e ambivalência.<br />

Por fim, vale reiterar, po<strong>de</strong>ria me incluir entre os sujeitos investigados, uma vez que<br />

faço parte do universo sobre o qual me <strong>de</strong>brucei neste estudo. Houve momentos <strong>em</strong> que me<br />

i<strong>de</strong>ntifiquei com os probl<strong>em</strong>as e indagações, incertezas e expectativas, quereres e fazeres,<br />

gostos, setores <strong>de</strong> estilos <strong>de</strong> vida, experiências e projetos futuros compartilhados comigo pelas<br />

mulheres e homens durante as entrevistas. Neste sentido, qualquer s<strong>em</strong>elhança com as<br />

palavras <strong>de</strong> Velho (2002) ou <strong>de</strong> outros autores, assim como possíveis analogias com amigos e<br />

conhecidos, <strong>de</strong>finitivamente, não são mera coincidência.<br />

29


2 UM OLHAR DE GÊNERO SOBRE A SOLTEIRICE NA<br />

CONTEMPORANEIDADE.<br />

A socieda<strong>de</strong> cont<strong>em</strong>porânea é marcada pela flui<strong>de</strong>z, in<strong>de</strong>finição e ambigüida<strong>de</strong> no<br />

tocante aos relacionamentos amorosos. As expectativas <strong>em</strong>ocionais <strong>de</strong>positadas no parceiro<br />

guardam a ânsia <strong>de</strong> alcançar unicida<strong>de</strong>, a mais perfeita completu<strong>de</strong>. Daí porque o casamento<br />

atual é <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> eternização, os pares ensaiam novos mo<strong>de</strong>los e formas <strong>de</strong><br />

conjugalida<strong>de</strong>. Da mesma forma, as estruturas <strong>de</strong> parentesco já não são as mesmas, surg<strong>em</strong><br />

outros mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> organização doméstico-familiar, instigados não só pela adoção <strong>de</strong> novas<br />

atitu<strong>de</strong>s e comportamentos mo<strong>de</strong>lizadores como pela mudança dos papéis f<strong>em</strong>ininos. Por essa<br />

razão, po<strong>de</strong>-se supor que a solteirice <strong>de</strong> mulheres e homens não é mais pensada ou vivida<br />

como antigamente e que um novo figurino v<strong>em</strong> sendo mo<strong>de</strong>lado. Contudo, captar a dimensão<br />

<strong>de</strong>ssas mudanças requer tecer o encontro entre o antigo e o mo<strong>de</strong>rno, <strong>de</strong> forma a <strong>de</strong>svelar a<br />

instabilida<strong>de</strong> e, ou permanência <strong>de</strong> conceitos, estigmas, pressões sociais que acompanham a<br />

viag<strong>em</strong> i<strong>de</strong>ntificatória <strong>de</strong> <strong>solteira</strong>s e <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>s ao longo do século XX e na atualida<strong>de</strong>.<br />

No início do século XX a Europa Oci<strong>de</strong>ntal ainda pre<strong>ser</strong>vava os casamentos tardios<br />

como padrão <strong>de</strong> nupcialida<strong>de</strong>, as mulheres contraiam matrimônio, pela primeira vez, com<br />

ida<strong>de</strong> entre 26 e 27 anos. Contudo, as alianças não eram muito freqüentes; das mulheres<br />

nascidas por volta <strong>de</strong> 1880, entre 10 e 20% permaneciam <strong>solteira</strong>s. O elevado celibato<br />

traduzia, <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte, os efeitos do controle social da fecundida<strong>de</strong>, mas havia outras<br />

razões Berquó (2006).<br />

Fonseca (1989), ao tentar estudar, <strong>em</strong> 1987, a lógica que regia o celibato <strong>de</strong> mulheres<br />

francesas, oriundas da alta e média burguesia, nascidas no início do século XX, <strong>de</strong>staca a<br />

importância que exercia o dote ou “cesta da noiva” <strong>em</strong> suas vidas, cuja inexistência é<br />

consi<strong>de</strong>rada uma das razões <strong>de</strong> sua exclusão do mercado matrimonial. Embora teçam críticas<br />

30


à persistência do dote e procur<strong>em</strong> <strong>de</strong>monstrar que ele não consiste <strong>em</strong> garantia <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong><br />

conjugal, seus comentários percorr<strong>em</strong> um caminho inverso, quando argumentam que alianças<br />

com homens <strong>de</strong> famílias simples, s<strong>em</strong> cultura ou pertencentes a uma religião diferente das<br />

suas, certamente traria infelicida<strong>de</strong> e probl<strong>em</strong>as. Tais críticas são dirigidas, principalmente,<br />

aos casamentos <strong>de</strong> irmãos e pais (viúvos recasados) que, ao contrário <strong>de</strong>las, casam-se com<br />

mulheres <strong>de</strong> condição social inferior. Por essa razão, nenhum <strong>de</strong> seus irmãos permaneceu<br />

<strong>solteiro</strong>, uns conseguiram ‘“se casar com a direção da fábrica’, outros sucumbiram a mulheres<br />

mais velhas, ‘s<strong>em</strong> cultura’ e, evi<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, s<strong>em</strong> dote. Mas todos se casaram” (p. 107).<br />

Apesar do i<strong>de</strong>al do amor conjugal e do afeto, como critério para escolha do cônjuge,<br />

aflorar no início do século XX, as consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> classe restringiam o campo <strong>de</strong><br />

possibilida<strong>de</strong>s das mulheres para encontrar um possível preten<strong>de</strong>nte, ainda mais porque só<br />

havia duas maneiras <strong>de</strong> se <strong>de</strong>parar com um candidato a marido: <strong>em</strong> encontros informais <strong>de</strong><br />

família (um primo ou amigo do irmão convidado a visitar sua casa <strong>de</strong> campo) e bailes.<br />

Contudo, a burguesia não freqüentava bailes públicos, restavam então os bailes organizados<br />

por velhas senhoras ou senhoritas com fins <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente casamenteiros, mas n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre<br />

freqüentados pelas moças, <strong>de</strong>vido a razões econômicas: geralmente os pais não dispunham <strong>de</strong><br />

recursos suficientes, tanto para adquirir os vestidos, quanto para retribuir o convite,<br />

promovendo também um baile <strong>em</strong> sua residência.<br />

Nessa época, contribuíram também para dificultar o casamento das moças a Primeira<br />

Guerra Mundial, que provocou uma escassez <strong>de</strong> eventos sociais, pois muitas famílias haviam<br />

perdido parentes e não era conveniente oferecer festas. Além disso, o costume do “jour” (um<br />

grupo <strong>de</strong> pessoas, cada uma <strong>de</strong>las recebia visitas s<strong>em</strong>analmente, durante as tar<strong>de</strong>s) caíra <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>suso, daí porque as ocasiões <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> entre os dois sexos eram raras e, quando<br />

ocorriam, submetidas à situação <strong>de</strong> classe, o que invariavelmente reduzia as chances <strong>de</strong><br />

casamento para as mulheres <strong>solteira</strong>s.<br />

31


Ainda segundo Fonseca (1989, p. 112), <strong>em</strong>bora a mulher que não se casasse fosse<br />

nada 2 , na intrincada trama das relações familiares, a permanência das <strong>solteira</strong>s na unida<strong>de</strong><br />

doméstica dos pais adquiria um caráter utilitário: “Nesta época <strong>de</strong> consolidação da família<br />

conjugal, nada mais lógico do que <strong>de</strong>ixar um el<strong>em</strong>ento marginal (mulher celibatária) cuidar <strong>de</strong><br />

um outro (os pais velhos)”. Para essas mulheres, portanto, o celibato não consistia <strong>em</strong> ato <strong>de</strong><br />

rebeldia contra a submissão conjugal, mas sim <strong>em</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> familiar e cumprimento do<br />

<strong>de</strong>ver, síntese dos seus anseios <strong>de</strong> realização pessoal. Mesmo aquelas que exerciam uma<br />

ativida<strong>de</strong> profissional e transitavam no espaço público, quase não tinham po<strong>de</strong>r no lar, n<strong>em</strong><br />

tampouco liberda<strong>de</strong> social, pois os pais vigiavam, tanto suas amiza<strong>de</strong>s, quanto seus horários<br />

<strong>de</strong> saída. Não é à toa, portanto, que Fonseca (1989, p. 118) chegue à seguinte conclusão:<br />

As mulheres burguesas nascidas no início do século foram imprensadas entre a<br />

importância teórica do amor romântico e os mecanismos sociais ainda<br />

funcionando para perpetuar a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classes: dote, separação dos sexos,<br />

ausência <strong>de</strong> lugares públicos <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> ... Se os pais não foram mais<br />

ativos na busca <strong>de</strong> genros, é porque suas filhas <strong>solteira</strong>s, como domésticas e<br />

companheiras, <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhavam papéis muito úteis <strong>de</strong>ntro do lar. Enfim, pais e<br />

filhos agiram segundo uma ética familiar que <strong>de</strong>safiava a filosofia individualista<br />

nascente, uma ética <strong>em</strong> que o ‘indivíduo’ e a ‘família’ se confundiam e on<strong>de</strong> a<br />

pessoa se realizava cumprindo com seus <strong>de</strong>veres. A guerra <strong>de</strong> 14 – 18, ao<br />

reduzir os homens <strong>em</strong> 20%, foi simplesmente a gota que fez transbordar o mar.<br />

No início do século XX, segundo Berquó (1989), a Europa Oci<strong>de</strong>ntal ainda assistia a<br />

casamentos tardios (as primeiras núpcias das mulheres eram na faixa etária entre 26 e 27<br />

anos) e não muito freqüentes (das mulheres nascidas por volta <strong>de</strong> 1880, cerca <strong>de</strong> 10 a 20%<br />

nunca se casaram). Em suma, o celibato consistia na forma mais eficiente <strong>de</strong> controle social<br />

da fecundida<strong>de</strong>. Isso não significava que as mulheres celibatárias <strong>de</strong>sfrutass<strong>em</strong> <strong>de</strong> maior<br />

liberda<strong>de</strong> social; mesmo quando <strong>em</strong>ancipadas, elas permaneciam tão sujeitas quanto antes e,<br />

caso não se casass<strong>em</strong> até os 25 anos, o futuro lhes re<strong>ser</strong>vava apenas duas opções: <strong>ser</strong> “titia” e<br />

2 Estudos <strong>de</strong>senvolvidos por autores como Macfarlane (1990) constatam que, <strong>em</strong> séculos anteriores, os<br />

casamentos já aconteciam tardiamente e eram motivados por interesses econômicos, enquanto Badinter<br />

(1986), Gay (1989), Pat<strong>em</strong>an (1993), Quintaneiro (1995), Lejeune (1997), Ritzkat (2000), Perrot (2001a;<br />

2001b), Martin-Fugier (2001), Corbin (2001) <strong>de</strong>stacam o caráter insular e estigmatizante que envolve as<br />

mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s, <strong>em</strong>bora ob<strong>ser</strong>v<strong>em</strong> que as zombarias atingiss<strong>em</strong> mais as mulheres, para qu<strong>em</strong> as<br />

oportunida<strong>de</strong>s e/ou espaços re<strong>ser</strong>vados restringiam-se à esfera doméstica e ao casamento. Em suma, até o<br />

século XIX, o celibato <strong>de</strong>finitivo era mais freqüente entre as mulheres e, para elas só havia três <strong>de</strong>stinos<br />

possíveis: casar<strong>em</strong>-se, <strong>de</strong>votar<strong>em</strong>-se à vida religiosa ou permanecer<strong>em</strong> <strong>solteira</strong>s.<br />

32


correspon<strong>de</strong>r à imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> <strong>solteira</strong> casta e solitária, ou libertar-se do controle familiar e ter<br />

uma vida consi<strong>de</strong>rada promíscua, arcando com as conseqüências.<br />

Na década <strong>de</strong> 1930, afirma Lins (1997), os casamentos eram ainda marcados por um<br />

caráter utilitário-pragmático, ou seja, a exaltação dos sentidos ou fatores psicológicos eram<br />

menos importantes do que a profissão, fortuna ou qualida<strong>de</strong>s morais dos futuros cônjuges.<br />

Afinal, as pessoas se casavam <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> sustento, proteção e apoio mútuo frente às<br />

dificulda<strong>de</strong>s e tormentos com que se <strong>de</strong>frontariam ao longo da vida – ainda mais ameaçadora<br />

para os solitários –, mas também para constituir uma família, aumentar seu patrimônio e<br />

<strong>de</strong>ixá-lo <strong>de</strong> herança para os filhos.<br />

Por sua vez, Bourdieu (2002), ao estudar o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> alianças matrimoniais entre os<br />

camponeses do Bèarn francês, i<strong>de</strong>ntifica o caráter utilitário do casamento, ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

<strong>em</strong> que <strong>de</strong>staca o componente político, ou seja, a celebração das uniões é baseada <strong>em</strong> questões<br />

<strong>de</strong> or<strong>de</strong>m econômica, mas é principalmente influenciada por razões sociais. O casamento<br />

busca pre<strong>ser</strong>var a integrida<strong>de</strong> do patrimônio da maison, “a nobreza <strong>de</strong> orig<strong>em</strong>, estilo <strong>de</strong> vida e<br />

respeito <strong>de</strong> que é cercada” (BOURDIEU, 2002, p. 42), o que inviabiliza as alianças <strong>de</strong>siguais.<br />

O casamento, portanto, consiste <strong>em</strong> um jogo no qual o risco é cuidadosamente<br />

avaliado, uma vez que o her<strong>de</strong>iro se torna o guardião da maison, isto é, dos bens móveis e<br />

imobiliários, assim como da honra da linhag<strong>em</strong>: “’a casa’ é o valor dos valores, <strong>em</strong> relação à<br />

qual toda a obra do sist<strong>em</strong>a se organiza” (BOURDIEU, 2002, p. 43). Em outros termos, os<br />

sentimentos são ignorados, <strong>em</strong> função da lógica que rege o matrimônio: proteger a herança,<br />

perpetuar a hierarquia social e a posição da família nesta hierarquia.<br />

Neste sentido, o autor consi<strong>de</strong>ra o celibato uma das peças integrantes do jogo <strong>de</strong> trocas<br />

matrimoniais, o qual exerce uma função importante para a reprodução social da “casa”.<br />

Contudo, o maître <strong>de</strong> maison ensaia estratégias variadas no tocante ao celibato <strong>de</strong> filhos e<br />

filhas. O celibato dos primogênitos é raro, pois o casamento po<strong>de</strong> proporcionar a ampliação<br />

33


dos domínios da “casa” e, quando acontece, é atribuído à excessiva autorida<strong>de</strong> e controle do<br />

pai, com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> evitar a divisão do patrimônio.<br />

Já entre os filhos caçulas o celibato é comum, posto que eles contribu<strong>em</strong> para a<br />

salvaguarda do patrimônio: como mão <strong>de</strong> obra substituta dos <strong>em</strong>pregados; <strong>em</strong> caso <strong>de</strong> morte<br />

do primogênito, casando-se com a viúva impe<strong>de</strong>m a <strong>de</strong>volução do dote, isto é, a redução do<br />

patrimônio, ou então migrando para a cida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> exerc<strong>em</strong> ativida<strong>de</strong>s r<strong>em</strong>uneradas. Por essa<br />

razão, os <strong>solteiro</strong>s “eram principalmente os caçulas, sobretudo nas famílias numerosas e nas<br />

famílias pobres, [...] o seu celibato se inscreve na lógica <strong>de</strong> um sist<strong>em</strong>a que cerca <strong>de</strong> todo um<br />

luxo <strong>de</strong> proteções o patrimônio, valor dos valores” (BOURDIEU, 2002, p. 43 – 51).<br />

Com relação às mulheres, Bourdieu ob<strong>ser</strong>va que o casamento po<strong>de</strong> afetar o<br />

patrimônio, principalmente <strong>de</strong>vido à obrigatorieda<strong>de</strong> do dote, daí porque o “guardião da casa”<br />

arquiteta a seguinte estratégia: caso não haja her<strong>de</strong>iros do sexo masculino, apenas a filha<br />

primogênita se casa, enquanto as <strong>de</strong>mais ficam <strong>solteira</strong>s. Contudo, cabe <strong>de</strong>stacar, os maridos<br />

são filhos caçulas <strong>de</strong> uma “casa” inferior e renunciam ao patrimônio <strong>em</strong> favor do dote, cujo<br />

valor é reduzido.<br />

Destituídos <strong>de</strong> respeito, autorida<strong>de</strong>, os maridos não controlam a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> das esposas,<br />

muito menos o patrimônio, cabe-lhes tão somente exercer a função <strong>de</strong> reprodutores e<br />

assegurar<strong>em</strong> um filho do sexo masculino que dê continuida<strong>de</strong> à maison na próxima geração.<br />

Por isso, o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> valores pre<strong>ser</strong>va a supr<strong>em</strong>acia masculina na vida social e na gestão dos<br />

negócios domésticos:<br />

[...] o casamento <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong> com uma mulher <strong>de</strong> condição mais elevada é<br />

fort<strong>em</strong>ente <strong>de</strong>saprovado, enquanto que o casamento oposto cont<strong>em</strong>pla os valores<br />

basilares da socieda<strong>de</strong>. [...] Para um rapaz, a distância que separa a sua condição<br />

daquela <strong>de</strong> sua esposa po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> relativamente gran<strong>de</strong> quando é a seu favor, mas<br />

<strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> relativamente pequena quando está a seu <strong>de</strong>sfavor. Para uma mulher<br />

<strong>solteira</strong>, o sist<strong>em</strong>a é simétrico e oposto (BOURDIEU, 2002,. p. 34).<br />

Segundo Berquó (1989), no período referente a 1945 – 1950, reafirma-se na Europa<br />

Oci<strong>de</strong>ntal a crença na instituição familiar e há não só uma redução da ida<strong>de</strong> dos nubentes<br />

34


quanto aumento dos matrimônios; a faixa etária das mulheres nas primeiras núpcias também<br />

diminui, oscila entre 22 e 24 anos, assim como aquelas que nunca chegariam a se casar<br />

correspon<strong>de</strong>m a um percentual inferior a 5%, prova inconteste <strong>de</strong> um novo padrão<br />

<strong>de</strong>mográfico. Contudo, a partir <strong>de</strong> 1965, a taxa <strong>de</strong> nupcialida<strong>de</strong> sofreu um <strong>de</strong>clínio, as<br />

estatísticas <strong>de</strong> 1977 indicam uma curva ascen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> celibatários <strong>de</strong>finitivos, estimada <strong>em</strong><br />

20% na França e 40% na Suíça e na Suécia. Os Estados Unidos também sofreram uma queda<br />

da nupcialida<strong>de</strong>, o número <strong>de</strong> mulheres <strong>solteira</strong>s aos 30 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, cerca <strong>de</strong> 8,5% entre<br />

1960 e 1970, alcançou os 18% <strong>em</strong> 1984. Vale <strong>de</strong>stacar que, junto à redução da nupcialida<strong>de</strong>,<br />

aumentou também a ida<strong>de</strong> média para o primeiro casamento. Na França, por ex<strong>em</strong>plo, entre<br />

1973 e 1985, as mulheres se casaram pela primeira vez com 24,3 anos, enquanto os homens o<br />

fizeram aos 26,4 anos.<br />

De fato, Singly (2000) ob<strong>ser</strong>va que, do início do século XX até a década <strong>de</strong> 1960, a<br />

família foi concebida como um grupo alicerçado no amor e afeição, no qual os adultos<br />

<strong>de</strong>veriam investir na pre<strong>ser</strong>vação <strong>de</strong>sse grupo, mas principalmente, nas crianças. Homens e<br />

mulheres ainda exerciam diferentes papéis e transitavam <strong>em</strong> espaços distintos, ou seja,<br />

enquanto o hom<strong>em</strong> reinava na dimensão pública e tinha como missão obter êxito no trabalho e<br />

prover o sustento da família, a mulher, encerrada no espaço doméstico, <strong>de</strong>via cuidar do lar, do<br />

marido e dos filhos, tornando-se agente da felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada um dos m<strong>em</strong>bros do grupo<br />

familiar. Contudo, se novos movimentos eram ensaiados, a felicida<strong>de</strong> individual estava<br />

condicionada à existência <strong>de</strong> uma “família feliz”.<br />

Singly l<strong>em</strong>bra que profundas mudanças ocorreram no final dos anos <strong>de</strong> 1960, como<br />

por ex<strong>em</strong>plo, a maior participação da mulher no mercado <strong>de</strong> trabalho; a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> novos<br />

métodos contraceptivos; a diminuição dos casamentos, crescimento da coabitação e do<br />

número <strong>de</strong> divórcios. Contudo, argumenta, a principal revolução aconteceu internamente, a<br />

35


partir da instauração <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> individualização, que transformou a família <strong>em</strong><br />

espaço privado consignativo da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal e autonomia <strong>de</strong> seus m<strong>em</strong>bros.<br />

O autor <strong>de</strong>fine as famílias cont<strong>em</strong>porâneas como “relacionais e individualistas”, sua<br />

permanência ou dissolução estão condicionadas à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exercício da<br />

individualização, o que provoca tensões e instabilida<strong>de</strong>. A família mostra-se frágil, pois as<br />

relações se <strong>de</strong>sapegaram da perpetuida<strong>de</strong>, mas também forte porque a vida privada é almejada<br />

pela maioria dos indivíduos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não tolha a construção <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal e o<br />

encontro consigo mesmos.<br />

Com efeito, Badinter (1986) constatou, no período <strong>de</strong> 1962 a 1983, aumento <strong>de</strong> 70%<br />

dos franceses que viviam sozinhos, acrescentando que <strong>em</strong> metrópoles como Paris e Nova<br />

York, a proporcionalida<strong>de</strong> para cada dois casais, correspondia a uma pessoa sozinha. Tal<br />

mudança foi percebida também, no que se refere à faixa etária, anteriormente restrita a<br />

mulheres idosas e que, nesse período, sofreu um refluxo, voltando-se para pessoas com ida<strong>de</strong><br />

inferior a 30 anos e divorciadas.<br />

A autora aponta como alguns dos prováveis motivos para se viver sozinho, o medo do<br />

casamento, associado ao divórcio e, conseqüent<strong>em</strong>ente ao fracasso, além do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

individualida<strong>de</strong>, entre outros, acrescentando que, <strong>em</strong> 1986, calculava-se que 36% dos<br />

franceses não mais se casariam, uma vez que: “Os t<strong>em</strong>pos <strong>de</strong> trânsito solitário não têm mais o<br />

mesmo significado que outrora, pois a imag<strong>em</strong> do <strong>solteiro</strong> per<strong>de</strong>u sua conotação<br />

negativa[...]”(BADINTER, 1986, p. 290). Mais adiante, acrescenta que, <strong>em</strong>bora as mulheres<br />

ressintam-se da ausência <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> amor, não mais se contentam com uma relação<br />

insatisfatória, medíocre, enfatizando que: “Escolhida ou forçada, transitória ou <strong>de</strong>finitiva, a<br />

solidão é cada vez mais preferida à ligação forçada” (BADINTER, 1986, p. 291).<br />

Em 1986, a revista americana Newsweek publicou uma reportag<strong>em</strong> <strong>de</strong> capa com a<br />

seguinte advertência: as mulheres que adiavam o casamento por <strong>ser</strong><strong>em</strong> muito exigentes com<br />

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os parceiros, por receio <strong>de</strong> abdicar<strong>em</strong> da liberda<strong>de</strong> ou por priorizar<strong>em</strong> o sucesso profissional,<br />

iam terminar celibatárias. Com base nas projeções <strong>de</strong> um estudo realizado pela Universida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Harvard, a revista sentenciava: uma mulher branca, com nível universitário, nascida <strong>em</strong><br />

meados <strong>de</strong> 1950 e que chegou aos 30 anos, <strong>solteira</strong>, tinha apenas 20% <strong>de</strong> chance <strong>de</strong> encontrar<br />

um marido; aos 35 anos, a probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>clinava para 5% e, aos 40 anos, para ínfimos<br />

2,6%, ou seja, era pouco provável que esta conseguisse se casar. Contudo, vinte anos <strong>de</strong>pois, a<br />

mesma revista retomou o assunto e, ao investigar a trajetória dos personagens, constatou que<br />

as projeções não se concretizaram, cerca <strong>de</strong> 90% dos homens e mulheres daquela geração se<br />

casaram ou estavam <strong>em</strong> vias <strong>de</strong> se casar (MOHERDAUI, 2006).<br />

Entretanto, a solteirice continua assombrando as mulheres, como <strong>de</strong>monstra “O Diário<br />

<strong>de</strong> Bridget Jones”, escrito pela inglesa Helen Fielding, <strong>em</strong> 1986 e publicado <strong>em</strong> vários países,<br />

inclusive no Brasil e nos Estados Unidos, on<strong>de</strong> ganhou uma versão cin<strong>em</strong>atográfica. A autora<br />

lançou <strong>em</strong> 1999, “Bridget Jones: No limite da razão”, on<strong>de</strong> dá continuida<strong>de</strong> às venturas e<br />

<strong>de</strong>sventuras da heroína e, no Brasil, <strong>em</strong> 2002, foi uma das ficções mais vendidas.<br />

Afinal, qual o segredo do sucesso <strong>de</strong> Bridget Jones? 3 Segundo críticas <strong>de</strong> jornais e<br />

revistas como Newsweek, Times, Literaty Suppl<strong>em</strong>ent e Vogue, <strong>de</strong>stacados na contracapa do<br />

livro, a i<strong>de</strong>ntificação das mulheres <strong>solteira</strong>s, a partir dos 30 anos, com as <strong>de</strong>silusões e fantasias<br />

românticas da heroína, ou melhor, “[...] ficar passeando por praias <strong>de</strong><strong>ser</strong>tas com os filhinhos,<br />

como nos anúncios <strong>de</strong> Calvin Klein; <strong>ser</strong> uma B<strong>em</strong>-casada <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> uma humil<strong>de</strong><br />

<strong>solteira</strong>[...]” (FIELDING, 2001, p. 139).<br />

3 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, M<strong>em</strong>mott (2006), para qu<strong>em</strong> o “Diário <strong>de</strong> Bridget Jones” gerou um gênero literário, <strong>de</strong>finido<br />

como chick lit que substitui os chamados romance rosa e, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> <strong>ser</strong> leve e divertido, centra suas<br />

histórias <strong>em</strong> “<strong>solteiro</strong>nas” que, tal qual Brigget, buscam amor, satisfação e um par <strong>de</strong> sapatos perfeitos. Os<br />

enredos <strong>de</strong>v<strong>em</strong> conter os seguintes el<strong>em</strong>entos: uma heroína à procura do hom<strong>em</strong> certo ou tentando esquecer o<br />

hom<strong>em</strong> errado; possui um <strong>em</strong>prego que não a satisfaz ou luta para ascen<strong>de</strong>r na vida profissional; atua quase<br />

s<strong>em</strong>pre nas áreas <strong>de</strong> relações públicas, propagandas ou revistas voltadas para o público f<strong>em</strong>inino; expressa-se<br />

<strong>de</strong> forma leve e engraçada; a história, <strong>em</strong> geral, é narrada na primeira pessoa; no final, quase s<strong>em</strong>pre<br />

previsível, a heroína consegue solucionar todos os seus probl<strong>em</strong>as, além <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r importantes lições <strong>de</strong><br />

vida, amadurecer. Vale <strong>de</strong>stacar que, passados <strong>de</strong>z anos do lançamento <strong>de</strong> Bridget, segundo M<strong>em</strong>mott, o<br />

sucesso do gênero chick lit está longe <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar sinais <strong>de</strong> <strong>de</strong>clínio.<br />

37


Na verda<strong>de</strong>, a personag<strong>em</strong> que, <strong>de</strong> forma divertida, é aos poucos, <strong>de</strong>senhada no livro,<br />

apesar <strong>de</strong> <strong>em</strong>ancipada, ressente-se contra os estereótipos que enredam a <strong>solteiro</strong>na, b<strong>em</strong> como<br />

contra os “abismos e migalhas sexuais [que] conspiram para fazer com que você se sinta<br />

idiota[...]”(FIELDING, 2001, p. 28), <strong>de</strong>preciando-se <strong>em</strong> relação às mulheres, até mesmo a<br />

mãe, que aos 60 anos separa-se e encontra um namorado, constatando que: “[...]sinto muita<br />

inveja, sou um fracassso e burra [...], s<strong>em</strong> rumo e s<strong>em</strong> namorado, mantendo relações<br />

<strong>de</strong>sestruturadas e com uma carreira <strong>em</strong>pacada” (FIELDING, 2001, p. 70-86).<br />

De fato, Bridget é alienada, com um universo informacional restrito, insegura, ancora-<br />

se <strong>em</strong> livros <strong>de</strong> auto-ajuda e, s<strong>em</strong> gran<strong>de</strong>s expectativas profissionais, <strong>de</strong>staca-se como repórter<br />

televisiva, mais por suas trapalhadas que por competência, ou pela provi<strong>de</strong>ncial ajuda <strong>de</strong> um<br />

dos seus preten<strong>de</strong>ntes, digo, um dos preten<strong>de</strong>ntes que a mãe lhe arranja, que a leva a concluir,<br />

quando está <strong>de</strong>pressiva, que: “Não sirvo para nada. N<strong>em</strong> para arrumar um hom<strong>em</strong>. N<strong>em</strong> para<br />

ter sucesso na vida social. N<strong>em</strong> profissionalmente. Nada” (FIELDING, 2001, p. 234).<br />

Como nada ou ninguém, Bridget vive um estado claustrofóbico, sob a ameaça <strong>de</strong> um<br />

“tique-taque” repisado, vezes s<strong>em</strong> conta, por familiares, amigos “b<strong>em</strong>-casados” e por si<br />

mesma, contando unida<strong>de</strong>s alcoólicas e calorias ingeridas, cigarros fumados para apaziguar a<br />

culpa por não conseguir estabelecer um relacionamento estável, consi<strong>de</strong>rada “uma meta quase<br />

inalcançável” (FIELDING, 2001, p. 252) e quando, no limite da razão, afinal consegue o tão<br />

ansiado namorado, com<strong>em</strong>ora:<br />

[...]VIVA! Os anos <strong>de</strong> secura terminaram. Hoje faz um mês e cinco dias que ando<br />

tendo relacionamento funcional com um hom<strong>em</strong> adulto, o que prova que não sou<br />

uma pária do amor como t<strong>em</strong>ia antes [...] (FIELDING, 2002, p. 13).<br />

É claro que, como toda heroína que se preza, Bridget, nas quatrocentas e trinta e uma<br />

páginas restantes, irá angustiar-se, sentir-se insegura, ameaçada pela perda do namorado,<br />

inclusive para uma pretensa amiga, que tenta roubá-lo, mas, após uma série <strong>de</strong> percalços,<br />

outras tantas calorias, drinks e cigarros a mais, consegue finalmente, vencer a “queda <strong>de</strong><br />

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aço” com a solidão, ao vivenciar uma relação afetiva estável, livrando-se do estigma <strong>de</strong><br />

“trágica e lunática”.<br />

Lins (1997) assinala que, não faz muito t<strong>em</strong>po, homens e mulheres <strong>solteiro</strong>s eram<br />

vítimas <strong>de</strong> discriminação social, já que os padrões societários vigentes corporificam-se na<br />

formação do par, ou melhor, na família, símbolo <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, refúgio contra a solidão. Dessa<br />

forma, homens e mulheres <strong>solteiro</strong>s eram <strong>de</strong>gredados do convívio com os outros casais, por se<br />

consignar<strong>em</strong> <strong>em</strong> ameaça à perpetuação do par, porque el<strong>em</strong>ento dissonante, que po<strong>de</strong>ria<br />

<strong>de</strong>sestabilizar a relação, ao tentar<strong>em</strong> conquistar um dos parceiros ou <strong>de</strong>spertar a nostalgia por<br />

um experimento já vivenciado.<br />

De fato, para o hom<strong>em</strong> <strong>solteiro</strong>, o sexo somente era permissível com prostitutas e,<br />

após os 30 anos, especulava-se acerca <strong>de</strong> sua virilida<strong>de</strong>. Já a mulher <strong>solteira</strong>, recolhia-se ao<br />

lar, caso não <strong>de</strong>sejasse <strong>ser</strong> acusada <strong>de</strong> uma vida promíscua, precavendo-se <strong>de</strong> mexericos e, o<br />

que é pior, tornava-se refém do t<strong>em</strong>po, antecipando a agonia por não cumprir seu <strong>de</strong>stino <strong>de</strong><br />

mulher, a maternida<strong>de</strong> ou por não conseguir um hom<strong>em</strong> que a sustentasse, resgatando-lhe a<br />

auto-estima. Viver sozinho(a) era, portanto, um risco que <strong>de</strong>veria a todo custo <strong>ser</strong> evitado.<br />

No entanto, Lins constata que, particularmente nas últimas décadas dos séculos XX,<br />

homens e mulheres, ao contrarrestrar<strong>em</strong> o i<strong>de</strong>ário patriarcalista, re<strong>de</strong>senharam múltiplas<br />

formas das relações entre os sexos e acrescenta: “Hoje, os que viv<strong>em</strong> sós têm respeito social e<br />

são até objeto <strong>de</strong> inveja da maioria dos casados que, por t<strong>em</strong>er<strong>em</strong> novas formas <strong>de</strong> viver,<br />

suportam casamentos que lhes restring<strong>em</strong> a liberda<strong>de</strong> e lhes impõ<strong>em</strong> sacrifícios”(LINS, 1997,<br />

p. 193).<br />

A autora cita Flávio Gigovate, para qu<strong>em</strong> os <strong>solteiro</strong>s da classe média têm uma vida<br />

mais prazerosa, rica, no que tange ao conforto material, acesso à cultura, lazer; têm liberda<strong>de</strong><br />

para pre<strong>ser</strong>var hábitos, manias; e constro<strong>em</strong> seus próprios horários e regras <strong>de</strong> convivência;<br />

não se tornam reféns da opressão ou ciúme dos parceiros, mesmo porque têm maior<br />

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disponibilida<strong>de</strong> para o convívio com amigos (as) que lhes dão suporte <strong>em</strong>ocional. Além disso,<br />

po<strong>de</strong>m exercitar seus <strong>de</strong>sejos sexuais, s<strong>em</strong> que isto implique <strong>em</strong> construir uma relação<br />

convencional, que se <strong>de</strong>sgasta, naturalmente, com a imposição do cotidiano, <strong>em</strong> que a<br />

realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sromantiza-se e <strong>de</strong>sconstrói a convivência i<strong>de</strong>alizada.<br />

Para a historiadora Bárbara D. Whitehead, tais vantagens não explicam a solteirice das<br />

mulheres americanas, mas sim a afirmação feita por 9 entre 10 <strong>de</strong>stas mulheres, na faixa etária<br />

entre 30 a 40 anos, <strong>de</strong> que está faltando hom<strong>em</strong>, o que a motivou a publicar o livro intitulado<br />

Why There Are No Goog Men Left ( Por Que Faltam Homens Bacanas). Lançado <strong>em</strong> 2003 nos<br />

Estados Unidos, o sucesso do livro <strong>de</strong>ve-se à tentativa <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a confusão romântica<br />

<strong>em</strong> que se meteu a “nova <strong>solteira</strong>” – in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, b<strong>em</strong>-sucedida profissional e<br />

financeiramente, culta, malhada, elegante, que t<strong>em</strong> uma vida social intensa e cultiva seu lado<br />

intelectual.<br />

Nos gran<strong>de</strong>s centros urbanos t<strong>em</strong> crescido o número <strong>de</strong> mulheres com esse perfil, que<br />

usufrui os avanços da revolução f<strong>em</strong>inina, seja nas universida<strong>de</strong>s, on<strong>de</strong> é maioria, seja no<br />

mercado <strong>de</strong> trabalho, on<strong>de</strong> t<strong>em</strong> conseguido cada vez mais espaço. Nos Estados Unidos, o<br />

número <strong>de</strong> mulheres na faixa etária entre 30 e 34 anos, que permanece <strong>solteira</strong>, cresceu <strong>de</strong> 6%<br />

para 22% nos últimos 30 anos. Lá exist<strong>em</strong> 43 milhões <strong>de</strong> <strong>solteira</strong>s, <strong>de</strong>finidas pelas agências <strong>de</strong><br />

propaganda como “yuppies do novo século”, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> do seu espírito auto-indulgente e<br />

forte po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> consumo (MAGESTE, 2003).<br />

Em entrevista concedida à Folha <strong>de</strong> São Paulo (TREVISAN, 2003, p. 2), durante o<br />

lançamento do seu livro no Brasil, Whitehead eslarece que, ao contrário do título, não estão<br />

faltando homens, a <strong>de</strong>speito das dificulda<strong>de</strong>s que as mulheres b<strong>em</strong>-sucedidas, próximas dos<br />

30 anos, enfrentam para encontrar um parceiro com o qual <strong>de</strong>sej<strong>em</strong> compartilhar suas vidas e<br />

ter filhos. Segundo a autora:<br />

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Não é verda<strong>de</strong> que não sobraram homens bons. O probl<strong>em</strong>a é encontrar o hom<strong>em</strong><br />

certo no momento certo da vida. E isso se mostra muito difícil para mulheres jovens,<br />

instruídas e atraentes.<br />

Ao que tudo indica o probl<strong>em</strong>a não é a escassez <strong>de</strong> homens, mas o aumento do grau <strong>de</strong><br />

exigência <strong>de</strong>ssas mulheres. Continuando, Whitehead argumenta:<br />

Em primeiro lugar, ela t<strong>em</strong> uma educação mais sofisticada que a das <strong>solteira</strong>s do<br />

passado. É capaz <strong>de</strong> trabalhar e ganhar dinheiro sozinha e, por isso, po<strong>de</strong> ficar longe<br />

<strong>de</strong> sua família, se assim qui<strong>ser</strong>. Ela se vê como sexualmente liberada, t<strong>em</strong> amantes,<br />

po<strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir viver com um namorado e não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do casamento para seu b<strong>em</strong>estar<br />

econômico (TREVISAN, 2003, p. 3).<br />

A autora comenta que n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre a mídia popular retrata mulheres com esse perfil <strong>de</strong><br />

forma positiva e, acrescenta que elas são charmosas, <strong>de</strong>dicadas, atraentes e b<strong>em</strong>-sucedidas,<br />

s<strong>em</strong>, no entanto, <strong>de</strong>ixar<strong>em</strong> <strong>de</strong> <strong>ser</strong> doces e boas, ou seja, apesar <strong>de</strong> adotar<strong>em</strong> comportamentos e<br />

atitu<strong>de</strong>s masculinizantes, não per<strong>de</strong>m sua f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong>. O “hom<strong>em</strong> certo” também adquiriu<br />

um novo perfil, ao menos no plano i<strong>de</strong>al, as mulheres já não se contentam com um provedor<br />

econômico, almejam um parceiro com o qual tenham <strong>em</strong>patia, fiel e que lhes ofereça apoio<br />

<strong>em</strong>ocional. Contudo, há um contraste entre as expectativas das mulheres <strong>em</strong> torno da<br />

felicida<strong>de</strong> conjugal e o que os homens são capazes <strong>de</strong> oferecer <strong>em</strong> um relacionamento, fruto<br />

do diferente processo <strong>de</strong> socialização a que são submetidas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância.<br />

Apesar dos <strong>de</strong>sencantos e <strong>de</strong>sencontros, as mulheres <strong>em</strong>ancipadas, com sucesso<br />

profissional e financeiro, ressent<strong>em</strong>-se da ausência <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>, romance, casamento e<br />

filhos, mas encontrar alguém com qu<strong>em</strong> compartilhar suas vidas t<strong>em</strong> se tornado ainda mais<br />

difícil porque as três instituições encarregadas <strong>de</strong> aproximar homens e mulheres – escola,<br />

família e igreja – já não consegu<strong>em</strong> cumprir seu papel. Entretanto, se <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Whitehead,<br />

as mulheres não <strong>de</strong>v<strong>em</strong> per<strong>de</strong>r a esperança:<br />

A internet já se institucionalizou como opção para expandir as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

encontro entre homens e mulheres. Mas sou cética porque é algo sujeito a muita<br />

<strong>de</strong>cepção. As pessoas não diz<strong>em</strong> a verda<strong>de</strong> sobre qu<strong>em</strong> elas são e como se parec<strong>em</strong>.<br />

[...] In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> eu achar que vai funcionar ou não, estou convencida <strong>de</strong><br />

que terá um papel importante. Mas outras coisas vão surgir[...] Há todas as formas<br />

<strong>de</strong> inovações que estão sendo lançadas comercialmente. Pessoas que trabalham<br />

como consultores <strong>de</strong> corte amorosa, que cobram preços altos por seus <strong>ser</strong>viços e<br />

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treinam pessoas para se apresentar, como flertar, como atrair o sexo oposto, on<strong>de</strong> ir<br />

para encontrar pessoas.<br />

Há clubes <strong>de</strong> encontro e eventos sociais que tentam aproximar pessoas <strong>solteira</strong>s. E<br />

há livros, colunas, jornais, revistas que diz<strong>em</strong> a pessoas <strong>solteira</strong>s on<strong>de</strong> <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ir para<br />

encontrar outras pessoas <strong>solteira</strong>s, há muita coisa sobre estratégias. Há uma explosão<br />

<strong>de</strong> livros <strong>de</strong> aconselhamento e <strong>de</strong> autores que têm estratégias profissionais <strong>de</strong><br />

conquista, sist<strong>em</strong>as que pessoas po<strong>de</strong>m adotar com o objetivo <strong>de</strong> encontrar um<br />

parceiro (TREVISAN, 2003, p. 2-5).<br />

Apesar das alternativas sugeridas e <strong>de</strong> afirmar que os homens também quer<strong>em</strong> casar,<br />

apenas não encontram “mulheres boas”, Whitehead alerta para o fato dos mesmos po<strong>de</strong>r<strong>em</strong><br />

adiar o casamento, transitar por relacionamentos com diferentes parceiras por mais t<strong>em</strong>po,<br />

s<strong>em</strong> a preocupação <strong>de</strong> não mais gerar<strong>em</strong> filhos, ao contrário das mulheres. Por essa razão, o<br />

bom mesmo para a “maioria” <strong>de</strong>las que <strong>de</strong>seja encontrar um marido, é seguir o conselho dado<br />

pela autora a suas filhas: não entrar<strong>em</strong> <strong>em</strong> pânico; não <strong>de</strong>sanimar<strong>em</strong>; não transferir<strong>em</strong> suas<br />

<strong>de</strong>silusões e <strong>de</strong>sapontamentos com parceiros anteriores para as relações futuras; <strong>ser</strong><strong>em</strong><br />

otimistas, sociáveis e aproveitar<strong>em</strong> o que a vida lhes re<strong>ser</strong>va. Afinal, nessa época <strong>de</strong> transição,<br />

o antigo se justapõe ao mo<strong>de</strong>rno, se novos comportamentos mo<strong>de</strong>lizadores têm sido adotados<br />

por mulheres e homens no tocante às relações afetivas, a compl<strong>em</strong>entarieda<strong>de</strong> e a sinergia<br />

estão longe <strong>de</strong> <strong>ser</strong><strong>em</strong> alcançadas, pelo menos <strong>em</strong> relação ao casamento – o hom<strong>em</strong> ainda<br />

escolhe, enquanto a mulher é a escolhida –.<br />

Suzan Faludi (2002, p. 13), ao traçar um comparativo entre a simpática Bridget e a<br />

também liberada, mas, ensan<strong>de</strong>cida e frustrada personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Glen Close no filme Atração<br />

Fatal (1987), constata que, <strong>de</strong> fato, houve mudanças, rompeu-se com os falsos mitos que, na<br />

década <strong>de</strong> 80, povoavam o imaginário coletivo, tais como “mulheres <strong>solteira</strong>s que fracassam<br />

<strong>em</strong> achar marido’ ou ‘mulheres ambiciosas que só pensam na carreira”’. No entanto, alerta, o<br />

con<strong>ser</strong>vadorismo encontra-se <strong>de</strong> forma subliminar, ainda enraizado e, reportando-se mais uma<br />

vez a Bridget, ex<strong>em</strong>plifica:<br />

É uma personag<strong>em</strong> <strong>de</strong>liciosa, é fácil i<strong>de</strong>ntificar-se com ela, mas, essencialmente,<br />

encarna o velho estereótipo. As personagens <strong>de</strong> Hollywood hoje são b<strong>em</strong> sucedidas,<br />

bonitas e charmosas, mas a vida <strong>de</strong>las é <strong>de</strong>dicada a achar um hom<strong>em</strong>. E, se elas<br />

falham no objetivo, tornam-se tristes e estressadas. Passam a mensag<strong>em</strong>: ‘Adote um<br />

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estilo <strong>de</strong> vida convencional e ache um hom<strong>em</strong> provedor que lhe dê segurança’<br />

(2002, p. 16).<br />

A autora argumenta que esta posição con<strong>ser</strong>vadora “v<strong>em</strong> sendo medrada mediante um<br />

entrecruzamento do pensamento da “direita americana e a cultura popular” (FALUDI, 2002)<br />

difundida pela mídia, mas, principalmente Hollywood, reificando, <strong>de</strong>ssa forma, a visão da<br />

f<strong>em</strong>inista como uma bruxa amarga e dominadora, levando por sua vez, as mulheres com ida<strong>de</strong><br />

inferior a 30 anos, à recusa <strong>em</strong> se assumir<strong>em</strong> como f<strong>em</strong>inistas, com receio <strong>de</strong> afastar<strong>em</strong> os<br />

homens.<br />

Segundo pesquisa <strong>de</strong>senvolvida pela Young & Rubicam (POLES, 2000), na França<br />

atual, as mulheres costumam se casar aos 30 anos; no Japão, nos últimos quinze anos, houve<br />

um crescimento significativo <strong>de</strong> mulheres <strong>solteira</strong>s, cujo percentual equivale a 50%; nos<br />

Estados Unidos, as mulheres dirig<strong>em</strong> 1,4 milhões <strong>de</strong> lares, reunindo um patrimônio<br />

individual, superior a 500.000 dólares. A coor<strong>de</strong>nadora da pesquisa, Miriam Salzman,<br />

esclarece que:<br />

As mulheres profissionais, b<strong>em</strong> educadas e sozinhas formam o maior grupo <strong>de</strong><br />

consumidores do mundo oci<strong>de</strong>ntal. São hoje o que os yuppies foram nos anos 80. Há<br />

um movimento crescente para atrasar o casamento e celebrá-lo <strong>de</strong> forma segura<br />

(POLES, 2000, p. 124).<br />

De fato, ob<strong>ser</strong>va Faludi (2002),o casamento e a família permanec<strong>em</strong> como mo<strong>de</strong>los,<br />

apenas novas <strong>de</strong>finições são engendradas. E se o universo dos <strong>solteiro</strong>s é glamourizado, isso<br />

se <strong>de</strong>ve tão somente ao seu potencial como consumidor, uma vez que duplica a venda <strong>de</strong><br />

eletrodomésticos. Até então, continuamos perseguindo a formação do par, “uma união estável,<br />

que ofereça amor, conforto e apoio” (FALUDI, 2002, p. 16 – 17), ou seja, forjando novas<br />

fórmulas e estratégias para não nos apartarmos <strong>de</strong> todo dos velhos referenciais, o que não<br />

significa que as representações sobre o <strong>ser</strong> <strong>solteiro</strong> (a), particularmente após os 30 anos<br />

permaneçam inalteradas, mas que vêm sendo plasmadas tão sutilmente, que t<strong>em</strong>os dificulda<strong>de</strong><br />

<strong>em</strong> i<strong>de</strong>ntificá-las.<br />

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Roberts (2006), ao examinar os resultados do censo novaiorquino, assinala que,<br />

<strong>em</strong>bora haja um aumento significativo <strong>de</strong> pares casados e a maioria dos americanos se case<br />

ocasionalmente, não se po<strong>de</strong> ignorar o crescimento <strong>de</strong> adultos que compartilham sua vida<br />

<strong>solteira</strong> com parceiros, ou seja, t<strong>em</strong> expandido o número <strong>de</strong> pares <strong>solteiro</strong>s.<br />

De acordo com o censo, entre os 5, 2 milhões <strong>de</strong> pares, acima <strong>de</strong> 5% dos domicílios<br />

eram ocupados por parceiros <strong>solteiro</strong>s do sexo oposto. I<strong>de</strong>ntificou-se ainda 413.000 casas<br />

habitadas por pares masculinos e 363.000 moradias com pares f<strong>em</strong>ininos. No total, cerca <strong>de</strong><br />

um <strong>em</strong> 10 pares era <strong>solteiro</strong>. Des<strong>de</strong> 2000, os pares <strong>solteiro</strong>s do sexo oposto cresceram cerca<br />

<strong>de</strong> 14%, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que os pares masculinos ampliaram 24% e os f<strong>em</strong>ininos 12%.<br />

Nos dois últimos casos, sugere-se que gays e lésbicas se sent<strong>em</strong> mais à vonta<strong>de</strong> para<br />

<strong>de</strong>clarar<strong>em</strong> não só sua orientação sexual, mas também a coabitação com parceiros (as). Tal<br />

padrão foi i<strong>de</strong>ntificado <strong>em</strong> outras cida<strong>de</strong>s ou condados americanos, com diferença apenas nos<br />

percentuais referentes aos pares do sexo oposto, masculinos e f<strong>em</strong>ininos, que variam <strong>de</strong> um<br />

lugar para outro.<br />

Ainda segundo Roberts (2006), os pares investigados consi<strong>de</strong>ram a coabitação um<br />

período <strong>de</strong> teste: uns porque quer<strong>em</strong> ter certeza <strong>de</strong> seus sentimentos antes <strong>de</strong> se casar<strong>em</strong>,<br />

<strong>de</strong>vido ao alto índice <strong>de</strong> divórcio; alguns porque só cogitam o casamento <strong>em</strong> caso <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z;<br />

outros porque não têm a intenção <strong>de</strong> se casar e outros tantos porque são solidários com gays e<br />

lésbicas que não po<strong>de</strong>m legalizar sua união na maioria dos estados americanos.<br />

Finalmente, o autor comenta que não se po<strong>de</strong> ignorar o crescimento das mulheres no<br />

mercado <strong>de</strong> trabalho, seu sucesso profissional e financeiro, o que lhes oferece liberda<strong>de</strong> para<br />

optar<strong>em</strong> ou não pelo matrimônio. Afinal, elas já não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do casamento para se sentir<strong>em</strong><br />

seguras economicamente, n<strong>em</strong> tampouco precisam <strong>de</strong>le para usufruir <strong>de</strong> sexo. Atualmente,<br />

uma das principais razões para o casamento é gerar filhos, ocorre que é muito dispendioso, o<br />

que termina por <strong>de</strong>sestimular os casais.<br />

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Williams (2005), para investigar a solteirice <strong>em</strong> Nova Iorque, percorreu um caminho<br />

diferente <strong>de</strong> Roberts, <strong>de</strong>cidiu entrevistar Andréa Lavinthal e Jéssica Rozler, autoras do livro<br />

Single Gir’s Gui<strong>de</strong> to Living It Up” (Guia <strong>de</strong> uma garota <strong>de</strong> b<strong>em</strong> com a vida) e amigas suas,<br />

freqüentadoras <strong>de</strong> um restaurante e clube localizado no setor alimentício <strong>de</strong> Manhattan, na<br />

faixa etária <strong>de</strong> 24 a 31 anos, as quais apontam algumas mudanças nas expectativas relacionais<br />

<strong>de</strong> jovens mulheres, profissionais, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e vestidas na última moda.<br />

Tudo indica que são diferentes das mulheres <strong>de</strong> gerações passadas – não se comportam<br />

ingênua e romanticamente como suas avós nos anos 50, n<strong>em</strong> <strong>de</strong> forma livre e inconseqüente<br />

como suas mães na década <strong>de</strong> 70 –, há uma nova revolução sexual <strong>em</strong> curso: as novas<br />

<strong>solteira</strong>s se libertam das amarras <strong>de</strong> suas antecessoras; sa<strong>em</strong> <strong>de</strong>sacompanhadas <strong>de</strong> rapazes,<br />

não aguardam seu telefon<strong>em</strong>a; mais espontâneas e b<strong>em</strong> resolvidas, não <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a<br />

abstinência sexual, mas evitam o sexo casual – po<strong>de</strong>m sair com um rapaz atraente <strong>em</strong> uma<br />

noite <strong>de</strong> sábado e apenas se limitar<strong>em</strong> a tomar alguns drinks e dançar<strong>em</strong>, mal se tocando.<br />

Para as novas <strong>solteira</strong>s, o mais importante é sentir<strong>em</strong> a conexão com o outro fluir,<br />

divertir<strong>em</strong>-se, s<strong>em</strong> que necessariamente o encontro termine <strong>em</strong> sexo, ou seja, as novas<br />

<strong>solteira</strong>s se tornaram cautelosas <strong>em</strong> relação a <strong>de</strong>sconhecidos, <strong>de</strong>vido às doenças sexualmente<br />

transmissíveis, mas isso não significa que abdiqu<strong>em</strong> do romance, ao contrário, conceb<strong>em</strong> tais<br />

encontros como ensaios para captar<strong>em</strong> as sensações, certificar<strong>em</strong>-se <strong>de</strong> que a conexão entre o<br />

par é real. Em suma, essas mulheres têm que conhecer melhor o parceiro antes <strong>de</strong> assumir<strong>em</strong><br />

um compromisso mais sério, pois diferent<strong>em</strong>ente dos homens, consi<strong>de</strong>ram-se exigentes.<br />

Por outro lado, ob<strong>ser</strong>va-se que essa “nova revolução sexual” t<strong>em</strong> limites, o padrão<br />

dual que rege os comportamentos <strong>de</strong> homens e mulheres permanece inalterado: as mulheres<br />

não po<strong>de</strong>m sair com um número superior a 15 homens anualmente, n<strong>em</strong> tampouco relacionar-<br />

se com três rapazes simultaneamente, sob o risco <strong>de</strong> <strong>ser</strong><strong>em</strong> confundidas com prostitutas. E se<br />

as cobranças para conseguir<strong>em</strong> um parceiro permanente diminuíram, elas têm que lidar com<br />

45


outro tipo <strong>de</strong> pressão, transitar<strong>em</strong> por entre relacionamentos t<strong>em</strong>porários consiste na única<br />

alternativa para conciliar<strong>em</strong> a carreira, os amigos e o romance.<br />

Essas jovens corr<strong>em</strong> contra o t<strong>em</strong>po, até os 25 anos não preten<strong>de</strong>m assumir um<br />

compromisso duradouro, mas também não têm a intenção <strong>de</strong> reprisar episódios <strong>de</strong> “Sex and<br />

City” 4 quando chegar<strong>em</strong> à faixa etária das protagonistas do <strong>ser</strong>iado televisivo, ou seja, a<br />

solteirice é b<strong>em</strong>-vinda, e vivenciada <strong>de</strong> forma prazerosa, mas t<strong>em</strong> prazo <strong>de</strong> valida<strong>de</strong>, a maioria<br />

<strong>de</strong>ssas mulheres po<strong>de</strong> adiar um relacionamento nos mol<strong>de</strong>s tradicionais, mas a proximida<strong>de</strong><br />

dos 30 anos as põe <strong>em</strong> estado <strong>de</strong> alerta, é chegada a hora <strong>de</strong> estabelecer<strong>em</strong> a conexão –<br />

casar<strong>em</strong>-se –, ainda que provavelmente suas exigências no tocante ao perfil <strong>de</strong> um parceiro<br />

<strong>em</strong> potencial não venham a <strong>ser</strong> cont<strong>em</strong>pladas no mercado matrimonial.<br />

Mais recent<strong>em</strong>ente, Roberts (2007) ob<strong>ser</strong>va que o avançar da ida<strong>de</strong> já não é um<br />

espectro a ameaçar as mulheres no tocante ao matrimônio, estas casam cada vez mais tar<strong>de</strong> ou<br />

coabitam com parceiros mais frequent<strong>em</strong>ente e por mais t<strong>em</strong>po. O autor cita Stephanie<br />

Coontz, diretor <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> pesquisa sobre as famílias cont<strong>em</strong>porâneas, para qu<strong>em</strong> isto é<br />

um dos sinais evi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> transformação nos padrões <strong>de</strong> conjugabilida<strong>de</strong>, ou seja, a união<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> <strong>ser</strong> a principal instituição que organiza a vida das pessoas. Em outras palavras, as<br />

americanas passam meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas vidas adultas s<strong>em</strong> unir-se a alguém <strong>de</strong> forma tradicional,<br />

mesmo que futuramente se cas<strong>em</strong>.<br />

Alguns fatores têm contribuído para as mulheres adiar<strong>em</strong> o casamento, tais como uma<br />

maior in<strong>de</strong>pendência e um estilo <strong>de</strong> vida mais flexível, adquiridos após a década <strong>de</strong> 60 do<br />

século XX. Por conta disso, as mulheres se tornaram menos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes dos homens e da<br />

4 Sex and City foi um <strong>ser</strong>iado televisivo transmitido pela ca<strong>de</strong>ia HBO, nos Estados Unidos, <strong>de</strong> 1998 a 2004 e<br />

exibido no Brasil pelos canais fechados Multishow e Fox Life. Baseada no livro homônimo <strong>de</strong> Candice<br />

Bushnell, a série era ambientada <strong>em</strong> Nova Iorque e trazia como t<strong>em</strong>a os encontros e <strong>de</strong>sencontros amorosos <strong>de</strong><br />

quatro amigas: Carrie, colunista <strong>de</strong> um jornal que escreve sobre relações interpessoais e sexuais; Samantha,<br />

relações públicas e loura fatal que vive <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong> b<strong>em</strong>-sucedido para se relacionar s<strong>em</strong><br />

compromisso; Charlotte, trabalha <strong>em</strong> uma galeria <strong>de</strong> arte, sensível e romântica, cujos relacionamentos<br />

duradouros são mal-sucedidos; Miranda, advogada, prática e racional, aparent<strong>em</strong>ente é a única que sabe o que<br />

quer. O sucesso da série po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> atribuído ao fato <strong>de</strong> abordar as situações, <strong>de</strong>safios, dil<strong>em</strong>as, <strong>de</strong>sejos e<br />

expectativas relacionais <strong>de</strong> mulheres realizadas na profissão, com estabilida<strong>de</strong> financeira e liberadas<br />

sexualmente, na faixa etária <strong>de</strong> 30 até 40 anos.<br />

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instituição do casamento. Seja <strong>em</strong> Manhattan, Califórnia ou Houston, o fato é que há<br />

mulheres <strong>solteira</strong>s que divi<strong>de</strong>m o quarto com companheiros, s<strong>em</strong> um compromisso mais<br />

sólido; algumas acima dos 50 anos que se divi<strong>de</strong>m entre amigas <strong>solteira</strong>s e casadas; outras<br />

com mais <strong>de</strong> 40 anos cuja família sugere que <strong>ser</strong>ia mais fácil encontrar um marido numa<br />

faculda<strong>de</strong> freqüentada por negros, mas apenas planejam a união como escudo contra a solidão<br />

na velhice, isto é, adiam o casamento, mas quer<strong>em</strong> um companheiro <strong>de</strong> viag<strong>em</strong> e jogos<br />

quando ficar<strong>em</strong> idosas. Outras tantas que escolh<strong>em</strong> viver sozinhas e, finalmente qu<strong>em</strong>, após<br />

um divórcio, po<strong>de</strong> “escolher” entre o recasamento e permanecer <strong>solteira</strong>.<br />

Os dados revelam que há um <strong>de</strong>clínio das uniões tradicionais e o casamento ocorre<br />

cada vez mais tardiamente. Têm surgido novos arranjos familiares e padrões <strong>de</strong><br />

conjugabilida<strong>de</strong>, mas <strong>em</strong>bora existam <strong>solteira</strong>s (os) e <strong>solteira</strong>s (os), a solteirice <strong>de</strong>finitiva<br />

consiste <strong>em</strong> exceção à regra, ou seja, a formação do par/da família ainda persiste como<br />

mo<strong>de</strong>lo relacional, ainda que este casal tenha sido reinventado e a família possa se restringir a<br />

dois. Solteiros e solitários, portanto, permanec<strong>em</strong> à marg<strong>em</strong>. E no Brasil, as representações<br />

apresentam mudanças ou reprisam antigos construtos? Como a solteirice v<strong>em</strong> sendo<br />

vivenciada por mulheres e homens?<br />

2.1 REESCREVENDO A SOLTEIRICE À BRASILIANA<br />

As profundas transformações no cenário social brasileiro, particularmente nas últimas<br />

décadas do século XX, têm <strong>de</strong>senhado novos padrões <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong> e causado<br />

repercussões nas relações familiares. Atualmente, mulheres e homens exerc<strong>em</strong> novos papéis<br />

sociais e sexuais, norteados por mo<strong>de</strong>los i<strong>de</strong>ntitários e referenciais imagéticos recém<br />

incorporados, que carregam a justaposição entre o mo<strong>de</strong>rno e o arcaico, ora rejeitam ora<br />

endossam os supostos que, calcados na fisicalida<strong>de</strong>, naturalizam a maneira diferente com que<br />

a socieda<strong>de</strong> nomeia e situa mulheres e homens. Há <strong>de</strong> se supor que as representações e<br />

47


práticas sociais <strong>de</strong> <strong>solteira</strong>s e <strong>solteiro</strong>s comportam mudanças, mas também guardam<br />

continuida<strong>de</strong>s, o que nos instiga a esquadrinhar livros, artigos científicos, reportagens e<br />

enredos fílmicos, <strong>de</strong> forma a compor el<strong>em</strong>entos que nos permitam refletir sobre a solteirice no<br />

contexto brasileiro.<br />

No Brasil, entre o final do século XIX 5 e início do século XX, o não-casamento era<br />

inaceitável, principalmente para as mulheres. Os romances naturalistas publicados nesse<br />

período associam a imag<strong>em</strong> da moça <strong>solteira</strong> <strong>em</strong> ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se casar – que adia ou é obrigada a<br />

protelar o casamento – com doença e, ou <strong>de</strong>svio, cuja única possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cura/salvação é o<br />

matrimônio. Essas moças são acometidas <strong>de</strong> crises nervosas e, “histéricas”, não consegu<strong>em</strong><br />

aplacar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong>, tornam-se reféns <strong>de</strong> sua “inclinação natural” para o<br />

casamento e a maternida<strong>de</strong> (ENGEL, 1989). Nota-se, portanto, que há uma correlação entre a<br />

imag<strong>em</strong> <strong>de</strong>ssas personagens e o discurso médico <strong>de</strong> então, ou seja, qualquer manifestação da<br />

sexualida<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina é consi<strong>de</strong>rada perigosa, próxima da loucura e do <strong>de</strong>scontrole, o que<br />

exige vigilância e tratamento.<br />

De fato, ao investigar anotações feitas pelos alienistas nos prontuários <strong>de</strong> mulheres<br />

<strong>solteira</strong>s internadas no Hospital Juquery, na São Paulo do início do século XX, Cunha (1989)<br />

constata que os psiquiatras diagnosticavam como “sintomas” <strong>de</strong> loucura os seguintes<br />

comportamentos: escolhas pessoais contrárias às normas e papéis sociais; compulsivida<strong>de</strong><br />

para o trabalho e <strong>de</strong>dicação exagerada à carreira profissional. Em outras palavras, essas<br />

mulheres negavam suas “inclinações naturais” e superestimavam seu intelecto, o orgulho, a<br />

vaida<strong>de</strong> e o celibato. No entanto, se tais qualida<strong>de</strong>s eram consi<strong>de</strong>radas negativas nas<br />

mulheres, a ausência <strong>de</strong> tais atributos nos pacientes masculinos atestava seu perfil patológico,<br />

isto é, os homens eram internados como loucos <strong>de</strong>vido a manifestações <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência;<br />

apatia ou inaptidão para o trabalho; falta <strong>de</strong> ambição e incapacida<strong>de</strong> intelectual. Os<br />

5 No século XIX, a educação f<strong>em</strong>inina era centrada na formação <strong>de</strong> futuras mães - esposas e, caso as moças não<br />

conseguiss<strong>em</strong> se casar antes dos 25 anos, eram acometidas <strong>de</strong> profunda angústia. Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Galindo<br />

(1999), Falci (2000 e Pedro (2000).;<br />

48


parâmetros que distinguiam a loucura e a normalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mulheres e homens apontavam<br />

ainda outro contraste: nos prontuários masculinos o celibato sequer era citado, a única<br />

exceção acontecendo no caso <strong>de</strong> pacientes homossexuais, como prova circunstancial <strong>de</strong> seu<br />

comportamento <strong>de</strong>sviante.<br />

As mulheres, portanto, eram vitimadas por loucura moral ou histeria, – seus<br />

comportamentos transgressores contrariavam o mo<strong>de</strong>lo i<strong>de</strong>alizado <strong>de</strong> família –, restava então<br />

como alternativa interná-las e submetê-las às práticas terapêuticas e à disciplina asilar, a fim<br />

<strong>de</strong> que recuperass<strong>em</strong> o juízo e, finalmente, exercess<strong>em</strong> o seu papel “natural” <strong>de</strong> mãe e esposa.<br />

Mas, vale l<strong>em</strong>brar que a ida<strong>de</strong> limitava as chances <strong>de</strong> cura ou re<strong>de</strong>nção, após os 25 anos, o<br />

casamento era uma possibilida<strong>de</strong> r<strong>em</strong>ota e o <strong>de</strong>stino lhes re<strong>ser</strong>vava um triste papel – o <strong>de</strong><br />

<strong>solteiro</strong>na frustrada, amarga, ressabiada, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e frágil – ou novos internamentos, digo,<br />

tentativas <strong>de</strong> domesticação.<br />

Fáveri (1999), ao estudar as formas <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> moços e moças <strong>solteira</strong>s <strong>em</strong><br />

Itajaí – SC, nas décadas <strong>de</strong> 1929 a 1960, toma como fio condutor o Bloco dos XX, - um clube<br />

<strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>s da elite local e referência na escolha <strong>de</strong> bons partidos – para <strong>de</strong>linear a<br />

importância do casamento, papéis e atributos <strong>de</strong> gênero, valores morais e códigos <strong>de</strong><br />

comportamento daquele período.<br />

Segundo a autora, cabia ao rapaz <strong>de</strong>monstrar que seu futuro era promissor e que<br />

po<strong>de</strong>ria exercer o papel <strong>de</strong> provedor econômico do lar, daí muitos se tornavam profissionais<br />

liberais (advogados, médicos, <strong>de</strong>ntistas e engenheiros), carreiras que os qualificavam para<br />

galgar postos elevados nos setores mais “distintos” da socieda<strong>de</strong>, o que lhes assegurava<br />

posição social. Já a moça, enquanto aguardava o matrimônio, praticava o refinamento e boas<br />

maneiras, preparava o enxoval e aprendia a fazer economia doméstica, uma vez que competia<br />

a ela o papel <strong>de</strong> mãe e esposa <strong>de</strong>votada ao lar, ao marido e aos filhos. Em outras palavras, a<br />

mulher nascia para <strong>ser</strong> esposa, conciliadora capaz <strong>de</strong> assegurar a paz do lar e a tranqüilida<strong>de</strong><br />

49


para que o hom<strong>em</strong>, provedor, fosse b<strong>em</strong>-sucedido. Esse era o mo<strong>de</strong>lo da esposa a <strong>ser</strong><br />

escolhida pelos rapazes e, por isso, não o contestavam.<br />

As regras sociais <strong>de</strong>terminavam que a moça <strong>de</strong>via se casar <strong>em</strong> torno dos 20 a 22 anos<br />

e, aos 27 já era consi<strong>de</strong>rada uma “<strong>solteiro</strong>na”, enquanto a ida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>al do rapaz ficava entre 20<br />

a 26 anos e, logo após, o próprio se auto-<strong>de</strong>finia como “coroa”, mas isso não o impedia <strong>de</strong> se<br />

casar tardiamente, já “solteirão” – aos 39 anos –, ou mesmo permanecesse celibatário, uma<br />

exceção naquela época. Ou seja, para o hom<strong>em</strong> havia um consentimento social com relação<br />

ao casamento tardio, provavelmente condicionado ao cumprimento do seu papel <strong>de</strong> provedor,<br />

t<strong>em</strong>po para <strong>de</strong>dicar-se aos estudos e alcançar uma condição financeira antes <strong>de</strong> assumir o<br />

compromisso como cônjuge, ao contrário da mulher, cujo casamento precoce era<br />

recomendado, com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pre<strong>ser</strong>var a virginda<strong>de</strong> e a honra <strong>de</strong> sua família.<br />

O casamento encerrava o <strong>de</strong>stino da mulher e ficar <strong>solteira</strong> era um castigo que tentava<br />

a todo custo evitar, pois o celibato f<strong>em</strong>inino lhe negava a maternida<strong>de</strong>, era contrário à sua<br />

própria natureza e, por essa razão, tornava-a alvo do <strong>de</strong>scaso da socieda<strong>de</strong>. Não é à toa,<br />

portanto, que as <strong>solteiro</strong>nas foss<strong>em</strong> comparadas a árvores secas no po<strong>em</strong>a intitulado<br />

“Mulheres e Árvores”, publicado numa edição extraordinária do Jornal do Povo (18.08.51),<br />

citado por Fáveri (1999, p. 78), que vale à pena reproduzir:<br />

[...] Sozinha, ao termo da jornada<br />

No seu próprio <strong>de</strong>stino se maldiz!<br />

Elas são como as árvores doridas,<br />

Que se exilando, estéreis e esquecidas,<br />

Na tristeza dos bosques incolores,<br />

Viv<strong>em</strong> à sombra dos ramais abruptos,<br />

Intimidadas por não ter<strong>em</strong> flores,<br />

E envergonhadas por não dar<strong>em</strong> frutos!<br />

Da mesma forma, Bassanezi (1996), ao revisitar revistas comerciais publicadas entre<br />

1945 a 1964, constata a reprodução <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo dominante <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina,<br />

circunscrito ao casamento, formação <strong>de</strong> uma família e <strong>de</strong>dicação ao lar, ou seja, as revistas da<br />

época <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a idéia <strong>de</strong> que se casar, ter filhos e exercer o papel <strong>de</strong> dona <strong>de</strong> casa é inerente<br />

50


à natureza f<strong>em</strong>inina. Nos anos 40 e 50 6 , o matrimônio é concebido como a primeira etapa para<br />

a concretização dos i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> mulher, daí o discurso moralizante das publicações conter um<br />

caráter pedagógico, educa as leitoras a trilhar<strong>em</strong> o “caminho certo”, não negar<strong>em</strong> o seu<br />

“<strong>de</strong>stino” – o casamento –, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que normatiza e controla a sexualida<strong>de</strong><br />

f<strong>em</strong>inina.<br />

Nesse sentido, as jovens <strong>solteira</strong>s são perfiladas <strong>em</strong> dois tipos: as moças <strong>de</strong> família,<br />

casadoiras, virtuosas, <strong>de</strong> respeito, ou seja, aquelas que reprim<strong>em</strong> sua sexualida<strong>de</strong> e pre<strong>ser</strong>vam<br />

a virginda<strong>de</strong>, re<strong>ser</strong>vando-se para o casamento; as garotas <strong>de</strong> programa, liberais e levianas, por<br />

qu<strong>em</strong> os rapazes se sent<strong>em</strong> atraídos, com qu<strong>em</strong> namoram e se divert<strong>em</strong>, mas nunca casam. E<br />

se o flerte é tolerado entre as jovens <strong>solteira</strong>s, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ensaiado <strong>de</strong> forma conseqüente,<br />

tendo como única finalida<strong>de</strong> o casamento, é censurado quando praticado por mulheres mais<br />

velhas, que po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> consi<strong>de</strong>radas fáceis e oferecidas. Os rígidos parâmetros da or<strong>de</strong>m<br />

moral <strong>de</strong>terminam que seja competência do hom<strong>em</strong> manifestar interesse, aproximar-se e<br />

<strong>de</strong>clarar seus sentimentos à mulher, à qual é <strong>de</strong>stinado o papel passivo <strong>de</strong> escolhida.<br />

Os jovens <strong>solteiro</strong>s também são perfilados <strong>em</strong> dois tipos: os rapazes namoradores,<br />

aproveitadores, consi<strong>de</strong>rados uma ameaça para as <strong>solteira</strong>s incautas, - porque não pensam <strong>em</strong><br />

se casar – e po<strong>de</strong>m comprometer sua reputação. Embora t<strong>em</strong>idos pelos “pais <strong>de</strong> família”, há<br />

<strong>de</strong> se ob<strong>ser</strong>var que o rótulo <strong>de</strong> “namorador” não carrega a censura e reprovação social<br />

dirigidas à jov<strong>em</strong> “namora<strong>de</strong>ira” ou àquela que se <strong>de</strong>ixa seduzir por sua lábia. O conquistador<br />

é alvo <strong>de</strong> complacência, pois age <strong>de</strong> acordo com sua “natureza” <strong>de</strong> hom<strong>em</strong>, mas também<br />

admirado e invejado pelos amigos. Espera-se que, superados os ímpetos juvenis (prerrogativa<br />

exclusivamente masculina), torne-se um exímio pai <strong>de</strong> família. Caso não aconteça, ganha o<br />

rótulo ambíguo <strong>de</strong> “solteirão incorrigível”, “bom vivant”, que tanto é admirado, t<strong>em</strong>ido e<br />

criticado, quanto cobiçado pelas mulheres casadoiras. Finalmente, há o jov<strong>em</strong> <strong>solteiro</strong> “b<strong>em</strong><br />

6 Ver, também, Bassanezi (2000), <strong>em</strong> que a autora reflete sobre a mulher dos “anos dourados” e o casamento<br />

como fonte <strong>de</strong> realização supr<strong>em</strong>a, difundido não só <strong>em</strong> revistas como <strong>em</strong> anúncios publicitários na década <strong>de</strong><br />

1950.<br />

51


intencionado”, que vislumbra na namorada a futura mãe <strong>de</strong> seus filhos e, por isso, contém a<br />

concupiscência evita carícias íntimas, como sinal <strong>de</strong> respeito à sua eleita.<br />

Nas décadas <strong>de</strong> 1940 e 1950 7 , o celibato consiste <strong>em</strong> ameaça que assombra a vida das<br />

mulheres, principalmente aquelas com mais <strong>de</strong> 25 anos, cuja ida<strong>de</strong> não só evi<strong>de</strong>ncia o quanto<br />

as chances <strong>de</strong> contraír<strong>em</strong> matrimônio são r<strong>em</strong>otas, como também prenuncia um futuro<br />

povoado pela solidão e tristeza; uma vida <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> sentido e, consolo através <strong>de</strong> um<br />

animal <strong>de</strong> estimação; exercer seu instinto materno com sobrinhos e afilhados; <strong>de</strong>votar-se ao<br />

trabalho. O celibato, escolhido ou forçado, isto é, o não casamento atesta o fracasso f<strong>em</strong>inino,<br />

pois conseguir um marido é a maior conquista <strong>de</strong> uma mulher.<br />

Os homens, ao contrário das mulheres, procuram adiar o matrimônio para uma ida<strong>de</strong><br />

mais avançada, quando se sent<strong>em</strong> mais maduros e preparados para assumir as<br />

responsabilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> esposo e pai <strong>de</strong> família. Entretanto, há aqueles que, por “puro egoísmo”<br />

masculino, mostram-se recalcitrantes, hesitam <strong>em</strong> abdicar das liberda<strong>de</strong>s da vida <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong> e,<br />

por isso, algumas revistas procuram chamá-los à razão e realçam vantagens do casamento, tais<br />

como o abandono dos maus hábitos <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong> – bo<strong>em</strong>ia, jogatina, amantes –, isto é, ao se<br />

casar<strong>em</strong>, aquietam sua se<strong>de</strong> <strong>de</strong> aventuras, encontram uma companheira que impulsiona suas<br />

carreiras, tornam-se respeitáveis e úteis à socieda<strong>de</strong>. E se os conselhos não bastar<strong>em</strong>, resta<br />

advertir aos “solteirões convictos” sobre o triste <strong>de</strong>stino que os aguarda, como faz o colunista<br />

Roberto Torres no Jornal das Moças:<br />

Geralmente quando um solteirão compreen<strong>de</strong> o vácuo <strong>de</strong> sua vida, já não há maneira<br />

<strong>de</strong> corrigir o erro <strong>de</strong> haver <strong>de</strong>ixado passar a existência s<strong>em</strong> fazer feliz a ninguém e<br />

s<strong>em</strong> o <strong>ser</strong> também pelo egoísmo <strong>de</strong> evitar <strong>de</strong>veres (apud BASSANEZI, 1996, p.<br />

119-120).<br />

Bassanezi (1996) ob<strong>ser</strong>va ainda que, <strong>em</strong>bora a mulher seja impelida a apressar o<br />

casamento e o hom<strong>em</strong> a adiá-lo, casar é inevitável para ambos, não há outra escolha possível,<br />

7 Segundo Berquó (1989), os Censos D<strong>em</strong>ográficos <strong>de</strong> 1940 e <strong>de</strong> 1950 reún<strong>em</strong> <strong>em</strong> uma única categoria as<br />

pessoas <strong>solteira</strong>s e aquelas que coabitam s<strong>em</strong> uma união legalizada, o que inviabiliza um estudo dos<br />

casamentos e do celibato no período.<br />

52


caso <strong>de</strong>sej<strong>em</strong> obter satisfação pessoal e <strong>ser</strong> felizes, o caminho “certo” é o matrimônio.<br />

Contudo, as cobranças sociais ating<strong>em</strong> mais fort<strong>em</strong>ente a mulher, pois se um hom<strong>em</strong> é<br />

consi<strong>de</strong>rado um “bom partido” aos 30 anos, uma mulher com mais <strong>de</strong> 20 anos e s<strong>em</strong> um<br />

preten<strong>de</strong>nte a marido é alvo <strong>de</strong> constrangimento social e enfrenta o risco <strong>de</strong> ficar “encalhada”.<br />

De fato, nas décadas <strong>de</strong> 1950 e 1960, a mulher com mais <strong>de</strong> 25 anos carrega o estigma<br />

<strong>de</strong> “<strong>solteiro</strong>na”, “aquela que ficou para titia”, o que é tido como uma situação socialmente<br />

in<strong>de</strong>sejável (mesmo que a escolha tenha sido sua). A mulher é consi<strong>de</strong>rada “incompleta”,<br />

porque não cumpriu o <strong>de</strong>stino natural <strong>de</strong> esposa-mãe e, por isso, convive com a zombaria das<br />

pessoas, muitas vezes se sente culpada e <strong>em</strong> outras é vista como um peso para a família, caso<br />

não trabalhe, uma das saídas “honrosas” apontadas pelas publicações para as <strong>solteiro</strong>nas 8 ,<br />

ainda que sejam advertidas sobre o risco <strong>de</strong> seguir<strong>em</strong> tal alternativa pelo Jornal das Moças:<br />

“n<strong>em</strong> todo mundo po<strong>de</strong> suportar viver só; isto exige uma gran<strong>de</strong> força moral e um certo<br />

<strong>de</strong>sinteresse” (apud BASSANEZI, 1996, p. 219). Em suma, conciliar trabalho e matrimônio é<br />

uma tarefa quase impossível para a mulher.<br />

Além disso, a <strong>solteiro</strong>na <strong>de</strong>ve pre<strong>ser</strong>var sua reputação: não sair <strong>de</strong>sacompanhada à<br />

noite, não <strong>de</strong>monstrar indiferença ou <strong>de</strong>masiado interesse por um hom<strong>em</strong>, n<strong>em</strong> tampouco<br />

entreter-se com flertes inconseqüentes, tal qual uma jovenzinha. De qualquer forma, a<br />

vigilância social inci<strong>de</strong> <strong>em</strong> seu corpo, com base na crença <strong>de</strong> que a mulher <strong>solteira</strong> e<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> certa ida<strong>de</strong>, torna-se uma ameaça para a estabilida<strong>de</strong> dos casamentos,<br />

pois passa a investir <strong>em</strong> homens casados. Contudo, pon<strong>de</strong>ra Bassanezi (1996), o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento urbano <strong>de</strong>scortina novas perspectivas para as <strong>solteira</strong>s, elas tanto po<strong>de</strong>m<br />

reprisar as alternativas tradicionais – unir<strong>em</strong>-se a parentes, tornar<strong>em</strong>-se amantes ou prostitutas<br />

– quanto exercer<strong>em</strong> uma ativida<strong>de</strong> e, ou aventurar<strong>em</strong>-se <strong>em</strong> relacionamentos amorosos<br />

fortuitos, <strong>em</strong>bora ainda tenham que conviver com o estigma <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>nas.<br />

8 Segundo Bassanezi (1996), O Jornal das Moças, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>de</strong>sestimula o trabalho f<strong>em</strong>inino, ao argumentar<br />

que um <strong>em</strong>prego não é apropriado para mulheres casadas, a <strong>de</strong>dicação e <strong>em</strong>penho exigidos pelo trabalho são<br />

prejudiciais ao casamento, pois os homens não gostam <strong>de</strong> “mulheres in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes”.<br />

53


As mulheres, educadas por suas mães para <strong>ser</strong><strong>em</strong> iguais a elas, donas <strong>de</strong> casa zelosas e<br />

altruístas, esposas e mães <strong>de</strong>votadas, ao se rebelar<strong>em</strong> contra os papéis tradicionais e <strong>de</strong>sejar<strong>em</strong><br />

realização pessoal e profissional, são consumidas pela culpa, traidoras que negam os<br />

ensinamentos maternos e, por extensão, apontam o quanto as mães estão erradas. Por essa<br />

razão, Carm<strong>em</strong> da Silva, colunista da revista Cláudia, <strong>em</strong> março <strong>de</strong> 1964, assim reflete sobre<br />

“A Arte <strong>de</strong> Ser Mulher” (apud GOLDENBERG e TOSCANO, 1992, p. 110-111):<br />

Assim, o que t<strong>em</strong>os <strong>de</strong> mais imaturo – o que persiste <strong>em</strong> nós <strong>de</strong> ‘filhinhas <strong>de</strong><br />

mamãe’, através da ida<strong>de</strong> adulta – repete as antigas fórmulas: ‘Moça que lê muito<br />

não casa; moça que vive na rua não arranja marido. A mulher foi feita para o lar’. É<br />

a presença inconsciente dos velhos tabus, do velho esqu<strong>em</strong>a <strong>de</strong> castigos e<br />

recompensas, que leva as mulheres <strong>de</strong> hoje à crença <strong>de</strong> que ‘moça que vive na rua’<br />

(simbolicamente: mulher que t<strong>em</strong> participação ativa no mundo) não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> feliz.<br />

Algumas mulheres dotadas <strong>de</strong> um forte impulso <strong>de</strong> auto-realização sent<strong>em</strong>-se<br />

obrigadas a renunciar à felicida<strong>de</strong> amorosa. Outras optam por essa, sacrificando sua<br />

individualida<strong>de</strong> social. Nos dois casos faz<strong>em</strong> uma escolha supérflua: a coexistência<br />

<strong>de</strong> ambos os aspectos é possível e necessária para que um <strong>ser</strong> humano se sinta<br />

completo e ditoso.<br />

Cort<strong>em</strong>os o cordão umbilical, livr<strong>em</strong>o-nos <strong>de</strong> culpas imaginárias e assumamos nosso<br />

papel social junto <strong>de</strong> nossos homens – e não contra eles. Até mesmo para <strong>ser</strong> o<br />

repouso do guerreiro é preciso estar a seu lado no campo <strong>de</strong> batalha.<br />

Ao que tudo indica, não é tão fácil cortar o cordão umbilical, como <strong>de</strong>monstra<br />

Bassanezi (1996), ao citar uma reportag<strong>em</strong> publicada na mesma revista Cláudia, <strong>em</strong> abril <strong>de</strong><br />

1964, na qual o jornalista Mino Carta apresenta os resultados <strong>de</strong> uma enquete com 500 moças,<br />

na faixa etária <strong>de</strong> 15 a 20 anos, no Rio <strong>de</strong> Janeiro e São Paulo: a maioria <strong>de</strong>las, 94,4% não<br />

imagina seu futuro s<strong>em</strong> o casamento, enquanto 8,6% explicitam o receio <strong>de</strong> “ficar<strong>em</strong> para<br />

titias”. Entre elas, mais <strong>de</strong> 60% consi<strong>de</strong>ram a ida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>al para casar entre 20 e 25 anos, mas há<br />

algumas, 6,78% que esten<strong>de</strong>m até os 30 anos e as <strong>de</strong>mais, cerca <strong>de</strong> um terço, <strong>de</strong>claram que<br />

não há ida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>al, mas oportunida<strong>de</strong>. Em resumo, a revista sugere que as jovens almejam<br />

liberda<strong>de</strong> e igualda<strong>de</strong>, mas ainda conceb<strong>em</strong> o matrimônio como principal fonte <strong>de</strong> realização,<br />

<strong>de</strong>stino natural <strong>de</strong> todas as mulheres.<br />

No Brasil, a partir da década <strong>de</strong> 1960, um novo cenário se <strong>de</strong>scortina, <strong>de</strong>senhado pela<br />

crescente in<strong>ser</strong>ção da mulher nas universida<strong>de</strong>s e mercado <strong>de</strong> trabalho; ampliação <strong>de</strong> seu<br />

54


espaço político; diss<strong>em</strong>inação <strong>de</strong> métodos contraceptivos, que a libertam para <strong>de</strong>sfrutar o<br />

<strong>de</strong>sejo e prazer sexual s<strong>em</strong> o risco <strong>de</strong> uma gravi<strong>de</strong>z in<strong>de</strong>sejada; a difusão da psicanálise, que<br />

produz <strong>de</strong>sassossegos <strong>de</strong> corpo e alma, isto é, não mais se contenta com os papéis tradicionais<br />

<strong>de</strong> esposa-mãe e ambiciona autonomia e realização pessoal, in<strong>de</strong>pendência <strong>em</strong>ocional e<br />

financeira, liberda<strong>de</strong> e igualda<strong>de</strong> na relação entre os sexos. Por fim, espelha-se nos<br />

movimentos <strong>em</strong>ancipatórios f<strong>em</strong>inistas, que tramam a conquista <strong>de</strong> direitos iguais entre os<br />

sexos, <strong>de</strong>safiam os padrões relacionais e papéis sexuais, causando repercussões no processo<br />

<strong>de</strong> construção i<strong>de</strong>ntitária da mulher, particularmente das classes médias urbanas.<br />

Para Berquó (1989), o movimento f<strong>em</strong>inista pela conquista <strong>de</strong> direitos iguais <strong>de</strong>u<br />

início a um período <strong>em</strong> que a luta por auto-realização se inscreve no campo da competição<br />

entre os sexos. Este enfrentamento repercute na elaboração dos <strong>de</strong>sejos e nas <strong>de</strong>cisões<br />

relativas à entrada e saída <strong>de</strong> uniões conjugais. Consequent<strong>em</strong>ente, afeta a ida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>al para<br />

mulheres e homens se casar<strong>em</strong>, a forma <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong> escolhida, sua duração, rompimento<br />

e início ou não <strong>de</strong> novas uniões, mas também influencia o celibato.<br />

Com base nos Censos <strong>de</strong> 1960, 1970 e 1980 e das estatísticas do Registro Civil <strong>de</strong><br />

1960 a 1985, Berquó (1989) investiga a nupcialida<strong>de</strong> através <strong>de</strong> seus principais parâmetros – a<br />

ida<strong>de</strong> da primeira união e o celibato (pessoas ainda <strong>solteira</strong>s aos 50 anos) – encontra poucas<br />

mudanças: a ida<strong>de</strong> média das mulheres se casar<strong>em</strong> permanece entre os 22 e os 23 anos e o<br />

celibato situado entre 8 e 9%; a ida<strong>de</strong> média para o casamento masculino continua entre os 25<br />

e os 26 anos e o celibato está entre 6 e 7%; o celibato f<strong>em</strong>inino apresenta um maior índice do<br />

que o masculino.<br />

Isso não significa que o comportamento das pessoas se manteve inalterado: houve uma<br />

queda dos casamentos civis; aumentou o número <strong>de</strong> <strong>de</strong>squites e divórcios; cresceram as<br />

famílias monoparentais f<strong>em</strong>ininas; ampliou o número <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong>claradas <strong>solteira</strong>s com<br />

55


filhos, particularmente aquelas que não abriam mão <strong>de</strong> sua in<strong>de</strong>pendência, com poucas<br />

chances <strong>de</strong> contraír<strong>em</strong> matrimônio <strong>de</strong>vido ao avançar da ida<strong>de</strong>.<br />

Berquó (1988; 1989) esclarece que, no período <strong>de</strong> 1970 a 1980, houve uma maior<br />

concentração <strong>de</strong> pessoas residindo sozinhas nos centros urbanos do que nas áreas rurais. O<br />

número <strong>de</strong> pessoas que moram sozinhas correspon<strong>de</strong> a 48%, mas os dados revelam que a<br />

composição por ida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stas pessoas é distinta para mulheres e homens. Entre os homens<br />

prevalec<strong>em</strong> os <strong>solteiro</strong>s, o que representa 63,3% e, entre as mulheres, o índice <strong>de</strong> <strong>solteira</strong>s<br />

<strong>de</strong>clina para 31,9% do total, proporcional ao avanço da ida<strong>de</strong>, ou seja, enquanto até a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

60 anos os <strong>solteiro</strong>s compõ<strong>em</strong> a maioria dos homens que viv<strong>em</strong> sozinhos, para as mulheres<br />

isto só acontece até os 48 anos, pois são raras aquelas que moram sozinhas e com 30 anos ou<br />

mais vir<strong>em</strong> a se casar. Conforme a autora (1988, p. 177), “ainda hoje é mais comum aos<br />

homens, com qualquer ida<strong>de</strong>, sair <strong>de</strong> casa para viver só. A não <strong>ser</strong> nas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, e<br />

mesmo assim, as mulheres encontram ainda certa resistência social se <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m morar<br />

sozinhas”.<br />

De fato, Berquó ressalta que entre os 15 e os 29 anos a taxa <strong>de</strong> mulheres residindo<br />

sozinhas é baixa, pois ou moram com os pais ou já se casaram e têm sua própria família.<br />

Contudo, a autora (1988) esclarece que a partir dos 45 anos, a proporção <strong>de</strong> mulheres sozinhas<br />

se torna cada vez maior: entre as casadas, os filhos saíram <strong>de</strong> casa para estudar ou constituir<br />

sua família; o efeito cumulativo do celibato e das separações se intensifica, b<strong>em</strong> como a<br />

quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mulheres viúvas, uma vez que estas têm mais longevida<strong>de</strong> do que o hom<strong>em</strong>.<br />

Em suma, se para os homens a situação <strong>de</strong> morar sozinho in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da ida<strong>de</strong>, para as<br />

mulheres a possibilida<strong>de</strong> se torna maior com o passar do t<strong>em</strong>po, sejam <strong>solteira</strong>s, separadas,<br />

viúvas com ou s<strong>em</strong> filhos, isto é, o envelhecimento re<strong>ser</strong>va para as mulheres uma vivência<br />

solitária.<br />

56


Berquó (2006), ao estudar os dados censitários sobre o estado conjugal da população<br />

nos últimos cinqüenta anos, i<strong>de</strong>ntifica que a maior parcela da população, a partir dos 15 anos<br />

<strong>de</strong>fine-se como casada (legalmente ou não), vindo <strong>em</strong> seguida o contingente <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>s.<br />

Contudo, ob<strong>ser</strong>va que se a proporção <strong>de</strong> casados apresenta uma tendência média <strong>de</strong> evolução<br />

entre 1940 e 1991, o mesmo não ocorre com os <strong>solteiro</strong>s, cuja taxa <strong>de</strong>clina <strong>de</strong> 40,8% para<br />

31,8% no referido período.<br />

A autora explica que, para o hom<strong>em</strong>, a média <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> no ato <strong>de</strong> casamento legal se<br />

mantém praticamente inalterada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1940, isto é, 27,1 anos. Com as mulheres, ao contrário,<br />

ob<strong>ser</strong>va-se uma escalada progressiva, <strong>em</strong> 1940 se casavam aos 21,7 anos, <strong>em</strong> 1950 aos 23,3<br />

anos, <strong>em</strong> 1960 aos 23,8 anos e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1970, a partir dos 24 anos. O aumento da ida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

casamento entre as mulheres po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> atribuído tanto à expansão do grau <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong>,<br />

quanto à sua in<strong>ser</strong>ção no mercado <strong>de</strong> trabalho. Por outro lado, aquelas que estabelec<strong>em</strong> uniões<br />

conjugais não formalizadas, po<strong>de</strong>m ter adiado por mais t<strong>em</strong>po sua legalização.<br />

No Brasil, poucos são os estudos sobre as “moedas <strong>de</strong> troca” ofertadas pelas mulheres<br />

e reiteradas pelos homens no mercado matrimonial, com exceção da juventu<strong>de</strong>. O fato dos<br />

homens se casar<strong>em</strong> com parceiras mais jovens, aliado ao superávit <strong>de</strong> mulheres, <strong>em</strong> todas as<br />

faixas etárias, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os quinze anos, produz efeitos cumulativos no crescente <strong>de</strong> separadas e<br />

viúvas, cujas chances <strong>de</strong> um recasamento são escassas, mas também no celibato f<strong>em</strong>inino.<br />

Com efeito, o censo <strong>de</strong> 1991, quando confrontado ao <strong>de</strong> 1980, revela razões <strong>de</strong> sexo que<br />

acentuam a <strong>de</strong>svantag<strong>em</strong> da mulher no mercado matrimonial, a partir dos 25 anos, pois o<br />

déficit <strong>de</strong> homens <strong>em</strong> termos absolutos correspon<strong>de</strong> a 800 mil na faixa dos 25 aos 39 anos.<br />

As estruturas etárias <strong>de</strong> homens e mulheres que moram sozinhos permanec<strong>em</strong><br />

diferentes no período <strong>de</strong> 1981 a 1995, para os homens esta situação ocorre in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da<br />

ida<strong>de</strong>, mas para as mulheres há uma predominância entre aquelas com ida<strong>de</strong> mais avançada.<br />

Berquó (2006) coloca como fator <strong>de</strong>terminante o fato da dinâmica masculina para celebração<br />

57


ou ruptura <strong>de</strong> uniões conjugais <strong>ser</strong> distinta da f<strong>em</strong>inina, ou seja, ela não está condicionada à<br />

sua faixa etária, ao contrário das mulheres, daí porque para cada <strong>de</strong>z mulheres que resi<strong>de</strong>m<br />

sós, seis situam-se na terceira ida<strong>de</strong>. Porém, vale l<strong>em</strong>brar que o crescimento do número <strong>de</strong><br />

mulheres idosas que moram sozinhas, particularmente as viúvas e separadas com<br />

in<strong>de</strong>pendência financeira, proporciona-lhes autonomia para vivenciar<strong>em</strong> possibilida<strong>de</strong>s até<br />

então adiadas ou impensadas por causa do marido e dos filhos.<br />

De fato, Lins <strong>de</strong> Barros (1981), ao investigar mulheres das classes médias resi<strong>de</strong>ntes<br />

na Zona Sul do Rio <strong>de</strong> Janeiro, na faixa etária entre 60 e 80 anos, a maioria <strong>solteira</strong>s, <strong>de</strong>staca<br />

que sua realida<strong>de</strong> contraria o padrão <strong>de</strong> velhice comum às classes médias, na medida <strong>em</strong> que<br />

não só procuram conhecer e influenciar a própria conjuntura histórica, apreen<strong>de</strong>r os<br />

probl<strong>em</strong>as recentes, mas também propor soluções alterativas, ou seja, <strong>de</strong>slocam sua atenção<br />

para o que é novo e para o que é mo<strong>de</strong>rno. Especialmente as <strong>solteira</strong>s, traz<strong>em</strong> como referência<br />

na área familiar os irmãos, com suas próprias famílias, no interior das quais não exerc<strong>em</strong><br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>cisório e, portanto, não têm status assegurado no grupo familiar 9 .<br />

Assim, a in<strong>de</strong>pendência econômica é obtida por meio da cultura acadêmica – a<br />

instrução escolar, o gosto pela arte e seu entendimento, posicionamento político e<br />

profissionalização através do ensino acadêmico – que caracteriza essas mulheres e <strong>de</strong>termina<br />

sua situação e posição social na socieda<strong>de</strong>. A esses aspectos somam-se as ativida<strong>de</strong>s religiosas<br />

ou <strong>de</strong> assistência social, não necessariamente vinculadas à Igreja, <strong>de</strong>senvolvidas há muito<br />

t<strong>em</strong>po e que, com o passar dos anos, ganham maior dimensão. Isto é, a proximida<strong>de</strong> do fim da<br />

vida “dá à sua missão um caráter especial, por <strong>ser</strong> ela vista como um arr<strong>em</strong>ate <strong>de</strong> uma vida<br />

quase toda <strong>de</strong>dicada às ativida<strong>de</strong>s religiosas e como ajuste <strong>de</strong> contas com o mundo para o qual<br />

9 Ver, também, Britto da Motta (1998) que, ao investigar mulheres idosas das classes populares, inclusive<br />

<strong>solteira</strong>s, i<strong>de</strong>ntifica uma liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero, na medida <strong>em</strong> que o t<strong>em</strong>po da velhice é vivido com leveza e<br />

alegria, pois estão livres <strong>de</strong> controles e obrigações societárias que reca<strong>em</strong> sobre mulheres jovens e maduras,<br />

<strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> do papel exercido como mãe-esposa-filha, que po<strong>de</strong>m, finalmente, pensar<strong>em</strong> <strong>em</strong> si mesmas, ao<br />

contrário das mulheres <strong>de</strong> classes médias estudadas por Barros (1981), cuja liberda<strong>de</strong> é conquistada ao longo<br />

<strong>de</strong> suas trajetórias <strong>de</strong> vida.<br />

58


estão voltadas” (1981, p. 60). Por essa razão, a velhice não as assusta, t<strong>em</strong><strong>em</strong> apenas a perda<br />

<strong>de</strong> consciência e, consequent<strong>em</strong>ente, in<strong>de</strong>pendência e autonomia para tomar<strong>em</strong> suas próprias<br />

<strong>de</strong>cisões, pois para elas a consciência <strong>de</strong> si mesmas e da realida<strong>de</strong> que as cerca é o que dá<br />

significado à sua existência.<br />

Ao atentar para o número <strong>de</strong> mulheres e homens não-casados na faixa etária <strong>de</strong> 30 a 34<br />

anos, no censo <strong>de</strong> 1991, Berquó (2006) i<strong>de</strong>ntifica 1.306.616 mulheres e 1.169.733 homens e,<br />

pon<strong>de</strong>ra, ainda que as chances <strong>de</strong> escolhas matrimoniais se restringiss<strong>em</strong> ao mesmo grupo<br />

etário e que todos almejass<strong>em</strong> o casamento, 136.883 mulheres ficariam <strong>de</strong> fora, sequer teriam<br />

a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolher<strong>em</strong> ou <strong>ser</strong><strong>em</strong> escolhidas. L<strong>em</strong>bra que a situação se torna ainda mais<br />

grave <strong>de</strong>vido à norma social segundo a qual as mulheres <strong>de</strong>v<strong>em</strong> se casar com homens <strong>de</strong> sua<br />

ida<strong>de</strong> ou mais velhos. Os dados censitários <strong>de</strong>monstram que havia no período <strong>em</strong> questão<br />

pouco mais <strong>de</strong> 4 milhões <strong>de</strong> homens não-casados, possíveis preten<strong>de</strong>ntes a marido, com 30<br />

anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> ou mais, o que correspondia a 3,2 homens não-casados para cada mulher não-<br />

casada na faixa etária <strong>de</strong> 30 a 34 anos.<br />

A mesma regra indica que os homens não-casados na faixa etária <strong>de</strong> 30 a 34 anos<br />

teriam pouco mais <strong>de</strong> 13 milhões <strong>de</strong> mulheres não-casadas, com ida<strong>de</strong> até 34 anos, que<br />

po<strong>de</strong>riam escolher como esposas. Em suma, para cada hom<strong>em</strong> não-casado <strong>de</strong> 30 a 34 anos<br />

haveria 11.3 mulheres não-casadas, esposas <strong>em</strong> potencial, o que ilustra a profunda assimetria<br />

presente no mercado matrimonial que, com o avançar da ida<strong>de</strong>, amplia as possibilida<strong>de</strong>s<br />

masculinas e praticamente anula as chances f<strong>em</strong>ininas. Por ex<strong>em</strong>plo, um hom<strong>em</strong> não-casado<br />

na faixa etária <strong>de</strong> 50 a 54 anos teria trinta chances a mais <strong>de</strong> encontrar uma parceira do que<br />

uma mulher na mesma faixa <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.<br />

59


Esta talvez seja uma das razões pelas quais Von Der Weid, ao <strong>de</strong>senvolver um estudo<br />

antropológico com 166 mulheres das classes médias cariocas sobre infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina 10 ,<br />

constatou entre 9 das 13 mulheres que foram amantes <strong>de</strong> homens casados por um maior<br />

período <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po (1 a 6 anos) uma ida<strong>de</strong> superior a 30 anos. Na faixa etária <strong>de</strong> 31 a 40 anos, o<br />

índice <strong>de</strong> mulheres que já se envolveram com homens casados sobe para 60%, o triplo do<br />

percentual referente a outras faixas etárias, equivalente a cerca <strong>de</strong> 20%<br />

(http://www.habitus.ifcs.urfj.br/imagens/habitus2olivia.pdf ).<br />

De fato, após os 30 anos, as mulheres enfrentam um <strong>de</strong>terminismo <strong>de</strong>mográfico. O<br />

superávit f<strong>em</strong>inino torna as chances <strong>de</strong> conseguir um marido, cada vez mais r<strong>em</strong>otas, o que as<br />

impele a se unir<strong>em</strong> a homens casados com outras mulheres, daí porque Berquó (1988) sugere<br />

a existência <strong>de</strong> uma “poliginia camuflada”. A autora, citada por Gol<strong>de</strong>nberg (2006), sugere<br />

outra alternativa para as mulheres que envelhec<strong>em</strong> sozinhas, envolver<strong>em</strong>-se afetivamente com<br />

alguém do mesmo sexo. Em nossa socieda<strong>de</strong>, o culto ao corpo e à juventu<strong>de</strong> se torna um<br />

impeditivo para que mulheres mais velhas se relacion<strong>em</strong> com alguém muito mais jov<strong>em</strong> do<br />

sexo oposto – porque os jovens não têm atração por elas ou porque se sent<strong>em</strong> inseguras e<br />

ameaçadas <strong>em</strong> competir<strong>em</strong> com mulheres mais jovens pelos mesmos homens. Em suma, o<br />

fato <strong>de</strong> muitas mulheres compartilhar<strong>em</strong> a solteirice, a solidão e os sinais <strong>de</strong> envelhecimento<br />

po<strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar o interesse por alguém do mesmo sexo 11 . Mas, <strong>ser</strong>á que o <strong>de</strong>terminismo<br />

<strong>de</strong>mográfico é o único fator que <strong>de</strong>termina a solteirice f<strong>em</strong>inina? Tudo indica que não, a partir<br />

da década <strong>de</strong> 1970, a revolução sexual orquestrou mudanças profundas que, certamente,<br />

afetaram as vivências <strong>de</strong> mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s.<br />

10 Ver, também, Gol<strong>de</strong>nberg (1997), que se baseia nas pistas reunidas por Berquó para analisar a trajetória da<br />

“outra”, a qual é circunstancial e transitória até os 30 anos e, com o avanço da ida<strong>de</strong>, adquire fixi<strong>de</strong>z, isto é, a<br />

mulher se torna a “outra” permanent<strong>em</strong>ente.<br />

11 Berquó coloca que a solidão, marcas <strong>de</strong> envelhecimento e falta <strong>de</strong> perspectivas <strong>de</strong> casamento favorec<strong>em</strong> o<br />

lesbianismo como opção sexual. Sob meu ponto <strong>de</strong> vista, a solidão trama o encontro, mas não <strong>de</strong>termina a<br />

opção sexual, <strong>em</strong>bora não signifique que essas mulheres não possam se apaixonar por suas parceiras.<br />

60


Gol<strong>de</strong>nberg e Toscano (1992) argumentam que, particularmente no campo da<br />

sexualida<strong>de</strong>, o f<strong>em</strong>inismo incitava mudanças radicais nas classes médias urbanas: a<br />

virginda<strong>de</strong> e a monogamia eram execradas; todos os <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong>viam <strong>ser</strong> saciados; o jogo<br />

erótico perseguia o lúdico, todas as experiências eram vividas intensamente por mulheres e<br />

homens com múltiplos parceiros ou parceiras; a pílula e outros métodos contraceptivos<br />

possibilitavam que mulheres <strong>de</strong> diferentes ida<strong>de</strong>s exercess<strong>em</strong> a sexualida<strong>de</strong> s<strong>em</strong> fins<br />

procriativos, <strong>de</strong>ntro e fora do casamento.<br />

Berquó (1989), ao <strong>de</strong>ter-se no avanço da proporção <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong>claradas <strong>solteira</strong>s<br />

que tiveram filhos nas últimas décadas, sugere a tentativa <strong>de</strong> romper<strong>em</strong> com os mo<strong>de</strong>los<br />

tradicionais, seja porque são in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, <strong>de</strong>sejam vivenciar a maternida<strong>de</strong> e optam por<br />

<strong>de</strong>svinculá-la da instituição familiar, seja porque o avanço da ida<strong>de</strong> reduz as chances no<br />

mercado matrimonial e escolh<strong>em</strong> constituir uma família, apesar <strong>de</strong> incompleta, ao invés <strong>de</strong><br />

nenhuma. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das razões, o fato é que esta situação t<strong>em</strong> contribuído para o<br />

crescimento das famílias monoparentais f<strong>em</strong>ininas.<br />

Marta Suplicy, entrevistada por Gol<strong>de</strong>nberg e Toscano (1992), consi<strong>de</strong>ra que, na<br />

década <strong>de</strong> 1970, muitas mulheres abraçaram o mo<strong>de</strong>lo masculino <strong>de</strong> comportamento sexual –<br />

o sexo apartado da afetivida<strong>de</strong> –, o que foi um equívoco, pois “confundiram liberda<strong>de</strong> com<br />

promiscuida<strong>de</strong>” (p. 73), isto é, tornaram-se in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, mas não, autônomas, capazes <strong>de</strong><br />

dizer<strong>em</strong> não ou escolher<strong>em</strong> com qu<strong>em</strong>, on<strong>de</strong> e quando transar<strong>em</strong>. Sua opinião é similar à <strong>de</strong><br />

outra entrevistada, Rose Marie Muraro, para qu<strong>em</strong> a <strong>de</strong>scoberta da AIDS favoreceu <strong>em</strong> parte<br />

a mulher, “porque o que estava havendo no fim dos anos 70 é que todo mundo estava<br />

trepando com todo mundo, que é a maneira machista, impessoal, mecânica <strong>de</strong> fazer sexo” (p.<br />

74). Suplicy acrescenta que a permissivida<strong>de</strong> sexual f<strong>em</strong>inina v<strong>em</strong> acompanhada por uma<br />

busca incessante <strong>de</strong> orgasmos transcen<strong>de</strong>ntais, prometidos por receitas infalíveis publicadas<br />

<strong>em</strong> revistas como Nova.<br />

61


Em minha opinião, existe uma sutil diferença entre a liberda<strong>de</strong> excessiva questionada<br />

por Suplicy e Muraro e, a liberda<strong>de</strong> incontida vivenciada por mulheres e homens na década <strong>de</strong><br />

1970. Ao associarmos liberação f<strong>em</strong>inina a promiscuida<strong>de</strong> que precisa <strong>ser</strong> freada,<br />

inadvertidamente reificamos o padrão dual <strong>de</strong> comportamentos sexuais impostos a mulheres e<br />

homens, isto é, o hom<strong>em</strong> continua po<strong>de</strong>ndo tudo, a mulher também po<strong>de</strong>, mas n<strong>em</strong> tudo, daí a<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vigilância social sobre seu corpo.<br />

Fontes (1997), ao refletir sobre a mulher ilustrada por Nova, reporta-se a autoras como<br />

Moraes e Sarti, para qu<strong>em</strong> a publicação se apropria da Revolução Sexual e elabora um<br />

discurso <strong>em</strong> duas pr<strong>em</strong>issas: o sexo consiste <strong>em</strong> instrumento <strong>de</strong> afirmação f<strong>em</strong>inina e a<br />

sedução sexual é a prova inconteste <strong>de</strong> sua f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong>. Dessa forma, a tradicional mãe-<br />

esposa-dona <strong>de</strong> casa é <strong>de</strong>spida da imag<strong>em</strong> virginal, sublime, virtuosa e r<strong>em</strong>o<strong>de</strong>lada através da<br />

ambivalência, paradoxo, cuja imag<strong>em</strong> se traduz <strong>em</strong> opostos que aparent<strong>em</strong>ente se confun<strong>de</strong>m<br />

e compl<strong>em</strong>entam – a mulher se assume como sexualmente ativa, mas também reafirma a<br />

imag<strong>em</strong> passiva <strong>de</strong> objeto <strong>de</strong> prazer, por livre e espontânea vonta<strong>de</strong>. Em outras palavras, a<br />

Nova Mulher é erotizada nas ativida<strong>de</strong>s domésticas, profissionais e na cama, provoca o<br />

hom<strong>em</strong> porque quer e não apenas para agradá-lo: ela é objeto sexual assumido porque gosta.<br />

No entanto, não se po<strong>de</strong> ignorar que, apesar da contradição, a publicação incita as leitoras a<br />

repensar<strong>em</strong> e falar<strong>em</strong> sobre a sexualida<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina, o sexo <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> <strong>ser</strong> um assunto proibido e<br />

surg<strong>em</strong> outras formas <strong>de</strong> expressão. Nesse sentido, provoca Fontes (1997, p. 89):<br />

Estes aspectos, para alguns estudos, pouco significou além da <strong>de</strong>sfiguração da<br />

mulher <strong>em</strong> objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo e <strong>de</strong> prazer. Mas o f<strong>em</strong>inismo foi o primeiro a<br />

reivindicar o direito ao <strong>de</strong>sejo e ao prazer para as mulheres ou as análises estão<br />

submetidas a valores morais? Ou o prazer não <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> extensivo às massas? Penso<br />

que se resvala para a perigosa crítica à erotização do f<strong>em</strong>inino e esta po<strong>de</strong> <strong>de</strong>rivar<br />

para a crítica do direito da mulher ao prazer e tornar-se probl<strong>em</strong>a para o pilar do<br />

f<strong>em</strong>inismo: a liberação sexual.<br />

Gol<strong>de</strong>nberg e Toscano acrescentam (1992) que a mulher já não compactua com a<br />

submissão, não se contenta <strong>em</strong> exercer com exclusivida<strong>de</strong> o papel <strong>de</strong> esposa-mãe, n<strong>em</strong><br />

consi<strong>de</strong>ra o casamento como <strong>de</strong>stino, única fonte <strong>de</strong> realização, mas isso não significa que<br />

62


não <strong>de</strong>seje casar, apenas suas expectativas <strong>em</strong> relação ao parceiro amoroso são outras –<br />

companheirismo, reciprocida<strong>de</strong>, confluência <strong>de</strong> estilos e projetos <strong>de</strong> vida,<br />

compl<strong>em</strong>entarieda<strong>de</strong> e satisfação sexual –, <strong>em</strong>bora não se <strong>de</strong>svencilhe <strong>de</strong> todo dos velhos<br />

mo<strong>de</strong>los, ou seja, ainda sonha com o “príncipe encantado”, provedor, forte e generoso que a<br />

proteja das int<strong>em</strong>péries enfrentadas no espaço público, resguardando-a no recesso do lar.<br />

Assim, novos arranjos afetivo-sexuais são ensaiados, o casal se reinventa, ora resgata<br />

o mo<strong>de</strong>lo tradicional <strong>de</strong> família e casamento, ora se aventura <strong>em</strong> alternativas vanguardistas <strong>de</strong><br />

conjugalida<strong>de</strong>, <strong>em</strong> casamentos monogâmicos sucessivos, cuja finitu<strong>de</strong> está condicionada à<br />

permanência do afeto e do tesão sexual, <strong>em</strong>bora os velhos apanágios permaneçam<br />

interiorizados (GOLDENBERG, 2005). Nesse sentido, Rosiska Darcy <strong>de</strong> Oliveira,<br />

entrevistada por Gol<strong>de</strong>nberg e Toscano (1992, p. 78) reitera a (ainda) inarredável importância<br />

do casamento para a maioria das mulheres:<br />

Eu acho que as mulheres têm mais aspiração a uma vida mais estável, a um<br />

casamento. Eu não creio que os homens estejam menos solitários porque talvez<br />

tenham uma diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações possíveis que lhes dá uma impressão <strong>de</strong> nãosolidão.<br />

Eu estou me referindo não tanto à presença física, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma casa, mas<br />

ao acompanhamento interno, ao se estar sentindo internamente acompanhada. As<br />

mulheres ten<strong>de</strong>m, até por tradição, a buscar a permanência nas relações, enquanto os<br />

homens vêm talvez se contentando, com mais facilida<strong>de</strong>, com uma diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

relações que eu não creio que no fundo lhes tire da solidão, mas faz barulho, faz<br />

movimento, encobre um pouco essa solidão profunda e que está inclusive instalada<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> vários casamentos. Porque não necessariamente os casados estão mais<br />

acompanhados do que os <strong>solteiro</strong>s. Eu creio que nós estamos atravessando uma fase<br />

extr<strong>em</strong>amente difícil das relações humanas.<br />

Com efeito, os anos 90 vão encontrar uma mulher que <strong>de</strong>seja o casamento, porém não<br />

se sujeita mais a uma relação dis – par – atada, ou seja, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte dos rearranjos familiares<br />

e padrões <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong> adotados, as f<strong>em</strong>inistas entrevistadas por Gol<strong>de</strong>nberg e Toscano<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que o número <strong>de</strong> separações e divórcios é o preço a pagar por uma maior qualida<strong>de</strong><br />

no relacionamento amoroso. Com relação à maternida<strong>de</strong>, suas opiniões, apesar <strong>de</strong> trazer<strong>em</strong><br />

variações, reproduz<strong>em</strong> a ambigüida<strong>de</strong> presente nas últimas décadas do século XX. Senão,<br />

vejamos:<br />

63


Heloneida Sturdat (GOLDENBERG e TOSCANO, 1992) questiona a mitificação do<br />

instinto materno, mas sua justificativa valida os mo<strong>de</strong>los e atributos f<strong>em</strong>ininos consi<strong>de</strong>rados<br />

naturais, isto é, afirma que “não abriria mão da maternida<strong>de</strong>”, <strong>em</strong>bora não censure qu<strong>em</strong> o<br />

faz, afinal são mulheres s<strong>em</strong> “vocação”, “autocentradas, narcísicas, que não <strong>ser</strong>iam felizes<br />

como mães”, porque são egoístas, não consegu<strong>em</strong> “se entregar”, “dividir” e “se doar”,<br />

sacrificar as horas <strong>de</strong> sono ou <strong>de</strong> lazer, o corpo cuja beleza e perfeição são roubadas pela<br />

gravi<strong>de</strong>z.<br />

Na mesma linha <strong>de</strong> pensamento, Marta Suplicy (GOLDENBERG e TOSCANO, 1992)<br />

acredita que a ausência <strong>de</strong> filhos “provoca uma lacuna muito séria na vida <strong>de</strong> uma mulher” e,<br />

as companheiras f<strong>em</strong>inistas que optaram por não <strong>ser</strong><strong>em</strong> mães foram levadas por<br />

circunstâncias ou perfeccionismo, ou seja, preferiram aguardar um momento mais propício.<br />

Entre constrangida e penalizada, Suplicy expressa sua opinião:<br />

Eu acho que é uma experiência imperdível na vida <strong>de</strong> uma mulher e acho que faz<br />

falta, por mais triste que seja dizer isso às companheiras que não tiveram. [...] Não<br />

me convenço, quando as mulheres faz<strong>em</strong> essa opção e, <strong>de</strong>pois, diz<strong>em</strong> que elas não se<br />

arrepen<strong>de</strong>m. Primeiro, porque não tiveram a experiência para saber, e é uma coisa<br />

que só tendo a experiência para saber (1992, p. 31).<br />

Enquanto Marta Suplicy recita à sua maneira os versos do poeta, Branca Moreira<br />

Alves acha que a mulher po<strong>de</strong> prescindir da maternida<strong>de</strong> e <strong>ser</strong> feliz, mas há uma condição,<br />

“<strong>ser</strong> superanalisada, superconsciente, que consegue chegar perto do seu próprio <strong>de</strong>sejo e tocar<br />

pra frente” (GOLDENBERG e TOSCANO, 1992), ou seja, somente a análise para ajudá-la a<br />

sufocar sua vocação materna e priorizar outras fontes <strong>de</strong> realização pessoal. Muraro, <strong>de</strong> forma<br />

mais ve<strong>em</strong>ente, expõe seu “medo” com relação a mulheres e homens que optam por não ter<br />

filhos, pois “precisariam <strong>de</strong> uma boa terapia [...], <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ter algum probl<strong>em</strong>a”<br />

(GOLDENBERG e TOSCANO, 1992, p. 82). Em outras palavras, mulheres e homens que se<br />

64


ecusam a ter filhos são colocados sob suspeita <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus comportamentos<br />

<strong>de</strong>sviantes 12 .<br />

Para Heleieth Saffioti, o número <strong>de</strong> mulheres que opta por não ter filhos ainda é<br />

reduzido, elas têm apenas adiado a maternida<strong>de</strong>, até os 35 anos e, quando se aproximam dos<br />

40 anos, começam a se <strong>de</strong>sesperar, pois a partir <strong>de</strong>sta ida<strong>de</strong> a gravi<strong>de</strong>z envolve risco. L<strong>em</strong>bra,<br />

entretanto, que é um direito seu <strong>de</strong>cidir se quer <strong>ser</strong> mãe ou não:<br />

Há tantos homens que optam por isso e ninguém fala nada. Por que a mulher não<br />

po<strong>de</strong> optar por não ter filhos? Po<strong>de</strong>! É um direito <strong>de</strong>la [...] Há uma pressão muito<br />

gran<strong>de</strong> para que a mulher seja mãe. A mulher po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> feliz s<strong>em</strong> ter filhos, não é<br />

uma mutilação. Aliás, eu acho que <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> <strong>ser</strong> uma mutilação por causa do<br />

f<strong>em</strong>inismo (GOLDENBERG e TOSCANO, 1992, p. 81)<br />

Rosiska Darcy, ao contrário <strong>de</strong> Saffioti, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra a influência do f<strong>em</strong>inismo e<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a maternida<strong>de</strong> é uma opção pessoal, mo<strong>de</strong>lada pela biografia, projetos <strong>de</strong> vida e<br />

anseios <strong>de</strong> cada mulher, mas também uma escolha mútua, racionalizada com o parceiro,<br />

quando <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m confrontar a normativida<strong>de</strong> instituída e não ter<strong>em</strong> filhos. Baseada <strong>em</strong> sua<br />

própria experiência, questiona as mulheres que <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> a maternida<strong>de</strong> como atendimento ao<br />

clamor da natureza ou mero cumprimento do papel f<strong>em</strong>inino e argumenta: “Esse grito da<br />

carne eu não tive, e a pressão do ‘t<strong>em</strong>, porque t<strong>em</strong> que ter’ eu não aceitei” (GOLDENBERG e<br />

TOSCANO, 1992, p. 82). Em outras palavras, Darcy enten<strong>de</strong> que a recusa da mulher <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>dicar a vida aos filhos, sublimar outros sonhos e realizações <strong>em</strong> prol da felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stes<br />

po<strong>de</strong> parecer egoísmo, mas carrega uma dimensão <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> – ela é livre para conceber ou<br />

não filhos –, o que anula qualquer traço i<strong>de</strong>ológico <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>cisão.<br />

Penso que não se po<strong>de</strong> menosprezar a influência do movimento f<strong>em</strong>inista no tocante<br />

às conquistas alcançadas pelas mulheres nas últimas décadas, n<strong>em</strong> tampouco atribuir a mera<br />

escolha pessoal suas expectativas e buscas no âmbito intelectual, profissional ou amoroso,<br />

estas não são feitas ao acaso, têm s<strong>em</strong>pre um componente i<strong>de</strong>ológico, seja para revalidar ou<br />

12 A própria entrevistadora, Mirian Gol<strong>de</strong>nberg se encontra nessa categoria, ou seja, optou por não ter filhos.<br />

Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Gol<strong>de</strong>nberg (2006).<br />

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contestar os padrões sociais vigentes. Por outro lado, há <strong>de</strong> se questionar: Tais mudanças terão<br />

provocado mais <strong>de</strong>sencontros do que encontros entre mulheres e homens? O status f<strong>em</strong>inino<br />

ainda se encontra condicionado a uma presença masculina <strong>em</strong> sua vida? Mulher s<strong>em</strong> hom<strong>em</strong><br />

ainda é consi<strong>de</strong>rada alguém s<strong>em</strong> valor, respeito, in<strong>de</strong>fesa, fracassada e incompleta? Vejamos o<br />

que pensam as f<strong>em</strong>inistas entrevistadas por Gol<strong>de</strong>nberg e Toscano (1992):<br />

Saffioti acredita que as mulheres não estão mais sozinhas do que antigamente, a<br />

diferença é que algumas não ocultam a solidão e n<strong>em</strong> se contentam <strong>em</strong> pre<strong>ser</strong>var uma relação<br />

<strong>em</strong> que se extinguiu a comunicação e o vínculo entre o casal, ou seja, procuram refazer suas<br />

vidas com outro parceiro ou prefer<strong>em</strong> ficar sozinhas a mal acompanhadas. Contudo, l<strong>em</strong>bra<br />

que há outras tantas mulheres que, para continuar<strong>em</strong> casadas, mantêm as aparências e<br />

silenciam a solidão.<br />

A separação e o recasamento parec<strong>em</strong> <strong>ser</strong> mais fáceis quando a mulher é mais jov<strong>em</strong>,<br />

capaz <strong>de</strong> competir no mercado matrimonial. Conforme ob<strong>ser</strong>va Suplicy (GOLDENBERG e<br />

TOSCANO, 1992), aos quarenta, cinqüenta anos, mesmo a mulher sendo f<strong>em</strong>inista,<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte financeiramente, com uma carreira profissional, o mundo se torna um peso caso<br />

esteja sozinha, daí <strong>de</strong>sejar um hom<strong>em</strong> com qu<strong>em</strong> compartilhe sua vida, que cui<strong>de</strong> <strong>de</strong>la e a<br />

proteja. O hom<strong>em</strong> separado, ao contrário, procura uma companheira in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, que<br />

continue morando <strong>em</strong> sua própria casa, principalmente motivado pelo fator econômico, ou<br />

seja, manter dois lares é um fardo difícil <strong>de</strong> carregar.<br />

Já Studart e Darcy enten<strong>de</strong>m que as mulheres estão mais propensas à solidão<br />

exatamente porque os homens não conseguiram acompanhar suas mudanças e, mesmo os<br />

mais jovens, sent<strong>em</strong>-se <strong>de</strong>sapontados, porque já não encontram uma gueixa submissa que<br />

satisfaça todas as suas vonta<strong>de</strong>s, mas também ameaçados e assustados porque não consegu<strong>em</strong><br />

correspon<strong>de</strong>r ao i<strong>de</strong>al masculino <strong>de</strong> uma mulher que sabe o que quer, escolhe s<strong>em</strong> concessões<br />

e vai à luta. Por essa razão, t<strong>em</strong> aumentado o contingente <strong>de</strong> mulheres sós, mas conforme<br />

66


Studart (GOLDENBERG e TOSCANO, 1992, p. 85), “isso é uma crise, como outra qualquer,<br />

que vai passar, porque não há nada que possa separar o hom<strong>em</strong> da mulher”. Enquanto não<br />

acontece, resta como alternativa seguir o conselho <strong>de</strong> Branca Dias: “Gente, baixa um pouco a<br />

expectativa!” (GOLDENBERG e TOSCANO, 1992).<br />

Tanto Alves quanto Muraro atribu<strong>em</strong> a solidão f<strong>em</strong>inina às expectativas e exigências<br />

f<strong>em</strong>ininas, pois não faltam homens disponíveis. Para a última, a solidão f<strong>em</strong>inina t<strong>em</strong> se<br />

tornado um probl<strong>em</strong>a principalmente para mulheres <strong>de</strong> classe média e alta, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> só<br />

aceitar<strong>em</strong> casar com alguém <strong>de</strong> classe igual ou superior e, acabam ficando sós, mas pon<strong>de</strong>ra,<br />

não é um probl<strong>em</strong>a insolúvel: “Vai arrumar um hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> outra classe social que você<br />

encontra <strong>de</strong>z” (GOLDENBERG e TOSCANO, 1992).<br />

Ao que tudo indica as conquistas f<strong>em</strong>ininas ainda não conseguiram abolir os velhos<br />

mo<strong>de</strong>los, a cultura ainda coloca como i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> para a mulher o casamento e<br />

formação <strong>de</strong> uma família e, ficar <strong>solteira</strong>, refém da solidão, é o preço a pagar por perseguir<br />

outras possibilida<strong>de</strong>s e subverter a or<strong>de</strong>m. Caso contrário, a mulher <strong>de</strong>ve regatar o silêncio,<br />

calar insatisfações, atenuar expectativas relacionais e diminuir o grau <strong>de</strong> exigência <strong>em</strong> relação<br />

aos parceiros, somente assim po<strong>de</strong>rá ter a chance <strong>de</strong> ter um hom<strong>em</strong> para chamar <strong>de</strong> seu.<br />

Contudo, não se po<strong>de</strong> ignorar que, <strong>em</strong>bora o mo<strong>de</strong>lo nuclear seja predominante entre as<br />

famílias <strong>de</strong> classe média, novas experiências conjugais são ensaiadas; os laços amorosos entre<br />

os pares ganham diversida<strong>de</strong> e ocupam diferentes espaços, inclusive casas separadas; as<br />

mulheres geram filhos por meio <strong>de</strong> “produção in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”; optam por uniões estáveis, mas<br />

não formalizadas ou escolh<strong>em</strong> não ter filhos, assim como t<strong>em</strong> aumentado a opção entre<br />

mulheres e homens pelo celibato (GOLDANI, 1993).<br />

Nas últimas décadas, fruto da globalização, inovações tecnológicas, informatização, as<br />

sucessivas transformações na tessitura social vêm produzindo mutações subjetivas nos<br />

indivíduos, gestadas mediante uma alternância <strong>de</strong> sist<strong>em</strong>as simbólicos, uma vez que o<br />

67


indivíduo se <strong>de</strong>fronta com novos sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> referência, que tenta apropriar, ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

<strong>em</strong> que busca resguardar valores e formas <strong>de</strong> vida já conhecidas. Po<strong>de</strong>-se supor, portanto, que<br />

novos/velhos mapas são traçados por homens e mulheres <strong>solteiro</strong>s, plasmando subjetivida<strong>de</strong>s<br />

multifacetadas sobre o celibato.<br />

De fato, Amorim (1992), ao investigar sobre a construção <strong>de</strong> uma nova i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da<br />

mulher <strong>solteira</strong>, a partir dos 30 anos, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Maceió - Al, no período 1984 – 1985,<br />

constata que esta é uma “mulher <strong>em</strong> transição”, alterna valores ancestrais e outros mais<br />

mo<strong>de</strong>rnos que reg<strong>em</strong> a socieda<strong>de</strong> local e, por isso mesmo, mo<strong>de</strong>lada pelo conflito,<br />

ambigüida<strong>de</strong>. A in<strong>de</strong>pendência econômica, obtida através do trabalho e estudo, liberta-a da<br />

obrigatorieda<strong>de</strong> do casamento, o amor torna-se a lei que conduz suas escolhas afetivas, o<br />

exercício da sexualida<strong>de</strong>.<br />

A autora conclui que as contradições e ambigüida<strong>de</strong>s são sinais <strong>de</strong> uma mudança<br />

comportamental, novos <strong>de</strong>sejos e expectativas da mulher acerca <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>stino. A mulher<br />

<strong>solteira</strong> v<strong>em</strong> construindo uma nova i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, reescrevendo sua história a partir da<br />

construção e luta para assegurar seus direitos.<br />

No entanto, vale <strong>de</strong>stacar, os <strong>de</strong>poimentos, <strong>em</strong> seu caráter contraditório, também<br />

ilustram uma mulher que se percebe como “ninguém”, explorada por familiares e amigos,<br />

porque “poço <strong>de</strong> disponibilida<strong>de</strong> que se vê obrigada a abafar [...] <strong>de</strong>sejos”, realizando-se na<br />

falta <strong>de</strong> um companheiro, através da ajuda ao próximo e cuidados com os sobrinhos, filhos<br />

postiços, enquanto tenta proteger-se da solidão e pressões sociais.<br />

As narrativas das mulheres ilustram o estado claustrofóbico <strong>em</strong> que transitam, seja<br />

porque a família é amarra da qual não consegu<strong>em</strong> se libertar, fonte <strong>de</strong> repressão sexual,<br />

exploração econômica e <strong>em</strong>ocional, seja porque a profissionalização, in<strong>de</strong>pendência<br />

financeira parec<strong>em</strong> atuar mais como prêmio <strong>de</strong> consolação e menos como busca <strong>de</strong> realização<br />

68


pessoal. A liberda<strong>de</strong> sexual, por sua vez, somente é exercitada s<strong>em</strong> culpas, longe dos olhares<br />

censores da família e da socieda<strong>de</strong> local.<br />

A imag<strong>em</strong> que prevalece é, acima <strong>de</strong> tudo, a <strong>de</strong> mulheres que se engajam <strong>em</strong> lutas<br />

sociais, têm consciência das mudanças provocadas pelo movimento f<strong>em</strong>inista, das raízes <strong>de</strong><br />

sua opressão e, por isso mesmo, sofr<strong>em</strong> mais do que aquelas que aceitam com fatalismo,<br />

resignação, porque assim o foi e s<strong>em</strong>pre <strong>ser</strong>á, ou seja, mulheres que viv<strong>em</strong> numa área <strong>de</strong><br />

sombra, cujas perspectivas futuras causam medo, t<strong>em</strong>or, pois o transitar entre o mo<strong>de</strong>rno e o<br />

arcaico se mostra muito triste e solitário.<br />

Por sua vez, o filme “Como <strong>ser</strong> <strong>solteiro</strong>” (1998), ilustra dois arquétipos <strong>de</strong> homens<br />

<strong>solteiro</strong>s, o primeiro, tímido, intelectual e sensível, mas que não consegue atrair as mulheres e<br />

o outro, sedutor, que alar<strong>de</strong>ia suas conquistas e, argumenta com o amigo, persuadindo-o a<br />

imitá-lo: “[...] As mulheres só estão interessadas <strong>em</strong> nosso corpinho [...]. toda mulher é uma<br />

batalha e o <strong>solteiro</strong> é acima <strong>de</strong> tudo um guerreiro[...]”.<br />

Já as duas personagens f<strong>em</strong>ininas são representadas pela namorada do conquistador,<br />

que se <strong>de</strong>silu<strong>de</strong> ao <strong>de</strong>scobrir que é traída e sua amiga romântica, ansiosa por estabelecer uma<br />

relação estável, que se envolve com os personagens masculinos, pois: “Cada dia menos<br />

hom<strong>em</strong>, é difícil agarrar um! [...] Até eu arrumar namorado eu só penso <strong>em</strong> hom<strong>em</strong>, <strong>de</strong>pois eu<br />

passo a falar <strong>em</strong> política, probl<strong>em</strong>as sociais[...]”.<br />

Conforme ressalta Fialho (2000), a direção <strong>de</strong> Rosane Svartman lança um olhar<br />

f<strong>em</strong>inino sobre o t<strong>em</strong>a abordado, e reifica o amor romântico para contrarrestar as relações<br />

episódicas masculinas, as cenas finais <strong>em</strong>oldurando o arrependimento do aprendiz <strong>de</strong><br />

conquistador, que resgata a mocinha romântica numa clínica <strong>de</strong> aborto e assume a paternida<strong>de</strong><br />

da criança, propondo-lhe casamento, único “final feliz” possível.<br />

Já Von Atzingen e Costa, ao registrar<strong>em</strong>, <strong>de</strong> forma leve e b<strong>em</strong>-humorada, a história <strong>de</strong><br />

amigas sobre suas expectativas e <strong>de</strong>sapontamentos no campo afetivo, esclarec<strong>em</strong> que, na caça<br />

69


ao príncipe encantado, “<strong>solteiro</strong> é como barata: t<strong>em</strong> <strong>em</strong> todo lugar”(1997a, p. 35), <strong>em</strong><br />

qualquer dia da s<strong>em</strong>ana e a qualquer hora. No entanto, advert<strong>em</strong>, há três tipos <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>s: o<br />

convicto, o <strong>de</strong>sesperado e aquele por circunstâncias.<br />

Para o <strong>solteiro</strong> convicto, a mulher configura-se <strong>em</strong> probl<strong>em</strong>a, porque só lhe traz<br />

preocupações, trabalho. O casamento implica <strong>em</strong> per<strong>de</strong>r a liberda<strong>de</strong>, abdicar do convívio<br />

costumeiro com amigos, ter que partilhar seus pertences, aumentar as horas <strong>de</strong> trabalho, mais<br />

<strong>de</strong>spesas e menos diversão, além do fim dos seus dias <strong>de</strong> conquistador, ou seja, habituar-se à<br />

rotina <strong>de</strong> acordar s<strong>em</strong>pre com a mesma mulher do seu lado. Para ele, portanto, essa é uma<br />

experiência que prefere adiar in<strong>de</strong>finidamente, pois <strong>de</strong>sconhece qualquer casamento que tenha<br />

dado certo e, a<strong>de</strong>mais, não sente solidão. Por isso, prefere permanecer como eterno namorado.<br />

O <strong>solteiro</strong> <strong>de</strong>sesperado, ao contrário, teve namoros duradouros, mas seu alto nível <strong>de</strong><br />

exigência o levou a adiar o casamento, até o momento <strong>em</strong> que se <strong>de</strong>para com os primeiros<br />

sinais dos estragos do t<strong>em</strong>po: a calvície que não consegue disfarçar, o corpo ressentido<br />

quando se exce<strong>de</strong> nas noitadas, todos os seus amigos casados e com filhos, o que o faz sentir-<br />

se sobrando, <strong>de</strong>slocado. Por isso, apaixona-se freqüent<strong>em</strong>ente, todas as mulheres são<br />

candidatas <strong>em</strong> potencial a esposa, sejam aquelas que ele pe<strong>de</strong> aos amigos para lhe apresentar<br />

ou ex-namoradas ainda <strong>solteira</strong>s, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que gost<strong>em</strong> <strong>de</strong> crianças. Conclui-se, portanto, que a<br />

busca <strong>de</strong>sesperada <strong>de</strong>sse <strong>solteiro</strong> pelo casamento nada t<strong>em</strong> <strong>de</strong> romântica, mas sim, é baseada<br />

<strong>em</strong> um caráter utilitário-pragmático, ele “está louco para casar porque <strong>de</strong>scobriu que está<br />

ficando velho” (VON ATZINGEN e COSTA, 1997a, p. 38).<br />

Por fim, há o <strong>solteiro</strong> para qu<strong>em</strong> o casamento ainda não ocorreu, apenas porque não<br />

encontra a mulher i<strong>de</strong>al, ou seja, sua solteirice é motivada pelas circunstâncias. Assim,<br />

esmera-se <strong>em</strong> evi<strong>de</strong>nciar suas qualida<strong>de</strong>s e dotes, sua pretensão <strong>de</strong> <strong>ser</strong> um bom companheiro,<br />

adquirir uma casa própria para alojar a futura família, ter um casamento tal qual o <strong>de</strong> seus<br />

avós, quer encontrar alguém que alivie sua solidão e com qu<strong>em</strong> assista filmes românticos. O<br />

70


único probl<strong>em</strong>a, segundo as autoras, é que as circunstâncias po<strong>de</strong>m levar esse <strong>solteiro</strong> a nunca<br />

encontrar sua “alma gêmea”, uma vez que ele almeja viver um conto <strong>de</strong> fadas, um<br />

relacionamento especial com uma mulher i<strong>de</strong>alizada, ou seja, uma mulher que o faça r<strong>em</strong>oçar,<br />

apaixonar-se tal qual um jov<strong>em</strong> <strong>de</strong> 20 anos, reunindo qualida<strong>de</strong>s como inteligência, bom-<br />

humor, simpatia, além <strong>de</strong> <strong>ser</strong> criativa e sedutora, o que neste caso se torna ainda mais difícil,<br />

uma vez que o referencial imagético masculino realiza uma fusão <strong>de</strong> Cindy Crawford com<br />

Sharon Stone.<br />

Ob<strong>ser</strong>va-se que o retrato da solteirice masculina realizado por Von Atzingen e Costa<br />

(1997a) adota como eixo o mo<strong>de</strong>lo heg<strong>em</strong>ônico <strong>de</strong> casamento, formação <strong>de</strong> uma família,<br />

subsumido ao ethos do amor romântico; é <strong>de</strong> fato, uma leitura f<strong>em</strong>inina. Entretanto, a<br />

tipologia que constro<strong>em</strong> dos <strong>solteiro</strong>s po<strong>de</strong> sugerir outra interpretação. Há o <strong>solteiro</strong> convicto,<br />

assumidamente posicionando-se contrário ao casamento ou aquele que escudado nas<br />

circunstâncias, na busca <strong>de</strong> uma mulher onírica, resguarda-se das pressões sociais <strong>em</strong> torno do<br />

cumprimento dos papéis sociais atribuídos ao universo masculino. Ambos, entretanto, optam<br />

por não se casar. O <strong>solteiro</strong> que se <strong>de</strong>sespera , ao contrário, almeja o casamento exatamente<br />

para <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> <strong>ser</strong> um el<strong>em</strong>ento dissonante, transgressor das regras culturais vigentes, ou seja,<br />

busca cumprir a forma <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong> baseada na nuclearida<strong>de</strong> da família burguesa.<br />

Por outro lado, Von Atzingen e Costa (1997b), ao investigar<strong>em</strong> a solteirice f<strong>em</strong>inina, a<br />

partir <strong>de</strong> relatos masculinos, registram que as mulheres <strong>solteira</strong>s po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> encontradas no<br />

trabalho, <strong>em</strong> bares, malhando <strong>em</strong> aca<strong>de</strong>mias ou pesquisando o que o <strong>de</strong>stino lhes re<strong>ser</strong>va, <strong>em</strong><br />

cartomantes, quiromantes e astrólogas. As autoras i<strong>de</strong>ntificam dois tipos <strong>de</strong> <strong>solteira</strong>s: a que<br />

mora sozinha e a que resi<strong>de</strong> com os pais.<br />

A primeira almeja casar para livrar-se das cobranças maternas; partilhar as <strong>de</strong>spesas;<br />

ter alguém para realizar tarefas atribuídas socialmente ao hom<strong>em</strong>, tais como: exterminar<br />

baratas; trocar pneus furados e lâmpadas; trancar a casa e apagar as luzes, <strong>de</strong>sligar o gás e<br />

71


<strong>em</strong>over o lixo; responsabilizar-se por gorjetas, que ela nunca sabe mensurar. Um marido lhe<br />

assegurará respeitabilida<strong>de</strong>, seja quando discute <strong>em</strong> seu lugar com o mecânico, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-a<br />

junto a seu chefe ou a acompanha <strong>em</strong> com<strong>em</strong>orações <strong>de</strong> ex-alunos do colégio. Um marido<br />

significa ainda abandonar uma assinatura que reprisa há trinta anos e, finalmente, po<strong>de</strong>r<br />

assinalar “casada” nos quadrinhos alusivos a estado civil. Em última instância, ter um marido<br />

significa experienciar o que assistiu na Playboy Ví<strong>de</strong>o.<br />

Já para a <strong>solteira</strong> que resi<strong>de</strong> com os pais, o casamento é almejado como única<br />

alternativa para sair <strong>de</strong> casa e libertar-se <strong>de</strong> cobranças relativas à sua solteirice, ora explícitas,<br />

ora sutis, tais como: indagações sobre quando preten<strong>de</strong> casar-se; alusões sobre os benefícios<br />

do casamento; o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> netos; relatos sobre a filha da vizinha que, <strong>em</strong>bora mais nova, vai<br />

se casar; a preocupação <strong>de</strong> morrer<strong>em</strong> e <strong>de</strong>ixá-la <strong>de</strong>sprotegida. Assim, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong><br />

que a estimulam a <strong>ser</strong> criteriosa na escolha, os pais <strong>de</strong>monstram o incômodo <strong>de</strong> tê-la residindo<br />

<strong>em</strong> casa.<br />

Por fim, as autoras conclu<strong>em</strong> que as <strong>solteira</strong>s, seja morando sozinhas ou com os pais,<br />

acalentam o sonho <strong>de</strong> casar-se, apenas ainda não encontraram o seu príncipe, misto <strong>de</strong><br />

protetor e companheiro com qu<strong>em</strong> dividam as <strong>de</strong>spesas e responsabilida<strong>de</strong>s, ou que as liberte<br />

do cárcere privado <strong>em</strong> que se transformou a casa paterna. Ob<strong>ser</strong>va-se, portanto, que ao<br />

contrário dos homens, às mulheres <strong>solteira</strong>s não resta alternativa senão <strong>de</strong>sfiar a espera,<br />

enquanto não são escolhidas por um hom<strong>em</strong> como esposas.<br />

No entanto, essa é uma lógica masculina, o que me leva a supor que, a <strong>de</strong>speito dos<br />

valores tradicionais internalizados pelas mulheres <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o processo <strong>de</strong> socialização, há<br />

aquelas que contrariam a tipologia construída pelos homens, ou seja, apesar das injunções<br />

sociais, não faz<strong>em</strong> do casamento sua meta principal ou mesmo optam por permanecer<br />

<strong>solteira</strong>s.<br />

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Estudos recentes divulgados pela Revista Veja <strong>de</strong>monstram que v<strong>em</strong> aumentando<br />

significativamente o número <strong>de</strong> mulheres <strong>solteira</strong>s no país, que têm a realização profissional<br />

como meta prioritária e cujos rendimentos as habilitam como consumidora <strong>em</strong> potencial. A<br />

reportag<strong>em</strong> apresenta ainda resultados <strong>de</strong> uma enquete realizada pela Datafolha, <strong>em</strong> set<strong>em</strong>bro<br />

<strong>de</strong> 1999, com uma amostra composta por 2.038 pessoas, cujos dados vale à pena citar:<br />

Descobriu que a maioria dos entrevistados consi<strong>de</strong>rava a família uma instituição<br />

importante, mas apenas 31% valorizavam o casamento. Para pre<strong>ser</strong>var a liberda<strong>de</strong>,<br />

evitar sofrimento ou por consi<strong>de</strong>rar já ter passado da ida<strong>de</strong>, 37% das mulheres<br />

<strong>solteira</strong>s, separadas ou viúvas afirmaram não ter intenção <strong>de</strong> casar. Entre os homens,<br />

o índice <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>s que pretendiam permanecer sozinhos era a meta<strong>de</strong> do<br />

f<strong>em</strong>inino[...] (SIMONETTI & RAMIRO, 2000, p. 125).<br />

Por sua vez, mediante entrevistas com homens <strong>solteiro</strong>s, a mesma revista Veja<br />

constatou que estes apresentam uma maior propensão a se apartar<strong>em</strong> dos “ciclos sociais tidos<br />

como saudáveis”, têm horários <strong>de</strong> sono irregulares, hábitos alimentares pouco salutares,<br />

fumam, trabalham <strong>em</strong> <strong>de</strong>masia, cultivam o se<strong>de</strong>ntarismo, consom<strong>em</strong> mais bebidas alcoólicas,<br />

e ex<strong>em</strong>plifica através <strong>de</strong> uns dos <strong>de</strong>poimentos: “Graças à minha mulher, larguei o cigarro,<br />

bebo raramente, só trabalho durante o dia, faço ioga e tirei <strong>de</strong> minha dieta todo tipo <strong>de</strong> carne”<br />

(SIMONETTI & RAMIRO, 2000, p. 129).<br />

Dados estatísticos elaborados pela <strong>de</strong>mógrafa Linda Waite, da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Chicago, <strong>de</strong>monstram que, caso mantivesse os mesmos hábitos até os 48 anos, as chances <strong>de</strong><br />

o entrevistado permanecer vivo equivaleriam a 60%, o casamento possibilitando-lhe aumentar<br />

a expectativa <strong>de</strong> vida para um percentual <strong>de</strong> 90%, o que leva à seguinte conclusão: “[...] Viva<br />

o casamento!” (SIMONETTI & RAMIRO, 2000).<br />

De fato, as revistas comerciais buscam, entre perguntas e respostas, <strong>de</strong>monstrar qu<strong>em</strong><br />

é mais feliz, o hom<strong>em</strong> <strong>solteiro</strong> ou casado. Segundo Serpa (2003), os <strong>solteiro</strong>s associam a idéia<br />

<strong>de</strong> casamento a aumento das responsabilida<strong>de</strong>s, perda da liberda<strong>de</strong>, renúncia à companhia <strong>de</strong><br />

amigos e programas que os agradam, mesmo que alguns casados se acostum<strong>em</strong> ou finjam que<br />

não são podados pela esposa. Mesmo diante <strong>de</strong> tantos aspectos negativos, preten<strong>de</strong>m<br />

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permanecer <strong>solteiro</strong>s apenas por mais uns anos, principalmente aqueles que não são “do tipo<br />

galinha, que arranja uma garota por noite” e prefer<strong>em</strong> “não ter <strong>de</strong> sair para caçar”. É preciso,<br />

entretanto, encontrar a “cara-meta<strong>de</strong>”, ou seja, uma mulher com qu<strong>em</strong> compartilhe os mesmos<br />

gostos e interesses, mas também que saiba ce<strong>de</strong>r quando necessário. Por essa razão, há<br />

<strong>solteiro</strong>s que consi<strong>de</strong>ram os casados mais felizes, porque constitu<strong>em</strong> uma família, têm uma<br />

esposa com qu<strong>em</strong> dividir os bons momentos, filhos para cuidar e proteger, daí <strong>ser</strong><strong>em</strong> mais<br />

<strong>de</strong>terminados e obter<strong>em</strong> mais conquistas, além <strong>de</strong> não sentir<strong>em</strong> solidão.<br />

Os casados, por sua vez, recorr<strong>em</strong> à experiência para invalidar os argumentos<br />

contrários apresentados pelos <strong>solteiro</strong>s: A vida se torna melhor ao lado da pessoa amada,<br />

porque se t<strong>em</strong> alguém com qu<strong>em</strong> conversar, compartilhar bons e maus momentos, tomar<br />

<strong>de</strong>cisões conjuntas, ouvir a voz ao telefone ou simplesmente saber que, ao chegar <strong>em</strong> casa, a<br />

solidão já não o espera. Para aqueles menos românticos, o casamento ganha um caráter<br />

utilitário-pragmático, a falta <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e cobrança da esposa quando sai para a “balada”<br />

com amigos são compensadas pelo fato <strong>de</strong> ter alguém com qu<strong>em</strong> divi<strong>de</strong> suas <strong>de</strong>spesas, que<br />

mantém suas roupas limpas e está s<strong>em</strong>pre disponível para o sexo. De uma forma ou <strong>de</strong> outra,<br />

a resposta é: “ESTOU FELIZ CASADO!”.<br />

Ao contrastar a solteirice e o casamento <strong>em</strong> seus aspectos positivos e negativos, a<br />

reportag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Serpa reafirma a importância do matrimônio, ainda que sob novas<br />

configurações, com mais sinergia, reciprocida<strong>de</strong>, companheirismo e s<strong>em</strong> a obrigatorieda<strong>de</strong> da<br />

eternização. Constata-se que, mesmo para os <strong>solteiro</strong>s reticentes, o casamento não é<br />

<strong>de</strong>scartado, adiam o quanto po<strong>de</strong>m, mas consi<strong>de</strong>ram-no inevitável. Tanto <strong>solteiro</strong>s quanto<br />

casados abraçam como principal mo<strong>de</strong>lo relacional a constituição <strong>de</strong> uma família, abrigo<br />

contra a solidão. Em outras palavras, a solteirice masculina <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> circunstancial,<br />

contingente, e t<strong>em</strong>porária, pois o casamento garante ao hom<strong>em</strong> ainda mais sucesso e<br />

conquistas, além <strong>de</strong> protegê-lo da solidão e hábitos nocivos à sua saú<strong>de</strong>, assegurando-lhe<br />

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inclusive sexo seguro. Diante <strong>de</strong> tantas vantagens, que hom<strong>em</strong> <strong>ser</strong>á capaz <strong>de</strong> virar as costas ao<br />

casamento? Contudo, vale <strong>de</strong>stacar, ele escolhe quando, com qu<strong>em</strong> e se realmente <strong>de</strong>seja<br />

casar, o que não ocorre com a mulher.<br />

Se o mercado i<strong>de</strong>ntifica o potencial consumidor da mulher <strong>solteira</strong>, na medida <strong>em</strong> que<br />

é responsável por 40% das aquisições <strong>de</strong> carros novos e meta<strong>de</strong> dos flats e lofts (SIMONETTI<br />

e RAMIRO, 2000), velhos hábitos são difíceis <strong>de</strong> <strong>ser</strong><strong>em</strong> rompidos. Em uma propaganda <strong>de</strong><br />

margarina, veiculada na televisão, renova-se o estereótipo da “encalhada”: – “Sou <strong>solteira</strong> por<br />

opção. – Por opção dos homens?” Paradoxalmente, o anúncio publicitário adverte a mulher <strong>de</strong><br />

que a vida <strong>de</strong> <strong>solteira</strong> não é uma <strong>de</strong>lícia.<br />

Da mesma forma, a propaganda televisiva <strong>de</strong> um automóvel <strong>de</strong> luxo difundida <strong>em</strong> re<strong>de</strong><br />

nacional, focaliza uma jov<strong>em</strong> colocando um jeans, enquanto a mãe espreita pela janela a<br />

chegada do seu namorado. Ao ver o carro do rapaz, a mãe orienta a filha a trocar <strong>de</strong> roupa e<br />

esta reaparece vestida <strong>de</strong> noiva. Na próxima cena, o “bom partido”, assustado, acelera o carro<br />

e <strong>de</strong>saparece. Assim, reifica-se a educação f<strong>em</strong>inina voltada para o casamento e o mo<strong>de</strong>lo<br />

arquetípico <strong>de</strong> provedor como candidato a marido. Também se reforça a diferença<br />

performática dos gêneros, quando o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> liberda<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>r no que tange a escolher ou<br />

rejeitar uma parceira para namorar e, ou casar e, a mulher permanece como aquela que tece<br />

artifícios para enredá-lo nas tramas do matrimônio. Afinal, <strong>em</strong>bora as campanhas publicitárias<br />

induzam novos comportamentos, estes ficam circunscritos ao consumo, s<strong>em</strong> preten<strong>de</strong>r<br />

contestar os valores sociais vigentes e, conseqüent<strong>em</strong>ente, os construtos heg<strong>em</strong>ônicos <strong>de</strong><br />

gênero são revalidados (ALMEIDA, 2002)<br />

O fato é que a solteirice t<strong>em</strong> sido alvo <strong>de</strong> um crescente número <strong>de</strong> reportagens que<br />

abordam os seguintes aspectos: comparam as vantagens e <strong>de</strong>svantagens entre a vida <strong>de</strong><br />

<strong>solteira</strong>s e casadas; suger<strong>em</strong> fórmulas para a mulher encontrar o “príncipe encantado” ou se<br />

manter feliz enquanto não o encontra; apresentam guias das cida<strong>de</strong>s mais promissoras para os<br />

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<strong>solteiro</strong>s viver<strong>em</strong> e aquelas on<strong>de</strong> há um maior número <strong>de</strong> pessoas <strong>solteira</strong>s ou então apontam<br />

o perfil das <strong>solteira</strong>s e <strong>solteiro</strong>s brasileiros. Ob<strong>ser</strong>va-se, entretanto, que essas reportagens são<br />

dirigidas quase s<strong>em</strong>pre à mulher, procuram orientá-la sobre estratégias e truques para<br />

sobreviver à solidão, enquanto não acha sua alma gêmea; o que fazer aon<strong>de</strong> ir e como se<br />

comportar para arranjar um namorado e, finalmente, alerta a mulher acima dos quarenta anos<br />

sobre as armadilhas e riscos que sua carência po<strong>de</strong> levá-la a enfrentar.<br />

A “Nova Solteira” do século XXI é livre, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte financeiramente, b<strong>em</strong>-sucedida<br />

na profissão, cultiva o seu lado intelectual e <strong>em</strong>ocional, busca crescimento interior. A<br />

“neoliberada”, <strong>em</strong>bora seja vaidosa, goste <strong>de</strong> perfumes, roupas <strong>de</strong> grife e cui<strong>de</strong> do corpo, não<br />

é fanática por aca<strong>de</strong>mias e clínicas <strong>de</strong> estética, freqüenta festas, boates e restaurantes, viaja<br />

bastante, namora, sai com amigos, é b<strong>em</strong>-resolvida e t<strong>em</strong> senso <strong>de</strong> humor. Talvez porque<br />

consuma livros <strong>de</strong> auto-ajuda, faça meditação ou ioga e não dispense a psicoterapia, leva a<br />

vida com mais leveza do que a f<strong>em</strong>inista dos anos 70, é mais afetuosa do que a mulher<br />

liberada dos anos 90 e não se sente frustrada quando está <strong>de</strong>sacompanhada, “prefere ficar<br />

sozinha a se envolver <strong>em</strong> uma relação pouco consistente” (GRANGEIA, 2002, p.56). Em<br />

suma, as mulheres entre 28 e 35 anos usufru<strong>em</strong> a vida <strong>de</strong> <strong>solteira</strong>s e são seletivas <strong>em</strong> suas<br />

escolhas amorosas. Conforme Zaidan e Chaves (2003, p. 201),<br />

[...] elas <strong>de</strong>cidiram não esperar mais pela única coisa que faltava na sua história: o<br />

gran<strong>de</strong> amor. Se o príncipe encantado aparecer, ótimo! Ele <strong>ser</strong>á muito b<strong>em</strong>-vindo.<br />

Porém, se <strong>de</strong>sviar seu cavalo branco para outros caminhos, elas não vão amargar<br />

uma rotina <strong>de</strong> titia.<br />

Conforme levantamento on line realizado pelo instituto QualiBest (ZAIDAN e<br />

CHAVES, 2003) entre leitoras <strong>de</strong> Cláudia, das 102 mulheres investigadas que nunca se<br />

casaram legalmente, apenas 7% estão se programando para formar uma família; 42%<br />

priorizam a realização profissional; 27% têm como meta inicial adquirir um patrimônio; e<br />

24% invest<strong>em</strong> no b<strong>em</strong>-estar físico e <strong>em</strong>ocional. No total, 31% afirmam que só terão filhos se<br />

surgir alguém especial e 18% não preten<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> mães.<br />

76


Ainda segundo a pesquisa, a <strong>solteira</strong> valoriza a amiza<strong>de</strong> e consi<strong>de</strong>ra mais gratificante<br />

contar com uma boa turma <strong>de</strong> amigos do que ter ao lado um parceiro chato ou oportunista. Do<br />

total <strong>de</strong> mulheres, 44% viajam para o exterior acompanhadas <strong>de</strong> amigos, 26% com familiares,<br />

18% com namorados e 12% sozinhas. Nos finais <strong>de</strong> s<strong>em</strong>ana, 56% se divert<strong>em</strong> sós e 24%<br />

ainda prefer<strong>em</strong> não sair <strong>de</strong>sacompanhadas. A pesquisa constata que a nova <strong>solteira</strong> se recusa<br />

tanto a <strong>ser</strong> caça quanto a <strong>ser</strong> caçadora: 74% não se sent<strong>em</strong> à vonta<strong>de</strong> para se relacionar<br />

sexualmente com alguém que acabaram <strong>de</strong> conhecer. Em 2002, 79% <strong>de</strong>ssas mulheres fizeram<br />

sexo com o mesmo hom<strong>em</strong> ou trocaram <strong>de</strong> parceiro, no mínimo, duas vezes.<br />

Ao contrário <strong>de</strong> Cláudia, a <strong>solteira</strong> <strong>de</strong> Veja (GRANGEIA, 2002) mantém<br />

relacionamentos <strong>de</strong>scompromissados e exercita o sexo casual com freqüência, s<strong>em</strong> os traumas<br />

e culpas <strong>de</strong> antigamente, <strong>em</strong>bora no dia seguinte pa<strong>de</strong>ça <strong>de</strong> uma certa ressaca moral, o que faz<br />

com que se canse <strong>de</strong> adotar um comportamento tido como masculino e busque envolvimento<br />

afetivo com seus parceiros, uma relação com mais qualida<strong>de</strong> e que contribua para o seu<br />

crescimento interior.<br />

A “nova <strong>solteira</strong>”, mais ativa, liberal e <strong>de</strong>sinibida, imprime ao ato sexual uma<br />

performance mais erótica, sensual e espera que o parceiro a conduza ao ápice do prazer. O<br />

hom<strong>em</strong>, por sua vez, sente-se inseguro quanto ao seu <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho sexual, t<strong>em</strong> receio <strong>de</strong> não<br />

conseguir levá-la ao orgasmo, <strong>de</strong> manifestar probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong> impotência ou ejaculação precoce.<br />

Afinal, o fato dos homens atualmente per<strong>de</strong>r<strong>em</strong> sua virginda<strong>de</strong> e se relacionar<strong>em</strong> sexualmente<br />

com amigas e, ou namoradas faz com que seja difícil ocultar do seu grupo social qualquer<br />

fracasso nessa área (DIEHL, 2002).<br />

Contudo, não se po<strong>de</strong> ignorar que as mulheres e homens reais n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre<br />

correspon<strong>de</strong>m à imag<strong>em</strong> construída pelas revistas, jornais e programas televisivos, pois apesar<br />

<strong>de</strong> apontar<strong>em</strong> novas tendências e comportamentos mo<strong>de</strong>lizadores, ignoram que hábitos e<br />

costumes são absorvidos diferent<strong>em</strong>ente por cada geração, gênero, grupo étnico, classe social<br />

77


e local on<strong>de</strong> moram as pessoas, ou seja, tais mudanças acontec<strong>em</strong> <strong>em</strong> um contexto específico,<br />

<strong>em</strong> um t<strong>em</strong>po, espaço e cultura que se entrelaçam e articulam subjetivida<strong>de</strong>s distintas, sob os<br />

acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> códigos e padrões variados, que oscilam entre liberda<strong>de</strong> e repressão, ora mais<br />

rígidos ora mais elásticos.<br />

As reportagens <strong>de</strong>stacam que t<strong>em</strong> crescido o número <strong>de</strong> mulheres <strong>solteira</strong>s por opção e<br />

que estas po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> felizes mesmo s<strong>em</strong> um par, mas ainda não são maioria. Na faixa dos 30<br />

anos, são assaltadas pela inquietu<strong>de</strong> passam a pensar <strong>em</strong> casamento, mesmo que prioriz<strong>em</strong> a<br />

carreira e não estejam propensas a <strong>ser</strong><strong>em</strong> mães, principalmente quando a maioria das amigas<br />

está casada ou <strong>em</strong> vias <strong>de</strong> se casar, o que lhes causa uma sensação <strong>de</strong> “incômodo social”, por<br />

<strong>ser</strong><strong>em</strong> diferentes das <strong>de</strong>mais (ZAIDAN e CHAVES, 2003).<br />

Segundo as revistas comerciais, <strong>solteira</strong>s e casadas têm inveja umas das outras. As<br />

casadas lamentam a falta <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> para paquerar<strong>em</strong>; não po<strong>de</strong>r<strong>em</strong> voltar para casa na hora<br />

que <strong>de</strong>sejam; têm que dar satisfação aos parceiros quando sent<strong>em</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viajar para<br />

algum lugar; não assistir<strong>em</strong> apenas a filmes que lhes interessam e <strong>ser</strong><strong>em</strong> forçadas a conviver<br />

com sogras e cunhadas, o que não acontece com as <strong>solteira</strong>s. Já as últimas se ressent<strong>em</strong> por<br />

saír<strong>em</strong> <strong>de</strong>sacompanhadas e dirigir<strong>em</strong> sozinhas na volta para casa; <strong>de</strong> não dormir<strong>em</strong> abraçadas<br />

com um parceiro n<strong>em</strong> fazer<strong>em</strong> sexo quando têm vonta<strong>de</strong>; da falta <strong>de</strong> companhia para viajar<strong>em</strong><br />

a lugares românticos; não ter<strong>em</strong> com qu<strong>em</strong> dividir as <strong>de</strong>spesas e não promover<strong>em</strong> uma festa<br />

natalina <strong>em</strong> sua casa para a família, o que é privilégio das casadas (GRANGEIA, op. cit.).<br />

Para aquelas <strong>solteira</strong>s cujo namoro acabou, o segredo é não <strong>de</strong>sanimar, refletir sobre os<br />

erros e acertos, pon<strong>de</strong>rar sobre o tipo masculino i<strong>de</strong>al e relacionamento que <strong>de</strong>seja e, então,<br />

seguir adiante, pois se “você sabe b<strong>em</strong> o que quer, fica mais fácil encontrar” (HOLLO, 2003,<br />

p. 116). Enquanto isso não acontece, <strong>de</strong>ve seguir passo a passo o “guia da <strong>solteira</strong> feliz”:<br />

iniciar um processo <strong>de</strong> reforma e reciclag<strong>em</strong>; cercar-se <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>s; fazer cursos e renovar o<br />

guarda-roupa; retomar projetos esquecidos ou adiados; conhecer lugares e pessoas diferentes;<br />

78


preencher o t<strong>em</strong>po com uma programação intensa, que a impeça <strong>de</strong> ficar <strong>de</strong>primida; estar<br />

alerta para o mundo; rever velhos amigos; visitar livrarias on<strong>de</strong> po<strong>de</strong> conhecer pessoas<br />

interessantes; entrar para uma nova turma e ir a locais on<strong>de</strong> se sinta b<strong>em</strong>. Dessa forma,<br />

recupera a auto-estima e bom humor, torna-se menos ansiosa, mais segura, feliz e,<br />

consequent<strong>em</strong>ente, está “pronta para o próximo príncipe encantado” 13 (HOLLO, 2003).<br />

Contudo, se não conseguiu fisgar o seu “príncipe”, Costas (2005) recomenda que<br />

programe uma viag<strong>em</strong> ou resida nas capitais mais acolhedoras para qu<strong>em</strong> está sozinha – é só<br />

<strong>de</strong>finir o perfil do <strong>solteiro</strong> 14 <strong>de</strong>sejado e arriscar: se você prefere um hom<strong>em</strong> boêmio, que goste<br />

<strong>de</strong> freqüentar bares e praticar esportes <strong>em</strong> equipe, o lugar i<strong>de</strong>al é Salvador, mas se você se<br />

interessa por homens que tocam instrumentos musicais, gostam <strong>de</strong> ler, cultivam o lado<br />

intelectual e falam mais <strong>de</strong> um idioma, o melhor lugar ainda é São Paulo. Se você gosta<br />

mesmo é <strong>de</strong> alguém aventureiro, que pratique esportes radicais, é melhor <strong>de</strong>slocar-se para<br />

Curitiba, mas se você prefere pessoas vaidosas, narcisistas, que <strong>de</strong>dicam seu t<strong>em</strong>po livre a<br />

comprar roupas e fazer tratamentos estético-corporais e rejuvenescedores, dirija-se a Belo<br />

Horizonte. Se seu tipo i<strong>de</strong>al é alguém que aprecia ficar <strong>em</strong> casa nas horas vagas, a cida<strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>al é Porto Alegre, on<strong>de</strong> as pessoas gostam <strong>de</strong> animais domésticos e são caseiras. Se, ao<br />

contrário, você <strong>de</strong>seja um hom<strong>em</strong> que saia frequent<strong>em</strong>ente para jantar e seja sócio <strong>de</strong> algum<br />

clube, esqueça Porto Alegre e parta para Fortaleza. Porém, se t<strong>em</strong> preferência por homens<br />

con<strong>ser</strong>vadores, cuja mulherzinha <strong>de</strong>ve ficar <strong>em</strong> casa cuidando do lar, você vai encontrá-lo <strong>em</strong><br />

Recife. Se não é esse o seu caso, siga adiante e vá ao Rio <strong>de</strong> Janeiro, on<strong>de</strong> os homens são<br />

consumistas, divert<strong>em</strong>-se <strong>em</strong> experimentar produtos e marcas recém lançadas ou, então, visite<br />

Brasília e certamente você vai conhecer alguém que adora tecnologia, costuma acessar a<br />

13 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Folloni e Anjos (2006) que recorr<strong>em</strong> ao psiquiatra Paulo Gaudêncio para analisar o dil<strong>em</strong>a<br />

<strong>de</strong> mulheres que se encontram <strong>solteira</strong>s aos trinta anos e aconselhá-las a como reverter<strong>em</strong> a situação e <strong>ser</strong><strong>em</strong><br />

felizes no amor.<br />

14 Embora a reportag<strong>em</strong> da Revista Veja (COSTAS, 2005) enfoque <strong>solteiro</strong>s, homens e mulheres, o quadro<br />

elaborado para ilustrar a tipologia <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>s <strong>em</strong> cada cida<strong>de</strong> apenas usa a imag<strong>em</strong> f<strong>em</strong>inina no caso do<br />

narciso, do caseiro e do consumista, o que reafirma os atributos <strong>de</strong> gênero <strong>de</strong>finidos como f<strong>em</strong>ininos, mas<br />

também sugere que a mulher é qu<strong>em</strong> se preocupa com a solteirice, e não o hom<strong>em</strong>.<br />

79


internet e freqüentar salas <strong>de</strong> bate-papo para fazer amigos. Se nenhum <strong>de</strong>sses perfis<br />

masculinos lhe agradou, então só resta uma opção: Baixe a bola 15 , pois quanto mais exigente,<br />

mais difícil encontrar um parceiro, principalmente se almeja alguém tão ou mais qualificado<br />

do que você (MOHERDAUI, 2006).<br />

As comunida<strong>de</strong>s do Orkut 16 também são uma das alternativas adotadas por mulheres e<br />

homens <strong>solteiro</strong>s para encontrar<strong>em</strong> parceiros, <strong>em</strong>bora haja uma maior recorrência entre<br />

pessoas mais jovens que se auto<strong>de</strong>fin<strong>em</strong> como “bonitas” 17 , “cobiçadas”, “românticas” ou<br />

“bala<strong>de</strong>iras” que não necessariamente buscam um compromisso <strong>de</strong>finitivo, pois afirmam que<br />

são <strong>solteira</strong>s, mas não “encalhadas”, nunca estão sozinhas, viv<strong>em</strong> a solteirice com “dignida<strong>de</strong>”<br />

e se consi<strong>de</strong>ram felizes, o que evi<strong>de</strong>ncia a preocupação <strong>em</strong> contrastar sua condição com<br />

aquela vivida por pessoas mais velhas, principalmente mulheres e, reafirma o estigma que<br />

persegue as “tias velhas <strong>solteiro</strong>nas” e “encalhadas” 18 .<br />

Visitei cerca <strong>de</strong> 1000 comunida<strong>de</strong>s e localizei apenas 15 cujos m<strong>em</strong>bros se encontram<br />

na faixa etária <strong>de</strong> 25 a acima <strong>de</strong> 45 anos. Os participantes masculinos são <strong>solteiro</strong>s 19 ,<br />

“enrolados”, viúvos, divorciados e até casados insatisfeitos, pois as comunida<strong>de</strong>s são criadas<br />

“tanto para aquele pessoal que gosta <strong>de</strong> estar <strong>solteiro</strong> quanto os que não agüentam mais essa<br />

vida”. No geral, são homens jovens “que estão s<strong>em</strong>pre à caça na balada, s<strong>em</strong>pre <strong>solteiro</strong>s, mas<br />

nunca sozinhos”, ou seja, livres e <strong>de</strong>scompromissados, buscam divertimento, aventura e<br />

conquistas. Para eles, o orkut se torna mostruário no qual po<strong>de</strong>m encontrar “uma turma<br />

15 Ver, também Savian (2006), para qu<strong>em</strong> a mulher <strong>de</strong>ve “<strong>de</strong>scer do salto”, pois <strong>em</strong>bora haja um gran<strong>de</strong> número<br />

<strong>de</strong> mulheres bonitas, sensíveis e b<strong>em</strong>-sucedidas financeira e profissionalmente, o mesmo não acontece com o<br />

hom<strong>em</strong>. Daí porque o autor recomenda: “Encontre um hom<strong>em</strong> limitado e prontifique-se a ajudá-lo <strong>em</strong> seu<br />

crescimento”. Disponível <strong>em</strong>: <br />

16 O Orkut é uma re<strong>de</strong> social filiada ao Google, <strong>em</strong>presa <strong>de</strong> site <strong>de</strong> busca da Internet, cuja versão brasileira foi<br />

criada <strong>em</strong> 2005, com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> auxiliar seus clientes a estabelecer<strong>em</strong> novas amiza<strong>de</strong>s e pre<strong>ser</strong>var<strong>em</strong><br />

relacionamentos, através <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s que operam como fóruns <strong>de</strong> interesses.<br />

17 As palavras e frases aspeadas foram extraídas do perfil das comunida<strong>de</strong>s ou opiniões <strong>em</strong>itidas <strong>em</strong> fóruns.<br />

18 Encontramos comunida<strong>de</strong>s com esses nomes, cujos m<strong>em</strong>bros são pessoas jovens, entre 18 e 25 anos.<br />

19 Uma das comunida<strong>de</strong>s apresenta a seguinte tipologia dos <strong>solteiro</strong>s: Solteiro (a) (por pouco t<strong>em</strong>po); Recém<br />

<strong>solteiro</strong> (a); enfim, só!; <strong>solteiro</strong> (a) feliz; <strong>solteiro</strong> (a) <strong>em</strong> crise; <strong>solteiro</strong> (a) <strong>de</strong>smantelado (a); <strong>solteiro</strong> (a) com<br />

namorada (o) fixa (o) e <strong>solteiro</strong> mico-leão dourado que pula <strong>de</strong> galho <strong>em</strong> galho e está <strong>em</strong> extinção, único tipo<br />

<strong>em</strong> que a mulher não está in<strong>ser</strong>ida.<br />

80


animada”, mas principalmente selecionar as mulheres mais bonitas e, se alguns afirmam<br />

procurar sua “alma gêmea” 20 , há aqueles que afirmam <strong>de</strong> forma sutil ou taxativa que têm<br />

interesse apenas <strong>em</strong> “sexo”.<br />

Por ex<strong>em</strong>plo, vale <strong>de</strong>stacar uma comunida<strong>de</strong> <strong>em</strong> que homens “altos e com mais <strong>de</strong> 30<br />

anos” se oferec<strong>em</strong> para “dar uma ajudazinha a qu<strong>em</strong> precisa”, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que as mulheres tenham<br />

altura superior a 1,75 m. De forma geral, marcam-se encontros, programam-se festas e<br />

passeios, revê<strong>em</strong>-se amigos e conquistam-se outros, mas, principalmente, po<strong>de</strong>-se “ficar e<br />

beijar muito”, pois “ninguém é <strong>de</strong> ninguém e todo mundo é <strong>de</strong> todo mundo”, com uma<br />

vantag<strong>em</strong>, se a (o) parceira (o) não agradar, é só ignorar suas mensagens ou participar <strong>de</strong><br />

outra comunida<strong>de</strong>.<br />

Mulheres jovens e maduras <strong>de</strong>sejam encontrar sua “alma gêmea”, “alguém especial”,<br />

“romântico”, “cavalheiro”, “carinhoso”, “amigo”, “confi<strong>de</strong>nte”, “divertido” e “inteligente”,<br />

que as respeite e “não se sinta ameaçado por uma companheira que está à sua altura”. Para as<br />

mulheres mais jovens, a solteirice é vista como um rito <strong>de</strong> passag<strong>em</strong>, pois <strong>de</strong>sfrutam da<br />

liberda<strong>de</strong> e in<strong>de</strong>pendência e, se o parceiro não as satisfaz, prefer<strong>em</strong> ficar sós, saír<strong>em</strong> com<br />

amigas e se divertir<strong>em</strong>, até porque, como a ida<strong>de</strong> não é um peso para elas, consi<strong>de</strong>ram a<br />

solteirice t<strong>em</strong>porária. A parir dos 35 anos, as mulheres já não se contentam com<br />

relacionamentos episódicos, s<strong>em</strong> envolvimento, “os ficantes” são <strong>de</strong>scartados, pois almejam<br />

“mais conteúdo, entrega, intensida<strong>de</strong>”, mas lamentam a solidão e, ao contrário das mulheres<br />

mais jovens, expressam o medo <strong>de</strong> tê-la como “eterna companheira”. Em resumo, elas<br />

buscam o príncipe, enquanto eles lhe oferec<strong>em</strong> amor <strong>em</strong> formato mínimo e persegu<strong>em</strong> a<br />

próxima, tal qual na letra da canção do Skank.<br />

O certo é que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1990, t<strong>em</strong> aumentado o número <strong>de</strong> pessoas que<br />

moram sozinhas e, segundo levantamento realizado pelo Instituto Ipsos, <strong>de</strong> São Paulo, com<br />

20 A busca por “alguém especial” para namorar ou casar é mais explicitada <strong>em</strong> comunida<strong>de</strong>s cujos m<strong>em</strong>bros são<br />

evangélicos, mórmons, espíritas, quadrangulares entre outros grupos religiosos.<br />

81


<strong>solteiro</strong>s e casados, na faixa etária entre 18 e 40 anos, homens e mulheres <strong>solteiro</strong>s apresentam<br />

o seguinte perfil: 35% <strong>de</strong>les se <strong>de</strong>claram motivados pela aventura e perigo, ao contrário <strong>de</strong><br />

23% dos casados. Os <strong>solteiro</strong>s priorizam o sucesso financeiro e profissional, o que os faz adiar<br />

uma vida <strong>em</strong> comum com outra pessoa. Diferent<strong>em</strong>ente dos casados, aqueles que viv<strong>em</strong> só<br />

têm mais disponibilida<strong>de</strong> para ler, viajar e conectar-se à Internet, mas também costumam ir<br />

mais frequent<strong>em</strong>ente a restaurantes, teatros, bares e cin<strong>em</strong>as, ou seja, as amiza<strong>de</strong>s e ativida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> cultura e lazer aumentam o nível <strong>de</strong> satisfação pessoal dos <strong>solteiro</strong>s (COSTAS, 2005).<br />

Por outro lado, Souza (2006) ob<strong>ser</strong>va que, na socieda<strong>de</strong> atual, t<strong>em</strong> crescido o número<br />

<strong>de</strong> mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s, na faixa etária entre 35 e 45 anos, que continuam morando<br />

com os pais, porque não possu<strong>em</strong> condições financeiras para viver<strong>em</strong> sozinhos ou manter<strong>em</strong><br />

o mesmo padrão <strong>de</strong> vida e conforto, mas também porque essa permanência dos chamados<br />

“parasitas” ou “cangurus” 21 propicia economia financeira e afetiva. A autora <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a<br />

permanência ou retorno à casa dos pais po<strong>de</strong> reduzir a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> autonomia dos grupos<br />

mais jovens <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> 30 até 45 anos.<br />

Com efeito, Andréa Ramal, entrevistada pela Revista Época (MENDONÇA, 2004),<br />

consi<strong>de</strong>ra que a liberda<strong>de</strong> usufruída na casa dos pais faz com que mulheres e homens<br />

prioriz<strong>em</strong> os estudos através <strong>de</strong> pós-graduações e a expansão profissional, adiando<br />

compromissos mais <strong>de</strong>finitivos como o casamento, o que segundo a educadora tanto po<strong>de</strong><br />

torná-los mais individualistas quanto contribuir para que estejam mais maduros quando<br />

<strong>de</strong>cidir<strong>em</strong> se unir a alguém. Já Tânia Zagury alerta para o riso <strong>de</strong>sses homens e mulheres se<br />

prevalecer<strong>em</strong> da permanência na casa dos pais para não se fixar<strong>em</strong> <strong>em</strong> uma ativida<strong>de</strong>, agir<strong>em</strong><br />

como adolescentes e não levar<strong>em</strong> nada a sério (MENDONÇA, 2004).<br />

21 Conforme Souza (2006), o termo “canguru” carrega uma negativida<strong>de</strong> simbólica quando comparado ao<br />

significado da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> kindult, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> menosprezar a autonomia e in<strong>de</strong>pendência financeira <strong>de</strong>sta. A<br />

autora ressalta que a expressão kindult é utilizada nos Estados Unidos para nomear o entrelaçamento entre o<br />

movimento <strong>de</strong> infantilização e a juvenilização das ida<strong>de</strong>s.<br />

82


Souza (2006) argumenta ainda que as <strong>solteira</strong>s Yuppies XXI têm engendrado padrões<br />

estéticos <strong>de</strong> experiências auto-construtivas que as distanciam das “<strong>solteiro</strong>nas” <strong>de</strong> vinte anos<br />

atrás, ou seja, seus relatos apontam para uma nova dinâmica afetiva, exercitada por meio <strong>de</strong><br />

uma seqüência <strong>de</strong> relacionamentos <strong>de</strong>scompromissados e efêmeros – “monogamia <strong>ser</strong>ial”.<br />

Embora as mulheres já não sejam rotuladas como balzaquianas aos 30 anos;<br />

encalhadas aos 35 e irr<strong>em</strong>ediáveis e tristes <strong>solteiro</strong>nas aos 40 anos, isso não significa que suas<br />

chances <strong>de</strong> encontrar um marido tenham aumentado. Segundo a revista Veja (MOHERDAUI,<br />

2006), quanto mais as mulheres protelam a programação materno-familiar, o casamento, mais<br />

difícil concretizar uma vida a dois, ou seja, t<strong>em</strong> mais mulheres <strong>solteira</strong>s atualmente do que há<br />

<strong>de</strong>z anos. Estudiosos da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Norte, ao cruzar<strong>em</strong> os<br />

últimos dados censitários do IBGE com informações do registro civil, a pedido <strong>de</strong> Veja,<br />

chegaram ao seguinte resultado: “aos 30, elas têm 27,6% <strong>de</strong> chance <strong>de</strong> encontrar um marido.<br />

Parece pouco? Pois aos 35, a chance cai quase 10 pontos, e aos 40 <strong>de</strong>spenca para meros<br />

13,7%. Aos 45, a <strong>solteira</strong> t<strong>em</strong> apenas 10,1% <strong>de</strong> probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comparecer perante um juiz<br />

<strong>de</strong> paz” (MOHERDAUI, 2006, p. 86).<br />

Continuando, Veja <strong>de</strong>staca que as chances <strong>de</strong> mulheres executivas, com diploma<br />

universitário, ten<strong>de</strong>m a <strong>ser</strong> ainda menores 22 . De acordo com o economista Marcelo Néri, da<br />

Fundação Getúlio Vargas, a renda <strong>de</strong> mulheres sozinhas é 62% superior à <strong>de</strong> mulheres<br />

acompanhadas. Quanto maior a sua renda, maior a probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> solidão; quanto mais<br />

elevada a ida<strong>de</strong>, aumenta o número <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong>sacompanhadas e, se morar<strong>em</strong> <strong>em</strong> centros<br />

urbano, as chances <strong>de</strong> permanecer<strong>em</strong> sozinhas são maiores do que <strong>em</strong> cida<strong>de</strong>s pequenas ou<br />

nas zonas rurais. Por essa razão, Néri aconselha: “se você é executiva, é <strong>solteira</strong>, passou dos<br />

45 e vive na capital, prepare-se para tirar o máximo proveito da vida a um” (MOHERDAUI,<br />

2006, p. 87).<br />

22 Ver, também, Mageste (2003), que busca enten<strong>de</strong>r as razões pelas quais as mulheres b<strong>em</strong>-sucedidas e<br />

interessantes não consegu<strong>em</strong> encontrar um parceiro para viver<strong>em</strong>.<br />

83


Néri acredita que a entrada maciça da mulher no mercado <strong>de</strong> trabalho, há 30 anos,<br />

provocou uma revolução, na medida <strong>em</strong> que lhe permitiu fazer suas próprias escolhas. No seu<br />

estudo, intitulado “Sexo, casamento e economia”, argumenta que, das variáveis <strong>de</strong>mográficas,<br />

o matrimônio concentra maior influência das variáveis econômicas. Unir-se ou não a alguém<br />

é muito mais uma questão <strong>de</strong> opção, do que fisiológica, como a fecundida<strong>de</strong> ou a mortalida<strong>de</strong>.<br />

No entanto, o direito <strong>de</strong> escolha produz um efeito perverso entre as mulheres, quanto mais<br />

qualificadas, b<strong>em</strong>-sucedidas profissionalmente, instruídas e com mais ida<strong>de</strong>, maiores as<br />

chances <strong>de</strong> continuar<strong>em</strong> sozinhas (ALMEIDA e OLIVEIRA, 2005).<br />

Para o antropólogo Roberto DaMatta, isso se <strong>de</strong>ve ao fato dos homens t<strong>em</strong>er<strong>em</strong><br />

mulheres com sucesso profissional, pois eles precisam exercer controle físico, mental e<br />

intelectual para se sentir<strong>em</strong> seguros. Além disso, mulheres in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes são questionadoras,<br />

o que gera crises no relacionamento e põe fim aos casamentos. Por outro lado, as mulheres<br />

também se sent<strong>em</strong> atraídas por homens com prestígio e algum tipo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, seja físico,<br />

financeiro ou social. Finalmente, não só o sucesso torna-se um estigma que acompanha a<br />

pessoa e atrapalha as relações quanto todos os que são b<strong>em</strong>-sucedidos <strong>de</strong>dicam-se a pre<strong>ser</strong>var<br />

a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> sucesso, o que traz a solidão, pois afasta <strong>de</strong>terminados tipos <strong>de</strong> parceiros e limita<br />

o mercado matrimonial (ALMEIDA e OLIVEIRA, 2005).<br />

Na mesma linha <strong>de</strong> pensamento, o professor <strong>de</strong> relacionamento amoroso do Instituto<br />

<strong>de</strong> Psicologia da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo e autor do livro “O Mapa do Amor”, Ailton<br />

Amélio da Silva (MOHERDAUI, 2006) compara o critério seletivo da qualificação a uma<br />

pirâmi<strong>de</strong>, pois quanto mais se almeja um parceiro qualificado e b<strong>em</strong> r<strong>em</strong>unerado, mais<br />

escassas as chances <strong>de</strong> encontrá-lo.<br />

Ob<strong>ser</strong>va-se que a mulher fica sozinha porque procurou e não encontrou o tão sonhado<br />

parceiro ou porque <strong>em</strong>penhada <strong>em</strong> se realizar profissionalmente, quando se <strong>de</strong>u conta já era<br />

tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais, a ida<strong>de</strong> a expulsou do mercado matrimonial. Na maioria dos casos, portanto, a<br />

84


solteirice f<strong>em</strong>inina não é consi<strong>de</strong>rada uma opção, a mulher apenas adia o casamento até<br />

conseguir in<strong>de</strong>pendência financeira e profissional. Ocorre que, quando finalmente se aventura<br />

no mercado amoroso, <strong>de</strong>para-se com o seguinte dil<strong>em</strong>a: “O hom<strong>em</strong> mais disponível é casado.<br />

O mais interessado é jov<strong>em</strong> <strong>de</strong>mais. E os mais difíceis são os da mesma faixa etária, que só<br />

quer<strong>em</strong> sair com meninas novinhas”, conforme pon<strong>de</strong>ra a advogada Eunice Feigel, <strong>de</strong> 53 anos<br />

(MOHERDAUI, 2006, p. 90).<br />

Paralela à situação acima, a mulher que “se distraiu” e ficou s<strong>em</strong> casar ainda é alvo do<br />

“preconceito nacional contra a <strong>solteira</strong> madura”, queixa-se a atriz Ângela Britto, <strong>de</strong> 38 anos:<br />

“Quando sou apresentada a alguém e digo que nunca me casei, as pessoas começam a<br />

procurar o que eu tenho <strong>de</strong> errado” (MOHERDAUI, 2006). Há ainda as <strong>solteira</strong>s convictas,<br />

como Maria Elisia Marine, <strong>de</strong> 45 anos, consultora <strong>de</strong> recursos humanos, para qu<strong>em</strong><br />

envelhecer sozinha não se configura como um dos aspectos negativos da solteirice f<strong>em</strong>inina,<br />

<strong>de</strong> difícil aceitação, ao contrário do que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Moherdaui e explica: “Depois que aprendi a<br />

viver sozinha, é difícil tolerar os hábitos dos outros” (2006, p. 92) e, por isso, não <strong>de</strong>seja casar<br />

n<strong>em</strong> ter filhos, consi<strong>de</strong>ra sua vida plenamente satisfatória, <strong>em</strong>bora tenha momentos <strong>de</strong><br />

solidão, tristeza e questionamentos, tal e qual suas amigas casadas.<br />

Percebe-se que a solteirice <strong>de</strong> homens e mulheres é <strong>de</strong>senhada diferent<strong>em</strong>ente, mesmo<br />

que ambos sejam <strong>de</strong>stinados socialmente ao casamento e, essa diferença não se resume apenas<br />

aos dados estatísticos, ou seja, o avanço da ida<strong>de</strong> exclui a mulher do mercado amoroso e,<br />

re<strong>ser</strong>va para ela a solidão, o que não acontece com o hom<strong>em</strong>. Certamente, as mulheres têm<br />

outros projetos <strong>de</strong> vida e fonte <strong>de</strong> realização além do matrimônio, mas tudo indica que estes<br />

ainda são percebidos pela socieda<strong>de</strong> como mecanismos <strong>de</strong> compensação, caso elas fiqu<strong>em</strong><br />

fora do mercado matrimonial.<br />

Vale l<strong>em</strong>brar que o imaginário social é povoado por noções que pressagiam o <strong>de</strong>stino<br />

das mulheres in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e b<strong>em</strong>-sucedidas: elas assustam os homens e, por essa razão,<br />

85


dificilmente <strong>ser</strong>ão escolhidas, a não <strong>ser</strong> que diminuam suas expectativas. Em outras palavras,<br />

a mulher po<strong>de</strong> adiar, mas o casamento e formação <strong>de</strong> uma família permanec<strong>em</strong> como seu<br />

<strong>de</strong>stino natural, que se encontra nas mãos dos homens, pois enquanto ela po<strong>de</strong> ou não <strong>ser</strong><br />

escolhida, a eles cabe escolher a parceira i<strong>de</strong>al.<br />

Po<strong>de</strong>-se argumentar que o hom<strong>em</strong> também t<strong>em</strong> como <strong>de</strong>stino o casamento, mas adia<br />

este <strong>de</strong>stino in<strong>de</strong>finidamente, pois a ida<strong>de</strong> para ele não é impeditivo, sequer um peso, isto é, a<br />

socieda<strong>de</strong> é con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte, tolerante com o hom<strong>em</strong>, enquanto para a mulher o não-<br />

casamento permanece como falha, erro, <strong>de</strong>svio que é punido com a solidão no final da vida,<br />

daí porque estas são orientadas a perseguir<strong>em</strong> “príncipes e sapos” com tenacida<strong>de</strong>, fazendo<br />

uso <strong>de</strong> manhas e artimanhas ensinadas <strong>em</strong> livros <strong>de</strong> auto-ajuda e revistas comerciais.<br />

Gonçalves (2007), ao estudar as “mulheres sós” do Brasil cont<strong>em</strong>porâneo, refuta as<br />

interpretações <strong>de</strong>mográficas <strong>de</strong> autores como, por ex<strong>em</strong>plo, Berquó (1986), para qu<strong>em</strong> as<br />

mulheres <strong>solteira</strong>s, após os 30 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, estão fadadas à solidão e, argumenta que tais<br />

interpretações são construídas culturalmente e ganham uma pretensa veracida<strong>de</strong> a partir do<br />

<strong>de</strong>sequilíbrio entre ida<strong>de</strong> e sexo no mercado matrimonial. A autora também questiona a<br />

ambigüida<strong>de</strong> presente nas reportagens veiculadas na mídia, quando contrasta as “<strong>solteiro</strong>nas”<br />

do passado com as “novas <strong>solteira</strong>s”, mulheres in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e b<strong>em</strong>-sucedidas, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que ressaltam o seu ressentimento pela ausência <strong>de</strong> um relacionamento afetivo<br />

estável. Ou seja, <strong>de</strong> forma subliminar, as reportagens reforçam a idéia <strong>de</strong> que a mulher <strong>solteira</strong><br />

está <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> um par amoroso e, tanto o investimento na carreira profissional como o<br />

consumo <strong>em</strong> shoppings centers atuam como atenuantes para a solidão.<br />

A autora, ao investigar 12 mulheres <strong>de</strong> classe média, na faixa etária <strong>de</strong> 29 a 53 anos<br />

que não possu<strong>em</strong> filhos e resi<strong>de</strong>m sozinhas há mais <strong>de</strong> dois anos na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Goiânia,<br />

constata que o investimento nos estudos e carreira profissional assegura in<strong>de</strong>pendência<br />

financeira, o que lhes confere autonomia para reger<strong>em</strong> seu <strong>de</strong>stino, tomam suas próprias<br />

86


<strong>de</strong>cisões s<strong>em</strong> dar satisfações a qu<strong>em</strong> quer que seja, daí porque o casamento é consi<strong>de</strong>rado<br />

secundário <strong>em</strong> suas vidas. Mesmo porque o fato <strong>de</strong> escolher<strong>em</strong> morar sozinhas não consiste<br />

<strong>em</strong> <strong>em</strong>pecilho para ter<strong>em</strong> uma vida sexual e afetiva, assim como exercer<strong>em</strong> a maternida<strong>de</strong>,<br />

caso <strong>de</strong>sej<strong>em</strong>. Em suma, Gonçalves conclui que as mulheres <strong>solteira</strong>s não são insatisfeitas,<br />

n<strong>em</strong> tampouco solitárias.<br />

Não se po<strong>de</strong> ignorar, entretanto, que “solteirões” e “<strong>solteiro</strong>nas” têm sua trajetória<br />

traçada por contingências, <strong>de</strong>sencontros e distrações engendradas por suas próprias escolhas<br />

<strong>de</strong> vida, mas s<strong>em</strong> dúvida influenciadas pelo gênero, geração, classe social e grupo étnico a<br />

que pertenc<strong>em</strong>, b<strong>em</strong> como a região on<strong>de</strong> moram. Entendo que para analisar as percepções e<br />

práticas sociais <strong>de</strong> <strong>solteira</strong>s e <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>s na socieda<strong>de</strong> brasileira cont<strong>em</strong>porânea,<br />

particularmente <strong>em</strong> Aracaju-SE e Salvador-BA, é necessário atentar para a diversida<strong>de</strong><br />

cultural, mas também rastrear mudanças e permanências no que se refere a códigos, sist<strong>em</strong>as<br />

simbólicos, representações, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e valores apropriados por mulheres e homens, que os<br />

reelaboram <strong>de</strong> acordo com suas experiências <strong>de</strong> vida, gênero, classe, raça/etnia, ida<strong>de</strong>/geração<br />

e espaço social <strong>em</strong> que se encontram in<strong>ser</strong>idos.<br />

Neste ponto, a experiência ganha relevo na feitura <strong>de</strong>ste trabalho. A intenção do<br />

próximo tópico é explorá-la como base teórico-conceitual para probl<strong>em</strong>atização do meu<br />

objeto <strong>de</strong> estudo, realçando não só o caráter conceitual, mas também os <strong>de</strong>safios a <strong>ser</strong><strong>em</strong><br />

enfrentados no seu uso e aplicabilida<strong>de</strong> como instrumento para leitura das manifestações<br />

concretas da solteirice.<br />

2. 2 SITUANDO A EXPERIÊNCIA COMO CATEGORIA ANALÍTICA<br />

A “experiência” v<strong>em</strong> sendo adotada como categoria <strong>de</strong> análise <strong>em</strong> estudos teóricos que<br />

buscam refletir sobre as práticas sociais e políticas <strong>de</strong> grupos sociais, <strong>de</strong> homens e <strong>de</strong><br />

mulheres. No entanto, o termo “experiência” não só é concebido como também usado <strong>de</strong><br />

87


forma diversa, fazendo-se necessária uma aproximação conceitual com alguns dos autores que<br />

a tomam como fundamento, com vistas a nuançarmos a pertinência do recurso à “experiência”<br />

para <strong>de</strong>svelar a diferencialida<strong>de</strong> da trajetória f<strong>em</strong>inina e masculina no campo da solteirice.<br />

Scott (1999), ao resgatar a historicida<strong>de</strong> da “experiência”, reporta-se a Raymond<br />

Williams, que <strong>em</strong> Keywords sumarizou alguns dos sentidos atribuídos ao termo “experiência”,<br />

que vale à pena registrar: Até o começo do século XVIII, havia uma clara associação entre<br />

experiência e experimento, tidos como forma <strong>de</strong> obtenção do conhecimento, mediante teste e<br />

ob<strong>ser</strong>vação. No século XVIII, ainda se pre<strong>ser</strong>vava a vocação <strong>de</strong> experiência adquirida através<br />

da ob<strong>ser</strong>vação <strong>de</strong> eventos e lições do passado, ainda que acrescida a um tipo peculiar <strong>de</strong><br />

consciência. Essa consciência, no século XX, é dotada <strong>de</strong> um caráter ativo e envolve<br />

pensamento e <strong>em</strong>oção, o que levará a experiência a <strong>ser</strong> consi<strong>de</strong>rada uma test<strong>em</strong>unha subjetiva,<br />

que fundamenta o processo <strong>de</strong> racionalização e análise, possibilitando uma maior<br />

aproximação da verda<strong>de</strong>. Ainda no século XX, outra noção <strong>de</strong> experiência irá cont<strong>em</strong>plar as<br />

influências externas sofridas pelos indivíduos, isto é, as condições sociais, instituições,<br />

crenças e percepções que o cercam, ignorando seus pensamentos ou reflexões.<br />

Conforme <strong>de</strong>staca Scott (1999), os conceitos apresentados por Williams, quer dê<strong>em</strong><br />

ênfase às influências internas, à objetivida<strong>de</strong> ou subjetivida<strong>de</strong>, passam ao largo dos processos<br />

<strong>de</strong> construção da experiência, isto é, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ram como os sujeitos e suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s são<br />

elaboradas, na medida <strong>em</strong> que o conhecimento t<strong>em</strong> início nos próprios indivíduos, além <strong>de</strong><br />

imprimir uma essencialida<strong>de</strong> a categorias como hom<strong>em</strong>, mulher, preto, branco, heterossexual<br />

ou homossexual, ao consi<strong>de</strong>rá-las características inatas. Dessa forma, inviabilizam o estudo<br />

dos processos constitutivos da subjetivida<strong>de</strong>; impe<strong>de</strong>m a investigação da interface entre<br />

discurso, organização e realida<strong>de</strong>; <strong>de</strong>sconhec<strong>em</strong> a interferência do posicionamento daqueles<br />

que produz<strong>em</strong> conhecimento e como as diferenças posicionais se reflet<strong>em</strong> na construção <strong>de</strong>sse<br />

conhecimento.<br />

88


Já Thompson (1981), ao esquadrinhar o pensamento althus<strong>ser</strong>iano, ob<strong>ser</strong>va que, ao<br />

ignorar a categoria “experiência”, o autor nega a “influência do <strong>ser</strong> social sobre a consciência<br />

social” (p. 12), o que se mostra equivocado, pois a experiência não é dada, mas <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong><br />

racionalização, reflexão dos indivíduos sobre acontecimentos relativos a eles e ao mundo. O<br />

<strong>ser</strong> social sofre mudanças que gestam novas experiências, e estas experiências, por sua vez,<br />

pressionam a consciência coletiva, propondo novas probl<strong>em</strong>áticas e <strong>de</strong>molindo antigos<br />

sist<strong>em</strong>as conceituais, ou seja, o <strong>ser</strong> social e a consciência social estabelec<strong>em</strong> um diálogo, <strong>em</strong><br />

que se influenciam mutuamente. Por essa razão, Thompsom concebe a experiência como:<br />

[...] uma categoria que, por mais imperfeita que seja, é indispensável ao historiador,<br />

já que compreen<strong>de</strong> a resposta mental e <strong>em</strong>ocional, seja <strong>de</strong> um indivíduo ou grupo<br />

social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetições do mesmo<br />

tipo <strong>de</strong> acontecimento (p.15).<br />

O autor <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que os valores são assimilados através da experiência vivida, cujo<br />

alicerce é o sentimento, uma vez que as normas, regras e expectativas sociais ou sexuais são<br />

aprendidas, <strong>em</strong> primeira instância, na família, no trabalho e no círculo <strong>de</strong> convivialida<strong>de</strong> mais<br />

próximo. Isso não significa dizer que os indivíduos aquiet<strong>em</strong>-se diante dos valores<br />

dominantes, há constantes conflitos e escolhas <strong>de</strong> valor, pois o pensamento é também vivido.<br />

Nas palavras <strong>de</strong> Thompsom:<br />

Isso equivale a dizer que essas pessoas são tão <strong>de</strong>terminadas (e não mais <strong>em</strong> seus<br />

valores quanto o são <strong>em</strong> suas idéias e ações, são tão ‘sujeitos’ (e não mais <strong>de</strong> sua<br />

própria consciência afetiva e moral quanto <strong>de</strong> sua história geral (1981, p.194).<br />

A <strong>de</strong>speito da mobilida<strong>de</strong> atribuída à “experiência”, Thompsom (1987) se <strong>de</strong>tém,<br />

particularmente, na experiência <strong>de</strong> classe e, ao consi<strong>de</strong>rar como seu nascedouro as relações<br />

sociais, finda por homogeneizá-la, quando in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da dimensão espaço-t<strong>em</strong>poral, a<br />

aquisição <strong>de</strong> uma consciência <strong>de</strong> classe exerce uma função integradora, no que se refere a<br />

reações e experiências comuns aos trabalhadores.<br />

Por sua vez, Bourdieu (2001) conceitua as classes como um conjunto <strong>de</strong> agentes que<br />

ocupam posições análogas e que, levados por circunstâncias e condicionamentos s<strong>em</strong>elhantes,<br />

89


têm, no geral, atitu<strong>de</strong>s e interesses parecidos, logo, práticas e posicionamentos idênticos 23 .<br />

Isso não significa, entretanto, que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> classe consiga neutralizar a dimensão<br />

espaço-t<strong>em</strong>poral.<br />

De fato, o autor enten<strong>de</strong> que os objetos do mundo social encontram-se submetidos à<br />

t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> e, por isso mesmo, comportam o in<strong>de</strong>terminado, incerto. Daí há visões <strong>de</strong><br />

mundo plurais, que buscam tanto ajustar o passado ao presente quanto projetar o futuro, mas a<br />

experiência do mundo social transcen<strong>de</strong> a representação e expressão verbal, ela é construída<br />

por um inconsciente <strong>de</strong> classe que <strong>de</strong>fine a posição ocupada no espaço social. Nesse sentido,<br />

argumenta que:<br />

As categorias <strong>de</strong> percepção do mundo social são, no essencial, produto da<br />

incorporação das estruturas do espaço social. Em conseqüência, levam os agentes a<br />

tomar<strong>em</strong> o mundo social tal como ele é, a aceitar<strong>em</strong>-no como natural, mais do que a<br />

rebelar<strong>em</strong>-se contra ele, a opor<strong>em</strong>-lhe possíveis diferentes, e até mesmo<br />

antagonistas: o sentido da posição como sentido daquilo que se po<strong>de</strong> ou se não po<strong>de</strong><br />

‘permitir-se a si mesmo’ implica uma aceitação tácita da posição, um sentido dos<br />

limites (‘isso não é para nós’) ou, o que é a mesma coisa, um sentido das distâncias,<br />

a marcar e a sustentar, a respeitar e a fazer respeitar [...] (2001, p. 141).<br />

Em outras palavras, a posição ocupada no espaço social ganha sentido através da<br />

incorporação <strong>de</strong> suas estruturas objetivas. Tal apropriação traça uma linha <strong>de</strong>marcatória <strong>de</strong><br />

limites e possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> social, proximida<strong>de</strong>s e distâncias entre as classes. O<br />

sist<strong>em</strong>a simbólico instaura uma lógica da diferença que <strong>de</strong>limita o espaço dos estilos <strong>de</strong> vida<br />

<strong>de</strong> grupos e/ou classes sociais. Há <strong>de</strong> se ob<strong>ser</strong>var, entretanto, que a mobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte a<br />

que se encontra sujeita a classe média no Brasil, nas últimas décadas, t<strong>em</strong> inscrito outras<br />

diferenças, que <strong>de</strong>mandam reelaborações, <strong>de</strong> forma a assegurar sua distinção, isto é, sua<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> classe. Por este motivo, no próximo tópico, pretendo refletir sobre a classe<br />

média, uma vez que a posição dos indivíduos no espaço social, seu pertencimento a um<br />

<strong>de</strong>terminado segmento <strong>de</strong> classe orienta condutas, práticas e interfere diretamente <strong>em</strong> suas<br />

experiências <strong>de</strong> vida.<br />

23 Sobre habitus <strong>de</strong> classe, ver, também Bourdieu (2003).<br />

90


2.2.1 CONCEITOS E REPRESENTAÇÕES SOBRE AS CLASSES MÉDIAS NA<br />

CONTEXTURA ATUAL<br />

Na estrutura <strong>de</strong> classes do Brasil cont<strong>em</strong>porâneo, ricos e pobres permanec<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

posições antagônicas. Entretanto, ob<strong>ser</strong>va-se que não só a <strong>de</strong>finição como a mensuração <strong>de</strong><br />

ricos e pobres são alvo <strong>de</strong> reinterpretações. O mesmo acontece com a classe média que,<br />

<strong>em</strong>bora permaneça como intermediária entre essas posições <strong>de</strong> classe, sujeita a localizações<br />

mediatas e t<strong>em</strong>porais, v<strong>em</strong> re<strong>de</strong>senhando sua subjetivida<strong>de</strong> e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, <strong>em</strong> função das<br />

experiências <strong>de</strong> classe.<br />

O próprio termo classe média não é consensual entre os autores consultados para<br />

realização <strong>de</strong>ste estudo. Por ex<strong>em</strong>plo, Velho (2002) e Heilborn (2004) prefer<strong>em</strong> usar a<br />

expressão camadas médias; Pochman (2004) e O’Dougherty (1998) refer<strong>em</strong>-se à classe<br />

média. Entretanto, no final do século XX, os autores que têm estudado os novos fenômenos<br />

sócio-econômicos inventaram a expressão “novas classes médias” 24 , que é nomeada ora no<br />

singular ora no plural, para realçar o surgimento <strong>de</strong> um novo cenário social e cont<strong>em</strong>plar<br />

trabalhadores que exerc<strong>em</strong> as funções técnicas, econômicas e intelectuais exigidas pelo<br />

capitalismo avançado (GUERRA et. al., 2006). Por conseguinte, a própria <strong>de</strong>finição sobre<br />

esse segmento populacional gera controvérsias, dada as sucessivas transformações na<br />

estratificação social brasileira, particularmente nas últimas décadas.<br />

Por este motivo, ob<strong>ser</strong>vam Guerra et. al. (2006), tomar como foco <strong>de</strong> discussão a<br />

classe média s<strong>em</strong>pre resulta <strong>em</strong> polêmica. Seu crescimento sobre a égi<strong>de</strong> do capitalismo, a<br />

ambivalência que a cerca e dificulta sua i<strong>de</strong>ntificação com esse ou aquele grupo <strong>de</strong> interesse,<br />

sua importância na formação da opinião pública e até mesmo, no surgimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias,<br />

além <strong>de</strong> crescente influência nas instâncias <strong>de</strong>cisórias <strong>de</strong> <strong>em</strong>presas e Estado entre outros<br />

aspectos, tornam sua análise uma aventura cujo <strong>de</strong>sfecho é imprevisível. Afinal, sua posição<br />

24 Ver por ex<strong>em</strong>plo, Ri<strong>de</strong>nti (2001).<br />

91


intermediária e tantas vezes incerta na estrutura social provoca a cada nova conjuntura<br />

divergências intraclasse e a comparação <strong>de</strong> ganhos e perdas impulsiona mudanças <strong>de</strong> opinião<br />

e até <strong>de</strong> posição social entre os atores.<br />

De fato, a classe média e alta, no período <strong>de</strong> 1955 a 1980, com a expansão dos setores<br />

produtivos (público e privado), consolidaram-se como grupos exclusivos, beneficiados com<br />

altos rendimentos e r<strong>em</strong>uneração, na medida <strong>em</strong> que foram alçadas ao topo das hierarquias<br />

funcionais <strong>de</strong> <strong>em</strong>presas privadas e estatais, como também <strong>de</strong> setores burocráticos<br />

especializados dos po<strong>de</strong>res legislativos, executivos e judiciários no âmbito municipal,<br />

estadual e fe<strong>de</strong>ral. Para atestar sua mobilida<strong>de</strong> ascensional, esses segmentos adotaram o<br />

consumo, <strong>de</strong> forma a aproximá-los da elite, mas também acentuar a diferença com a classe<br />

popular (POCHMANN et. al., 2004.).<br />

Sabe-se que a classe média é mais representativa nos centros urbanos e que está<br />

localizada entre a burguesia e o proletariado. Contudo, sua heterogeneida<strong>de</strong> fez com que fosse<br />

subdividida entre alta, média e baixa, ou seja, isso significa que integram a classe média <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

pequenos <strong>em</strong>presários e profissionais assalariados que atuam no setor <strong>de</strong> <strong>ser</strong>viços (saú<strong>de</strong>,<br />

educação, bancos etc.) e até aqueles que exerc<strong>em</strong> funções especializadas no setor industrial<br />

(SANDRONI, 2003).<br />

Em síntese, a classe média do século XX apresentou três distintas formações: A alta<br />

classe média, composta por pequenos e médios <strong>em</strong>presários, pela alta direção da<br />

administração pública e <strong>de</strong> <strong>em</strong>presas privadas e, por profissionais liberais <strong>de</strong> nível superior<br />

(professores universitários, advogados, engenheiros, médicos, jornalistas entre outros). O<br />

segmento médio, formado por postos intermediários da burocracia pública (professores <strong>de</strong><br />

ensino médio, <strong>em</strong>pregados <strong>de</strong> escritório, analistas entre outros), enquanto a classe média baixa<br />

teve como componentes indivíduos que exerciam postos <strong>de</strong> trabalho como caixas, auxiliares<br />

<strong>de</strong> escritório, técnicos <strong>de</strong> contabilida<strong>de</strong> entre outros (GUERRA et al, 2006).<br />

92


Oliveira, citado por Ri<strong>de</strong>nti (2001), ao elaborar uma gênese das “novas classes<br />

médias”, ob<strong>ser</strong>va que seu processo <strong>de</strong> formação ocorre com o <strong>de</strong>senvolvimento do<br />

capitalismo, quando se intensifica a cisão entre produtores diretos e meios <strong>de</strong> produção. As<br />

classes médias concentram trabalhadores qualificados, que <strong>de</strong>têm um conhecimento técnico<br />

que os habilita para exercer<strong>em</strong> trabalhos técnicos e organizacionais concretos que o<br />

operariado não consegue realizar, ou seja, são compostas por engenheiros, químicos, gerentes,<br />

administradores, planejadores, b<strong>em</strong> como aqueles que <strong>de</strong>senvolv<strong>em</strong> funções administrativas,<br />

<strong>de</strong> secretaria, informação, arquivo etc.<br />

Entretanto, argumenta Oliveira, o “surgimento do antivalor”, isto é, a função<br />

intermediadora <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhada pelo fundo público no capitalismo cont<strong>em</strong>porâneo irá expandir<br />

as funções das classes médias, a qu<strong>em</strong> caberá gerir a articulação entre o público e o privado.<br />

Em outras palavras, as classes médias atuam como tradutoras e articuladoras das <strong>de</strong>mandas<br />

privadas pelo fundo público, responsabilizando-se pela alocação <strong>de</strong> recursos públicos<br />

<strong>de</strong>stinados tanto ao financiamento da acumulação <strong>de</strong> capital, lucrativida<strong>de</strong> e valorização do<br />

valor (gastos armamentistas, com pesquisa e tecnologia, uso da dívida interna para assegurar a<br />

rentabilida<strong>de</strong> das <strong>em</strong>presas), quanto para o financiamento <strong>de</strong> antimercadorias sociais,<br />

produção <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> consumo coletivo (gastos com políticas <strong>de</strong> b<strong>em</strong>-estar, saú<strong>de</strong>, educação,<br />

seguro-<strong>de</strong>s<strong>em</strong>prego etc.). Vale dizer, portanto, que são constituintes das novas classes médias<br />

os assessores dos movimentos sociais e <strong>de</strong> <strong>em</strong>presas privadas, técnicos estatais e privados.<br />

Na mesma linha <strong>de</strong> raciocínio, Ri<strong>de</strong>nti (2001) acrescenta como ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> tradutores<br />

e articuladores os assessores e lobistas <strong>de</strong> <strong>em</strong>presas nacionais e multinacionais que negociam<br />

junto a técnicos <strong>de</strong> organismos públicos como SUDENE, BNDES, Ministérios e Congresso<br />

Nacional, tendo <strong>em</strong> vista a obtenção <strong>de</strong> financiamento e subsídios para a iniciativa privada. O<br />

autor l<strong>em</strong>bra ainda a intercambialida<strong>de</strong> entre funções públicas e privadas, burocracias estatais<br />

e <strong>de</strong> <strong>em</strong>presas, ou seja, a alternância <strong>de</strong> posições dos técnicos do Estado e particulares,<br />

93


constituintes das novas classes médias, cada vez mais usual no Brasil, ressaltando que estes<br />

tanto po<strong>de</strong>m operar as razões do Estado quanto as razões privadas.<br />

Por sua vez, Guerra et al (2006) prefer<strong>em</strong> apontar os sinais <strong>de</strong> transformação<br />

apresentados na constituição da classe média com a <strong>em</strong>ergência da socieda<strong>de</strong> pós-industrial:<br />

A primeira mudança consiste no enxugamento dos postos <strong>de</strong> trabalho no setor industrial e é<br />

<strong>de</strong>corrente do processo <strong>de</strong> tecnologização e <strong>de</strong>sregulação da competição intercapitalista, que<br />

têm impulsionado a adoção <strong>de</strong> novos métodos <strong>de</strong> gestão, como a flexibilização das relações<br />

<strong>de</strong> trabalho, terceirização, re-engenharia entre outros. O processo <strong>em</strong> curso traz como<br />

conseqüência a redução relativa da classe média assalariada na gran<strong>de</strong> <strong>em</strong>presa.<br />

A redução <strong>de</strong> hierarquias funcionais, ao limitar as chances <strong>de</strong> <strong>em</strong>pregos assalariados<br />

<strong>de</strong> classe média no setor industrial, t<strong>em</strong> provocado outra transformação na classe média<br />

assalariada do século XX: O <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong>ste segmento para postos intermediários do setor<br />

terciário da economia, cuja contratação ocorre <strong>de</strong> forma indireta na esfera das ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong><br />

produção mundial e <strong>em</strong>pregos <strong>em</strong> re<strong>de</strong>, com <strong>de</strong>staque para o trabalho informal e crescimento<br />

da auto-ocupação (free lancer, <strong>em</strong>presa s<strong>em</strong> <strong>em</strong>pregado, ong’s etc.).<br />

A<strong>de</strong>mais, surge uma terceira transformação na classe média assalariada, relativa à<br />

<strong>em</strong>ergência <strong>de</strong> novos postos ocupacionais <strong>de</strong>mandada pelas re<strong>de</strong>s mundiais <strong>de</strong> produção e<br />

comercialização <strong>de</strong> bens e <strong>ser</strong>viços. Ou seja, a constituição <strong>de</strong> uma nova categoria <strong>de</strong> trânsito<br />

global composta por<br />

gestores <strong>de</strong> métodos e processos, técnicos especializados <strong>em</strong> programação <strong>de</strong><br />

máquinas e equipamentos automatizados, analistas e investigadores <strong>em</strong> ciência e<br />

tecnologia, operadores e organizadores <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s culturais e <strong>de</strong> entretenimento,<br />

tecnólogos da informação e comunicação, entre outros (GUERRA et al, 2006, p.<br />

25).<br />

Finalmente, a quarta transformação na classe média assalariada é <strong>de</strong>corrente das novas<br />

relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r engendradas pela generalização <strong>de</strong>sse novo sujeito social. Ou seja, a classe<br />

média pós-industrial, <strong>de</strong>positária <strong>de</strong> conhecimento privilegiado e artífice das <strong>de</strong>mais criações<br />

relativas à imaterialida<strong>de</strong> da produção capitalista, ten<strong>de</strong> a se posicionar <strong>de</strong> forma diferente da<br />

94


tradicional classe média assalariada. Isso ocorre, segundo Guerra et al (2006), porque a classe<br />

média pós-industrial se torna propensa a absorver com mais intensida<strong>de</strong> valores<br />

individualistas e, com isso, enfraquecer os vínculos mais diretos com a coletivida<strong>de</strong>. Em<br />

suma, a mudança <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> e a importância atribuída à individualida<strong>de</strong> suscitam outra<br />

situação <strong>de</strong> percepção e constituição <strong>de</strong>ste novo sujeito social, <strong>em</strong>bora permaneça cativo ao<br />

diferencial <strong>de</strong> consumo, status social e po<strong>de</strong>r.<br />

Guerra et al (2006) ob<strong>ser</strong>vam ainda que, apesar <strong>de</strong> o assalariamento <strong>ser</strong> o principal<br />

el<strong>em</strong>ento constitutivo e mantenedor da classe média, este segmento adota outros mecanismos<br />

<strong>de</strong> diferenciação social, que se manifestam através da aspiração cultural e meritocracia<br />

educacional. Além disso, a classe média abraça como i<strong>de</strong>al a realização profissional, a<br />

ascensão na estrutura <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e a vida compatível oferecida pelo padrão <strong>de</strong> consumo <strong>de</strong><br />

maior renda possível.<br />

A classe média é compelida a consumir bens e <strong>ser</strong>viços, uma vez que o consumo<br />

adquire um valor adicional na esfera dos relacionamentos e da aparência, isto é, o consumo<br />

proporciona i<strong>de</strong>ntificação com um status social mais elevado, <strong>em</strong> consonância com projetos<br />

<strong>de</strong> vida ancorados na ascensão e mobilida<strong>de</strong> intergeracional. Por este motivo, a classe média<br />

compromete parcelas significativas da sua renda com gastos consi<strong>de</strong>rados “inversionais” –<br />

roupas, habitação, diversões e educação”, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que reduz <strong>de</strong>spesas relativas à<br />

“autocon<strong>ser</strong>vação” (alimentação e saú<strong>de</strong>). Da mesma forma, o padrão <strong>de</strong> consumo da classe<br />

média sustenta situações <strong>de</strong> “fachada”, ou seja, procura aparentar o que não é, fazendo-se<br />

presente <strong>em</strong> círculos financeiros mais elevados, vestindo-se na última moda, freqüentando<br />

locais acima do seu po<strong>de</strong>r aquisitivo, mesmo que traga como conseqüência, muitas vezes, o<br />

endividamento.<br />

Ob<strong>ser</strong>va-se que a classe média permanece marcada pela heterogeneida<strong>de</strong>,<br />

apresentando localizações distintas, <strong>em</strong> função da posição ocupada na estrutura <strong>de</strong> classes,<br />

95


que é <strong>de</strong>terminada pela qualificação, autorida<strong>de</strong> e po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>cisório <strong>em</strong> relação a categorias <strong>de</strong><br />

trabalhadores subordinados, como também níveis <strong>de</strong> renda e r<strong>em</strong>uneração. Tais localizações<br />

<strong>de</strong>fin<strong>em</strong> os interesses dos atores, as crenças, idéias, gostos, escolhas e atitu<strong>de</strong>s, que mudam a<br />

sua consciência <strong>de</strong> classe. Vale dizer, portanto, que as posições <strong>de</strong> classe e ocupacionais<br />

produz<strong>em</strong> aproximações ou diferenças intraclasse.<br />

Todavia, não se po<strong>de</strong> ignorar que, nas últimas décadas, principalmente nos anos 1990,<br />

o Brasil v<strong>em</strong> enfrentando uma profunda crise econômica, aparent<strong>em</strong>ente causada pelo<br />

endividamento externo que, acompanhada pelas reformas neoliberais trouxe como<br />

conseqüências o controle inflacionário, alto índice <strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>em</strong>prego urbano e endividamento<br />

público. Des<strong>de</strong> então, o crescimento econômico se mostra inexpressivo, não há projetos<br />

consistentes <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento n<strong>em</strong> tampouco mudanças no sentido <strong>de</strong> ampliar a mínima<br />

ação estatal. Guerra et. al. (2006, p. 98) ressaltam que:<br />

Neste ambiente turbulento, a classe média urbana, nascida principalmente do<br />

processo <strong>de</strong> industrialização do país, não po<strong>de</strong>ria passar incólume. [...] Porque sua<br />

renda elevada, baseada <strong>em</strong> bons <strong>em</strong>pregos, v<strong>em</strong> sofrendo a corrosão <strong>de</strong> um mercado<br />

<strong>de</strong> trabalho com poucas ofertas <strong>de</strong> vagas e muitos braços e mentes disponíveis. Tudo<br />

somado à extinção pura e simples <strong>de</strong> postos <strong>de</strong> trabalho, notadamente os industriais.<br />

Certamente, essas dificulda<strong>de</strong>s refletir-se-ão, e vigorosamente, nos padrões <strong>de</strong><br />

consumo <strong>de</strong>sse grupo social. Em outras palavras, o consumo, pedra angular <strong>de</strong><br />

diferenciação da classe média, passa a sofrer reveses que parec<strong>em</strong> levar a uma<br />

popularização <strong>de</strong> gastos.<br />

Tais mudanças, segundo o autor, mostram-se perceptíveis na realocação do orçamento<br />

familiar, mediante a redução <strong>de</strong> gastos com itens consi<strong>de</strong>rados menos importantes como<br />

vestuário, ida a restaurantes, lazer, aquisição <strong>de</strong> carros ou jóias, <strong>de</strong> forma a privilegiar<br />

<strong>de</strong>spesas essenciais como habitação, transporte e educação.<br />

De fato, O´Daugherty (1998), ao registrar auto-retratos da classe média paulistana,<br />

<strong>de</strong>staca que tanto no passado quanto nos dias atuais, sua linguag<strong>em</strong> recorre a padrões <strong>de</strong><br />

consumo (bens e práticas) para estabelecer avaliações <strong>de</strong> classe <strong>em</strong> geral e mensurar as<br />

distinções intraclasse. Porém, a constatação da perda <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r aquisitivo e polarização que<br />

v<strong>em</strong> ameaçando as classes, faz<strong>em</strong> com que elabor<strong>em</strong> uma re<strong>de</strong>finição: <strong>ser</strong> classe média “é ter<br />

96


casa própria e um carro”. Os informantes, com ida<strong>de</strong> acima <strong>de</strong> 40 anos, que po<strong>de</strong>m traçar um<br />

parâmetro das condições <strong>de</strong> classe frente às mudanças nos últimos anos, expressam um<br />

sentimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência quando <strong>de</strong>frontados com o encolhimento, quase inexistência da<br />

classe média que, para eles, apenas subsiste. De que ardis se val<strong>em</strong> para pre<strong>ser</strong>var a certeza <strong>de</strong><br />

pertencimento à classe média? A autora esclarece que:<br />

O grupo como um todo <strong>de</strong>monstrou apegar-se firm<strong>em</strong>ente à educação e ao<br />

esclarecimento cultural como meios para alcançar e manter a condição <strong>de</strong> m<strong>em</strong>bros<br />

da classe média e também como uma marca distintiva <strong>de</strong>ssa posição. Essas pessoas<br />

construíram sua posição <strong>de</strong> uma superiorida<strong>de</strong> quase moral, tendo como base a<br />

educação e a cultura (mais o carro velho e a casa), <strong>em</strong> contraste com o pólo oposto<br />

dos donos <strong>de</strong> carros novos e <strong>de</strong> produtos <strong>de</strong> consumo supérfluo (O´DAUGHERTY,<br />

1998, p.9).<br />

Os informantes estabelec<strong>em</strong> uma clara distinção com os “novos ricos”, a qu<strong>em</strong><br />

rejeitam pelo consumismo material, consi<strong>de</strong>rado vulgar e supérfluo, na medida <strong>em</strong> que<br />

exaltam seus próprios ‘valores’, digo, refinamento, gosto 25 , seu investimento <strong>em</strong> educação e<br />

cultura. Dessa forma, as bases culturais, simbólicas superam as bases econômicas, reafirmam<br />

o distanciamento com estratos adjacentes e reestabelec<strong>em</strong> a or<strong>de</strong>m hierárquica, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que tec<strong>em</strong> a proximida<strong>de</strong> com a elite. Afinal, conforme <strong>de</strong>staca Bourdieu (2001,<br />

p.11),<br />

[...] a cultura que une (intermediário <strong>de</strong> comunicação) é também a cultura que separa<br />

(instrumento <strong>de</strong> distinção) e que legitima as distinções compelindo todas as culturas<br />

(<strong>de</strong>signadas como subculturas) a <strong>de</strong>finir<strong>em</strong>-se pela sua distância <strong>em</strong> relação à cultura<br />

dominante.<br />

Po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>stacar que os informantes paulistanos também imprim<strong>em</strong> a distinção com<br />

os estratos adjacentes a partir do espaço geográfico, região que resi<strong>de</strong>m, isto é, opõ<strong>em</strong> a zona<br />

Leste à zona Sul, bairros “nobres” àqueles mais “populares”, <strong>de</strong> forma a realçar a distância do<br />

espaço social que, na interpretação bourdiesiana, “espontaneamente” <strong>de</strong>marca o espaço <strong>de</strong><br />

seus estilos <strong>de</strong> vida distintos.<br />

25 O´Daugherty sugere que os paulistanos <strong>de</strong> classe média investigados por ela atestam a teoria <strong>de</strong> Bourdieu<br />

sobre o “capitalismo educacional”, o “capitalismo cultural” e o “gosto”.<br />

97


Da mesma forma, Velho (2002, p. 89), ao investigar grupos da classe média alta,<br />

resi<strong>de</strong>ntes na Zona Sul do Rio <strong>de</strong> Janeiro, dialoga com um universo intelectualizado, que<br />

possui nível <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> elevado e estilo <strong>de</strong> vida mais sofisticado. Estes adotam uma<br />

i<strong>de</strong>ologia individualista, <strong>de</strong> base psicológica, cujo processo <strong>de</strong> construção da subjetivida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senha um ethos e visão <strong>de</strong> mundo distintos. Conforme ressalta:<br />

Fica evi<strong>de</strong>nte que há uma tendência à centralização <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong><br />

valores <strong>em</strong> que a sociabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> caráter mais intimista, vinculada a um grupo<br />

particular, é o valor chave. O aperfeiçoamento individual, da subjetivida<strong>de</strong> que<br />

passa, quase s<strong>em</strong>pre, pela psicanálise, atualiza-se na constituição <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> social,<br />

<strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> pessoas que têm marca própria <strong>de</strong> distinção que, na sua visão, os<br />

diferenciam significativamente <strong>de</strong> outros cont<strong>em</strong>porâneos.<br />

O autor constata que esse segmento da classe média também se distingue por perseguir<br />

projetos <strong>de</strong> vida, no âmbito social, afetivo ou cultural. Contudo, ressalta que suas trajetórias<br />

pessoais e motivações são permeadas pela tensão entre conferir uma dimensão maior à<br />

experiência pessoal e situá-la no contexto social mais amplo, <strong>em</strong>bora nesse <strong>em</strong>bate prevaleça<br />

a “valorização do indivíduo-sujeito e <strong>de</strong> suas potencialida<strong>de</strong>s” (VELHO, 2002, p. 102).<br />

Vale dizer, portanto, que as representações construídas pela classe média são<br />

reelaboradas pela experiência individual. Esta, por sua vez, é influenciada pelas experiências<br />

sociais, <strong>de</strong> classe, gênero e geração, ou seja, os individualismos mo<strong>de</strong>lam uma cultura<br />

subjetiva que produz rebatimentos na cultura objetiva, possibilitando que valores <strong>em</strong>ergentes<br />

sejam agregados e outros mais antigos pre<strong>ser</strong>vados e acionados, reféns da<br />

circunstancialida<strong>de</strong> 26 .<br />

Conforme ob<strong>ser</strong>va Britto da Motta (1999), tais dimensões encontram-se entrelaçadas,<br />

são relacionais e estruturam a vida social. Por isso, po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> <strong>de</strong>finidas como experiência,<br />

uma vez que expressam o análogo e o diverso, discordância e/ou consenso, marcados por um<br />

26 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Figueira (1985), para qu<strong>em</strong> as sucessivas transformações na socieda<strong>de</strong> e família brasileiras<br />

têm produzido i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s idiossincráticas instáveis que <strong>de</strong>mandam mapas ou conjuntos <strong>de</strong> valores,<br />

re<strong>de</strong>senhados por meio do psicologismo, o qual opera como linguag<strong>em</strong>, cultura e i<strong>de</strong>ologia, favorecendo o<br />

processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização. Ver, também, Nicolaci-da-Costa (1985), que também i<strong>de</strong>ntifica a busca <strong>de</strong> terapia<br />

como estratégia <strong>de</strong> superação para os conflitos <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ados pelas sucedâneos sist<strong>em</strong>as simbólicos<br />

internalizados pelos indivíduos.<br />

98


jogo hierárquico cuja dialeticida<strong>de</strong> da vida imprime uma constante alternância <strong>de</strong> lugares e<br />

situações. Por isso, faz-se necessário refletirmos sobre a interface entre classe, gênero e<br />

geração 27 .<br />

Em outro momento, Britto da Motta (2005, p. 132) pon<strong>de</strong>ra que, conforme a dinâmica<br />

social, os acontecimentos, as reações e as experiências não acontec<strong>em</strong> <strong>de</strong> forma isolada, na<br />

esfera <strong>de</strong> cada categoria relacional, por ex<strong>em</strong>plo, apenas na dimensão <strong>de</strong> gênero ou restritos à<br />

geração. Os variados acontecimentos, vivências individuais e sociais são correlatas às<br />

múltiplas pertinências das pessoas e grupo (<strong>de</strong> sexo/gênero, raça, etnia, ida<strong>de</strong>/geração, <strong>em</strong><br />

uma situação <strong>de</strong> classe). “No âmago, não se vive apenas a experiência <strong>de</strong> uma dimensão <strong>de</strong><br />

relações por vez, mas conjuntos ou simultaneida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> experiência, iniciando com a conexão<br />

existente entre classe social”. Por este motivo, pretendo refletir acerca das dimensões que<br />

recortam a experiência, iniciando com a conexão existente entre classe social e geração, <strong>de</strong><br />

forma a realçar o sentido que adquire na contextura <strong>de</strong>ste estudo.<br />

2. 2. 2 ARTICULANDO RECORTES: CLASSE E GERAÇÃO<br />

Homens e mulheres pertenc<strong>em</strong> a uma <strong>de</strong>terminada classe, mas também a um gênero e<br />

ida<strong>de</strong>/geração específicos, ou seja, há práticas sociais e construções subjetivas distintas <strong>de</strong><br />

classe, gênero e geração. Isso significa, segundo Britto da Motta (1999), que a vida social é<br />

dotada <strong>de</strong> um <strong>em</strong>aranhado <strong>de</strong> sentidos, que só po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> <strong>de</strong>svendado por meio da articulação<br />

entre os sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> relações que a estruturam. Em outros termos, apesar <strong>de</strong> as relações <strong>de</strong><br />

classe, gênero, geração e etnia atuar<strong>em</strong> como <strong>de</strong>terminantes da vida social, é preciso atentar<br />

para a interseção entre o conjunto <strong>de</strong>ssas relações, uma vez que são aspectos co-extensivos,<br />

isto é, cada conjunto, isoladamente, não consegue abarcar a complexida<strong>de</strong> da vida social.<br />

27 Britto da Motta (op. cit.) também <strong>de</strong>staca a dimensão <strong>de</strong> raça/etnia como uma categoria relacional<br />

<strong>de</strong>terminante da experiência, mas neste estudo, <strong>de</strong>ter<strong>em</strong>o-nos apenas <strong>em</strong> classe, gênero e geração.<br />

99


O termo geração, tanto para a teoria e estatística <strong>de</strong>mográfica como para as <strong>ciências</strong><br />

sociais, segundo Attias – Donfut (1996), refere-se a um conjunto <strong>de</strong> indivíduos que<br />

compartilham <strong>de</strong>terminadas experiências, <strong>em</strong> um mesmo período <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po, s<strong>em</strong> que<br />

necessariamente possuam a mesma ida<strong>de</strong>. A geração também é nomeada como coorte <strong>de</strong><br />

nascimentos, quando agrega um conjunto <strong>de</strong> indivíduos nascidos <strong>em</strong> um mesmo intervalo <strong>de</strong><br />

t<strong>em</strong>po, ou seja, a categoria é adotada para se referir a pessoas que têm uma mesma ida<strong>de</strong><br />

cronológica e cujos ciclos <strong>de</strong> vida, provavelmente, ocorr<strong>em</strong> num mesmo período histórico. Já<br />

sob uma perspectiva socio<strong>de</strong>mográfica ou socioantropológica, envolve a “posição<br />

genealógica” na linha <strong>de</strong> <strong>de</strong>scendência, que não é <strong>de</strong>finida por critério etário, mas pelas<br />

relações <strong>de</strong> parentesco ou genealógicas que organizam o próprio processo <strong>de</strong> formação dos<br />

grupos familiares concretos. Consist<strong>em</strong>, portanto, <strong>em</strong> gerações sucessivas, que Attias-Donfut<br />

<strong>de</strong>nomina como “gerações familiais”.<br />

Vale <strong>de</strong>stacar que ambas as noções <strong>de</strong> geração alu<strong>de</strong>m à sucessão geracional, processo<br />

socio<strong>de</strong>mográfico responsável pela produção e reprodução dos indivíduos, cujos componentes<br />

essenciais são os modos e condições <strong>de</strong> concretização articulada <strong>de</strong> quatro cursos <strong>de</strong> ação, que<br />

po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> concebidos como experiência: 1) a procriação com vistas a assegurar a formação<br />

<strong>de</strong> proles e <strong>de</strong>scendências; 2) garantir a sobrevivência e con<strong>ser</strong>var a saú<strong>de</strong>, opostas à morte<br />

pr<strong>em</strong>atura e à doença; 3) o matrimônio e experimentações da sexualida<strong>de</strong> no âmbito intra e<br />

extraconjugal; 4) educação e socialização dos filhos.<br />

Para melhor ilustrar a importância da geração como categoria analítica, Britto da<br />

Motta (2001, p. 198) l<strong>em</strong>bra que o t<strong>em</strong>po dos indivíduos é explicitado <strong>de</strong> forma mais clara<br />

pela ida<strong>de</strong> cronológica que se altera a cada ano. Apesar <strong>de</strong> construída socialmente, a ida<strong>de</strong> se<br />

institucionaliza e adquire um significado social ao nomear grupos ou categorias <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> –<br />

jovens, adultos, velhos –, principalmente com relação a legitimar ou con<strong>de</strong>nar esta ou aquela<br />

100


ação na socieda<strong>de</strong>. Por isso, a autora consi<strong>de</strong>ra simplista a perspectiva <strong>de</strong> análise que sugere<br />

uma equivalência entre ida<strong>de</strong>/geração e faz a seguinte provocação:<br />

101<br />

O ’biológico’ ida<strong>de</strong>, referente ao t<strong>em</strong>po ‘natural’, não é também <strong>de</strong> inscrição tão<br />

subjetiva nos indivíduos e nos grupos, no seu <strong>de</strong>sconstruir-se / (re) construir-se<br />

anual, ao sabor das representações culturais do [sic] cada grupo? (Por ex<strong>em</strong>plo,<br />

ainda é muito mais simples um hom<strong>em</strong> aceitar – ou ter aceitos – os seus 60 anos <strong>de</strong><br />

ida<strong>de</strong>, que uma mulher. Que haveria <strong>de</strong> biológico nessa diferença <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s?)<br />

Britto da Motta <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, portanto, a inseparatibilida<strong>de</strong> e intercambialida<strong>de</strong> analítica <strong>de</strong><br />

duas categorias <strong>de</strong> experiência ou situação, isto é, a leitura das gerações <strong>de</strong>ve cont<strong>em</strong>plar a<br />

g<strong>em</strong>inação entre ida<strong>de</strong> e situação no t<strong>em</strong>po, uma vez que tanto as ida<strong>de</strong>s quanto as gerações<br />

atuam como importantes fatores <strong>de</strong> organização social. Além disso, chama a atenção para o<br />

cruzamento entre a ida<strong>de</strong> / geração e a perspectiva <strong>de</strong> gênero no processo analítico, uma vez<br />

que “a trajetória diferenciada da vida <strong>de</strong> homens e <strong>de</strong> mulheres v<strong>em</strong> elaborando diferentes<br />

representações e sentimentos <strong>em</strong> relação à condição geracional ou à etapa <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> vivida”<br />

(BRITTO DA MOTTA, 2005, p. 132).<br />

Para expor sua linha <strong>de</strong> pensamento, Britto da Motta <strong>de</strong>staca outros aspectos<br />

cont<strong>em</strong>plados pela vertente histórico–social no processo analítico das gerações: O primeiro<br />

diz respeito à maneira como um mesmo contexto social afeta diferent<strong>em</strong>ente os indivíduos<br />

pertencentes a um <strong>de</strong>terminado grupo <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> que se po<strong>de</strong>ria classificar como geração. Ou<br />

seja, segmentos <strong>de</strong> uma mesma geração po<strong>de</strong>m adotar posturas e seguir caminhos distintos,<br />

<strong>de</strong>vido à influência <strong>de</strong> padrões, movimentos culturais e políticos, tanto con<strong>ser</strong>vadores como<br />

contestatórios, que operam simultaneamente na mesma época e <strong>em</strong> um mesmo contexto<br />

social.<br />

A segunda razão apontada por Britto da Motta (2005) toma como pr<strong>em</strong>issa o fato <strong>de</strong><br />

que cada momento histórico se concretiza com a presença <strong>de</strong> diferentes gerações, cujas<br />

experiências sociais e trajetória <strong>de</strong> vida não são análogas. Neste sentido, a autora cita Zárraga<br />

Moreno, para qu<strong>em</strong> as sucedâneas conjunturas históricas mo<strong>de</strong>lam as gerações, ainda que seu<br />

efeito seja influenciado pela categoria <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> <strong>em</strong> que se encontra cada geração. Por isso, a


<strong>de</strong>terminação geracional, <strong>em</strong> cada conjuntura, não é única n<strong>em</strong> tampouco unívoca,<br />

apresentando especificida<strong>de</strong>s <strong>em</strong> cada classe social, <strong>em</strong> cada gênero e raça/etnia..<br />

A autora ressalta ainda que, como geração, os indivíduos se reconhec<strong>em</strong> como<br />

projeção coletiva. A realização dos grupos geracionais ganha concretu<strong>de</strong> através da<br />

i<strong>de</strong>ntificação como construtores da cultura ou potencializadores <strong>de</strong> mudanças políticas <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>terminados períodos históricos. A geração é consi<strong>de</strong>rada uma categoria mais abrangente<br />

que a ida<strong>de</strong> porque acompanha a progressão do t<strong>em</strong>po e, principalmente, encerra um sentido<br />

coletivo, <strong>em</strong>bora não cont<strong>em</strong>ple outros aspectos <strong>de</strong> realização.<br />

Com efeito, no Brasil, a partir dos anos 60, novas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, subjetivida<strong>de</strong>s e<br />

posturas geracionais foram <strong>de</strong>senhadas pelo movimento <strong>de</strong> contracultura, que <strong>de</strong>fendia estilos<br />

<strong>de</strong> vida alternativos; pelos movimentos <strong>em</strong>ancipatórios f<strong>em</strong>inistas, que questionavam a<br />

naturalização dos papéis e funções f<strong>em</strong>ininas; pela psicanálise, cuja difusão ameaçava a moral<br />

religiosa vigente, ensejando a formação <strong>de</strong> novos processos i<strong>de</strong>ntitários, além da crescente<br />

participação das mulheres no mercado <strong>de</strong> trabalho, seu ingresso nas universida<strong>de</strong>s e acesso a<br />

novos métodos <strong>de</strong> controle da fecundida<strong>de</strong> (MATOS, PEREIRA e TAVARES, 2005).<br />

Os estudos <strong>de</strong>senvolvidos por Nicolaci-da-Costa (1985) com segmentos das classes<br />

médias cariocas, cuja adolescência ou início da vida adulta transcorr<strong>em</strong> na década <strong>de</strong> 60,<br />

evi<strong>de</strong>nciam seu questionamento acerca dos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> casamento monogâmico, da<br />

pre<strong>ser</strong>vação da virginda<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina até o matrimônio, a segregação <strong>de</strong> papéis e códigos<br />

morais assimétricos para homens e mulheres etc., o que provocará a construção <strong>de</strong> novas<br />

representações sobre relações conjugais e familiares. Isso significa que sua trajetória <strong>de</strong> vida<br />

<strong>ser</strong>á permeada por uma <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> socializatória, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> da incorporação <strong>de</strong><br />

sist<strong>em</strong>as simbólicos conflitantes nas diversas etapas <strong>de</strong> sua biografia. Por ex<strong>em</strong>plo, estes<br />

sujeitos irão se contrapor aos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> casamento da geração dos pais, ensaiando uma<br />

“mo<strong>de</strong>rnização”, ainda que pre<strong>ser</strong>v<strong>em</strong> aspectos mais abstratos como a monogamia e<br />

102


eternização do casamento. Por isso, na década <strong>de</strong> 70, o matrimônio e formação <strong>de</strong> uma família<br />

<strong>ser</strong>ão alvo <strong>de</strong> conflitos, <strong>de</strong>vido à dificulda<strong>de</strong> para conciliação entre os valores tradicionais e<br />

mo<strong>de</strong>rnos <strong>em</strong> que se baseia o seu i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> casamento. A autora l<strong>em</strong>bra que:<br />

103<br />

Uma vez instaurada a ‘crise’, o sujeito conta com algumas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> solução<br />

(e, aqui, r<strong>em</strong>eto o leitor ao final da década <strong>de</strong> 70 e início da década <strong>de</strong> 80 na<br />

ilustração): 1) retorno aos mol<strong>de</strong>s ‘tradicionais’, o que apresenta uma série <strong>de</strong><br />

dificulda<strong>de</strong>s, porque o sujeito com eles não se i<strong>de</strong>ntifica totalmente e, também,<br />

porque estes mol<strong>de</strong>s estão ausentes na socieda<strong>de</strong>, pelo menos na sua geração e/ou<br />

grupo social; 2) adoção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias ‘vanguardistas’, o que também traz<br />

dificulda<strong>de</strong>s para o sujeito, pois, [ ...] os conteúdos internalizados na socialização<br />

primária são resistentes à erradicação. 3) busca <strong>de</strong> equilíbrio e coerência através <strong>de</strong><br />

terapias (NICOLACI-DA-COSTA, 1985, p. 165).<br />

Nicolaci-da-Costa <strong>de</strong>staca que, ao optar<strong>em</strong> pelo mo<strong>de</strong>lo tradicional do casamento<br />

monogâmico, os casais transfer<strong>em</strong> o conflito para a área da reprodução biológica, opondo-se<br />

aos mo<strong>de</strong>los vigentes e passando a consi<strong>de</strong>rar a gravi<strong>de</strong>z e o parto como uma “experiência a<br />

dois”. Outros optam pelo casamento poligâmico e protelam a reprodução. Há ainda aqueles<br />

que não consegu<strong>em</strong> <strong>de</strong>cidir-se por nenhuma <strong>de</strong>ssas soluções e recorr<strong>em</strong> às terapias para<br />

lidar<strong>em</strong> com o <strong>de</strong>scasamento. Todos, entretanto, encaram estas experiências como “crises”,<br />

que se renovam quando têm que <strong>de</strong>cidir sobre a educação e escolarização dos filhos, isto é,<br />

optar<strong>em</strong> por escolas “tradicionais” ou “experimentais”.<br />

Da mesma forma, Sal<strong>em</strong> (1985, p. 45), ao investigar casais das classes médias e<br />

superiores resi<strong>de</strong>ntes na zona sul do Rio <strong>de</strong> Janeiro, que adotaram o mo<strong>de</strong>lo do “casal<br />

grávido” na primeira gestação, quando tinham entre 24 e 30 anos, ob<strong>ser</strong>va que os “novos<br />

pais” adotam uma i<strong>de</strong>ologia acerca da paternida<strong>de</strong> e maternida<strong>de</strong> oposta àquela seguida por<br />

seus próprios pais, isto é, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a igualda<strong>de</strong> entre os gêneros, como também valorizam a<br />

subjetivida<strong>de</strong>, investimento <strong>em</strong>ocional e outros aspectos psicológicos individuais. A autora<br />

<strong>de</strong>staca que:<br />

[...] o nascimento do primeiro filho <strong>de</strong>sponta como mais uma das ocasiões<br />

privilegiadas <strong>em</strong> que uma dada geração – para a qual a ‘mudança’ constitui valorchave<br />

– tenta <strong>de</strong>marcar fronteiras simbólicas e diferenciar-se com relação às<br />

gerações que lhe antece<strong>de</strong>m. E este projeto refere-se não apenas ao casal enquanto<br />

unida<strong>de</strong>, mas também, não raro, a seus m<strong>em</strong>bros tomados individualmente.


No entanto, a “crise” se instala no período pós-parto, quando o projeto <strong>de</strong><br />

compartilhar<strong>em</strong> integralmente os cuidados com a criança não se concretiza, porque o “estado<br />

confusional a três” i<strong>de</strong>alizado durante a gestação é confrontado com a realida<strong>de</strong> cotidiana, <strong>em</strong><br />

que a participação masculina não ocorre como planejada anteriormente e/ou <strong>de</strong>sejada pela<br />

mulher. Há também um encimesmamento do casal e, principalmente a mulher, envolve-se<br />

plenamente com a maternida<strong>de</strong>, apartando-se do convívio social, o que gera o afastamento do<br />

casal, uma vez que o hom<strong>em</strong> se vê colocado à parte da relação simbiótica entre mãe e filho.<br />

Além disso, retoma-se os mo<strong>de</strong>los arquetípicos tradicionais, uma vez que, após a gestação, o<br />

casal <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> que a mulher <strong>de</strong>ve se recolher, por t<strong>em</strong>po in<strong>de</strong>terminado, ao espaço doméstico,<br />

abandonando suas ativida<strong>de</strong>s profissionais, enquanto o hom<strong>em</strong> assume o papel <strong>de</strong> provedor do<br />

núcleo familiar.<br />

A autora enten<strong>de</strong> que, a <strong>de</strong>speito da ambivalência contida na experiência do casal<br />

grávido, não se po<strong>de</strong> ignorar mudanças i<strong>de</strong>ológicas, revisões nas posturas geracionais, porque<br />

a criança é percebida como portadora <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong> e personalida<strong>de</strong> próprias que, tanto<br />

quanto sua saú<strong>de</strong> física exige cuidados dos pais e especialistas. Principalmente, a forma como<br />

o casal vivencia a gravi<strong>de</strong>z e o parto <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penha um importante papel simbólico: por meio<br />

<strong>de</strong>stas experiências, o casal e/ou seus m<strong>em</strong>bros isoladamente, ensaiam momentos e<br />

movimentos <strong>de</strong> singularização e individuação, reelaborando suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s.<br />

Já Lo Bianco (1985), ao investigar segmentos da classe média pertencentes às<br />

gerações mais novas, constata uma mudança nos papéis f<strong>em</strong>ininos, que já não se restring<strong>em</strong> à<br />

dimensão materna. A crescente in<strong>ser</strong>ção da mulher no mercado <strong>de</strong> trabalho contribuiu para<br />

re<strong>de</strong>finir papéis e, mesmo <strong>ser</strong> exercer uma profissão, esta passa a se auto<strong>de</strong>finir como<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, opondo-se ao principal papel que lhe foi re<strong>ser</strong>vado socialmente – <strong>ser</strong> mãe –<br />

agora <strong>de</strong>stituído do caráter obrigatório e consi<strong>de</strong>rado uma opção. No entanto, a autora <strong>de</strong>staca<br />

que a re<strong>de</strong>finição da maternida<strong>de</strong> não foi extensiva a segmentos situados nos estratos mais<br />

104


aixos da socieda<strong>de</strong> ou mesmo outros grupos geracionais da classe média. Nesse sentido,<br />

afirma que:<br />

105<br />

[...] as <strong>de</strong>finições atuais das gerações mais novas das camadas médias se confrontam<br />

com <strong>de</strong>finições anteriores (ou mesmo atuais, mas pertencentes a outros grupos) que<br />

são freqüent<strong>em</strong>ente contraditórios. Po<strong>de</strong>-se dizer, então, que a nível da socieda<strong>de</strong> se<br />

encontram <strong>de</strong>finições <strong>de</strong> maternida<strong>de</strong> contrastantes entre si (LO BIANCO, 1985, p.<br />

86).<br />

Por outro lado, Lins <strong>de</strong> Barros (1991) ob<strong>ser</strong>va que no contexto das classes médias, a<br />

dinâmica relacional sofre transformações a partir do entrecruzamento dos diferentes t<strong>em</strong>pos<br />

<strong>de</strong> gerações, isto é, avós, pais e netos. Embora os avós se ressintam com os filhos por <strong>ser</strong><strong>em</strong><br />

explorados como “babás profissionais” quando os netos são pequenos, consi<strong>de</strong>ram que as<br />

mudanças societárias provocaram um estreitamento dos vínculos entre pais e filhos, as<br />

relações aproximando-se do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> família extensa, ainda que não residam juntos.<br />

Entre avós e netos viceja uma relação <strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong> e confiança mútua, baseada no<br />

afeto, que contrasta com a educação dada a seus próprios filhos, <strong>em</strong> que a autorida<strong>de</strong> inibia<br />

<strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> afetivida<strong>de</strong>. Assim, a linguag<strong>em</strong> do afeto é utilizada para distinguir a<br />

tipologia da família na dimensão espaço-t<strong>em</strong>poral e contrarrestar o mo<strong>de</strong>lo isolado e<br />

tradicional <strong>de</strong> família conjugal, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que a apresentam como parâmetro para<br />

os filhos na construção <strong>de</strong> uma relação mais amorosa com as crianças.<br />

Diante do exposto, po<strong>de</strong>-se afirmar que as experiências se mostram diferentes <strong>de</strong> uma<br />

classe social para outra, mas também entre as gerações. Se os indivíduos pertencentes a uma<br />

mesma classe social e geração têm percepções <strong>de</strong> mundo e experiências análogas, isso não<br />

significa que sejam monolíticas, até mesmo porque a inter-relação entre os diversos<br />

segmentos <strong>de</strong> classe e geração provoca conflitos, ambivalência e, conseqüent<strong>em</strong>ente,<br />

<strong>de</strong>slocamentos. Além disso, as relações <strong>de</strong> classe e geração envolv<strong>em</strong> homens e mulheres, isto<br />

é, são atravessadas pelo gênero, assim como são influenciadas pela raça/ etnia o que,<br />

certamente, implica <strong>em</strong> experiências <strong>de</strong> gênero e étnicas distintas. Por esta razão, pretendo<br />

refletir no próximo tópico sobre a interseccionalida<strong>de</strong> entre gênero, classe social, geração,


aça/etnia, <strong>de</strong> forma a realçar a importância que a superposição <strong>de</strong>ssas categorias analíticas<br />

assume na tessitura <strong>de</strong>ste estudo.<br />

2.2.3 EXPERIÊNCIAS PLURAIS: A INTERSECÇÃO ENTRE GÊNERO, CLASSE<br />

SOCIAL, GERAÇÃO E RAÇA/ETNIA<br />

O gênero 28 consiste <strong>em</strong> uma categoria fundamental para a análise das relações sociais,<br />

uma vez que <strong>de</strong>termina as formas <strong>de</strong> pensar e classificar fenômenos no mundo. O gênero é um<br />

construtor social, não só do pensamento, mas das expectativas e trajetórias <strong>de</strong> vida das<br />

pessoas. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, é uma construção social e cultural que busca explicar as<br />

diferenças e <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s presentes nas relações estabelecidas entre mulheres e homens. O<br />

gênero po<strong>de</strong> nos ajudar a compreen<strong>de</strong>r a estruturação da socieda<strong>de</strong>, assim como as<br />

transformações sociais. Fazendo uso das palavras <strong>de</strong> Sar<strong>de</strong>nberg (2002, p. 54):<br />

106<br />

Por gênero, refiro-me aqui à categoria analítica que preten<strong>de</strong> dar conta das variadas<br />

elaborações que diferentes socieda<strong>de</strong>s, <strong>em</strong> diferentes épocas, constro<strong>em</strong> <strong>em</strong> torno<br />

das diferenças percebidas entre machos e fêmeas e <strong>de</strong>las se apropriam na prática<br />

social. Mas <strong>de</strong>vo esclarecer: não me apóio aqui na concepção dualista do conceito na<br />

qual se opõe biologia a cultura, isto é, na noção que distingue, <strong>de</strong> um lado, ‘sexo’,<br />

i<strong>de</strong>ntificado com o corpo e tomado como algo ‘natural’, ‘univeral’ e, portanto,<br />

ahistórico e, <strong>de</strong> outro, ‘gênero’, visto apenas como algo do psicológico e cultural,<br />

relativo à subjetivida<strong>de</strong>.<br />

O gênero, enquanto representação elaborada histórica e socialmente, origina-se e<br />

reafirma-se na trama das relações sociais, ou seja, o gênero normatiza as relações sociais e ao<br />

fazê-lo, situa-nos socialmente, imprimindo o nosso pertencimento a um grupo, classe ou<br />

categoria. Conforme argumenta Lauretis (1994, p. 211),<br />

[...] o termo ‘gênero’ é uma representação não apenas no sentido <strong>de</strong> que cada<br />

palavra, cada signo, representa seu referente, seja ele um objeto, uma coisa, ou um<br />

<strong>ser</strong> animado. O termo ‘gênero’ é, na verda<strong>de</strong>, a representação <strong>de</strong> pertencer a uma<br />

classe, um grupo, uma categoria. (...) Assim, gênero representa não um indivíduo e<br />

sim uma relação, uma relação social; <strong>em</strong> outras palavras, representa um indivíduo<br />

por meio <strong>de</strong> uma classe.<br />

28 No Brasil, a adoção do gênero como instrumento <strong>de</strong> análise aconteceu a partir veiculação do artigo <strong>de</strong> Joan<br />

Scott, intitulado Gênero: uma categoria útil <strong>de</strong> análise, publicado pela primeira vez <strong>em</strong> 1987. Ver, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, sobre a orig<strong>em</strong> dos estudos <strong>de</strong> gênero no Brasil, Machado (1992); Lobo (2001).


O gênero, ainda segundo Lauretis, é uma representação construída histórica e<br />

socialmente que se realiza nos “aparelhos i<strong>de</strong>ológicos do Estado”, conforme <strong>de</strong>nomina<br />

Althus<strong>ser</strong>, a saber: na família, escola, espaço midiático, assim como na aca<strong>de</strong>mia e<br />

comunida<strong>de</strong> intelectual, até mesmo <strong>em</strong> práticas artísticas vanguardistas, teorias radicais e no<br />

f<strong>em</strong>inismo. Vale dizer, portanto, que mulheres e homens, <strong>em</strong> cada socieda<strong>de</strong> e época, não<br />

nasc<strong>em</strong> prontos, eles são inventados pela família, escola, religião, cin<strong>em</strong>a, novelas,<br />

propagandas, músicas etc., que <strong>de</strong>terminam os papéis a <strong>ser</strong><strong>em</strong> <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhados por cada um<br />

nessa socieda<strong>de</strong>.<br />

Neste sentido, Scott (1995) concebe o gênero a partir <strong>de</strong> duas proposições: 1) O<br />

gênero é um el<strong>em</strong>ento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas<br />

entre os sexos. 2) O gênero é uma maneira inicial <strong>de</strong> dar sentido às relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e atua<br />

como parâmetro para a vida social, isto é, as formas como mulheres e homens pensam e<br />

classificam o mundo.<br />

No primeiro nível, o gênero contém quatro dimensões: A primeira dimensão é<br />

simbólica, a cultura produz símbolos que conduz<strong>em</strong> à percepção <strong>de</strong> dois arquétipos f<strong>em</strong>ininos<br />

antagônicos. Por ex<strong>em</strong>plo, a Virg<strong>em</strong> Maria e Eva (a santa contra a pecadora) e, mais<br />

recent<strong>em</strong>ente, a mulher a<strong>de</strong>quada para casar contra a outra que só <strong>ser</strong>ve para “ficar”. A<br />

segunda dimensão, normativa, refere-se às normas e valores que interpretam o significado dos<br />

símbolos e prescrev<strong>em</strong> os comportamentos e atitu<strong>de</strong>s aceitos socialmente, o certo e o errado,<br />

o permitido e o proibido.<br />

Já a dimensão institucional correspon<strong>de</strong> às instituições que exerc<strong>em</strong> uma função<br />

socializadora, com as quais apren<strong>de</strong>mos o significado do <strong>ser</strong> hom<strong>em</strong> e do <strong>ser</strong> mulher, os<br />

papéis sociais a <strong>ser</strong><strong>em</strong> encenados por ambos os sexos, ou seja, a família, a Igreja, a escola e a<br />

mídia transmit<strong>em</strong> a i<strong>de</strong>ologia dominante e mo<strong>de</strong>lam o processo <strong>de</strong> organização social. A<br />

107


última dimensão consiste na i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> subjetiva, as maneiras como mulheres e homens<br />

internalizam os valores grupais e sociais.<br />

O conceito <strong>de</strong> gênero é construído e reelaborado a partir da cultura. As idéias<br />

formuladas <strong>em</strong> torno do que é <strong>ser</strong> hom<strong>em</strong> ou <strong>ser</strong> mulher variam <strong>de</strong> acordo com cada cultura,<br />

época e socieda<strong>de</strong>. Essas idéias não reflet<strong>em</strong> simplesmente dados biológicos, são produtos <strong>de</strong><br />

processos sociais e culturais. Em outros termos, o gênero transcen<strong>de</strong> a fisicalida<strong>de</strong>, a<br />

diferença anatômica e biológica entre os sexos, pois encerra outras diferenças, seja no âmbito<br />

econômico, político, social, cultural ou étnico, que <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> formas <strong>de</strong> pensar e agir, escolhas,<br />

interesses, espaços posicionais e ocupacionais, trajetórias e vivências próprias para homens e<br />

mulheres, <strong>em</strong> cada socieda<strong>de</strong> ou época. Urrutia (2001, p. 17) ressalta que:<br />

108<br />

O corpo é a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> início, e só <strong>de</strong>pois v<strong>em</strong> o gênero como ativida<strong>de</strong> originante<br />

que acontece s<strong>em</strong> cessar, um ato diário <strong>de</strong> interpretação e reconstrução. (...) O<br />

gênero não é natural: é uma construção social cuidadosamente elaborada no<br />

cotidiano, como parte do aprendizado das regras necessárias para ‘operar o mundo’,<br />

baseado na interpretação social da diferença biológica. A diferença existe, e parece<br />

reenviar-nos ao âmbito do corporal, da experiência pessoal, <strong>em</strong> suma, do privado.<br />

O gênero, portanto, não é passivo ou imutável, mas sim um produto social, que se<br />

constrói na t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong>. Seu caráter relacional concebe i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e subjetivida<strong>de</strong>s<br />

sexuadas, as relações <strong>de</strong> gênero mo<strong>de</strong>lam papéis, atributos e hierarquias <strong>de</strong> gênero que se re –<br />

produz<strong>em</strong> nas práticas da vida cotidiana. Cada socieda<strong>de</strong> enuncia os simbolismos e<br />

representações <strong>de</strong>signativas do masculino e do f<strong>em</strong>inino. Assim, po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>finir o gênero<br />

como:<br />

[...] um produto social, aprendido, representado, institucionalizado e transmitido ao<br />

longo das gerações. E, segundo, envolve a noção <strong>de</strong> que o po<strong>de</strong>r é distribuído <strong>de</strong><br />

maneira <strong>de</strong>sigual entre os sexos, cabendo às mulheres uma posição subalterna na<br />

organização da vida social (SORJ, 1992, p. 15 – 6).<br />

O gênero constrói a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> homens e <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong> forma relacional, ambos<br />

os sexos exerc<strong>em</strong> uma compl<strong>em</strong>entarida<strong>de</strong> nas relações <strong>de</strong> gênero que é <strong>de</strong>senhada pelo<br />

antagonismo, isto é, dominação masculina contra subordinação/coisificação f<strong>em</strong>inina<br />

(SAFFIOTI, 1997). As relações <strong>de</strong> gênero, portanto, são relações <strong>de</strong> dominação, <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que


um sexo exerce sobre o outro, ou seja, são relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r assimétrico que atravessam todo<br />

o tecido social. Conforme assinala Flax (1991, p. 228):<br />

109<br />

As relações <strong>de</strong> gênero são divisões e atribuições diferenciadas e (por enquanto)<br />

assimétricas <strong>de</strong> traços e capacida<strong>de</strong>s humanas. Por meio das relações <strong>de</strong> gênero, dois<br />

tipos <strong>de</strong> pessoas são criados: hom<strong>em</strong> e mulher. Hom<strong>em</strong> e mulher são apresentados<br />

com categorias exclu<strong>de</strong>ntes. Só se po<strong>de</strong> pertencer a um gênero, nunca ao outro ou a<br />

ambos. O conteúdo real <strong>de</strong> <strong>ser</strong> hom<strong>em</strong> e a rigi<strong>de</strong>z das próprias categorias são<br />

altamente variáveis <strong>de</strong> acordo com épocas e culturas...<br />

A formulação da autora salienta que as relações <strong>de</strong> gênero consignam-se como<br />

relações <strong>de</strong> dominação, uma vez que estas são <strong>de</strong>finidas e conduzidas mais comumente pelo<br />

hom<strong>em</strong>. De fato, <strong>em</strong> nossa socieda<strong>de</strong>, há um simbolismo <strong>de</strong> gênero que privilegia uma<br />

hierarquização <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que se alimenta na submissão da mulher ao po<strong>de</strong>r masculino, na<br />

distinção entre o âmbito privado e público, razão e <strong>em</strong>oção, objetivida<strong>de</strong> e racionalida<strong>de</strong>,<br />

entre outros recortes.<br />

Isso não significa, entretanto, que os homens também não sejam condicionados pela<br />

normativida<strong>de</strong> presente nas relações <strong>de</strong> gênero. Tanto homens quanto mulheres tornam-se<br />

cativos do gênero, na medida <strong>em</strong> que são obrigados a seguir as normas <strong>de</strong> gênero ditadas pela<br />

socieda<strong>de</strong> e cultura acerca do comportamento masculino ou f<strong>em</strong>inino.<br />

Por outro lado, como ressalta Britto da Motta (1999), se há apenas dois gêneros,<br />

hom<strong>em</strong> e mulher, suas experiências são <strong>de</strong>ss<strong>em</strong>elhantes, visto que estas são influenciadas por<br />

outras categorias, tais como classe social, ida<strong>de</strong> e cor, compondo um mosaico <strong>de</strong> hierarquias<br />

internas cuja dinâmica se transforma segundo o t<strong>em</strong>po e o lugar. Com efeito, Butler (2003, p.<br />

20), ao analisar como os sujeitos e suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s vêm sendo discutidos pelas teorias<br />

f<strong>em</strong>inistas, elabora uma síntese acerca das múltiplas intersecções que engendram a<br />

diferencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero que vale à pena reproduzir:<br />

[...] se alguém ‘é’ mulher, isso não é tudo que tal sujeito é; o termo não é exaustivo,<br />

não porque uma ‘pessoa’ pré-grendrada transcen<strong>de</strong> uma parafernália específica do<br />

seu gênero, mas porque o gênero não é s<strong>em</strong>pre constituído <strong>de</strong> forma coerente e<br />

consistente nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero é intersectado por<br />

modalida<strong>de</strong>s raciais, étnicas, sexuais, regionais e <strong>de</strong> classe das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

discursivamente constituídas. Como resultado, torna-se impossível separar o


110<br />

‘gênero’ das intersecções políticas e culturais através das quais ele é invariavelmente<br />

produzido e mantido.<br />

A formulação <strong>de</strong> Butler rompe com a noção binária <strong>de</strong> masculino/f<strong>em</strong>inino e põe <strong>em</strong><br />

relevo a superposição <strong>de</strong> intersecções que <strong>de</strong>lineiam o fazer das diferenças e interfer<strong>em</strong> no<br />

processo <strong>de</strong> constituição i<strong>de</strong>ntitária dos sujeitos. Ou seja, a autora argumenta que, na<br />

contextura histórica e social, inescapavelmente, o gênero é construído e reelaborado através<br />

do entrecruzamento <strong>de</strong> modalida<strong>de</strong>s raciais, étnicas e <strong>de</strong> classe entre outros eixos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />

presentes no campo social, as quais tanto formam a “i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>” como tornam equivocada a<br />

idéia singular <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> (BUTLER, 2003).<br />

Na mesma linha <strong>de</strong> pensamento, Collins (1998, p. 208), ao também analisar a<br />

intersecção entre os construtos <strong>de</strong> gênero, raça e classe no processo <strong>de</strong> constituição i<strong>de</strong>ntitária<br />

dos sujeitos, assinala que o conceito <strong>de</strong> interseccionalida<strong>de</strong> “[...] oferece um marco<br />

interpretativo para se pensar como as intersecções, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>de</strong> raça e classe, ou raça e<br />

gênero, ou sexualida<strong>de</strong> e classe formam a experiência <strong>de</strong> qualquer grupo através <strong>de</strong> contextos<br />

sociais específicos”. Vale ressaltar, entretanto, a autora alerta para o fato <strong>de</strong> que as camadas<br />

<strong>de</strong> subordinação <strong>de</strong>senham diferentes formas <strong>de</strong> opressão, o que exige um olhar mais atento e<br />

crítico sobre as hierarquias da interseccionalida<strong>de</strong>.<br />

Nesse sentido, Flax (1991) argumenta que as relações <strong>de</strong> gênero são el<strong>em</strong>entos<br />

constitutivos da experiência humana e ressignificam suas várias dimensões. Ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po, a experiência das relações <strong>de</strong> gênero para cada indivíduo e a estrutura <strong>de</strong> gênero como<br />

uma categoria social são <strong>de</strong>terminadas pela valência entre as relações <strong>de</strong> gênero e outras<br />

relações sociais, como as <strong>de</strong> classe e raça, ao que acrescentamos as relações intra e<br />

intergeracionais. Por isso, as relações <strong>de</strong> gênero são processos sociais, marcados pela<br />

instabilida<strong>de</strong> e flui<strong>de</strong>z, mudam no contexto t<strong>em</strong>poral, mas também o extrapolam.<br />

Vidal e Souza (1996), ao refletir sobre a constituição da nacionalida<strong>de</strong> brasileira,<br />

ob<strong>ser</strong>va que classificadores <strong>de</strong> gênero, a <strong>ser</strong>viço da i<strong>de</strong>ologia nacionalista, são utilizados para


a construção e comunicação das <strong>de</strong>mais expressões <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, uma vez que as<br />

diferenças sexuais atuam como marcadores, referenciais inquestionáveis <strong>de</strong> um sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong><br />

diferenças, na medida <strong>em</strong> que o imaginário <strong>de</strong> gênero tece artifícios que naturalizam a<br />

hierarquização entre cidadãos homens e mulheres, o que finda por também essencializar<br />

relações e posições distintas na vida social.<br />

A autora argumenta que as categorias raciais são também <strong>em</strong>pregadas para enunciar e<br />

nomear diferenças. A raça, quando associada ao gênero, contribui para intensificar a crença<br />

no essencialismo e acentuar a hierarquização. Dessa forma, as construções ficcionais da<br />

nacionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> autores como Cassiano Ricardo e Alfredo Ellis Jr., por ex<strong>em</strong>plo, traz<strong>em</strong><br />

códigos <strong>de</strong> gênero e <strong>de</strong> raça, isto é, apresentam um “receituário legível <strong>de</strong> como <strong>de</strong>v<strong>em</strong> <strong>ser</strong><br />

encenadas as condutas cotidianas próprias <strong>de</strong> homens, mulheres, negros, brancos e mestiços”<br />

(VIDAL e SOUZA, 1996, p. 95).<br />

Com efeito, Ribeiro (1998, p. 195), ao refletir sobre o significado da branquitu<strong>de</strong>, b<strong>em</strong><br />

como a persistência <strong>de</strong> privilégios sociais e hierarquização entre as raças, <strong>de</strong>staca que o<br />

entrelaçamento <strong>de</strong>stes aspectos nos leva a pensar sobre as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Para reforçar seu<br />

argumento, a autora cita Piza, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> o seguinte ponto <strong>de</strong> vista:<br />

111<br />

Aos brancos a socieda<strong>de</strong> e a cultura têm conferido o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> se <strong>de</strong>signar ou não<br />

pela cor, <strong>de</strong> oprimir, <strong>de</strong> ignorar, <strong>de</strong> compartilhar, <strong>de</strong> invadir, <strong>de</strong> excluir, <strong>de</strong> construir<br />

o outro como diferente sobre bases i<strong>de</strong>ológicas que vão alterando lentamente no<br />

t<strong>em</strong>po, mas cuja alteração não <strong>de</strong>termina a renúncia branca ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> se<br />

supervalorizar e, simultaneamente, <strong>de</strong>svalorizar o outro.<br />

Ribeiro acrescenta que, <strong>em</strong>bora o exercício <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ocorra <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>scontínua,<br />

continua a <strong>de</strong>terminar posições sociais ocupadas por homens, brancos e negros no que se<br />

refere a espaços <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão política, mas principalmente com relação a <strong>ser</strong><strong>em</strong> ou não sujeitos<br />

<strong>de</strong> suas ações. Os dois referenciais – branquitu<strong>de</strong> e po<strong>de</strong>r – coexist<strong>em</strong> como reafirmação da


junção entre machismo e racismo e reca<strong>em</strong> sobre a vida da população negra. Para as mulheres<br />

afro<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, tornam-se <strong>em</strong>pecilhos para o seu cotidiano e <strong>de</strong>senvolvimento pleno.<br />

Stolke (1991) também consi<strong>de</strong>ra que a raça ultrapassa o fator biológico, pois con<strong>de</strong>nsa<br />

uma conceptualização social, daí porque a orig<strong>em</strong> do racismo não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> encontrada na<br />

raça. As categorias classificatórias são plasmadas pelo contexto sócio-político que lhes<br />

confere significado, isto é, enquanto doutrina político-i<strong>de</strong>ológica, o racismo produz um<br />

anelamento conceitual que neutraliza a distância entre a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s almejada<br />

e a assimetria contida na vida real, obtendo a consensualida<strong>de</strong>, neutralização das<br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais 29 .<br />

Em outros termos, a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, exclusão apoiada no recorte racial é estruturada<br />

histórica e socialmente, a discriminação racial é marcada por um viés i<strong>de</strong>ológico. Por isso,<br />

t<strong>em</strong>-se privilegiado o conceito <strong>de</strong> etnicida<strong>de</strong> ou a expressão “grupo étnico” para <strong>de</strong>signar<br />

pessoas que guardam traços comuns com raízes biológicas. Gálvez (2002, p. 07) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que:<br />

112<br />

O termo ‘etnia’ faz alusão à cultura. Assim, um <strong>de</strong>terminado grupo étnico<br />

compartilha usualmente costumes, linguag<strong>em</strong> e instituições. O grupo étnico se<br />

distingue da acepção racial assim como o gênero se diferencia do sexo. S<strong>em</strong> dúvida,<br />

um grupo étnico politicamente superior po<strong>de</strong> outorgar estereótipos a outro baseado<br />

<strong>em</strong> traços físicos diferenciados. Ele po<strong>de</strong> levá-lo a se transformar <strong>em</strong> minoria <strong>em</strong><br />

uma mesma socieda<strong>de</strong> ou à subordinação econômica e política [tradução minha].<br />

Constata-se que, mesmo entre grupos contíguos, há divergências, ou seja, a realida<strong>de</strong><br />

cotidiana, tanto para mulheres brancas e negras, quanto para homens brancos e negros é<br />

<strong>de</strong>senhada pela diferença. Vale dizer, portanto, que as trajetórias e experiências <strong>de</strong> mulheres<br />

brancas e negras e, <strong>de</strong> homens brancos e negros são marcadas por <strong>de</strong>slocamentos posicionais<br />

e ocupacionais que re<strong>de</strong>senham a própria diferencialida<strong>de</strong>.<br />

Lauretis (1994) <strong>de</strong>fine a experiência como uma constelação <strong>de</strong> efeitos, hábitos,<br />

inclinações, associações e percepções <strong>de</strong> sentido resultantes da interação entre o universo<br />

interior dos indivíduos e o mundo exterior, ou seja, a experiência é o processo pelo qual a<br />

29 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Stolke (1991); Guillaumin (1994).


subjetivida<strong>de</strong> é elaborada para todos os sujeitos sociais. A experiência refaz-se<br />

permanent<strong>em</strong>ente para cada indivíduo, mediante seu envolvimento na realida<strong>de</strong> social, a qual<br />

compreen<strong>de</strong>, principalmente para as mulheres, as relações <strong>de</strong> gênero.<br />

Por essa razão, Saffioti (1992) enten<strong>de</strong> que não se po<strong>de</strong> ignorar a experiência <strong>de</strong><br />

gênero, já que para homens e mulheres a vivência dos fatos <strong>de</strong> seu cotidiano é <strong>de</strong>senhada pela<br />

diferencialida<strong>de</strong>, ainda que pertençam a uma mesma classe social, ida<strong>de</strong>/geração ou etnia, isto<br />

é, suas escolhas, interesses, oportunida<strong>de</strong>s, trajetórias e vivências guardam diferenças.<br />

Contudo, Scott (1999, p. 27) adverte que:<br />

113<br />

Tornar visível a experiência <strong>de</strong> um grupo diferente expõe a existência <strong>de</strong><br />

mecanismos repressores, mas não seu funcionamento interno ou sua lógica: sab<strong>em</strong>os<br />

que a diferença existe, mas não a enten<strong>de</strong>mos como constituída relacionalmente.<br />

Para tanto, precisamos dar conta dos processos históricos que, através do discurso,<br />

posicionam sujeitos e produz<strong>em</strong> suas experiências. Não são os indivíduos que têm<br />

experiência, mas os sujeitos é que são constituídos através da experiência. A<br />

experiência <strong>de</strong> acordo com esta <strong>de</strong>finição, torna-se, não a orig<strong>em</strong> <strong>de</strong> nossa<br />

explanação, não a evidência autorizada (porque vista ou sentida) que fundamenta o<br />

conhecimento, mas sim aquilo que buscamos explicar, aquilo sobre o qual se produz<br />

conhecimento. Pensar a experiência <strong>de</strong>ssa forma é historicizá-la, assim como as<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s que ela produz.<br />

A autora consi<strong>de</strong>ra que não basta dar visibilida<strong>de</strong> à experiência <strong>de</strong> grupos diferentes e<br />

i<strong>de</strong>ntificar o discurso heg<strong>em</strong>ônico que <strong>de</strong>lineia limites e possibilida<strong>de</strong>s, consentimentos e<br />

interdições. É preciso ir além, captar a lógica que rege esse discurso, isto é, situá-lo no<br />

contexto histórico <strong>em</strong> que é elaborado para conseguirmos apreen<strong>de</strong>r como as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

posicionais dos indivíduos e suas experiências são constituídas. Em outras palavras, se a<br />

história dos sujeitos é resgatada através da experiência, a linguag<strong>em</strong> se inscreve como campo<br />

estruturante <strong>de</strong>ssa história. Contudo, a experiência é uma interpretação construída pelos<br />

sujeitos e, por isso mesmo, <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> interpretada.<br />

Por outro lado, <strong>de</strong>ve-se <strong>de</strong>stacar que as mulheres, enquanto estiveram encerradas na<br />

vida privada, foram ignoradas pela narrativa histórica tradicional e suas experiências, porque<br />

<strong>de</strong>sapercebidas, quedaram invisíveis. Nesse sentido, Perrot (1989, p. 121) indaga: “Como


tornar visível uma história das mulheres se a nós foi negado até muito recent<strong>em</strong>ente o acesso<br />

ao espaço público, lugar por excelência da história?”<br />

No Brasil, somente na década <strong>de</strong> 1960 foram <strong>de</strong>senvolvidos estudos sobre a mulher<br />

que investigavam também seus maridos, intensificados nas décadas seguintes, particularmente<br />

no final da década <strong>de</strong> 1980, quando a perspectiva f<strong>em</strong>inista impulsionou no meio acadêmico<br />

os estudos <strong>de</strong> gênero que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, buscam reunir dados sobre a diversida<strong>de</strong> das<br />

experiências f<strong>em</strong>ininas. Vale ressaltar que os estudos envolvendo raça e gênero passaram a<br />

<strong>ser</strong> difundidos apenas na década seguinte, o que contribui para que as experiências <strong>de</strong><br />

mulheres não brancas permanecess<strong>em</strong> ignoradas por mais t<strong>em</strong>po 30 . Contudo, a textura da<br />

socieda<strong>de</strong> brasileira cont<strong>em</strong>porânea t<strong>em</strong> instigado o <strong>de</strong>scentramento do olhar <strong>de</strong><br />

pesquisadores, que vêm adotando como fulcro analítico gênero, geração e etnia, entre outras<br />

pertinências sociais, objetivando <strong>de</strong>svelar os <strong>em</strong>aranhados <strong>de</strong> sentido que dão corporeida<strong>de</strong> à<br />

experiência <strong>de</strong> mulheres e homens. Senão, vejamos:<br />

Macêdo (1998), ao regatar a experiência <strong>de</strong> 20 mulheres resi<strong>de</strong>ntes no Subúrbio<br />

Ferroviário da capital baiana, ob<strong>ser</strong>va que esta é marcada por <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais, raciais e<br />

<strong>de</strong> gênero. Há uma predominância <strong>de</strong> pardas e negras, cujas rendas mensais familiares, <strong>em</strong><br />

torno <strong>de</strong> 3 salários mínimos, contrastam com as rendas mensais familiares da minoria branca,<br />

estimadas <strong>em</strong> 5 salários mínimos. Entretanto, há similitu<strong>de</strong>s, gran<strong>de</strong> parte é casada e, <strong>em</strong>bora<br />

muitas tenham trabalhado quando <strong>solteira</strong>s como <strong>em</strong>pregadas domésticas ou realizando<br />

ativida<strong>de</strong>s informais como lavag<strong>em</strong> <strong>de</strong> roupas, costuras, produção <strong>de</strong> alimentos entre outras, o<br />

casamento as encerra no espaço doméstico.<br />

Segundo a autora, o casamento e a maternida<strong>de</strong>, ainda que almejados pelas mulheres<br />

investigadas, <strong>de</strong>si<strong>de</strong>alizam-se quando, submetidas à “tutela” do marido, aos revezes do<br />

cotidiano familiar e precárias condições <strong>de</strong> vida, perceb<strong>em</strong>-se enredadas a um “<strong>de</strong>stino” que<br />

30 Azerêdo (1994), ao teorizar sobre gênero e relações raciais, <strong>de</strong>staca que os estudos <strong>de</strong> gênero no Brasil<br />

privilegiaram, na década <strong>de</strong> 1990, as mulheres brancas das classes médias.<br />

114


lhes tolhe a liberda<strong>de</strong>, eclipsa sonhos e projetos <strong>de</strong> autonomização. Contudo, seu engajamento<br />

<strong>em</strong> ativida<strong>de</strong>s pastorais e comunitárias vinculadas à Igreja Católica produz revolvimentos nas<br />

experiências cotidianas, pois se <strong>de</strong>param com um novo contexto interativo e tec<strong>em</strong> relações<br />

que ultrapassam o ambiente familiar. Ou seja, o encontro entre dimensões privadas e públicas<br />

permite às mulheres alargar<strong>em</strong> suas referências <strong>de</strong> mundo, recuperar<strong>em</strong> sua auto-estima,<br />

ensaiar<strong>em</strong> estratégias <strong>de</strong> enfrentamento ao autoritarismo dos maridos, na medida <strong>em</strong> que<br />

esculp<strong>em</strong> uma nova i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e se <strong>de</strong>scobr<strong>em</strong> como pessoas, sujeitos, agentes 31 .<br />

Já Sar<strong>de</strong>nberg (1998), ao revisitar as m<strong>em</strong>órias <strong>de</strong> ex-operárias e ex-operários <strong>de</strong> uma<br />

fábrica <strong>de</strong> tecidos <strong>de</strong>sativada, no bairro <strong>de</strong> Plataforma, subúrbio baiano, constata que, quando<br />

contrastadas <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> geração e, particularmente, <strong>de</strong> gênero, suas m<strong>em</strong>órias reelaboram<br />

experiências operárias distintas <strong>de</strong> mulheres e homens no espaço da fábrica, do bairro e,<br />

principalmente, no que se refere à participação marginal nos movimentos.<br />

Por essa razão, a m<strong>em</strong>ória f<strong>em</strong>inina pre<strong>ser</strong>va apenas as imagens da violência que<br />

atingia a comunida<strong>de</strong> durante as greves, sobretudo aquelas praticadas contra a mulher. Daí<br />

porque, quando suas l<strong>em</strong>branças retornam à fábrica, resgatam <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes ocorridos<br />

no trabalho, as condições insalubres e a rígida disciplina a que eram submetidas e <strong>de</strong>spotismo<br />

imperante na relação dos supervisores com seus subordinados. A m<strong>em</strong>ória masculina, ao<br />

contrário, evoca r<strong>em</strong>iniscências sobre os movimentos grevistas s<strong>em</strong> hesitações, precisa a<br />

época e data <strong>em</strong> que ocorreram as lutas e seus objetivos, ora tramando uma ruptura com o<br />

discurso heg<strong>em</strong>ônico que atribuía aos comunistas a culpa pelas greves, ora realçando a<br />

dominação paternalista, cujas concessões e benesses findam por neutralizar o caráter<br />

revolucionário <strong>de</strong>ssas lutas. Entretanto, é essa mesma fábrica que imprime consensualida<strong>de</strong><br />

nas narrativas <strong>de</strong> mulheres e homens, ao <strong>de</strong>sfiar<strong>em</strong> suas nostálgicas l<strong>em</strong>branças <strong>de</strong> uma<br />

31 Ver, também, Alves (1999), que investiga sobre os modos <strong>de</strong> vida e experiência <strong>de</strong> mulheres feirantes <strong>em</strong><br />

Riachão – SE.<br />

115


“i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> perdida”, <strong>em</strong> que a vida na vila operária, no bairro e o trabalho na fábrica davam a<br />

exata dimensão <strong>de</strong> pertencimento a uma comunida<strong>de</strong> 32 .<br />

Por sua vez, Britto da Motta (2000), ao refletir sobre a experiência <strong>de</strong> mulheres a partir<br />

<strong>de</strong> uma perspectiva geracional, ob<strong>ser</strong>va que a maioria das velhas atuais, como teve alijada sua<br />

vida profissional e, sua vida social foi mais regulada que a dos homens da sua geração, v<strong>em</strong><br />

experimentando uma maior satisfação e plenitu<strong>de</strong>. A velhice, para além do t<strong>em</strong>po<br />

cronológico, conspira para a consolidação da experiência, liberta-as das obrigações, do<br />

controle societário/reprodutivo e, acena-lhes com uma liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero, que lhes permite<br />

ensaiar novos modos <strong>de</strong> vida. Entretanto, a liberda<strong>de</strong> geracional e, acima <strong>de</strong> tudo existencial,<br />

adquire um caráter marginal, na medida <strong>em</strong> que transitam livr<strong>em</strong>ente porque já não são<br />

bonitas, atraentes, n<strong>em</strong> reproduz<strong>em</strong>, isto é, há pouco a <strong>ser</strong> pre<strong>ser</strong>vado. Debert, citado pela<br />

autora, argumenta que para as idosas das classes médias, segmento que é mais influenciado<br />

pelo i<strong>de</strong>ário f<strong>em</strong>inista, o envelhecimento é percebido como uma experiência <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência<br />

que se faz inédita, quando comparada à <strong>de</strong> suas mães e avós, para as quais a velhice trazia<br />

consigo a marca da infelicida<strong>de</strong>. A<strong>de</strong>mais, isso não significa que, entre as viúvas, divorciadas<br />

e ou <strong>solteira</strong>s, a liberda<strong>de</strong> e in<strong>de</strong>pendência recém-conquistadas não sejam, às vezes,<br />

esmaecidas pela ameaça da solidão, uma vez que os homens <strong>de</strong> sua geração prefer<strong>em</strong> se<br />

relacionar com mulheres mais jovens (BRITTO DA MOTTA, 1999).<br />

Britto da Motta (2002) acrescenta que os homens também falam <strong>em</strong> liberda<strong>de</strong>, <strong>em</strong>bora<br />

b<strong>em</strong> menos que as mulheres, imprimindo outros significados. Os idosos das classes médias<br />

associam liberda<strong>de</strong> geracional a in<strong>de</strong>pendência ou estabilida<strong>de</strong> financeira, enquanto os idosos<br />

mais pobres <strong>de</strong>senham-na a partir <strong>de</strong> um conteúdo classista, isto é, a velhice é t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> não<br />

trabalhar, <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso e lazer.<br />

32 Ver, também, Neves (1994), que recupera as experiências e m<strong>em</strong>órias, o cotidiano fabril das trabalhadoras <strong>de</strong><br />

Contag<strong>em</strong> (MG), nas décadas <strong>de</strong> 1950 e 1960.<br />

116


Já Lisboa (2003), ao percorrer a trajetória <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> mulheres migrantes <strong>em</strong><br />

comunida<strong>de</strong>s da periferia <strong>de</strong> Florianópolis – SC, ob<strong>ser</strong>va que o êxodo é impulsionado por sua<br />

condição <strong>de</strong> gênero. Viúvas ou sozinhas arribam para a capital <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong> que<br />

possa assumir o papel <strong>de</strong> provedor da unida<strong>de</strong> doméstica, mas há aquelas da segunda geração,<br />

que procuram reencontrar a mãe e estreitar o vínculo afetivo, pois como chefes <strong>de</strong> família,<br />

vê<strong>em</strong> a figura materna como apoio, porto seguro. Já para os homens, a vinda para a capital<br />

está relacionada à sua condição <strong>de</strong> classe e étnica, isto é, são sub<strong>em</strong>pregados, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong><br />

índios, miscigenados que i<strong>de</strong>alizam a migração como estratégia <strong>de</strong> sobrevivência do grupo<br />

familiar.<br />

Tal qual nas m<strong>em</strong>órias <strong>de</strong> operárias (os) resgatadas por Sar<strong>de</strong>nberg (1998), aqui os<br />

relatos <strong>de</strong> mulheres e homens se mostram distintos. Os homens <strong>de</strong>satam as l<strong>em</strong>branças e<br />

revisitam sua trajetória ocupacional, isto é, <strong>de</strong>stec<strong>em</strong> a m<strong>em</strong>ória a partir da relação com o<br />

trabalho e preocupação com a sustentabilida<strong>de</strong> econômica do grupo familiar. Já as mulheres,<br />

percorr<strong>em</strong> a via do sentimento, dão vazão à <strong>em</strong>oção, às lágrimas e à sauda<strong>de</strong> para<br />

recuperar<strong>em</strong> sua trajetória <strong>de</strong> vida. E se os homens optam por se <strong>de</strong>finir<strong>em</strong> como<br />

“brasileiros”, renegando sua orig<strong>em</strong> índia, as mulheres, ao contrário, auto<strong>de</strong>nominam-se<br />

“bugras” ou “<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> índio”. Dessa forma, se para os homens a <strong>de</strong>scendência índia<br />

adquire uma conotação negativa, pois <strong>ser</strong>ia, segundo a autora, i<strong>de</strong>ntificar-se com a mãe, ou<br />

seja, com a cultura dos vencidos, para as mulheres <strong>ser</strong> bugra é consagrar, reafirmar a<br />

resistência à opressão, à vida Severina, o que evi<strong>de</strong>ncia a sua i<strong>de</strong>ntificação com a mãe.<br />

Lisboa (2003, p. 174) <strong>de</strong>staca também o papel exercido pelas re<strong>de</strong>s sociais (família,<br />

vizinhos, mas principalmente Ong’s na reelaboração <strong>de</strong> suas histórias <strong>de</strong> vida. O engajamento<br />

e participação no espaço público revolv<strong>em</strong> o impon<strong>de</strong>rável, as mulheres se transformam <strong>em</strong><br />

sujeitos <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>stino, refaz<strong>em</strong>-se e, tramam o seu <strong>em</strong>po<strong>de</strong>ramento social, psicológico e<br />

117


político, por meio da luta pela casa própria, ou como assinala a autora, as mulheres “ao<br />

construír<strong>em</strong> suas casas, foram construídas por elas!”.<br />

Em outros termos, a migração produz mudanças <strong>em</strong> suas vidas e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, as<br />

mulheres já não são as mesmas, suas singularida<strong>de</strong>s se renovam e se reencontram nos<br />

princípios da solidarieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>terminação e resistência. A discriminação <strong>de</strong> gênero, classe e<br />

etnia que as sujeita finda por libertá-las, na medida <strong>em</strong> que, <strong>em</strong>penhadas na luta pela casa<br />

própria, reafirmam sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mulher bugra e elaboram uma nova subjetivida<strong>de</strong>.<br />

Já Heilborn (2004), ao investigar as mudanças produzidas nos padrões <strong>de</strong><br />

conjugalida<strong>de</strong> 33 pelo contexto igualitário, entre casais da classe média carioca, com ida<strong>de</strong><br />

entre 36 e 46 anos, <strong>de</strong>staca que o casal igualitário 34 rejeita as diferenças estatutárias entre os<br />

gêneros e as regras sociais, abraçando um novo mo<strong>de</strong>lo conjugal, ancorado na mutualida<strong>de</strong>,<br />

compl<strong>em</strong>entarida<strong>de</strong>, cuja simetria requer permanente atualização. Por essa razão, a autora<br />

enten<strong>de</strong> que: “O gran<strong>de</strong> <strong>em</strong>baraço do casal igualitário é, portanto, estabelecer o equilíbrio<br />

entre a unida<strong>de</strong>, que encapsula os sujeitos, e a pre<strong>ser</strong>vação do senso <strong>de</strong> individualida<strong>de</strong>”<br />

(HEILBORN, 2004, p. 121).<br />

Heilborn registra algumas diferenças entre as parcerias no tocante à orientação sexual:<br />

se os casais heterossexuais consegu<strong>em</strong> atingir uma maior compl<strong>em</strong>entarieda<strong>de</strong>, os pares<br />

f<strong>em</strong>ininos reún<strong>em</strong> maior simetria, enquanto os casais homossexuais permanec<strong>em</strong> <strong>em</strong> uma<br />

posição intermediária. O mo<strong>de</strong>lo do casal mo<strong>de</strong>rno aproxima-se, <strong>em</strong> termos lógicos, do par<br />

lésbico. Por um lado, os gays são guiados para o padrão heterossexual, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> da<br />

polarida<strong>de</strong> ativo/passivo; por outro, como <strong>de</strong>senvolv<strong>em</strong> maior simetria na administração<br />

33 Sobre os novos padrões <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong> das classes médias, ver, também Gol<strong>de</strong>nberg (1991; 2005a; 2005b).<br />

34 Matos (2000), ao contrário <strong>de</strong> Heilborn (2004), argumenta que a afinida<strong>de</strong> eletiva não obe<strong>de</strong>ce<br />

necessariamente à mutualida<strong>de</strong> nas trocas, à homogamia social baseada na sintonia <strong>de</strong> cor, valores, capital<br />

social e financeiro, isto é, há parceiros “não igualitários”, cujas diferenças são reconhecidas pelos casais como<br />

condição para a formação da día<strong>de</strong>, mútuo aprendizado da convivência e enfrentamento <strong>de</strong> obstáculos, <strong>em</strong>bora<br />

reivindiqu<strong>em</strong> a igualda<strong>de</strong> como meta. A autora apresenta ainda outro contraste <strong>em</strong> relação às colocações <strong>de</strong><br />

Heilborn, o fato dos casais ter<strong>em</strong> adotado como critério seletivo a estabilida<strong>de</strong> consensual da relação não<br />

elimina a força das trocas, mas estas <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> <strong>ser</strong> exclusivas, pois não se limitam ao (a) parceiro (a), tanto<br />

homens quanto mulheres recorr<strong>em</strong> a grupos <strong>de</strong> fora – amigos, colegas <strong>de</strong> trabalho, “gueto” etc. – e constro<strong>em</strong><br />

outras esferas <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>/cultura <strong>de</strong> gênero.<br />

118


urocrática do lar do que o casal heterossexual, eles são capturados pelo mo<strong>de</strong>lo do casal<br />

f<strong>em</strong>inino. O par lésbico exacerba aquilo que é preconizado para a conjugalida<strong>de</strong> igualitária,<br />

<strong>em</strong>bora isso reduza a eroticida<strong>de</strong> da relação.<br />

Finalmente, durante meu mestrado (TAVARES, 2002), ao <strong>de</strong>ter-me no cotidiano<br />

amoroso <strong>de</strong> mulheres e homens das classes médias, <strong>em</strong> Aracaju (SE), com faixa etária a partir<br />

dos 30 anos, pu<strong>de</strong> constatar que o universo pesquisado, ainda que apresente indicadores sócio-<br />

econômicos s<strong>em</strong>elhantes, mostra-se diverso <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> ethos e visão <strong>de</strong> mundo. Apesar <strong>de</strong><br />

ensaiar<strong>em</strong> uma nova coreografia amorosa, mulheres e homens representam e viv<strong>em</strong> o amor <strong>de</strong><br />

forma distinta. As mulheres, <strong>em</strong>bora mais afeitas à incorporação <strong>de</strong> novos comportamentos<br />

mo<strong>de</strong>lizadores, permanec<strong>em</strong> cativas do ethos do amor romântico, prevalecendo, portanto, os<br />

padrões tradicionais. Em seus enredos afetivos, avanços e recuos se alternam e, até então,<br />

revelam mais <strong>de</strong>sencontros que encontros, pois ao contrário dos homens, as mulheres não<br />

consegu<strong>em</strong> dissociar o exercício da sexualida<strong>de</strong> da vivência afetiva.<br />

As experiências amorosas distintas <strong>de</strong> mulheres e homens traz<strong>em</strong> a marca do gênero,<br />

mas também são recortadas pelo experimento da condição <strong>de</strong> casadas (os), separadas (os) ou<br />

<strong>solteira</strong>s (os), <strong>em</strong> que a ida<strong>de</strong>/geração vai <strong>de</strong>terminar o fluxo <strong>de</strong> mudanças e continuida<strong>de</strong>s.<br />

Entretanto, suas vivências apresentam analogia, quando guardam a contradição, ambigüida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senhada pelo entrelaçamento entre sist<strong>em</strong>as abstratos recém-adquiridos e aqueles mais<br />

arcaicos que ainda habitam seu imaginário, uma característica <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ática das gerações mais<br />

novas das classes médias, influenciadas pelas profundas transformações na vida social, na<br />

dinâmica familiar e mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong>.<br />

Diante do exposto, ob<strong>ser</strong>va-se que a experiência <strong>de</strong> mulheres e homens é <strong>de</strong>senhada<br />

pela classe social, pela raça/etnia, ida<strong>de</strong>/geração e gênero a que pertenc<strong>em</strong>, b<strong>em</strong> como<br />

orientação sexual e região/localida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> viv<strong>em</strong> entre outras tantas modalida<strong>de</strong>s sociais. Em<br />

outros termos, os signos distintivos <strong>de</strong> classe, raça e gênero, o exercício da sexualida<strong>de</strong>, as<br />

119


formas <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong> e padrões <strong>de</strong> organização doméstico-familiar, quando entrelaçados à<br />

dinâmica das relações intergeracionais e intrageracionais, revelam diferentes elaborações da<br />

experiência, o que sinaliza para caminhos <strong>de</strong> análise variados.<br />

Estas linhas trouxeram a construção do meu objeto <strong>de</strong> estudo – a solteirice, b<strong>em</strong> como<br />

apresentaram consi<strong>de</strong>rações sobre categorias analíticas que, entendo, po<strong>de</strong>m contribuir para a<br />

probl<strong>em</strong>atização da solteirice e <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ste estudo. O próximo capítulo <strong>ser</strong>á<br />

<strong>de</strong>dicado à investigação da solteirice <strong>em</strong> Aracaju e Salvador, <strong>em</strong> que questões teórico-<br />

metodológicas <strong>ser</strong>v<strong>em</strong> <strong>de</strong> aporte para composição <strong>de</strong> um informe etnográfico.<br />

120


3 CAMINHOS E ATALHOS PARA DECIFRAR A SOLTEIRICE EM<br />

ARACAJU E SALVADOR<br />

3.1 NOTAS INICIAIS SOBRE O FAZER ETNOGRÁFICO<br />

Acredito que as particularida<strong>de</strong>s metodológicas que <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> durante o trabalho <strong>de</strong><br />

campo não po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> ignoradas. Elas não só oferec<strong>em</strong> impressões acerca do próprio objeto <strong>de</strong><br />

estudo, como nos conduz<strong>em</strong> ao seu encontro, mas impõ<strong>em</strong> como condição ao pesquisador (a)<br />

uma entrega incondicional, ou seja, “é preciso <strong>de</strong>ixar-se capturar ou ‘per<strong>de</strong>r-se’ pela<br />

experiência <strong>de</strong> campo” (SILVA, 2007, p. 231), <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as aproximações iniciais com possíveis<br />

sujeitos, a interação ou distanciamento estabelecidos entre o (a) pesquisador (a) e informantes<br />

até a elaboração do texto final.<br />

Uma entrevista consiste <strong>em</strong> um encontro <strong>de</strong> duas pessoas que se aproximam uma da<br />

outra ora com passos tímidos e inseguros, ora ágeis e <strong>de</strong>safiadores, até acertar<strong>em</strong> o compasso,<br />

iniciar<strong>em</strong> o diálogo e, aos poucos, trocar<strong>em</strong> confidências. Essa forma <strong>de</strong> comunicação é<br />

atravessada por sentimentos que se suce<strong>de</strong>m, há cautela, <strong>de</strong>safio e <strong>de</strong>scoberta, mas também<br />

tensões, conflitos e dil<strong>em</strong>as, assim como discordâncias e afinida<strong>de</strong>s. O fato é que tanto o<br />

pesquisador quanto o informante “apren<strong>de</strong>m, se aborrec<strong>em</strong>, se divert<strong>em</strong> e o discurso é<br />

modulado por tudo isto” (CARDOSO, 1986, p. 102), <strong>em</strong>bora n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre os resultados da<br />

pesquisa contenham referências sobre o contexto que motivou a escolha e construção do<br />

objeto <strong>de</strong> estudo e, ou <strong>em</strong>oldur<strong>em</strong> os el<strong>em</strong>entos constitutivos da experiência etnográfica 35 ,<br />

pois o (a) pesquisador (a) t<strong>em</strong>e revelar a presença do componente subjetivo na pesquisa <strong>de</strong><br />

campo.<br />

Cardoso (1986) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> o uso da subjetivida<strong>de</strong> como instrumento <strong>de</strong> trabalho, mas<br />

adverte que a relação intersubjetiva não consiste <strong>em</strong> encontro <strong>de</strong> indivíduos autônomos e<br />

auto-suficientes. É uma comunicação simbólica alicerçada <strong>em</strong> processos responsáveis pela<br />

35 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Cordovil (2007), que reflete sobre fatos fortuitos e <strong>de</strong>sconcertos no trabalho <strong>de</strong> campo.<br />

121


criação <strong>de</strong> significados e grupos, a qual se renova <strong>em</strong> um fluxo contínuo. É neste encontro<br />

entre pessoas que se estranham e ensaiam movimentos <strong>de</strong> aproximação, que se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir<br />

sentidos e revelar relações <strong>de</strong>sconhecidas. Entretanto, a prática <strong>de</strong> pesquisa que privilegia este<br />

tipo <strong>de</strong> contato não po<strong>de</strong> prescindir da ob<strong>ser</strong>vação, n<strong>em</strong> da participação. Se a última é<br />

condição para que o contato seja permeado por um misto <strong>de</strong> afeto e razão, a primeira<br />

proporciona a exata medida das coisas. A autora sugere que o pesquisador esteja atento e evite<br />

se <strong>de</strong>slumbrar com a intersubjetivida<strong>de</strong>, caso contrário po<strong>de</strong>rá comprometer os resultados da<br />

pesquisa <strong>em</strong> questão. Para tanto, recomenda que:<br />

122<br />

Ob<strong>ser</strong>var é contar, <strong>de</strong>screver e situar os fatos únicos e os cotidianos, construindo<br />

ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> significação. Este modo <strong>de</strong> ob<strong>ser</strong>var supõe, como vimos, um<br />

investimento do ob<strong>ser</strong>vador na análise <strong>de</strong> seu próprio modo <strong>de</strong> olhar. Para conseguir<br />

esta façanha, s<strong>em</strong> se per<strong>de</strong>r entrando pela psicanálise amadorística, é preciso ancorar<br />

as relações pessoais <strong>em</strong> seus contextos e estudar as condições sociais <strong>de</strong> produção<br />

dos discursos. Do entrevistador e do entrevistado (CARDOSO, 1986, p. 103).<br />

Porém, enquanto Da Matta (1978) nos convida a compor um anthropological blues e<br />

trazer familiarida<strong>de</strong> ao exótico através <strong>de</strong> apreensões cognitivas sobre os diferentes aspectos<br />

do relacionamento humano, pois enten<strong>de</strong> que o hom<strong>em</strong> não consegue se enxergar sozinho e<br />

precisa <strong>de</strong> outro para <strong>ser</strong>vir <strong>de</strong> espelho e <strong>de</strong> guia. Velho (1981, p. 126) respon<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma<br />

provocativa:<br />

O que s<strong>em</strong>pre v<strong>em</strong>os e encontramos po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> familiar mas não é necessariamente<br />

conhecido e o que não v<strong>em</strong>os e encontramos po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> exótico mas, ate certo ponto,<br />

conhecido (grifos do autor).<br />

Isso significa que não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar as pré- construções e esqu<strong>em</strong>as<br />

cognitivos que, apesar <strong>de</strong> inscritos nas coisas e nos cérebros, passam <strong>de</strong>spercebidos e se<br />

naturalizam pela força da repetição. Como ressalta Bourdieu (2001, p. 51), é preciso<br />

<strong>de</strong>senvolver uma objectivação participante, o que não é algo simples, pois exige uma<br />

conversão do olhar. Conforme explica,<br />

[...] requer a ruptura das a<strong>de</strong>rências e das a<strong>de</strong>sões mais profundas e mais<br />

inconscientes, justamente aquelas que, muitas vezes, constitu<strong>em</strong> o ‘interesse’ do<br />

próprio objecto estudado para aquele que o estuda, tudo aquilo que ele menos<br />

preten<strong>de</strong> conhecer na sua relação com o objecto que ele procura conhecer.


Chamo atenção para esse aspecto porque os homens e as mulheres das classes médias<br />

que venho estudando, apesar <strong>de</strong> apresentar<strong>em</strong> pontos convergentes, não possu<strong>em</strong> uma<br />

trajetória única, têm experiências e percepções próprias, posto que sua mobilida<strong>de</strong> e suas<br />

escolhas são confrontadas por um campo <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s cujos contornos são modulados <strong>de</strong><br />

acordo com os papéis sociais que <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penham tanto no espaço público quanto no espaço<br />

privado, mas também são influenciados por <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>s nos sist<strong>em</strong>as simbólicos<br />

forjadas pelo confronto entre valores e crenças tradicionais e mais mo<strong>de</strong>rnas, a<strong>de</strong>são a<br />

códigos plurais que produz<strong>em</strong> insegurança e, ou ambigüida<strong>de</strong> (VELHO, 1985).<br />

Com efeito, Gid<strong>de</strong>ns (2002) pon<strong>de</strong>ra que na vida social mo<strong>de</strong>rna, sob a influência <strong>de</strong><br />

novas formas <strong>de</strong> experiência mediada pela interação entre o local e o global, o processo<br />

constitutivo da auto-i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> t<strong>em</strong> como base a reflexivida<strong>de</strong>. As narrativas biográficas, para<br />

pre<strong>ser</strong>var<strong>em</strong> coerência, são alvo <strong>de</strong> contínuas revisões, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> da varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolhas<br />

filtradas pelos sist<strong>em</strong>as abstratos, daí porque a noção <strong>de</strong> estilo <strong>de</strong> vida ganha um significado<br />

particular, que tanto po<strong>de</strong> indicar acesso diferenciado a formas <strong>de</strong> auto-realização e po<strong>de</strong>r,<br />

quanto po<strong>de</strong> sinalizar rejeição às formas mais padronizadas <strong>de</strong> comportamento e consumo.<br />

Certamente, as diferenças entre mulheres e homens provocam menos tensionamento,<br />

dada a crescente in<strong>ser</strong>ção f<strong>em</strong>inina no mercado <strong>de</strong> trabalho e, ingresso <strong>em</strong> universida<strong>de</strong>s, ou<br />

pelo menos, parec<strong>em</strong> menos visíveis, mas estudos recentes têm reafirmado continuida<strong>de</strong>s. A<br />

esfera doméstica permanece como espaço <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente f<strong>em</strong>inino e, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> algumas<br />

incursões masculinas, as mulheres ainda realizam no âmbito público ativida<strong>de</strong>s co-extensivas<br />

àquelas exercidas na vida privada, além <strong>de</strong> continuar<strong>em</strong> responsáveis pela administração do<br />

lar, cuidado e educação dos filhos e, fortalecimento dos vínculos afetivos entre os m<strong>em</strong>bros<br />

do grupo familiar.<br />

No entanto, tentarei <strong>de</strong>monstrar que uma leitura da realida<strong>de</strong> social envolve outros<br />

recortes, ou seja, a trajetória <strong>de</strong> mulheres e homens é <strong>de</strong>terminada pelo gênero, mas também<br />

123


pela dimensão <strong>de</strong> classe, étnico-racial e geracional e, por isso mesmo, marcada pela<br />

heterogeneida<strong>de</strong>. Parafraseando Durham (1986), não tenho a pretensão <strong>de</strong> esculpir uma<br />

metáfora das classes médias, baseada na investigação <strong>de</strong> um pequeno grupo <strong>de</strong> seus<br />

representantes, ou seja, tentarei me resguardar <strong>de</strong> um reducionismo psicologizante que, ao<br />

olhar um acha que vê o outro, porque são todos iguais.<br />

Por outro lado, sou mulher, <strong>solteira</strong>, pertenço às classes médias e me incluo na mesma<br />

faixa etária e meio social das mulheres e homens que estudo e, certamente, vivi experiências<br />

s<strong>em</strong>elhantes. Em alguns momentos me i<strong>de</strong>ntifiquei com seus relatos e compartilhei <strong>de</strong> pontos<br />

<strong>de</strong> vista, visões <strong>de</strong> mundo, probl<strong>em</strong>as e sentimentos. Apesar <strong>de</strong> nossos encontros episódicos,<br />

suas divagações continuavam comigo no diário <strong>de</strong> campo e na transcrição dos <strong>de</strong>poimentos.<br />

Nas palavras <strong>de</strong> Sal<strong>em</strong> (1978, p. 62), “se ‘invadi’ essas pessoas fui, concomitant<strong>em</strong>ente,<br />

‘invadida’ por elas”.<br />

Por essa razão, para estudar algo tão próximo, tive que ir além daquilo que nos<br />

aproximava, <strong>de</strong> forma a captar a complexida<strong>de</strong> oculta nos relatos dos informantes, que me<br />

pareciam tão familiares (VELHO, 1981). Espero conseguir contrastar intelectual e<br />

<strong>em</strong>ocionalmente as distintas versões apresentadas pelos nativos e, <strong>em</strong>balada pelo compasso<br />

do gênero, rever as interpretações construídas por eles sobre sua solteirice. Para tanto, no<br />

próximo tópico tenho como intenção retraçar a cartografia da solteirice <strong>de</strong>senhada pelos<br />

sujeitos investigados nas cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Aracaju e Salvador, procurando nuançar distâncias e<br />

proximida<strong>de</strong>s relativas aos espaços <strong>de</strong> socialização nos quais transitam as mulheres e homens<br />

<strong>solteiro</strong>s.<br />

124


3.2 PERCORRENDO OS TERRITÓRIOS DA SOLTEIRICE EM ARACAJU<br />

E SALVADOR<br />

Parte importante <strong>de</strong>ste estudo foi mapear os espaços por on<strong>de</strong> transitam as mulheres e<br />

homens <strong>solteiro</strong>s <strong>de</strong> Aracaju e Salvador, percorrer lugares que <strong>em</strong>olduram suas práticas<br />

sociais. Para tanto, segui os passos da solteirice <strong>em</strong> bares, teatros, cin<strong>em</strong>as e Shoppings, a<br />

partir das pistas lançadas pelos entrevistados ao longo <strong>de</strong> suas narrativas biográficas.<br />

Desta forma, procurei rever ambas as cida<strong>de</strong>s sob um novo ângulo – os espaços <strong>de</strong><br />

recreação por on<strong>de</strong> circulam os <strong>solteiro</strong>s, mas s<strong>em</strong> per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista que tais espaços não são<br />

inanimados, eles guardam a pulsação da vida <strong>de</strong>sses sujeitos, ou seja, acolh<strong>em</strong> seus estilos <strong>de</strong><br />

vida e hábitos <strong>de</strong> classe, assim como comportamentos e vivências cotidianas dos afetos, <strong>de</strong><br />

interação ou isolamento, marcações geracionais e <strong>de</strong> gênero.<br />

Todavia, olhar para as paisagens citadinas evocadas pelos entrevistados exigiu<br />

movimentos distintos: Afinal, moro <strong>em</strong> Aracaju, sou <strong>solteira</strong>, freqüento lugares mencionados<br />

pelos sujeitos, assim como evito locais por consi<strong>de</strong>rá-los incompatíveis com minha faixa<br />

etária, gostos e interesses pessoais. Procurei, portanto, libertar o meu olhar da domesticação a<br />

que estava condicionado, captar aspectos que, <strong>de</strong> tão familiares, passavam <strong>de</strong>sapercebidos nos<br />

espaços por on<strong>de</strong> também transito, b<strong>em</strong> como busquei atravessar as fronteiras que me<br />

distanciavam <strong>de</strong> outros lugares e po<strong>de</strong>riam afetar a inteligibilida<strong>de</strong> do meu olhar, isto é, tentei<br />

me <strong>de</strong>svestir <strong>de</strong> resistência ou indiferença para conseguir ultrapassar os limites do que até<br />

então me fora revelado.<br />

Já <strong>em</strong> Salvador, minhas andanças foram marcadas por movimentos <strong>de</strong><br />

reconhecimento, uma vez que não residia na cida<strong>de</strong>. Durante o período <strong>em</strong> que cursei as<br />

disciplinas do Doutorado, viajava exclusivamente para assistir as aulas, o meu circuito se<br />

restringia ao Shopping Iguat<strong>em</strong>i, on<strong>de</strong> almoçava e à Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia on<strong>de</strong> assistia às<br />

125


aulas, para no mesmo dia retornar a Aracaju, o que me impediu <strong>de</strong> formar laços <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong><br />

com as(os) colegas, participar <strong>de</strong> confraternizações ou mesmo circular nos espaços <strong>de</strong><br />

recreação da cida<strong>de</strong>. Decerto, nos dois últimos anos, quando os encontros <strong>de</strong> orientação se<br />

tornaram regulares, dada a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acompanhamento da feitura do trabalho, passei a<br />

prolongar minha estada na cida<strong>de</strong>. Além disso, a pesquisa <strong>em</strong>pírica aconteceu nos finais <strong>de</strong><br />

s<strong>em</strong>ana, ocasião <strong>em</strong> que os entrevistados tinham mais disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po para<br />

prestar<strong>em</strong> seus <strong>de</strong>poimentos.<br />

Entre uma ativida<strong>de</strong> e outra, aventurei-me a dirigir pela cida<strong>de</strong>, percorri la<strong>de</strong>iras, ruas<br />

e bairros, visitei livrarias e museus, assisti a filmes e a peças teatrais, tomei sorvete na Ribeira<br />

e acompanhei o ensaio do Olodum no Pelourinho, <strong>de</strong>gustei o acarajé da “Dinha”, no Largo do<br />

Rio Vermelho e, na companhia <strong>de</strong> familiares e amigos, fui a restaurantes e bares citados pelos<br />

entrevistados. No entanto, o <strong>de</strong>slumbramento pelo novo comandava meu olhar <strong>de</strong> turista<br />

aci<strong>de</strong>ntal, era preciso retornar aos lugares e refazer o percurso <strong>de</strong>sse olhar, ou melhor,<br />

reconhecer tais espaços através das imagens construídas pelos sujeitos investigados,<br />

perscrutar o que até então se fizera invisível, flagrar padronizações e condutas. Em suma,<br />

explorar o território atenta para a complexida<strong>de</strong> que se escon<strong>de</strong> no “como, on<strong>de</strong>, por qu<strong>em</strong>,<br />

por quê e para quê” (SANTOS apud CARDOSO, 2007, p. 40) as pessoas utilizam esses<br />

espaços <strong>de</strong> recreação.<br />

Neste sentido, pu<strong>de</strong> constatar que, tanto <strong>em</strong> Aracaju como <strong>em</strong> Salvador, “todo mundo<br />

se encontra <strong>em</strong> tudo que é canto” 36 , cada segmento social circula por espaços claramente<br />

<strong>de</strong>marcados, ou seja, os entrevistados freqüentam os mesmos lugares. Contudo, enquanto <strong>em</strong><br />

Aracaju todos se conhec<strong>em</strong>, na paisag<strong>em</strong> soteropolitana, apesar do fluxo <strong>de</strong> pessoas que se<br />

cruzam, os corpos e olhares se mantêm ausentes uns dos outros, ou seja, os grupos não<br />

36 Expressão utilizada por um entrevistado <strong>de</strong> Aracaju, durante a pesquisa do Mestrado, para se referir à<br />

<strong>de</strong>limitação espacial a que estão subordinadas as classes médias nessa cida<strong>de</strong> (TAVARES, 2002).<br />

126


interag<strong>em</strong>. Assim, o cenário repetitivo trama a impessoalida<strong>de</strong> e distanciamento, dificulta a<br />

renovação dos círculos <strong>de</strong> convivialida<strong>de</strong> e inibe a confluência entre as pessoas.<br />

Acompanhando as indicações fornecidas pelos entrevistados, pu<strong>de</strong> revisitar os pontos<br />

<strong>de</strong> encontro da categoria social investigada nas diferentes cida<strong>de</strong>s: Em Aracaju, a vida noturna<br />

está concentrada na Orla <strong>de</strong> Atalaia, as mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s, com mais <strong>de</strong> trinta anos,<br />

<strong>de</strong>slocam-se para o Teimon<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> renovam afinida<strong>de</strong>s com a intelectualida<strong>de</strong> local, ao som<br />

<strong>de</strong> bandas <strong>de</strong> jazz e blues, mas também po<strong>de</strong>m assistir clássicos do cin<strong>em</strong>a ou dançar<strong>em</strong> ao<br />

som <strong>de</strong> músicas das décadas <strong>de</strong> 1970 – 1980, na boate anexa. Em Salvador, a vida noturna<br />

converge para o bairro do Rio Vermelho, as mulheres e homens se dirig<strong>em</strong> ao <strong>Pós</strong>-Tudo,<br />

geralmente acompanhadas (os) por um grupo <strong>de</strong> amigas (os), on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>sligam <strong>de</strong> suas<br />

ativida<strong>de</strong>s rotineiras e tec<strong>em</strong> relações episódicas com parceiros (as) ou apenas se ren<strong>de</strong>m a<br />

conversas amenas entre um gole e outro <strong>de</strong> cerveja gelada.<br />

Decerto, a ida constante a esses lugares gera fastio e, habitualmente, mulheres e<br />

homens migram para outras paragens: Em Aracaju, as pessoas se <strong>de</strong>slocam para o Cabala,<br />

on<strong>de</strong> os grupos <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>s se localizam próximo a um ciber café ou nas cercanias do palco,<br />

enquanto os casais e seus acompanhantes permanec<strong>em</strong> próximos à televisão e adiam<br />

conversações até encerrar o capítulo da “novela das oito”. No entanto, após as 23:00 horas, as<br />

palavras não ditas são esquecidas <strong>em</strong> meio à ob<strong>ser</strong>vação dos rodopios <strong>de</strong> um ou outro par na<br />

pista <strong>de</strong> dança improvisada, acompanhamento das músicas populares interpretadas pelos<br />

cantores contratados para entretenimento dos freqüentadores. No bar e restaurante Cabala, da<br />

mesma forma que no Teimon<strong>de</strong>:<br />

127<br />

O chegar e estar adquir<strong>em</strong> proporções <strong>de</strong> um ritual para homens e mulheres<br />

<strong>de</strong>sacompanhadas. As mulheres se dirig<strong>em</strong> às mesas e ficam <strong>em</strong> compasso <strong>de</strong><br />

espera, trocando comentários ou lançando olhares curiosos, ora fugidios ora mais<br />

atentos, aos homens que perfilados no balcão, lançam seu olhar perscrutador sobre o<br />

ambiente, visitando uma ou outra mesa à medida que reconhec<strong>em</strong> alguém ou um<br />

outro olhar curioso e solitário lhes atrai. E nasce então a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mais um<br />

par por alguns minutos, alguns dias ou s<strong>em</strong>pre (TAVARES, 2002, p. 85).


Em Aracaju, a vida noturna começa por volta das 22: 00 horas, uma vez que as<br />

pessoas costumam sair do trabalho e retornar à casa, arrumam-se com esmero e, s<strong>em</strong> pressa,<br />

tomam o caminho da Orla, cuja distância venc<strong>em</strong> rapidamente, mas novos comportamentos<br />

começam a <strong>ser</strong> adotados. Assim como <strong>em</strong> Salvador, as mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s têm<br />

optado por lugares mais <strong>de</strong>scontraídos, para on<strong>de</strong> se dirig<strong>em</strong> <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> encerradas as<br />

ativida<strong>de</strong>s laborativas: Em Aracaju os <strong>solteiro</strong>s iniciam a noite no Boteco do Ferreira, no<br />

Brand’s ou no Bar do Bel, po<strong>de</strong>m prolongar a diversão no Coqueiral, dançar ao som do<br />

reagge e baladas no Etnia, assim como música tecno ou caribenha no Live, “que atrai na sua<br />

maioria pessoas <strong>solteira</strong>s e mais jovens, ainda que sua dimensão geracional atinja somente as<br />

mulheres, caracterizando-se também pelo s<strong>em</strong>elhante ritual <strong>de</strong> chegar e estar” (TAVARES,<br />

2002, p. 85).<br />

Já <strong>em</strong> Salvador, a vida noturna começa e acaba cedo, as pessoas <strong>solteira</strong>s se <strong>de</strong>slocam<br />

após o trabalho para o Boteco do França, o Largo do Acarajé ou a Borracharia, <strong>em</strong>bora<br />

haja qu<strong>em</strong>, Para Começar, prefira interagir sob os acor<strong>de</strong>s do samba. Conforme coloca Júlio,<br />

um dos entrevistados, “as pessoas vão para fazer o que quer<strong>em</strong>, ouvir uma música legal e<br />

interagir, conhecer gente nova”. Porém, se <strong>em</strong> Aracaju os homens chegam aos bares<br />

<strong>de</strong>sacompanhados, pois eles têm a certeza <strong>de</strong> encontrar conhecidos, <strong>em</strong> Salvador isso não<br />

acontece, os homens só costumam sair com um grupo <strong>de</strong> amigos.<br />

Em Aracaju e Salvador, pu<strong>de</strong> ob<strong>ser</strong>var a conversa animada <strong>de</strong> grupos formados por<br />

mulheres e homens que chegam juntos aos bares; olhares que vagueiam e não são<br />

correspondidos, assim como outros tantos que se atra<strong>em</strong> e conduz<strong>em</strong> a formação <strong>de</strong> um par.<br />

No entanto, a aproximação e interação do par acontec<strong>em</strong> <strong>de</strong> forma mais <strong>de</strong>sinibida <strong>em</strong><br />

Salvador, há mutualida<strong>de</strong> no jogo da sedução e os papéis <strong>de</strong> gênero são mais fluidos, ou seja,<br />

as mulheres não <strong>de</strong>sfiam a espera e tomam a iniciativa s<strong>em</strong> acanhamento, o que parece não<br />

inibir os parceiros episódicos, passageiros ou duradouros.<br />

128


Vale <strong>de</strong>stacar outro contraste entre as duas capitais: Ao contrário <strong>de</strong> Aracaju, ob<strong>ser</strong>vei<br />

<strong>em</strong> Salvador grupos <strong>de</strong> mulheres s<strong>em</strong> companhia masculina, que fumam e beb<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>spreocupadamente, aparent<strong>em</strong>ente livres <strong>de</strong> censura 37 , alheias aos olhares interessados dos<br />

homens presentes. Segundo uma das minhas informantes, as mulheres <strong>solteira</strong>s acima <strong>de</strong><br />

trinta e cinco anos, <strong>de</strong>sapontadas com os relacionamentos <strong>de</strong>scartáveis, <strong>de</strong>cidiram evitar a<br />

aproximação masculina e têm formado “Clubes da Luluzinha”. Faz<strong>em</strong> programações <strong>em</strong><br />

grupo, vão a Shoppings e bares, assim como organizam excursões para outras capitais, on<strong>de</strong><br />

assist<strong>em</strong> às peças teatrais e shows musicais que não têm previsão <strong>de</strong> <strong>ser</strong> exibidos <strong>em</strong><br />

Salvador.<br />

Por outro lado, as mulheres e homens <strong>de</strong>dicados aos estudos e expansão profissional,<br />

restring<strong>em</strong> suas saídas a cafés e restaurantes, on<strong>de</strong> confabulam com amigos por um curto<br />

espaço <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po, para logo mais retomar<strong>em</strong> suas ativida<strong>de</strong>s. Dessa forma, escolh<strong>em</strong> o<br />

Austríaco, mas vez por outra optam pelos fast foods do Shopping Barra, enquanto aguardam<br />

a próxima sessão <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a.<br />

Há <strong>de</strong> se ob<strong>ser</strong>var também que, tanto <strong>em</strong> Aracaju quanto <strong>em</strong> Salvador, a geração <strong>de</strong><br />

<strong>solteiro</strong>s na faixa etária <strong>de</strong> trinta a quarenta e três anos se ressente da escassez <strong>de</strong> opções e<br />

consi<strong>de</strong>ra a vida noturna das respectivas cida<strong>de</strong>s s<strong>em</strong> atrativos, <strong>em</strong>bora costum<strong>em</strong> sair<br />

freqüent<strong>em</strong>ente, pois a companhia dos amigos consegue amenizar o tédio experimentado.<br />

Durante o dia, entretanto, as praias revolv<strong>em</strong> a placi<strong>de</strong>z e monotonia por algumas<br />

horas, os <strong>ser</strong>gipanos se <strong>de</strong>slocam para a praia do Sarney, on<strong>de</strong> diferentes gerações <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>s<br />

e casados se irmanam ao som do axé, da batida do caranguejo e algumas cervejas, enquanto<br />

os baianos prefer<strong>em</strong> se dirigir a praias mais distantes como Aleluia, <strong>em</strong>bora possam retornar<br />

ao Farol da Barra para usufruír<strong>em</strong> do Caranguejo <strong>de</strong> Sergipe, t<strong>em</strong>perado com uma cerveja<br />

37 As mulheres <strong>solteira</strong>s e, ou <strong>de</strong>scasadas investigadas na pesquisa do Mestrado, assim como as <strong>solteira</strong>s<br />

aracajuanas que entrevistei neste estudo se queixam da vigilância social <strong>em</strong> relação ao que vest<strong>em</strong>, com qu<strong>em</strong><br />

andam, se fumam ou beb<strong>em</strong> e que lugares freqüentam.<br />

129


gelada e a companhia prazerosa dos amigos e, no caso das mulheres acima dos cinqüenta<br />

anos, irmãos e sobrinhos.<br />

A geração na faixa etária dos cinqüenta anos já não vara madrugadas, tanto as<br />

mulheres quanto os homens prefer<strong>em</strong> assistir peças teatrais, espetáculos <strong>de</strong> dança e musicais,<br />

mas como são exibidos raramente, costumam freqüentar os cin<strong>em</strong>as e livrarias ou se<br />

encontram com amigos para conversar<strong>em</strong> <strong>em</strong> suas próprias residências e, ou restaurantes. Em<br />

Aracaju, dirig<strong>em</strong>-se aos Teatros Tobias Barreto e Atheneu, aos Shoppings Jardins e Rio Mar<br />

e, <strong>em</strong> Salvador, <strong>de</strong>slocam-se para os Teatros Castro Alves e Vila Velha, Shoppings Barra e<br />

Iguat<strong>em</strong>i ou Aliança Francesa, espaços on<strong>de</strong> as mulheres se sent<strong>em</strong> seguras e circulam<br />

sozinhas.<br />

Tanto <strong>em</strong> Aracaju quanto <strong>em</strong> Salvador, encontrei poucas mulheres <strong>de</strong>sacompanhadas<br />

nos cin<strong>em</strong>as e teatros, ao contrário dos homens. Em Salvador, encontrei mulheres que<br />

tomavam chopp nas praças <strong>de</strong> alimentação dos Shoppings, enquanto ob<strong>ser</strong>vavam a<br />

movimentação ao seu redor, comportamento que não i<strong>de</strong>ntifiquei <strong>em</strong> Aracaju. Além disso, as<br />

mulheres e homens entrevistados nas duas capitais, apesar <strong>de</strong> mencionar<strong>em</strong> o hábito <strong>de</strong> saír<strong>em</strong><br />

para almoçar e, ou jantar <strong>em</strong> restaurantes, omitiram o nome dos restaurantes freqüentados, o<br />

que não aconteceu com os bares.<br />

Aracaju e Salvador oferec<strong>em</strong> poucas opções <strong>de</strong> lazer para pessoas acima dos cinqüenta<br />

anos, com um perfil mais intelectualizado e exigente, mas enquanto os homens alegam falta<br />

<strong>de</strong> t<strong>em</strong>po, <strong>de</strong> dinheiro e se concentram na vida profissional, outros se <strong>de</strong>claram boêmios<br />

resistentes, ao passo que as mulheres atribu<strong>em</strong> a redução da vida social à ausência <strong>de</strong> <strong>ser</strong>viços<br />

voltados para um público mais maduro e <strong>solteiro</strong>. E se suas cida<strong>de</strong>s não as acolh<strong>em</strong>, elas<br />

viajam t<strong>em</strong>porariamente para outros países ou centros urbanos mais cosmopolitas.<br />

Ob<strong>ser</strong>va-se, portanto, que os mapas da solteirice variam <strong>de</strong> uma geração para outra,<br />

assim como apresentam traçados <strong>de</strong>siguais entre os gêneros, mas é preciso enten<strong>de</strong>r como e<br />

130


por que isso acontece, não basta apenas percorrer espaços por on<strong>de</strong> os <strong>solteiro</strong>s circulam, é<br />

preciso analisar como ela é pensada e vivenciada por mulheres e homens <strong>em</strong> cada geração.<br />

Por essa razão, no próximo tópico, tenho como intenção refletir sobre os <strong>de</strong>safios enfrentados<br />

para realização do trabalho <strong>de</strong> campo.<br />

3.3 TECENDO A REDE: À PROCURA DE MULHERES E HOMENS SOLTEIROS<br />

EM ARACAJU E SALVADOR<br />

A princípio, pensei que não teria dificulda<strong>de</strong> <strong>em</strong> encontrar mulheres <strong>solteira</strong>s que se<br />

dispusess<strong>em</strong> a participar da pesquisa. Afinal, sou <strong>solteira</strong>, pertenço às classes médias e me<br />

situo na faixa etária que pretendia investigar. Particularmente <strong>em</strong> Aracaju, on<strong>de</strong> resido há<br />

muitos anos e mantenho um círculo <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>s com mulheres <strong>solteira</strong>s com qu<strong>em</strong> trabalho,<br />

freqüento barzinhos ou me encontro eventualmente <strong>em</strong> festas e aniversários <strong>de</strong> conhecidos,<br />

ocasiões <strong>em</strong> que tantas vezes trocamos confidências, falamos <strong>de</strong> encontros e <strong>de</strong>sencontros<br />

amorosos. No caso dos homens, acreditei que haveria mais <strong>em</strong>pecilhos, os meus amigos<br />

<strong>solteiro</strong>s já haviam sido casados ou convivido maritalmente com alguém durante certo t<strong>em</strong>po,<br />

o que os <strong>de</strong>squalificava e, <strong>em</strong>bora me l<strong>em</strong>brasse <strong>de</strong> alguns conhecidos, não tinha qualquer<br />

aproximação com eles e necessitava <strong>de</strong> alguém que intermediasse o nosso primeiro contato.<br />

Comecei então a sondar possíveis sujeitos junto a amigos, familiares, colegas <strong>de</strong><br />

trabalho e alunas (os) que inicialmente se mostraram surpresos e, <strong>em</strong> seguida, divertidos com<br />

a escolha do t<strong>em</strong>a. O que eu pretendia <strong>de</strong>scobrir sobre a solteirice que já não se soubesse?<br />

Entre risos e brinca<strong>de</strong>iras, fazia-se <strong>de</strong> imediato uma alusão às <strong>solteiro</strong>nas, encalhadas, que<br />

ficaram para titias. Ao puxar<strong>em</strong> os fios da m<strong>em</strong>ória, l<strong>em</strong>bravam s<strong>em</strong> muito esforço <strong>de</strong> tias,<br />

amigas, primas, colegas e vizinhas, <strong>em</strong> meio a comentários como “nunca <strong>de</strong>u um beijo”, “vai<br />

levar para São Pedro”, “diz ela que troca óleo toda s<strong>em</strong>ana com um hom<strong>em</strong> casado, mas não<br />

sei”.<br />

131


Com relação aos homens, não houve comentários sarcásticos ou piadas, a solteirice<br />

masculina, apesar <strong>de</strong> incomum, não causava estranhamento, as pessoas apenas tinham<br />

dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> revolver r<strong>em</strong>iniscências que lhes trouxess<strong>em</strong> o nome <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong> <strong>solteiro</strong><br />

que pu<strong>de</strong>sse colaborar com a pesquisa. Às vezes <strong>em</strong> grupo, contavam nos <strong>de</strong>dos os raros<br />

<strong>solteiro</strong>s que conheciam, indagavam umas às outras se correspondia ao perfil <strong>de</strong>sejado. Outras<br />

ligavam para minha residência e indicavam alguém que havia sido esquecido ou<br />

simplesmente passavam o telefone <strong>de</strong> algum amigo, avisando-me que concordara <strong>em</strong><br />

conce<strong>de</strong>r seu <strong>de</strong>poimento.<br />

Vale registrar que, se quando estu<strong>de</strong>i o cotidiano amoroso <strong>de</strong> homens e mulheres<br />

aracajuanas durante o mestrado pu<strong>de</strong> contar com a disponibilida<strong>de</strong> confessional dos sujeitos<br />

investigados, ao abraçar como objeto a solteirice enfrentei o retraimento f<strong>em</strong>inino. Mantive<br />

contato com mulheres que, aparent<strong>em</strong>ente, mostravam-se receptivas, cujo incômodo com a<br />

condição <strong>de</strong> <strong>solteira</strong>s foi <strong>de</strong>nunciado <strong>de</strong> formas distintas: houve qu<strong>em</strong> no horário e dia<br />

combinado para conversarmos <strong>de</strong>sligasse os telefones; uma que <strong>de</strong>smarcou várias vezes o<br />

encontro alegando compromissos inadiáveis; outra que estava s<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po, mas gostaria <strong>de</strong><br />

conhecer o resultado da pesquisa; aquela que sugeriu reunir um grupo <strong>de</strong> amigas “b<strong>em</strong><br />

resolvidas” como ela e entrar <strong>em</strong> contato assim que agendasse o encontro, mas <strong>de</strong>sligou antes<br />

que lhe <strong>de</strong>sse meu telefone e, finalmente, uma que concordou <strong>em</strong> conversar comigo no<br />

trabalho e no dia adoeceu, esquecendo <strong>de</strong> me avisar e, quando nos <strong>de</strong>paramos aci<strong>de</strong>ntalmente<br />

<strong>em</strong> uma reunião, olhou-me assustada, abandonou o prédio e atravessou a praça <strong>em</strong> frente<br />

correndo, enquanto eu olhava estupefata pela janela. Para essas mulheres, portanto, o não-<br />

casamento parecia atestar o vazio afetivo <strong>de</strong> suas vidas.<br />

Decidi esten<strong>de</strong>r a re<strong>de</strong> para as mulheres <strong>solteira</strong>s que entrevistara <strong>em</strong> 1999, para o<br />

mestrado (os <strong>solteiro</strong>s estavam casados), mas apesar <strong>de</strong> concordar<strong>em</strong> que incluísse seus<br />

<strong>de</strong>poimentos anteriores ou fragmentos <strong>de</strong> textos que me enviaram, não se dispu<strong>ser</strong>am a<br />

132


conversar sobre sua solteirice, com a <strong>de</strong>sculpa <strong>de</strong> que eu já conhecia sua história e nada havia<br />

para acrescentar. Entretanto, não se esquivaram <strong>de</strong> buscar novos informantes e, intermediaram<br />

encontros, <strong>de</strong>monstrando maior <strong>em</strong>penho <strong>em</strong> relação aos homens <strong>solteiro</strong>s, o que me leva a<br />

supor que os viam como preten<strong>de</strong>ntes <strong>em</strong> potencial e gostariam <strong>de</strong> saber mais a seu respeito,<br />

ou melhor, as razões pelas quais não se casaram.<br />

As mulheres investigadas compu<strong>ser</strong>am mais um elo da re<strong>de</strong> e, <strong>em</strong> meio a nossa<br />

conversa, l<strong>em</strong>bravam <strong>de</strong> amigas (os) e colegas <strong>de</strong> trabalho também <strong>solteiro</strong>s que talvez<br />

aceitass<strong>em</strong> dar seu test<strong>em</strong>unho. Solícitas, logo que encerravam os <strong>de</strong>poimentos ligavam para<br />

as pessoas e comentavam sobre a pesquisa, procurando convencê-las; às vezes me pediam<br />

para que falasse diretamente com elas e, quando não conseguiam contatá-las, anotavam seus<br />

telefones para que eu tentasse <strong>em</strong> outro momento. Particularmente no caso dos colegas <strong>de</strong><br />

trabalho, explicitavam curiosida<strong>de</strong> acerca da sua solteirice, através <strong>de</strong> verbalizações como<br />

“acho que t<strong>em</strong> uma namorada”, “nunca o vi com nenhuma mulher”, “nas festas s<strong>em</strong>pre vai<br />

sozinho”, o que me leva a supor que também os viam como preten<strong>de</strong>ntes <strong>em</strong> potencial, cujo<br />

<strong>de</strong>poimento revelaria suas reais intenções <strong>em</strong> relação ao casamento.<br />

Ao contrário das mulheres, os homens não se mostraram reticentes ou se recusaram a<br />

conce<strong>de</strong>r informações. Receptivos, no primeiro contato já marcavam a hora e o local <strong>de</strong> nossa<br />

conversa e, caso não estivess<strong>em</strong> disponíveis, anotavam meu telefone para retornar<strong>em</strong> quando<br />

lhes fosse mais conveniente ou combinavam para um dia <strong>em</strong> que estariam com menos<br />

compromissos. Penso que o fato <strong>de</strong> <strong>ser</strong> mulher contribuiu para a sua disponibilida<strong>de</strong> b<strong>em</strong> mais<br />

que o t<strong>em</strong>a da pesquisa, a única referência que tinham era a minha voz, <strong>em</strong>bora alguns<br />

indagass<strong>em</strong> a meus interlocutores, <strong>ser</strong>á que “ela é bonita”? Optaram por conferir<br />

pessoalmente. Contudo, houve aquele que se divertiu com o t<strong>em</strong>a, questionou acerca das<br />

preocupações relativas ao sigilo e anonimato dos informantes, para <strong>em</strong> seguida solicitar que<br />

nos encontráss<strong>em</strong>os na s<strong>em</strong>ana seguinte, quando já teria resolvido o probl<strong>em</strong>a <strong>de</strong> um<br />

133


inventário que vinha lhe tomando muito t<strong>em</strong>po – <strong>de</strong>sculpa usada s<strong>em</strong>pre que preten<strong>de</strong> se<br />

esquivar <strong>de</strong> um compromisso, conforme esclareceu a pessoa que nos aproximou –, mas no<br />

horário combinado não se encontrava <strong>em</strong> casa.<br />

Vale <strong>de</strong>stacar que, diferent<strong>em</strong>ente das mulheres, os homens não indicaram amigos ou<br />

conhecidos <strong>solteiro</strong>s. Os mais velhos afirmavam não se l<strong>em</strong>brar <strong>de</strong> ninguém e, quando o<br />

faziam, perguntavam se o fato <strong>de</strong> esses amigos <strong>ser</strong><strong>em</strong> homossexuais os excluía da pesquisa.<br />

Apesar <strong>de</strong> esclarecer que a escolha dos informantes não estava condicionada à sua orientação<br />

sexual, também não obtive retorno. Os mais jovens comentavam que muitos amigos estavam<br />

casados, mas tentariam convencer os highlan<strong>de</strong>rs, “guerreiros imortais” a conversar<strong>em</strong><br />

comigo. Seria inclusive um pretexto para se encontrar<strong>em</strong> <strong>de</strong>pois e, entre uma cerveja e outra,<br />

discutir<strong>em</strong> suas respostas, o que acabou não acontecendo. Presumo que <strong>em</strong> nosso encontro<br />

episódico, fomos “ficantes” cujas regras não incluíam um compromisso duradouro e, por isso,<br />

seguimos adiante. Além disso, penso que intermediar o encontro <strong>de</strong> um amigo com uma<br />

mulher e lhe pedir para expor sua vida e intimida<strong>de</strong>, imprimia um significado contrastivo à<br />

sua masculinida<strong>de</strong>, ou seja, era “coisa <strong>de</strong> mulher e não <strong>de</strong> hom<strong>em</strong>”.<br />

Em Salvador, conseguir informantes se mostrou ainda mais complicado. A minha re<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> não era tão extensa quanto <strong>em</strong> Aracaju, contava apenas com poucos amigos e<br />

parentes, não residia na cida<strong>de</strong>, para on<strong>de</strong> me <strong>de</strong>slocava uma vez por s<strong>em</strong>ana para assistir as<br />

aulas do doutorado, o que impossibilitava a construção <strong>de</strong> laços mais permanentes com as (os)<br />

colegas <strong>de</strong> classe. Além disso, as pessoas a qu<strong>em</strong> recorri para indicar<strong>em</strong> possíveis informantes<br />

possuíam <strong>em</strong> seu círculo <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>s apenas <strong>solteiro</strong>s ocasionais, que já haviam sido casados<br />

ou convivido durante <strong>de</strong>terminado t<strong>em</strong>po com alguém.<br />

Busquei então outros caminhos, contatei amigos baianos que haviam se mudado para<br />

outros estados e <strong>ser</strong>gipanos que tinham parentes <strong>em</strong> Salvador. Mesmo assim, obter a anuência<br />

dos <strong>solteiro</strong>s não foi fácil, apesar <strong>de</strong> <strong>ser</strong> recomendada por pessoas <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> eles confiavam,<br />

134


eu era uma estranha que ameaçava invadir sua privacida<strong>de</strong>, o que os <strong>de</strong>ixava receosos. O que<br />

eu iria lhes perguntar? O que po<strong>de</strong>riam me dizer? Foram muitas as trocas <strong>de</strong> telefon<strong>em</strong>as e e-<br />

mails, s<strong>em</strong> que conseguisse localizá-los ou convencê-los a dar<strong>em</strong> informações. Ora os<br />

<strong>solteiro</strong>s pareciam ter se exilado da cida<strong>de</strong>, ora escolhiam manter-se <strong>em</strong> silêncio e resguardar-<br />

se <strong>de</strong> qualquer aproximação comigo. Nesses momentos, a solteirice como objeto <strong>de</strong> estudo se<br />

tornou incômoda, por vezes sentia uma sensação <strong>de</strong> fracasso, receio <strong>de</strong> não obter os<br />

<strong>de</strong>poimentos que buscava. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, a resistência <strong>de</strong> mulheres e homens parecia<br />

indicar que assumir a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>solteira</strong>s (os) não era assim tão simples ou natural quanto<br />

eu supunha, inclusive para alguns daqueles (as) que concordaram <strong>em</strong> conversar comigo, pois<br />

enfatizaram que o faziam <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>ser</strong><strong>em</strong> também pesquisadores (as) e saber<strong>em</strong> das<br />

dificulda<strong>de</strong>s para se realizar uma pesquisa.<br />

Vale ressaltar que, após a abordag<strong>em</strong> inicial dos amigos, mantinha contato telefônico<br />

com os possíveis informantes, explicava o objetivo da pesquisa e, após sua concordância,<br />

combinava o local e horário <strong>em</strong> que po<strong>de</strong>ríamos conversar, não s<strong>em</strong> antes esclarecer que<br />

residia <strong>em</strong> Aracaju e viajaria a Salvador apenas para ouvi-los e, portanto, ligaria novamente<br />

na véspera da viag<strong>em</strong> para confirmar nosso encontro. Procurava <strong>de</strong>ixá-los livres para<br />

<strong>de</strong>sistir<strong>em</strong>, caso <strong>de</strong>sejass<strong>em</strong>. Entretanto, houve aqueles que, <strong>em</strong>baraçados, evitaram formular<br />

<strong>de</strong> imediato uma recusa, apelando para subterfúgios ou não comparecendo ao encontro: a<br />

mulher mais velha que <strong>de</strong>clinou com o pretexto <strong>de</strong> que não trabalhava e, por isso, não tinha<br />

nada para contar, s<strong>em</strong> que conseguisse dissuadi-la. Para amenizar, forneceu-me o telefone <strong>de</strong><br />

uma amiga e prometeu persuadir um amigo gay, cujas vidas, segundo ela, eram mais<br />

interessantes que a sua, <strong>de</strong>poimentos que terminaram não acontecendo, pois não consegui<br />

contatá-los. Já uma mulher mais jov<strong>em</strong>, meia hora antes <strong>de</strong> nos encontrarmos <strong>em</strong> seu trabalho,<br />

usou a <strong>de</strong>sculpa <strong>de</strong> que estava doente e, qu<strong>em</strong> sabe, <strong>em</strong> outra ocasião, po<strong>de</strong>ríamos falar sobre<br />

135


o assunto. Suponho que, assim como <strong>em</strong> Aracaju, para essas mulheres verbalizar a<br />

inexistência <strong>de</strong> alguém especial <strong>em</strong> suas vidas era atestar a condição <strong>de</strong> abandono afetivo.<br />

Entre os homens, a reação foi diferente, houve aquele mais jov<strong>em</strong> que marcou <strong>em</strong> uma<br />

sexta-feira à noite, <strong>em</strong> meu apartamento, não apareceu e n<strong>em</strong> <strong>de</strong>u explicações, tratando-me tal<br />

qual virtual namorada, preterida pela costumeira rodada <strong>de</strong> cerveja das sextas com os amigos<br />

após o trabalho – hábito confirmado pela pessoa que o indicou –; outro mais velho, que<br />

concordou <strong>em</strong> dar seu <strong>de</strong>poimento, mas quando liguei para pedir referências do en<strong>de</strong>reço<br />

recuou e, <strong>de</strong> forma ríspida e categórica, informou que estava com pressa, ia viajar e não tinha<br />

t<strong>em</strong>po para conversa, <strong>de</strong>sligando <strong>em</strong> seguida. Penso que tanto para um quanto para outro<br />

discutir sua solteirice <strong>ser</strong>ia falar a troco <strong>de</strong> nada sobre algo irrelevante para eles.<br />

Por outro lado, suponho que o fato dos homens não refletir<strong>em</strong> sobre sua solteirice e<br />

<strong>de</strong>dicar<strong>em</strong>-se a <strong>de</strong>sfrutá-la s<strong>em</strong> preocupação tornou-os receptivos à pesquisa, <strong>em</strong>bora tenha<br />

havido aqueles cuja motivação foi <strong>de</strong>spertada pela curiosida<strong>de</strong> <strong>em</strong> saber que abordag<strong>em</strong> daria<br />

ao t<strong>em</strong>a, consi<strong>de</strong>rado por eles também irrelevante. De uma forma ou <strong>de</strong> outra, suspeito que<br />

pon<strong>de</strong>raram se minhas intenções eram fabricadas pela romanticida<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina, camufladas<br />

pelo viés científico. Será que eu não estaria usando a pesquisa para achar um príncipe<br />

encantado? 38 O certo é que, enquanto conquistava a atenção masculina, as mulheres<br />

permaneciam ocultas, não conseguia localizá-las.<br />

Por ex<strong>em</strong>plo, viajei para me encontrar com uma mulher e, ao chegar a sua residência,<br />

<strong>de</strong>scobri que convivera com o ex-companheiro por onze anos e tinham um filho, portanto, não<br />

correspondia ao perfil <strong>de</strong>sejado. O inusitado da situação levou-a a chamar a mãe e a tia para<br />

ajudá-la a l<strong>em</strong>brar <strong>de</strong> alguma <strong>solteiro</strong>na. Quando a tia se aproximou, minha informante<br />

38 Tal opinião provavelmente é compartilhada por algumas mulheres. Quando iniciei a pesquisa, uma das<br />

<strong>solteira</strong>s com qu<strong>em</strong> investiguei o cotidiano amoroso e atuou como interlocutora nesta pesquisa me presenteou<br />

com o livro eu@teamo.com.br – o amor nos t<strong>em</strong>pos da internet (WIERZCHOWSKI e PIRES, 1999), cuja<br />

<strong>de</strong>dicatória assim dizia: “Este é para incentivar o que você <strong>de</strong>ve intensificar – não ficar na virtual, tornando sua<br />

pesquisa real. E que <strong>de</strong>ssa vez você também seja o ‘sujeito’ da pesquisa, ou melhor, que no seu investigar você<br />

acabe encontrando o sujeito <strong>de</strong>ste obscuro objeto do <strong>de</strong>sejo não virtual, mas do amor real”.<br />

136


perguntou se conhecia alguma mulher <strong>solteira</strong>, virg<strong>em</strong>, com mais <strong>de</strong> 30 anos e ela, surpresa,<br />

prontamente apontou para uma amiga, com cerca <strong>de</strong> 60 anos, que me acompanhara e<br />

exclamou: Ela! Em meio a nossas risadas, mãe e tia traziam à baila nomes <strong>de</strong> pessoas muito<br />

jovens, já casadas ou mortas. Para elas, a solteirice incluía a inexistência <strong>de</strong> uma vida sexual,<br />

fato que <strong>de</strong>termina a extinção das <strong>solteira</strong>s nos dias atuais. No entanto, prestativas, fizeram-<br />

me conversar com uma <strong>em</strong>pregada doméstica <strong>de</strong> parentes, <strong>em</strong>bora tenha explicado que meu<br />

estudo era voltado para as classes médias e também sugeriram sua filha, mas l<strong>em</strong>braram que o<br />

fato <strong>de</strong> <strong>ser</strong> lésbica justificava sua solteirice. Finalmente, recordaram <strong>de</strong> duas irmãs que<br />

moravam no apartamento vizinho, interfonaram s<strong>em</strong> sucesso, apesar <strong>de</strong> alertar<strong>em</strong> que eram<br />

“meio doidas” e “estranhas”, pois viviam para os estudos e a carreira, o que afastava a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> casamento. Enfim, anotaram meus telefones, mas não ligaram, talvez por<br />

também me achar<strong>em</strong> “meio doida” e “estranha” por escolher tal t<strong>em</strong>a.<br />

Decidi então arriscar outro caminho, procurei uma ex-colega com a qual encontrava<br />

ocasionalmente <strong>em</strong> eventos acadêmicos, ocasiões <strong>em</strong> que, movidas pela <strong>em</strong>patia e afinida<strong>de</strong><br />

entre nós, aproveitávamos para conversar sobre nossas inquietações e projetos. Apesar <strong>de</strong> se<br />

surpreen<strong>de</strong>r com meu telefon<strong>em</strong>a, foi receptiva como s<strong>em</strong>pre e acionou <strong>de</strong> imediato suas<br />

amigas. A amiza<strong>de</strong> e confiança que <strong>de</strong>positavam <strong>em</strong> minha interlocutora teceram a re<strong>de</strong> que<br />

nos aproximou. Ao contrário <strong>de</strong> outras informantes, essas mulheres me trataram s<strong>em</strong> re<strong>ser</strong>vas,<br />

nossa conversa transcorreu <strong>de</strong> forma tranqüila, uma vez que não me viam como uma estranha<br />

que pretendia roubar seus segredos. Afinal, tínhamos uma amiga <strong>em</strong> comum, então aquele era<br />

um encontro informal, <strong>em</strong> que duas mulheres <strong>de</strong>scobriam possíveis afinida<strong>de</strong>s, interesses<br />

mútuos, discutiam suas experiências e, porque éramos ambas <strong>solteira</strong>s, nada mais natural que<br />

falar das venturas e <strong>de</strong>sventuras da solteirice. Pela primeira vez durante a fase <strong>de</strong> composição<br />

da amostra, uma mulher se ofereceu espontaneamente para conversar comigo. Além disso,<br />

minha interlocutora me re<strong>ser</strong>vava ainda outra surpresa, um hom<strong>em</strong> que, movido pela<br />

137


curiosida<strong>de</strong>, concordou <strong>em</strong> me receber, mas com a intenção <strong>de</strong> investigar as razões para<br />

alguém <strong>de</strong>dicar uma tese à solteirice, algo tão comum e s<strong>em</strong> importância nos dias atuais. Sua<br />

perspicácia e argúcia <strong>de</strong>ram-me a certeza <strong>de</strong> que, finalmente, completara a re<strong>de</strong>, encontrara os<br />

sujeitos da pesquisa.<br />

3.2 APONTAMENTOS SOBRE AS ENTREVISTAS<br />

Para realização das entrevistas, privilegiei as histórias <strong>de</strong> vida como instrumental<br />

técnico, por enten<strong>de</strong>r que possibilitam ao analista captar a dicotomização entre tradição e<br />

mudança, na medida <strong>em</strong> que reún<strong>em</strong> o estoque <strong>de</strong> conhecimentos e experiências dos<br />

informantes. A partir <strong>de</strong> um roteiro aberto, previamente elaborado, trouxe indagações acerca<br />

<strong>de</strong> sua infância, adolescência, iniciação sexual, relações familiares, amores, o não-casamento,<br />

como conceb<strong>em</strong> a solteirice f<strong>em</strong>inina e masculina, possíveis pressões sociais, ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

lazer e entretenimento preferidas, escolha da profissão, projetos futuros no âmbito pessoal e<br />

profissional, entre outros questionamentos.<br />

Os encontros foram realizados <strong>em</strong> dias, horários e lugares distintos, <strong>de</strong> acordo com a<br />

conveniência dos entrevistados: visitei a residência <strong>de</strong> alguns após o trabalho, <strong>em</strong> dias <strong>de</strong><br />

folga ou finais <strong>de</strong> s<strong>em</strong>ana; sentamo-nos <strong>em</strong> mesas <strong>de</strong> leitura <strong>de</strong> livrarias dos shoppings,<br />

enquanto clientes, ao perceber<strong>em</strong> o gravador, lançavam olhares curiosos e fingiam procurar<br />

um livro na estante mais próxima, na tentativa <strong>de</strong> ouvir o que falávamos, o mesmo<br />

acontecendo <strong>em</strong> cafeterias ou restaurantes, on<strong>de</strong> os funcionários pareciam intrigados com<br />

nossa presença, mas <strong>em</strong> nenhum dos casos fomos interpelados e, talvez supondo que se<br />

tratava <strong>de</strong> uma reportag<strong>em</strong> jornalística, ob<strong>ser</strong>vavam-nos atentamente, na expectativa <strong>de</strong><br />

reconhecer<strong>em</strong> alguma celebrida<strong>de</strong>.<br />

Encontrei mulheres e homens mais seguros e <strong>de</strong>sinibidos, começavam a falar antes<br />

mesmo <strong>de</strong> eu acionar o gravador; outros mais retraídos, indagavam sobre o que dizer,<br />

138


aguardavam minhas perguntas e questionavam todo o t<strong>em</strong>po se suas respostas estavam sendo<br />

satisfatórias. Houve qu<strong>em</strong> concluísse o <strong>de</strong>poimento e, após <strong>de</strong>sligado o gravador, revolvesse<br />

fatos não aclarados ou mencionados anteriormente, mas também reprisasse situações e<br />

opiniões, algumas vezes indagando se outros (as) <strong>solteiro</strong>s (as) compartilhavam suas idéias.<br />

Vale <strong>de</strong>stacar que, inadvertidamente, três gravações não foram registradas, <strong>de</strong> uma mulher<br />

<strong>de</strong>vido a <strong>de</strong>feito no aparelho e, <strong>de</strong> dois homens que, <strong>em</strong>bora familiarizados com seu<br />

manuseio, por ansieda<strong>de</strong> ou nervosismo, preferiram segurar o gravador durante seu<br />

test<strong>em</strong>unho e, enquanto um apertou a tecla do pause, outro colocou para passar a fita, <strong>em</strong> vez<br />

<strong>de</strong> gravar. Porém, forneceram dados supl<strong>em</strong>entares que incorporei ao estudo, através das<br />

anotações registradas no diário <strong>de</strong> campo.<br />

As mulheres que me receberam <strong>em</strong> sua residência mostravam-me os recantos<br />

preferidos, falavam minuciosamente <strong>de</strong> reformas que fizeram ou pretendiam realizar,<br />

mostravam-me fotos, <strong>ser</strong>viam-me lanche ou se <strong>de</strong>sculpavam por ter<strong>em</strong> se esquecido <strong>de</strong><br />

oferecê-lo; as que moravam na casa dos pais ressaltavam o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> adquirir um imóvel<br />

próprio e se mudar<strong>em</strong> o mais breve possível, <strong>em</strong>bora outras tenham afirmado que não<br />

preten<strong>de</strong>m sair da residência da família, <strong>em</strong>bora haja eventualmente conflitos. Aquelas com<br />

qu<strong>em</strong> conversei nos espaços do shopping indicavam locais mais tranqüilos e, caso me<br />

atrasasse durante uma entrevista e outra, aguardavam pacient<strong>em</strong>ente ou dispunham-se a<br />

efetuar algum pagamento, olhar alguma vitrine, enquanto eu conversava com outras mulheres,<br />

não s<strong>em</strong> antes conferir<strong>em</strong> se era alguém conhecido.<br />

Visitei quatro homens <strong>em</strong> suas residências. As entrevistas aconteceram na varanda,<br />

sala <strong>de</strong> estar ou gabinete dos apartamentos, espaços <strong>de</strong> socialização ou <strong>de</strong> trabalho que,<br />

<strong>de</strong>liberadamente, resguardavam sua privacida<strong>de</strong>. Dois <strong>de</strong>les ressaltaram a sua <strong>de</strong>sorganização<br />

no tocante à arrumação do ambiente, um porque estivera lendo o jornal antes <strong>de</strong> sair para me<br />

encontrar <strong>em</strong> uma praça nas cercanias, mas <strong>de</strong>vido à chuva tiv<strong>em</strong>os que nos <strong>de</strong>slocar para lá,<br />

139


ou seja, não esperava me receber <strong>em</strong> casa; e outro porque não consegue manter nada<br />

arrumado, <strong>de</strong>ixa roupas, objetos espalhados pelo apartamento, s<strong>em</strong> que isso o incomo<strong>de</strong>, uma<br />

das razões pelas quais acredita <strong>ser</strong> difícil alguém conviver com ele. Houve também aquele que<br />

foi entrevistado na varanda da casa dos pais, com qu<strong>em</strong> mora, enquanto a mãe e irmãos<br />

entravam e saiam, <strong>de</strong>monstrando curiosida<strong>de</strong> <strong>em</strong> saber qu<strong>em</strong> eu era e o que fazia ali. Dois<br />

homens preferiram conversar comigo <strong>em</strong> shoppings, na praça <strong>de</strong> alimentação <strong>em</strong> um horário<br />

pouco freqüentado, o que evitou test<strong>em</strong>unhas e também me manteve à parte <strong>de</strong> seu refúgio<br />

doméstico; outro, cauteloso, encontrou-se comigo <strong>em</strong> uma livraria, on<strong>de</strong> chegou<br />

acompanhado pela sobrinha, a qu<strong>em</strong> fui apresentada, mas não ficou conosco, preferiu<br />

aguardar nas proximida<strong>de</strong>s, retornando duas horas <strong>de</strong>pois, quando já concluíramos a<br />

entrevista.<br />

Um dos homens protagonizou um episódio singular. Após a entrevista, sugeriu<br />

invertermos os papéis, indagando se eu estava envolvida afetivamente com alguém, se tinha<br />

algo contra relações casuais ou fora convidada por outros informantes a conhecer a casa <strong>de</strong><br />

um <strong>solteiro</strong>, ao que respondi <strong>de</strong> forma genérica, ressaltando que, por acaso, entrevistara<br />

homens e mulheres <strong>em</strong> suas residências, ma também <strong>em</strong> livrarias, cafés ou <strong>em</strong> seu trabalho. O<br />

local não tinha importância e sim, o conteúdo, profundida<strong>de</strong> que imprimiam às informações<br />

fornecidas.<br />

Certamente, não ignorava o fato <strong>de</strong> que para os homens entrevistados era uma<br />

pesquisadora sexuada e, ao indagar sobre sua vida sexual po<strong>de</strong>ria suscitar a interpretação<br />

equivocada <strong>de</strong> que minha pesquisa talvez fosse uma estratégia alternativa <strong>de</strong> sedução, a qual<br />

os liberava para sinalizar<strong>em</strong> algum tipo <strong>de</strong> insinuação sexual 39 , ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixá-los inibidos para <strong>de</strong>snudar<strong>em</strong> sua intimida<strong>de</strong> comigo. Entretanto, acredito que<br />

meu percurso anterior pelo cotidiano amoroso das classes médias me ajudou a permanecer<br />

39 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Machado (2007), sobre a associação entre pesquisa e relação sexual, b<strong>em</strong> como insinuações<br />

dos informantes quando abordados por uma pesquisadora sobre t<strong>em</strong>as sexuais.<br />

140


tranqüila nos momentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconcerto, provocados por insinuações sexuais ou confrontos<br />

<strong>em</strong> relação ao t<strong>em</strong>a escolhido, quando o informante tentava me <strong>de</strong>sestabilizar.<br />

Contudo, não fui <strong>de</strong> todo sincera, confesso que quando concluí a pesquisa <strong>de</strong> campo,<br />

durante algum t<strong>em</strong>po evitei freqüentar shoppings, local on<strong>de</strong> passei horas seguidas ouvindo<br />

seus <strong>de</strong>poimentos, às vezes me <strong>de</strong>slocava <strong>de</strong> um para outro s<strong>em</strong> qualquer intervalo para<br />

realizar as entrevistas, outras tantas levei para casa o barulho ensur<strong>de</strong>cedor e a impessoalida<strong>de</strong><br />

do ambiente. Certamente engor<strong>de</strong>i alguns gramas com as xícaras <strong>de</strong> café que tomei e lanches<br />

<strong>de</strong>gustados, rapidamente, <strong>em</strong> meio às conversas.<br />

O fato da investigação se concentrar na vida pessoal dos informantes, <strong>de</strong>vassar sua<br />

intimida<strong>de</strong> e afetos, fez com que mulheres e homens adotass<strong>em</strong> comportamentos<br />

diferenciados durante a entrevista. As primeiras protagonizaram momentos <strong>de</strong> <strong>em</strong>oção,<br />

permeados ora por lágrimas furtivas e pausas prolongadas, ora manifestações <strong>de</strong> nostalgia,<br />

sauda<strong>de</strong> ou arrependimento, mas também <strong>de</strong> contentamento e segurança <strong>em</strong> relação às suas<br />

escolhas pessoais e profissionais, <strong>em</strong>bora algumas vezes solicitass<strong>em</strong> minha opinião e, outras<br />

tantas, indagass<strong>em</strong> se já havia passado por <strong>de</strong>terminadas situações. Os homens, mais contidos,<br />

procuravam racionalizar seus sentimentos, revestir suas revelações <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong>, <strong>em</strong>bora<br />

seguros ao falar<strong>em</strong> sobre seus projetos profissionais, <strong>de</strong>monstravam vulnerabilida<strong>de</strong> ao<br />

confessar<strong>em</strong> segredos íntimos <strong>em</strong> relação à sua vida amorosa, arrependimento ou medo <strong>de</strong> um<br />

envolvimento afetivo mais duradouro.<br />

As entrevistas tiveram duração <strong>de</strong> uma a três horas, foram gravadas e transcritas por<br />

mim, com a intenção <strong>de</strong> evitar que pessoas alheias tivess<strong>em</strong> acesso aos dados e,<br />

inadvertidamente, reconhecess<strong>em</strong> algum informante. Afinal, como colocou o sujeito <strong>de</strong> uma<br />

pesquisa realizada anteriormente, Aracaju é uma “cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> todo mundo se encontra <strong>em</strong><br />

tudo que é canto” e, não tinha nenhum motivo para pensar que <strong>em</strong> Salvador pu<strong>de</strong>sse <strong>ser</strong><br />

diferente. Com efeito, tanto as mulheres quanto os homens verbalizaram repetidas vezes<br />

141


preocupação com relação ao anonimato e sigilo das informações, com receio <strong>de</strong> <strong>ser</strong><strong>em</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificados ou expor<strong>em</strong> parceiros (as), inclusive ressaltando o compromisso assumido por<br />

nós no termo <strong>de</strong> consentimento, apesar <strong>de</strong> haver exceções, ou seja, aqueles (elas) que tinham<br />

falado a amigos sobre a pesquisa e contado que dariam seu <strong>de</strong>poimento. Contudo, preferi<br />

adotar codinomes, omitir as cida<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> nasceram ou bairros on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong>m e, na medida do<br />

possível, suprimir <strong>de</strong>talhes que possam revelar sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Em resumo, foram realizadas<br />

vinte e seis entrevistas com mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s das classes médias <strong>de</strong> Aracaju e<br />

Salvador.<br />

3.3.3 ÁLBUM FOTOGRÁFICO: RETRATO EM 3X4 DAS SOLTEIRAS E DOS<br />

SOLTEIROS ESTUDADOS<br />

Os sujeitos investigados têm entre 33 e 67 anos, há um maior contingente <strong>de</strong> mulheres<br />

a partir <strong>de</strong> 50 anos, enquanto entre os homens predomina a faixa etária <strong>de</strong> 30 até 40 anos 40 .<br />

São assistentes sociais, psicólogos, arquitetos, engenheiros, jornalistas, fisioterapeutas,<br />

sociólogos, pedagogos, historiadores, biólogos. Apenas dois informantes não possu<strong>em</strong> nível<br />

superior, um porque iniciou vários cursos e abandonou até <strong>de</strong>scobrir Letras, que está prestes a<br />

concluir; outro que trancou o curso <strong>de</strong> Filosofia para estudar dança e atualmente <strong>de</strong>dica-se às<br />

artes plásticas. A maioria realizou cursos <strong>de</strong> pós-<strong>graduação</strong>, especialização, mestrado e, ou<br />

doutorado e trabalham como professores universitários, terapeutas, funcionários públicos ou<br />

autônomos.<br />

Os informantes possu<strong>em</strong> rendas diferenciadas, mas sua posição <strong>de</strong> classe não é<br />

<strong>de</strong>finida apenas pela renda, já que a in<strong>ser</strong>ção <strong>de</strong> classe tanto ocorre através da família <strong>de</strong><br />

orig<strong>em</strong> quanto pela ascensão profissional, ou seja, n<strong>em</strong> todos se <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> como oriundos <strong>de</strong><br />

40 A eleição da faixa etária, a partir dos 30 anos, não ocorreu por acaso, levei <strong>em</strong> conta o fato <strong>de</strong> que, a partir<br />

<strong>de</strong>ssa ida<strong>de</strong>, as chances das mulheres diminu<strong>em</strong> no mercado matrimonial. A minha escolha metodológica<br />

preten<strong>de</strong>u traçar um comparativo entre as percepções e vivências da solteirice <strong>em</strong> diferentes faixas etárias e<br />

gerações <strong>de</strong> mulheres e homens.<br />

142


famílias das classes médias. Para uns, a mobilida<strong>de</strong> social foi alcançada através do estudo e<br />

possibilida<strong>de</strong>s oferecidas pela profissão, uma vez que os pais eram trabalhadores não-<br />

qualificados, tinham baixo po<strong>de</strong>r aquisitivo e pouco estudo; para outros o padrão <strong>de</strong> posses foi<br />

reduzido pela morte do pai ou separação do casal, isto é, pela perda do provedor econômico<br />

do grupo familiar, enquanto para alguns a família <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> já lhes assegurava a posição <strong>de</strong><br />

classe, <strong>de</strong>vido ao padrão <strong>de</strong> posses dos pais. Contudo, sua auto-representação como m<strong>em</strong>bros<br />

das classes médias é construída através da priorida<strong>de</strong> conferida à aquisição <strong>de</strong> um imóvel ou<br />

carro próprio, investimento <strong>em</strong> educação e cultura, conquistas profissionais, lugares que<br />

freqüentam, viagens que realizam ao exterior e projetos <strong>de</strong> vida no âmbito profissional,<br />

afetivo, cultural e social.<br />

Em virtu<strong>de</strong> da formação universitária e profissional, seus <strong>de</strong>poimentos procuram<br />

evi<strong>de</strong>nciar refinamento, o gosto por música e literatura, filmes <strong>de</strong> arte, discos, leitura <strong>de</strong><br />

jornais e revistas, espetáculos musicais, <strong>de</strong> dança e peças teatrais. Com relação à literatura,<br />

prefer<strong>em</strong> escritores nacionais e latino-americanos, costumam ler romances, autobiografias e,<br />

ou livros sobre política, espiritualida<strong>de</strong> ou auto-ajuda. Para <strong>de</strong>finir<strong>em</strong> o estilo literário, é<br />

comum mencionar<strong>em</strong> tanto autores preferidos quanto autores que se recusam a ler, <strong>em</strong>bora<br />

haja aqueles que só lê<strong>em</strong> livros técnicos, específicos <strong>de</strong> sua área <strong>de</strong> trabalho e, outros tantos<br />

que afirmam gostar <strong>de</strong> ler, mas não consegu<strong>em</strong> citar livros ou autores que apreciam. Com<br />

relação à música, a maioria cita nomes <strong>de</strong> compositores da música popular brasileira, outros<br />

se <strong>de</strong>leitam também com a bossa nova, o samba e o reggae, alguns poucos ouv<strong>em</strong> música<br />

clássica, blues ou jazz e quase todos renegam o pago<strong>de</strong>, axé music e forró eletrônico.<br />

Para alguns, os filmes <strong>de</strong> arte ganham relevo, citam diretores, rel<strong>em</strong>bram enredos, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que repudiam o cin<strong>em</strong>a americano, tido como comercial. Se entre os<br />

homens mais jovens o gênero <strong>de</strong> suspense e comédias têm mais <strong>de</strong>staque, para as mulheres os<br />

dramas românticos atravessam as gerações. No tocante às revistas comerciais, homens e<br />

143


mulheres têm interesses s<strong>em</strong>elhantes, percorr<strong>em</strong> as páginas das mesmas publicações, <strong>em</strong>bora<br />

as últimas também se dirijam à banca mais próxima <strong>em</strong> busca das novida<strong>de</strong>s exibidas nas<br />

chamadas “revistas f<strong>em</strong>ininas”, enquanto os homens percorr<strong>em</strong> virtualmente o mostruário <strong>de</strong><br />

belda<strong>de</strong>s oferecido pelas “revistas masculinas”.<br />

A Internet é citada por alguns informantes como fonte <strong>de</strong> pesquisa, utilizada como<br />

ferramenta <strong>de</strong> comunicação através do MSN ou <strong>ser</strong>ve como espaço para que manifest<strong>em</strong> sua<br />

i<strong>de</strong>ntificação com as comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interesses expostas no Orkut. Com relação aos<br />

programas televisivos, a preferência recai sobre os canais fechados, que lhes confer<strong>em</strong><br />

exclusivida<strong>de</strong> no acesso a <strong>ser</strong>iados, documentários e filmes e evi<strong>de</strong>nciam a sua condição <strong>de</strong><br />

telespectadores mais exigentes. Finalmente, vale <strong>de</strong>stacar que poucos informantes faz<strong>em</strong><br />

referência a peças teatrais e espetáculos <strong>de</strong> dança ou musicais e peças teatrais, <strong>em</strong>bora alguns<br />

coloqu<strong>em</strong> como justificativa a falta <strong>de</strong> opções culturais <strong>de</strong> Aracaju e Salvador.<br />

Muitos <strong>de</strong>sses entrevistados <strong>de</strong>stinam parte <strong>de</strong> seus recursos para a realização <strong>de</strong><br />

viagens, alguns já foram mais <strong>de</strong> uma vez ao exterior, outros já residiram <strong>em</strong> diferentes países<br />

por <strong>de</strong>terminado t<strong>em</strong>po e outros tantos preten<strong>de</strong>m fazê-lo, através <strong>de</strong> intercâmbio cultural ou<br />

para realizar cursos <strong>de</strong> pós-<strong>graduação</strong> 41 . D<strong>em</strong>onstram também interesse <strong>em</strong> conhecer ou rever<br />

outras capitais, recantos mais pitorescos do país, s<strong>em</strong>pre na companhia <strong>de</strong> familiares e, ou<br />

amigas (os). Entre seus projetos, as viagens ganham centralida<strong>de</strong> e, por isso, abdicam <strong>de</strong><br />

outros prazeres, para po<strong>de</strong>r<strong>em</strong> arcar com as <strong>de</strong>spesas. Certamente, há aqueles (as) que<br />

acumulam capital para adquirir<strong>em</strong> um imóvel ou carro próprio, uns poucos que herdaram bens<br />

da família <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> e po<strong>de</strong>m priorizar gastos com cursos e outros que usam parte <strong>de</strong> seus<br />

recursos econômicos <strong>em</strong> <strong>de</strong>gustações gastronômicas e etílicas <strong>em</strong> shoppings, restaurantes e<br />

bares locais com amigos (as) e familiares.<br />

41 Heilborn (2004) l<strong>em</strong>bra que o acesso a cursos <strong>de</strong> pós-<strong>graduação</strong> no exterior já não é exclusivo da elite, <strong>em</strong>bora<br />

permaneça como sinal <strong>de</strong> distinção, ou seja, po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> usados como símbolo <strong>de</strong> status.<br />

144


Conforme ob<strong>ser</strong>va Velho (2000), as classes médias reún<strong>em</strong> características do viés<br />

psicologizante das i<strong>de</strong>ologias individualistas. Meus “nativos” não são diferentes, persegu<strong>em</strong> o<br />

autoconhecimento através da psicanálise e, ou soluções alternativas, faz<strong>em</strong> ioga, dança,<br />

meditação, homeopatia, além <strong>de</strong> ler<strong>em</strong> livros voltados para a espiritualida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> auto-<br />

ajuda 42 , como maneira <strong>de</strong> enfrentar<strong>em</strong> os dil<strong>em</strong>as existenciais, incertezas e conflitos<br />

interiores. Mesmo qu<strong>em</strong> nunca se submeteu a terapia, pontua as reflexões sobre sua trajetória<br />

<strong>de</strong> vida com expressões psicologizantes. Há, entretanto, aqueles que repudiam os métodos<br />

psicoterápicos e buscam conforto na religião, farol que os guia nos momentos <strong>de</strong> medo e dor,<br />

mas também atua como referência moral, isto é, oferece-lhe os preceitos normativos nos quais<br />

balizam suas condutas.<br />

Seus <strong>de</strong>poimentos faz<strong>em</strong> referência constante à família <strong>de</strong> pertencimento, cuja<br />

experiência cotidiana <strong>ser</strong>ve <strong>de</strong> parâmetro para explicar<strong>em</strong> suas trajetórias <strong>de</strong> vida e<br />

justificar<strong>em</strong> suas escolhas afetivas. Ora referendam ora negam o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> casamento dos pais,<br />

isto é, enquanto uns verbalizam o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> se casar e constituir sua própria família, outros<br />

são contra o matrimônio e se recusam a ter filhos. Em outras palavras, os informantes<br />

ensaiam com a família os momentos iniciais da elaboração <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social,<br />

principiam a aprendizag<strong>em</strong> acerca <strong>de</strong> valores e costumes que imprim<strong>em</strong> marcas <strong>em</strong> sua vida<br />

adulta e se manifestam sob a via da negação ou aceitação, mas também através da tentativa <strong>de</strong><br />

conciliação entre passado e presente, tradição e mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

Finalmente, vale <strong>de</strong>stacar que dois informantes, ao longo da entrevista, confessaram<br />

que tinham um filho, o primeiro com uma ex-namorada e o segundo, com uma mulher com<br />

qu<strong>em</strong> teve um encontro episódico. Contudo, ambos afirmam o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> constituir uma<br />

família, ter esposa e filhos, ou seja, não conceb<strong>em</strong> o filho que é fruto <strong>de</strong> uma relação fora dos<br />

42 Conforme Gid<strong>de</strong>ns (2002, p.183-184), os livros <strong>de</strong> auto-ajuda propõ<strong>em</strong> uma auto-terapia, mas adverte, quando<br />

essas obras “são colocadas no mercado como teor<strong>em</strong>as pré-<strong>em</strong>pacotados sobre como ‘seguir <strong>em</strong> frente’ na<br />

vida, são aprisionadas no próprio processo a que nominalmente se opõ<strong>em</strong>”. Em outras palavras, a<br />

mercantilização do consumo homogeneíza, massifica os leitores quando transforma a auto-realização <strong>em</strong><br />

produto <strong>em</strong>balado e comercializado <strong>de</strong> acordo com os critérios do mercado.<br />

145


padrões normativos como sua família, <strong>em</strong>bora convivam com ele e afirm<strong>em</strong> amá-lo. Por sua<br />

vez, uma das mulheres comentou durante o <strong>de</strong>poimento que convivera por três meses com um<br />

namorado, mas se <strong>de</strong>finiu como <strong>solteira</strong>, uma vez que não houve t<strong>em</strong>po para <strong>ser</strong><strong>em</strong><br />

reconhecidos socialmente como um casal, pois pouquíssimas pessoas sabiam do “inci<strong>de</strong>nte”,<br />

termo utilizado para encerrar o assunto, só abordado quando <strong>de</strong>sliguei o gravador. O fato é<br />

que se percebiam tão <strong>solteiro</strong>s quanto os <strong>de</strong>mais informantes e é assim que pretendo nomeá-<br />

los.<br />

146


Nome Sexo Ida<strong>de</strong> Cida<strong>de</strong> Ocupação Filhos<br />

Ana F<strong>em</strong>inino 62 Aracaju Funcionária pública<br />

aposentada<br />

SÍNTESE DOS DADOS PESSOAIS<br />

Orientação<br />

Sexual<br />

Cor<br />

Mora com<br />

qu<strong>em</strong><br />

Escolarida<strong>de</strong><br />

- Heterossexual Branca Só Superior<br />

completo<br />

Beatriz F<strong>em</strong>inino 62 Salvador Funcionária pública - Heterossexual Branca Só<br />

Superior<br />

completo<br />

Clara F<strong>em</strong>inino 49 Aracaju Professora universitária - Heterossexual Negra Com a mãe Superior<br />

completo<br />

Débora F<strong>em</strong>inino 57 Aracaju Produtora <strong>de</strong> eventos - Heterossexual Branca Com a mãe e Superior<br />

<strong>de</strong>s<strong>em</strong>pregada<br />

irmãs<br />

completo<br />

Eva F<strong>em</strong>inino 35 Salvador Funcionária pública - Heterossexual Negra Com a mãe Superior<br />

completo<br />

Flora F<strong>em</strong>inino 43 Salvador Professora universitária - Heterossexual Branca Só Superior<br />

completo<br />

Gina F<strong>em</strong>inino 36 Aracaju Professora universitária - Heterossexual Branca Com a mãe e<br />

irmão<br />

Superior<br />

completo<br />

Helena F<strong>em</strong>inino 50 Salvador Funcionária pública - Heterossexual Branca Com a mãe Superior<br />

completo<br />

Indira F<strong>em</strong>inino 67 Salvador Funcionária pública - Heterossexual Branca Só Superior<br />

completo<br />

Jandira F<strong>em</strong>inino 53 Aracaju Funcionária pública<br />

Heterossexual Branca Só Superior<br />

completo<br />

Lúcia F<strong>em</strong>inino 50 Aracaju Funcionária pública - Heterossexual Branca Com os pais Superior<br />

completo<br />

Mabel F<strong>em</strong>inino 50 Salvador Funcionária pública - Heterossexual Branca Com os pais Superior<br />

completo<br />

Nelma F<strong>em</strong>inino 58 Salvador Funcionária pública - Heterossexual Branca Com a mãe Superior<br />

completo<br />

Local <strong>de</strong><br />

Nascimento<br />

Aracaju<br />

Interior da Bahia<br />

Salvador<br />

Interior da Bahia<br />

Salvador<br />

Salvador<br />

Interior <strong>de</strong><br />

Pernambuco<br />

Salvador<br />

Outro País<br />

Interior <strong>de</strong> Sergipe<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

Interior <strong>de</strong> Sergipe<br />

Interior da Bahia


Nome Sexo Ida<strong>de</strong> Cida<strong>de</strong> Ocupação Filhos Orientação Sexual Cor<br />

Mora com<br />

qu<strong>em</strong><br />

Escolarida<strong>de</strong> Local <strong>de</strong> Nascimento<br />

Abílio Masculino 55 Aracaju Micro<strong>em</strong>presário - Heterossexual Branco Só Superior completo Aracaju<br />

Bernardo Masculino 56 Salvador Profissional liberal - Homossexual Branco Só Superior completo Salvador<br />

Camilo Masculino 52 Salvador Artista plástico - Heterossexual Branco Com os pais Superior incompleto<br />

Salvador<br />

Dario Masculino 43 Aracaju Funcionário Público - Heterossexual Branco Com a irmã Superior completo Interior <strong>de</strong> Sergipe<br />

Edson Masculino 44 Salvador Funcionário público - Heterossexual Branco Só Superior completo Salvador<br />

Flávio Masculino 38 Aracaju Professor universitário 1 Heterossexual Branco Só Superior completo Interior <strong>de</strong> Sergipe<br />

Gustavo Masculino 41 Salvador Funcionário público - Heterossexual Branco Só Superior completo Salvador<br />

Hel<strong>de</strong>r Masculino 37 Aracaju Funcionário público - Heterossexual Branco Só Superior completo Aracaju<br />

Ivan Masculino 33 Salvador Profissional liberal 1 Heterossexual Branco Com as irmãs Superior completo Interior da Bahia<br />

Júlio Masculino 40 Salvador Professor universitário - Heterossexual Branco Só Superior completo Aracaju<br />

Lauro Masculino 35 Aracaju Professor universitário - Heterossexual Branco Só Superior completo Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

Miguel Masculino 33 Aracaju Professor - Heterossexual Branco Com os pais Superior incompleto Aracaju<br />

Nelson Masculino 36 Salvador Professor universitário - Heterossexual Branco Só Superior completo Salvador<br />

Obs: Os nomes dos entrevistados são ficcionais e foram escolhidos aleatoriamente, levando-se <strong>em</strong> conta apenas a or<strong>de</strong>m alfabética, com a intenção <strong>de</strong> pre<strong>ser</strong>var seu<br />

anonimato.<br />

148


4 A CARTOGRAFIA DA SOLTEIRICE<br />

4.1 A APRENDIZAGEM DOS AFETOS<br />

A trajetória <strong>de</strong> vida das mulheres, sua percepção <strong>de</strong> mundo, aprendizag<strong>em</strong> dos afetos e<br />

do prazer, possibilida<strong>de</strong>s e limites, conquistas e perdas são estabelecidas no grupo familiar,<br />

on<strong>de</strong> pai e mãe atuam como mo<strong>de</strong>lo, referência das relações entre os sexos, ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

<strong>em</strong> que balizam suas escolhas e/ou resistências, <strong>de</strong>sejos, sonhos e ambições no tocante à<br />

dimensão afetiva e profissional.<br />

Para a mulher nascida nas décadas <strong>de</strong> 1940 e 1950 43 , o pai é percebido como<br />

“rígido” 44 , “severo”, “durão”, aquele que mantém as <strong>em</strong>oções sob forte controle, impõe<br />

barreiras e cerceia liberda<strong>de</strong>s. A diversão era regrada e a convivência entre rapazes e moças<br />

submetida aos olhares vigilantes dos adultos. “Os t<strong>em</strong>pos eram outros” (Ana), na<br />

adolescência, a garota ainda brincava <strong>de</strong> “boneca”, “não podia viajar” e ficava “presa <strong>em</strong><br />

casa”, só saia com os irmãos. Algumas estudavam <strong>em</strong> escolas f<strong>em</strong>ininas, on<strong>de</strong> aprendiam<br />

regras <strong>de</strong> comportamento, boas maneiras e mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> conduta condizentes ao papel <strong>de</strong><br />

esposa, mãe, dona <strong>de</strong> casa, artes e ofícios do b<strong>em</strong> receber e <strong>ser</strong>vir, enquanto sonhavam com o<br />

príncipe encantado que as tornaria mulher, “era aquela história <strong>de</strong> esperar marido, apren<strong>de</strong>r<br />

costura, cozinha, esses cursinhos assim”.<br />

A mãe, <strong>de</strong> forma “doce”, “carinhosa”, exercitava a “maternag<strong>em</strong>”, era “dona <strong>de</strong> casa”<br />

que cuidava do lar, e se preocupava com o b<strong>em</strong>-estar do marido e dos filhos. Era ela também<br />

a responsável pela reprodução da assimetria <strong>de</strong> papéis e padrões duais <strong>de</strong> comportamento<br />

entre as moças e os rapazes, através <strong>de</strong> seus amorosos conselhos, que caso não foss<strong>em</strong><br />

atendidos, exigiam a interferência paterna, sob a via da repressão. Assim, mesmo com a perda<br />

43 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Bassanezi (1996; 2000); Fáveri (1999).<br />

44 As palavras aspeadas são extraídas dos <strong>de</strong>poimentos das mulheres e homens investigados.<br />

149


da mãe, a irmã mais velha herdava o seu papel e se tornava a “mãezona atual” (Ana),<br />

acolhendo seus rebentos postiços.<br />

Com efeito, ob<strong>ser</strong>va-se que Ana, porque per<strong>de</strong>u a mãe ainda criança, <strong>em</strong>bora tenha<br />

experimentado uma educação dissociada da “repressão”, foi impelida pelas circunstâncias a<br />

silenciar a dor e amadurecer precoc<strong>em</strong>ente; transformar-se <strong>em</strong> uma pequena mulherzinha para<br />

cuidar dos irmãos mais novos, apesar <strong>de</strong> ir morar com a avó e uma tia <strong>solteira</strong>, que se<br />

tornaram suas mães substitutas, “o que amenizou muito”. Conforme seu relato,<br />

150<br />

[...] tiv<strong>em</strong>os, eu e minha irmã mais velha, [...] isso era uma prática comum naquela<br />

época, hoje n<strong>em</strong> tanto, dos mais velhos cuidar<strong>em</strong> dos mais novos [...], nós fomos<br />

mãe muito cedo, porque aos 8 anos eu estava cuidando <strong>de</strong> meu irmão, com 10<br />

meses, que não conhecia outro rosto [...], só queria ficar com a gente, [...] quando<br />

mamãe era viva a gente tinha o cabelo gran<strong>de</strong>, na missa <strong>de</strong> sétimo a gente já tinha<br />

tudo o cabelo curtinho, que não tinha qu<strong>em</strong> cuidasse (Ana).<br />

“A relação da mãe com o filho é víscera”, Ana diz, a ausência do amor materno 45 po<strong>de</strong><br />

<strong>ser</strong> amenizada, mas nunca substituída. E se a essencialização dos atributos f<strong>em</strong>ininos é<br />

<strong>de</strong>finida pela capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cuidado e doação que <strong>de</strong>vota ao marido e filhos, a menina guarda<br />

as bonecas e acolhe os irmãos/filhos mais novos, por não ter qu<strong>em</strong> assuma tal papel. Afinal, o<br />

papel do pai/hom<strong>em</strong> é restrito à dimensão pública, ele trabalha, é provedor do sustento<br />

econômico da família, mas do mundo dos afetos sabe pouco ou quase nada, pois não apren<strong>de</strong>u<br />

a cuidar e sim, a <strong>ser</strong> cuidado pela mãe, pela esposa e, agora, pelas filhas.<br />

Para continuar cumprindo o seu papel <strong>de</strong> gênero, o pai tramou um recasamento,<br />

encontrou uma esposa-mãe, cujo instinto maternal somente foi <strong>de</strong>spertado quando engravidou<br />

e per<strong>de</strong>u o filho, “até então ela [a madrasta] nunca tinha querido os filhos <strong>de</strong>le [...], mas aí ela<br />

passa a <strong>de</strong>mandar”.<br />

Entretanto, nesse período, pon<strong>de</strong>ra Ana, as crianças não eram sujeitos <strong>de</strong> direitos, suas<br />

vidas e <strong>de</strong>stinos eram <strong>de</strong>cididos à revelia, “não tinha ECA 46 ” e os adultos, para evitar<strong>em</strong><br />

45 Sobre a mitificação do amor materno, ver, por ex<strong>em</strong>plo, Badinter (1985).<br />

46 A entrevistada se refere ao Estatuto da Criança e do Adolescente, lei nº 8069, sancionada <strong>em</strong> 13 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong><br />

1990, que torna as crianças e adolescentes sujeitos <strong>de</strong> direitos. Ver, por ex<strong>em</strong>plo, (ESTATUTO, 2005).


conflitos com a nova esposa-mãe, “dividiram a ninhada”, as meninas ficaram morando com a<br />

avó e a tia, mas, não foram <strong>de</strong>stituídas do papel materno, continuaram responsáveis pela<br />

educação e cuidados com os irmãos menores, que “não conseguiam se adaptar com a<br />

madrasta”.<br />

Em outras palavras, no enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Ana, o amor entre mães, filhos e irmãos é regido<br />

pelas leis do coração e, portanto, não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> forçado ou construído pela convivência, surge<br />

o afeto, mas nunca amor incondicional, que nasce das entranhas e é capaz <strong>de</strong> todo sacrifício.<br />

A mitificação do amor materno é reafirmada <strong>de</strong> diferentes formas e, mesmo quando as<br />

<strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong>sse amor se per<strong>de</strong>m <strong>em</strong> meio às <strong>de</strong>savenças e separação conjugal, Beatriz<br />

busca justificativas para sua ausência, ora a mãe é perdoada pela rejeição que, à sua revelia,<br />

foi provocada por uma <strong>de</strong>pressão pós-parto, porque a filha nasceu com um <strong>de</strong>feito físico, ora<br />

esse sentimento <strong>de</strong> rejeição é transferido para a figura paterna, cujo abandono do lar e da<br />

família tornou a mãe-esposa amargurada e infeliz.<br />

151<br />

[...] mamãe ficou cinco anos s<strong>em</strong> engravidar, quando eu nasci ela me rejeitou, ficou<br />

dois anos <strong>em</strong> <strong>de</strong>pressão, [...] ela era muito vaidosa, ela <strong>de</strong>ve ter tomado um choque<br />

horrível quando viu a filha nascer com os pés tortos [...] . Depois, [...] mamãe e<br />

papai eram o casal mo<strong>de</strong>lo da cida<strong>de</strong>, [...] ela elegante, a mulher mais linda da<br />

cida<strong>de</strong>, e papai charmoso, mas não era bonito. Quinze anos <strong>de</strong> casados, ela <strong>de</strong>scobriu<br />

que ele estava apaixonado por uma moça lá, [...] aí ficaram dois anos assim, ele<br />

negando e ela brigando, [...] eu era o <strong>de</strong>pósito do sofrimento, da dor <strong>de</strong> mamãe,<br />

aqueles choros, g<strong>em</strong>idos, [...] e ainda t<strong>em</strong> mais, [...] papai ia lá procurar ela para<br />

voltar, ela não <strong>de</strong>ixava eu me aproximar <strong>de</strong> papai. Então eu vivi a minha infância e a<br />

minha adolescência toda com raiva <strong>de</strong> meu pai, achando que meu pai tinha me<br />

abandonado, [...] mas eu acho que era ela que barrava, porque mamãe é muito<br />

autoritária, muito coronel, [...] era tão agressiva. (Beatriz).<br />

Na década <strong>de</strong> 1950 47 , a beleza, o cuidado com a aparência, além da virtu<strong>de</strong>, recato e<br />

docilida<strong>de</strong> eram atributos exigidos às jovens casadoiras, pois somente assim conseguiriam<br />

agradar os “bons partidos”, homens trabalhadores, com uma situação financeira estável,<br />

inteligentes, educados e simpáticos.<br />

Nesse mo<strong>de</strong>lo i<strong>de</strong>alizado do casal, as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gênero eram naturalizadas, na<br />

medida <strong>em</strong> que a moral sexual, que regia a relação conjugal, tolerava a infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong><br />

47 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Bassanezi (1996; 2000)


masculina, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o marido cumprisse suas obrigações <strong>de</strong> marido, chefe <strong>de</strong> família e<br />

provedor, ou seja, havia um consentimento social <strong>em</strong> relação às chamadas “liberda<strong>de</strong>s<br />

masculinas”, consi<strong>de</strong>radas intrínsecas à sua natureza. Por essa razão, a esposa <strong>de</strong>via suprimir<br />

<strong>de</strong>sejos românticos e tolerar os <strong>de</strong>slizes do marido.<br />

Suas responsabilida<strong>de</strong>s como mãe e esposa não podiam <strong>ser</strong> negligenciadas. Sua missão<br />

<strong>de</strong> guardiã dos afetos <strong>de</strong>via <strong>ser</strong> cumprida, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> quaisquer sacrifícios. Em outras<br />

palavras, brigas, lamúrias e lágrimas, ao invés <strong>de</strong> amansar<strong>em</strong> o coração volúvel do marido, só<br />

<strong>ser</strong>viam para afastá-lo, cabia à esposa resignar-se, ignorar suas aventuras e, com o po<strong>de</strong>r que<br />

lhe foi conferido pela “natureza” – a astúcia –, seduzi-lo, fazer-se amada e enredá-lo nos laços<br />

sagrados e inquebrantáveis do matrimônio – pelo menos para ela.<br />

Neste sentido, a mulher que se <strong>de</strong>ixara levar pela vaida<strong>de</strong>, egoísmo e arroubos da<br />

paixão, punha <strong>em</strong> risco a or<strong>de</strong>m normativa que alicerçava o amor institucionalizado, isto é,<br />

seu t<strong>em</strong>peramento era con<strong>de</strong>nável, pois não se submetia às convenções sociais, renegava os<br />

votos do matrimônio e o exercício da maternida<strong>de</strong> sob a proteção <strong>de</strong> um chefe <strong>de</strong> família. Em<br />

suma, a esposa que abandonava o marido infiel, afastava-o da prole e ao recusar-se a perdoá-<br />

lo, aos olhos da socieda<strong>de</strong> não passava <strong>de</strong> uma mulher separada, com reputação e conduta<br />

moral suspeitas e, por isso, era punida com a infelicida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>samor e ressentimento dos filhos.<br />

Além disso, para garantir o sustento econômico do grupo familiar, era obrigada a<br />

inverter a “natureza dos sexos”, transformar-se <strong>em</strong> trabalhadora, provedora e incorporar<br />

características tidas como masculinas na época – autoritária, agressiva e dominadora – para<br />

conseguir assumir o papel <strong>de</strong> chefe <strong>de</strong> família. O hom<strong>em</strong>, ao contrário, contava com a<br />

conivência da socieda<strong>de</strong>, caso tivesse relações extraconjugais (BASSANEZI, 1996), e/ou<br />

solidarieda<strong>de</strong>, quando <strong>de</strong>cidisse refazer sua vida e constituir uma nova família, <strong>em</strong>bora tivesse<br />

que se transferir para outra cida<strong>de</strong> ou estado, conforme <strong>de</strong>monstra o seguinte relato:<br />

152<br />

Eu venho <strong>de</strong> uma família [...] <strong>em</strong> que meu pai vinha <strong>de</strong> uma primeira relação, numa<br />

época <strong>em</strong> que não existia separação, não era separado legalmente, só <strong>de</strong> corpos, não


153<br />

existia divórcio. [...] Quando eu nasci meu pai já tinha mais <strong>de</strong> 50 anos e minha mãe<br />

já tinha 30 e poucos anos, [...] perdi meu pai quando tinha 11 anos, [...] tive um<br />

baque muito gran<strong>de</strong>, aumentei muito <strong>de</strong> peso, tive probl<strong>em</strong>a renal. Então, a<br />

adolescência oscilou muito, [...] porque eu era muito estudiosa, [...] entre muito<br />

prazer, lazer, eu tenho uma mãe relativamente liberal, por ex<strong>em</strong>plo, eu brinquei<br />

todos os carnavais, eu podia sair para festas, dizer eu vou para tal lugar e tal hora eu<br />

volto, [...] com a morte <strong>de</strong> meu pai teve muitas dificulda<strong>de</strong>s financeiras, minha mãe<br />

tinha um armazém, mas aí coincidiu que teve <strong>de</strong>sapropriação do espaço e aí foi um<br />

momento muito sentido (Helena).<br />

Com efeito, a moral sexual vigente <strong>de</strong>terminava para a mulher a virtu<strong>de</strong> sexual, isto é,<br />

a virginda<strong>de</strong> e pureza, enquanto o hom<strong>em</strong> era instigado a iniciar a vida sexual precoc<strong>em</strong>ente e<br />

a ter experiências com várias parceiras. Dessa forma, a mulher tecia a espera pelo<br />

conquistador que iria <strong>de</strong>spertá-la, enquanto a sexualida<strong>de</strong> ativa era exaltada no hom<strong>em</strong>; se um<br />

evitava comprometer-se e adiava o casamento, a outra aguardava, ansiosa, o surgimento <strong>de</strong><br />

um rapaz b<strong>em</strong>-intencionado que a levasse ao altar o quanto antes. Isso gerava uma diferença<br />

na ida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>al para o casamento – as mulheres entre 20 e 24 anos e os homens mais maduros,<br />

com mais <strong>de</strong> 30 anos, faixa etária <strong>em</strong> que já alcançavam uma condição que lhes permitisse<br />

prover o sustento da família, já que até o início dos anos 60 o trabalho extra-lar f<strong>em</strong>inino era<br />

pouco usual, <strong>em</strong>bora alguns maridos foss<strong>em</strong> con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não interferisse no<br />

<strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho das ativida<strong>de</strong>s domésticas e cuidados com a família (BASSANEZI, 1996).<br />

Enquanto o avanço da ida<strong>de</strong> diminuía as chances da mulher no mercado matrimonial<br />

e, uma separação a excluía <strong>de</strong>finitivamente; para o hom<strong>em</strong>, <strong>solteiro</strong> ou separado, a ida<strong>de</strong> não<br />

consistia <strong>em</strong> impeditivo para encontrar uma companheira.<br />

Ao contrário, a mulher <strong>solteira</strong>, com o avançar da ida<strong>de</strong>, diante da competitivida<strong>de</strong> do<br />

mercado matrimonial, sob a ameaça <strong>de</strong> exclusão do mercado matrimonial, do estigma que<br />

pairava sobre a <strong>solteiro</strong>na, e vigilância social que lhe era imposta, podia recorrer a alternativas<br />

não tradicionais, como por ex<strong>em</strong>plo, exercer um trabalho r<strong>em</strong>unerado. Outra alternativa <strong>ser</strong>ia<br />

conviver maritalmente e constituir uma família com um hom<strong>em</strong> separado, principalmente <strong>em</strong><br />

centros urbanos, on<strong>de</strong> ambos conseguiss<strong>em</strong> fugir dos olhares censores da cida<strong>de</strong> e da família<br />

conjugal, para os quais seu relacionamento permanecia ilegítimo.


Com a morte do companheiro, se por um lado a mãe <strong>de</strong> Helena, viúva “s<strong>em</strong> marido”,<br />

enfrentava dificulda<strong>de</strong>s financeiras porque contava apenas consigo mesma para prover o<br />

sustento da família; por outro, o fato <strong>de</strong> <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cer às convenções sociais para unir-se a um<br />

hom<strong>em</strong> consi<strong>de</strong>rado casado aos olhos da socieda<strong>de</strong>, a fortalecia para enfrentar o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong><br />

criar uma filha adolescente sozinha e imprimir à sua educação um mo<strong>de</strong>lo mais “liberal”.<br />

A dor com a perda do companheiro e pai estreitou os vínculos afetivos e a confiança<br />

entre mãe e filha, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que a queda do po<strong>de</strong>r aquisitivo e do padrão <strong>de</strong> vida<br />

<strong>de</strong>mandaram maior incentivo aos estudos e à busca <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência, o que por sua vez<br />

reduzia as pressões e limites no tocante a comportamentos e condutas; daí porque Helena teve<br />

mais liberda<strong>de</strong> na adolescência, podia sair <strong>de</strong>sacompanhada, <strong>em</strong>bora isso não implicasse <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>scuido da vigilância materna.<br />

A convivência familiar engendra outro enredo afetivo, quando a união do casal é<br />

oficializada pelo matrimônio, a família resi<strong>de</strong> <strong>em</strong> uma cida<strong>de</strong> pequena do interior e, o trabalho<br />

do marido o afasta freqüent<strong>em</strong>ente do lar. Havia, então, uma inversão <strong>de</strong> papéis, o que tornara<br />

a figura materna opressora. Para Débora, ela era “fleumática”, porque a levou para ficar com<br />

os avós até os 2 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>; rígida, reclamava das traquinagens, impunha disciplina e se<br />

aborrecia quando a “menina bonita” se recusava a exibir os dotes físicos e musicais para as<br />

visitas. O pai, ao contrário, s<strong>em</strong>pre que chegava das viagens se mostrava “afetuoso”,<br />

“carinhoso”, achava “graça” <strong>de</strong> tudo, era brincalhão, levava os filhos para passear e, porque<br />

conseguia compreen<strong>de</strong>r suas personalida<strong>de</strong>s diferentes, era aquele que guardava a <strong>em</strong>oção e o<br />

afeto; ao contrário da mãe, cuja racionalida<strong>de</strong> a <strong>em</strong>brutece. Isso não significava, entretanto,<br />

que o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong> <strong>em</strong> vigor naquela época fosse ignorado por Débora na<br />

adolescência, mas a perda precoce do pai impôs novos questionamentos e sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ob<strong>ser</strong>vação, <strong>de</strong> antecipar mudanças se tornou mais acentuada, conforme relata:<br />

154<br />

[...] Aos 11 anos, adolescente, lia muito, inclusive escrevia, era uma pessoa com a<br />

personalida<strong>de</strong> forte, com muita corag<strong>em</strong>, cheia <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões. [...] Depois meu pai


155<br />

morreu num aci<strong>de</strong>nte, vindo para meu aniversário <strong>de</strong> 15 anos. [...] Aí realmente eu<br />

acho que morri também, [...] é como se eu fosse outra pessoa a partir daí, inclusive<br />

porque ele era minha maior motivação, eu era assim muito questionadora e ele tinha<br />

muito cuidado com isso, porque eu era muito sensível. [...] Antes, com 15 anos, que<br />

é a ida<strong>de</strong> que você começa a namorar e as pessoas perguntam: – Vai casar com<br />

fulano? Eu dizia: ‘Pretendo sim, quero ter quatro filhos’. N<strong>em</strong> raciocinava, n<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>sejava. Dizia assim, como se a menina, que nasceu para casar, com um bom<br />

partido, porque a gente era da socieda<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong>, e ter seus filhos, é como se fosse<br />

o curso natural da vida <strong>de</strong> uma mulher. Aí quando eu fui ficando maior, mais velha,<br />

18 anos, já n<strong>em</strong> falava, não tinha mais n<strong>em</strong> interesse (Débora).<br />

Nos anos <strong>de</strong> 1950, as relações familiares eram marcadas por um processo <strong>de</strong> mudança,<br />

os laços afetivos entre pais e filhos se tornaram mais fortes e, particularmente nas famílias das<br />

classes médias, havia uma maior preocupação com a educação dos filhos, b<strong>em</strong> como atenção<br />

aos seus <strong>de</strong>sejos pessoais. A própria dinâmica familiar ensaiava os primeiros movimentos<br />

para substituir o mo<strong>de</strong>lo hierárquico até então vigente, por um mo<strong>de</strong>lo igualitário, <strong>em</strong> que as<br />

diferenças entre mulheres e homens se concentravam no âmbito pessoal e idiossincrático.<br />

Entretanto, essas mudanças ocorreram paulatinamente, mescladas aos mol<strong>de</strong>s tradicionais, o<br />

que produziu o entrelaçamento entre o mo<strong>de</strong>rno e o arcaico (FIGUEIRA, 1987), além <strong>de</strong><br />

causar<strong>em</strong> maior impacto nos centros urbanos mais <strong>de</strong>senvolvidos.<br />

Com efeito, no período <strong>em</strong> questão, <strong>em</strong> Salvador e Aracaju, quando a mãe adoecia era<br />

comum o envio <strong>de</strong> filhos pequenos para residir<strong>em</strong>, durante uma t<strong>em</strong>porada, com os avós, até<br />

ela recuperar plenamente a saú<strong>de</strong>. Isso também ocorria quando a família enfrentava alguma<br />

dificulda<strong>de</strong> financeira, pois apesar <strong>de</strong> os filhos receber<strong>em</strong> maior apoio <strong>em</strong>ocional dos pais,<br />

interpretações <strong>de</strong> cunho psicológico no tocante aos efeitos do afastamento e separação só<br />

<strong>ser</strong>iam incorporadas à educação da prole alguns anos mais tar<strong>de</strong>. Vale l<strong>em</strong>brar que irmãs (ãos)<br />

mais novas (os) e, ou cunhadas (os) passavam a fazer parte do grupo familiar, t<strong>em</strong>porária ou<br />

<strong>de</strong>finitivamente, pelos mesmos motivos.<br />

Os mo<strong>de</strong>los con<strong>ser</strong>vadores, ainda <strong>em</strong> vigor, <strong>de</strong>terminam que as meninas sejam<br />

treinadas para <strong>ser</strong><strong>em</strong> boas esposas, mães e donas <strong>de</strong> casa; seu aprendizado envolve lições <strong>de</strong><br />

economia doméstica e culinária, mas também noções <strong>de</strong> estética, <strong>de</strong> cuidados com a beleza,<br />

boas maneiras e traquejo social.


Na metrópole ou <strong>em</strong> uma cida<strong>de</strong> mais provinciana, certamente, <strong>ser</strong> uma “menina<br />

bonita” e tocar um instrumento musical, para entreter os convidados da família consistia <strong>em</strong><br />

motivo <strong>de</strong> orgulho para os pais, e a recusa <strong>em</strong> fazê-lo, principalmente para a mãe, causava<br />

aborrecimento, pois suas habilida<strong>de</strong>s a diferenciavam <strong>de</strong> outras garotas no tocante à<br />

competitivida<strong>de</strong> futura no mercado matrimonial, ou seja, tinha o viço da juventu<strong>de</strong>, como<br />

outras tantas, mas a natureza a privilegiara com dois atrativos que <strong>de</strong>viam <strong>ser</strong> exibidos – a<br />

beleza e a musicalida<strong>de</strong>.<br />

Neste sentido, Débora, uma pré-adolescente que preferia livros <strong>de</strong> adultos 48 à literatura<br />

infanto-juvenil tornara-se mais reflexiva, crítica, questionadora e <strong>de</strong>cidida, ensaiara uma<br />

rebelião contra os mo<strong>de</strong>los instituídos, recusara-se a <strong>ser</strong> tal qual um “macaquinho amestrado”.<br />

A adoção <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s e características consi<strong>de</strong>radas masculinas, à época, po<strong>de</strong>ria ameaçar sua<br />

f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong> e afastar, futuramente, possíveis preten<strong>de</strong>ntes a marido, o que causaria<br />

preocupação; ela foi consi<strong>de</strong>rada “estranha” porque pensava e agia diferent<strong>em</strong>ente das garotas<br />

<strong>de</strong> sua ida<strong>de</strong>/geração e, para o seu próprio b<strong>em</strong>, era preciso domesticá-la. Já adolescente, <strong>em</strong><br />

meio a estranhamentos, pensa e <strong>de</strong>seja se enquadrar, escolheu reprisar o enredo materno para<br />

evitar confrontos, enquanto confessava suas inquietu<strong>de</strong>s a poucos eleitos, mas, quando per<strong>de</strong><br />

aquele que a incentivava, compreendia e procurava protegê-la, abandona a cautela, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong><br />

seguir na contramão e pagar o tributo exigido às moças que <strong>de</strong>safiavam o que a sua “natureza<br />

f<strong>em</strong>inina” lhes re<strong>ser</strong>vava.<br />

As mulheres nascidas na década <strong>de</strong> 1970 49 , ao contrário, passaram por outro tipo <strong>de</strong><br />

aprendizado, a construção do mo<strong>de</strong>lo i<strong>de</strong>al da nova mulher, na esteira da revolução sexual e<br />

movimentos <strong>em</strong>ancipatórios, quando foi estimulada a priorizar os estudos; as relações entre os<br />

gêneros se tornaram mais <strong>de</strong>mocráticas, os papéis se tornaram menos rígidos. Conforme Eva,<br />

ela e o irmão compartilhavam o vi<strong>de</strong>ogame e <strong>em</strong>pinavam pipas, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

48 A informante começou a ler Dostoiewski, Tolstoi e Kafka aos 11 anos.<br />

49 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Gol<strong>de</strong>nberg e Toscano (1992); Fontes (1997).<br />

156


ensaiavam com bonecas o papel materno e paterno, ou seja, “não tiveram aquela coisa <strong>de</strong><br />

dizer essa brinca<strong>de</strong>ira é <strong>de</strong> hom<strong>em</strong>, essa brinca<strong>de</strong>ira é <strong>de</strong> mulher”. Isso não significa,<br />

entretanto, que as diferenças <strong>de</strong> gênero <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> existir, <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminados momentos,<br />

produziam tensões e conflitos, o menino queria participar da roda <strong>de</strong> meninas e era rejeitado,<br />

porque a irmã <strong>de</strong>sconfia do controle, vigilância que po<strong>de</strong> exercer, mascarado sob a proteção,<br />

resquício dos mo<strong>de</strong>los arquetípicos tradicionais. Em meio a proximida<strong>de</strong>s e distâncias, essa<br />

geração <strong>de</strong> mulheres <strong>em</strong>erge e engendra o fazer das diferenças:<br />

157<br />

[...] eu fui a primeira mulher da minha família a ter um nível superior, [...] eu fui<br />

criada como o diferencial <strong>de</strong> minha mãe, [...] eu não fui criada para apren<strong>de</strong>r prendas<br />

domésticas, eu não sei cozinhar muito b<strong>em</strong>, e até por conta dos estudos, por conta <strong>de</strong><br />

um zelo que meus pais tinham <strong>em</strong> relação a isso (Eva).<br />

[...] me consi<strong>de</strong>ro e s<strong>em</strong>pre me consi<strong>de</strong>rei uma vulgarmente conhecida como CDF,<br />

eu s<strong>em</strong>pre quis estudar. [...] meu relacionamento com minha mãe foi s<strong>em</strong>pre muito<br />

bom, acredito que ela seja minha válvula <strong>de</strong> segurança familiar, [...] a relação com<br />

meu pai foi meio tumultuada, da adolescência até agora, principalmente quando<br />

você começa a <strong>de</strong>scobrir os <strong>de</strong>feitos que seus pais têm, eu não <strong>de</strong>scobri muitos<br />

<strong>de</strong>feitos na minha mãe, mas meu pai é alcoólatra, s<strong>em</strong>pre foi muito mulherengo, [...]<br />

tanto que eu tenho um irmão por conta disso (Flora).<br />

[...] a minha infância foi um período ditatorial, então foi uma educação muito rígida,<br />

principalmente por parte do meu pai, [...] qualquer <strong>de</strong>slize era uma palmatória, às<br />

vezes se apanhava por nada [...]. Tanto que na adolescência eu não tinha muitos<br />

amigos, era só a relação estudo-casa, casa-estudo [...]. Então, eu só comecei a<br />

namorar com 19 anos, mesmo assim, <strong>de</strong>pois da separação dos meus pais, que não era<br />

permitido. [...] Minha mãe, ela já tinha uma postura submissa, [...] s<strong>em</strong>pre numa<br />

posição secundária e às vezes nula, [...] mas ela foi uma pessoa forte, e nesse<br />

sentido, ela começou a ecoar os primeiros gritos quando ela, primeiro, foi violentada<br />

fisicamente pelo meu pai, e outra foi a in<strong>de</strong>pendência econômica, que<br />

gradativamente ela foi construindo [...] e o grito <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> se <strong>de</strong>u com o <strong>de</strong>squite,<br />

o divórcio, nós tínhamos 16 para 17 anos e foi um gran<strong>de</strong> alívio a saída do meu pai<br />

<strong>de</strong> casa, [...] o melhor <strong>de</strong> tudo foi [...] a paz familiar, se mantém até hoje (Gina).<br />

Até meados da década <strong>de</strong> 1960, atribuía-se à mulher uma vocação “natural” para a<br />

maternida<strong>de</strong> e a vida doméstica, o que distinguia a f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong> da masculinida<strong>de</strong>,<br />

representada pela participação no mercado <strong>de</strong> trabalho e investimento <strong>em</strong> uma carreira<br />

profissional (BASSANEZI, 1996). Embora, atualmente haja maior aceitação com relação ao<br />

trabalho f<strong>em</strong>inino, permanece a incompatibilida<strong>de</strong> entre a dimensão pública e privada, ou


seja, o papel <strong>de</strong> esposa-mãe e dona <strong>de</strong> casa prevalece sobre as ativida<strong>de</strong>s profissionais,<br />

consi<strong>de</strong>radas <strong>de</strong> menor importância 50 .<br />

A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> novos referenciais e comportamentos mo<strong>de</strong>lizadores, adotados com a<br />

mobilida<strong>de</strong> social, entre famílias oriundas das classes populares, permanece o mo<strong>de</strong>lo<br />

familista hierárquico que, baseado no i<strong>de</strong>ário patriarcalista, legitima a dominação do<br />

masculino sobre o f<strong>em</strong>inino, dos mais velhos sobre os mais jovens 51 . Por essa razão, muitas<br />

mulheres e filhos, ainda são confrontados com a autorida<strong>de</strong> do provedor econômico e chefe da<br />

família, na medida <strong>em</strong> que persiste uma hierarquização <strong>de</strong> gênero que o autoriza a exigir<br />

obediência e submissão, ou seja, caso necessário, a violência se torna uma prerrogativa<br />

masculina, usada para atestar sua virilida<strong>de</strong>. Além disso, quando o hom<strong>em</strong> não consegue<br />

prover o sustento econômico da família, na maioria das vezes, recorre ao uso <strong>de</strong> bebidas<br />

alcoólicas, principalmente quando os filhos são pequenos e aumentam as <strong>de</strong>spesas e<br />

obrigações familiares. 52<br />

Nesse sentido, o hom<strong>em</strong> instaura uma relação <strong>de</strong> “autoritarismo” com os filhos,<br />

validada pela via do “medo”, da “repressão”, da “disciplina” e “agressão física”, assim como<br />

recorre à relação sexual, s<strong>em</strong> o consentimento da esposa, para inscrever <strong>em</strong> seu corpo as<br />

marcas da dominação <strong>em</strong> estado bruto 53 , anulá-la como sujeito e reafirmar seu caráter passivo,<br />

enquanto objeto das vonta<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>sejos masculinos.<br />

Decerto, a in<strong>de</strong>pendência econômica atua como um dos fatores <strong>de</strong> libertação f<strong>em</strong>inina<br />

no tocante à submissão e passivida<strong>de</strong> diante da dominação masculina, <strong>em</strong> suas diferentes<br />

formas <strong>de</strong> expressão, na medida <strong>em</strong> que possibilita à mulher não só arcar com as<br />

responsabilida<strong>de</strong>s relativas ao provimento do grupo familiar, mas também fazer suas próprias<br />

escolhas. Por outro lado, há <strong>de</strong> se ob<strong>ser</strong>var que na década <strong>de</strong> 1980, o casamento já não traz a<br />

50 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Porchat (1992).<br />

51 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Gueiros (2002).<br />

52 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Zaluar (1985); Saffioti (1999).<br />

53 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Bourdieu (2002), cuja etnografia da socieda<strong>de</strong> cabila busca rastrear as estruturas simbólicas<br />

que engendram e reproduz<strong>em</strong> a dominação masculina.<br />

158


marca da in<strong>de</strong>strutibilida<strong>de</strong>, há uma aceitação social <strong>em</strong> relação à separação e ao divórcio do<br />

casal, assim como uma crescente participação f<strong>em</strong>inina no mercado do trabalho, o que oferece<br />

à mulher a força e estímulo necessários para enfrentar o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> “construir uma nova vida”<br />

com os filhos e, assim, restaurar a “paz familiar”.<br />

Por outro lado, a diminuição da distinção entre papéis e capacida<strong>de</strong>s masculinas e<br />

f<strong>em</strong>ininas, o estudo, ingresso nas universida<strong>de</strong>s e in<strong>ser</strong>ção das mulheres no mercado <strong>de</strong><br />

trabalho não mais ameaçam a f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong>, cujas marcas ganham outros contornos. Os<br />

padrões <strong>de</strong> comportamento são contestados e, a relação da filha com o pai se torna “meio<br />

tumultuada” porque ela não aceita a dupla moral sexual que lhe permite <strong>ser</strong> infiel, manter<br />

relações extraconjugais e ter filhos fora do casamento, conflito que se intensifica quando<br />

<strong>de</strong>scobre mais um <strong>de</strong>feito, o alcoolismo, que afeta a harmonia familiar. A postura arbitrária e<br />

violenta do pai po<strong>de</strong> produzir retraimento, insegurança. As <strong>de</strong>scobertas da adolescência são<br />

adiadas e acontec<strong>em</strong>, conforme reflete Gina, “<strong>de</strong> uma forma meio tardia”, uma vez que seu<br />

universo se restringe à casa e à escola – a casa espelha a opressão e o estudo consiste <strong>em</strong><br />

momento no qual ensaia um escapismo da “tensão” e “angústia” constantes – <strong>em</strong>bora só se<br />

sinta “segura” para se relacionar com rapazes após a separação dos pais.<br />

Ainda que a figura materna permaneça como “válvula <strong>de</strong> segurança familiar”, para as<br />

mulheres entrevistadas, elas rejeitam sua submissão, resignação e, priorizam os estudos ou são<br />

incentivadas pelos próprios pais a estudar<strong>em</strong> e, ao contrário da mãe, não <strong>de</strong>votar<strong>em</strong> sua vida<br />

ao lar e à família, ou seja, para Eva, Flora e Gina, as “prendas domésticas”, “arrumar a casa”,<br />

“apren<strong>de</strong>r a cozinhar e bordar” são substituídas pela <strong>de</strong>dicação aos estudos, investimento <strong>em</strong><br />

uma carreira profissional. 54<br />

Influenciadas pelos i<strong>de</strong>ais mo<strong>de</strong>rnizadores assimilados na adolescência, reinventam<br />

um novo lugar <strong>em</strong> contraposição à or<strong>de</strong>m que lhes é familiar e tramam escolhas individuais<br />

54 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Bassanezi (1996; 2000); Nolasco (1993).<br />

159


aseadas <strong>em</strong> múltiplas interseções. Em suma, <strong>ser</strong> uma “dona <strong>de</strong> casa” ex<strong>em</strong>plar <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> <strong>ser</strong> o<br />

único <strong>de</strong>stino possível para as mulheres, que vislumbram outras possibilida<strong>de</strong>s.<br />

Para os homens, pai e mãe também atuam como mo<strong>de</strong>lo, referência das relações entre<br />

os sexos, dos papéis <strong>de</strong> gênero a <strong>ser</strong><strong>em</strong> assumidos que, condicionados a uma lógica <strong>de</strong><br />

contrários, <strong>de</strong>terminam padrões <strong>de</strong> comportamento, tramam <strong>de</strong>sejos, escolhas e expectativas<br />

<strong>de</strong> vida que evocam os construtos acerca da masculinida<strong>de</strong>, no tocante à dimensão afetiva e<br />

profissional.<br />

Conforme Abílio, o hom<strong>em</strong> nascido na década <strong>de</strong> 1950, assim como a mulher, também<br />

era submetido a “uma formação muito rígida”, <strong>em</strong> que os “fundamentos da personalida<strong>de</strong>”,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o processo <strong>de</strong> elaboração e afirmação <strong>de</strong> sua masculinida<strong>de</strong> à ob<strong>ser</strong>vância “do respeito<br />

ao próximo” eram mantidos sob constante vigilância. Os pais, “austeros”, cerceavam a<br />

“liberda<strong>de</strong> para brincar”, controlam suas “companhias” e “amigos”, <strong>de</strong> forma a inibir relações<br />

com indivíduos <strong>de</strong> grupos sociais distintos, mas a convivência com irmãos, primos, tios e<br />

avós <strong>de</strong> uma família ainda extensa faz<strong>em</strong> da infância um período prazeroso. Na adolescência,<br />

mais livres, formavam uma “turma” com outros rapazes, colegas da escola e, ensaiavam<br />

pequenas transgressões, <strong>em</strong>bora “escondido dos pais”.<br />

As <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gênero permanec<strong>em</strong> invioláveis, a dupla moral sexual <strong>de</strong>senha<br />

mo<strong>de</strong>los contrastivos e, por isso, enquanto a mãe é consi<strong>de</strong>rada uma pessoa “discreta”,<br />

“agradável” e “b<strong>em</strong> humorada”, que “não chateia” n<strong>em</strong> “interfere”, o pai é “diferente”, apesar<br />

<strong>de</strong> “muito inteligente”, “muito interessante” e “muito criativo”, não admite que sua autorida<strong>de</strong><br />

seja <strong>de</strong>safiada, t<strong>em</strong> “explosões <strong>de</strong> cólera” e provoca sentimentos ambíguos, conforme<br />

evi<strong>de</strong>ncia o seguinte relato<br />

160<br />

[...] eles se separaram quando eu tinha 25 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, minha mãe se separou <strong>de</strong><br />

meu pai aos 60 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, [...] meu pai era bastante complicado, ele era<br />

homossexual, tinha um caso, que quando ele se separou já durava 30 anos e que<br />

vivia interferindo na vida da família, mas ele não assumia isso e era uma coisa muito<br />

<strong>de</strong>sagradável, [...] eu acho que essa coisa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sligar as pessoas, a pessoa que eu<br />

s<strong>em</strong>pre tive vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sligar foi meu pai. [...] Ele era moralista, implicava com<br />

meus amigos, a maneira como eu me vestia, minha mãe nunca obrigou ninguém a


161<br />

comer, [...] meu pai vivia tentando, [...] eu não vou dizer que eu o odiasse, mas a<br />

relação foi muito difícil. É, meu pai passou todos os bens <strong>de</strong>le para o amante, eles<br />

continuaram esse casamento até a morte <strong>de</strong>le (Bernardo).<br />

O papel <strong>de</strong>signado para o hom<strong>em</strong> na socieda<strong>de</strong> sexista <strong>de</strong> então, evoca uma imag<strong>em</strong><br />

associada a valores machistas e viris, implica <strong>em</strong> <strong>ser</strong> forte, competitivo, <strong>de</strong>st<strong>em</strong>ido, criativo,<br />

inteligente e trabalhador, mas também marido e pai ex<strong>em</strong>plar. O casamento é inevitável,<br />

assim como o exercício da paternida<strong>de</strong>, pois inib<strong>em</strong> o egoísmo masculino, eliminam vícios e<br />

hábitos que contrariam as convenções sociais. E se as chamadas liberda<strong>de</strong>s sexuais – a<br />

infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e manutenção <strong>de</strong> amantes – são toleradas, porque inerentes à natureza masculina,<br />

a homossexualida<strong>de</strong> é execrada e, por isso, camuflada e/ou ignorada, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o hom<strong>em</strong><br />

cumpra o papel <strong>de</strong> provedor econômico do grupo familiar. Dessa forma, a esposa, discreta,<br />

resignada e submissa, suporta o autoritarismo do marido e convive com seu amante, pois não<br />

há outra escolha possível, a separação é uma situação socialmente inconcebível, já que po<strong>de</strong>rá<br />

comprometer sua reputação.<br />

Não se po<strong>de</strong> esquecer que até o final dos anos 60, <strong>em</strong> Salvador, o amor homossexual<br />

era vivenciado às escondidas, sequer podia <strong>ser</strong> mencionado, pois <strong>ser</strong> macho representava a<br />

masculinida<strong>de</strong> <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ática calcada na heterossexualida<strong>de</strong> compulsória, isto é, a antítese <strong>de</strong><br />

<strong>ser</strong> homossexual, associado a características f<strong>em</strong>ininas, tais como vulnerabilida<strong>de</strong>, fragilida<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, quietu<strong>de</strong> e passivida<strong>de</strong>. Nesse sentido, o esposo e pai nega sua “estranha forma”<br />

<strong>de</strong> amar, faz-se macho ao impor à mulher e filhos seus <strong>de</strong>sejos e vonta<strong>de</strong>s, inclusive a<br />

convivência com o amante.<br />

Por essa razão, incorpora o seu papel social e torna-se moralista, busca moldar um<br />

filho macho, isto é, rejeita seus amigos, a forma <strong>de</strong> vestir e a própria homossexualida<strong>de</strong> que<br />

vê refletida nas escolhas afetivas <strong>de</strong>sse filho.<br />

O final da década <strong>de</strong> 1960 anuncia a liberda<strong>de</strong> sexual, os filhos se tornam adultos, a<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “macho” ganha novas configurações e a dissolução do matrimônio obtém<br />

aceitação social, o que permite aos m<strong>em</strong>bros do grupo familiar se libertar das amarras que os


mantinham unidos, s<strong>em</strong> culpas ou sentimento <strong>de</strong> fracasso, apesar <strong>de</strong> não conseguir<strong>em</strong> mitigar<br />

ressentimentos, quando, anos mais tar<strong>de</strong>, ao falecer, a figura paterna os <strong>de</strong><strong>ser</strong>da e <strong>de</strong>ixa todos<br />

os bens para o companheiro. Decerto, n<strong>em</strong> todas as famílias obe<strong>de</strong>ciam a uma or<strong>de</strong>m moral<br />

tão rígida, n<strong>em</strong> reprisavam as normas sociais vigentes, há trajetórias distintas, conforme<br />

evi<strong>de</strong>ncia o seguinte relato:<br />

162<br />

[...] eu acho que t<strong>em</strong> a ver com esse tipo <strong>de</strong> educação que eu recebi da minha mãe e<br />

<strong>de</strong> meu pai, uma coisa muito livre, enten<strong>de</strong>u? Porque eles são assim, a minha mãe<br />

t<strong>em</strong> 86 anos, o meu pai 84, [...] agora que eles estão ficando um pouco caretas, por<br />

causa dos netos e dos bisnetos, olha que loucura! Mas, coisas assim que as pessoas<br />

acham hoje <strong>em</strong> dia b<strong>em</strong> avançadas, no meu t<strong>em</strong>po já era uma coisa b<strong>em</strong> normal para<br />

o meu pai e minha mãe. [...] Então, minha família são sete comigo, são três homens<br />

e três mulheres, [...] eu venho <strong>de</strong> uma família que não t<strong>em</strong> esse papo <strong>de</strong> que alguém<br />

é espelho, foi mo<strong>de</strong>lo para ninguém não, todo mundo muito in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, [...]<br />

personalida<strong>de</strong>s b<strong>em</strong> distintas, não é? Não sei se as individualida<strong>de</strong>s são respeitadas,<br />

mas elas são conquistadas (Camilo).<br />

Os m<strong>em</strong>bros das famílias <strong>de</strong> classe média obe<strong>de</strong>ciam a um mo<strong>de</strong>lo hierárquico e<br />

tinham suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s forjadas <strong>de</strong> acordo com a posição, ida<strong>de</strong> e sexo a que pertenciam. As<br />

diferenças entre homens e mulheres são consi<strong>de</strong>radas inerentes e reafirmadas na própria<br />

forma <strong>de</strong> se vestir, falar, comportar<strong>em</strong>-se e expressar seus sentimentos, mas também nas<br />

posições e espaços que ocupam na vida social. No entanto, gradativamente, surge uma nova<br />

configuração e, na década seguinte, a família incorpora um i<strong>de</strong>al igualitário, no qual os<br />

marcadores <strong>de</strong> diferença entre homens e mulheres se tornam menos tangíveis, na medida <strong>em</strong><br />

que as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s se tornam idiossincráticas, isto é, as diferenças pessoais prevalec<strong>em</strong> sobre<br />

as diferenças sexuais, etárias e posicionais. 55<br />

O <strong>de</strong>slocamento do mo<strong>de</strong>lo hierárquico para o mo<strong>de</strong>lo igualitário, a mo<strong>de</strong>rnização e<br />

laicização da família instigam a elaboração <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s sucedâneas, sinalizam para um<br />

campo <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>em</strong> que as escolhas são aparent<strong>em</strong>ente conduzidas pelo próprio<br />

indivíduo e espelham uma ruptura com os mo<strong>de</strong>los instituídos, traz<strong>em</strong> consigo a marca da<br />

liberda<strong>de</strong>, não há fronteiras rígidas 56 . Em suma, as famílias que abraçam o i<strong>de</strong>al<br />

55 Ver Figueira (1985; 1987); Bassanezi (1996).<br />

56 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Gol<strong>de</strong>nberg (1994); Nicolaci-da-Costa (1987); Figueira (1987).


mo<strong>de</strong>rnizador, educam os filhos para seguir<strong>em</strong> seus próprios caminhos e <strong>de</strong>sejos, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<strong>em</strong><br />

seus pontos <strong>de</strong> vista e visões <strong>de</strong> mundo, lutar<strong>em</strong> para conquistar o respeito à sua<br />

individualida<strong>de</strong>. Contudo, as famílias que adotam o igualitarismo e comportamentos<br />

vanguardistas são exceção, principalmente se resi<strong>de</strong>m <strong>em</strong> cida<strong>de</strong>s interioranas, o que leva os<br />

filhos a arquitetar<strong>em</strong> estratégias para burlar os mo<strong>de</strong>los vigentes:<br />

163<br />

Meu pai é funcionário público, minha mãe dona <strong>de</strong> casa, eu tenho oito irmãos, [...]<br />

isso no casamento tradicional, meu pai t<strong>em</strong> uma filha fora [...]. A relação dos meus<br />

pais, meu pai era alcoólatra, ditador e controlador, minha mãe recessiva, muito dada<br />

às coisas, muito <strong>de</strong> amém e isso, ob<strong>ser</strong>vo que t<strong>em</strong> certa influência sobre nosso<br />

comportamento. Na minha casa todos são casados, [...] todos eles têm filhos, têm um<br />

comportamento padronizado, não fog<strong>em</strong> às normas convencionais. [...] Eu s<strong>em</strong>pre,<br />

b<strong>em</strong> cedo, apesar <strong>de</strong> meu pai, [...] <strong>de</strong>terminei o que eu queria para mim, a história do<br />

estudo, a in<strong>de</strong>pendência, ia <strong>de</strong> encontro a meu pai [...] e a gente entra num conflito<br />

<strong>em</strong> alguns momentos. [...] Eu fiz o vestibular, passei e vim <strong>em</strong>bora, e trouxe comigo<br />

minha irmã mais nova, que era para ela também uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter um nível<br />

superior e sair daquela história <strong>de</strong> chegar certa ida<strong>de</strong> ter que casar. A perspectiva no<br />

interior é casar e pronto, se realizar nisso aí (Dario).<br />

Até meados da década <strong>de</strong> 1960, a or<strong>de</strong>m moral e papéis atribuídos a homens e<br />

mulheres permanec<strong>em</strong> inalterados, assim como os parâmetros <strong>de</strong> masculinida<strong>de</strong> e<br />

f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong>, principalmente <strong>em</strong> cida<strong>de</strong>s distantes das metrópoles, on<strong>de</strong> os valores são mais<br />

con<strong>ser</strong>vadores e as mudanças, portanto, acontec<strong>em</strong> com mais vagar. Dessa forma, o marido<br />

ainda é provedor econômico da família e a esposa lida com a casa e cuidados com os filhos<br />

numerosos, já que o acesso a novos métodos contraceptivos só acontecerá nos anos seguintes.<br />

Os padrões <strong>de</strong> organização doméstico-familiar e a estabilida<strong>de</strong> da relação conjugal<br />

mantêm-se à custa da submissão f<strong>em</strong>inina ao chefe da família, sua postura recessiva permite<br />

que a dominação masculina se estenda aos filhos e, por conseguinte, o pai <strong>de</strong>tém o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>cidir seus <strong>de</strong>stinos. 57<br />

Apesar <strong>de</strong> haver uma “incompatibilida<strong>de</strong> na maneira <strong>de</strong> pensar e ver a vida entre meu<br />

pai e minha mãe”, afirma Dario, meninos e meninas são educados para seguir<strong>em</strong> os passos<br />

dos pais, ou seja, reprisar<strong>em</strong> a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero vigente e cumprir<strong>em</strong> as imposições<br />

sociais no tocante ao casamento, inevitável para ambos os sexos – casar é a única fonte <strong>de</strong><br />

57 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Bassanezi (1996); Fáveri (1999).


ealização para rapazes e moças –, ainda que por razões diferentes. Contudo, s<strong>em</strong>pre há<br />

aquele que se rebela e busca escapar ao instituído, Dario reinventa seu próprio caminho pela<br />

via do estudo e in<strong>de</strong>pendência econômica, o que <strong>de</strong>safia a dominação, controle paterno e gera<br />

conflitos, mas não confronto, do qual escapa ao se mudar para a capital e levar junto a irmã<br />

mais nova, a qu<strong>em</strong> liberta para também perseguir seu próprio projeto i<strong>de</strong>ntificatório, <strong>em</strong>bora,<br />

<strong>em</strong> certos casos, as <strong>de</strong>savenças do casal afet<strong>em</strong> o relacionamento entre os filhos e filhas, que<br />

não consegu<strong>em</strong> vivenciar um “entrosamento total”.<br />

Por outro lado, quando a família enfrenta uma crise financeira, é comum que não só as<br />

meninas quanto os meninos mais novos sejam enviados para passar<strong>em</strong> uma t<strong>em</strong>porada com os<br />

avós, que po<strong>de</strong> se esten<strong>de</strong>r por toda a infância, pois, segundo Edson, “eu me apeguei muito a<br />

minha avó e ela a mim”. Nas cida<strong>de</strong>s interioranas, ele reforça, os dias transcorr<strong>em</strong> lentamente<br />

e são preenchidos pelos garotos por infindáveis brinca<strong>de</strong>iras: andar a “cavalo”, tomar “banho<br />

<strong>de</strong> rio”, “jogar futebol”, percorrer as ruas s<strong>em</strong> medo e freqüentar o “centro <strong>de</strong> lazer” on<strong>de</strong> são<br />

exibidos filmes <strong>em</strong> preto e branco, o que ameniza a dor da separação, já que a “criança do<br />

interior t<strong>em</strong> muita liberda<strong>de</strong>”. Contudo, o retorno à capital se transforma <strong>em</strong> exílio, pois “a<br />

vida é mais urbana”, mora-se <strong>em</strong> “prédios” e o vínculo com os pais, fragilizado pelo<br />

distanciamento, t<strong>em</strong> <strong>de</strong> <strong>ser</strong> reconstruído, mas “fica faltando um pedaço”, uma lacuna afetiva<br />

que também parece acompanhar o adolescente cujos pais se separam:<br />

164<br />

[...] meus pais viveram 16 anos juntos, quando se casaram eles eram parecidos,<br />

<strong>de</strong>pois cada um foi tomando um rumo na vida [...] já com 7, 8 anos eu ficava<br />

<strong>de</strong>sapartando briga, não briga física, mas briga oral, [...] a minha infância foi muito<br />

legal, mas a minha adolescência foi muito conturbada <strong>em</strong> função <strong>de</strong>ssa separação.<br />

[...] Faço terapia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os 17 anos, eu acho que a gran<strong>de</strong> parte da minha terapia foi<br />

para tratar exatamente a insegurança que eu tive aos 13 anos quando eu vi um lar<br />

que tinha 3 irmãos, um lar com pai e mãe, a casa gran<strong>de</strong> se <strong>de</strong>sfazer e eu per<strong>de</strong>r o<br />

contato com minhas irmãs e, eu optei ficar com meu pai porque meu pai s<strong>em</strong>pre foi<br />

o cara que não queria se separar, que queria viver mal mas queria viver casado<br />

(Gustavo).<br />

No Nor<strong>de</strong>ste, os indivíduos das classes médias, que atingiram a ida<strong>de</strong> adulta e se<br />

casaram, na década <strong>de</strong> 1960, pre<strong>ser</strong>vavam a monogamia e perpetuida<strong>de</strong> dos votos<br />

matrimoniais, mas, incorporavam novos valores, ou seja, passaram a questionar o código


moral assimétrico que rege a relação conjugal e os diferentes papéis atribuídos aos cônjuges. 58<br />

Entretanto, na década seguinte, o convívio do casal foi permeado por conflitos, a comunhão e<br />

sinergia entre o par se esvaíam e, aqueles que eram parecidos se estranhavam, a interação <strong>de</strong><br />

diferentes se per<strong>de</strong> <strong>em</strong> meio à rotinização cotidiana, o que provocava tensionamento na vida<br />

familiar.<br />

O <strong>de</strong>sencontro se instala e, a <strong>de</strong>speito das tentativas <strong>de</strong> Gustavo para intermediar as<br />

<strong>de</strong>savenças, a mãe retoma a busca da indiferenciação e completu<strong>de</strong> <strong>em</strong>ocional, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> refazer<br />

a vida, enquanto o pai luta para evitar o <strong>de</strong>scasamento 59 , prefere acomodar-se, suportar o<br />

<strong>de</strong>sgaste da relação a ter que admitir o <strong>de</strong>satamento do par, ou melhor, a perda <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong><br />

que o casamento oferece. Em suma, nos anos <strong>de</strong> 1970, o entrecruzamento entre o arcaico e o<br />

mo<strong>de</strong>rno (FIGUEIRA, 1985) faz com que os sujeitos tanto se apegu<strong>em</strong> aos mo<strong>de</strong>los<br />

tradicionais quanto adot<strong>em</strong> mo<strong>de</strong>los alternativos, consi<strong>de</strong>rados vanguardistas, mas <strong>de</strong> uma<br />

forma ou <strong>de</strong> outra, quase s<strong>em</strong>pre enfrentam o <strong>de</strong>scasamento ou buscam apoio psicoterápico.<br />

A separação dos pais gera, <strong>em</strong> Gustavo, um sentimento <strong>de</strong> insegurança 60 e faz com que<br />

ele seja solidário com o pai e direcione seu ressentimento para a mãe, responsabilizando-a<br />

pela dissolução da família. Neste sentido, afirma: – “Meu pai s<strong>em</strong>pre foi o cara que não queria<br />

se separar, queria viver mau, mas queria viver casado” e, para obter a cumplicida<strong>de</strong> do filho, o<br />

pai culpabiliza a esposa pela separação do casal – “Sua mãe quis separar, a culpa foi <strong>de</strong>la”.<br />

Somente com o auxílio da terapia Gustavo compreen<strong>de</strong> que “os dois tiveram sua parcela <strong>de</strong><br />

contribuição para que o casamento não <strong>de</strong>sse certo”, ou seja, diferent<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> épocas<br />

anteriores, quando o mal-estar se instala e não mais existe a comunicação e sinergia entre o<br />

par, a união per<strong>de</strong> a razão <strong>de</strong> <strong>ser</strong>.<br />

58<br />

Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Nicolaci-da-Costa (1985).<br />

59<br />

Sobre <strong>de</strong>scasamento e sentimentos experimentados por mulheres e homens, ver, por ex<strong>em</strong>plo, Gomes (1992);<br />

Muszkat (1992); Porchat (1992).<br />

60<br />

Sobre a reação dos filhos com a separação dos pais, ver, por ex<strong>em</strong>plo, Wagner (2002)<br />

165


As transformações na configuração familiar ensaiadas na década <strong>de</strong> 1970 são<br />

marcadas pela busca <strong>de</strong> uma relação conjugal mais igualitária, com papéis menos rígidos, o<br />

que se reflete na educação dos filhos. Para Gustavo, a educação socializadora é consi<strong>de</strong>rada<br />

“leve” e <strong>de</strong> “boa qualida<strong>de</strong>”, ou seja, <strong>em</strong>bora a família permaneça como locus <strong>de</strong><br />

aprendizag<strong>em</strong> das regras <strong>de</strong> comportamento e <strong>de</strong> convívio social, esse processo ocorre “s<strong>em</strong><br />

imposições”, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> da maior atenção e apoio afetivo que os pais <strong>de</strong>dicam aos filhos.<br />

Entretanto, a trajetória dos indivíduos não se faz <strong>de</strong> forma única, não só fatalida<strong>de</strong>s e<br />

circunstâncias, mas o próprio contexto <strong>em</strong> que estão in<strong>ser</strong>idos conspira para traçar caminhos<br />

distintos: Lauro l<strong>em</strong>bra da adolescência como t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, com “muitas namoradas” e<br />

“amigos”; Nelson recorda da responsabilida<strong>de</strong> e trabalho na “venda” da mãe com a finalida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ajudar no orçamento doméstico, mas também da <strong>de</strong>dicação aos estudos como via <strong>de</strong><br />

libertação; Flávio revive o “trauma” <strong>de</strong> quebrar dois <strong>de</strong>ntes <strong>em</strong> um aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> bicicleta, o que<br />

o torna um “adolescente tímido” ou ainda aquele, como Ivan, cujas perdas familiares e<br />

afetivas impulsionam mudanças profundas:<br />

166<br />

[...] foi uma boa infância, mas eu perdi minha mãe muito cedo, minha convivência<br />

maior, <strong>de</strong>pois dos 11 anos, foi com meu pai, [que] fazia papel dos dois durante<br />

minha adolescência toda e ele só foi casar novamente cinco ou seis anos <strong>de</strong>pois,<br />

então eu meio que assumi uma responsabilida<strong>de</strong> muito cedo, tanto para cuidar das<br />

minhas irmãs, que eram muito novas, quanto começar a assumir papéis <strong>de</strong>ntro da<br />

casa, [...] papéis <strong>de</strong> orientar minhas irmãs e até nas tarefas internas da casa, tipo<br />

cozinhar, arrumar casa, levá-las para a escola, arrumá-las, [...] ir ao banco, andar<br />

pela cida<strong>de</strong>, tudo isso eu aprendi muito cedo e tive uma in<strong>de</strong>pendência muito gran<strong>de</strong>,<br />

[...] justamente porque meu pai já era um pouco mais <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, ele não tinha muito<br />

t<strong>em</strong>po, ele trabalhava o t<strong>em</strong>po todo (Ivan).<br />

Os pais, s<strong>em</strong> se dar<strong>em</strong> conta, criam expectativas <strong>em</strong> relação aos primogênitos e<br />

esperam que sejam correspondidas, caso contrário, mostram-se menos compassivos e<br />

tolerantes que com os irmãos menores, para qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>v<strong>em</strong> <strong>ser</strong>vir <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo e ex<strong>em</strong>plo. Não<br />

raro, os primeiros filhos têm mais encargos e responsabilida<strong>de</strong>s, ou seja, assum<strong>em</strong> tarefas do<br />

pai ou da mãe, cuidam dos irmãos mais novos e os orientam. No entanto, educar e cuidar


ainda são consi<strong>de</strong>rados papéis f<strong>em</strong>ininos, daí porque as expectativas e cobranças sociais<br />

ating<strong>em</strong> com mais freqüência as primogênitas 61 .<br />

No entanto, ob<strong>ser</strong>va-se que as diferenças <strong>de</strong> gênero no tocante a papéis, ativida<strong>de</strong>s,<br />

consi<strong>de</strong>radas masculinas, per<strong>de</strong>m seu caráter “natural”: na segunda meta<strong>de</strong> da década <strong>de</strong><br />

1970, por ex<strong>em</strong>plo, o pai <strong>de</strong> Ivan per<strong>de</strong> a esposa e, ao invés <strong>de</strong> buscar uma mãe substituta para<br />

os filhos ou <strong>de</strong>ixá-los sob os cuidados <strong>de</strong> avós ou parentes, assume o papel f<strong>em</strong>inino – oferece<br />

apoio e afeto –, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que continua exercendo o papel masculino, trabalha<br />

incansavelmente para prover o sustento econômico do grupo familiar, o que o sobrecarrega.<br />

Diante das dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas, toma Ivan, o filho primogênito, como aliado e ele,<br />

prestativo, torna-se responsável pelo b<strong>em</strong>-estar da família, incorpora o papel materno, realiza<br />

as tarefas domésticas, faz pagamentos, orienta e cuida das irmãs mais novas.<br />

Ao assumir tais encargos, Ivan <strong>de</strong>senvolve um processo <strong>de</strong> adultização e passa a exigir<br />

mais <strong>de</strong> si mesmo, mas também se torna in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e, ensaia um movimento<br />

<strong>de</strong>sestabilizador das diferenças <strong>de</strong> gênero, isto é, o contexto familiar o obriga a assumir papéis<br />

até então assimilados como f<strong>em</strong>ininos.<br />

Mulheres e homens têm a sua história pessoal e as experiências vividas durante a<br />

infância e adolescência <strong>de</strong>senhadas pelo contexto social e familiar, cuja trama é enfeixada<br />

pelos recortes <strong>de</strong> gênero, geração e etnia, <strong>de</strong>finindo traçados e caminhos que se entrecruzam<br />

<strong>em</strong> meio a contradições que traz<strong>em</strong>, lado a lado, diferenças e s<strong>em</strong>elhanças, repetições e<br />

transgressões, aceitação e negação <strong>de</strong> valores e representações culturais acerca das escolhas e<br />

padrões <strong>de</strong> comportamento ensaiados na vida adulta.<br />

61 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Perez (2002) que, ao refletir sobre as características dos primogênitos e seus<br />

relacionamentos no contexto familiar, i<strong>de</strong>ntifica diferenças <strong>de</strong> gênero significativas na maneira dos primeiros<br />

filhos interagir<strong>em</strong> com os mais novos e <strong>de</strong>staca que as expectativas sociais <strong>em</strong> relação ao papel das<br />

primogênitas se voltam para a educação e cuidados, além das meninas recorrer<strong>em</strong> à persuasão e os meninos ao<br />

po<strong>de</strong>r físico nas relações com a fratria.<br />

167


4.2 O INVESTIMENTO NA CARREIRA PROFISSIONAL: UM NOVO CENÁRIO<br />

PARA A SOLTEIRICE?<br />

Apesar <strong>de</strong> ter<strong>em</strong> ida<strong>de</strong>s distintas e pertencer<strong>em</strong> a etnias e gerações diferentes, a<br />

trajetória <strong>de</strong> vida das mulheres investigadas é marcada pelo investimento nos estudos e<br />

carreira profissional, todas possu<strong>em</strong> nível superior, Helena e Ana cursaram especialização,<br />

Gina fez mestrado, Flora e Clara, o doutorado, já a mais nova, prepara-se para tentar o<br />

mestrado, mas, as razões que as impulsionaram a priorizar o trabalho e busca <strong>de</strong> realização<br />

profissional n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre são as mesmas: Clara busca aten<strong>de</strong>r as expectativas paternas e obter<br />

segurança econômica, Ana rompe com os mo<strong>de</strong>los e papéis que lhe eram <strong>de</strong>signados e,<br />

finalmente, Eva segue os mo<strong>de</strong>los geracionais instituídos, mas certamente, suas escolhas estão<br />

relacionadas com a educação recebida, conforme evi<strong>de</strong>nciam seus relatos:<br />

168<br />

[...] eu estu<strong>de</strong>i o ginásio <strong>em</strong> um colégio f<strong>em</strong>inino, <strong>de</strong>pois passaram alguns anos s<strong>em</strong><br />

ativida<strong>de</strong> profissional, era aquela história <strong>de</strong> esperar marido, apren<strong>de</strong>r costura,<br />

cozinha, esses cursinhos assim, mais tar<strong>de</strong> é que eu comecei a me sentir inquieta e<br />

insatisfeita com isso, fui trabalhar e voltei a estudar à noite. Eu já estava com vinte e<br />

tantos anos nessa época, fiz o curso secundário à noite, secretariado, [...] <strong>de</strong>pois [...]<br />

resolvi fazer faculda<strong>de</strong> (Indira).<br />

Minha irmã mais velha casou muito cedo, com <strong>de</strong>zessete anos, aliás, aos<br />

<strong>de</strong>zenove anos eu já era a coroa da família, [...] uma noivou com quinze,<br />

com <strong>de</strong>zessete já estava com menino no colo, mas eu acho que é a tal<br />

história, o instinto <strong>de</strong> maternida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> querer romper ou <strong>de</strong> querer ter seu<br />

espaço. Cada um foi procurando seus caminhos, eu optei por in<strong>de</strong>pendência<br />

(Ana).<br />

Para as mulheres nascidas nas décadas <strong>de</strong> 1940-1950, o casamento e a maternida<strong>de</strong><br />

compunham o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequenas eram iniciadas nas prendas do lar,<br />

ob<strong>ser</strong>vavam os afazeres domésticos realizados pela mãe e a imitavam <strong>em</strong> suas brinca<strong>de</strong>iras<br />

com carrinhos <strong>de</strong> bebê, pequenos móveis e utensílios que <strong>de</strong>coravam sua casa <strong>de</strong> bonecas.<br />

Mocinhas, fantasiavam com o príncipe encantado que as guiaria no caminho para realização<br />

do seu <strong>de</strong>stino natural e, enquanto teciam a espera, faziam cursinhos <strong>em</strong> que aprendiam a<br />

cerzir, bordar o futuro enxoval e cozinhar, ou seja, preparavam-se para <strong>ser</strong><strong>em</strong> donas <strong>de</strong> casa<br />

ex<strong>em</strong>plares, tal qual sua mãe. Por isso, apesar do nível <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inino ter


aumentado a partir da década <strong>de</strong> 1950, as moças casadoiras concluíam o ensino médio apenas<br />

com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> adquirir<strong>em</strong> uma “cultura geral” que as auxiliasse a atrair e entreter os<br />

rapazes, assim como aprimorar<strong>em</strong> as habilida<strong>de</strong>s relativas à administração do lar e educação<br />

dos filhos.<br />

Embora o trabalho extra-lar tenha obtido consentimento social no início dos anos <strong>de</strong><br />

1960, não era estimulado para as moças casadoiras, pois o exercício dos papéis <strong>de</strong> esposa,<br />

mãe e dona <strong>de</strong> casa mostrava-se incompatível com uma carreira profissional. Além disso, os<br />

homens não se sentiam atraídos por mulheres in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, daí porque o <strong>em</strong>prego só era<br />

recomendado para as mulheres <strong>solteira</strong>s, cujas chances <strong>de</strong> contrair matrimônio pareciam<br />

r<strong>em</strong>otas. Por outro lado, as jovens que se recusavam a cumprir seu <strong>de</strong>stino natural e<br />

priorizavam a in<strong>de</strong>pendência econômica pela via do trabalho estavam fadadas ao não-<br />

casamento.<br />

Vale ressaltar que, após os 25 anos, caso as moças não tivess<strong>em</strong> um preten<strong>de</strong>nte <strong>em</strong><br />

perspectiva, eram perseguidas pelo rótulo <strong>de</strong> “encalhadas”, cuja incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conquistar<br />

um marido podia <strong>ser</strong> atenuada pelo ingresso no mercado <strong>de</strong> trabalho. Em outras palavras, o<br />

trabalho r<strong>em</strong>unerado atuava como alternativa substitutiva para garantir um futuro seguro às<br />

“<strong>solteiro</strong>nas”, mas também como proteção contra as pressões sociais, situações vexatórias a<br />

que se encontravam expostas e, ou libertação da <strong>de</strong>pendência familiar. Neste sentido, as<br />

“<strong>solteiro</strong>nas” retomavam os estudos, cursavam o magistério ou secretariado e, abraçavam uma<br />

carreira profissional <strong>em</strong> que reprisavam a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cuidar e <strong>ser</strong>vir vinculada à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

f<strong>em</strong>inina, exercitada na dimensão privada.<br />

Na década <strong>de</strong> 1960, as famílias das classes médias <strong>de</strong>monstram uma maior<br />

preocupação com a educação dos filhos e, as moças começam a ingressar nas universida<strong>de</strong>s,<br />

<strong>em</strong>bora Jandira tenha sido forçada pelos pais, pois “não gostava <strong>de</strong> estudar”, ou melhor, t<strong>em</strong>ia<br />

se afastar da esfera doméstica, on<strong>de</strong> se sentia protegida, porque foi “criada muito apegada à<br />

169


família”, mas, talvez por isso mesmo, acate seus conselhos s<strong>em</strong> resistência e <strong>de</strong>cida cursar a<br />

faculda<strong>de</strong>.<br />

Nesse período, a escolha profissional das moças se concentra <strong>em</strong> cursos<br />

predominant<strong>em</strong>ente f<strong>em</strong>ininos, isto é, áreas para as quais a mulher apresenta uma “vocação<br />

natural”, tais como Pedagogia, Enfermag<strong>em</strong>, Serviço Social entre outras, cuja r<strong>em</strong>uneração<br />

reflete o caráter secundário que lhes é atribuído socialmente, na medida <strong>em</strong> que esses cursos<br />

são consi<strong>de</strong>rados uma co-extensão das ativida<strong>de</strong>s f<strong>em</strong>ininas realizadas na esfera doméstica, o<br />

que os <strong>de</strong>squalifica enquanto profissão 62 .<br />

O trabalho assalariado provoca mudanças na vida das mulheres que, nos anos<br />

seguintes, tal qual Helena, passam a conceber “a profissão como alvo <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência, é o<br />

meu caminho para me autogerir”, ou seja, a in<strong>de</strong>pendência econômica lhes permite tomar as<br />

ré<strong>de</strong>as <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>stino, inclusive sob a influência dos conselhos paternos:<br />

170<br />

Minha mãe é branca e meu pai é negro, [...] eu era a única negra da escola, eu era<br />

discriminada, até para brincar <strong>de</strong> roda, eles [os colegas] não queriam pegar na minha<br />

mão, [...] socialmente, economicamente eu não estava abaixo <strong>de</strong>les, mas eu era<br />

negra, eles tinham uma diferença comigo. [...] Meu pai criou a gente dizendo assim:<br />

Sabe qual é o seu casamento? Seu casamento é uma boa formatura, é uma boa<br />

relação profissional que você tenha, é a segurança <strong>de</strong> um <strong>em</strong>prego, [...] um bom<br />

<strong>em</strong>prego, esse é que é o melhor casamento, e eu acho que ele passou para todo<br />

mundo, porque são três mulheres s<strong>em</strong> casar, e s<strong>em</strong> sofrer porque não casaram<br />

(Clara).<br />

Eu tive a felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>ser</strong> pobre, [...] mas Papai Noel s<strong>em</strong>pre chegava na minha<br />

casa, aquilo que a gente pedia (Eva).<br />

[...] Eu me cobrei muito <strong>em</strong> relação aos estudos porque eu quero, acredito que<br />

consegui muito, <strong>ser</strong> uma profissional, viver pela minha capacida<strong>de</strong> intelectual e isso<br />

para mim hoje é um motivo <strong>de</strong> orgulho (Flora).<br />

Na década <strong>de</strong> 1960, os padrões <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong> que or<strong>de</strong>nam o mercado afetivo<br />

também são condicionados por estereótipos raciais e os casais classificados como inter-<br />

raciais, certamente, são alvo <strong>de</strong> discriminação e preconceito. Embora o fato da mãe <strong>de</strong> Clara<br />

<strong>ser</strong> branca contribua para a mobilida<strong>de</strong> social do marido e para que as filhas tenham acesso a<br />

uma educação <strong>de</strong> maior qualida<strong>de</strong>, não consegue impedir que estas também enfrent<strong>em</strong> a<br />

62 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Tavares, Oliveira e Lima (2004); Fagun<strong>de</strong>s (2002); Bassanezi (1996).


discriminação e preconceito, explicitadas pelas crianças brancas e, ou mais claras, que<br />

reproduz<strong>em</strong> os mol<strong>de</strong>s <strong>de</strong> socialização assimilados no convívio familiar, a <strong>de</strong>speito do<br />

“racismo cordial” existente na socieda<strong>de</strong> brasileira.<br />

Neste sentido, os pais invest<strong>em</strong> na educação da prole e, cresce o ingresso <strong>de</strong> mulheres<br />

negras nas universida<strong>de</strong>s no período <strong>de</strong> 1960-1980, <strong>em</strong>bora elas também opt<strong>em</strong> por cursos<br />

“tipicamente f<strong>em</strong>ininos” e com menor prestígio social. 63 O acesso ao ensino superior e um<br />

<strong>em</strong>prego estável substitui a segurança proporcionada pelo matrimônio, na medida <strong>em</strong> que<br />

forjam sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, elevam sua auto-estima e lhes asseguram in<strong>de</strong>pendência econômica e<br />

mobilida<strong>de</strong> social.<br />

Para qu<strong>em</strong> se torna adolescente na década <strong>de</strong> 1980, se a <strong>de</strong>dicação aos estudos oferece<br />

segurança e in<strong>de</strong>pendência econômica, é também via <strong>de</strong> realização profissional, autonomia e<br />

crescimento pessoal, mudanças subjetivas que tornam a mulher ainda mais exigente consigo<br />

mesma. O ingresso <strong>em</strong> cursos <strong>de</strong> pós-<strong>graduação</strong> representa, para Gina, a “oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

vislumbrar outro mundo”, principalmente se for realizado <strong>em</strong> outro estado, on<strong>de</strong> adquire dois<br />

diplomas, “o da formação e o da vida”, pois conhece outras pessoas e “culturas”, liberta-se da<br />

vigilância familiar e social, testa seus limites e possibilida<strong>de</strong>s.<br />

A trajetória <strong>de</strong> vida dos homens investigados também é <strong>de</strong>terminada pela intersecção<br />

entre as dimensões sócio-culturais <strong>de</strong> gênero, grupo étnico e geração a que pertenc<strong>em</strong> e, por<br />

isso, não apresenta unicida<strong>de</strong>. O trabalho exerce centralida<strong>de</strong> na vida <strong>de</strong> todos, mas se para<br />

Abílio e Camilo, torna-se a via pela qual ensaiam movimentos <strong>de</strong> mudanças, para Edson<br />

<strong>de</strong>tém um caráter <strong>de</strong> obrigatorieda<strong>de</strong> e, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre é concebido como fonte <strong>de</strong> realização<br />

pessoal. Ao contrário das mulheres entrevistadas, n<strong>em</strong> todos os homens têm nível superior 64<br />

63 Ver, também, Barcelos (1999).<br />

64 Inicialmente, coloquei como um dos critérios seletivos, que os entrevistados tivess<strong>em</strong> nível superior.<br />

Entretanto, somente fiquei sabendo que Camilo t<strong>em</strong> o nível superior incompleto, durante a entrevista. Duas<br />

razões me fizeram incluí-lo na amostra: as reconfigurações atuais das classes médias e, principalmente, a sua<br />

narrativa biográfica instigante que espelha as mudanças provocadas pela contracultura e interiorização das<br />

chamadas “cultura psi” (VELHO, 2002; FIGUEIRA, 1985)<br />

171


e/ou cursos <strong>de</strong> pós-<strong>graduação</strong>, pois se para uns o investimento nos estudos é concebido como<br />

meio <strong>de</strong> crescimento profissional e ascensão social, para outros adquire uma formalida<strong>de</strong> que<br />

às vezes repudiam.<br />

172<br />

Eu me formei [...], tive oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter bons <strong>em</strong>pregos, muito legal, foi bom.<br />

[...] Aí a certa altura da minha vida, eu rompi [...] e achei que podia manter o mesmo<br />

status fazendo uma coisa que eu gostava <strong>de</strong>mais [...] eu investi tudo que tinha nessa<br />

idéia e continuo até hoje nela, mas nesse meio t<strong>em</strong>po, [...] eu cheguei a quebrar, me<br />

meti com outras coisas, [...] tive que voltar à condição <strong>de</strong> assalariado, [...] quebrei <strong>de</strong><br />

novo, [...] voltei <strong>de</strong> novo [antiga profissão] agora não t<strong>em</strong> mais volta [...] estou<br />

trabalhando na informalida<strong>de</strong>, eu não tenho <strong>em</strong>presa (Abílio).<br />

Eu já fazia clínica, mas <strong>em</strong>prego mesmo, [...] foi nessa faixa <strong>de</strong> 30 anos que eu<br />

entrei no banco, [...] trabalhei com várias coisas, gerenciei uma subsidiária, foi<br />

horrível, eu não gostava do trabalho, aí <strong>de</strong>pois [...] dirigi uma casa para adolescentes,<br />

[...] mas aí acabou. Voltei a ficar só com clínica, [...] mas faltava alguma coisa, e eu<br />

acabei indo ajudar meu irmão no restaurante <strong>de</strong>le, <strong>de</strong>pois eu vi que ou eu largava ou<br />

eu morria, [...] aí fiquei <strong>de</strong>z anos <strong>em</strong> um instituto <strong>de</strong> pesquisa, [...] v<strong>em</strong> um sujeito<br />

<strong>ser</strong> diretor, que era um sujeito burro e mau caráter até o limite e ele estava <strong>de</strong>cidido a<br />

me <strong>de</strong>mitir, eu me afastei por probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,[...] estou afastado até hoje, [...]<br />

hoje <strong>em</strong> dia trabalho só <strong>em</strong> uma clínica (Bernardo).<br />

Eu nunca me formei <strong>em</strong> nada, eu fiz faculda<strong>de</strong> durante três anos, [...] fazia dança,<br />

[...] fui professor <strong>de</strong> uma escola, [...] comecei a fazer teatro, [...] tinha muita vonta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> fazer figurino, [..] aí resolvi entrar num curso <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> moda e estilismo [...]<br />

e <strong>de</strong>pois fiz figurino no corpo livre, aí eu achei que esses dois cursos já me davam<br />

condições <strong>de</strong> ficar in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e eu também consegui meu registro profissional<br />

como cenógrafo e figurinista. [...] Eu s<strong>em</strong>pre li, s<strong>em</strong>pre estu<strong>de</strong>i, então, não senti<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter escola formalizada, [...] anos <strong>de</strong>pois ganhei uma bolsa para fazer<br />

um curso nos Estados Unidos, fiz um curso técnico <strong>de</strong> figurino e trabalhei num ateliê<br />

também, [...] voltei para o Brasil, [...] aí eu fui para a Holanda, <strong>de</strong> lá eu fui para<br />

Londres, [...] para Lisboa, [...] dava dicas <strong>de</strong> moda <strong>em</strong> um jornal, numa revista , [...]<br />

comecei a trabalhar para a televisão. [...] Depois eu vim parar aqui por acaso, <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> muitos anos, [...] e aí eu fui ficando s<strong>em</strong> querer [...] e aí eu comecei a pintar por<br />

acaso, [...] t<strong>em</strong> mais ou menos seis anos que eu trabalho exclusivamente com pintura<br />

(Camilo).<br />

Na década <strong>de</strong> 1950, a educação <strong>de</strong> meninos e meninas é submetida a um dualismo <strong>de</strong><br />

gênero 65 , cujos códigos uniformizantes <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> como locus da in<strong>ser</strong>ção f<strong>em</strong>inina no mundo a<br />

dimensão privada, on<strong>de</strong> a mulher exercita a aprendizag<strong>em</strong> dos afetos e cuidados com a família<br />

e o lar, enquanto o hom<strong>em</strong> é reconhecido enquanto tal na esfera pública, por meio do trabalho.<br />

Assim, para os rapazes, ter uma “boa base escolar” consiste no caminho convencional para<br />

ingressar <strong>em</strong> uma universida<strong>de</strong> e, conseguir “bons <strong>em</strong>pregos”, isto é, galgar conquistas<br />

profissionais que lhes assegur<strong>em</strong> sucesso, respeitabilida<strong>de</strong> e in<strong>de</strong>pendência econômica. Em<br />

65 Ver Bassanezi (1996).


outras palavras, enquanto a ativida<strong>de</strong> profissional possibilita à mulher extrapolar o universo<br />

extra-doméstico, o mundo é oferecido ao hom<strong>em</strong> por meio do trabalho – se para ela o trabalho<br />

é concebido como conquista através da qual se reinventa, ainda que não se <strong>de</strong>sfaça dos papéis<br />

exercidos na esfera privada, para ele o trabalho é auto-afirmatório dos atributos masculinos e,<br />

por isso mesmo, naturalizado. 66<br />

Neste sentido, afirma Abílio, a adolescência dos rapazes é um período “divertido”, <strong>em</strong><br />

que conhec<strong>em</strong> “gente diferente”, bagunçam com a “turma” <strong>de</strong> amigos, <strong>em</strong>bora “escondido<br />

dos pais”, estratégia utilizada para burlar<strong>em</strong> a vigilância, mas há também aqueles que se<br />

<strong>de</strong>dicam aos estudos e,ou se refugiam nos livros, enquanto são preparados para assumir<strong>em</strong> a<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social atribuída ao hom<strong>em</strong> adulto – trabalhador. Em suma, enquanto a<br />

adolescência é percebida como fase <strong>em</strong> que consegu<strong>em</strong> escapar da or<strong>de</strong>m social, s<strong>em</strong> no<br />

entanto confrontá-la, a vida adulta traz “uma história complicada”: <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m romper com o<br />

estabelecido, institucionalizado e ressignificam o valor do trabalho.<br />

De fato, os relatos <strong>de</strong> Abílio, Bernardo e Camilo espelham algumas vertentes da lógica<br />

contracultural que viceja nas décadas <strong>de</strong> 1960 – 1970, ao contestar<strong>em</strong> os valores societários<br />

vigentes: o espírito libertário <strong>de</strong> Camilo rejeita a formalização do ensino, que não aten<strong>de</strong> suas<br />

expectativas e, escolhe vivenciar o conhecimento <strong>de</strong> forma <strong>em</strong>pírica; Abílio abandona a<br />

“condição <strong>de</strong> assalariado” e, mesmo Bernardo, que mantém um <strong>em</strong>prego formal, tece<br />

estratégias para suprir o el<strong>em</strong>ento faltante, ou seja, busca um lugar <strong>em</strong> que trabalhe com o que<br />

gosta. Contudo, todos se esquivam do trabalho burocratizado, repetitivo, cuja hierarquia<br />

verticalizada e cumprimento <strong>de</strong> regras tolh<strong>em</strong> sua criativida<strong>de</strong> e, escolh<strong>em</strong> fazer aquilo que os<br />

satisfaz e estimula intelectualmente. Em outras palavras, <strong>em</strong>bora a centralida<strong>de</strong> do trabalho<br />

<strong>em</strong> suas vidas seja pre<strong>ser</strong>vada, esse trabalho ganha um novo sentido, na medida <strong>em</strong> que per<strong>de</strong><br />

o caráter <strong>de</strong> obrigatorieda<strong>de</strong> e passa a <strong>ser</strong> conduzido pelo prazer.<br />

66 Ver Nolasco (1993).<br />

173


No entanto, sua rebeldia e transgressão têm limites, não abdicam <strong>de</strong> seu status, n<strong>em</strong><br />

tampouco do estilo <strong>de</strong> vida. A perda <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r aquisitivo e, ou dificulda<strong>de</strong>s financeiras os<br />

faz<strong>em</strong> abandonar o trabalho escolhido, conforme esclarece Abílio – “por não estar me dando o<br />

que eu tinha tido” –, e retornar à antiga ativida<strong>de</strong> profissional, ainda que t<strong>em</strong>porariamente,<br />

que lhe assegura estabilida<strong>de</strong> econômica e segurança. Já Bernardo, realiza o caminho inverso,<br />

reluta <strong>em</strong> exercer um trabalho assalariado, adia enquanto po<strong>de</strong>, mas é impelido pelas<br />

contingências, <strong>em</strong>bora com restrições, pois n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre o <strong>ser</strong>viço ou as chefias a que está<br />

subordinado são compatíveis com a sua cultura e nível intelectual, o que o leva a percorrer o<br />

caminho <strong>de</strong> volta, isto é, retoma a carreira abandonada e volta à (<strong>de</strong>s)or<strong>de</strong>m vivenciada como<br />

profissional liberal.<br />

Por outro lado, a insatisfação <strong>de</strong> Camilo com a padronização, homogeneização dos<br />

mo<strong>de</strong>los e posturas convencionais o conduz à busca incessante <strong>de</strong> novos caminhos – a<br />

performance e o espetáculo – a arte se transforma <strong>em</strong> mecanismo <strong>de</strong> transgressão através do<br />

qual exercita o inconformismo com os valores burgueses (ADELMAN, 2001), ou seja, a<br />

dança, o teatro, o estilismo e a pintura são a forma que encontra para contestar os estilos <strong>de</strong><br />

vida, percepções <strong>de</strong> mundo e comportamentos da cultura dominante.<br />

Sua rebeldia engendra uma combinação singular com os mo<strong>de</strong>los arquetípicos<br />

tradicionais, <strong>de</strong>sin<strong>de</strong>ntifica-se com o ensino burocrático-autoritário da universida<strong>de</strong>, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que valida os cursos técnicos e o registro profissional que lhe asseguram o<br />

<strong>em</strong>prego e in<strong>de</strong>pendência econômica. Embora se <strong>de</strong>fina como “totalmente outsi<strong>de</strong>r, fora <strong>de</strong>ssa<br />

coisa dos padrões preestabelecidos”, isso não significa que seja indisciplinado. Afinal, não<br />

abraçou o radicalismo dos a<strong>de</strong>ptos da contracultura, avessos aos paradigmas sócio-<br />

institucionais, ou seja, consi<strong>de</strong>ra-se livre, mas t<strong>em</strong> “contas a pagar” e “regras <strong>de</strong> conduta” que<br />

procura seguir no convívio social.<br />

174


A geração seguinte também procura contestar os padrões <strong>de</strong> comportamento e normas<br />

sociais vigentes, <strong>em</strong>bora faça uma releitura menos radical ou esboce uma relativização: se um<br />

prefere evitar confrontos e trama um acumpliciamento entre resistência e conformismo, outro<br />

limita a subversão ao âmbito pessoal, mas há qu<strong>em</strong> priorize a vida profissional ou aquele que<br />

adia o cumprimento dos papéis sociais <strong>de</strong>signados para a fase adulta, conforme <strong>de</strong>monstram<br />

seus relatos:<br />

175<br />

[...] meu primeiro trabalho foi <strong>em</strong> banco, [...] eu tinha que trabalhar, meu pai pagava<br />

a faculda<strong>de</strong>, [...] e com isso atrasei a faculda<strong>de</strong>, [...] resolvi sair do banco, [...] fui<br />

trabalhar no escritório <strong>de</strong> advocacia <strong>de</strong> um amigo, [...] <strong>de</strong>pois fiz um concurso,<br />

<strong>de</strong>pois, aí fiz concurso para [o órgão] on<strong>de</strong> estou até hoje. [...] Estou fazendo<br />

especialização, fiz uma e estou fazendo outra, [...] eu gosto <strong>de</strong> dizer assim, eu sou<br />

um pouco vagabundo mesmo, eu fiz essa opção mesmo <strong>de</strong>sse trabalho <strong>de</strong> escala, [...]<br />

porque na escala eu dou na folga o que eu quero para o meu t<strong>em</strong>po, eu tenho um<br />

colega que fala assim, ‘é o ócio s<strong>em</strong> culpa’, eu acho essa expressão <strong>de</strong>le ótima e eu<br />

quis adotar isso para mim mesmo, então essa coisa <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, <strong>de</strong> ler <strong>em</strong><br />

livro ou manual, estou fora, não é por aí (Edson).<br />

[...] eu terminei o curso [técnico] e fui <strong>ser</strong> professor, aí com um ano fui<br />

nomeado para [...] um trabalho que até hoje estou nele. [...] Eu tinha muita<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer um curso na área social, [...] e vim <strong>em</strong>bora. [...] Eu sou<br />

muito organizado nas coisas e muito cauteloso, então, eu só vim com essa<br />

condição, que eu já tinha <strong>em</strong>prego, não viria se fosse para [...] aventurar<br />

(Dario).<br />

As narrativas <strong>de</strong> Edson e Dario são marcadas pela ambivalência, a resistência às<br />

normas sociais e i<strong>de</strong>ntitárias per<strong>de</strong> a intrepi<strong>de</strong>z e impetuosida<strong>de</strong> daqueles que vivenciaram a<br />

contracultura e são atravessadas pela cautela, ou seja, não há lugar para experimentações, a<br />

aventura e risco são substituídos pela segurança, que se materializa através da aprovação <strong>em</strong><br />

concursos públicos e lhes assegura <strong>em</strong>pregos estáveis. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, suas construções<br />

subjetivas tramam artifícios para incorporar<strong>em</strong> a intrusão <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos não-convencionais: o<br />

primeiro <strong>de</strong>squalifica a rotinização e controle a que está submetido na ativida<strong>de</strong> profissional, a<br />

qual se reveste <strong>de</strong> um caráter obrigatório e, portanto, dissociado do prazer, mas o trabalho por<br />

escala lhe possibilita, pelo menos nos dias <strong>de</strong> folga, distanciar-se da mesmice e tensão<br />

cotidianas, pois po<strong>de</strong> fazer aquilo que gosta, s<strong>em</strong> se sentir culpado. Em suma, o trabalho


consiste <strong>em</strong> encenação que reprisa vezes s<strong>em</strong> conta, enquanto espera com ansieda<strong>de</strong> as folgas<br />

que o libertam, ainda que t<strong>em</strong>porariamente.<br />

Por outro lado, a migração <strong>de</strong> Dario para Aracaju acolhe a intencionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

subverter a padronização <strong>de</strong> comportamentos viris apropriada nas cida<strong>de</strong>s interioranas, na<br />

medida <strong>em</strong> que o distancia do controle familiar/comunitário e possibilita o ingresso <strong>em</strong> um<br />

curso da área social. Nas universida<strong>de</strong>s brasileiras, os cursos <strong>de</strong> <strong>ciências</strong> humanas e educação<br />

ainda são concebidos como espaços gendrados – a presença maciça das mulheres os classifica<br />

como “profissões f<strong>em</strong>ininas”, ou seja, não-masculinas –, sob a alegação <strong>de</strong> que são<br />

<strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> base tecnocientífica, uma vez que a preocupação com o b<strong>em</strong>-estar individual<br />

ou coletivo não requer qualificação, consiste <strong>em</strong> qualida<strong>de</strong> inata atribuída ao f<strong>em</strong>inino.<br />

Contudo, vale <strong>de</strong>stacar, mesmo Flávio, que tenta, inicialmente, um curso “masculino”,<br />

na área <strong>de</strong> exatas e, não consegue <strong>ser</strong> aprovado no vestibular, atribui a escolha pelas chamadas<br />

“profissões f<strong>em</strong>ininas” a um “golpe do <strong>de</strong>stino”, e não a uma pretensa facilida<strong>de</strong> e menor<br />

concorrência. Além disso, diferent<strong>em</strong>ente das mulheres, t<strong>em</strong> que vencer “gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>safios”,<br />

principalmente a resistência paterna. Em ambos os casos, a subversão é “organizada” no<br />

âmbito pessoal e planejada <strong>de</strong> forma a não ameaçar totalmente os valores viris incorporados,<br />

isto é, a aprovação <strong>em</strong> um concurso público e a estabilida<strong>de</strong> no <strong>em</strong>prego os resguarda do<br />

fracasso, atesta o seu sucesso e garante a aceitação pessoal e, ou social.<br />

O trabalho t<strong>em</strong> seu valor reafirmado pelos homens mais jovens, na faixa etária dos 30<br />

anos, é “<strong>de</strong>safiante” e “exaustivo”, têm que conciliá-lo com outras ativida<strong>de</strong>s profissionais ou<br />

com o estudo, o que os “sobrecarrega”. Reproduz<strong>em</strong>, portanto, os valores tradicionais que<br />

associam o trabalho a uma “batalha” 67 da qual <strong>de</strong>v<strong>em</strong> sair vencedores e, por isso, as “horas<br />

livres” para se <strong>de</strong>dicar<strong>em</strong> ao lazer e à vida pessoal são poucas, <strong>em</strong>bora haja qu<strong>em</strong> procure<br />

adiar esse confronto, tal como faz Miguel.<br />

67 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Nolasco (1993), para qu<strong>em</strong> a linguag<strong>em</strong> adotada pelos homens para se referir<strong>em</strong> ao trabalho<br />

t<strong>em</strong> sido a linguag<strong>em</strong> das guerras, daí comumente usar<strong>em</strong> termos como “batalhar”, “lutar” ou “vencer”, na<br />

tentativa <strong>de</strong> amenizar sentimentos <strong>de</strong> insegurança e impotência face à finitu<strong>de</strong> da vida.<br />

176


177<br />

Meu pai trabalhava <strong>em</strong> uma firma e minha mãe tomava conta <strong>de</strong> uma ‘venda’ que<br />

tinham <strong>em</strong> casa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequeno, eu e meu irmão ajudávamos, [...] era chegar da<br />

escola e trabalhar. Aos 18 anos, quando ia fazer o Serviço Militar, meu pai morreu,<br />

tive então que trabalhar, como filho mais velho, para sustentar minha mãe e meu<br />

irmão. Tentei três vezes até <strong>ser</strong> aprovado na Escola Técnica, o que consi<strong>de</strong>ro um<br />

divisor <strong>de</strong> águas, se consegui alcançar esse objetivo, po<strong>de</strong>ria conquistar qualquer<br />

coisa e, assim foi. Quando concluí o curso técnico, ainda muito jov<strong>em</strong>, fui<br />

selecionado por duas <strong>em</strong>presas, optei por uma na área <strong>de</strong> petróleo, mas assim que<br />

comecei, disse a mim mesmo – ‘eu não fico aqui <strong>de</strong>z anos’ – e, <strong>de</strong> fato, após nove<br />

anos saí da <strong>em</strong>presa. Me formei, fiz mestrado e hoje ensino na <strong>graduação</strong> e pós<strong>graduação</strong><br />

<strong>de</strong> uma universida<strong>de</strong> (Nelson).<br />

[...] <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algumas tentativas me tornei professor <strong>de</strong> línguas estrangeiras,<br />

mas eu comecei um curso, aí tranquei no meio, fiz outro, tranquei também e<br />

agora estou terminando outro [risos], [...] moro com meus pais, [...] por<br />

enquanto, não tenho pretensão nenhuma <strong>de</strong> sair daqui (Miguel).<br />

Nas classes populares, as famílias obe<strong>de</strong>c<strong>em</strong> a um mo<strong>de</strong>lo hierárquico e, mesmo<br />

quando a mulher e os filhos divi<strong>de</strong>m com o hom<strong>em</strong> o sustento da casa, suas ativida<strong>de</strong>s são<br />

consi<strong>de</strong>radas compl<strong>em</strong>entares, ou seja, eles apenas ajudam, enquanto o hom<strong>em</strong> continua a<br />

exercer o papel <strong>de</strong> chefe da família, o que reafirma a sua condição <strong>de</strong> principal provedor e<br />

responsável pela reprodução do núcleo familiar. Com a morte do pai-marido, o filho<br />

primogênito herda o seu papel, torna-se o “hom<strong>em</strong> da casa” 68 , o que significa abdicar da<br />

informalida<strong>de</strong> da ajuda e ingressar no mercado <strong>de</strong> trabalho, a fim <strong>de</strong> prover a subsistência da<br />

unida<strong>de</strong> doméstica.<br />

O investimento nos estudos se apresenta como o caminho mais viável para conseguir<br />

um <strong>em</strong>prego estável e, como esclarece Nelson, “sair do bairro on<strong>de</strong> moram”, ou seja, adquirir<br />

segurança econômica e mobilida<strong>de</strong> social. Contudo, a posição ocupada no espaço social<br />

também se reflete <strong>em</strong> dificulda<strong>de</strong>s escolares, a aprovação <strong>em</strong> exames <strong>de</strong> seleção para um<br />

curso técnico ou universitário exige esforço, tenacida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>dicação – as horas <strong>de</strong> estudo são<br />

conciliadas com as ativida<strong>de</strong>s laborais –, <strong>em</strong>bora auto-afirmatórios <strong>de</strong> sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> luta<br />

e superação dos obstáculos.<br />

Por outro lado, as novas formas <strong>de</strong> organização do trabalho e <strong>de</strong>s<strong>em</strong>prego estrutural<br />

<strong>de</strong>correntes do processo <strong>de</strong> reorganização produtiva engendrado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final da década <strong>de</strong><br />

68 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Sal<strong>em</strong> (1981).


1970, geram nos anos seguintes uma crescente instabilida<strong>de</strong> do <strong>em</strong>prego e, por conseguinte,<br />

uma profunda insegurança no trabalhador, que po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> <strong>de</strong>mitido a qualquer momento, caso<br />

não atenda ao perfil <strong>de</strong> <strong>em</strong>pregabilida<strong>de</strong> exigido pelo mercado. Ou seja, o trabalhador com<br />

“maior qualificação ou intelectualização do trabalho” (ANTUNES, 1999) consegue fazer<br />

frente à competitivida<strong>de</strong> cada vez mais acirrada no espaço produtivo, diante da retração dos<br />

postos <strong>de</strong> trabalho e absorção <strong>de</strong> trabalhadores polivalentes e multifuncionais. Então, o<br />

trabalhador que almeja <strong>em</strong>pregos <strong>de</strong> melhor qualida<strong>de</strong> e elevação do seu padrão <strong>de</strong> vida<br />

investe ainda mais nos estudos, conclui o ensino superior, cursa pós-<strong>graduação</strong>, mestrado e,<br />

ou doutorado, mas também realiza cursos preparatórios ou estudos voltados para concursos<br />

públicos, que po<strong>de</strong>m lhe assegurar estabilida<strong>de</strong>, segurança e melhoria salarial.<br />

Isso não significa que a segurança <strong>de</strong> pertencimento às classes médias e o suporte<br />

econômico do grupo familiar protejam seus m<strong>em</strong>bros da instabilida<strong>de</strong> e insegurança presentes<br />

no cenário social, mas diferent<strong>em</strong>ente daqueles que aspiram mobilida<strong>de</strong> social, o rito <strong>de</strong><br />

passag<strong>em</strong> que anuncia a in<strong>ser</strong>ção no mercado <strong>de</strong> trabalho e exercício <strong>de</strong> uma vida<br />

profissional, nos últimos anos, é protelado mediante tentativas <strong>ser</strong>iadas <strong>de</strong> formação<br />

profissional que <strong>de</strong>nunciam sua instabilida<strong>de</strong> interna, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que suger<strong>em</strong> um<br />

campo <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s – po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> isso, aquilo, tudo ou nada, in<strong>de</strong>finidamente – e, por essa<br />

razão, optam pela permanência na casa dos pais, on<strong>de</strong> se sent<strong>em</strong> protegidos <strong>de</strong> possíveis<br />

riscos 69 .<br />

O sentido atribuído ao trabalho assalariado apresenta mudanças <strong>de</strong> uma geração para<br />

outra e é matizado ora pela resistência aos mol<strong>de</strong>s tradicionais ora pelo conformismo, ou<br />

ainda pelo entrelaçamento entre o mo<strong>de</strong>rno e o arcaico: inicialmente, o trabalho f<strong>em</strong>inino<br />

consiste <strong>em</strong> alternativa que atenua as pressões sociais <strong>em</strong> torno do não-casamento, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que oferece segurança para o futuro; entre as mais jovens, adquire um caráter<br />

69 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Souza (2006); Mendonça (2004).<br />

178


<strong>em</strong>ancipatório, na medida <strong>em</strong> que possibilita a ruptura <strong>de</strong> papéis sociais e padrões <strong>de</strong><br />

comportamento tradicionais, assegura in<strong>de</strong>pendência econômica e <strong>em</strong>ocional e, traz<br />

realização pessoal e profissional. Para os homens, o trabalho é concebido como batalha que os<br />

<strong>de</strong>ixa exauridos; contestam e, ou rejeitam a institucionalização; tramam alternativas para<br />

reafirmar a separação entre espaço público e privado, escolhas pessoais e profissionais e, entre<br />

os mais jovens, torna-se a via pela qual obtêm segurança econômica e mobilida<strong>de</strong> social, mas<br />

também responsabilida<strong>de</strong> que procuram adiar enquanto consegu<strong>em</strong>, t<strong>em</strong>erosos diante dos<br />

riscos a <strong>ser</strong><strong>em</strong> enfrentados.<br />

Em suma, se para as mulheres o trabalho, o investimento nos estudos e na carreira<br />

profissional são conquistas que exaltam, para os homens o trabalho é o caminho através do<br />

qual se in<strong>ser</strong><strong>em</strong> no mundo (NOLASCO, 1993) e, por isso, o estudo se torna mais uma batalha<br />

da qual <strong>de</strong>v<strong>em</strong> sair vencedores. Certamente, burlam algumas regras, mas n<strong>em</strong> todas, tanto<br />

para os homens quanto para as mulheres, a <strong>de</strong>dicação à carreira profissional se torna quase<br />

exclusiva, o que afeta a vida pessoal e influencia a elaboração <strong>de</strong> novas construções subjetivas<br />

acerca da solteirice, <strong>em</strong>bora cada um (a) interprete seus enredos <strong>de</strong> acordo com o contexto<br />

sócio-histórico <strong>em</strong> que estão imersos (as), ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que <strong>de</strong>ixam impressas a<br />

trajetória <strong>de</strong> vida e a faixa /geração a que pertenc<strong>em</strong>.<br />

4.3 SOLTEIRAS E SOLTEIROS? – SIM. – E SOLTEIRONAS E SOLTEIRÕES,<br />

TAMBÉM?<br />

As mulheres entrevistadas buscam construir uma diferenciação com as <strong>solteira</strong>s <strong>de</strong><br />

ida<strong>de</strong>s/gerações anteriores à suas, avós, mães e tias, cuja trajetória <strong>de</strong> vida parece <strong>de</strong>sbotar<br />

diante <strong>de</strong> suas conquistas. Para tanto, a solteirice é pensada a partir da intersecção entre os<br />

parâmetros <strong>de</strong>finidos na convivência familiar e a elaboração <strong>de</strong> suas próprias visões <strong>de</strong><br />

mundo, conforme <strong>de</strong>monstram seus <strong>de</strong>poimentos:<br />

179


180<br />

[...] eu tinha aquelas fantasias na cabeça <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela, do príncipe, do hom<strong>em</strong> i<strong>de</strong>al,<br />

muito carinhoso, o cara perfeito que saberia me salvar <strong>de</strong> qualquer situação, aquelas<br />

histórias todas mentirosas que a gente apren<strong>de</strong> e ficam na cabeça, [...] mas,<br />

inconscient<strong>em</strong>ente eu s<strong>em</strong>pre associei o casamento à morte, então eu nunca pensei<br />

<strong>em</strong> casar. [...] Possivelmente, porque vi <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a minha infância ou algo assim, que a<br />

mulher casava e era como que morresse para o mundo, [...] ela ficava muito só<br />

naquela vida <strong>de</strong> família, <strong>de</strong> tudo o que eu não queria para mim, eu não saberia<br />

naquela época dizer, mas hoje eu traduzo assim, [...] e tinha outra coisa que me<br />

apavorava, minha mãe ficou viúva com trinta e cinco anos, meu pai se suicidou, e<br />

nós ficamos meio à <strong>de</strong>riva, minha mãe trabalhava <strong>em</strong> casa mas não sabia gerir o que<br />

havia fora, então <strong>de</strong>pois é que eu concluí que a pessoa ficava à mercê <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>stino e<br />

[...] aí eu disse, comigo não vai acontecer isso não, porque eu não vou ter filhos, não<br />

vou casar, nada disso (Indira).<br />

Isso é uma vitalina velha, sabe? Não po<strong>de</strong> dar uma opinião porque você é uma<br />

frustrada que nunca pariu. [...] Já <strong>de</strong> vez <strong>em</strong> quando, t<strong>em</strong> essas brinca<strong>de</strong>irinhas: Ah!<br />

Vai dar para São Pedro,enten<strong>de</strong>u? [...] <strong>ser</strong> <strong>solteira</strong> é uma i<strong>de</strong>ntificação na carteira <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, nunca firmei contrato com ninguém, estado civil oficial, enten<strong>de</strong>u? Mas<br />

não t<strong>em</strong> maiores probl<strong>em</strong>as, não me qualifica n<strong>em</strong> <strong>de</strong>squalifica (Ana).<br />

Na década <strong>de</strong> 1960, a “moça <strong>de</strong> família” ainda é educada para seguir sua vocação<br />

natural – mãe e esposa – e, sob a influência do amor romântico, apren<strong>de</strong> a sonhar com<br />

príncipes encantados, belos, fortes, corajosos, que pertenc<strong>em</strong> ao seu grupo social e têm uma<br />

situação financeira estável, ou seja, um “bom partido”, que irá protegê-la e assegurar<br />

segurança e felicida<strong>de</strong>. Contudo, essa imag<strong>em</strong> po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> <strong>de</strong>si<strong>de</strong>alizada quando a figura paterna,<br />

principal mo<strong>de</strong>lo masculino, revela-se a antítese do príncipe e, por meio do suicídio, exime-se<br />

da responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conduzir o <strong>de</strong>stino do grupo familiar, que se <strong>de</strong>sestabiliza, uma vez<br />

que a esposa não havia sido educada para exercer o papel <strong>de</strong> chefe <strong>de</strong> família e transitar com<br />

<strong>de</strong>senvoltura na esfera pública.<br />

Finalmente, o príncipe se transforma <strong>em</strong> um sujeito inencontrável diante dos<br />

preten<strong>de</strong>ntes a marido: para Indira, aquele que não se mostra “carinhoso”, “sensível”, trata-a<br />

com “<strong>de</strong>sprezo” e, apesar da “atração física”, o diálogo inexiste na relação, porque seus<br />

“interesses” são incompatíveis, além <strong>de</strong> outros homens com qu<strong>em</strong> se envolve na vida adulta e,<br />

a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> “outras afinida<strong>de</strong>s” que compartilham, como o lado intelectual e a posição<br />

social, adotam comportamentos “machistas” e “autoritários”. Por isso, a solteirice é concebida<br />

como escolha, <strong>de</strong>terminada pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> pre<strong>ser</strong>var sua in<strong>de</strong>pendência e conduzir seu próprio<br />

<strong>de</strong>stino. Entretanto, sua opção é também atribuída aos conselhos da mãe – “o casamento


quando é bom o t<strong>em</strong>po chega e quando é mau o t<strong>em</strong>po sobra” – motivada pelo<br />

<strong>de</strong>sapontamento com o próprio matrimônio ou por medo da solidão, uma postura consi<strong>de</strong>rada<br />

con<strong>de</strong>nável no período <strong>em</strong> questão, uma vez que cabe à figura materna encorajar as filhas<br />

com relação ao casamento.<br />

Vale <strong>de</strong>stacar que as classes médias têm uma maior tendência à racionalização que<br />

outros estratos sociais. As mudanças na trajetória <strong>de</strong> vida, <strong>em</strong> função <strong>de</strong> crises familiares, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, po<strong>de</strong>m impulsionar a a<strong>de</strong>são dos indivíduos a certos valores e crenças, ou seja, se<br />

<strong>em</strong> <strong>de</strong>terminado momento <strong>de</strong> sua vida, Indira almejou casamento, <strong>de</strong>ntro dos mol<strong>de</strong>s<br />

consi<strong>de</strong>rados tradicionais, uma tragédia pessoal a instiga a comportamentos tidos como<br />

mo<strong>de</strong>rnos. Em suma, o conflito e tensão provocados pela morte do pai são por ela acionados<br />

no momento atual, para tentar racionalizar o não casamento.<br />

Ainda hoje, para a família e a socieda<strong>de</strong>, uma mulher <strong>solteira</strong> com mais <strong>de</strong> 60 anos é<br />

concebida como uma “vitalina”, moça-velha frustrada e incompleta porque não conseguiu<br />

casar e ter filhos e, portanto, <strong>de</strong>squalificada para opinar sobre assuntos do coração, isto é,<br />

supõe-se que permanece <strong>solteira</strong> porque t<strong>em</strong> algum probl<strong>em</strong>a, é egoísta ou <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong><br />

atrativos, nunca <strong>de</strong>spertou o <strong>de</strong>sejo sexual masculino e, por isso, nada sabe sobre o<br />

relacionamento entre hom<strong>em</strong> e mulher. Para a socieda<strong>de</strong>, é inconcebível que a solteirice<br />

f<strong>em</strong>inina seja escolhida, sequer é cogitado que a liberação sexual possibilita o exercício <strong>de</strong> sua<br />

sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro e fora do casamento, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da ida<strong>de</strong>. Em outras palavras, pouco<br />

importa como se auto-represente, a “vitalina” ainda é <strong>de</strong>finida como uma mulher cuja<br />

virginda<strong>de</strong> permanece intacta, pois nunca teve penetração vaginal, enfim, é mal amada,<br />

solitária, estigma que parece acompanhar as mulheres nascidas na década seguinte. Senão,<br />

vejamos:<br />

181<br />

[...] eu acho que toda mulher t<strong>em</strong> o sonho, certo? [...] Eu nunca fui <strong>de</strong> namorar,<br />

então eu não vou me preocupar com isso. [...] Agora eu digo a você, tranquilamente,<br />

se hoje <strong>em</strong> dia eu tivesse conhecido uma pessoa que eu conheci, ai! Acho que há<br />

mais <strong>de</strong> trinta anos atrás, [...] se hoje eu tivesse a ida<strong>de</strong> que eu tinha, eu perdi essa<br />

pessoa por minha culpa, eu não sei se eu queria agora, me casar hoje <strong>em</strong> dia não, que


182<br />

eu não tenho mais ida<strong>de</strong>. Por que eu tive culpa? Porque eu era medrosa, eu tinha<br />

muito medo <strong>de</strong> pai e mãe, <strong>de</strong> família. Eu não cheguei a namorar com ele, [...]<br />

quando ele chegava, eu fugia doida. [...] Nunca sofri discriminação, porque também<br />

se eu sofresse, não ia fazer b<strong>em</strong> para mim. [...] Porque eu moro só, então a<br />

humanida<strong>de</strong>, eu não fui criada assim, [...] como dizia um colega meu, ‘você vai levar<br />

para São Pedro’, eu dizia, ‘vai inteiro’. [...] Não me sinto frustrada <strong>de</strong> jeito nenhum,<br />

eu sou feliz, [...] eu acho o seguinte, não teve que acontecer, e hoje <strong>em</strong> dia é tão<br />

comum, sou uma pessoa normal como qualquer outra (Jandira).<br />

A jov<strong>em</strong> nascida na década <strong>de</strong> 1950 é ensinada a sonhar com o casamento e, tal qual<br />

Bela Adormecida, tecer a espera pelo príncipe que irá <strong>de</strong>spertá-la para a vida e fazê-la feliz<br />

até que a morte os separe, enquanto é resguardada das tentações e perigos pela vigilância dos<br />

pais e irmãos mais velhos, atentos à moral sexual vigente, isto é, a pre<strong>ser</strong>vação da virtu<strong>de</strong> e<br />

continência sexual exigida às moças <strong>de</strong> família. No entanto, sua espera po<strong>de</strong> se alongar e,<br />

chegados os 25 anos, a ameaça do não-casamento passa a assombrá-la, ou seja, as<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conquistar um marido se tornam r<strong>em</strong>otas e, para constrangimento da jov<strong>em</strong><br />

e <strong>de</strong> sua família, ela é rotulada como mercadoria “encalhada” no mercado matrimonial. 70<br />

Isso não significa que o sonho <strong>de</strong> casar tenha morrido com o avançar dos anos, mas<br />

apenas que é silenciado. Jandira, por ex<strong>em</strong>plo, não se permite expressá-lo, porque já não t<strong>em</strong><br />

ida<strong>de</strong>, <strong>em</strong>bora não se esquive <strong>de</strong> fantasiar uma viag<strong>em</strong> no t<strong>em</strong>po, uma volta ao passado <strong>em</strong><br />

que se fizesse outra pessoa, menos tímida, “retraída”, “medrosa” e obediente, ou seja, gostaria<br />

<strong>de</strong> não ter sido criada “direita <strong>de</strong>mais”, pois somente assim po<strong>de</strong>ria “ter aproveitado muito<br />

mais da vida”.<br />

Jandira afirma que não existe mais discriminação <strong>em</strong> relação à mulher <strong>solteira</strong>, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que <strong>de</strong>ixa escapar, através <strong>de</strong> frases incompletas, o estranhamento das<br />

pessoas pelo fato <strong>de</strong> morar sozinha, <strong>de</strong> não ter um companheiro ou vida sexual. Em outras<br />

palavras, para se autoproteger, prefere ignorar a discriminação, ressalta o crescente número <strong>de</strong><br />

mulheres não-casadas e, valida às avessas os estereótipos que <strong>de</strong>senham a imag<strong>em</strong> da<br />

<strong>solteiro</strong>na – não é frustrada, n<strong>em</strong> infeliz, enfim, é normal. Contudo, as mulheres que rejeitam<br />

70 Ver Bassanezi (1996).


os padrões estandartizados acerca do matrimônio têm suas restrições interpretadas como<br />

<strong>de</strong>speito ou <strong>de</strong>sculpa para o não-casamento, conforme evi<strong>de</strong>ncia o seguinte <strong>de</strong>poimento:<br />

183<br />

As pessoas perguntam assim : ‘Tão linda e nunca casou?’ ou então ‘já<br />

casou?’Quando eu era mais jov<strong>em</strong>, ‘quantos anos você t<strong>em</strong>?’, ‘já <strong>de</strong>u o tiro na<br />

macaca?’ Eu tomei um susto, [...] um tio velho meu disse que é, passou dos 25 anos,<br />

eu já tinha dado o primeiro tiro na macaca. Hoje <strong>em</strong> dia, é como se fosse assim, uma<br />

moça velha, já não t<strong>em</strong> n<strong>em</strong> ida<strong>de</strong> para casar, já passou, ninguém quer, então n<strong>em</strong><br />

perguntam mais. [...] Há alguns anos atrás, [...] eu estava discutindo com minha irmã<br />

sobre casamento e falei ‘por isso que eu não quis casar, nunca pensei <strong>em</strong> casar’, aí<br />

minha mãe disse: ‘Não? Porque não achou, se você achasse uma pessoa que quisesse<br />

casar com você, você já tinha casado’. [...] Eu acho que para você casar, você t<strong>em</strong><br />

que ter aptidão, eu não tenho <strong>de</strong> jeito nenhum, é um aprisionamento, aquela coisa<br />

que é para s<strong>em</strong>pre. [...]<br />

É como se eu não quisesse enraizar nada, não quisesse fincar nada <strong>de</strong>finitivamente,<br />

até a coisa do casamento. [...] Justifica casar, as pessoas geralmente casam, pelo<br />

menos <strong>de</strong>via <strong>ser</strong> assim, porque têm uma gran<strong>de</strong> paixão, [...] mas a paixão acaba, se<br />

você casou porque está apaixonado e a paixão acaba, para que casar? [...] Casar<br />

porque eu amo é um sentimento muito morno para mim, que não justifica você<br />

querer dividir a vida com uma pessoa, [...] como se fosse assim, aquele ninho<br />

intocável, o hom<strong>em</strong> po<strong>de</strong> ter outras mulheres, mas se ele não tiver corag<strong>em</strong> <strong>de</strong> se<br />

separar, se não tiver vonta<strong>de</strong> alguma <strong>de</strong> se separar para ficar com aquela outra<br />

pessoa, ele pre<strong>ser</strong>va aquele ninho intocável, [...] s<strong>em</strong> sentimento, um ninho morno,<br />

então eu não tenho interesse nisso, acho uma bobag<strong>em</strong> muito gran<strong>de</strong>, as pessoas hoje<br />

<strong>em</strong> dia casam, botam aquela roupa, aquela fantasia branca, aquela musiquinha<br />

[cantarola a Marcha Nupcial], parece um teatro (Débora).<br />

Se, na adolescência, Débora repetia s<strong>em</strong> refletir o mo<strong>de</strong>lo materno no tocante ao<br />

casamento e número <strong>de</strong> filhos, como forma <strong>de</strong> se resguardar do incômodo causado por <strong>ser</strong><br />

consi<strong>de</strong>rada questionadora e anti-social, a partir dos 19 anos renega o <strong>de</strong>stino “natural”<br />

re<strong>ser</strong>vado às moças <strong>de</strong> família do interior da Bahia, quando se muda para Salvador, passa a<br />

morar sozinha e, distante da censura familiar, po<strong>de</strong> dar vazão ao seu lado transgressor e<br />

“irreverente”. A “estranha” encontra seus pares – artistas, homossexuais – e se torna<br />

“saliente”, “o centro das atenções”, rompe <strong>de</strong>finitivamente com a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> moça casadoira<br />

e, conseqüent<strong>em</strong>ente, passa a <strong>ser</strong> rotulada por possíveis preten<strong>de</strong>ntes como uma “mulher<br />

mo<strong>de</strong>rníssima”, o que não a incomoda, pois “eu era eu mesma”.<br />

Sua autenticida<strong>de</strong> implica <strong>em</strong> construir interpretações próprias sobre a dinâmica dos<br />

afetos, contrarrestar as convenções sociais e adotar comportamentos vanguardistas, ou seja,<br />

renegar a insipi<strong>de</strong>z do amor institucionalizado pela via do matrimônio, tripudiar a cerimônia<br />

que encena a consagração <strong>de</strong> algo que inexiste – a eternização do sentimento amoroso –, para


exaltar o caráter insurreto e <strong>de</strong>smedido da paixão e toda a indisciplina e <strong>de</strong>sgoverno que a<br />

acompanham. Em outras palavras, a narrativa <strong>de</strong> Débora evi<strong>de</strong>ncia a incorporação dos<br />

referenciais valorativos da contracultura, cuja revolução se esten<strong>de</strong> para a vida pessoal<br />

cotidiana e promove o confronto entre intensida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>srazão, instabilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sregramento<br />

dos sentidos contra a disciplina, segurança, moralização/controle da conduta sexual f<strong>em</strong>inina<br />

e rotinização oferecidas pelo “ninho morno” do amor sacralizado pelo matrimônio. Em suma,<br />

opta por vivenciar relações amorosas s<strong>em</strong> compromissos formais, até exaurir o fogo fátuo da<br />

paixão.<br />

Por essa razão, Débora se surpreen<strong>de</strong> quando é enquadrada pelo tio na categoria das<br />

<strong>solteiro</strong>nas, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que releva as cobranças sutis <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os 25 anos, ou melhor,<br />

após dar “o primeiro tiro na macaca”; ignora o silêncio pesaroso das pessoas que evitam o<br />

assunto para não <strong>de</strong>ixá-la constrangida, pois o seu <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> “moça velha” está<br />

<strong>de</strong>finitivamente selado, mas ainda fica “indignada” com a mãe, que <strong>de</strong>sacredita <strong>de</strong> suas<br />

concepções e inaptidão para o matrimônio. “Eu achei que ela me conhecesse”, mas ao<br />

contrário do que pensava, a mãe a <strong>de</strong>squalifica como mulher e reifica o estigma da <strong>solteiro</strong>na<br />

como alguém s<strong>em</strong> atrativos, fadada à solidão porque nenhum hom<strong>em</strong> a <strong>de</strong>sejou para esposa.<br />

Por outro lado, as moças nascidas no final da década <strong>de</strong> 1950 e início da década <strong>de</strong><br />

1960, confrontadas com o processo <strong>de</strong> reor<strong>de</strong>namento das condutas e valores morais <strong>em</strong><br />

curso, ensaiam uma postura menos radical, indisciplinada e, por conseguinte, conceb<strong>em</strong> o<br />

solteirismo f<strong>em</strong>inino diferent<strong>em</strong>ente, buscam se apropriar dos valores <strong>em</strong>ergentes s<strong>em</strong>, no<br />

entanto, comprometer totalmente o i<strong>de</strong>al burguês f<strong>em</strong>inino associado ao casamento, conforme<br />

evi<strong>de</strong>ncia o seguinte <strong>de</strong>poimento:<br />

184<br />

Eu saí para o doutorado <strong>solteiro</strong>na e voltei <strong>solteira</strong>. [...] Solteirona é aquela que está<br />

no caritó, aquela que não teve relação, que é casta, e a <strong>solteira</strong> [...] t<strong>em</strong> uma vida<br />

sexual e que t<strong>em</strong> uma in<strong>de</strong>pendência e que não é aquela pessoa bloqueada. Eu até os<br />

46 anos era uma <strong>solteiro</strong>na porque ainda não tinha tido uma relação sexual com<br />

penetração, [...] mas as outras coisas a gente fazia numa boa, as preliminares, [...] eu<br />

não amadureci para esse lado sexual como aconteceu com o lado profissional<br />

(Clara).


Embora na década <strong>de</strong> 1970 o l<strong>em</strong>a “é proibido proibir” tenha liberado a mulher para<br />

exercitar sua sexualida<strong>de</strong> s<strong>em</strong> culpas, a década seguinte é marcada pela tentativa <strong>de</strong><br />

conciliação entre velhos e novos padrões <strong>de</strong> comportamento e mo<strong>de</strong>los arquetípicos <strong>em</strong><br />

construção, ou seja, mais uma vez a sexualida<strong>de</strong> é reprimida, retoma-se a busca pelo conforto<br />

e segurança que, por suposto, o casamento oferece. Talvez por isso, mulheres como Clara,<br />

Lúcia e Nelma, adot<strong>em</strong> comportamentos mo<strong>de</strong>rnizantes e invistam nos estudos e carreira<br />

profissional, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que mantêm vivas as aspirações no tocante ao casamento e<br />

formação <strong>de</strong> uma família, concebidos como abrigos contra a insegurança e instabilida<strong>de</strong><br />

cont<strong>em</strong>porâneas e, enquanto aguardam o matrimônio/uma relação estável, há qu<strong>em</strong>, como<br />

Clara, por ex<strong>em</strong>plo, prefira adiar a perda da virginda<strong>de</strong>, o que não significa abdicar das<br />

carícias preliminares ao ato amoroso.<br />

Contudo, o avançar da ida<strong>de</strong> cobra seus tributos, aos 46 anos, as chances <strong>de</strong> Clara no<br />

mercado matrimonial se tornam r<strong>em</strong>otas e, refrear o <strong>de</strong>sejo per<strong>de</strong> o sentido. Então, escolhe<br />

sair do “caritó”, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> <strong>ser</strong> uma virg<strong>em</strong> “bloqueada” e se transforma <strong>em</strong> uma mulher<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong>sta feita <strong>solteira</strong>, mas <strong>solteiro</strong>na reprimida, nunca mais, o que a distingue <strong>de</strong><br />

mulheres mais jovens, com mais <strong>de</strong> 30 anos, que <strong>em</strong>bora sejam alvo <strong>de</strong> cobranças sociais,<br />

atribu<strong>em</strong> sua solteirice apenas à recusa <strong>em</strong> <strong>ser</strong><strong>em</strong> submissas ao parceiro e se anular<strong>em</strong>, o que<br />

caracteriza a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> suas necessida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>sejos.<br />

185<br />

Não sou aquela pessoa ímpar, não é? Eu me encontro s<strong>em</strong> pares como pessoas<br />

parecidas nessa questão da solteirice, mas há cobrança da família sim. [...] Não é<br />

fácil, às vezes me sinto sozinha, [...] t<strong>em</strong> <strong>de</strong>terminados momentos da minha vida que<br />

eu queria estar casada, com filhos, [...] algumas vezes já me perguntaram se eu não<br />

era lésbica, e aí, não, mas se fosse? [...] Um amigo meu me disse: Você assusta. [...]<br />

mas eu não vou me anular para <strong>ser</strong> uma pessoa que diga s<strong>em</strong>pre amém, meu nome<br />

[...] não é Amélia, com todo respeito às Amélias (Eva).<br />

Nos últimos anos, t<strong>em</strong> crescido o contingente <strong>de</strong> mulheres <strong>solteira</strong>s que, artífices <strong>de</strong><br />

seu <strong>de</strong>stino, têm como meta precípua a felicida<strong>de</strong> e auto-realização. Diferent<strong>em</strong>ente <strong>de</strong><br />

décadas anteriores, uma mulher <strong>de</strong> 35 anos, que ainda não casou ou está <strong>em</strong> vias <strong>de</strong> se casar,<br />

sabe que sua in<strong>de</strong>pendência e autonomia assustam possíveis parceiros e, ou preten<strong>de</strong>ntes, mas


sabe o que quer e, ainda que o preço a pagar seja a solidão, recusa-se a <strong>ser</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e<br />

submissa, s<strong>em</strong> personalida<strong>de</strong> e opiniões próprias, tal qual Amélia 71 , a musa da canção<br />

popular. Em outras palavras, Eva prefere estar só do que manter um relacionamento amoroso<br />

insatisfatório, com alguém que não respeite suas escolhas. Afinal, s<strong>em</strong>pre po<strong>de</strong> contar com a<br />

amiza<strong>de</strong> e cumplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus pares, isto é, grupos <strong>de</strong> amigas (os) também <strong>solteira</strong>s (os),<br />

para se sentir menos ina<strong>de</strong>quada, diferente e conseguir lidar com as cobranças da família e da<br />

socieda<strong>de</strong> relativas ao não-casamento, b<strong>em</strong> como especulações acerca <strong>de</strong> sua orientação<br />

sexual.<br />

O certo é que, apesar da revolução sexual, as mulheres <strong>solteira</strong>s acima dos 30 anos<br />

continuam sendo alvo <strong>de</strong> cobranças familiares e pressões sociais, <strong>em</strong>bora estas sejam feitas<br />

mais sutilmente. Por ex<strong>em</strong>plo, perguntas como – “tão linda e nunca casou?” (Débora) são<br />

reformuladas – “por que você vai morar sozinha, nunca quis casar?” (Flora), <strong>de</strong> forma a<br />

acomodar os velhos e novos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong> e papéis sociais <strong>de</strong>signados à mulher.<br />

Ou seja, enquanto a primeira pergunta <strong>de</strong>ixa subentendido que, apesar <strong>de</strong> reunir os atributos<br />

exigidos para uma moça casadoira, ela foi preterida no mercado matrimonial, a segunda<br />

indagação alarga as fronteiras simbólicas e a coloca na posição <strong>de</strong> sujeito que escolhe se<br />

<strong>de</strong>seja casar ou não, <strong>em</strong>bora ainda reforce a idéia do lar como refúgio, no qual as mulheres<br />

s<strong>em</strong> marido se sent<strong>em</strong> protegidas. Em suma, a mulher só <strong>de</strong>ve abandonar a residência paterna<br />

para casar, o que não acontece com os homens.<br />

Com efeito, o fato <strong>de</strong> os homens transitar<strong>em</strong> <strong>em</strong> outros espaços <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> faz<br />

com que suas reflexões sobre a solteirice sejam elaboradas <strong>de</strong> forma diferente, ainda que<br />

também enfrent<strong>em</strong> cobranças sociais e familiares <strong>em</strong> torno do não-casamento: uns priorizam a<br />

vida profissional e adiam a formação <strong>de</strong> uma família e o matrimônio; outros se ancoram nos<br />

enredos familiares para fugir <strong>de</strong> um compromisso formal; há qu<strong>em</strong> questione o próprio<br />

71 A entrevistada se refere à música “Ai que sauda<strong>de</strong>s da Amélia” (1940), <strong>em</strong> que Ataulfo Alves e Mário Lago<br />

reverenciam a resignação, sacrifício e <strong>de</strong>votamento da mulher ao hom<strong>em</strong> amado.<br />

186


significado do casamento e da solteirice; mas também aqueles que não consegu<strong>em</strong> estabelecer<br />

um vínculo duradouro e buscam alternativas para se enquadrar<strong>em</strong> e, finalmente, outros tantos<br />

que validam o matrimônio e a constituição <strong>de</strong> uma família, mas não se sent<strong>em</strong> preparados<br />

para casar e prefer<strong>em</strong> permanecer sob a proteção paterna por t<strong>em</strong>po in<strong>de</strong>finido, <strong>de</strong> acordo com<br />

a ida<strong>de</strong>/geração e contexto sócio-histórico <strong>em</strong> que se in<strong>ser</strong><strong>em</strong>. Por ex<strong>em</strong>plo, entre aqueles<br />

instigados pelos valores da contracultura, o olhar antidisciplinar po<strong>de</strong> apenas se concentrar na<br />

dimensão do trabalho ou então se espraiar pelo campo dos afetos.<br />

187<br />

Minha vida afetiva s<strong>em</strong>pre foi confusa, eu sou homossexual, acho que tive umas<br />

duas paixões mais intensas, não que eu tenha pensado <strong>em</strong> viver com nenhum dos<br />

dois. [...] Nós éramos muito jovens, anos 70, [...] eu ia para a cama com várias<br />

pessoas e essas duas pessoas também iam [...], agora, por ex<strong>em</strong>plo, eu estou há um<br />

bom t<strong>em</strong>po s<strong>em</strong> namorar com absolutamente ninguém, [...] faz falta, mas eu gosto<br />

também da sensação <strong>de</strong> fechar a porta e pensar, agora só entra se eu <strong>de</strong>ixar, porque<br />

as pessoas não têm botão <strong>de</strong> <strong>de</strong>sligar, t<strong>em</strong> um momento que elas são muito<br />

interessantes, <strong>de</strong>pois a gente começa a encher o saco. [...] Eu entrei numa<br />

comunida<strong>de</strong> do Orkut <strong>de</strong> pessoas que moram só, todas falando que [...] é ótimo<br />

porque você chega à tar<strong>de</strong> e encontra as coisas exatamente do jeito que você <strong>de</strong>ixou.<br />

[...] eu sou muito <strong>de</strong>sorganizado, [...] isso eu acho o lado ruim <strong>de</strong> <strong>ser</strong> <strong>solteiro</strong>,eu<br />

agora contratei um <strong>ser</strong>vente aqui do prédio para fazer faxina, mesmo assim é essa<br />

bagunça, [...] o lado positivo é po<strong>de</strong>r ficar só, eu gosto, t<strong>em</strong> gente que convive muito<br />

mal consigo próprio, eu não, sou capaz <strong>de</strong> ficar horas ouvindo música, jogando no<br />

computador, fazendo outras coisas, olhando o teto. [...] Já fui discriminado, mas não<br />

que fosse algo significativo, eu acho que hoje <strong>em</strong> dia a gente goza <strong>de</strong> certa liberda<strong>de</strong>,<br />

você já po<strong>de</strong> escolher um grupo <strong>de</strong> amigos que são pessoas que conviv<strong>em</strong> b<strong>em</strong> com<br />

isso (Bernardo).<br />

A partir da década <strong>de</strong> 1960, os jovens passam a divergir <strong>de</strong> alguns valores que<br />

norteiam as formas <strong>de</strong> pensar e agir dos pais e, sob a influência da tría<strong>de</strong> “sexo, drogas e rock<br />

and roll” (GOLDENBERG E TOSCANO, 1992) adotam novos comportamentos<br />

mo<strong>de</strong>lizadores, ainda que pre<strong>ser</strong>v<strong>em</strong> um ou outro el<strong>em</strong>ento simbólico abstraído da<br />

convivência com o grupo familiar. Ao abraçar<strong>em</strong> como i<strong>de</strong>al a <strong>de</strong>molição dos valores<br />

burgueses na vida adulta, os indivíduos se <strong>de</strong>param com possibilida<strong>de</strong>s ilimitadas no campo<br />

da sexualida<strong>de</strong>, pois tudo é permitido, ou seja, contra toda disciplina e repressão, o jogo<br />

erótico é conduzido pelas leis do <strong>de</strong>sejo e, portanto, ensaiado com vários (as) parceiros (as),<br />

<strong>em</strong> meio à liberda<strong>de</strong> e rotativida<strong>de</strong> sexual experimentada.


No contexto da revolução sexual, a orientação homoerótica <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> <strong>ser</strong> indizível e o<br />

amor homossexual, até então <strong>de</strong>finido como manifestação patológica ou anomalia, porque<br />

contrário à natureza, torna-se escolha, preferência dos indivíduos no tocante às formas<br />

experimentais <strong>de</strong> paixão, cuja <strong>em</strong>ergência é marcada pela voluptuosida<strong>de</strong> e “confusão”, como<br />

coloca Bernardo, na medida <strong>em</strong> que ninguém é <strong>de</strong> ninguém. Em outras palavras, as relações<br />

são abertas e fluidas, <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> possessivida<strong>de</strong> e eternização, posto que o único<br />

compromisso assumido é com o prazer e, portanto, um vínculo mais duradouro ou formal<br />

entre os pares é inimaginável.<br />

No entanto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1980, o narcisismo sexual e a ef<strong>em</strong>erida<strong>de</strong> vêm sendo<br />

substituídos pela busca <strong>de</strong> uma relação baseada na confluência entre os pares,<br />

compartilhamento <strong>de</strong> interesses e projetos <strong>de</strong> vida que, caso não alcançado, produz o<br />

<strong>de</strong>senlace, uma vez que o outro se torna <strong>de</strong>sinteressante. Além disso, a conjugalida<strong>de</strong> gay, por<br />

falta <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> vida social alternativo, ainda se espelha nas normas heterossexuais<br />

(HEILBORN, 2004), o que certamente contribui para a rejeição <strong>de</strong> Bernardo, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ter experimentado essa condição na relação entre o pai homossexual e a mãe, cuja união se<br />

manteve durante 30 anos.<br />

Para Bernardo, portanto, a solteirice consiste <strong>em</strong> escolha, que t<strong>em</strong> mais aspectos<br />

positivos do que negativos: mora só e não divi<strong>de</strong> o espaço com alguém, faz o que t<strong>em</strong> vonta<strong>de</strong><br />

e gosta, ou seja, pre<strong>ser</strong>va a solitu<strong>de</strong> e convivência consigo mesmo, enquanto alimenta a re<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> com outras pessoas <strong>solteira</strong>s através do Orkut; ouve música e, ou joga no<br />

computador, pois é dono do seu t<strong>em</strong>po integralmente e po<strong>de</strong> distribuí-lo conforme lhe apraz,<br />

apesar <strong>de</strong> sentir falta <strong>de</strong> um parceiro. Segundo afirma, a discriminação ainda existe, mas é<br />

menos ostensiva e, o homossexual não necessita proteger-se <strong>em</strong> guetos ou mesmo ocultar sua<br />

orientação homoerótica, uma vez que conta com a aceitação social <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> amigos e<br />

<strong>de</strong> alguns colegas <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> forma “normal, s<strong>em</strong> cobranças”.<br />

188


O único aspecto negativo atribuído por Bernardo à solteirice é a “<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m absoluta”<br />

do apartamento, conseqüência do processo sexuado <strong>de</strong> socialização a que são submetidos os<br />

homens <strong>de</strong> sua ida<strong>de</strong>/geração, ou seja, a realização do trabalho doméstico se opõe aos papéis<br />

masculinos incorporados e, para evitar “bagunça”, Bernardo recorre à contratação <strong>de</strong> um<br />

faxineiro, solução <strong>de</strong>scartada por Abílio, apesar <strong>de</strong> também enfrentar o mesmo probl<strong>em</strong>a e<br />

estabelecer uma i<strong>de</strong>ntificação entre a mulher e os afazeres domésticos. Vejamos por que:<br />

189<br />

[...] eu tive uma musa, foi ela qu<strong>em</strong> me inspirou a me jogar na arte, [...] a gente se<br />

gostava muito, mas então, [...] fui me afastando <strong>de</strong>la <strong>em</strong> benefício do trabalho. [...]<br />

Não gosto <strong>de</strong> sair sozinho, [...] não me sinto b<strong>em</strong>, vou quando marcam, um amigo<br />

ou uma amiga. [...] Eu acho que sou um cara que t<strong>em</strong> chance ainda, eu quero casar,<br />

eu não estou <strong>solteiro</strong>, bom, as circunstâncias foram me levando a essa situação. [...]<br />

No dia-a-dia, eu fico imaginando, ou numa situação, chegar <strong>em</strong> casa. Minha casa,<br />

por ex<strong>em</strong>plo, está muito bagunçada, eu não abro para uma faxineira entrar na minha<br />

intimida<strong>de</strong>, [...] se você tivesse uma companhia para você fazer um pratinho para a<br />

companhia ou então comer uma coisinha que a companhia fez para você, fico<br />

imaginando, e outras cositas mas. Nunca recebi cobranças, só comentários – quando<br />

vai casar? Esse tipo <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira assim (Abílio).<br />

A revolução contracultural inci<strong>de</strong> sobre os entrevistados <strong>de</strong> forma diferenciada, uma<br />

vez que está condicionada à or<strong>de</strong>m moral vigente e fronteiras simbólicas erigidas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

processo <strong>de</strong> socialização até a in<strong>ser</strong>ção no mundo adulto, o que produz reinterpretações da<br />

solteirice enfeixadas pelo conflito e ambivalência, que ora ensaiam uma aproximação<br />

i<strong>de</strong>ntificatória ora buscam romper com os mo<strong>de</strong>los arquetípicos encenados no grupo<br />

familiar. 72 Com efeito, Abílio restringe sua subversão à arte, através da qual explora sua<br />

criativida<strong>de</strong> e afirma sua rejeição ao caráter disciplinar e burocrático do trabalho assalariado,<br />

<strong>em</strong>bora com cautela, pois <strong>de</strong>limita exatas “condições <strong>de</strong> romper” com o protótipo que o<br />

inscreve no mundo adulto/público – o trabalho: adquirir “um patrimoniozinho razoável”, a<br />

fim <strong>de</strong> que sua condição <strong>de</strong> classe e status são sejam ameaçados. Ao priorizar as mudanças no<br />

trabalho, o exercício da afetivida<strong>de</strong> é relegado a segundo plano, mas isso não significa<br />

ausência <strong>de</strong> transformações.<br />

72 Ver Nicolaci-da-Costa (1997).


A revolução na vida pessoal é articulada <strong>de</strong> forma oblíqua, quando Abílio se <strong>de</strong>sfaz da<br />

“musa” com qu<strong>em</strong> po<strong>de</strong>ria ter “vivido, casado” e escolhe viver um “amor <strong>de</strong> verão”, por “no<br />

mínimo quinze anos” com uma mulher que residia <strong>em</strong> outro estado, cuja distância geográfica<br />

e projetos pessoais inviabilizavam a i<strong>de</strong>alização <strong>de</strong> planos futuros <strong>em</strong> comum. As<br />

circunstâncias que o afastam <strong>de</strong> um compromisso formal ou casamento, portanto, não são<br />

alheias à sua vonta<strong>de</strong>. Contudo, as cobranças sociais, apesar <strong>de</strong> relativizá-las, parec<strong>em</strong> pesar<br />

e, faz<strong>em</strong>-no repensar e preten<strong>de</strong>r <strong>ser</strong> “mais objetivo na procura <strong>de</strong> uma companhia para<br />

casar”, ou melhor, traçar o perfil da esposa i<strong>de</strong>al a <strong>ser</strong> “escolhida” que, se não é a Amélia,<br />

guarda estreita s<strong>em</strong>elhança com a Emília 73 , outra musa do cancioneiro popular, mulher que<br />

também personifica os atributos e papéis sociais inerentes à natureza f<strong>em</strong>inina nas décadas <strong>de</strong><br />

1940 - 1950, quais sejam, arruma, lava, passa e cozinha, mas é diferente da diarista porque<br />

essa é uma estranha, cuja prestação <strong>de</strong> <strong>ser</strong>viços se restringe ao espaço doméstico e não ganha<br />

outras “cositas mas”.<br />

Além disso, ao contrário do que acontece com a mulher, o hom<strong>em</strong> não é excluído do<br />

mercado matrimonial com o avanço da ida<strong>de</strong>, isto é, não lhe faltarão parceiras caso realmente<br />

<strong>de</strong>cida casar-se e, ou po<strong>de</strong>rá <strong>ser</strong> pai com qualquer ida<strong>de</strong>, se assim o <strong>de</strong>sejar. Por essa razão,<br />

Abílio sabe que po<strong>de</strong> adiar a solteirice in<strong>de</strong>finidamente ou mudar <strong>de</strong> idéia s<strong>em</strong> que haja<br />

qualquer impeditivo, posição compartilhada por Camilo, que no entanto apresenta outros<br />

argumentos para justificar suas convicções acerca do não-casamento:<br />

190<br />

Não t<strong>em</strong> esse papo <strong>de</strong> casamento, eu nunca tive espaço <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim que<br />

permitisse ter outra pessoa morando comigo, porque eu s<strong>em</strong>pre fui uma pessoa<br />

muito in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, [...] eu nunca gostei <strong>de</strong> coisa fixa, muito estabelecida,<br />

eticamente é uma coisa absurda. [...] Hoje <strong>em</strong> dia, se você for ver, qu<strong>em</strong> manda no<br />

mundo são essas pessoas que são sós, porque são elas que têm, ‘mais po<strong>de</strong>r<br />

aquisitivo’, [...] são também pessoas que vão <strong>de</strong> certa maneira manipulando<br />

sutilmente as formas dos comportamentos. [...] Eu não fiz nenhuma opção, todas as<br />

coisas para mim foram assim, naturalmente, claro que para um cara ficar <strong>solteiro</strong>,<br />

73 Musa i<strong>de</strong>alizada por Wilson Batista e Aroldo Lobo, <strong>em</strong> 1940, cuja letra da canção reflete a dor do hom<strong>em</strong> que<br />

clama pelo impossível, uma mulher que reúna as qualida<strong>de</strong>s da sua Emília que o abandonara:”quero uma<br />

mulher que saiba lavar e cozinhar/Que <strong>de</strong> manhã cedo me acor<strong>de</strong> na hora <strong>de</strong> trabalhar/ Só existe uma e s<strong>em</strong> ela<br />

eu não vivo <strong>em</strong> paz/[...] Ninguém sabe igual a ela preparar o meu café/Não <strong>de</strong>sfazendo das outras, Emília é<br />

mulher...”


191<br />

talvez tenham algumas cobranças sutis, acham que a pessoa é gay, acham que se ela<br />

está sozinha é uma pessoa atrapalhada ou porque t<strong>em</strong> algum probl<strong>em</strong>a <strong>de</strong><br />

relacionamento, dificulda<strong>de</strong>, mas não. [...] Não aconteceu, mas isso não quer dizer<br />

que vai <strong>ser</strong> eternamente, eu ainda tenho 52 anos, po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> que eu mu<strong>de</strong> <strong>de</strong> idéia, mas<br />

até o momento, eu n<strong>em</strong> cheguei a questionar muito isso, [...] talvez se eu encontrasse<br />

alguém, que nunca aconteceu, também não procuro n<strong>em</strong> nada, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida similar à minha, mas eu não acredito que exista alguém que<br />

seja igual ou até se <strong>ser</strong>ia interessante um clone (Camilo).<br />

No final da década <strong>de</strong> 1960, alguns jovens das classes médias ensaiam uma revolução<br />

simbólica contra as normas e estruturas sociais, mais especificamente, buscam abolir a<br />

legitimida<strong>de</strong> conferida à repressão no plano sexual, familiar e pessoal, ou seja, a sublevação é<br />

exercitada na vida cotidiana, privilegiam a busca da liberda<strong>de</strong> e felicida<strong>de</strong> individual e, para<br />

tanto, criam novos espaços para expressão da individualização e diferentes formas <strong>de</strong> <strong>ser</strong> e<br />

estar no mundo.<br />

O pessoal se reveste <strong>de</strong> politização e, como firma Camilo, o “que você pensa você<br />

gera”, surg<strong>em</strong> mudanças comportamentais, os indivíduos contestam os padrões<br />

estandartizados no tocante à sacralização e indissolubilida<strong>de</strong> do matrimônio, obstáculo para a<br />

viag<strong>em</strong> subjetiva <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> crescimento pessoal e reconhecimento <strong>de</strong> suas<br />

individualida<strong>de</strong>s. A essência do encontro consigo mesmo é a liberda<strong>de</strong> e, não há lugar para a<br />

indiferenciação do par, possessivida<strong>de</strong> e, ou sentimento <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> relação ao outro,<br />

ou seja, o único compromisso que se t<strong>em</strong> é com o “olhar”, o “sentimento”, as ações não são<br />

motivadas pelo “que alguém po<strong>de</strong>rá achar ou gostar” (Camilo), são uma opção existencial<br />

regida pela ética do prazer, que não se sujeita à disciplina.<br />

Camilo celebra o “casamento com a minha arte, o meu trabalho”, o seu estilo <strong>de</strong> vida e<br />

“gosto” se materializam por meio das experimentações artísticas, que entrelaçam o trabalho e<br />

a vida pessoal, isto é, a arte se torna vital porque o conduz ao encontro <strong>de</strong> sua<br />

“espiritualida<strong>de</strong>”, mas também porque é uma forma que inventa para se “esvaziar”<br />

internamente e se recriar “como pessoa, na sua integrida<strong>de</strong>”. Às voltas com seu projeto<br />

pessoal, não encontra espaço para dividir com uma companhia ou mesmo para cogitar tal<br />

possibilida<strong>de</strong>, o que po<strong>de</strong> causar estranhamento, pois pessoas s<strong>em</strong> um relacionamento fixo


ainda consist<strong>em</strong> <strong>em</strong> “incógnita” a <strong>ser</strong> <strong>de</strong>svendada, <strong>em</strong>bora uma releitura da t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong><br />

histórica anuncie mudanças estéticas, relacionais e na própria percepção da solteirice.<br />

Assim como na arte, a vida pessoal é “uma questão <strong>de</strong> forma, <strong>de</strong> traço, <strong>de</strong> combinação<br />

das coisas”, nada é <strong>de</strong>finitivo ou imutável, surg<strong>em</strong> “novas configurações” e “múltiplos<br />

padrões”, os “paradigmas” se renovam. Por essa razão, aquilo que não aconteceu po<strong>de</strong> vir a<br />

acontecer, Camilo po<strong>de</strong> mudar <strong>de</strong> idéia <strong>em</strong> seu processo <strong>de</strong> mutação pessoal, até mesmo<br />

porque, como hom<strong>em</strong>, t<strong>em</strong> a prerrogativa <strong>de</strong> unir-se a alguém in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da ida<strong>de</strong>. Por via<br />

das dúvidas, imprime sua própria estilização aos referenciais valorativos que balizam a<br />

formação do par nas últimas décadas: reafirma a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espaço para cultivar a<br />

liberda<strong>de</strong>, individualida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>senvolvimento pessoal, mas refuta o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> total completu<strong>de</strong><br />

e conhecimento um do outro. Entretanto, não há uma trajetória linear, única, a geração<br />

seguinte trama outras elaborações sobre a solteirice:<br />

192<br />

[...] hoje eu tenho uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> me relacionar séria. [...] Seria um <strong>solteiro</strong><br />

convicto? Não, um <strong>solteiro</strong> que gostaria <strong>de</strong> ter alguém, [...] que busca alguém, mas<br />

eu percebo que é difícil. Existe todo um individualismo, toda uma carga que a gente<br />

constrói até certa ida<strong>de</strong>, [...] a nível <strong>de</strong> exigência, a nível intelectual, econômico, é<br />

postura, para as pessoas se encaixar<strong>em</strong> fica difícil. [...] T<strong>em</strong> muito isso, como é que,<br />

relativamente simpático, um padrão <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>finido, bom, e não encontrou alguém?<br />

V<strong>em</strong> uma coisa na minha consciência da minha incompetência, no meu<br />

subconsciente me v<strong>em</strong> uma coisa <strong>de</strong> não <strong>ser</strong> capaz <strong>de</strong> conquistar alguém e, por outro<br />

lado, eu ob<strong>ser</strong>vo as pessoas ligar<strong>em</strong> um pouco ao homossexualismo. [...] Minha mãe<br />

há um bom t<strong>em</strong>po queria que eu me relacionasse, ela s<strong>em</strong>pre fala [...] só falta eu e<br />

minha irmã dar um neto, [...] mas a forma como eu me projeto para eles, a minha<br />

postura, não permite que eles façam cobrança, eles têm muito respeito com a questão<br />

da minha individualida<strong>de</strong>, [...] porque hoje inverteu muito a relação, [...] eu é que<br />

sou referencial para eles (Dario).<br />

Na década <strong>de</strong> 1990, a família conjugal permanece como mo<strong>de</strong>lo dominante nas<br />

cida<strong>de</strong>s interioranas e, por isso, rapazes e moças estão pre<strong>de</strong>stinados ao casamento, formação<br />

<strong>de</strong> uma família e cumprimento dos papéis sociais <strong>de</strong>signados para cada gênero – a mulher<br />

como esposa-mãe e dona <strong>de</strong> casa [mesmo que trabalhe] e o hom<strong>em</strong> como provedor<br />

econômico e chefe da família. Para os <strong>solteiro</strong>s renitentes, como Dario e Flávio, a migração<br />

para a capital consiste <strong>em</strong> rota <strong>de</strong> fuga, na medida <strong>em</strong> que oferece um campo <strong>de</strong><br />

possibilida<strong>de</strong>s mais amplo, po<strong>de</strong>m obter in<strong>de</strong>pendência financeira e realização profissional, ao


mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se sent<strong>em</strong> livres para fazer<strong>em</strong> suas próprias escolhas, longe do olhar<br />

censor da cida<strong>de</strong>.<br />

O fato <strong>de</strong> o <strong>solteiro</strong> <strong>ser</strong> b<strong>em</strong>-sucedido faz com que sua individualida<strong>de</strong> seja respeitada<br />

pela família, pois os papéis se invert<strong>em</strong>, ou seja, o <strong>solteiro</strong> adquire respeito e se transforma <strong>em</strong><br />

referencial no qual o grupo familiar se espelha. Isso não significa, entretanto, aceitabilida<strong>de</strong><br />

<strong>em</strong> relação ao não-casamento, pon<strong>de</strong>ra Dario, “eles têm a vonta<strong>de</strong>, mas eu nunca permiti que<br />

cobrass<strong>em</strong>”, <strong>em</strong>bora as cobranças aconteçam <strong>de</strong> forma mais sutil e velada, por ex<strong>em</strong>plo, sob a<br />

forma <strong>de</strong> alusões maternas ao <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ter netos.<br />

O escudo protetor construído por Dario para se tornar imune às cobranças familiares<br />

não impe<strong>de</strong> que os mo<strong>de</strong>los arquetípicos assimilados no processo <strong>de</strong> socialização exijam seus<br />

tributos: Dario também se cobra por não casar; não correspon<strong>de</strong>r à masculinida<strong>de</strong><br />

<strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ática encerrada na polarida<strong>de</strong> ativo/passivo que [ainda] rege as relações entre os sexos<br />

– o hom<strong>em</strong> escolhe e a mulher é a escolhida. Em outras palavras, possui as qualida<strong>de</strong>s<br />

atribuídas a um “bom partido”, é <strong>solteiro</strong>, maduro, “relativamente simpático” e t<strong>em</strong> uma<br />

situação financeira estável, mas não consegue encenar os papéis <strong>de</strong> gênero esperados<br />

socialmente, a solteirice atesta a ina<strong>de</strong>quação <strong>de</strong> Dario, que <strong>de</strong>senvolve sentimentos<br />

usualmente atribuídos à mulher – fracasso e incompetência – por “não <strong>ser</strong> capaz <strong>de</strong> conquistar<br />

alguém”.<br />

Dario também assume uma “postura” re<strong>ser</strong>vada e circunspecta no local <strong>de</strong> trabalho,<br />

com vistas a inibir brinca<strong>de</strong>iras e, ou insinuações que põ<strong>em</strong> sob suspeita sua<br />

heterossexualida<strong>de</strong>, mas mesmo assim não consegue se <strong>de</strong>svencilhar do controle social<br />

exercido sobre sua reputação. A cobrança engendra a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se enquadrar, <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />

<strong>ser</strong> estranho, diferente dos <strong>de</strong>mais colegas e se casar, <strong>em</strong>bora condicione o cumprimento do<br />

seu “<strong>de</strong>stino natural” à satisfação das (ir)reais expectativas <strong>em</strong>ocionais que tramam a<br />

formação do casal nas últimas décadas, isto é, a conciliação entre a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espaço<br />

193


para ensaiar movimentos <strong>de</strong> mudança subjetiva e o próprio processo mimético pessoal com a<br />

realização do i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> compl<strong>em</strong>entação recíproca, sinergia e indiferenciação do par. Por essa<br />

razão, Dario não se consi<strong>de</strong>ra um <strong>solteiro</strong> convicto, mas sim um <strong>solteiro</strong> contingente, ao<br />

contrário <strong>de</strong> Gustavo, para qu<strong>em</strong> a solteirice é concebida como uma escolha racionalizada:<br />

194<br />

[...] cheguei a namorar uma garota dos meus 28 aos 32 anos, [...] pensamos <strong>em</strong> nos<br />

casar, mas quando a gente começou a pensar nas coisas práticas do casamento,<br />

começou a me bater um <strong>de</strong>sespero tr<strong>em</strong>endo, [...] não aceitei o casamento, apesar <strong>de</strong><br />

gostar muito <strong>de</strong>la. Outra coisa que é importante falar é, [...] se eu viesse a ter filhos,<br />

eu gostaria <strong>de</strong> nunca me separar. [...] Eu acho que existe um preconceito atual contra<br />

pessoas que resolv<strong>em</strong> <strong>ser</strong> <strong>solteira</strong>s [...] por opção, [...] eu encaro como uma opção <strong>de</strong><br />

vida, eu sei que no futuro eu vou ter probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong> estar só, <strong>de</strong> talvez não ter um<br />

filho. [...] Eu acho que é uma opção <strong>de</strong> que eu não tenho preparo atual n<strong>em</strong> me sinto<br />

com esse <strong>de</strong>sejo atávico, arquetípico do hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> reproduzir, eu não posso fazer<br />

simplesmente como uma coisa que a socieda<strong>de</strong> me cobra e não ter responsabilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> pai. [...] Então, foi uma opção, é uma opção ainda, po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> que eu mu<strong>de</strong>, [...]<br />

mas o que eu penso hoje é [...] que a minha vida <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong> me satisfaz. [...] As<br />

pessoas faz<strong>em</strong> ilações a respeito [...] talvez eu não seja hetero, que eu seja<br />

homosexual, que aí também não me impediria <strong>de</strong> casar, [...] ou uma pessoa que <strong>de</strong>ve<br />

ter algum probl<strong>em</strong>a, algo escondido, [...] que não me permitiu casar – mas o que<br />

aconteceu com você, o que há <strong>de</strong> errado com você? – Não há nada <strong>de</strong> errado, [...] eu<br />

penso <strong>de</strong>mais antes <strong>de</strong> tomar certas <strong>de</strong>cisões (Gustavo).<br />

No plano simbólico, os sujeitos internalizam diferentes cartografias ao longo da vida,<br />

mas isso não significa que experiências passadas ou valores consi<strong>de</strong>rados arcaicos <strong>de</strong>ix<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

influenciar as experiências presentes ou sejam substituídos por valores mais mo<strong>de</strong>rnos. Os<br />

sist<strong>em</strong>as simbólicos são atualizados – o novo não exclui o antigo – os referenciais valorativos<br />

incorporados na vida adulta ganham maior relevo porque são recentes e adquir<strong>em</strong> concretu<strong>de</strong><br />

na realida<strong>de</strong> cotidiana, enquanto os referenciais apreendidos na infância e adolescência,<br />

apesar <strong>de</strong> invisíveis, permanec<strong>em</strong> guardados e po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> acionados <strong>em</strong> situações<br />

conflitantes. 74<br />

A escolha <strong>de</strong> Gustavo pelo não-casamento é comandada pela l<strong>em</strong>brança in<strong>de</strong>lével da<br />

conturbada vida conjugal dos pais e, <strong>em</strong>bora como adulto perceba que “podia construir minha<br />

própria história”, o confronto entre essa l<strong>em</strong>brança “ruim” e “difícil” e a iminência <strong>de</strong> reprisar<br />

o script encenado pelos pais faz com que elabore um recuo estratégico, ou seja, rejeita o<br />

casamento e a paternida<strong>de</strong>. Se o casamento atual é <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> eternização e po<strong>de</strong> <strong>ser</strong><br />

74 Ver Nicolaci-da-Costa (1985).


<strong>de</strong>sfeito, a “paternida<strong>de</strong> responsável” é <strong>de</strong>finitiva e irreversível, o que se torna assustador<br />

diante da conjectura <strong>de</strong> uma possível separação, Gustavo se sentiria culpado <strong>em</strong> infligir ao<br />

filho um sofrimento já experimentado, pois “eu tive muito medo <strong>de</strong> ter um filho e <strong>de</strong>pois vir a<br />

me separar da mãe <strong>de</strong>le e ele passar pelo que eu passei, a culpa que isso me geraria”. Desta<br />

forma, o não-casamento e a não-paternida<strong>de</strong> são concebidos como uma “opção <strong>de</strong> vida”.<br />

Todavia, no “reino da opção” 75 , as escolhas <strong>de</strong> Gustavo po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> elaboradas por<br />

meio <strong>de</strong> uma mo<strong>de</strong>rnização reativa 76 , que trama uma ilusão i<strong>de</strong>ntificatória com os valores<br />

mo<strong>de</strong>rnos, ou seja, sua opção <strong>de</strong> vida é baseada exclusivamente no processo <strong>de</strong> individuação:<br />

alimenta a crença <strong>de</strong> que t<strong>em</strong> autonomia e liberda<strong>de</strong> para <strong>ser</strong> o que é, fazer aquilo que <strong>de</strong>seja<br />

e da maneira que lhe parece mais satisfatória e conveniente, s<strong>em</strong> qualquer interferência <strong>de</strong><br />

valores arcaicos e experiências passadas. Ancorado <strong>em</strong> referenciais mo<strong>de</strong>rnos, Gustavo<br />

elabora uma justificativa para subsumir os valores r<strong>em</strong>anescentes com os quais não se<br />

i<strong>de</strong>ntifica por completo, inscreve o seu conflito no âmbito da reprodução biológica e na<br />

negação do i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> casamento. 77 Para tanto, esboça uma posição “pragmática”, prefere “<strong>ser</strong><br />

um <strong>solteiro</strong> esclarecido a casar e, se po<strong>de</strong> dar errado eu não arrisco, principalmente numa<br />

coisa tão eterna quanto um filho”.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po, a a<strong>de</strong>são a valores mo<strong>de</strong>rnos e amplitu<strong>de</strong> da marg<strong>em</strong> <strong>de</strong> escolhas<br />

faz com que Gustavo, ao contrário <strong>de</strong> Dario, não se ressinta com as cobranças sociais relativas<br />

à sua opção pela solteirice e não-paternida<strong>de</strong>, n<strong>em</strong> tampouco com inferências sobre sua<br />

sexualida<strong>de</strong> e, ou alusões acerca dos verda<strong>de</strong>iros motivos que o impe<strong>de</strong>m <strong>de</strong> se casar – o<br />

homossexual po<strong>de</strong> optar ou não por uma união civil, assim como há heterossexuais que<br />

<strong>de</strong>sejam casar e outros que prefer<strong>em</strong> continuar <strong>solteiro</strong>s, não há qu<strong>em</strong> esteja certo ou errado –,<br />

75 A expressão “reino da opção” é utilizada por Figueira (1987) para ilustrar a forma como os sujeitos po<strong>de</strong>m<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r valores mo<strong>de</strong>rnos, apesar <strong>de</strong> con<strong>ser</strong>var<strong>em</strong> o modo pelo qual produz<strong>em</strong> e, ou se apropriam <strong>de</strong>sses<br />

valores. Em outras palavras, o conteúdo do comportamento do sujeito é mo<strong>de</strong>rno, mas o mecanismo que<br />

norteia seu comportamento é arcaico.<br />

76 Ver Figueira (ibid).<br />

77 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Bauman (2004).<br />

195


isto é, a escolha <strong>de</strong> Gustavo é atribuída ao direito <strong>de</strong> exercer o livre arbítrio. Essa mesma<br />

liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong>scortina outras possibilida<strong>de</strong>s, a solteirice <strong>de</strong> Gustavo “foi e é uma opção ainda”,<br />

mas “eu estou aberto para mudar”, ou seja, po<strong>de</strong> repensar e optar pelo casamento, adotar<br />

qualquer um dos diferentes padrões <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>senhados pelas sucessivas<br />

transformações na vida social ou então <strong>de</strong>cidir permanecer <strong>solteiro</strong>.<br />

Há <strong>de</strong> se ob<strong>ser</strong>var, entretanto, que no cenário cont<strong>em</strong>porâneo, o processo <strong>de</strong><br />

juvenilização das ida<strong>de</strong>s t<strong>em</strong> produzido mudanças relativas na forma como os homens<br />

representam a solteirice, uma vez que somente ating<strong>em</strong> a ida<strong>de</strong> adulta ao se aproximar<strong>em</strong> dos<br />

40 anos e, antes <strong>de</strong>ssa faixa etária, eleg<strong>em</strong> outras priorida<strong>de</strong>s, ou seja, os homens ensaiam um<br />

adiamento do casamento e reprodução, o que não implica <strong>em</strong> rejeição à instituição do<br />

matrimônio ou à paternida<strong>de</strong>, apesar <strong>de</strong> encontrar<strong>em</strong> mais vantagens do que <strong>de</strong>svantagens na<br />

solteirice.<br />

Neste sentido, <strong>ser</strong> <strong>solteiro</strong> é associado inicialmente à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir e vir, para on<strong>de</strong> e<br />

quando <strong>de</strong>sejar, s<strong>em</strong>, como afirmam Júlio e Hel<strong>de</strong>r, “ter que dar satisfação a alguém”, pois o<br />

hom<strong>em</strong> não assumiu compromissos formais. Ou, como revela Flávio, “a qualquer momento<br />

po<strong>de</strong> acontecer um rompimento ou não”, os relacionamentos po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> mais duradouros ou<br />

episódicos, mas não estão sujeitos às “amarras da lei”. Em suma, diz Miguel, <strong>ser</strong> <strong>solteiro</strong> é<br />

esquivar-se <strong>de</strong> “responsabilida<strong>de</strong>” e “cobrança” f<strong>em</strong>inina, “<strong>de</strong>cidir sua vida” s<strong>em</strong><br />

interferências e, “<strong>de</strong> vez <strong>em</strong> quando se sentir um pouquinho solitário”.<br />

No entanto, há <strong>solteiro</strong>s e <strong>solteiro</strong>s, ou seja, os homens entrevistados elaboram uma<br />

tipologia da solteirice masculina que apresenta as seguintes variações: Existe o “<strong>solteiro</strong><br />

normal”, que quando está namorando se mantém fiel à parceira, mas porque é “tranqüilo” e<br />

“disciplinado”; o <strong>solteiro</strong> “meio casado”, que t<strong>em</strong> uma namorada “séria”, mas não se esquiva<br />

<strong>de</strong> dar suas “escapulidas” e sair com outras mulheres; o <strong>solteiro</strong> “curtidor”, que foge <strong>de</strong><br />

compromissos; o <strong>solteiro</strong> “largado”, que após terminar um relacionamento mais duradouro,<br />

196


fica “solto na gandaia” e só pensa <strong>em</strong> “azaração”, ou seja, freqüenta bares, “baladas” on<strong>de</strong><br />

encontra parceiras sexuais episódicas e, o <strong>solteiro</strong> “exigente”, que enquanto não encontra uma<br />

mulher com qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>seje assumir uma “relação mais consolidada, <strong>de</strong> compromisso um com o<br />

outro”, usufrui da companhia mais constante <strong>de</strong> “amigas”. Contudo, a tipologia da solteirice<br />

t<strong>em</strong> prazo <strong>de</strong> valida<strong>de</strong>, a partir dos 35 anos, os homens começam a cogitar sobre o casamento<br />

e a formação <strong>de</strong> uma família:<br />

197<br />

[...] <strong>de</strong> uns três anos para cá, eu comecei a pensar mais <strong>ser</strong>iamente na questão e achei<br />

que já era o momento <strong>de</strong> casar, [...] tenho como objetivo estabelecer minha família,<br />

filhos e tudo, até porque [...] curti com toda intensida<strong>de</strong> que pu<strong>de</strong> a minha vida <strong>de</strong><br />

<strong>solteiro</strong>, então acho [...] que foi o amadurecimento, do ponto <strong>de</strong> vista da ida<strong>de</strong> e<br />

também psicológico, <strong>de</strong>pois porque eu já tinha conquistado muitas coisas a nível<br />

profissional também, [...] essas três coisas se juntaram e a partir dali eu comecei a<br />

pensar. [...] Ultimamente estou com um relacionamento, já estamos há uns dois anos<br />

e meio [...] mas eu sinto que a gente não po<strong>de</strong> mais prorrogar essa situação por<br />

muito t<strong>em</strong>po, tanto por conta da minha ida<strong>de</strong> quanto por conta da situação <strong>de</strong>la, [...]<br />

<strong>em</strong>bora não esteja <strong>de</strong>sesperado, senão casaria com a que estou, mas quero casar e, <strong>de</strong><br />

preferência, logo (Flávio).<br />

Nas últimas décadas, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> adquirir segurança financeira e profissional,<br />

b<strong>em</strong> como obter um patrimônio t<strong>em</strong> feito com que os homens <strong>de</strong>diqu<strong>em</strong> mais t<strong>em</strong>po aos<br />

estudos, com vistas à aprovação <strong>em</strong> concursos públicos e, ou cursos <strong>de</strong> especialização e pós-<br />

<strong>graduação</strong>. A priorida<strong>de</strong> atribuída aos projetos profissionais traz como conseqüência o<br />

adiamento <strong>de</strong> possíveis planos <strong>de</strong> casamento e formação <strong>de</strong> uma família, isto é, quando as<br />

namoradas manifestam o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> se casar, os homens prefer<strong>em</strong> terminar o relacionamento,<br />

caso contrário, afirma Flávio, enten<strong>de</strong>m que estarão “<strong>em</strong>patando o t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>las”.<br />

Para Flávio, as conquistas profissionais, a estabilida<strong>de</strong> financeira e a aquisição <strong>de</strong> bens<br />

imóveis garant<strong>em</strong> segurança material que, por sua vez, atua como alicerce para a busca <strong>de</strong><br />

segurança afetiva, sente-se “preparado” para se casar e constituir família. A segurança<br />

material confere a Flávio “amadurecimento” para cumprir os papéis sociais <strong>de</strong>signados ao<br />

hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> certa ida<strong>de</strong> – esposo e pai – e eximir-se <strong>de</strong> cobranças sociais relativas à<br />

solteirice, mas também t<strong>em</strong> motivações narcísicas – se “aperfeiçoar enquanto pessoa” e,<br />

através dos filhos, consolidar seu crescimento pessoal. Contudo, não há motivo para angústia,


afinal po<strong>de</strong> casar com a atual namorada ou outra mulher que <strong>de</strong>sperte o seu interesse, pois<br />

como hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>tém o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> escolher e, ou rejeitar as parceiras, <strong>em</strong>bora <strong>de</strong>monstre<br />

ansieda<strong>de</strong>, uma vez que se aproxima dos 40 anos, as exigências morais aumentam e sua<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sexual po<strong>de</strong> vir a <strong>ser</strong> questionada, como ocorre com Júlio:<br />

198<br />

Eu tenho primos mais novos do que eu que já casaram, que têm filhos [...] meus dois<br />

irmãos são casados, com filho [...] e eu, o mais velho não, aí comentam: – Ah! Você<br />

não vai casar? Existe s<strong>em</strong>pre essa cobrança, é como se fosse <strong>de</strong>finir a vida, da parte<br />

<strong>de</strong> amigos, não tanto assim, [...] não necessariamente a família – meus pais, meus<br />

irmãos, mas a família mais ampla. [...] Quando eu conheço alguém na Internet, aí a<br />

mulher pergunta: – Ah! Solteiro? Duvido! Não acredito! Ou acha estranho, acha que<br />

t<strong>em</strong> alguma coisa errada com minha sexualida<strong>de</strong>. Nesse tipo <strong>de</strong> situação <strong>de</strong> Internet<br />

eu ouço muito, mas na socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um modo geral, fora da família, não ouço muito<br />

não (Júlio).<br />

O investimento dos homens <strong>em</strong> projetos profissionais atenua as cobranças familiares<br />

relativas ao adiamento <strong>de</strong> um compromisso permanente, principalmente quando seus irmãos e<br />

irmãs já se casaram, têm filhos e, portanto, validam os padrões <strong>de</strong> conduta vigentes no tocante<br />

à união <strong>de</strong> homens e mulheres através do casamento e constituição <strong>de</strong> uma família.<br />

Entretanto, as pressões ocorr<strong>em</strong> <strong>de</strong> forma oblíqua: na esfera da sociabilida<strong>de</strong> familiar, os<br />

parentes buscam esquadrinhar as motivações <strong>de</strong> Júlio para o não-casamento, assim como<br />

l<strong>em</strong>brar o <strong>de</strong>scumprimento dos mo<strong>de</strong>los sociais; nas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> virtual, as<br />

mulheres com qu<strong>em</strong> Júlio se relaciona manifestam <strong>de</strong>scrença <strong>em</strong> relação à sua condição <strong>de</strong><br />

<strong>solteiro</strong>, porque a maioria dos homens na sua faixa etária se encontra casado, mas há aquelas<br />

que também colocam <strong>em</strong> dúvida sua orientação sexual, ou seja, os questionamentos f<strong>em</strong>ininos<br />

renovam o caráter prescritivo do matrimônio e reprodução biológica calcado na<br />

heteronormativida<strong>de</strong>.<br />

Enquanto reluta <strong>em</strong> se casar e ter filhos, o hom<strong>em</strong> <strong>solteiro</strong> tece mecanismos <strong>de</strong><br />

autoproteção contra as pressões presentes no convívio social: consolida vínculos com amigos<br />

<strong>solteiro</strong>s, com qu<strong>em</strong> compartilha comportamentos, interesses e visões <strong>de</strong> mundo análogas,<br />

pois segundo Ivan, a sua condição acaba por afastá-lo dos amigos casados “porque você não<br />

po<strong>de</strong> estar com eles <strong>em</strong> qualquer lugar”, ou seja, os espaços <strong>de</strong> socialização são diferentes


para <strong>solteiro</strong>s e casados. Contudo, para Nelson, que professa uma religião cujo valor<br />

pre<strong>em</strong>inente é a constituição <strong>de</strong> uma família, a interação e reciprocida<strong>de</strong> alcançada com os<br />

amigos também <strong>solteiro</strong>s são insuficientes para aplacar o sentimento <strong>de</strong> dissonância e<br />

ina<strong>de</strong>quação social, por isso, recorre à psicoterapia na tentativa <strong>de</strong> abandonar relacionamentos<br />

efêmeros e assumir um compromisso permanente, ou seja, enquadrar-se e adotar os mo<strong>de</strong>los<br />

comportamentais esperados – casar e constituir sua própria família. Neste sentido, os<br />

<strong>solteiro</strong>s acreditam que:<br />

199<br />

[...] o caminho natural <strong>de</strong> todo mundo [...] é <strong>de</strong> alguma forma casar ou estar com<br />

alguém junto e ter filhos, eu acho que isso faz parte, senão você não cresce, [...] na<br />

verda<strong>de</strong>, você vai começar a viver mais <strong>em</strong> socieda<strong>de</strong>, [...] apesar <strong>de</strong> <strong>ser</strong><strong>em</strong> só as<br />

duas pessoas, você t<strong>em</strong> que abdicar <strong>de</strong> muita coisa e isso já é uma forma <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r<br />

seu egoísmo, filho principalmente, quando v<strong>em</strong> [...] você começa a ver o mundo <strong>de</strong><br />

uma forma diferente, eu acho que é com todo mundo <strong>de</strong>sse jeito, não <strong>ser</strong>ia diferente<br />

comigo, esse é o caminho (Hel<strong>de</strong>r).<br />

O hom<strong>em</strong> <strong>solteiro</strong>, segundo Hel<strong>de</strong>r, está isento do “peso da responsabilida<strong>de</strong>” como<br />

provedor econômico da família – a esposa, “a criança na escola”, enfim, “sustentar a casa” –,<br />

além <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r privilegiar a convivência com amigos, diversões, festas e cultivar encontros<br />

fortuitos com várias companhias f<strong>em</strong>ininas. Por essa razão, Hel<strong>de</strong>r procura adiar o casamento<br />

na tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfrutar a vida <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong> intensamente, mas a proximida<strong>de</strong> dos 35 – 40 anos<br />

confirma o “amadurecimento do ponto <strong>de</strong> vista da ida<strong>de</strong>” e, espera-se, “também psicológico”,<br />

o que implica <strong>em</strong> renunciar aos prazeres e à liberda<strong>de</strong> da vida <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong> e, reprisar o enredo<br />

do núcleo familiar – “a família padrão, o pai, a mãe, os filhos, a casa” (Miguel). – Em outras<br />

palavras, o “casamento” é concebido pelo <strong>solteiro</strong> como caminho inescapável para atingir<br />

reconhecimento social e a paternida<strong>de</strong> consiste <strong>em</strong> prova inconteste <strong>de</strong> sua virilida<strong>de</strong>, mas<br />

também prêmio que simboliza as conquistas realizadas e dá continuida<strong>de</strong> à sua história. Em<br />

suma, é através da reprodução dos principais valores aprendidos no núcleo familiar – o<br />

casamento e constituição <strong>de</strong> uma família – que o <strong>solteiro</strong> inscreve sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sexual e se<br />

torna para a socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> fato, um hom<strong>em</strong>.


Entretanto, nos últimos anos, as profundas transformações na tessitura social<br />

produz<strong>em</strong> <strong>de</strong>slocamentos na dinâmica familiar e surg<strong>em</strong> novos arranjos, esclarece Hel<strong>de</strong>r,<br />

“t<strong>em</strong> pai que faz o papel do pai e da mãe, a mãe que se separa e a mãe <strong>solteira</strong>”, assim como<br />

diferentes padrões <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong> – “casar na Igreja, seja lá o que for ou então morar junto”<br />

– o que sugere variações no tocante âs percepções dos homens sobre casamento e solteirice,<br />

assim como no perfil <strong>de</strong> elegibilida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>alizado para uma possível parceira amorosa, <strong>de</strong><br />

acordo com suas expectativas individuais e o contexto <strong>em</strong> que estão in<strong>ser</strong>idos:<br />

200<br />

[...] hoje para ter sexo você não precisa mais estar casado, a coisa está mais liberada,<br />

[...] às vezes o cara é <strong>solteiro</strong> e t<strong>em</strong> uma vida sexual mais ativa do que qu<strong>em</strong> é<br />

casado, às vezes o cara casado se acomoda, [...] às vezes o cara <strong>solteiro</strong> , do jeito que<br />

você hoje está largado, conhece uma, conhece outra e mais outras, [...] fica s<strong>em</strong> uma<br />

coisa mais sólida, daí [..] você vai amadurecendo a idéia ou talvez você encontre<br />

alguém que realmente se encaixe e aí você diz, vamos tocar o barco. [...] A primeira<br />

coisa que v<strong>em</strong> <strong>ser</strong>ia a beleza física, mas [...] é uma coisa muito subjetiva, t<strong>em</strong> essa<br />

coisa física, t<strong>em</strong> o jeito da pessoa, uma pessoa mais tranqüila, carinhosa, aquele jeito<br />

<strong>de</strong> falar e t<strong>em</strong> a história da conversa, vai vendo as afinida<strong>de</strong>s e aí vai <strong>em</strong>bora<br />

(Hel<strong>de</strong>r).<br />

[...] eu não me sinto na obrigação <strong>de</strong> estar namorando alguém para ter isso [sexo],<br />

então, eu prefiro muitas vezes estar sozinho do que estar com alguém por obrigação,<br />

[...] se eu não estiver gostando, [...] eu termino e aí eu posso passar vários meses s<strong>em</strong><br />

ninguém. [...] A questão não é que eu queira ficar <strong>solteiro</strong>, [...] é uma conseqüência<br />

do fato <strong>de</strong> eu <strong>ser</strong> exigente <strong>em</strong> relação a estar com alguém, [...] eu gosto <strong>de</strong> mulheres<br />

que sejam inteligentes, que sejam in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, não necessariamente no sentido<br />

financeiro, que tenham opinião própria, que também sejam bonitas, claro, [...] não é<br />

n<strong>em</strong> questão <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, mas é uma questão <strong>de</strong> postura, talvez. Eu sinto falta <strong>de</strong> vez<br />

<strong>em</strong> quando <strong>de</strong> estar com alguém, não estar com alguém para prestar contas à<br />

socieda<strong>de</strong>, mas por ter algum tipo <strong>de</strong> compromisso ou estar com alguém mais<br />

próximo, que eu conheça b<strong>em</strong> (Júlio).<br />

Para Hel<strong>de</strong>r, a rotativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> parceiras sexuais distingue o <strong>solteiro</strong> “largado” do<br />

hom<strong>em</strong> casado, enquanto para um o ato sexual é <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho e performance através da qual<br />

sacia a fome <strong>de</strong> satisfação sexual, <strong>de</strong>scompromissadamente, para o outro é obrigação, há<br />

muito per<strong>de</strong>u o “tesão” e mantém uma relação fraterna com a esposa, mas “se acomoda”<br />

diante da rotina e <strong>de</strong>sgaste imposto à relação conjugal no dia-a-dia. Entretanto, Hel<strong>de</strong>r <strong>em</strong>ite<br />

os primeiros sinais <strong>de</strong> <strong>em</strong>panturramento, começa a pensar <strong>em</strong> estabelecer uma relação “mais<br />

sólida” e permanente, encontrar uma mulher para ajudá-lo a “tocar o barco”, ou seja, preten<strong>de</strong><br />

se casar.


A mulher i<strong>de</strong>alizada por Hel<strong>de</strong>r para acompanhá-lo no “caminho natural” da<br />

acomodação é <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> qualquer conotação erótica, sensual e se transforma <strong>em</strong> “irmã”<br />

que lhe dê carinho e conforto, uma amiga cuja tranqüilida<strong>de</strong> o faça se sentir seguro e com<br />

qu<strong>em</strong> compartilhe afinida<strong>de</strong>s, alguém com o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> conduzir o casamento da mesma forma<br />

que seus pais – “t<strong>em</strong> suas coisas boas, t<strong>em</strong> suas coisas ruins, é aquele negócio, hoje estão os<br />

dois aqui <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa, a gente virou irmão” –, ou seja, a união do casal é sustentada pela<br />

força do hábito. Por essa razão, as <strong>solteira</strong>s “largadas” que exercitam sua sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

forma recreativa, não necessariamente vinculada a amor e afeto, são inelegíveis como<br />

candidatas a esposa.<br />

As “exigências” <strong>de</strong> Júlio, entretanto, encerram uma afinida<strong>de</strong> eletiva oposta à <strong>de</strong><br />

Hel<strong>de</strong>r, sente-se atraído por mulheres bonitas, intelectualizadas, seguras, <strong>de</strong>cididas, b<strong>em</strong>-<br />

sucedidas profissionalmente e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, ou seja, não procura uma irmã, n<strong>em</strong> alguém<br />

para neutralizar as pressões sociais e familiares, mas uma companheira com qu<strong>em</strong><br />

compartilhe projetos <strong>de</strong> vida e interesses <strong>em</strong> comum. Em outras palavras, o mo<strong>de</strong>lo relacional<br />

elaborado por Júlio rejeita a união estabelecida sob bases tradicionais – pela força do hábito –<br />

e abraça os parâmetros mo<strong>de</strong>rnos que buscam cingir a completação <strong>em</strong>ocional e sinergia entre<br />

o par com a busca individual <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e crescimento pessoal. Neste sentido, a ida<strong>de</strong> da<br />

parceira é indiferente, mas sua in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> relativa, “não necessariamente<br />

financeira”, para que Júlio consiga entretecer o novo ao arcaico, ou seja, encontrar satisfação<br />

<strong>em</strong>ocional e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, permanecer como responsável pelo b<strong>em</strong>-estar econômico da<br />

companheira e futura família.<br />

Júlio afirma que, eventualmente, sente falta da proximida<strong>de</strong>, segurança e conforto<br />

proporcionados pela relação amorosa com uma parceira que “conheça b<strong>em</strong>”, <strong>em</strong>bora<br />

<strong>de</strong>monstre atração pelo <strong>de</strong>sconhecido, uma vez que na busca <strong>de</strong> realização afetiva trama<br />

encontros virtuais, nos quais a aproximação acontece <strong>de</strong> forma calculada e a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um e<br />

201


outro é inventada, ou seja, antecipa-se o que dizer e o que omitir, <strong>em</strong> um jogo<br />

representacional cuja finalida<strong>de</strong> é o encantamento mútuo. Contudo, o reconhecimento no<br />

encontro real rouba o caráter <strong>de</strong> fantasia, po<strong>de</strong> eclipsar a imag<strong>em</strong> i<strong>de</strong>alizada e, ocorrer a<br />

disjunção do par, quando um e, ou outro percebe que a pessoa real não é alguém que caiba<br />

nos seus sonhos. Enquanto isso não acontece, Júlio investe na carreira profissional e, como<br />

também não está “<strong>de</strong>sesperado”, evita assumir um relacionamento mais duradouro, mesmo<br />

porque po<strong>de</strong> manter uma vida sexual ativa s<strong>em</strong> que precise namorar ou estar casado. Em<br />

suma, estar <strong>solteiro</strong> não significa praticar a contenção sexual, o que po<strong>de</strong> ocorrer com as<br />

mulheres, <strong>em</strong>bora às vezes haja momentos <strong>de</strong> solidão:<br />

202<br />

Namorei uns seis anos, [...] chega um momento <strong>em</strong> que você casa ou separa, e<br />

separou, [...] t<strong>em</strong> algumas coisas que eu quero fazer ainda. [A solidão] acontece<br />

mais quando não t<strong>em</strong> festa, [...] vou ligar para alguém todos os amigos casados ou<br />

namorando, [...] e eu só. [...] As pessoas ficam falando, muito, muito, muito, pior é<br />

que não penso muito nisso [...] <strong>de</strong> vez <strong>em</strong> quando minha mãe fala – eu queria que<br />

você me <strong>de</strong>sse um neto, [...] meu pai cobra mais <strong>em</strong> relação ao futuro mesmo,<br />

profissional, cobra <strong>em</strong> ter um imóvel, uma casa, uma in<strong>de</strong>pendência. [...] Tenho uma<br />

irmã que é <strong>solteira</strong> também, 30 anos, então divi<strong>de</strong> um pouquinho, [...] acho que no<br />

caso <strong>de</strong>la é mais difícil, porque o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> aquele instinto <strong>de</strong>, na hora do<br />

<strong>de</strong>sespero, o que vier, qualquer pessoa [risos], a mulher é mais seletiva, não é? Quer<br />

dizer, [...] não precisa ter sentimento, [...] e a mulher não, liga muito a parte<br />

sentimental (Miguel).<br />

A <strong>de</strong>cisão do hom<strong>em</strong> <strong>solteiro</strong> <strong>de</strong> sair <strong>de</strong> casa, constituir sua própria família, adquirir<br />

um imóvel, tornar-se in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte profissional e financeiramente <strong>de</strong>monstra maturida<strong>de</strong>,<br />

enquanto a permanência na casa dos pais sugere a tentativa <strong>de</strong> prolongar a juventu<strong>de</strong>, mas<br />

também a isenção <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s financeiras, uma vez que o hom<strong>em</strong>, apesar <strong>de</strong> adulto,<br />

não contribui com o orçamento doméstico e seus gastos são <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente pessoais, o que<br />

possibilita não só priorizar a expansão profissional, como manter um padrão <strong>de</strong> vida superior<br />

ao que teria se fosse casado. 78<br />

Todavia, <strong>em</strong> centros urbanos mais con<strong>ser</strong>vadores, como Aracaju, as cobranças <strong>em</strong><br />

torno do casamento se tornam freqüentes quando o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> um relacionamento fixo e<br />

duradouro, rompe esse compromisso e prefere continuar residindo com os pais. Após os 30<br />

78 A esse respeito, ver Souza (2006);


anos, o pai cobra estabilida<strong>de</strong> financeira e a mãe solicita netos; os amigos estão casados e, ou<br />

namorando, o que gera uma sensação <strong>de</strong> incômodo, que prefere ignorar, mas também solidão,<br />

atenuada <strong>em</strong> festas, bares e através <strong>de</strong> relacionamentos <strong>de</strong>scartáveis.<br />

Neste sentido, Miguel, assim como outros <strong>solteiro</strong>s investigados, reifica a dupla moral<br />

sexual (ainda) atribuída a homens e mulheres, baseada na essencialização das diferenças entre<br />

os sexos: No campo erótico, o <strong>de</strong>sejo masculino é impulsionado pelo instinto e a prática<br />

sexual é exercitada <strong>de</strong> forma mecânica “com qualquer pessoa”, enquanto a natural<br />

sensibilida<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina torna a mulher “seletiva”, na medida <strong>em</strong> que o <strong>de</strong>sejo é regido pelo<br />

sentimento amoroso. Essa visão essencialista é apoiada <strong>em</strong> um fator <strong>de</strong>cisivo, o avanço da<br />

ida<strong>de</strong> cronológica aumenta as cobranças relativas à maternida<strong>de</strong>, mas também anuncia a<br />

<strong>em</strong>inência da mulher “ficar para titia” 79 .<br />

Em suma, as percepções masculinas elaboradas sobre a solteirice procuram realçar a<br />

diferença natural entre homens e mulheres: o hom<strong>em</strong> está <strong>solteiro</strong>, mas <strong>de</strong>tém o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

escolha, t<strong>em</strong> a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reverter a situação caso <strong>de</strong>seje e, por isso, permanece tranqüilo.<br />

A mulher, ao contrário, está <strong>solteira</strong> porque não foi escolhida; o avanço da ida<strong>de</strong> sinaliza a<br />

redução das chances no mercado matrimonial, na medida <strong>em</strong> que se vê <strong>de</strong>stituída da<br />

juventu<strong>de</strong> e, fica, segundo Hel<strong>de</strong>r, “<strong>de</strong>sesperada”. Por essa razão, ele enten<strong>de</strong> que para “a<br />

mulher é mais difícil” <strong>ser</strong> <strong>solteira</strong>.<br />

As percepções construídas pelas mulheres e homens investigados são codificadas pelo<br />

gênero, isto é, mulheres e homens pensam sobre e <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> a solteirice <strong>de</strong> forma distinta.<br />

Enquanto as mulheres falam <strong>de</strong> si mesmas e percorr<strong>em</strong> suas trajetórias individuais e escolhas<br />

79 Em outro momento, ao investigar o cotidiano amoroso <strong>de</strong> mulheres e homens das classes médias aracajuanas,<br />

uma das informantes contou-me um sonho que teve, cujo enredo ela interpreta como um sinal <strong>de</strong> que expirara<br />

o t<strong>em</strong>po para encontrar o amor. Vale à pena registrar suas palavras:”no meio do sonho eu via o sino da matriz<br />

da cida<strong>de</strong> que eu nasci, e o eixo partia no meio, e alguém, uma voz dizia:’como é que você vai agüentar passar<br />

tantos invernos sozinha?’[...] e no mesmo sonho também vi o relógio, [...] marcando assim 15 para as 3, [...]<br />

como que o passado já tinha passado...” (TAVARES, 2002, p.155).<br />

203


afetivas, os homens falam <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong> universal, ou seja, naturalizam o binarismo<br />

construído histórica e socialmente acerca da divisão masculino/f<strong>em</strong>inino, hom<strong>em</strong>/mulher.<br />

As narrativas são filtradas por um viés subjetivo, as mulheres <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> a solteirice<br />

através <strong>de</strong> um resgate dos parâmetros que distingu<strong>em</strong> passado e presente, certo e errado,<br />

transgressões e repetições, perdas e conquistas, possibilida<strong>de</strong>s e limites para as diferentes<br />

gerações no tocante a papéis e espaços sociais, enquanto os homens enveredam por outros<br />

caminhos, <strong>de</strong>senham uma tipologia dos <strong>solteiro</strong>s e tramam <strong>de</strong>finições escudadas na sombra<br />

in<strong>de</strong>lével dos mo<strong>de</strong>los familiares, ratificam os construtos da masculinida<strong>de</strong> mediante a adoção<br />

<strong>de</strong> padrões <strong>de</strong> comportamento <strong>em</strong> que a essência viril lhes outorga o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> escolher a (s)<br />

parceira (s) e a sensibilida<strong>de</strong> essencial f<strong>em</strong>inina lhes re<strong>ser</strong>va o papel <strong>de</strong> escolhidas. No<br />

entanto, essas mesmas narrativas traçam novos <strong>de</strong>senhos acerca das f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong>s e<br />

masculinida<strong>de</strong>s, posições i<strong>de</strong>ntitárias <strong>de</strong> mulheres e homens, que certamente se reflet<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

suas experiências sociais. Em síntese, o fato das representações e tramas da solteirice encerrar<br />

significados variados para mulheres e homens sugere que as vivências cotidianas <strong>de</strong> <strong>solteira</strong>s<br />

e <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>s não são unívocas, e sim plurais.<br />

204


5 COREOGRAFIAS DA SOLTEIRICE<br />

5.1 O CORPO EM MOVIMENTO<br />

As mulheres e homens são sugestionados pelo contexto e t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> social e<br />

histórica, que produz<strong>em</strong> <strong>de</strong>slocamentos na dinâmica familiar, engendram oposições e<br />

compl<strong>em</strong>entarieda<strong>de</strong>s na trajetória das gerações, cujo legado familiar po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> reelaborado e,<br />

ou reinterpretado, <strong>de</strong> forma a compor uma simultaneida<strong>de</strong> entre os referenciais i<strong>de</strong>ntitários<br />

que os classificam como mulheres e homens, m<strong>em</strong>bros das classes médias e a restrição ou<br />

pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolhas presentes na tessitura social. Tais indicativos também suger<strong>em</strong> que as<br />

tramas e coreografias da solteirice são diversas no tocante à experiência pessoal, à vida afetiva<br />

e sexual <strong>de</strong>ssas mulheres e homens, mesmo entre grupos contíguos.<br />

Com efeito, as mulheres nascidas entre 1940 – 1950 80 são educadas para cultivar<strong>em</strong> o<br />

recato e a virtu<strong>de</strong>, até mesmo o flerte <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> uma etapa inicial para o matrimônio, caso<br />

contrário indica ausência <strong>de</strong> pudor e inconseqüência, ou seja, o corpo da mulher é mantido<br />

sob forte vigilância e, qualquer <strong>de</strong>slize ou mal-entendido po<strong>de</strong> comprometer irrevogavelmente<br />

a reputação da jov<strong>em</strong> casadoira, que passa a <strong>ser</strong> classificada pelo seu reverso, a “garota <strong>de</strong><br />

programa”, com qu<strong>em</strong> os rapazes não se casam, o que faz com que as moças tent<strong>em</strong> negar,<br />

sublimar seus <strong>de</strong>sejos sexuais até o casamento. Por isso, as moças tramam estratégias para<br />

burlar<strong>em</strong> a censura familiar e aplacar<strong>em</strong> os apelos do corpo:<br />

205<br />

Vinte, vinte e muitos, [...] eu sentia os <strong>de</strong>sejos do meu corpo e eu não queria me<br />

casar, isso criava uma confusão <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim muito gran<strong>de</strong>, até que eu conheci<br />

alguns homens, eles eram argentinos [...]. Então eu pensei que eu ia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> <strong>ser</strong><br />

virg<strong>em</strong>, não ter aquela coisa <strong>de</strong> se guardar para o casamento. Aí quando eu <strong>de</strong>cidi,<br />

fui com uma amiga comprar um anticoncepcional, a amiga que pediu porque eu<br />

tinha a impressão que ia aparecer um letreiro na minha cara. [...] Eu praticamente<br />

não o conhecia, a gente tinha se conhecido no Rio e eu vim <strong>em</strong>bora para cá, <strong>de</strong>pois<br />

eu viajei para a Argentina para me encontrar com ele. Aí entre a repressão toda que<br />

estava <strong>de</strong>ntro e o meu hímen que era bastante espesso, na primeira vez não chegou a<br />

romper porque ele disse que era uma coisa muito prazenteira e eu ia ficar com uma<br />

impressão horrível. Então, quando eu vim, antes <strong>de</strong> voltar eu fui a minha<br />

80 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Bassanezi (1996; 2000); Fáveri (1999).


206<br />

ginecologista e pedi que ela lancetasse o meu hímen para eu não sentir, expliquei a<br />

situação e foi isso que aconteceu (Indira).<br />

Numa época <strong>em</strong> que o casamento é consi<strong>de</strong>rado o <strong>de</strong>stino natural da mulher, o<br />

exercício da sexualida<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina está condicionado ao matrimônio, ou seja, as moças<br />

apren<strong>de</strong>m a reprimir sua sexualida<strong>de</strong>, pre<strong>ser</strong>var<strong>em</strong> a pureza e ignorância sexual. Caso<br />

contrário, arriscam-se a ficar<strong>em</strong> mal faladas e, ou <strong>ser</strong><strong>em</strong> consi<strong>de</strong>radas levianas por futuros<br />

preten<strong>de</strong>ntes, o que elimina as chances <strong>de</strong> conquistar<strong>em</strong> um bom partido. Para aquelas com<br />

“vinte e muitos” anos, as oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> se casar<strong>em</strong> são r<strong>em</strong>otas e, caso não consigam<br />

sublimar o <strong>de</strong>sejo, torna-se cada vez mais difícil manter<strong>em</strong> a continência sexual.<br />

A vigilância social e familiar sobre o corpo f<strong>em</strong>inino se intensifica, quando a mulher<br />

ousa <strong>de</strong>safiar a or<strong>de</strong>m moral instituída, prefere continuar <strong>solteira</strong> e exerce uma ativida<strong>de</strong><br />

r<strong>em</strong>unerada, pois se supõe que o clamor do sexo a transforma <strong>em</strong> ameaça para homens<br />

casados, ou seja, o controle sobre seu corpo impe<strong>de</strong> que a mulher perca a virtu<strong>de</strong> sexual e se<br />

torne uma concubina, prostituta ou mantenha relacionamentos fortuitos 81 .<br />

Para Indira, portanto, a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r a virginda<strong>de</strong> v<strong>em</strong> acompanhada <strong>de</strong> culpa,<br />

medo <strong>de</strong> <strong>ser</strong> <strong>de</strong>scoberta e con<strong>de</strong>nada, o que requer o uso <strong>de</strong> estratag<strong>em</strong>as: viaja para o Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro 82 , um centro urbano consi<strong>de</strong>rado mais avançado, on<strong>de</strong> não corre o risco <strong>de</strong> <strong>ser</strong><br />

flagrada ao se <strong>de</strong>sviar do caminho traçado para as moças <strong>de</strong> família, conhece homens <strong>de</strong> outra<br />

nacionalida<strong>de</strong>, pe<strong>de</strong> ajuda a uma amiga para comprar <strong>em</strong> seu lugar o anticoncepcional e, <strong>de</strong>ssa<br />

forma, permanece incógnita.<br />

Além disso, Indira t<strong>em</strong> que lidar com a própria censura, isto é, a repressão<br />

internalizada exige medidas extr<strong>em</strong>as, antecipa a ansieda<strong>de</strong> e o mal-estar físico sentidos na<br />

primeira relação sexual com o parceiro e rompe o hímen por meio <strong>de</strong> uma incisão feita pela<br />

ginecologista; <strong>de</strong>sloca-se para outro País, on<strong>de</strong> os olhares censores não po<strong>de</strong>m alcançá-la e,<br />

81 I<strong>de</strong>m.<br />

82 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Heilborn (1999, p. 99), para qu<strong>em</strong> o Rio <strong>de</strong> Janeiro, no imaginário social, é representado<br />

como um “cenário propiciador da sexualida<strong>de</strong> e da sedução”.


finalmente, opta por manter distância geográfica dos homens com qu<strong>em</strong> mantém<br />

relacionamentos amorosos, o que resguarda sua imag<strong>em</strong>, isto é, camufla a existência <strong>de</strong> uma<br />

vida sexual. Contudo, isso não significa a inexistência <strong>de</strong> enredos diferentes:<br />

207<br />

Eu vivi a geração paz e amor, todo o movimento hippie, todo o movimento abaixo o<br />

soutien, a liberda<strong>de</strong>, todo aquele processo, a resistência para transformar, para abrir.<br />

[...] Pois é, não tinha esse preconceito. Ah! Menina, se eu tivesse 18 anos tinha<br />

muito, s<strong>em</strong> grilo nenhum, s<strong>em</strong> vulgarida<strong>de</strong>, s<strong>em</strong> uso, uma coisa assim muito bonita,<br />

muito <strong>de</strong> amor, [...] então aí começam os <strong>de</strong>senlaces, [...] nunca quis engravidar, e<br />

foi justamente a partir <strong>de</strong>ssa coisa que a coisa pegou, ele queria mas eu não queria.<br />

[...] Mas nessa época, eu acho que eu fui a única, se não a única, uma das poucas que<br />

não resolveram ter filho produção in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, [...] hoje eu não tenho preconceito,<br />

sou muito senhora <strong>de</strong> meus sentimentos (Ana).<br />

As mudanças sociais <strong>em</strong> curso <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1960 produz<strong>em</strong> <strong>de</strong>slocamentos nas<br />

percepções <strong>de</strong> mundo e padrões <strong>de</strong> comportamento f<strong>em</strong>ininos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os movimentos <strong>de</strong><br />

transformação societária contra a ditadura militar, – mesmo quando mulheres, como Ana,<br />

atuam nos bastidores, “nunca sofri diretamente, era aquela que chamavam inocente útil” –, às<br />

lutas <strong>em</strong>ancipatórias f<strong>em</strong>inistas, que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>iam um processo <strong>de</strong> politização do privado, na<br />

medida <strong>em</strong> que contestam os mo<strong>de</strong>los arquetípicos tradicionais que <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> o <strong>ser</strong> mulher e a<br />

dupla moral sexual atribuída a mulheres e homens. Em outras palavras, as mulheres<br />

incorporam novos comportamentos mo<strong>de</strong>lizadores, isto é, <strong>de</strong>safiam o proibido, exercitam a<br />

liberda<strong>de</strong> e prazer sexual s<strong>em</strong> culpas ou subterfúgios.<br />

Todavia, tudo po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> divino, maravilhoso, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se mantenha a alegoria do par<br />

amoroso, pois a auto-realização f<strong>em</strong>inina no campo afetivo-sexual permanece condicionada<br />

ao ethos do amor romântico, <strong>em</strong> que a sublimida<strong>de</strong> e beleza do sentimento amoroso confer<strong>em</strong><br />

“nexo” ao sexo, “é uma coisa da natureza” f<strong>em</strong>inina, ao contrário do “sexo por sexo”<br />

exercitado pelo hom<strong>em</strong>, cujo caráter antropofágico projeta uma imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> vulgarida<strong>de</strong><br />

quando praticado pela mulher, pois “para mim, sexo não po<strong>de</strong> vir s<strong>em</strong> nexo, t<strong>em</strong> que ter<br />

alguma coisa a mais”, afirma Ana, para justificar o ato sexual. Em suma, para as mulheres, o<br />

exercício da sexualida<strong>de</strong> só adquire sentido quando o sexo e a afetivida<strong>de</strong> estão conectados.


Ana elabora seus próprios parâmetros <strong>de</strong> permissivida<strong>de</strong> sexual e, da mesma forma<br />

que se recusa a dissociar sexo e afetivida<strong>de</strong>, não a<strong>de</strong>re à “moda” <strong>de</strong> ter filhos através <strong>de</strong> uma<br />

“produção in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”, pois sugere uma ação mecânica, <strong>em</strong> que a entrega amorosa é<br />

calculada, mas também aponta uma razão “subliminar”, a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> lidar com a perda da<br />

mãe, “eu não ia querer gerar uma vida para passar pelo que eu tinha passado” e o receio <strong>de</strong><br />

exacerbar a possessão e protecionismo <strong>em</strong> relação ao filho, pois “eu não tenho estrutura<br />

<strong>em</strong>ocional para criar b<strong>em</strong>, com liberda<strong>de</strong>”. Então, impõe seus próprios limites, ou seja, rejeita<br />

a maternida<strong>de</strong>, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que reaviva a essencialida<strong>de</strong> construída socialmente <strong>em</strong><br />

torno da maternalida<strong>de</strong>, revelada pela via da resistência, “s<strong>em</strong>pre aflora mais a necessida<strong>de</strong> da<br />

maternida<strong>de</strong> na mulher”, porém os apelos da liberda<strong>de</strong> se mostram mais pujantes e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> não<br />

assumir compromissos <strong>de</strong>finitivos.<br />

As mulheres mais velhas (Ana, Beatriz, Débora, Helena, Lúcia, Nelma e Clara)<br />

iniciam a vida sexual com namorados, mas, a faixa etária entre 18 e 46 anos, é <strong>de</strong>terminada<br />

pela educação familiar, ora extr<strong>em</strong>amente rígida ora mais liberal. Dessa forma, enquanto para<br />

Débora “foi bater o olho, os dois ficaram encantados um pelo outro”, a iniciação sexual foi<br />

impulsionada pela paixão aos 27 anos, para Ana é conduzida s<strong>em</strong> sobressaltos aos 18 anos,<br />

“uma situação tranqüila”, porque não houve “nenhuma pressão”; para Nelma “não aconteceu<br />

<strong>de</strong> vez”, mas após algumas tentativas frustradas do parceiro, aos 28 anos, pois não se sentia<br />

segura n<strong>em</strong> preparada, <strong>de</strong>vido à ignorância sexual e à vigilância familiar e social, que lhe<br />

cobrava um comportamento mais recatado.<br />

Já Lúcia, permaneceu com a sexualida<strong>de</strong> imaculada até os 36 anos, porque foi “muito<br />

tolhida nesse sentido, me senti culpada, tudo era pecado, era o fim do mundo”, assim como<br />

Jandira, que pela mesma razão, sequer conseguiu se aproximar <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong> com um<br />

interesse amoroso ou ter momentos mais íntimos, apesar <strong>de</strong> “que a gente não é santa”, mas<br />

“s<strong>em</strong>pre me respeitou”, <strong>em</strong> seus namoros castos o sexo era um tabu e, até hoje, persiste como<br />

208


nome impronunciável, “eu nunca coisei”, <strong>em</strong>bora também atribua sua inexperiência sexual à<br />

vonta<strong>de</strong> divina, “já me acostumei, não teve que acontecer, não aconteceu”.<br />

Contudo, Clara ensaia artifícios para ludibriar a vigilância familiar e social e se isentar<br />

da responsabilida<strong>de</strong> que pesa sobre seu nome – “significa pureza” –, <strong>de</strong>sloca-se para centros<br />

urbanos mais avançados “com vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudar essa minha história”, <strong>em</strong>bora somente o faça<br />

“<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> certa ida<strong>de</strong>”, aos 46 anos, quando as chances <strong>de</strong> casamento se tornam r<strong>em</strong>otas e a<br />

pre<strong>ser</strong>vação da virginda<strong>de</strong> se transforma um <strong>em</strong>pecilho <strong>em</strong> seus relacionamentos, pois ao<br />

<strong>de</strong>scobrir<strong>em</strong> “os homens estavam recuando”. Em suma, a virginda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> <strong>ser</strong> um tesouro<br />

a <strong>ser</strong> pre<strong>ser</strong>vado pela mulher e é consi<strong>de</strong>rada um estigma do qual somente se liberta ao<br />

enganar o parceiro, “para que eu per<strong>de</strong>sse a virginda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa vez, [...] eu menti, até que a<br />

pessoa <strong>de</strong>scobriu, mas era tar<strong>de</strong>” (Clara).<br />

Entre as mulheres na faixa etária <strong>de</strong> 35 a 40 anos (Eva, Gina e Flora), a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

iniciação sexual varia <strong>de</strong> acordo com o contexto familiar, a cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> moram e t<strong>em</strong>po<br />

<strong>de</strong>dicado aos estudos, o que <strong>de</strong>termina enredos diferenciados. Para Gina, que teve uma<br />

educação rígida, “as <strong>de</strong>scobertas aconteceram <strong>de</strong> uma forma tardia”, teve o primeiro<br />

namorado aos 19 anos, quando o pai e a mãe se separaram, pois “não era permitido” namorar<br />

e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, libertou-se das críticas paternas <strong>em</strong> relação à sua falta <strong>de</strong> atrativos físicos, “eu<br />

<strong>de</strong>sconstruí os meus complexos”, mas foi preciso mudar-se para outro Estado, distanciar-se da<br />

imag<strong>em</strong> paterna que, “<strong>de</strong> forma i<strong>de</strong>ológica continuava presente”, para escapar do medo e da<br />

culpa e, aos 26 anos, alcançar a “liberda<strong>de</strong> do corpo”. Para Eva, que teve uma educação mais<br />

liberal, a primeira experiência sexual ocorreu com um namorado, s<strong>em</strong> culpas ou medos,<br />

enquanto Flora, cuja relação com o pai “foi meio tumultuada” <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a adolescência e, por<br />

isso, voltou-se para os estudos, pon<strong>de</strong>re que sua iniciação sexual aconteceu “um pouco tar<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>zenove anos, com um professor da universida<strong>de</strong>, nós tiv<strong>em</strong>os um caso”.<br />

209


A iniciação sexual continua sendo concebida por essas mulheres como primeiro<br />

momento <strong>de</strong> experimentação da sexualida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>scoberta do corpo, mas suas narrativas<br />

apontam um novo padrão <strong>de</strong> comportamento no tocante à perda da virginda<strong>de</strong>: as profundas<br />

mudanças <strong>em</strong> relação à sexualida<strong>de</strong>, ocorridas nas duas últimas décadas têm provocado uma<br />

espécie <strong>de</strong> inversão do tabu da virginda<strong>de</strong>, ou seja, o fato <strong>de</strong> jovens com mais <strong>de</strong> 19 anos<br />

permanecer<strong>em</strong> virgens causa estranhamento, chega-se a cogitar que tenham algum probl<strong>em</strong>a<br />

psicológico (JABLONSKI apud DIEHL, 2002), daí porque as mulheres classificar<strong>em</strong> como<br />

“tardia” 83 a ida<strong>de</strong> com que iniciam sua vida sexual. Neste sentido, a experimentação da<br />

sexualida<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> estar subordinada ao casamento, assim como não se restringe à<br />

função procriativa, isto é, a sexualida<strong>de</strong> passa a <strong>ser</strong> exercitada <strong>de</strong> forma recreativa, casais <strong>de</strong><br />

namorados e, ou amigos iniciam juntos a aprendizag<strong>em</strong> do prazer sexual, que é permeada por<br />

afeto, e mais intimida<strong>de</strong> entre os pares.<br />

Por sua vez, a experimentação da sexualida<strong>de</strong> masculina também está condicionada à<br />

variabilida<strong>de</strong> histórica e, por isso, mostra-se dinâmica, ora agrega os novos padrões e<br />

expectativas sexuais criados a partir da revolução contracultural e sexual da década <strong>de</strong> 1960,<br />

ora reprisa as normas sociais tradicionais sobre o exercício da sexualida<strong>de</strong>. Em outras<br />

palavras, o início da vida sexual masculina po<strong>de</strong> tanto seguir antigos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong><br />

corporalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero quanto adotar formas não-tradicionais <strong>de</strong> prática sexual, a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r<br />

da trajetória pessoal, do processo sexuado <strong>de</strong> socialização e aprendizag<strong>em</strong> dos afetos, da<br />

classificação etária, posição social e lugar on<strong>de</strong> vive cada indivíduo.<br />

83 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Heilborn (2005) cuja Pesquisa Gravad constata que moças <strong>em</strong> união precoce, resi<strong>de</strong>ntes <strong>em</strong><br />

Porto Alegre (RS), Rio <strong>de</strong> Janeiro (RJ) e Salvador (BA) começam a vida sexual antes das <strong>solteira</strong>s e, classifica<br />

como tardia a iniciação sexual das mulheres que acontece <strong>de</strong>pois dos 18 anos. Ver, também Bozon (2005), que<br />

ao refletir sobre as novas normas a que se encontra condicionada a experimentação da sexualida<strong>de</strong> no Brasil e<br />

na América Latina, i<strong>de</strong>ntifica que <strong>em</strong> nosso País houve um <strong>de</strong>créscimo da ida<strong>de</strong> tardia <strong>de</strong> iniciação sexual das<br />

mulheres <strong>de</strong> 1950 (20,5 anos) para 1975 (mais <strong>de</strong> dois anos). Ver, ainda Gol<strong>de</strong>nberg (2005a, p. 55) que, ao<br />

investigar as representações <strong>de</strong> gênero e discurso sobre o valor atribuído à sexualida<strong>de</strong> e uso do corpo entre<br />

jovens das classes médias cariocas, constata que “as próprias mulheres com mais <strong>de</strong> 20 anos que não per<strong>de</strong>ram<br />

a virginda<strong>de</strong> parec<strong>em</strong> se perceber como <strong>de</strong>sviantes <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> comportamento sexual”.<br />

210


No Brasil, a moral sexual vigente no período 1945 – 1964 estabelece parâmetros<br />

distintos no tocante à experimentação da sexualida<strong>de</strong> para mulheres e homens, enquanto as<br />

primeiras são instruídas a cultivar<strong>em</strong> a virtu<strong>de</strong> sexual, mantendo-se castas até o casamento, os<br />

últimos são incitados a ter<strong>em</strong> experiências sexuais com diferentes parceiras. A vigilância<br />

social e familiar age sobre as mulheres <strong>de</strong> forma a normatizar e conter sua sexualida<strong>de</strong> e,<br />

sobre os homens exige, <strong>de</strong> forma subliminar, varieda<strong>de</strong> e quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> experiências para que<br />

aprimore suas técnicas sexuais e, futuramente, possa exercer o papel <strong>de</strong> professor das<br />

ingênuas esposas no <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> sua sexualida<strong>de</strong>. 84<br />

Por essa razão, os rapazes iniciam a vida sexual na adolescência, principalmente com<br />

prostitutas, com qu<strong>em</strong> têm suas primeiras lições, ou seja, as prostitutas são professoras<br />

<strong>de</strong>signadas por pais e, ou parentes para transmitir<strong>em</strong> seus conhecimentos sexuais aos jovens<br />

pupilos: “a iniciação foi <strong>em</strong> um cabaré, eu fui levado por um cunhado do meu irmão mais<br />

velho, lá no cabaré, aos <strong>de</strong>zesseis anos” (Abílio). Há <strong>de</strong> se ob<strong>ser</strong>var, entretanto, a vida sexual<br />

precoce dos rapazes e a varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> parceiras com que mantêm relações sexuais não quer<br />

dizer, necessariamente, que esses rapazes adquir<strong>em</strong> amadurecimento sexual, uma vez que tais<br />

encontros são efêmeros, rapidamente consumados e suas tutoras não têm apenas discípulos,<br />

mas clientes a qu<strong>em</strong> ven<strong>de</strong>m o corpo e, na produção <strong>ser</strong>ial, o t<strong>em</strong>po para ensinar-lhes os<br />

segredos do sexo é cronometrado 85 .<br />

Para qu<strong>em</strong> viveu intensamente os movimentos libertários da década <strong>de</strong> 1970, a or<strong>de</strong>m<br />

moral instituída se <strong>de</strong>sfaz quando confrontada com a educação familiar liberal e profusão <strong>de</strong><br />

experimentações, “é uma coisa muito livre” (Camilo). Talvez por isso, a iniciação sexual é<br />

esquecida <strong>em</strong> meio às <strong>de</strong>scobertas tramadas pela imaginação, “experiências sexuais tive<br />

muitas, mas nada assim que pu<strong>de</strong>sse <strong>ser</strong> registrado como importante”, assim como foram<br />

muitas as vivências proporcionadas por suas criações estéticas e artísticas, ou seja, a<br />

84 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Bassanezi (1996)<br />

85 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Diehl (2002)<br />

211


constituição i<strong>de</strong>ntitária dos indivíduos é <strong>de</strong>senhada pela soma <strong>de</strong> “experiências <strong>de</strong> vida”<br />

plurais, <strong>em</strong> que não há espaço para “algo especial”.<br />

Com efeito, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1970, a tría<strong>de</strong> “sexo, drogas e rock and roll” abre<br />

caminho para todas as experimentações possíveis, os jovens afrontam as proibições como<br />

estilo <strong>de</strong> vida, inclusive no campo da sexualida<strong>de</strong> – há uma redução da ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> iniciação<br />

sexual, mulheres e homens saciam o <strong>de</strong>sejo erótico através <strong>de</strong> amores episódicos que<br />

compartilham com diferentes parceiros (as) –. A ousadia <strong>de</strong>safia a repressão e trama a alta<br />

rotativida<strong>de</strong> das relações, o que faz com que a primeira experiência sexual aconteça<br />

aproximadamente “aos <strong>de</strong>zessete” anos.<br />

Para Bernardo, que se <strong>de</strong>fine homossexual, revelar a orientação do <strong>de</strong>sejo para a<br />

pesquisadora consiste <strong>em</strong> afirmação <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sexual, isto é, o ato <strong>de</strong> reconhecimento<br />

envolve uma questão pessoal, mas também política, porque “assume” publicamente sua<br />

condição (LOURO, 2001). Contudo, manifestar-se sobre o início da vida sexual implica <strong>em</strong><br />

permitir uma invasão <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>snudar sua intimida<strong>de</strong> e, por isso, prefere exibi-la s<strong>em</strong><br />

preâmbulos, n<strong>em</strong> <strong>de</strong>talhes: “Minha vida afetiva s<strong>em</strong>pre foi confusa, eu sou homossexual”,<br />

<strong>em</strong>bora subliminarmente sinalize para a fronteira que ainda separa a homossexualida<strong>de</strong> como<br />

um comportamento <strong>de</strong>sviante quando confrontada à sexualida<strong>de</strong> normatizada – a<br />

heterossexualida<strong>de</strong>.<br />

As narrativas dos homens na faixa etária entre 40 e 43 anos (Júlio, Gustavo, Dario e<br />

Edson) indicam outros cenários e atores, assim como diversificação da faixa etária para<br />

experimentação da sexualida<strong>de</strong>. Em centros urbanos menos <strong>de</strong>senvolvidos, como Aracaju, a<br />

sexualida<strong>de</strong> permanece como tabu no espaço doméstico, não há diálogo entre pais e filhos, a<br />

curiosida<strong>de</strong> é saciada por meio <strong>de</strong> leituras ou conversas com amigos, daí porque a iniciação<br />

sexual dos rapazes, por volta <strong>de</strong> “<strong>de</strong>zesseis, <strong>de</strong>zessete anos” ainda acontece <strong>em</strong> prostíbulos,<br />

mas ao contrário do pai ou <strong>de</strong> parentes, “um amigo meu me levou, ele era mais atirado”<br />

212


(Júlio). Contudo, mesmo <strong>em</strong> cida<strong>de</strong>s interioranas mais con<strong>ser</strong>vadoras, após as primeiras lições<br />

com prostitutas, os rapazes se sent<strong>em</strong> seguros para ensaiar<strong>em</strong> outros movimentos:<br />

213<br />

[...] aí chegou uma fase quando acontecia com pessoas que já não eram mais pagas,<br />

que havia certo relacionamento, eram pessoas mais velhas que já vinham <strong>de</strong><br />

relacionamentos frustrados, [...] salvo engano, eu tive uma, duas relações que eram<br />

namoradas, na minha época ainda se pre<strong>ser</strong>vava muito essa coisa da virginda<strong>de</strong><br />

(Dario).<br />

A revolução sexual <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada na década <strong>de</strong> 1970 passa longe <strong>de</strong> pequenas cida<strong>de</strong>s<br />

do interior e a dupla moral sexual ainda predomina na década seguinte. As moças apren<strong>de</strong>m a<br />

agradar os rapazes, beijos e carícias são b<strong>em</strong>-vindos, mas s<strong>em</strong> excessos, ou seja, as bolinações<br />

têm limites e cabe às moças conter<strong>em</strong> a concupiscência dos namorados e pre<strong>ser</strong>var<strong>em</strong> a<br />

virginda<strong>de</strong>. Aquelas que não resist<strong>em</strong> à lábia dos rapazes sa<strong>em</strong> <strong>de</strong> um relacionamento<br />

“frustrado” para outro, pois são consi<strong>de</strong>radas moças fáceis e, portanto, inapropriadas para o<br />

casamento. Os rapazes, ao contrário, não enfrentam tais limitações e, ou con<strong>de</strong>nação social, as<br />

relações sexuais com mulheres mais velhas, <strong>solteira</strong>s e, ou separadas aten<strong>de</strong>m ao chamado da<br />

natureza, isto é, os rapazes atestam sua masculinida<strong>de</strong>, calcada no exercício <strong>de</strong> uma<br />

sexualida<strong>de</strong> ativa, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que conquistam a admiração e inveja <strong>de</strong> amigos e<br />

jovens aprendizes do sexo.<br />

Já Edson, que resi<strong>de</strong> <strong>em</strong> Salvador, consi<strong>de</strong>ra sua iniciação sexual tardia, “não foi<br />

muito cedo, [...] <strong>de</strong>zessete, <strong>de</strong>zoito anos”, mas ressalta a mudança <strong>de</strong> lugar, sai do espaço<br />

público e ocupa o espaço privado, “foi <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa, não foi fora”, mas “não foi com<br />

namorada, foi com a menina que trabalhava lá <strong>em</strong> casa”. A prostituta é substituída pela<br />

<strong>em</strong>pregada doméstica que, diferent<strong>em</strong>ente das professoras <strong>de</strong> sexo, não é r<strong>em</strong>unerada para<br />

saciar o apetite carnal dos “patrõezinhos”, que exerc<strong>em</strong> sua dominação <strong>de</strong> classe e, ou racial<br />

também sob a forma <strong>de</strong> exploração sexual 86 , com a conivência dos pais. Contudo, esse não é o<br />

único enredo possível nas capitais:<br />

86 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Britto da Motta (1986) que, ao investigar a relação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r entre patroas e <strong>em</strong>pregadas<br />

domésticas que trabalhavam <strong>em</strong> casas <strong>de</strong> família da pequena e gran<strong>de</strong> burguesia da capital baiana no período


214<br />

[...] minha primeira relação foi aos 14 anos com uma namorada, que também tinha<br />

catorze anos, e foi uma coisa tranqüila porque [...] parece que tiv<strong>em</strong>os criações<br />

parecidas, com uma abertura muito gran<strong>de</strong> para conversar com os pais sobre<br />

sexualida<strong>de</strong>, sobre sexo, sobre anticoncepção. Então, eu namorei com ela uns meses,<br />

<strong>de</strong>pois a gente resolveu que estava a fim <strong>de</strong> ter relação, começamos a ter,<br />

namoramos por um período (Gustavo).<br />

Os casais das classes médias formados entre as décadas <strong>de</strong> 1970 e 1980 tentam<br />

pre<strong>ser</strong>var alguns valores do legado familiar, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que abraçam i<strong>de</strong>ais<br />

igualitários e adotam novos arranjos familiares e padrões <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong>. Por ex<strong>em</strong>plo,<br />

buscam proporcionar aos filhos uma educação socializadora oposta àquela recebida pelas<br />

gerações anteriores, <strong>em</strong> que a dupla moral sexual <strong>de</strong>signava para moças e rapazes um<br />

exercício da sexualida<strong>de</strong> diferenciado – para as primeiras o controle e repressão sexual e, para<br />

os segundos, a exaltação dos sentidos – sob uma visão essencialista.<br />

A incorporação <strong>de</strong> novos mo<strong>de</strong>los no tocante ao exercício da maternida<strong>de</strong>/paternida<strong>de</strong><br />

envolv<strong>em</strong> o <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho <strong>de</strong> papéis <strong>de</strong> gênero mais igualitários, <strong>em</strong> que os cuidados com os<br />

filhos são compartilhados, ou seja, as relações entre pais e filhos são matizadas por um maior<br />

investimento <strong>em</strong>ocional, companheirismo e diálogo. No tocante à sexualida<strong>de</strong>, os pais tentam<br />

transmitir os i<strong>de</strong>ais libertários e <strong>em</strong>ancipatórios, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a liberda<strong>de</strong> do corpo e, livre<br />

expressão da sexualida<strong>de</strong>, cujo exercício é entrelaçado à afetivida<strong>de</strong> (VITALE, 2000).<br />

A experimentação da sexualida<strong>de</strong> é vivenciada <strong>de</strong> forma “tranqüila” por Gustavo, uma<br />

vez que po<strong>de</strong> compartilhar com os pais suas dúvidas e questionamentos <strong>em</strong> relação à<br />

<strong>de</strong>scoberta do corpo e do <strong>de</strong>sejo, sobre a sexualida<strong>de</strong>, o sexo e métodos contraceptivos. Por<br />

essa razão, “cada vez mais os adolescentes estão iniciando a sua vida sexual com um parceiro<br />

ou parceira <strong>de</strong> sua própria ida<strong>de</strong>, ou <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> próxima à sua” (TORRES, 1998, p: 154), com<br />

qu<strong>em</strong> tenham afinida<strong>de</strong>, compartilh<strong>em</strong> as mesmas inquietações, mas também o mesmo tipo <strong>de</strong><br />

educação socializadora.<br />

<strong>de</strong> 1976 a 1980, i<strong>de</strong>ntifica, entre outros aspectos, que a <strong>em</strong>pregada ocupa o lugar <strong>de</strong> objeto sexual, cobiçado<br />

pelos patrões e filhos.


Isso não significa que entre os homens na faixa etária <strong>de</strong> 33 a 38 anos (Miguel, Ivan,<br />

Flávio, Lauro, Hel<strong>de</strong>r e Nelson) as vivências sexuais da adolescência sejam análogas, n<strong>em</strong><br />

tampouco que guar<strong>de</strong>m diferenças profundas, mas apenas que há rupturas e continuida<strong>de</strong>s na<br />

educação socializadora recebida por cada indivíduo, influenciada pelos valores geracionais e<br />

espaço geográfico <strong>em</strong> que se movimentam. Nas pequenas cida<strong>de</strong>s interioranas, por ex<strong>em</strong>plo,<br />

os adolescentes, entre quinze e <strong>de</strong>zesseis anos, ainda costumam freqüentar bordéis e iniciam a<br />

vida sexual com prostitutas, pois “há mais <strong>de</strong> vinte anos, não era comum fazer sexo com a<br />

namorada, [...] não tinha essa liberda<strong>de</strong> que hoje você encontra” (Flávio), isto é, permanece a<br />

distinção entre moças <strong>de</strong> família, direitas – as namoradas – e mulheres <strong>de</strong> vida fácil, com as<br />

quais os rapazes po<strong>de</strong>m adquirir experiência sexual. Na capital, entretanto, há mudanças <strong>em</strong><br />

curso, ainda que permeadas por conflito e ambigüida<strong>de</strong>:<br />

215<br />

[...] acho que <strong>de</strong>zesseis anos, tinha uma menina que s<strong>em</strong>pre vinha passar as férias<br />

aqui e, ela era a fim <strong>de</strong> um amigo meu, [...] e eu doido para ficar com ela, mas nada,<br />

aí quando foi um dia, ela chegou para mim e disse – ‘se você o trouxer aqui para<br />

casa, aí eu vou ficar com os dois’, s<strong>em</strong>pre que as tias <strong>de</strong>la saiam, ela ficava sozinha.<br />

[...] Aí pronto, foi <strong>de</strong>sse jeito, aquela coisa doida, rápida. Eu só comecei a me<br />

relacionar direto a partir dos <strong>de</strong>zoito anos, aí foi com aquela história <strong>de</strong> namorada<br />

fixa, aí começou realmente a ter uma vida sexual ativa (Hel<strong>de</strong>r).<br />

As garotas que vêm <strong>de</strong> centros urbanos mais “avançados”, on<strong>de</strong> a experimentação da<br />

sexualida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>scoberta do corpo po<strong>de</strong> acontecer <strong>de</strong> forma mais livre, s<strong>em</strong> culpas ou<br />

cobranças sociais e familiares, quando se <strong>de</strong>slocam para centros urbanos mais con<strong>ser</strong>vadores,<br />

como Aracaju, durante o período <strong>de</strong> férias, confrontam as características culturais da<br />

socieda<strong>de</strong> local. Essas garotas se tornam objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo dos rapazes porque no plano do<br />

imaginário são representadas como mo<strong>de</strong>rnas e avançadas.<br />

Para os rapazes, a vida livre <strong>de</strong>ssas garotas as torna s<strong>em</strong>elhantes às garotas <strong>de</strong><br />

programa e prostitutas, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> da permissivida<strong>de</strong> sexual, do sexo “rápido” e<br />

<strong>de</strong>scompromissado que inaugura o aprendizado dos prazeres, mas o exercício da sexualida<strong>de</strong><br />

só adquire constância com namoradas fixas, alguns anos mais tar<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong>-se supor, portanto,<br />

que as garotas <strong>de</strong> “cida<strong>de</strong>s gran<strong>de</strong>s” atuam como precursoras do ficar, no qual o par ensaia


movimentos <strong>de</strong> aproximação com a sexualida<strong>de</strong> recém-<strong>de</strong>spertada, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

imprime <strong>de</strong>scompasso entre corpo, sexualida<strong>de</strong> e afeto.<br />

Os homens mais novos também iniciam a vida sexual por volta dos <strong>de</strong>zessete anos,<br />

porém compartilham a experimentação da sexualida<strong>de</strong> com namoradas que têm ida<strong>de</strong> próxima<br />

às suas e, por isso, na dança do sexo a cadência é or<strong>de</strong>nada pela intensificação do afeto e da<br />

intimida<strong>de</strong> entre o par. Entretanto, Ivan escolhe namorar uma mulher mais velha, “como ela é<br />

uma pessoa <strong>de</strong> mais ida<strong>de</strong>, eu freqüentava muito a casa <strong>de</strong>la, ficava final <strong>de</strong> s<strong>em</strong>ana, às vezes,<br />

passava a s<strong>em</strong>ana toda”, ou seja, a maturida<strong>de</strong> e in<strong>de</strong>pendência da parceira confer<strong>em</strong><br />

sensualismo e naturalida<strong>de</strong> à vida sexual, uma vez que o casal po<strong>de</strong> se encontrar livr<strong>em</strong>ente,<br />

s<strong>em</strong> que o hom<strong>em</strong> precise se preocupar com métodos contraceptivos, responsabilida<strong>de</strong><br />

atribuída àquela que é mais velha e, portanto, t<strong>em</strong> mais experiência sexual, o que po<strong>de</strong> trazer<br />

conseqüências inesperadas – “inclusive eu tenho um filho com ela, <strong>de</strong>ssa coisa aí”, afirma<br />

Ivan. Além disso, o t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que ficam juntos é cronometrado pelo <strong>de</strong>sejo, cuja chama<br />

apaga “dois anos e meio” <strong>de</strong>pois, quando os passos da dança erótico-amorosa se tornam dis-<br />

par-atados.<br />

A contrastação das narrativas <strong>de</strong> mulheres e homens sobre o início <strong>de</strong> sua vida sexual<br />

evi<strong>de</strong>ncia o caráter histórico e situacional da sexualida<strong>de</strong>, cuja experimentação apresenta<br />

oposições e compl<strong>em</strong>entarida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma geração/faixa etária para outra, assim como tramas e<br />

cenários diferenciados <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong>/lugar para outro. Ob<strong>ser</strong>va-se que a experimentação da<br />

sexualida<strong>de</strong> também é mo<strong>de</strong>lada pelas mudanças <strong>em</strong> curso na educação socializadora recebida<br />

por essas mulheres e homens que, reforça ou reelabora as diferenças <strong>de</strong> gênero, o que sugere<br />

uma diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cadências e repertórios nas respostas e caminhos percorridos por mulheres<br />

e homens na vida adulta para fruição do <strong>de</strong>sejo e da sexualida<strong>de</strong>, entre o sexo vivido e o sexo<br />

<strong>de</strong>sejado.<br />

216


5.2 AS EXPERIÊNCIAS SEXUAIS: DIFERENÇAS EM GÊNERO, NÚMERO<br />

E GRAU<br />

As mulheres <strong>solteira</strong>s nascidas entre as décadas <strong>de</strong> 1940 e 1950 apren<strong>de</strong>m através <strong>de</strong><br />

mensagens maternas, enunciadas <strong>de</strong> forma velada ou explícita, mas também com os<br />

relacionamentos conturbados e, ou estéreis das <strong>de</strong>mais mulheres da família a “ter<strong>em</strong> cuidado<br />

com os homens” (Indira) e rejeitar<strong>em</strong> o casamento. Contudo, cada uma <strong>de</strong>las constrói<br />

diferentes estratégias <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa: Indira se envolve com homens “bastante machistas e<br />

autoritários”, cujo comportamento a torna imune ao <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> uma relação convencional;<br />

Beatriz se relaciona com homens “meio malucos e <strong>de</strong>sajustados” que não planejam casar;<br />

Bárbara transita por entre paixões fugazes ou mais duradouras, cuja chama é alimentada pelo<br />

distanciamento geográfico, <strong>em</strong>bora haja aquelas que, como Jandira e Mabel, negam ou<br />

sublimam o <strong>de</strong>sejo, resguardando seus corpos das tentações e da luxúria.<br />

Na juventu<strong>de</strong>, as mulheres mais velhas cultivam amores epistolares, os passos da<br />

sedução são ensaiados, tramam afinida<strong>de</strong>s e ocultam dissensões e, por isso, o encontro sexual<br />

é vivenciado <strong>de</strong> forma episódica, mas intensa, “porque não ficávamos juntos” (Indira), <strong>em</strong><br />

viagens <strong>de</strong> férias que não ameaçam o idílio, reinventado a cada carta e reencontro durante<br />

“uns vinte anos”, enquanto mantêm “casos eventuais” que saciam <strong>de</strong>sejos urgentes, “mas<br />

nada que eu pensasse numa vida <strong>em</strong> comum, nunca”. Todavia, a chamada revolução sexual<br />

também <strong>de</strong>scortina para as mulheres formas <strong>de</strong> (re)conhecimento da sexualida<strong>de</strong> contrárias<br />

aos padrões sexuais estandartizados:<br />

217<br />

[...] queria viver comigo, engenheiro, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, um francês que eu namorei, [...]<br />

eu dizia a ele – ‘você t<strong>em</strong> um lado homossexual muito forte’ –, ele agra<strong>de</strong>ce a mim<br />

ter tido esse estímulo <strong>de</strong> assumir a homossexualida<strong>de</strong>, ele também ficava angustiado,<br />

apesar <strong>de</strong> estar apaixonado por mim, ele sentia atração por hom<strong>em</strong>, ele agra<strong>de</strong>ce a<br />

mim porque eu sou uma pessoa muito livre, muito aberta, e ele se sentiu à vonta<strong>de</strong><br />

para po<strong>de</strong>r se apaixonar por um amigo meu e foram viver juntos (Beatriz).<br />

Uma vez até me apaixonei por uma amiga minha, eu tinha um <strong>de</strong>sejozinho,<br />

mas [...] o mais interessante era estar controvertendo, [...] e, tinha interesse<br />

por homens, namorava homens interessantes, [...] mas na época, a <strong>de</strong>scoberta


218<br />

da sexualida<strong>de</strong>, todo mundo podia transar com todo mundo, hom<strong>em</strong> com<br />

hom<strong>em</strong>, mulher com mulher, alguns homens até que hoje repudiam aquela<br />

época, [...] para a mulher é mais fácil, o hom<strong>em</strong> parece que fica carimbado,<br />

tatuado para o resto da vida, é como se fosse um gay latente, e a mulher, a<br />

carência, porque não t<strong>em</strong> corag<strong>em</strong> <strong>de</strong> transar com hom<strong>em</strong>, as próprias<br />

pessoas da socieda<strong>de</strong>, as mais próximas, [...] dão suas próprias <strong>de</strong>sculpas.<br />

(Débora).<br />

As experiências das mulheres buscam contestar o caráter natural e a-histórico<br />

atribuído à sexualida<strong>de</strong>, b<strong>em</strong> como a normatização e repressão a que estão condicionadas as<br />

mulheres <strong>de</strong> gerações anteriores. Para Beatriz, <strong>ser</strong> “aberta” e “livre” significa envolver-se<br />

afetivamente com um hom<strong>em</strong> que <strong>em</strong>preen<strong>de</strong> viagens psicodélicas “todo dia”, outro que é<br />

avesso ao trabalho, aquele para qu<strong>em</strong> revela a homossexualida<strong>de</strong> indizível e liberta para<br />

<strong>de</strong>sfrutar os prazeres secretos s<strong>em</strong> culpa ou angústia, ou ainda namorar uma garota “linda”,<br />

cuja possessivida<strong>de</strong> provoca o <strong>de</strong>sencantamento e impulsiona novos experimentos, até<br />

encontrar “o hom<strong>em</strong> com qu<strong>em</strong> eu mais tive i<strong>de</strong>ntificação, <strong>em</strong> todos os sentidos,<br />

politicamente, intelectualmente, sexualmente”.<br />

Por outro lado, se para Débora, a experiência homoerótica é instada pela curiosida<strong>de</strong> e<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> transgressão, arrefece “porque era uma coisa neurótica”, vivenciada às escondidas e,<br />

no plano sexual, “era como se fôss<strong>em</strong>os duas amiguinhas brincando <strong>de</strong> papai e mamãe”, ou<br />

seja, a mulher não consegue se <strong>de</strong>sfazer das construções simbólicas acerca do <strong>ser</strong> mulher e<br />

invalidar o aprendizado cultural sobre o uso <strong>de</strong> seu corpo e sexualida<strong>de</strong>. A transgressão,<br />

portanto, t<strong>em</strong> limites, não ultrapassa preconceitos e estereótipos e, por isso, a paixão se<br />

dissipa <strong>em</strong> meio a outras experimentações.<br />

Neste sentido, nada mais convencional do que reavivar o ethos do amor romântico e,<br />

ainda na década <strong>de</strong> 1970, Débora encontra seu príncipe, “uma pessoa muito inteligente, muito<br />

culta, muito interessante e sensível”, que v<strong>em</strong> <strong>de</strong> outro Estado e, quando os olhares se cruzam,<br />

sob o efeito <strong>de</strong> puro encantamento, o sentimento amoroso se instala, “ele perguntou se podia<br />

pegar na minha mão, parece coisa antiga não?”. Em outras palavras, o antigo e o novo, or<strong>de</strong>m<br />

e transgressão andam lado a lado, tudo é permitido, uma vez que a experimentação erótico-


amorosa é concebida como laboratório on<strong>de</strong> mulheres e homens exercitam as possibilida<strong>de</strong>s<br />

do <strong>ser</strong> (HEILBORN, 2004).<br />

Para essas mulheres, os amores vão e vêm, as paixões se suce<strong>de</strong>m, as relações se<br />

<strong>de</strong>sgastam e per<strong>de</strong>m a poesia diante da rotinização, dos <strong>de</strong>scuidos e infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> masculina,<br />

pois mesmo para o hom<strong>em</strong> que “me jogava para cima <strong>de</strong> tanta paixão, ouvindo música <strong>de</strong><br />

Roberto Carlos, que ele n<strong>em</strong> gostava e gritava ‘como é bom estar apaixonado’” (Débora), a<br />

masculinida<strong>de</strong> <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ática é validada por meio da inconstância e sedução <strong>de</strong> outras<br />

mulheres, o que engendra o <strong>de</strong>sbotamento da paixão.<br />

Com a maturida<strong>de</strong>, amores e paixões se tornam raros e, mulheres como Indira,<br />

ressent<strong>em</strong>-se quando, aos “cinqüenta anos”, os homens já não lançam um olhar cobiçoso,<br />

“que admira, manda uma mensag<strong>em</strong> falada <strong>de</strong> que você é <strong>de</strong>sejável”, o que afeta sua auto-<br />

estima e gera <strong>de</strong>pressão, mas não esmorece o <strong>de</strong>sejo, o que a leva a confrontar fantasmagorias<br />

e buscar alternativas para saciar o <strong>de</strong>sejo incontido:<br />

219<br />

O <strong>de</strong>sejo eu resolvo com masturbação, [...] não é que seja bom, mas é a solução que<br />

encontro, [...] eu acho que fico com vergonha <strong>de</strong> estar com <strong>de</strong>sejo e procurar<br />

alguém. Durante muito t<strong>em</strong>po fiquei com medo <strong>de</strong> envelhecer e <strong>ser</strong> uma pessoa<br />

ridícula, [...] se for por atração física, eu iria para trás, um hom<strong>em</strong> mais jov<strong>em</strong>. Só<br />

que s<strong>em</strong>pre penso no probl<strong>em</strong>a do hom<strong>em</strong> mais jov<strong>em</strong>, é como que um pouco a<br />

mulher mais velha, não <strong>ser</strong> uma coisa honesta, <strong>ser</strong> uma coisa mais utilitária. [...]<br />

Tive uma experiência pequena com outro argentino, [...] quarenta e poucos anos, ele<br />

escreveu um e-mail dizendo que se eu pagasse a passag<strong>em</strong> ele viria, sabe a primeira<br />

coisa? Ah! Eu pagar a passag<strong>em</strong>? Aí conversando com uma amiga minha, ela me diz<br />

assim: ‘Porque você não arrisca? Se você pu<strong>de</strong>r pagar, o que é que t<strong>em</strong>?’ Então, eu<br />

paguei, ele veio e mal estava comigo já foi procurar uma garota <strong>de</strong>z ou quinze anos<br />

mais jov<strong>em</strong> do que ele (Indira).<br />

As meninas assimilam durante o processo <strong>de</strong> educação socializadora as primeiras<br />

noções sobre o que é <strong>ser</strong> mulher, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> comportamentos – formas <strong>de</strong> falar, andar e sentar – à<br />

aprendizag<strong>em</strong> <strong>de</strong> cuidados com o corpo para se fazer<strong>em</strong> f<strong>em</strong>ininas e correspon<strong>de</strong>r<strong>em</strong> aos<br />

padrões estéticos vigentes. Para as moças, a beleza e juventu<strong>de</strong> consist<strong>em</strong> <strong>em</strong> moeda <strong>de</strong> troca<br />

que lhes assegura o ingresso no mercado matrimonial e, ou predicados <strong>de</strong> que se val<strong>em</strong> para<br />

atraír<strong>em</strong> os rapazes, “quando eu era jov<strong>em</strong> e entrava nos lugares, os olhares masculinos se<br />

dirigiam para mim”, afirma Indira.


A beleza e a juventu<strong>de</strong> têm prazo <strong>de</strong> valida<strong>de</strong>, ao completar cinqüenta anos, a mulher é<br />

confrontada com “a mudança hormonal”, que indica a proximida<strong>de</strong> da cessação <strong>de</strong> sua<br />

capacida<strong>de</strong> reprodutora e início do processo <strong>de</strong> envelhecimento, <strong>de</strong>clínio da beleza física, o<br />

que gera, segundo Indira, um “probl<strong>em</strong>a cultural”, pois na socieda<strong>de</strong> brasileira cont<strong>em</strong>porânea<br />

predomina uma cultura baseada na eternização da juventu<strong>de</strong>. Há <strong>de</strong> se ob<strong>ser</strong>var, entretanto,<br />

que as cobranças sociais <strong>em</strong> torno da aparência jov<strong>em</strong> são gendradas, ou seja, “a mulher com<br />

aparência envelhecida t<strong>em</strong> menos ‘capital simbólico’ no mercado afetivo/sexual do que o<br />

hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> s<strong>em</strong>elhantes circunstâncias” (BROWNMILLER apud SARDENBERG, 2002, p.:<br />

64).<br />

Neste sentido, afirma Indira, “incomoda muito”, pois a chamada “meia-ida<strong>de</strong>” não só<br />

exclui qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>seja se casar do mercado matrimonial, como também se torna um impeditivo<br />

para a vivência afetivo-sexual da mulher que optou por permanecer <strong>solteira</strong>, “aos cinqüenta<br />

anos, eu notei que os homens não olham mais” (Indira). A mulher <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> <strong>ser</strong> <strong>de</strong>sejável,<br />

porque não mais se enquadra nos mo<strong>de</strong>los socialmente erigidos para a estética f<strong>em</strong>inina e, por<br />

isso, a perspectiva do envelhecimento a assombra, o medo e vergonha <strong>de</strong> se expor ao ridículo<br />

e à censura social tolh<strong>em</strong> a expressão do <strong>de</strong>sejo.<br />

O avanço da ida<strong>de</strong> 87 não consiste <strong>em</strong> <strong>em</strong>pecilho para o hom<strong>em</strong> conquistar parceiras<br />

mais novas, pois <strong>em</strong> nossa socieda<strong>de</strong>, os valores patriarcais ainda <strong>de</strong>terminam que “as<br />

mulheres não escolh<strong>em</strong>, são escolhidas” (Débora) enquanto permanec<strong>em</strong> atraentes. Daí<br />

porque, para a mulher mais velha que se sente atraída por homens mais jovens, a possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um romance, mesmo efêmero, reafirma a legitimida<strong>de</strong> social atribuída ao hom<strong>em</strong> e negada<br />

à mulher como sujeito do <strong>de</strong>sejo. Assim, Indira, mesmo “consciente” da ausência <strong>de</strong><br />

afetivida<strong>de</strong> no relacionamento, não consegue proteger sua “auto-estima” e “amor próprio” ao<br />

87 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Berquó (2006).<br />

220


constatar que o parceiro mais jov<strong>em</strong> não a enxerga sequer como objeto <strong>de</strong> prazer, pois é<br />

reduzida a corpo que o amante usa e <strong>de</strong>scarta quando per<strong>de</strong> a utilida<strong>de</strong>.<br />

Certamente, há homens mais jovens que se sent<strong>em</strong> atraídos por mulheres maduras e<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, mas as preferências, estilos <strong>de</strong> vida justificam o afastamento f<strong>em</strong>inino.<br />

Conforme pon<strong>de</strong>ra Helena, “ele quer brincar o carnaval, eu quero viajar, eu falo <strong>de</strong> canções <strong>de</strong><br />

Chico e ele v<strong>em</strong> com Psirico e Cia. Ltda.”, ou seja, a ausência <strong>de</strong> sintonia separa o par.<br />

Contudo, as razões e <strong>de</strong>srazões po<strong>de</strong>m também <strong>ser</strong> tramadas pelos referenciais valorativos<br />

que, subterraneamente, continuam a <strong>de</strong>limitar fronteiras para a expressão do <strong>de</strong>sejo e vivência<br />

sexual das mulheres, fazendo com que estas mulheres acion<strong>em</strong> mecanismos protetivos diante<br />

do receio <strong>de</strong> se sentir<strong>em</strong> usadas pelo parceiro.<br />

As mulheres mais velhas, conforme afirma Ana, não conceb<strong>em</strong> o sexo dissociado da<br />

afetivida<strong>de</strong>, “estar com alguém por estar” não faz sentido, recusam-se a fazer “sexo por sexo”,<br />

ou seja, o prazer mútuo e, a diversão <strong>de</strong>scompromissada e casual não lhes basta, n<strong>em</strong><br />

tampouco “intensida<strong>de</strong>” e “quantida<strong>de</strong>”, mas a “qualida<strong>de</strong>”. Entretanto, há <strong>de</strong> se ob<strong>ser</strong>var,<br />

para as mulheres como Ana, que se relacionam com homens da mesma faixa etária ou mais<br />

velhos, uma vida sexual ativa somente adquire “nexo” quando a união do par v<strong>em</strong><br />

acompanhada <strong>de</strong> “ternura”, “carinho”, “aconchego”, amiza<strong>de</strong>, confiança, mutualida<strong>de</strong> e<br />

“sinergia”, o que engendra uma <strong>de</strong><strong>ser</strong>otização do relacionamento. Em outras palavras, o<br />

parceiro se transforma <strong>em</strong> “um irmão mais íntimo” e a relação se torna “incestuosa”, pois já<br />

não “há o fogo dos 18, n<strong>em</strong> dos 20”, não importam o “<strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho” e performance sexual, a<br />

beleza e a perfeição dos corpos <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> <strong>ser</strong> cruciais, o prazer se instala apenas por “estar<strong>em</strong><br />

juntos” e não se sentir<strong>em</strong> como “um laço solto”.<br />

Não é à toa, portanto, que, para Beatriz, o término recente <strong>de</strong> uma relação duradoura<br />

instale uma sensação <strong>de</strong> luto 88 , assim como acontece no <strong>de</strong>scasamento, pois para a mulher a<br />

88 Ver Porchat (1992); Gomes (1992).<br />

221


longevida<strong>de</strong> do relacionamento alimenta a fantasia do amor, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que a<br />

intimida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>pendência do outro camuflam insatisfações pessoais, o que provoca<br />

telefon<strong>em</strong>as, reaproximações <strong>em</strong> que o par é tragado pela nostalgia da unida<strong>de</strong> perdida e, tal e<br />

qual casal <strong>de</strong> cegos a tatear <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> (re)conhecimento, a mulher e o hom<strong>em</strong> entregam-se<br />

à voracida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>sejo.<br />

Neste sentido, avalia Beatriz, se para o hom<strong>em</strong> o ato sexual comprova que t<strong>em</strong> um<br />

“pau <strong>de</strong> resposta” e, o <strong>de</strong>sbotamento do sentimento não compromete sua virilida<strong>de</strong>, para a<br />

mulher não basta <strong>de</strong>sfrutar do sexo s<strong>em</strong> a disponibilida<strong>de</strong> e companheirismo do parceiro para<br />

“po<strong>de</strong>r viajar”, “ir ao cin<strong>em</strong>a”, “ficar batendo papo”, isto é, sente falta <strong>de</strong> uma companhia e, a<br />

solidão a <strong>de</strong>ixa vulnerável. Por isso, “agora me <strong>de</strong>u vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> casar”, <strong>em</strong>bora s<strong>em</strong> <strong>de</strong>scartar<br />

os critérios seletivos, “eu prefiro ficar só do que com um hom<strong>em</strong> machão chato me<br />

controlando”, o que se mostra inexeqüível, já que encontrar “um hom<strong>em</strong> com uma cabeça<br />

interessante é difícil, ainda mais na minha ida<strong>de</strong>”. Em outras palavras, os homens disponíveis<br />

prefer<strong>em</strong> mulheres mais jovens do que sexagenárias e, como “jamais namoraria um hom<strong>em</strong><br />

casado, porque eu gosto <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> disponível para mim”, há poucas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

encontrar um novo parceiro.<br />

Por essa razão, as mulheres <strong>solteira</strong>s, a partir dos 50 anos (Ana, Indira, Helena, Beatriz<br />

e Débora), que se auto-representam como abertas e liberais, adotam como solução para<br />

aplacar o <strong>de</strong>sejo sexual a masturbação, <strong>em</strong>bora para algumas a libido esteja adormecida, “não<br />

tenho interesse nenhum <strong>de</strong> alguns anos para cá” (Débora), vez por outra surg<strong>em</strong> alguns<br />

“formigamentozinhos”. Já para qu<strong>em</strong> teve uma educação rígida e “direita <strong>de</strong>mais”, como<br />

Jandira, o sexo fora do casamento é concebido como “coisa” que induz ao pecado ou sujeira,<br />

cuja função é “só arranjar doença”, o que não significa ausência <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, mas “eu acho que<br />

já me acostumei” a negá-lo.<br />

222


Com efeito, Nelma escolhe sublimar o <strong>de</strong>sejo, a or<strong>de</strong>m moral ensina a virtu<strong>de</strong> e<br />

passivida<strong>de</strong> sexual e, quando “não cria o hábito <strong>de</strong>s<strong>de</strong> novinha”, <strong>de</strong>sconhece o próprio corpo,<br />

que só po<strong>de</strong> ganhar vida através do <strong>de</strong>sejo masculino, daí porque a masturbação é evitada e<br />

<strong>de</strong>finida como algo s<strong>em</strong> “sentido” e “importância”, pois “é manual, uma coisa mecânica”,<br />

s<strong>em</strong> os laços libertadores do amor.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po, Lúcia se preocupa <strong>em</strong> realçar a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> procriar, “eu sou<br />

normal”, “perfeita para ainda engravidar”, maneira com que novamente valida os estereótipos<br />

que rotulam a mulher <strong>em</strong> processo <strong>de</strong> envelhecimento e s<strong>em</strong> sexo como “mais aflorada” e,<br />

após a menopausa como fruto seco, “mulher murcha no sentido <strong>de</strong> que já é velha” (Débora).<br />

No entanto, o <strong>de</strong>sejo continua à espreita e assalta Mabel, quando está <strong>de</strong>sprevenida, durante o<br />

sono, “sonho e quando acordo, aconteceu”.<br />

Já as mulheres na faixa etária entre 35 e 48 (Eva, Gina, Flora e Clara) anos lidam <strong>de</strong><br />

forma diferente com a sexualida<strong>de</strong>. Clara teve poucos parceiros sexuais, permaneceu virg<strong>em</strong><br />

até os 46 anos “porque queria que eles me encarass<strong>em</strong> como uma mulher também casável e<br />

não uma mulher que po<strong>de</strong> viver qualquer aventura sexual”, ou seja, reafirma o mo<strong>de</strong>lo<br />

tradicional que opõe moças <strong>de</strong> família, cuja virtu<strong>de</strong> e ignorância sexual são pr<strong>em</strong>iadas com o<br />

casamento e, moças <strong>de</strong> programa, levianas com as quais os rapazes se divert<strong>em</strong> s<strong>em</strong> assumir<br />

compromissos.<br />

Clara, <strong>em</strong>bora se arriscando a experimentar um relacionamento casual às escondidas<br />

com um rapaz mais jov<strong>em</strong> e <strong>de</strong> classe social diferente da sua, <strong>de</strong>monstra pouca intimida<strong>de</strong><br />

com seu corpo, a relação sexual é prazerosa, mas fica <strong>em</strong> dúvida quanto ao orgasmo, “eu acho<br />

que gozei”, n<strong>em</strong> consegue se masturbar, acaricia os seios e, faz pouco t<strong>em</strong>po “eu <strong>de</strong>scobri o<br />

chuveirinho” que é usado caso não consiga sublimar o <strong>de</strong>sejo, mas quando “eu tenho a<br />

vonta<strong>de</strong>, vou assistir televisão ou vou comer”.<br />

223


Entre as mais novas, faz três anos que Flora mantém um relacionamento “b<strong>em</strong><br />

consciente” com um colega <strong>de</strong> trabalho que é “comprometido socialmente”, mas como têm<br />

muitas afinida<strong>de</strong>s, admira a inteligência e sente atração física pelo parceiro, alimenta “essa<br />

brinca<strong>de</strong>ira ou essa relação errada”, enquanto não encontra “algum <strong>solteiro</strong>, hetero” para se<br />

relacionar. Com efeito, a condição <strong>de</strong> <strong>solteira</strong> e a solidão afetiva 89 parec<strong>em</strong> <strong>em</strong>purrar as<br />

mulheres com mais <strong>de</strong> 30 anos para os braços <strong>de</strong> homens casados com qu<strong>em</strong> se divert<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>scompromissadamente até os 40 anos, s<strong>em</strong> a expectativa <strong>de</strong> que abandon<strong>em</strong> suas esposas,<br />

pois acreditam que a condição <strong>de</strong> amantes é reversível, ainda guardam a expectativa <strong>de</strong> que<br />

“apareça um <strong>solteiro</strong> hetero” (Flora).<br />

Por outro lado, se a socieda<strong>de</strong> brasileira é conivente com a figura da amante, <strong>em</strong><br />

virtu<strong>de</strong> da sua função social – assegurar a perpetuida<strong>de</strong> do casamento monogâmico – 90 , o<br />

mesmo não acontece com as possibilida<strong>de</strong>s plurais do <strong>de</strong>sejo. A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e prática<br />

heterossexual não precisam <strong>ser</strong> anunciadas pela mulher, já que são heg<strong>em</strong>ônicas <strong>em</strong> nossa<br />

socieda<strong>de</strong>, mas qu<strong>em</strong> escolhe adotar uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> marginalizada t<strong>em</strong> que enfrentar a<br />

discriminação e preconceito porque contraria a normativida<strong>de</strong> (GOMIDE, 2007). Por essa<br />

razão, a mulher po<strong>de</strong> reafirmar para o mundo heterossexual uma expectativa relacional<br />

“hetero” e, <strong>de</strong>ssa forma, dissimular sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sob uma suposta heterossexualida<strong>de</strong>, é<br />

amante <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong> casado – invisível – pois “não posso expor” (Flora), mas que lhe<br />

confere o atributo <strong>de</strong> fêmea <strong>de</strong>sejável e elimina qualquer suspeita sobre sua orientação <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sejo.<br />

Para as mulheres <strong>solteira</strong>s na faixa dos 30 anos (Eva e Gina), o relacionamento com<br />

homens casados ocorre <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminados momentos <strong>de</strong> “fragilida<strong>de</strong>”, quando necessitam “<strong>de</strong><br />

uma atenção diferenciada, ele estava naquele momento no lugar certo” (Eva), ou seja, po<strong>de</strong><br />

<strong>ser</strong> um hom<strong>em</strong> <strong>solteiro</strong> ou casado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que capaz <strong>de</strong> suprir sua lacuna afetiva. Em outros<br />

89 Ver Berquó (2006); Gol<strong>de</strong>nberg (2006).<br />

90 Cf. Ameno (1999).<br />

224


termos, o interlúdio começa e termina s<strong>em</strong> conflitos ou cobranças e, a mulher segue adiante:<br />

“eu não me vi, não me vejo, não é passado, é presente, eu não me vejo uma eterna amante.<br />

Tapou um buraco na minha vida, mas acabou” (Eva), enquanto não surg<strong>em</strong> outros vazios.<br />

Entretanto, esclarec<strong>em</strong>:<br />

225<br />

Uma amiga disse: ‘o probl<strong>em</strong>a não é subir nas pare<strong>de</strong>s, é <strong>de</strong>scer’, porque quando<br />

você está lá <strong>em</strong> cima você fica escolhendo tudo, eu ainda estou. [...] E quando você<br />

<strong>de</strong>sce você pega qualquer coisa porque você está à espera [...] e eu não me vejo<br />

pegando qualquer um, aí algumas amigas diz<strong>em</strong> que por isso eu estou só, [...] mas<br />

não pintou, não é isso, [...] eu não vou beijar uma pessoa s<strong>em</strong> querer, eu não vou<br />

com uma pessoa para a cama s<strong>em</strong> querer, acabou-se o t<strong>em</strong>po, qu<strong>em</strong> quer fazer até<br />

respeito, mas não é para mim. Então, entre ficar sozinha, tomar um banho frio, ligar<br />

para as amigas, chorar e pegar um filme numa locadora e ver, colocar agora a cara<br />

nos estudos como eu estou fazendo, eu vou fazer isso, do que ir para a cama com<br />

uma pessoa que eu não queira, do que estar com uma pessoa que não me respeite,<br />

pelo menos esse é o meu momento. Não sei se daqui a <strong>de</strong>z anos... ( Eva).<br />

Para Eva e Gina, “acabou-se o t<strong>em</strong>po” <strong>em</strong> que a representativida<strong>de</strong> e visibilida<strong>de</strong><br />

social f<strong>em</strong>inina eram alcançadas através <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong>, que lhes proporcionava segurança e<br />

respeitabilida<strong>de</strong>, ou seja, a mulher, resignada e submissa, tinha como senhor do seu <strong>de</strong>stino o<br />

hom<strong>em</strong> – pai, marido. O ingresso das mulheres nas universida<strong>de</strong>s, sua crescente participação<br />

no mercado <strong>de</strong> trabalho e investimento na profissão, b<strong>em</strong> como a conquista <strong>de</strong> maior<br />

liberda<strong>de</strong> sexual têm proporcionado maior autonomia e in<strong>de</strong>pendência f<strong>em</strong>inina no âmbito<br />

<strong>em</strong>ocional e financeiro. Em outras palavras, as mulheres se tornam protagonistas <strong>de</strong> sua<br />

história e faz<strong>em</strong> suas próprias escolhas, na medida <strong>em</strong> que <strong>de</strong>scortinam possibilida<strong>de</strong>s plurais<br />

<strong>de</strong> auto-realização 91 .<br />

Neste sentido, a mulher in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte economicamente se torna mais exigente e<br />

elabora novos padrões para elegibilida<strong>de</strong> do parceiro, que <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> alguém com qu<strong>em</strong> tenha<br />

“afinida<strong>de</strong>” no tocante a visões <strong>de</strong> mundo e projetos <strong>de</strong> vida, “compatibilida<strong>de</strong> intelectual” e<br />

“no gosto”, ou seja, o <strong>de</strong>sejo é seletivo, sua escolha é personalizada e discriminante<br />

(LIPOVETSKY, 2000), pois, segundo Eva, não sai “pegando qualquer um”, para ela “é<br />

melhor estar só do que mal acompanhada”. Contudo, isso não significa que a mulher não seja<br />

91 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Gol<strong>de</strong>nberg e Toscano (1992); Gol<strong>de</strong>nberg (2005a).


advertida e, ou censurada, inclusive por outras mulheres, por exercer o direito <strong>de</strong> escolha, sua<br />

exigência <strong>em</strong> relação ao perfil dos parceiros é consi<strong>de</strong>rada uma insensatez, que provoca muito<br />

mais <strong>de</strong>sencontros do que encontros. Em suma, a mulher mais jov<strong>em</strong> está sozinha porque<br />

quer, uma vez que conhece a fórmula para driblar a incompatibilida<strong>de</strong> – fazer-se mais<br />

con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte e diminuir as expectativas relacionais.<br />

Para Eva, que se recusa a baixar as expectativas, enquanto não surge uma “pessoa<br />

interessante”, o <strong>de</strong>sejo sexual é aplacado através da masturbação, pois “você po<strong>de</strong> se<br />

proporcionar prazer”; recorre s<strong>em</strong> acanhamento “àquela listinha dos ex”, com qu<strong>em</strong> elimina a<br />

disjunção entre <strong>de</strong>sejo e afeto; inventa diferentes formas <strong>de</strong> sublimação – toma um “banho<br />

frio”, conversa com amigas, assiste um filme, <strong>de</strong>vora “um pote <strong>de</strong> chocolate” – ou investe na<br />

expansão profissional. Pelo menos no momento, esta é a sua posição, mas não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> se<br />

questionar se daqui a <strong>de</strong>z anos, quando estiver mais velha e as chances no mercado afetivo<br />

for<strong>em</strong> r<strong>em</strong>otas, não seguirá os conselhos das amigas e tentará <strong>ser</strong> menos exigente na escolha<br />

dos parceiros.<br />

Todavia, para Gina, que faz pouco t<strong>em</strong>po terminou o noivado, “porque nós não<br />

enveredamos pelo mesmo olhar na construção <strong>de</strong> uma família, <strong>de</strong> uma vida juntos”, <strong>de</strong>scobrir<br />

que ela e o parceiro tinham projetos pessoais diferentes causa “tristeza” e <strong>de</strong>sapontamento,<br />

porque não consegue dar concretu<strong>de</strong> ao mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> casal i<strong>de</strong>ado, cujo sentimento amoroso se<br />

perpetua através do casamento tradicional e formação <strong>de</strong> uma família. A<strong>de</strong>mais, não consegue<br />

cumprir o referencial arquetípico ancestral do “<strong>ser</strong> mulher”, validado através da maternida<strong>de</strong>,<br />

“eu estava com o lado materno exacerbado, eu tinha a sensação que mais cedo ou mais tar<strong>de</strong><br />

<strong>ser</strong>ia mãe”. Em resumo, o relógio biológico anuncia a proximida<strong>de</strong> dos 40 anos e alerta Gina<br />

sobre o <strong>de</strong>clínio da capacida<strong>de</strong> procriativa.<br />

Por essa razão, não há t<strong>em</strong>po a per<strong>de</strong>r, Gina enxuga as lágrimas, busca recuperar a<br />

“auto-estima” estilhaçada com o rompimento amoroso, inscreve-se <strong>em</strong> uma “aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong><br />

226


musculação” para se manter <strong>em</strong> forma, “porque a fila anda e eu voltei para a fila das<br />

concorrências, da busca do amor”, ou seja, irá competir com mulheres mais jovens e, “tenho<br />

que mudar”. Para tanto, repensa comportamentos e atitu<strong>de</strong>s, “talvez eu tenha anulado um lado<br />

<strong>de</strong> mim, com relação a pensar e fazer as coisas para o outro”, tenta reapren<strong>de</strong>r a <strong>ser</strong> só e a não<br />

se contentar com “uma relação unilateral”, enquanto não encontra um parceiro que caiba nos<br />

seus sonhos românticos.<br />

O rompimento amoroso <strong>de</strong>ixa marcas e, para superar a <strong>de</strong>cepção, Gina canaliza suas<br />

energias para a vida profissional, “o trabalho foi qu<strong>em</strong> me sustentou”, ampara-se no apoio<br />

familiar e <strong>de</strong> amigos e, como “a cicatriz não fica na pele, ela fica no coração”, muito<br />

lentamente, o corpo <strong>em</strong>ite sinais <strong>de</strong> vida, “logo que eu rompi fiquei totalmente gélida” mas,<br />

agora, “se pintar o <strong>de</strong>sejo eu vou <strong>em</strong> busca do <strong>de</strong>sejo”. Po<strong>de</strong> optar pela masturbação, pois<br />

respon<strong>de</strong> a “uma necessida<strong>de</strong> fisiológica, como o sexo” ou então, acessar uma sala <strong>de</strong> bate-<br />

papos na Internet e conhecer parceiros que não resi<strong>de</strong>m na cida<strong>de</strong> e, portanto, não<br />

compromet<strong>em</strong> a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> moça casadoira, com os quais o encontro presencial é <strong>de</strong>sprovido<br />

<strong>de</strong> vínculos afetivos, “cumpriram a função social”, isto é, o relacionamento é episódico e se<br />

resume a “satisfazer necessida<strong>de</strong>s imediatas como o sexo, só”, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que a faz<br />

se sentir <strong>de</strong>sejável e avaliar a capacida<strong>de</strong> sedutiva para competir no mercado matrimonial.<br />

Entre o antigo e o novo, as mulheres elaboram referenciais i<strong>de</strong>ntitários e mo<strong>de</strong>los<br />

relacionais que busqu<strong>em</strong> conciliar o ethos do amor romântico – a indiferenciação e<br />

completu<strong>de</strong> do par – com o i<strong>de</strong>ário individualista – a conquista <strong>de</strong> projetos e espaços próprios.<br />

Dessa forma, não há sexo s<strong>em</strong> nexo, isto é, s<strong>em</strong> afetivida<strong>de</strong> e, mesmo quando acontece <strong>de</strong><br />

forma episódica, a casualida<strong>de</strong> consiste <strong>em</strong> risco calculado através do qual a mulher exercita<br />

seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> atração e baliza as chances no mercado afetivo. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, as mulheres<br />

buscam se apropriar <strong>de</strong> seus corpos e <strong>de</strong>sejos, a ausência <strong>de</strong> um parceiro fixo não as impe<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> obter<strong>em</strong> prazer sexual através da masturbação, <strong>em</strong>bora para outras tanto a auto-<br />

227


manipulação quanto o sexo ainda sejam concebidos como pecado, algo sujo e proibido,<br />

impelindo as mulheres que tiveram uma educação mais rígida e repressora a tramar<strong>em</strong><br />

artifícios para iludir o <strong>de</strong>sejo, ou seja, o corpo permanece cativo à dupla moral que ainda<br />

<strong>de</strong>fine vivências sexuais diferenciadas para mulheres e homens <strong>em</strong> nossa socieda<strong>de</strong>.<br />

Com efeito, as narrativas dos homens sobre suas vivências sexuais realçam a diferença<br />

<strong>de</strong> gênero que rege os caminhos da sedução, mas também expressam mudanças no tocante à<br />

afinida<strong>de</strong> eletiva da (o) parceira (o) e ao exercício da sexualida<strong>de</strong>. Enquanto Hel<strong>de</strong>r pre<strong>ser</strong>va a<br />

varieda<strong>de</strong> e inconstância nos relacionamentos, Flávio exerce a infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> s<strong>em</strong> culpa ou<br />

sobressaltos e, sob o peso do proclamado instinto predatório masculino, valida a tradicional<br />

dissociação entre sexo e afeto. Gustavo articula o entrelace entre <strong>de</strong>sejo e afeto, mas Júlio<br />

prefere exercitar a sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma lúdica com amigas e vivenciar o amor à distância,<br />

b<strong>em</strong> como Edson, que aventura o <strong>de</strong>sconhecido s<strong>em</strong> qualquer compromisso, além do prazer<br />

momentâneo e fugaz.<br />

Entre os homens nascidos na década <strong>de</strong> 1950, a assimetria sexual atribuída aos papéis<br />

afetivos permanece presente: O sentimento amoroso, para Abílio, só é vivível quando<br />

transformado <strong>em</strong> “caso <strong>de</strong> amor interessante” que, apesar <strong>de</strong> durar “quase 18 anos”, não se<br />

torna um <strong>em</strong>pecilho para o <strong>em</strong>penho e <strong>de</strong>dicação exclusiva à vida profissional, na medida <strong>em</strong><br />

que o relacionamento é mantido sob controle e distante da convivência cotidiana, “ela morava<br />

fora da minha cida<strong>de</strong>”, ou seja, “era um amor <strong>de</strong> verão” conveniente, uma vez que mantinha o<br />

par <strong>em</strong> uma dimensão i<strong>de</strong>alizada, s<strong>em</strong> as exigências da entrega amorosa incondicional.<br />

Os movimentos <strong>de</strong> aproximação com a revolução contracultural se concentram nos<br />

projetos e ambições profissionais, mas a inacessibilida<strong>de</strong> da mulher amada ensaia uma<br />

transformação no âmbito do <strong>de</strong>sejo, “tenho essa coisa comigo da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, então eu não<br />

queria uma vida sexual intensa” (Abílio), ou seja, não se sente obrigado a colecionar<br />

conquistas, “não me l<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> ter me relacionado com outra pessoa” e, por isso, o <strong>de</strong>sejo<br />

228


sexual é abrandado por meio da masturbação. Contudo, a relação à distância não é imune ao<br />

<strong>de</strong>sgaste, “terminamos faz dois anos” e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, Abílio se sente “mais solto” e <strong>de</strong>sfruta<br />

prazeres “eventuais” e <strong>de</strong>scompromissados com “amigas”, enquanto fantasia o encontro com<br />

uma mulher que reúna as qualida<strong>de</strong>s i<strong>de</strong>ais para cumprir o papel <strong>de</strong> esposa. Para tanto, ele<br />

examina as candidatas atentamente, a companheira i<strong>de</strong>al é <strong>de</strong>senhada sob mol<strong>de</strong>s antigos –<br />

uma mulher atraente, que lhe faça companhia, incapaz <strong>de</strong> enganá-lo e <strong>de</strong>smoralizá-lo – enfim,<br />

uma mulher quase santificada.<br />

Por outro lado, na chamada “geração do <strong>de</strong>sbun<strong>de</strong>”, a revolução não é apenas<br />

contracultural, mas também libidinal e, engendra uma mudança <strong>de</strong> perspectiva no tocante às<br />

manifestações da sexualida<strong>de</strong>, trama a permissivida<strong>de</strong> e liberda<strong>de</strong> sexual. Essa geracão ousa<br />

explicitar outras manifestações do <strong>de</strong>sejo e a homossexualida<strong>de</strong> rompe o estigma do silêncio,<br />

revela-se como estilo <strong>de</strong> vida e, ou forma <strong>de</strong> expressão da sexualida<strong>de</strong>. Neste sentido, a vida<br />

sexual ganha intensida<strong>de</strong>, as experiências são plurais, afirma Bernardo,“nessa época eu ia para<br />

a cama com várias pessoas”, mas nas décadas seguintes, o sexo se torna mais comedido – a<br />

preferência homoerótica adquire outras significações para o hom<strong>em</strong> que atinge a chamada<br />

“meia-ida<strong>de</strong>” e altera a dinâmica da vida sexual:<br />

229<br />

[...] não gosto muito <strong>de</strong> falar da minha vida afetiva, eu acho uma parte da minha vida<br />

s<strong>em</strong> graça, [...] por ex<strong>em</strong>plo, eu estou a um bom t<strong>em</strong>po s<strong>em</strong> namorar com<br />

absolutamente ninguém, [...] eu preferia estar namorando com alguém, mas não fico<br />

infeliz por causa disso, não é uma tragédia. Me masturbo, já tentei procurar<br />

prostitutos, não me sinto b<strong>em</strong>, não tenho nada moralmente contra, [...] é que para<br />

mim o interessante do sexo é o prazer junto com a coisa do afeto, o que torna uma<br />

pessoa mais interessante do que outra é o afeto que você sente por ela, esteticamente<br />

todo mundo é mais ou menos a mesma coisa, [...] então você estar com uma pessoa<br />

que você não conhece absolutamente nada, n<strong>em</strong> amiza<strong>de</strong>, n<strong>em</strong> simpatia, n<strong>em</strong> amor,<br />

é estranho, parece boneca <strong>de</strong> plástico (Bernardo).<br />

O aparente hedonismo que conduz a vida sexual <strong>de</strong> homens homossexuais na década<br />

<strong>de</strong> 1970 está subordinado à beleza e juventu<strong>de</strong>, parâmetros que <strong>de</strong>terminam a atrativida<strong>de</strong> e<br />

<strong>de</strong>sejo, mas as paixões incan<strong>de</strong>scentes se tornam volatilizáveis na medida <strong>em</strong> que o hom<strong>em</strong><br />

não consegue con<strong>ser</strong>var os atributos físicos e eternizar o viço da juventu<strong>de</strong>. No universo


homoerótico, isso significa que, na faixa etária entre 30 e 40 anos 92 , os sinais <strong>de</strong> mudança na<br />

aparência física pressagiam a perda do po<strong>de</strong>r sedutivo. Nesse período, os homens<br />

homossexuais <strong>de</strong>senvolv<strong>em</strong> sentimentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão e isolamento, similares aos que afetam<br />

supostamente mulheres <strong>solteira</strong>s e divorciadas 93 (SIMÕES, 2004).<br />

No entanto, a narrativa da trajetória pessoal po<strong>de</strong> roteirizar outras perspectivas, a vida<br />

adulta e maturida<strong>de</strong> roubam o encantamento da visualida<strong>de</strong> e agregam um novo el<strong>em</strong>ento – a<br />

romanticida<strong>de</strong> – que permanecia alheia à <strong>de</strong>gustação erótica da juventu<strong>de</strong>. Agora, mais se<br />

torna menos, ou seja, busca-se um amor amigo e companheiro, a exploração do afeto mútuo<br />

com um parceiro que <strong>de</strong>sestabilize a realida<strong>de</strong> cotidiana e anule a mesmice, <strong>em</strong>bora s<strong>em</strong> a<br />

expectativa <strong>de</strong> eternização, pois a convivência prolongada trama a <strong>de</strong>si<strong>de</strong>alização do outro,<br />

“t<strong>em</strong> um momento que elas são muito interessantes, <strong>de</strong>pois a gente enche o saco” (Bernardo).<br />

A partir dos 50 anos, o hom<strong>em</strong> homossexual se <strong>de</strong>fronta com a proximida<strong>de</strong> do<br />

envelhecimento, o que gera <strong>de</strong>sassossegos, pois sinaliza para a redução das oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

um envolvimento romântico e, perscruta outras alternativas do <strong>de</strong>sejo: Bernardo cogita<br />

exercitar a sociabilida<strong>de</strong> sexual com garotos <strong>de</strong> programa, <strong>em</strong>bora no mercado do sexo não<br />

haja lugar para afetivida<strong>de</strong> e namoro, a dança entre os corpos é mercantilizada, as ações<br />

adquir<strong>em</strong> um caráter contratual, cujo compromisso entre cliente/michê, selado com poucas<br />

palavras, é <strong>de</strong>terminado pela rápida satisfação do <strong>de</strong>sejo (GARCIA, 2000). Em outros termos,<br />

a ação homoerótica se transforma <strong>em</strong> prestação <strong>de</strong> <strong>ser</strong>viços e a figura do michê é associada a<br />

um boneco inflável, com o qual a satisfação do <strong>de</strong>sejo permanece um prazer solitário. Resta,<br />

92 Simões (2004), ao investigar as singularida<strong>de</strong>s do “envelhecimento gay” ob<strong>ser</strong>va que os estudos <strong>de</strong>senvolvidos<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1970 apresentam uma oscilação na faixa etária <strong>de</strong>marcatória para a meia-ida<strong>de</strong> e a velhice.<br />

No entanto, <strong>em</strong> 1990, os “gays <strong>de</strong>finiam a meia-ida<strong>de</strong> a partir dos 30 anos, e a velhice a partir dos 50”<br />

(SIMÕES, 2004, p. 436).<br />

93 Ao investigar o cotidiano amoroso <strong>de</strong> mulheres e homens das classes médias aracajuanas, pu<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar o<br />

medo da solidão <strong>de</strong> mulheres <strong>solteira</strong>s, cf. nota (comento o sonho da entrevista com um relógio <strong>de</strong> Igreja), mas<br />

também <strong>de</strong> mulheres divorciadas, que assim pon<strong>de</strong>ram: “Com 44 anos fica difícil um amor [...], eu substituí o<br />

prazer <strong>de</strong> toda essa vida amorosa [...] talvez por criar, por trabalhar. [...] O peso da solidão é triste! Você para<br />

não entrar <strong>em</strong> <strong>de</strong>pressão, você t<strong>em</strong> que substituir algumas coisas, certo?” (TAVARES, 2002, p. 190).<br />

230


então, uma segunda alternativa – a masturbação – que guiada pelo imaginário erótico, induz<br />

toques e carícias até a sacieda<strong>de</strong> do gozo.<br />

Os homens na faixa etária <strong>de</strong> 40 a 43 anos (Júlio, Gustavo, Edson e Dario), também<br />

mencionam a afetivida<strong>de</strong>, afinida<strong>de</strong>, confiança e cumplicida<strong>de</strong> entre o par como ingredientes<br />

que acrescentam qualida<strong>de</strong> à vida sexual e, por isso prefer<strong>em</strong> saciar o <strong>de</strong>sejo com namoradas,<br />

<strong>em</strong>bora não <strong>de</strong>ix<strong>em</strong> <strong>de</strong> ressaltar a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se apaixonar<strong>em</strong>. Com efeito, a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ação conferida socialmente ao hom<strong>em</strong> favorece um lado conquistador, <strong>em</strong> que a quantida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> parceiras atesta o controle do jogo afetivo e evi<strong>de</strong>ncia uma virilida<strong>de</strong> inconteste: “tive<br />

relações, [...] gostava da presença, do carinho, sentia falta, teve muita <strong>de</strong> tesão, mas<br />

sentimento, eu não <strong>de</strong>ixava fluir” (Dario). Os homens t<strong>em</strong><strong>em</strong> a paixão, a entrega amorosa que<br />

os arr<strong>em</strong>essa <strong>em</strong> uma dimensão <strong>de</strong>sconhecida, dos sentimentos e <strong>em</strong>oções, fazendo-os se<br />

sentir<strong>em</strong> frágeis e vulneráveis e, por isso, engendram mecanismos <strong>de</strong> auto-proteção, “nunca<br />

permitia o relacionamento, porque sabia que ia me incomodar, ia me machucar” (Dario).<br />

Quando estão s<strong>em</strong> namorada fixa, os homens exercitam, segundo Edson, o “sexo<br />

casual” e <strong>de</strong>scompromissado com mulheres que conhec<strong>em</strong> <strong>em</strong> “barzinhos” ou “festas”,<br />

parcerias <strong>de</strong>scartáveis que classificam como “coisa da noite”, satisfaz<strong>em</strong> momentaneamente<br />

seu <strong>de</strong>sejo e são esquecidas ao raiar do dia. Já Júlio e Dario recorr<strong>em</strong> a salas <strong>de</strong> bate-papo na<br />

Internet, mas a virtualida<strong>de</strong> engendra uma proximida<strong>de</strong> ilusória, <strong>em</strong>bora a distância virtual<br />

não seja <strong>em</strong>pecilho para a comunicação, entrar <strong>em</strong> contato não impe<strong>de</strong> que se permaneça à<br />

parte (BAUMAN, 2004). Em outras palavras, o encontro virtual não oferece segurança, pois<br />

as pessoas recorr<strong>em</strong> a disfarces e não se mostram por inteiro, engendram artifícios para<br />

conquistar o (a) parceiro (a) e, quando frente a frente, “não correspondiam <strong>em</strong> termos físicos”<br />

(Dario). Além disso, ”algumas pessoas estão lá para se ven<strong>de</strong>r” e, portanto, o sexo é<br />

<strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> afetivida<strong>de</strong>, ato mecânico que não envolve “compromisso”. Por outro lado, a<br />

compra não é obrigatória, po<strong>de</strong>-se simplesmente acionar um botão, <strong>de</strong> forma real ou<br />

231


metafórica e, recusar o produto, caso não satisfaça as expectativas (BAUMAN, 2004) e<br />

apostar <strong>em</strong> outras ofertas.<br />

Há <strong>de</strong> se ob<strong>ser</strong>var ainda que, a <strong>de</strong>speito das relações mais igualitárias entre os sexos, a<br />

masculinida<strong>de</strong> ainda é balizada pelo po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> conquista e diferença sedutiva <strong>em</strong> relação à<br />

mulher, isto é, Dario t<strong>em</strong> receio <strong>de</strong> “<strong>ser</strong> rejeitado na paquera”, assim como se sente intimidado<br />

diante da “in<strong>de</strong>pendência dos valores”, ou melhor, da ousadia f<strong>em</strong>inina no tocante às<br />

manobras <strong>de</strong> aproximação, o que não acontece com a “in<strong>de</strong>pendência financeira” que é<br />

admirada.<br />

No imaginário masculino, a dupla moral sexual ainda atua como parâmetro, a mulher<br />

permanece como objeto sexual e, para Dario, aquela que adota um comportamento<br />

“agressivo”, “<strong>de</strong>fine o que quer”, explicita o <strong>de</strong>sejo s<strong>em</strong> pudor, é associada a “libertinag<strong>em</strong><br />

sexual”, isto é, a mulher-sujeito do <strong>de</strong>sejo contraria o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong> virtuosa ao se<br />

apropriar <strong>de</strong> valores atribuídos ao hom<strong>em</strong> – a realização sexual s<strong>em</strong> compromisso <strong>em</strong>ocional<br />

–, o sexo pelo sexo, comportamento para o qual “eu não estou preparado e eu caí fora”.<br />

Ao mo<strong>de</strong>lar a mulher como objeto do <strong>de</strong>sejo, Dario reproduz os padrões estéticos<br />

heg<strong>em</strong>ônicos da atualida<strong>de</strong>, a “beleza física” simbolizada a partir <strong>de</strong> uma mulher “magra” e<br />

“loura”, <strong>em</strong>bora prefira mulheres maduras para manter um relacionamento duradouro, talvez<br />

por acreditar que, ao contrário das jovens mulheres, não é agressiva sexualmente, mas “fina<br />

no trato”, age <strong>de</strong> forma pon<strong>de</strong>rada e “sabe dosar as coisas”, enfim, uma pessoa dotada <strong>de</strong><br />

“discernimento” no tocante ao disciplinamento do <strong>de</strong>sejo, que não ameace os papéis sexuais<br />

essencializados no imaginário masculino. Em suma, o hom<strong>em</strong> ainda <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a prerrogativa da<br />

iniciativa no jogo da sedução.<br />

Neste sentido, esclarece Edson, “eu gosto do f<strong>em</strong>inino exercido <strong>de</strong> forma diferente do<br />

po<strong>de</strong>r masculino”, ou seja, um “po<strong>de</strong>r suave”, conquistado com a “meiguice” e<br />

“sensibilida<strong>de</strong>” da “forma f<strong>em</strong>inina <strong>de</strong> <strong>ser</strong>”. Por isso, tanto Dario como Edson, evitam<br />

232


mulheres com “personalida<strong>de</strong> muito forte”, liberadas e seguras sexualmente que, segundo<br />

Dario, faz<strong>em</strong>-no se sentir frágil e vulnerável, “ela me dominava ao ponto <strong>de</strong> me sentir<br />

inseguro com ela” 94 , isto é, o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong>e que seu <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho sexual não corresponda às<br />

expectativas sexuais da parceira, “eu tinha a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> satisfazê-la, era ela qu<strong>em</strong> dizia se<br />

queria ou não, eu estava s<strong>em</strong>pre disposto”.<br />

Em outros termos, o hom<strong>em</strong> não consegue extrapolar a dicotomia dominação<br />

masculina versus subordinação f<strong>em</strong>inina, na qual ainda espelha sua masculinida<strong>de</strong>. Entre<br />

permanecer dominador e <strong>ser</strong> dominado pela parceira, Dario escolhe romper a relação e se<br />

mira no ex<strong>em</strong>plo da letra musical <strong>de</strong> Cazuza, para retomar a busca por “um amor tranqüilo<br />

com sabor <strong>de</strong> fruta mordida”, com um enredo já encenado e reprisado vezes s<strong>em</strong> conta, o que<br />

o isenta <strong>de</strong> riscos, “eu quero uma relação que me dê paz, que não me ameace, a verda<strong>de</strong> é<br />

essa”.<br />

Quando está s<strong>em</strong> parceira fixa, Edson costuma se masturbar, quando “não t<strong>em</strong><br />

ninguém por perto” disponível, mas “acontece eventualmente”, na fase adulta não possui uma<br />

“libido” tão exacerbada quanto na adolescência, po<strong>de</strong> passar “tranquilamente” <strong>de</strong> uma a três<br />

s<strong>em</strong>anas s<strong>em</strong> sexo, pois não se sente “tão abafado” a ponto <strong>de</strong> <strong>ser</strong> subjugado pelo <strong>de</strong>sejo e<br />

per<strong>de</strong>r o controle. No entanto, verbaliza preocupação com um possível padrão <strong>de</strong><br />

comportamento acerca do período <strong>de</strong> abstinência e, ou freqüência sexual, ”não sei também se<br />

outros homens”, ou seja, reafirma os mo<strong>de</strong>los representacionais que <strong>de</strong>cretam a ativida<strong>de</strong><br />

sexual como prova irrefutável <strong>de</strong> virilida<strong>de</strong>, mensurada a partir <strong>de</strong> “noções <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong> e<br />

eficiência a <strong>ser</strong><strong>em</strong> apresentadas ao outro” (NOLASCO, 1993, p. 70).<br />

Com efeito, mesmo para Gustavo, que afirma menosprezar a rapi<strong>de</strong>z do gozo diante<br />

das “preliminares”, isto é, dos rituais <strong>de</strong> sedução – “a troca <strong>de</strong> carinho, <strong>de</strong> contato, <strong>de</strong> toque” –<br />

e sugere a existência <strong>de</strong> uma dimensão espaço-t<strong>em</strong>poral <strong>em</strong> que a simetria entre os sexos se<br />

94 Lipovestsky (op. cit, p. 66) ob<strong>ser</strong>va que entre os homens “a inversão <strong>de</strong> papéis <strong>de</strong> iniciativa geralmente<br />

<strong>de</strong>sperta neles mais entusiasmo do que rejeição”, <strong>em</strong>bora isso não signifique que o contrário não possa<br />

acontecer, conforme <strong>de</strong>monstrado acima.<br />

233


alonga na cadência dos corpos, a “necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter s<strong>em</strong>pre uma parceira, <strong>de</strong> trocar” traz<br />

construções subjetivas que buscam fundir a masculinida<strong>de</strong> <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ática a novos mo<strong>de</strong>los<br />

arquetípicos, ou seja, a atitu<strong>de</strong> viril se entrelaça com a sensibilida<strong>de</strong>.<br />

Os homens mais jovens, na faixa etária entre 33 e 40 anos (Miguel, Ivan, Lauro,<br />

Hel<strong>de</strong>r, Flávio e Júlio), classificam sua vida sexual como “normal”, isto é, “praticamos sexo<br />

constant<strong>em</strong>ente” com namoradas e, ou amigas com qu<strong>em</strong> “ficam” (Miguel)<br />

<strong>de</strong>scompromissadamente. O namoro, mesmo quando submetido ao <strong>de</strong>sgaste da convivência<br />

cotidiana,“já não vejo que t<strong>em</strong> tanta qualida<strong>de</strong>, pelo menos da minha parte o <strong>de</strong>sejo foi se<br />

per<strong>de</strong>ndo” (Flávio), pre<strong>ser</strong>va um caráter utilitário-pragmático, qual seja, a parceira é reduzida<br />

a corpo <strong>de</strong>sejável no qual o hom<strong>em</strong> extravasa um impulso sexual inerente à natureza<br />

masculina, s<strong>em</strong> que precise se <strong>em</strong>penhar nos jogos da sedução, o sexo é garantido e se torna<br />

uma ação substitutiva da masturbação, a que “raramente” recorr<strong>em</strong>. Em resumo, “nos<br />

acomodamos” (Flávio), mas o fato <strong>de</strong> ter um relacionamento fixo não inibe o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

exercitar o sexo casual com outras mulheres e, tal qual malabarista, busca firmar o equilíbrio<br />

na tênue fronteira que separa o relacionamento com namoradas e amigas:<br />

234<br />

Teve um t<strong>em</strong>po que eu estava com namorada e saia com outras mulheres, enquanto<br />

sabiam que eu tinha namorada, ficava todo mundo tranqüilo, <strong>de</strong>pois que sab<strong>em</strong> que<br />

acabou, v<strong>em</strong> a pressão, todo mundo querendo namorar, se eu já acabei o namoro<br />

justamente por isso, porque já não estava querendo namorar, [...], talvez possa até<br />

começar como um caso, todo mundo dizendo que também só quer curtir, mas<br />

quando passa um t<strong>em</strong>pinho, [...] ou bate para ter um relacionamento sério ou então<br />

não vai, [...] porque não vai ter sentimento, [...] mas geralmente é isso que ocorre,<br />

quer<strong>em</strong> compromisso. [...] Dá vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> dizer, mas se você s<strong>em</strong>pre foi a segunda,<br />

mas por que? Porque realmente eu nunca senti nada (Hel<strong>de</strong>r).<br />

Para os homens mais jovens, como Hel<strong>de</strong>r, o namoro “é uma relação mais<br />

consolidada”, <strong>em</strong> que há interesse e envolvimento afetivo com a parceira, “eu estou a fim<br />

mesmo, estou interessado, estou envolvido”, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> estar juntos trama os laços que se<br />

fortalec<strong>em</strong> pela via do “sentimento” e “compromisso <strong>de</strong> um com o outro”. Entretanto, as<br />

regras do jogo afetivo ainda são <strong>de</strong>finidas pelo hom<strong>em</strong>, a namorada <strong>de</strong>ve reunir <strong>de</strong>terminados<br />

atributos: <strong>ser</strong> bonita, ter um “jeito <strong>de</strong> falar” especial, cujas palavras chegu<strong>em</strong> com mansidão;


con<strong>ser</strong>var uma postura “tranqüila”, transmitir carinho e ternura ao guerreiro cansado <strong>de</strong> tantas<br />

aventuras e <strong>de</strong>safios na lida diária. Em outras palavras, no imaginário masculino, a namorada<br />

é <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> traços sexuais e se aproxima da figura materna, cuja sacralida<strong>de</strong> imanente a<br />

torna imune às tentações e armadilhas do <strong>de</strong>sejo.<br />

Por essa razão, Hel<strong>de</strong>r se mostra compreensivo diante da incompatibilida<strong>de</strong> sexual<br />

com a namorada, para qu<strong>em</strong> o sexo não é prazeroso, “era como se ela estivesse fazendo por<br />

obrigação”, talvez por “vergonha”, mas o fato é que “ela ficava contente” por se sentir<br />

<strong>de</strong>sejável e, qu<strong>em</strong> sabe, a “coisa <strong>ser</strong>ia diferente” quando se casass<strong>em</strong>. Em outros termos, se a<br />

insatisfação sexual 95 da parceira arranha o ego masculino, “ela s<strong>em</strong>pre me julgava como se a<br />

culpa fosse minha”, o hom<strong>em</strong> não ensaia movimentos para imprimir sintonia e mutualida<strong>de</strong><br />

no bailado erótico, n<strong>em</strong> tampouco invalida os planos <strong>de</strong> casamento, pois mantém a<br />

sexualida<strong>de</strong> recreativa re<strong>ser</strong>vada para outras mulheres, com as quais “não existe probl<strong>em</strong>a”,<br />

não precisa lidar com os sentimentos e <strong>em</strong>oções, mas tão somente acionar os dispositivos<br />

sexuais.<br />

De fato, tanto Ivan como Júlio, Hel<strong>de</strong>r e Miguel, mantêm um amplo “círculo <strong>de</strong><br />

amiza<strong>de</strong>s” composto por mulheres que conhec<strong>em</strong> <strong>em</strong> bares, festas, no trabalho e, ou na<br />

internet e se tornam “amigas” (Júlio), com qu<strong>em</strong> obtêm prazer sexual s<strong>em</strong> culpa, porque<br />

“nenhuma foi enganada” (Hel<strong>de</strong>r) e, s<strong>em</strong> qualquer compromisso, pois a relação sexual não<br />

envolve sentimento. Afinal, afirma Miguel, o hom<strong>em</strong> é movido por “instinto” e, “na hora do<br />

<strong>de</strong>sespero”, a fome po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> saciada por “qualquer pessoa”, diferente da mulher que “liga<br />

muito a parte sentimental, então fica complicado”. Portanto, o hom<strong>em</strong> reafirma construções<br />

i<strong>de</strong>ntitárias calcadas na prodigalida<strong>de</strong> da performance e <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho sexual, a masculinida<strong>de</strong><br />

é validada através da quantida<strong>de</strong> e não qualida<strong>de</strong> da relação sexual, o hom<strong>em</strong> se relaciona<br />

95 Conforme a Veja, citada por Diehl (2002), <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1960, as mulheres têm aprendido a culpar o<br />

parceiro pelo que não as satisfaz na relação sexual. Ele, por sua vez, assimila a culpa e recorre a vários<br />

mecanismos compensatórios, tais como a aquisição <strong>de</strong> roupas e carros entre outros. Neste estudo, o hom<strong>em</strong><br />

busca compensação através da rotativida<strong>de</strong> sexual.<br />

235


“com a mulher <strong>em</strong> geral” (GOLDENBERG, 2005a, p. 59), daí porque na relação sexual com<br />

as “amigas” entram e sa<strong>em</strong> <strong>de</strong>scerimoniosamente com seus genitais, únicos agentes <strong>de</strong> carícia<br />

nessa dança a dois (NOLASCO, 1993).<br />

No tocante ao jogo afetivo, a liberda<strong>de</strong> sexual não consiste <strong>em</strong> <strong>em</strong>pecilho para<br />

formação do par entre os homens mais jovens, “a mulher tomar a iniciativa acho normal”<br />

(Miguel), pois a mulher também sente <strong>de</strong>sejo sexual, mas a in<strong>de</strong>pendência financeira da<br />

mulher “assusta” e t<strong>em</strong> gerado insegurança, uma vez que a cultura “machista” ainda <strong>de</strong>fine<br />

como papel masculino no casamento “sustentar a mulher e os filhos”. Dessa forma, os<br />

homens ten<strong>de</strong>m a permanecer <strong>solteiro</strong>s não por opção, mas por culpa das próprias mulheres<br />

que se tornam ainda mais seletivas e, pon<strong>de</strong>ra Miguel, “não estão dando oportunida<strong>de</strong>, estão<br />

per<strong>de</strong>ndo muitas oportunida<strong>de</strong>s com essa seleção”, porque impe<strong>de</strong>m a aproximação<br />

masculina.<br />

Em resumo, até mesmo as mulheres mais jovens, que ainda não foram excluídas do<br />

mercado amoroso, “estão <strong>solteira</strong>s pelo comportamento e vão continuar <strong>solteira</strong>s por muito<br />

t<strong>em</strong>po” (Miguel), caso não diminuam os critérios <strong>de</strong> elegibilida<strong>de</strong> do parceiro, ou seja, a<br />

in<strong>de</strong>pendência financeira da mulher, até agora, v<strong>em</strong> provocando mais <strong>de</strong>sencontros do que<br />

encontros. Resta indagar se a solteirice também é atravessada pelas clivagens <strong>de</strong> gênero e<br />

geração na vida familiar e profissional.<br />

5.3 AÇÕES E REAÇÕES: VIVÊNCIAS DA SOLTEIRICE NA FAMÍLIA E NO<br />

TRABALHO<br />

A solteirice <strong>de</strong> mulheres com ida<strong>de</strong> entre 50 e 67 anos (Helena, Lúcia, Mabel, Nelma,<br />

Indira, Jandira, Débora, Ana e Beatriz) é influenciada pela dinâmica familiar, espaços sociais<br />

por on<strong>de</strong> transitam e faixas etárias <strong>em</strong> que se in<strong>ser</strong><strong>em</strong>, que engendram subjetivida<strong>de</strong>s<br />

distintas: Para umas é t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> mudança e renovação, para outras é t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>,<br />

algumas <strong>de</strong>scobr<strong>em</strong> novas formas <strong>de</strong> aprisionamento e outras tantas se <strong>de</strong>param com os<br />

236


primeiros sinais do envelhecimento, mas há também aquelas para qu<strong>em</strong> a aposentadoria e o<br />

não-trabalho traz<strong>em</strong> implicações na dinâmica familiar e isolamento social. No entanto, todas<br />

elas ensaiam comportamentos e atitu<strong>de</strong>s que buscam acrescentar dimensão <strong>de</strong> sentido à vida<br />

cotidiana.<br />

A mulher mais velha que, como Indira, mora sozinha, convive com a irmã e sobrinhos<br />

s<strong>em</strong> atritos, é in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte financeira e <strong>em</strong>ocionalmente, <strong>de</strong>sfruta <strong>de</strong> uma “vida <strong>de</strong><br />

liberda<strong>de</strong>”, vai para on<strong>de</strong> e quando quer, não <strong>de</strong>ve satisfações a ninguém. Além disso, “eu não<br />

tenho que cuidar das pessoas, t<strong>em</strong> gente que cuida <strong>de</strong> mim”, ou seja, ao contrário das<br />

“<strong>solteiro</strong>nas” do passado, não representa um peso para o grupo familiar, n<strong>em</strong> tampouco é<br />

alçada à condição <strong>de</strong> cuidadora dos velhos da família porque estão todos mortos. No entanto,<br />

o envelhecimento a “assusta muito”, “não aceito a <strong>de</strong>cadência física”, assim como a<br />

proximida<strong>de</strong> da aposentadoria, “pedi prorrogação até os setenta”, situações irreversíveis que<br />

vêm causando “uma fase meio ‘<strong>de</strong>prê’” e, até o momento, não conseguiu elaborar qualquer<br />

mecanismo compensatório que reduza a imag<strong>em</strong> negativa da velhice que a assombra.<br />

No entanto, Ana, que almejava viver <strong>em</strong> “um centro maior”, t<strong>em</strong> que abdicar do sonho<br />

<strong>em</strong> função da “responsabilida<strong>de</strong>” atribuída à mulher que não se casou, retorna à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

orig<strong>em</strong> para cuidar da “tia que estava envelhecendo, dos meus irmãos” e mais adiante do pai<br />

que estava morrendo. Anos mais tar<strong>de</strong>, morando sozinha na residência familiar, é eleita<br />

guardiã das m<strong>em</strong>órias familiares, os irmãos tentam dissuadi-la <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r a casa da família, “a<br />

pressão da família não foi fácil”, mas se recusa a ce<strong>de</strong>r e, <strong>de</strong>sta feita, consegue exercer o<br />

“direito” <strong>de</strong> dirigir sua vida e ter sua própria moradia, “eu vou, <strong>de</strong>cido, porque é o que eu<br />

quero”, ou seja, ignora as ingerências familiares e se torna senhora do seu <strong>de</strong>stino.<br />

Neste sentido, a aposentadoria traz, para Ana, maior disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po para<br />

lutar pela transformação societária, “buscar soluções coletivas” através do engajamento<br />

político-partidário e da ação sindical, que permit<strong>em</strong> à mulher “se fortalecer e se articular com<br />

237


pessoas que têm pensamentos iguais”. Contudo, se a opção política consegue neutralizar a<br />

imag<strong>em</strong> negativa do envelhecimento <strong>de</strong>senhada pelo não-trabalho e possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

isolamento social, não consegue evitar as cobranças sociais <strong>em</strong> torno do não-casamento, “as<br />

brinca<strong>de</strong>irinhas” sobre a condição <strong>de</strong> “vitalina”, n<strong>em</strong> ilações sobre sua vida sexual, motivadas<br />

pela “malícia” e “<strong>de</strong>squalificação do sentimento” presente na socieda<strong>de</strong> atual, <strong>em</strong> que as<br />

amiza<strong>de</strong>s duradouras suger<strong>em</strong> que “fulano está tendo um caso com fulano”. Apesar disso, a<br />

ida<strong>de</strong> oferece compensações, isto é, já não precisa dar satisfação a qu<strong>em</strong> quer que seja, até<br />

mesmo “porque eu tenho segurança do que eu quero e do que eu sou”, diz Ana.<br />

Com efeito, o trabalho exerce centralida<strong>de</strong> na vida das mulheres <strong>solteira</strong>s, proporciona<br />

a in<strong>de</strong>pendência financeira necessária para que possam gerir suas vidas, mas a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ixar<strong>em</strong> a casa da família e a mãe para morar<strong>em</strong> sozinhas provoca conflitos familiares e<br />

sentimentos contraditórios:<br />

238<br />

[...] eu trabalhei isso na terapia, porque eu também tenho o direito <strong>de</strong> viver a minha<br />

vida sozinha, [...] uma mulher <strong>de</strong> 50 anos, que tinha um namorado que eu gostava<br />

muito, uma vida sexual e tudo, ficar na casa <strong>de</strong> minha mãe namorando sentada no<br />

sofá, com a porta do quarto aberta. Então, eu vim para cá, mas eu sofri muito<br />

também, eu chorava, tinha uma culpa horrível, horrível, horrível. [...] Até hoje,<br />

quando eu saio da casa <strong>de</strong>la, que eu vou três, quatro vezes na s<strong>em</strong>ana vê-la. [...]<br />

Minhas irmãs me massacram às vezes [...] quando eu digo a elas – ‘vocês <strong>de</strong>viam<br />

me agra<strong>de</strong>cer que eu morei com mamãe até os 50 e cuido até hoje’. [...] Sabe o que<br />

elas me diz<strong>em</strong>? ‘Você não saiu <strong>de</strong> casa porque você não quis, porque você era<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>la, você adorava chegar <strong>em</strong> casa, encontrar caminha e comidinha<br />

prontas’. Bom, eu reconheço, também não vou negar que tinha certa comodida<strong>de</strong><br />

nisso, mas [...] às vezes eu fico com certa mágoa <strong>de</strong>las, viu? (Beatriz).<br />

A in<strong>de</strong>pendência financeira da mulher <strong>solteira</strong> n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre v<strong>em</strong> acompanhada <strong>de</strong><br />

in<strong>de</strong>pendência <strong>em</strong>ocional, o exercício da sexualida<strong>de</strong> é submetido à vigilância materna e,<br />

apesar <strong>de</strong> ela não <strong>ser</strong> consi<strong>de</strong>rada um fardo pelos familiares, a mulher paga um tributo pelo<br />

não-casamento, ou melhor, pela suposta incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> constituir sua própria família:<br />

Beatriz <strong>de</strong>ve sacrificar sonhos e <strong>de</strong>sejos e, permanecer ao lado da mãe idosa até seus últimos<br />

dias. Tanto a irmã casada quanto a <strong>solteira</strong> 96 que migrou para outro estado se isentam <strong>de</strong>ssa<br />

96 Conforme Beatriz, a irmã <strong>solteira</strong> que mora <strong>em</strong> outro estado t<strong>em</strong> “outros motivos que eu não quero falar” que<br />

justificam o não-casamento. O fato é que “não quer casar <strong>de</strong> jeito nenhum, n<strong>em</strong> com homo n<strong>em</strong> com hetero”.


esponsabilida<strong>de</strong>, mas também <strong>de</strong> pressões ou culpas, têm suas próprias vidas e, ou família<br />

para cuidar, o que lhes confere proprieda<strong>de</strong> para acusar<strong>em</strong> a “<strong>solteiro</strong>na” <strong>de</strong> oportunismo por<br />

continuar morando com a mãe e, mais tar<strong>de</strong>, classificá-la como egoísta por <strong>de</strong>cidir morar<br />

sozinha, além <strong>de</strong> menosprezar<strong>em</strong> os cuidados que <strong>de</strong>dica à mãe idosa.<br />

As irmãs mais velhas aparent<strong>em</strong>ente “prestativas”, enviam “presentes” a Beatriz, e não<br />

são avarentas <strong>em</strong> relação a dinheiro, mas a relação fraterna escon<strong>de</strong> uma hierarquização <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r que se revela sob a forma <strong>de</strong> “tirania” e críticas <strong>em</strong> relação aos cuidados e capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> doação da irmã <strong>solteira</strong> que, aos olhos das outras irmãs se transforma <strong>em</strong> prestadora <strong>de</strong><br />

<strong>ser</strong>viços pelos quais pagaram e, portanto, sent<strong>em</strong>-se autorizadas a cobrar <strong>em</strong> qualida<strong>de</strong> e<br />

quantida<strong>de</strong>. Dessa forma, a conquista <strong>de</strong> um espaço próprio, on<strong>de</strong> a mulher <strong>solteira</strong> t<strong>em</strong> sua<br />

“individualida<strong>de</strong>” respeitada e po<strong>de</strong> receber o namorado e amigos, torna-se insignificante<br />

diante do sentimento <strong>de</strong> culpa pelo <strong>de</strong>ver não cumprido, o que gera “angústia” e “<strong>de</strong>pressão”,<br />

fazendo com que Beatriz se <strong>de</strong>sdobre ainda mais <strong>em</strong> cuidados com a mãe, na expectativa <strong>de</strong><br />

obter reconhecimento e aprovação dos familiares.<br />

Por outro lado, com a aposentadoria, Beatriz per<strong>de</strong> o contato com colegas <strong>de</strong> trabalho<br />

e já não t<strong>em</strong> a “cervejinha” que regava a sociabilida<strong>de</strong> após o expediente; os amigos estão<br />

menos disponíveis, moram <strong>em</strong> outros estados/países e, ou resi<strong>de</strong>m distante <strong>de</strong> sua residência;<br />

estão casados e, com o envelhecimento, poucos sa<strong>em</strong> <strong>de</strong> casa; o término do namoro <strong>de</strong> 16<br />

anos rouba-lhe a companhia mais constante, justamente quando “achava que a gente ia ficar<br />

mais livre para viajar, achava que a gente ia morar junto”. Por isso, é agitada pelo sentimento<br />

<strong>de</strong> solidão afetiva, atenuada pelos cuidados <strong>de</strong>dicados à mãe e, agora, a uma das irmãs que se<br />

encontra com uma doença terminal, além dos sobrinhos netos “que preench<strong>em</strong> <strong>de</strong> certa forma<br />

minha vida” e a faz<strong>em</strong> se sentir “útil”. Em suma, a mulher <strong>solteira</strong>, s<strong>em</strong> um hom<strong>em</strong> ou família<br />

para chamar <strong>de</strong> seus, encena os papéis tradicionais <strong>de</strong> cuidar, <strong>ser</strong>vir, amparar os outros – a<br />

239


mãe, a irmã e sobrinhos, pois “qu<strong>em</strong> não <strong>ser</strong>ve a ninguém, também não <strong>ser</strong>ve para nada”<br />

(Ana).<br />

Todavia, as mudanças societárias não provocam apenas o surgimento <strong>de</strong> mecanismos<br />

compensatórios entre as mulheres <strong>solteira</strong>s, também induz<strong>em</strong> a criação <strong>de</strong> mecanismos <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>fesa, a mulher que está <strong>de</strong>s<strong>em</strong>pregada e ainda longe da aposentadoria se apropria do mo<strong>de</strong>lo<br />

arquetípico tradicional do <strong>ser</strong> mulher para amenizar a dupla pressão social – <strong>ser</strong> <strong>solteira</strong> e<br />

<strong>de</strong>s<strong>em</strong>pregada:<br />

240<br />

Minha mãe disse à vizinha que eu era aposentada, [...] ela t<strong>em</strong> vergonha do fato <strong>de</strong><br />

eu não fazer nada, mas eu tenho uma fobia <strong>de</strong> trabalho, [...] <strong>de</strong>scobri <strong>em</strong> terapia que<br />

era por causa das expectativas e cobranças nada sutis <strong>de</strong> minha família e <strong>de</strong> todos<br />

que me conheciam e viviam <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> mim. Não suportei o peso das cobranças<br />

[...] alheia ao fato <strong>de</strong> que erros e acertos são indissociáveis à condição humana.<br />

Então, preferi não fazer nada, do que me arriscar a <strong>de</strong>sapontamentos dos outros e os<br />

meus próprios. Eu acho que eu me aproveito do fato <strong>de</strong> <strong>ser</strong> mulher e da socieda<strong>de</strong><br />

aceitar que a mulher, vitalina principalmente, seja dona <strong>de</strong> casa, [...] me sinto menos<br />

<strong>de</strong>sconfortável do que me sentiria se eu fosse hom<strong>em</strong>, porque se eu fosse hom<strong>em</strong> eu<br />

<strong>ser</strong>ia um marginal. Um hom<strong>em</strong> [...] com quase 60 anos, iam dizer que era meio<br />

doido, ele t<strong>em</strong> algum probl<strong>em</strong>a mental, não pelo fato <strong>de</strong> não ter casado, mas por não<br />

trabalhar (Débora).<br />

Para as mães <strong>de</strong> mulheres quase sexagenárias, como Débora, o casamento das filhas<br />

com um “bom partido” e a maternida<strong>de</strong> consist<strong>em</strong> na concretização do i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> mulher para as<br />

jovens, as convenções sociais <strong>de</strong>terminam como principais responsabilida<strong>de</strong>s f<strong>em</strong>ininas a<br />

<strong>de</strong>dicação aos afazeres domésticos e cuidados com o marido e filhos. O não-casamento<br />

constitui-se <strong>em</strong> <strong>de</strong>scumprimento dos cânones instituídos, ou seja, as jovens que fracassaram<br />

<strong>em</strong> conquistar um marido contrariam as expectativas sociais e, o trabalho r<strong>em</strong>unerado se<br />

apresenta como uma das alternativas substitutivas para aquelas cujas chances no mercado<br />

matrimonial se tornam r<strong>em</strong>otas 97 . Todavia, a partir da segunda meta<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> 1960,<br />

surg<strong>em</strong> novos padrões <strong>de</strong> comportamento e as mentalida<strong>de</strong>s sociais passam a aceitar novas<br />

formas <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong> e configurações familiares, o ingresso f<strong>em</strong>inino nas universida<strong>de</strong>s é<br />

estimulado e, nas décadas seguintes, a participação da mulher no mercado <strong>de</strong> trabalho se<br />

consolida.<br />

97 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Bassanezi (1996).


Influenciadas pelas mudanças sociais, as mães mais idosas tentam entrelaçar os<br />

mo<strong>de</strong>los tradicionais com referenciais mais recentes: o casamento <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> <strong>ser</strong> consi<strong>de</strong>rado<br />

<strong>de</strong>stino natural da mulher e é transformado <strong>em</strong> <strong>de</strong>stino i<strong>de</strong>al, assim como passam a conceber<br />

outras perspectivas para a vida das filhas <strong>solteira</strong>s, não mais restritas ao espaço doméstico; a<br />

<strong>de</strong>dicação exclusiva ao trabalho permanece como prêmio <strong>de</strong> consolação, mas o sucesso<br />

profissional e a in<strong>de</strong>pendência financeira das filhas passam a <strong>ser</strong> valorizados, principalmente<br />

porque amenizam as cobranças sociais relativas à sua solteirice. Em outras palavras, o<br />

investimento na carreira profissional <strong>ser</strong>ve <strong>de</strong> justificativa aceitável para o não-casamento das<br />

filhas, enquanto o não-trabalho e o não-casamento causam constrangimento à figura materna.<br />

Para algumas mulheres como Débora, a revolução contracultural e libidinal, na década<br />

<strong>de</strong> 1970, <strong>de</strong>scortina um amplo campo <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s, a or<strong>de</strong>m é subverter os valores<br />

tradicionais: exercita a sexualida<strong>de</strong> s<strong>em</strong> limites e culpas; execra o amor institucionalizado e se<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>em</strong>beber por paixões féericas, “é como se eu achasse que nada é realmente <strong>de</strong>finitivo” e,<br />

se a vida é breve, não há t<strong>em</strong>po a per<strong>de</strong>r. A irreverência e prazer <strong>em</strong> <strong>de</strong>safiar o instituído são<br />

também direcionados para a dimensão do trabalho, a mesmice a aprisiona e, por isso, não se<br />

submete a regras e horários, n<strong>em</strong> tampouco aceita “um cargo qualquer” ou uma r<strong>em</strong>uneração<br />

incompatível com sua “escolarida<strong>de</strong>”.<br />

A beleza, criativida<strong>de</strong> e inteligência exaltadas por familiares e pessoas próximas<br />

espelham uma imag<strong>em</strong> i<strong>de</strong>alizada, Débora <strong>de</strong>seja se fazer perfeita para si e para os outros e,<br />

na vida adulta, diante da falibilida<strong>de</strong>, perscruta encruzilhadas que a <strong>de</strong>svi<strong>em</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sacertos e<br />

alivi<strong>em</strong> as pressões sociais, isto é, engendra a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> mediante um rearranjo dos<br />

códigos antigos – permanece <strong>solteira</strong> e retorna ao núcleo familiar, on<strong>de</strong> encena o papel <strong>de</strong><br />

“<strong>solteiro</strong>na” <strong>de</strong>s<strong>em</strong>pregada que <strong>de</strong>vota cuidados aos sobrinhos e ajuda a mãe, mas n<strong>em</strong> tanto,<br />

afazeres como lavar, passar ou cozinhar iguarias não a domesticam. Em suma, o conforto<br />

241


alcançado é relativo, reage às cobranças quando explicitadas, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que cisma<br />

exigências pessoais e sociais que não se calam.<br />

A<strong>de</strong>mais, os padrões <strong>de</strong> comportamento <strong>de</strong>terminados socialmente para as <strong>solteira</strong>s<br />

não abrandam com a ida<strong>de</strong>, ao contrário, a mulher sexagenária ou próxima <strong>de</strong>ssa faixa etária<br />

precisa saber se “vestir como senhora” (Débora), com discrição e recato, “<strong>de</strong>sejar como <strong>de</strong>ve<br />

<strong>de</strong>sejar aquela faixa etária”, <strong>de</strong> forma comedida e silenciosa. Mas também, evitar conversas<br />

com homens acompanhados, pois “as mulheres fecham a cara” (Beatriz). Em outras palavras,<br />

as mulheres que não segu<strong>em</strong> regiamente o mo<strong>de</strong>lo instituído são consi<strong>de</strong>radas por esposas e,<br />

ou namoradas como ameaça <strong>em</strong> potencial, “porra louca que transa com todo mundo, banda<br />

voou” (Beatriz), mulheres <strong>de</strong>sonestas e inescrupulosas que não respeitam a proprieda<strong>de</strong><br />

alheia.<br />

Já entre as mulheres na faixa etária dos 50 anos (Lúcia, Nelma, Helena, Jandira, Mabel<br />

e Débora), Jandira se (re)veste com <strong>de</strong>coro, reprime sonhos e <strong>de</strong>sejos e, para ignorar<br />

murmúrios silentes, retoma diálogos inacabados com os mortos da família e prefere conversar<br />

consigo mesma ou com Deus. Já Lúcia, nega a distinção entre <strong>solteira</strong>s e casadas nos dias<br />

atuais, “não existe mais aquele fator – eu sou casada, eu sou <strong>solteiro</strong>na, fiquei para titia” –, a<br />

mulher assume a condição <strong>de</strong> <strong>solteira</strong> s<strong>em</strong> constrangimento, po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> por opção ou<br />

circunstancial,“se aparecer tudo b<strong>em</strong>, se não aparecer, também para mim, certo”, ou seja, a<br />

mulher busca <strong>de</strong>sconstruir a imag<strong>em</strong> tradicional <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>na associada a <strong>de</strong>sespero e solidão<br />

afetiva. No entanto, isso não significa ausência <strong>de</strong> pressões sociais, pois Lúcia somente<br />

consegue sair da casa dos pais aos 48 anos 98 e para morar com um namorado, com o qual<br />

convive durante “três meses que foram trinta anos”, <strong>de</strong>vido à esquizofrenia do companheiro,<br />

que a mantinha <strong>em</strong> cárcere privado.<br />

98 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Von Atzingen e Costa (1997b)<br />

242


De volta ao convívio familiar, Lúcia se sente na obrigação <strong>de</strong> cuidar dos “pais idosos”<br />

cuja “saú<strong>de</strong> precária” exige maior atenção, os irmãos casados dão “assistência total”, ou<br />

melhor, “visitam”, mas <strong>de</strong>vido a <strong>ser</strong> <strong>solteira</strong> e morar com os pais, “a carga maior v<strong>em</strong> para<br />

mim”. Às vezes se ressente, gostaria <strong>de</strong> ter um “espaço próprio”, on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse “respirar um<br />

pouco”, para <strong>em</strong> seguida encenar uma <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> auto-sacrifício e resignação, “eu<br />

aceito b<strong>em</strong>”. Em suma, as obrigações domésticas e familiares sufocam a mulher <strong>solteira</strong> que,<br />

para conquistar o espaço e “liberda<strong>de</strong>” almejados, trama a conciliação, preten<strong>de</strong> comprar um<br />

imóvel nas proximida<strong>de</strong>s para não se sentir “dividida”.<br />

O fato é que uma mulher <strong>de</strong> 50 anos que nunca casou gera <strong>de</strong>sconfiança entre as<br />

pessoas, que elaboram diferentes suposições para o não-casamento, diz Helena, ora “é mal<br />

amada”, ora “é tão in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte que não conseguiu ficar com alguém” ou então, se viaja com<br />

amigas, “você é homossexual”. Há também pessoas que, movidas por compaixão, indagam<br />

por que não adota uma criança ou apela para a “produção in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”. Apesar disso,<br />

Helena acredita que a socieda<strong>de</strong> é mais tolerante com as mulheres <strong>solteira</strong>s do que com os<br />

homens <strong>solteiro</strong>s e, para ilustrar seu ponto <strong>de</strong> vista argumenta: “eu não conheço nenhum<br />

hom<strong>em</strong> que não tenha casado e não seja heterossexual”. S<strong>em</strong> perceber, a mulher reproduz os<br />

mesmos preconceitos <strong>de</strong> que é vítima, isto é, o comportamento <strong>de</strong>sviante <strong>de</strong> mulheres e<br />

homens que nunca se casaram indica que têm algum probl<strong>em</strong>a ou escon<strong>de</strong>m algo, mas<br />

também reprisa o mo<strong>de</strong>lo tradicional instituído para formação do casal – o hom<strong>em</strong> ainda<br />

escolhe e a mulher, se tiver sorte, é escolhida.<br />

Neste sentido, Helena enten<strong>de</strong> que não casou “porque a fragilida<strong>de</strong> ainda é o mo<strong>de</strong>lo<br />

f<strong>em</strong>inino” e, não se enquadra nesse mo<strong>de</strong>lo, não é afeita a lágrimas, a “personalida<strong>de</strong> forte” e<br />

o “lado racional” camuflam a “sensibilida<strong>de</strong>” e, apesar <strong>de</strong> “flexível”, não abre mão <strong>de</strong> sua<br />

in<strong>de</strong>pendência e convicções, então assusta possíveis preten<strong>de</strong>ntes. No entanto, afirma Helena,<br />

243


“o que eu acho mais difícil é a cobrança <strong>de</strong> não ter filhos” 99 , ou seja, a socieda<strong>de</strong> é mais<br />

tolerante com as mães <strong>solteira</strong>s, os filhos consist<strong>em</strong> <strong>em</strong> lenitivo para a solidão afetiva e uma<br />

suposta garantia <strong>de</strong> cuidados na velhice, além <strong>de</strong> prova incontestável <strong>de</strong> que essas mulheres<br />

foram objeto do <strong>de</strong>sejo masculino. Por isso, pon<strong>de</strong>ra, se “qui<strong>ser</strong> realmente casar, ainda que<br />

seja mal casada”, a mulher po<strong>de</strong> se relacionar com um hom<strong>em</strong> mais jov<strong>em</strong> ou <strong>de</strong> uma classe<br />

social inferior à sua, “baixa o nível” ou “baixa a exigência”, o que não é o seu caso.<br />

Por essa razão, Helena prefere continuar morando com a mãe <strong>de</strong> 83 anos, “não porque<br />

casou com sua mãe”, como já sugeriram, mas “porque é conveniente, porque é bom”, isto é, a<br />

mãe é “lúcida”, “íntegra” e “autônoma”, não a reprime, n<strong>em</strong> interfere <strong>em</strong> sua vida, “meus<br />

limites são claros, muito tranqüilos”. A permanência na casa da mãe po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> oportuna porque<br />

faz<strong>em</strong> companhia uma à outra, mas a proximida<strong>de</strong> também possibilita à filha dar maior<br />

assistência à mãe idosa, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que proporciona redução <strong>de</strong> <strong>de</strong>spesas e,<br />

conseqüent<strong>em</strong>ente, maior disponibilida<strong>de</strong> financeira para a filha planejar viagens, seu<br />

passat<strong>em</strong>po favorito. Neste caso, a conveniência é mútua.<br />

As mulheres mais novas, na faixa etária entre 35 e 48 anos (Eva, Gina, Flora e Clara),<br />

não estão a salvo <strong>de</strong> cobranças <strong>em</strong> torno do não-casamento, quer explicitadas pelas pessoas do<br />

seu círculo <strong>de</strong> convivência, quer internalizadas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o processo <strong>de</strong> socialização, as cobranças<br />

estão presentes <strong>em</strong> sua vida cotidiana, assim como outras formas <strong>de</strong> preconceito e<br />

discriminação com as quais se <strong>de</strong>param na vida familiar, afetiva e profissional. Contudo,<br />

<strong>de</strong>safiam as exigências sociais e tentam esboçar um novo retrato da solteirice f<strong>em</strong>inina.<br />

A ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 48 anos, afirma Clara, exclui a mulher do mercado matrimonial, “querer<br />

casar talvez eu queira, mas eu sei que já passou meu t<strong>em</strong>po”, mas este não é o único fator a<br />

con<strong>de</strong>nar a mulher à solidão afetiva: os homens se sent<strong>em</strong> inseguros “porque a maioria não<br />

t<strong>em</strong> a estabilida<strong>de</strong> financeira que a gente t<strong>em</strong>”, além <strong>de</strong> achar<strong>em</strong> que a mulher madura e<br />

99 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Gol<strong>de</strong>nberg e Toscano (1992); Amorim (1992).<br />

244


<strong>solteira</strong> “po<strong>de</strong> topar tudo”, ou seja, não é necessário um compromisso, quer<strong>em</strong> apenas<br />

“aproveitar e pronto”, <strong>de</strong>sfrutar da suposta liberda<strong>de</strong> sexual da <strong>solteira</strong>. Por isso, quando os<br />

homens <strong>de</strong>scobr<strong>em</strong> que essa mulher é virg<strong>em</strong>, têm “a maior <strong>de</strong>cepção”, sent<strong>em</strong>-se enganados<br />

e <strong>de</strong>saparec<strong>em</strong>, pois só almejam uma “aventura sexual”, ou seja, “isso é uma forma <strong>de</strong><br />

discriminar” a mulher <strong>solteira</strong>.<br />

Uma “mulher adulta, que não casou e é <strong>solteira</strong>”, ainda segundo Clara, gera<br />

<strong>de</strong>sconfiança entre as mulheres casadas e, ou com namorados, que recorr<strong>em</strong> ora a<br />

“brinca<strong>de</strong>iras” ora a olhares intimidadores para “marcar território”. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, causa<br />

suspeita entre os amigos, “mulher <strong>solteira</strong> que chega na ida<strong>de</strong> que você chegou, t<strong>em</strong> algum<br />

probl<strong>em</strong>a”, isto é, a mulher é comparada a uma mercadoria <strong>de</strong>feituosa que não atrai possíveis<br />

compradores e, por isso, permanece “encalhada” nas prateleiras do mercado afetivo.<br />

A <strong>de</strong>speito da luta f<strong>em</strong>inina para se libertar do aprisionamento no espaço doméstico,<br />

esten<strong>de</strong>r sua ação para a dimensão pública e alcançar realização pessoal e profissional, as<br />

mulheres são acometidas pela “síndrome dos 30 ou 40 anos”, afirma Flora, por medo da<br />

solidão ou para se resguardar<strong>em</strong> das pressões sociais, acabam se casando “só por casar”, para<br />

“dar<strong>em</strong> uma satisfação” à socieda<strong>de</strong> e, “vão levando” o matrimônio, infelizes até que a morte<br />

separe o casal ou surja alguma paixão <strong>de</strong>savisada.<br />

Para Flora, as reuniões familiares <strong>ser</strong>v<strong>em</strong> <strong>de</strong> palco para que parentes façam alusões à<br />

sua inabilida<strong>de</strong> para conquistar um marido, ainda que através <strong>de</strong> gracejos, dos quais procura<br />

se esquivar <strong>de</strong> forma b<strong>em</strong>-humorada. Flora acredita que o hom<strong>em</strong> <strong>solteiro</strong> recebe menos<br />

cobranças, pois <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o processo <strong>de</strong> socialização é estimulado a adquirir “in<strong>de</strong>pendência” e<br />

autonomia, assim como é autorizado socialmente a “sair <strong>de</strong> casa” mais cedo do que a mulher,<br />

<strong>em</strong>bora pair<strong>em</strong> suspeitas sobre o hom<strong>em</strong> <strong>solteiro</strong> “com 40 anos”, isto é, “<strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> veado, <strong>de</strong>ve<br />

<strong>ser</strong> homossexual”. No entanto, ela argumenta que para as mulheres, o “estigma <strong>de</strong> ficar para<br />

titia, <strong>solteiro</strong>na” se manifesta mais claramente fora do círculo familiar e <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>s, as<br />

245


pessoas conceb<strong>em</strong> a mulher <strong>solteira</strong> como “vadia”, supõ<strong>em</strong> que “t<strong>em</strong> uma vida sexual<br />

agitada”, é pouco seletiva na escolha dos parceiros e, caso more só, mal “conhece um cara e<br />

logo leva para casa”.<br />

O “perfil” das mulheres mais novas subsume novos mo<strong>de</strong>los, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e<br />

in<strong>de</strong>pendência <strong>em</strong>ocional e financeira, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que renova os códigos antigos do<br />

<strong>ser</strong> mulher quando naturaliza a solidarieda<strong>de</strong> e abnegação f<strong>em</strong>inina. Para Eva, por ex<strong>em</strong>plo,<br />

“o perfil da questão <strong>de</strong> ajuda” é algo inerente, “eu gosto, o que eu pu<strong>de</strong>r fazer para minimizar<br />

o sofrimento dos meus eu vou fazer”, mas não nega que “há uma cobrança familiar e até<br />

própria <strong>de</strong> dar estas respostas”. Mesmo se sentindo “sobrecarregada” e incompreendida, “a<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sair <strong>de</strong> casa” é adiada, ainda cabe à filha assistir o pai doente e amparar a mãe<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ficou viúva.<br />

As cobranças relativas ao não-casamento não se restring<strong>em</strong> apenas ao universo<br />

familiar – a avó e tias idosas –, para as quais o sucesso <strong>de</strong> uma mulher ainda é mensurado pela<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conquistar um marido. Em certos momentos, os velhos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong><br />

f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong> são acionados e se entrelaçam a novos padrões, “aí v<strong>em</strong> aquela coisa que não<br />

cabe mais” aparent<strong>em</strong>ente, Eva gostaria <strong>de</strong> estar casada, mas não com “qualquer pessoa” ou<br />

pelo menos ter a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exercitar a “maternag<strong>em</strong>”, seja pelos métodos tradicionais<br />

seja por métodos alternativos, produção in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte ou adoção, não “tenho nenhum<br />

probl<strong>em</strong>a”.<br />

Além disso, segundo Eva, a mulher <strong>solteira</strong> e negra t<strong>em</strong> menos chance no mercado<br />

afetivo, “a preferência dos homens negros por mulheres brancas é fato”. Certamente, exist<strong>em</strong><br />

“<strong>em</strong>oções interraciais 100 , se é por opção, ótimo”, mas há homens negros para os quais a<br />

conquista <strong>de</strong> uma “mulher branca” e “loura” representa uma forma <strong>de</strong> “auto-afirmar” sua<br />

100 Sobre relações amorosas interétnicas entre brancos e negros, ver, por ex<strong>em</strong>plo, Moutinho (1999).<br />

246


masculinida<strong>de</strong>, mas também adquirir mobilida<strong>de</strong> social 101 , ou seja, a relação amorosa<br />

interétnica é percebida como caminho adotado pelos homens para “limpar, entre aspas, a<br />

pele” e, <strong>de</strong>ssa forma, obter “status” e “ascensão social”, o que se torna “um agravante para a<br />

mulher negra <strong>solteira</strong>”, a qual é <strong>de</strong>squalificada e preterida. Por isso, muitas mulheres negras,<br />

“bonitas” e “interessantes” permanec<strong>em</strong> sozinhas, alvo <strong>de</strong> cobranças familiares, mas também<br />

<strong>de</strong> suas próprias inseguranças: “Algumas vezes já cheguei <strong>em</strong> situações e disse: ‘Será que<br />

aquele cara me acha interessante?” (Eva).<br />

As cobranças sociais se <strong>de</strong>slocam também para o local <strong>de</strong> trabalho, on<strong>de</strong> Eva é vista<br />

pelos colegas mais velhos com comi<strong>ser</strong>ação, “coitadinha, não t<strong>em</strong> um marido para ajudar” nas<br />

dificulda<strong>de</strong>s e agruras da vida. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, “o estigma <strong>de</strong> <strong>solteira</strong>” justifica a<br />

exploração dos colegas, ela é escalada para trabalhar nos sábados e finais <strong>de</strong> s<strong>em</strong>ana “porque<br />

não t<strong>em</strong> família” própria, ou seja, as vonta<strong>de</strong>s, planos, compromissos ou o próprio direito a<br />

<strong>de</strong>scanso s<strong>em</strong>anal <strong>de</strong>ssas mulheres são menosprezados <strong>em</strong> função das necessida<strong>de</strong>s e<br />

priorida<strong>de</strong>s dos (as) colegas casados (as). Em resumo, a doação da mulher <strong>solteira</strong> é unilateral,<br />

“você t<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po para tudo, para todo outro, menos para você” (Eva), pois ela t<strong>em</strong> uma<br />

suposta disponibilida<strong>de</strong> e, caso se recuse a ajudar os colegas, <strong>ser</strong>á consi<strong>de</strong>rada egoísta.<br />

Entre os homens mais velhos, na faixa etária entre 52 e 56 anos (Camilo, Abílio e<br />

Bernardo), as cobranças sociais <strong>em</strong> torno do não-casamento são “sutis” e acontec<strong>em</strong><br />

obliquamente: Abílio convive com brinca<strong>de</strong>iras e indagações dos amigos sobre a perspectiva<br />

<strong>de</strong> um futuro casamento; Bernardo percebe com indiferença alusões sobre sua<br />

homossexualida<strong>de</strong>, “não que fosse algo significativo” e Camilo, que i<strong>de</strong>ntifica conjecturas<br />

acerca do seu jeito <strong>de</strong> <strong>ser</strong> e escolhas <strong>de</strong> vida. Em uns e outros, as pessoas tentam <strong>de</strong>scobrir que<br />

motivos os tornam diferentes da maioria, isto é, dos homens que segu<strong>em</strong> a normativida<strong>de</strong><br />

social imposta – casar e constituir família.<br />

101 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Carneiro (1995) que <strong>de</strong>sconstrói o mito <strong>de</strong> ascensão social pela via do relacionamento<br />

interracial, posto que a mobilida<strong>de</strong> alcançada é individual e não coletiva.<br />

247


Para se resguardar <strong>de</strong> possíveis cobranças, Abílio cultiva amiza<strong>de</strong> com pessoas <strong>de</strong><br />

diferentes faixas etárias, transita <strong>de</strong> um grupo a outro e, guarda sua seletivida<strong>de</strong> apenas para as<br />

relações afetivas; já Camilo, prefere se concentrar <strong>em</strong> suas i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong>s artísticas, nas quais<br />

(re)cria o universo a partir das imagens policromáticas que sua m<strong>em</strong>ória seletiva registra, ou<br />

seja, no <strong>de</strong>svario do inexato cunha o <strong>de</strong>sdém pela mesmice do instituído. Finalmente, a<br />

orientação homoafetiva já não é vivida às escondidas, existe mais liberda<strong>de</strong> e Bernardo “po<strong>de</strong><br />

escolher um grupo <strong>de</strong> amigos que convive b<strong>em</strong> com isso”. Por outro lado, o trabalho como<br />

autônomos ou <strong>em</strong> um ambiente <strong>de</strong> “certa elite intelectual” elimina o risco <strong>de</strong> que esses<br />

homens sejam discriminados e, ou cobrados sobre o não-casamento.<br />

Entre os homens na faixa etária <strong>de</strong> 40 a 43 anos (Júlio, Gustavo, Dario e Edson), as<br />

cobranças familiares sobre o não-casamento não são verbalizadas, “eles sent<strong>em</strong> vonta<strong>de</strong>, mas<br />

eu nunca permiti que cobrass<strong>em</strong>” (Dario), mas também são neutralizadas pelo fato <strong>de</strong><br />

morar<strong>em</strong> <strong>em</strong> suas próprias casas e <strong>ser</strong><strong>em</strong> in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes economicamente. No entanto,<br />

<strong>de</strong>svendam as cobranças sociais nas “brinca<strong>de</strong>iras” dos colegas <strong>de</strong> trabalho, nas associações<br />

com a homossexualida<strong>de</strong>, o que po<strong>de</strong> tanto gerar indiferença quanto um sentimento <strong>de</strong><br />

“incompetência” no <strong>solteiro</strong>. Por isso, Dario se mantém “re<strong>ser</strong>vado” e evita intimida<strong>de</strong> com os<br />

colegas, <strong>em</strong>bora seja pressionado <strong>em</strong> reuniões sociais a conquistar as mulheres disponíveis,<br />

“vá lá e fique, coma”, o que o faz se sentir agredido, pois se recusa a ficar com alguém apenas<br />

para comprovar sua masculinida<strong>de</strong>.<br />

A solteirice masculina po<strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong>sconfiança, mas também instiga outro<br />

sentimento entre os colegas <strong>de</strong> trabalho casados, diz Edson, a inveja do “lado material”, da<br />

aparente disponibilida<strong>de</strong> financeira e ausência <strong>de</strong> compromissos, pois “não t<strong>em</strong> um pinto para<br />

dar <strong>de</strong> comer”, uma família para sustentar economicamente e po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sfrutar livr<strong>em</strong>ente dos<br />

prazeres que a vida re<strong>ser</strong>va, passeios, noitadas, viagens e namoradas, como se não tivesse<br />

outras responsabilida<strong>de</strong>s. Em suma, a vida <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong> é i<strong>de</strong>alizada pelos homens casados e,<br />

248


talvez por isso, Edson ressalta que nunca surgiram questionamentos acerca <strong>de</strong> sua<br />

sexualida<strong>de</strong>, “não diretamente” n<strong>em</strong> percebeu qualquer “tipo <strong>de</strong> discriminação”, <strong>em</strong>bora não<br />

falt<strong>em</strong> advertências sobre o risco da solidão na velhice para os <strong>solteiro</strong>s recalcitrantes.<br />

Com efeito, as pessoas têm uma percepção equivocada sobre o hom<strong>em</strong> <strong>solteiro</strong>, afirma<br />

Gustavo, “como se eu não fosse uma pessoa tão séria quanto as casadas”, <strong>em</strong>bora isso não as<br />

impeça <strong>de</strong> recorrer<strong>em</strong> à sua disponibilida<strong>de</strong> para trabalhar “à noite” e “viajar”, assim como<br />

para ultrapassar o horário <strong>de</strong> trabalho ou “virar a noite”. Segundo Gustavo, os colegas que<br />

<strong>de</strong>saprovam sua solteirice diz<strong>em</strong>: “você que é <strong>solteiro</strong>, fica aí até mais tar<strong>de</strong>”. Contudo, ele<br />

não consi<strong>de</strong>ra contraditório um funcionário menos confiável, porque não é tão “sério” quanto<br />

os colegas casados, receber tantas atribuições e, ao contrário da mulher, não se sente<br />

sobrecarregado ou explorado, interpreta sua disponibilida<strong>de</strong> como uma “vantag<strong>em</strong>” que<br />

possui <strong>em</strong> relação aos <strong>de</strong>mais colegas <strong>de</strong> trabalho. Enquanto a pretensa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> doação<br />

e sacrifício induz e naturaliza a exploração da trabalhadora <strong>solteira</strong>, o mesmo acontece com o<br />

hom<strong>em</strong> <strong>solteiro</strong>, <strong>em</strong>bora as razões sejam diferentes, na disponibilida<strong>de</strong> “eu encontro até<br />

facilida<strong>de</strong>” (Gustavo) para vencer os <strong>de</strong>safios que o trabalho oferece, isto é, ao se <strong>de</strong>stacar dos<br />

colegas, o hom<strong>em</strong> domina o espaço institucional e, <strong>de</strong>ssa forma, adquire a “ilusão <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e<br />

força” (NOLASCO, 1993, p. 66).<br />

Já para os homens na faixa etária <strong>de</strong> 33 a 38 anos (Miguel, Ivan, Nelson, Hel<strong>de</strong>r e<br />

Flávio), a estabilida<strong>de</strong> financeira e profissional, aliada à proximida<strong>de</strong> dos 40 anos, sinalizam<br />

para o “caminho natural” – o casamento e constituição <strong>de</strong> uma família, pois “se você não casa<br />

até <strong>de</strong>terminada ida<strong>de</strong>, você é isso ou aquilo, fica todo mundo cobrando” (Hel<strong>de</strong>r). Tanto para<br />

o hom<strong>em</strong> quanto para a mulher, se estão namorando, as pessoas perguntam quando preten<strong>de</strong>m<br />

se casar, <strong>de</strong>pois do casamento o casal é questionado sobre a vinda do primeiro filho e<br />

sucessivamente, ou seja, parece não haver outra alternativa, senão cumprir a normativida<strong>de</strong><br />

vigente.<br />

249


Todavia, se o hom<strong>em</strong> escolhe a futura companheira s<strong>em</strong> pressa, aquele que t<strong>em</strong> um<br />

relacionamento fixo, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da faixa etária, afirma Flávio, “não po<strong>de</strong> prorrogar essa<br />

situação por muito t<strong>em</strong>po”, caso contrário “<strong>em</strong>pata” a mulher <strong>de</strong> encontrar outra pessoa que<br />

satisfaça o seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> casar. Então, “chega um momento <strong>em</strong> que você casa ou separa”<br />

(Miguel), para os mais novos o impasse é facilmente resolvido, romp<strong>em</strong> o namoro e prefer<strong>em</strong><br />

perseguir outros projetos pessoais e profissionais.<br />

Para os homens mais novos, não há cobranças no trabalho, porque se socializam com<br />

colegas também <strong>solteiro</strong>s, <strong>em</strong>bora para alguns os preceitos religiosos alert<strong>em</strong> sobre a<br />

imprescindibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formar uma família e, por isso, tentam apressar o passo, enquanto<br />

outros escolh<strong>em</strong> <strong>ser</strong> levados pelo imprevisível, isto é, “eu gosto <strong>de</strong> viver o momento”<br />

(Miguel). Casar ou não casar é uma questão que prefer<strong>em</strong> respon<strong>de</strong>r mais adiante, por<br />

enquanto estão mais propensos a investir na expansão profissional e estabilida<strong>de</strong> financeira,<br />

na aquisição <strong>de</strong> um patrimônio ou na ampliação do capital cultural, <strong>em</strong>bora para qu<strong>em</strong> ainda<br />

resi<strong>de</strong> na casa dos pais, o principal mesmo é “curtir” a vida s<strong>em</strong> responsabilida<strong>de</strong>s 102 . Isso não<br />

significa que estejam <strong>de</strong>satentos às cobranças sociais e familiares, mas prefer<strong>em</strong> ignorá-las<br />

“no momento” (Miguel).<br />

No curso <strong>de</strong> suas vidas, as mulheres e homens investigados não possu<strong>em</strong> uma<br />

trajetória única, apesar <strong>de</strong> apresentar<strong>em</strong> similarida<strong>de</strong> <strong>em</strong> termos sócio-econômicos, resi<strong>de</strong>m<br />

<strong>em</strong> Estados diferentes, pertenc<strong>em</strong> a gêneros, gerações e, ou grupos étnicos distintos. No<br />

entanto, há <strong>de</strong> se ob<strong>ser</strong>var, a sexualida<strong>de</strong> revolucionária esboçada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> meados da década <strong>de</strong><br />

1960 não conseguiu abolir a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero entre mulheres e homens no tocante à<br />

forma <strong>de</strong> pensar, sentir, <strong>de</strong>sejar e vivenciar a sexualida<strong>de</strong>, ou seja, apesar dos i<strong>de</strong>ais<br />

igualitários, as práticas sexuais revelam os papéis assimétricos encenados no campo afetivo.<br />

102 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Serpa (2003)<br />

250


Por essa razão, a solteirice é vivenciada <strong>de</strong> forma diferente por homens e mulheres:<br />

enquanto os homens escolh<strong>em</strong> as parceiras, as mulheres ainda <strong>de</strong>v<strong>em</strong> exercitar artimanhas<br />

sedutivas para <strong>ser</strong><strong>em</strong> escolhidas, caso não queiram permanecer sozinhas; se os homens<br />

engendram a combinação entre sexo e amiza<strong>de</strong>, as mulheres ainda não tec<strong>em</strong> a disjunção<br />

entre sexo e amor; se as mulheres priorizam a realização pessoal e profissional ou se tomam a<br />

iniciativa no jogo erótico, assustam os parceiros, que sent<strong>em</strong> sua masculinida<strong>de</strong> ameaçada; se<br />

com o avanço da ida<strong>de</strong> diminu<strong>em</strong> as chances da mulher no mercado afetivo, o mesmo não<br />

acontece com os homens, que po<strong>de</strong>m ficar <strong>solteiro</strong>s in<strong>de</strong>finidamente; a mulher prefere estar<br />

sozinha do que com um hom<strong>em</strong> com o qual não tenha afinida<strong>de</strong>s, enquanto o hom<strong>em</strong> mantém<br />

relacionamentos <strong>de</strong>scartáveis com amigas e fixos com namoradas, t<strong>em</strong> mulheres com qu<strong>em</strong><br />

“fica” e uma única com qu<strong>em</strong> assume compromisso.<br />

As cobranças sociais e familiares <strong>em</strong> torno do não-casamento ating<strong>em</strong> mais<br />

intensamente a mulher <strong>solteira</strong>, não importa o quão b<strong>em</strong>-sucedida é na profissão e na vida<br />

pessoal, ou seja, a <strong>solteira</strong> é explorada no trabalho e ainda t<strong>em</strong> como obrigação cuidar e<br />

assistir os doentes e velhos da família. Para os homens, as cobranças se tornam mais tangíveis<br />

no ambiente <strong>de</strong> trabalho, sob a forma <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>iras ou insinuações sobre sua sexualida<strong>de</strong>,<br />

que eles prefer<strong>em</strong> <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar, assim como interpretam como vantagens que os distingu<strong>em</strong><br />

dos colegas casados, o fato <strong>de</strong> <strong>ser</strong><strong>em</strong> escolhidos para viajar, realizar trabalhos urgentes ou<br />

além do horário contratual, isto é, ignoram a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma exploração disfarçada. Em<br />

suma, as pressões sociais sobre a mulher <strong>solteira</strong> são apontadas, enquanto as cobranças sobre<br />

o hom<strong>em</strong> são feitas <strong>de</strong> forma sutil, dissimulada.<br />

Entretanto, este não é o único diferencial, a solteirice condiciona a escolha <strong>de</strong><br />

mulheres e homens com relação a estilos <strong>de</strong> vida e modos <strong>de</strong> ação que, apesar <strong>de</strong> congregar<strong>em</strong><br />

continuida<strong>de</strong>s e, ou rupturas <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminados contextos, procuram seguir hábitos e<br />

orientações que lhes confer<strong>em</strong> reconhecimento social. Em outras palavras, os estilos e<br />

251


projetos <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> mulheres e homens são <strong>de</strong>terminados pelo gênero e entrelaçados à classe<br />

social, geração e grupo étnico ao qual pertenc<strong>em</strong>.<br />

5.4 A ESTILIZAÇÃO E PROJETOS DE VIDA<br />

Na intrincada teia <strong>de</strong> relações que rege a socieda<strong>de</strong> conflitual cont<strong>em</strong>porânea,<br />

mulheres e homens são confrontados com uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolhas cuja complexida<strong>de</strong><br />

os encaminha para a adoção <strong>de</strong> um estilo <strong>de</strong> vida, na tentativa <strong>de</strong> obter segurança ontológica.<br />

Abraçar um estilo <strong>de</strong> vida significa incorporar uma série <strong>de</strong> práticas, não só porque aten<strong>de</strong>m<br />

necessida<strong>de</strong>s utilitárias, mas porque oferec<strong>em</strong> concretu<strong>de</strong> a uma narrativa particular <strong>de</strong> auto-<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Neste sentido, os estilos <strong>de</strong> vida consist<strong>em</strong> <strong>em</strong> práticas rotinizadas que se<br />

materializam através <strong>de</strong> hábitos alimentares, formas <strong>de</strong> vestir e falar, lugares preferidos para<br />

socialização com as pessoas, mas essas rotinas não se restring<strong>em</strong> apenas a modos <strong>de</strong> agir,<br />

enunciam também qu<strong>em</strong> somos e nossa própria construção i<strong>de</strong>ntitária (GIDDENS, 2002).<br />

As mulheres e homens que compõ<strong>em</strong> o universo <strong>de</strong>ste estudo segu<strong>em</strong> padrões gerais<br />

<strong>de</strong> estilo <strong>de</strong> vida e, ou criam estilos <strong>de</strong> vida alternativos, <strong>de</strong>senvolv<strong>em</strong> ativida<strong>de</strong>s, eleg<strong>em</strong><br />

espaços geográficos para residir, visitar e, ou freqüentar; cultivam um capital cultural que<br />

estabelece exatas distinções intraclasses e revela o auto-retrato que elaboram enquanto<br />

m<strong>em</strong>bros das classes médias, mas po<strong>de</strong>-se i<strong>de</strong>ntificar diversida<strong>de</strong> nas ações, escolhas e<br />

projetos <strong>de</strong> vida, que são recortadas pelo gênero e geração a que pertenc<strong>em</strong> essas mulheres e<br />

homens.<br />

As mulheres investigadas costumam ler revistas s<strong>em</strong>anais, jornais, romances e livros<br />

técnicos; assist<strong>em</strong> televisão, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> novelas a documentários, reportagens, <strong>ser</strong>iados e filmes,<br />

assim como ouv<strong>em</strong> músicas <strong>de</strong> diferentes estilos, clássicas, populares, românticas e, ou com<br />

el<strong>em</strong>entos políticos. Certamente, essas formas <strong>de</strong> entretenimento têm um componente<br />

i<strong>de</strong>ológico e atuam como mo<strong>de</strong>lo acerca <strong>de</strong> como pensar, sentir, agir e se comportar <strong>de</strong> acordo<br />

252


com a sua faixa etária/geração, diante das situações complexas enfrentadas na vida cotidiana,<br />

b<strong>em</strong> como exerc<strong>em</strong> a função <strong>de</strong> preencher momentos vazios. No entanto, essas mulheres<br />

elaboram interpretações próprias acerca do conteúdo/mensagens enunciadas, ou seja, tanto<br />

po<strong>de</strong>m concordar, quanto discordar, repelir, reelaborar e, ou legitimar o padrão das<br />

mercadorias oferecidas.<br />

As mulheres nascidas nas décadas <strong>de</strong> 1940 e 1950 (Ana, Beatriz, Débora, Indira,<br />

Helena, Jandira e Mabel) costumam ficar <strong>em</strong> casa nas horas vagas, cultivam o hábito <strong>de</strong> ler<br />

jornais, que as mantém informadas sobre a “política, o que está se passando no País”<br />

(Beatriz), enquanto os supl<strong>em</strong>entos dominicais traz<strong>em</strong> “boas reportagens, entrevistas com<br />

escritores” (Indira), matérias sobre literatura, críticas a livros recém-lançados e suger<strong>em</strong><br />

futuras leituras.<br />

As mulheres mais intelectualizadas, como Débora, Beatriz, Ana e Indira, faz<strong>em</strong><br />

referência a autores clássicos como Dostoiewski e Marcel Proust, cuja trilogia é “irretocável”<br />

(Débora), mas também a escritores latino-americanos como Eduardo Galeano e Isabel<br />

Allen<strong>de</strong> (Ana). Os (as) poetas preferidos (as) não são esquecidos, Débora recorda Fernando<br />

Pessoa, Emily Dickson, Mário Quintana e Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, “os mais queridos”.<br />

Cita ainda Machado <strong>de</strong> Assis, Érico Veríssimo, Clarice Lispector, Raduan Nassar e João<br />

Ubaldo Ribeiro, além <strong>de</strong> ressaltar o prazer <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir Antônio Carlos Viana, um contista<br />

não tão conhecido quanto os <strong>de</strong>mais autores. As mulheres mais espiritualistas, como Beatriz,<br />

mencionam livros <strong>de</strong> Osho, Dalai Lama e outros monges budistas, mas também costumam ler<br />

autobiografias <strong>de</strong> “pessoas interessantes”, “que tiveram uma vida rica” como Isadora Duncan<br />

e, Danuza Leão que, surpreen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, “não é fútil”.<br />

Indira l<strong>em</strong>bra também dos livros “água com açúcar”, enfileirados nas prateleiras da<br />

Biblioteca da escola, cujos autores e títulos tenta resgatar, s<strong>em</strong> sucesso, nos escaninhos da<br />

m<strong>em</strong>ória, <strong>em</strong>bora recor<strong>de</strong> dos romances <strong>de</strong> Jorge Amado, interditado do acervo da Biblioteca<br />

253


porque “era pornográfico” e, portanto, inapropriado para moças casadoiras. O fato <strong>de</strong> ler<br />

apenas “o que era permitido trazer para casa” torna algumas mulheres mais con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes,<br />

“leio todo tipo <strong>de</strong> livro, geralmente romances” rosa (Nelma) que são imediatamente<br />

esquecidos após encerrar<strong>em</strong> as páginas, <strong>em</strong>bora a falta <strong>de</strong> estímulo no ambiente familiar faça<br />

com que outras cri<strong>em</strong> resistência à leitura e afirm<strong>em</strong> apenas que não gostam.<br />

Para mulheres como Ana e Débora, entretanto, o fascínio 103 pela leitura as leva a<br />

apurar o gosto, <strong>de</strong>scartam livros <strong>de</strong> auto-ajuda, assim como Paulo Coelho, Harry Potter ou “O<br />

Código da Vinci”, cujo estilo “não me entusiasma” e prefer<strong>em</strong> acompanhar com Azar Nafisi<br />

as aventuras <strong>de</strong> “Lolita <strong>em</strong> Teerã” ou conhecer a vida doméstica afegã através das l<strong>em</strong>branças<br />

<strong>de</strong> Asne Seierstad sobre sua convivência com “O Livreiro <strong>de</strong> Cabul” (Ana), o que <strong>de</strong>monstra<br />

sua familiarida<strong>de</strong> com relação aos lançamentos do mercado editorial, assim como a<br />

curiosida<strong>de</strong> acerca da socieda<strong>de</strong> islâmica fundamentalista e seu contraste com a socieda<strong>de</strong><br />

oci<strong>de</strong>ntal.<br />

Já entre as mulheres nascidas a partir do final da década <strong>de</strong> 1950, i<strong>de</strong>ntificam-se<br />

variações no tocante ao gosto literário: Helena alimenta “o vício da leitura” e mantém vários<br />

livros na cabeceira da cama: romances <strong>de</strong> “todos os tipos”, até “cultura inútil” como<br />

Sabrina 104 e livros técnicos ligados à área profissional; revistas s<strong>em</strong>anais como Veja, “porque<br />

é muito instrutiva” e Época, mas também revistas voltadas para o universo f<strong>em</strong>inino, como<br />

Marie Claire e Cláudia e, para o público infantil, como Mônica e Cebolinha. Para as mais<br />

românticas, como Lúcia, os livros <strong>de</strong>v<strong>em</strong> refletir sobre os <strong>de</strong>sencontros dos relacionamentos<br />

atuais, como faz<strong>em</strong> Allan e Bárbara Pease 105 , que ensaiam algumas respostas <strong>em</strong> “Porque os<br />

homens ment<strong>em</strong> e as mulheres choram”, ou seja, livros <strong>de</strong> auto-ajuda para que a mulher<br />

103 Para Débora, que gosta <strong>de</strong> escrever, a paixão pela leitura v<strong>em</strong> associada ao sofrimento, uma vez que “a cabeça<br />

fica fervilhando e você vai querer escrever, [...] eu vivo muito o que estou escrevendo, [...] sinto meio como se<br />

eu estivesse me esquizofrenizando, porque eu me distancio <strong>de</strong> tudo, [...] é um sofrimento, como se fosse [...] o<br />

que as mulheres <strong>de</strong>screv<strong>em</strong> como um aborto” (Débora).<br />

104 Série <strong>de</strong> romances “rosa”, publicados, segundo a Editora Nova Cultural, para a mulher mo<strong>de</strong>rna.<br />

105 Os livros <strong>de</strong> auto-ajuda escritos pelos autores se encontram entre os mais vendidos, como por ex<strong>em</strong>plo, o<br />

mais conhecido, intitulado “Por que os homens faz<strong>em</strong> sexo e as mulheres faz<strong>em</strong> amor?”, que busca explicar as<br />

diferenças entre homens e mulheres.<br />

254


compreenda o parceiro amoroso e aprenda a conviver com as diferenças “naturais” entre a<br />

mulher e o hom<strong>em</strong>.<br />

Já para Clara, o interesse literário se restringe a “revistas científicas” voltadas para a<br />

área profissional, mas “porque sou obrigada”, ou seja, o caráter obrigatório <strong>em</strong> função do<br />

trabalho rouba o prazer da leitura, somente <strong>de</strong>sfrutado nos gibis <strong>de</strong> Mônica, Chico Bento e,<br />

talvez, o do Ronaldinho Gaúcho, cuja publicação é aguardada com ansieda<strong>de</strong>. Entre as<br />

mulheres que têm se <strong>de</strong>dicado à expansão profissional, como Eva e Flora, a leitura é<br />

direcionada para livros técnicos que oferec<strong>em</strong> aporte teórico ao exercício da profissão, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que auxiliam no processo <strong>de</strong> elaboração e, ou correção <strong>de</strong> trabalhos<br />

acadêmicos, b<strong>em</strong> como oferec<strong>em</strong> <strong>em</strong>basamento para a seleção <strong>em</strong> cursos <strong>de</strong> pós-<strong>graduação</strong>.<br />

Eva menciona Érico Veríssimo e “O Encontro Marcado”, faz t<strong>em</strong>po com Fernando<br />

Sabino, enquanto l<strong>em</strong>bra dos títulos <strong>de</strong> livros técnicos, s<strong>em</strong> dificulda<strong>de</strong>, o que <strong>de</strong>monstra a<br />

priorida<strong>de</strong> conferida ao investimento na carreira profissional, apesar <strong>de</strong> citar a leitura do<br />

Evangelho segundo a Doutrina Espírita e das divagações <strong>de</strong> Divaldo Franco 106 , impulsionadas<br />

pela “necessida<strong>de</strong>” <strong>de</strong> se fortalecer “com relação à espiritualida<strong>de</strong>” diante da vida cotidiana<br />

atribulada. Talvez por isso, Gina, que acabou <strong>de</strong> romper um relacionamento amoroso, busque<br />

como fonte <strong>de</strong> apoio moral a revista Vida Simples e ten<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a exercitar a capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> superação com “A Saga das Mãos”, narrativa autobiográfica do pianista João Carlos<br />

Martins.<br />

Com relação ao cin<strong>em</strong>a, as mulheres na faixa etária <strong>de</strong> 50 a 67 anos (Helena, Ana,<br />

Indira, Débora e Beatriz), com perfil mais intelectualizado e politizado buscam imprimir um<br />

padrão <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, ou seja, rejeitam o mero entretenimento e <strong>de</strong>mandam profundida<strong>de</strong> nos<br />

enredos fílmicos, abordagens centradas na condição humana, neuroses, medos, solidão,<br />

106 Divaldo Franco é médium psicógrafo e orador espírita, fundou <strong>em</strong> 1952 a casa <strong>de</strong> assistência intitulada<br />

Mansão do Caminho que <strong>de</strong>senvolve um trabalho <strong>de</strong> orientação e educação junto a crianças e adolescentes<br />

carentes. Publicou vários livros psicografados e, além <strong>de</strong> reconhecido como um dos mais importantes médiuns<br />

e oradores espíritas da atualida<strong>de</strong>, é consi<strong>de</strong>rado o principal divulgador da doutrina espírita por todo o mundo.<br />

Ver, por ex<strong>em</strong>plo, .<br />

255


preconceito e fragmentação das relações sociais. Suas l<strong>em</strong>branças parec<strong>em</strong> anunciar certo<br />

<strong>de</strong>sencantamento com os roteiros cin<strong>em</strong>atográficos, pois se concentram nos clássicos e, ou<br />

filmes mais antigos, <strong>em</strong>bora façam referências a filmes mais recentes. Rel<strong>em</strong>bram, portanto,<br />

seus diretores e filmes favoritos: Chaplin e seus “filmes eternos”, “Doze homens e uma<br />

sentença” <strong>de</strong> Sidney Lumet, “Morte <strong>em</strong> Veneza” <strong>de</strong> Luchino Visconti; “O Jardim dos Fizzi<br />

Contini” <strong>de</strong> Vitório <strong>de</strong> Sicca; Sacco e Vanzetti <strong>de</strong> Umberto Marino e Z <strong>de</strong> Costa Gravas.<br />

Resgatam ainda outros filmes como “Muito Além do Jardim” e “Ensina-me a Viver” <strong>de</strong> Hal<br />

Ashby; “Um Hom<strong>em</strong> e Uma Mulher” e “Retratos da Vida” <strong>de</strong> Clau<strong>de</strong> Lelouch; “O Último<br />

Tango <strong>em</strong> Paris” <strong>de</strong> Bernardo Bertolucci; “O Bebê <strong>de</strong> Ros<strong>em</strong>ary” <strong>de</strong> Roman Polansky; “Cria<br />

Cuervos” e “Carm<strong>em</strong>” <strong>de</strong> Carlos Saura; “Tomates Ver<strong>de</strong>s Fritos” <strong>de</strong> Jon Avnet ou “Gente<br />

como a Gente” <strong>de</strong> Robert Redford.<br />

Entre uma <strong>de</strong>scrição e outra dos enredos fílmicos mais marcantes, Débora argumenta,<br />

nostalgicamente, que “antigamente tinha Pasolini, tinha Visconti, tinha Fellini e, atualmente<br />

eu não sei dizer”, os gran<strong>de</strong>s diretores já não exist<strong>em</strong> mais e a magia da arte cin<strong>em</strong>atográfica<br />

parece esquecida <strong>em</strong> meio ao fast food <strong>de</strong> coca-colas e pipocas cujo ruminar barulhento inibe<br />

a reflexão. Vez por outra, entretanto, renova a esperança, com Woody Allen, que “é <strong>de</strong> todas<br />

as épocas”, seja ao lançar um olhar “bergniano” 107 sobre os <strong>de</strong>safetos <strong>de</strong> “Hannah e Suas<br />

Irmãs”, seja ao contrastar a vida real vazia <strong>de</strong> sonhos com a realida<strong>de</strong> onírica i<strong>de</strong>alizada <strong>em</strong><br />

“A Rosa Púrpura do Cairo”. Ana percorre “A Lista <strong>de</strong> Schindler” com Steven Spielberg,<br />

reencontra-se na “Insustentável Leveza do Ser” <strong>de</strong> Philip Kaufman, habita t<strong>em</strong>porariamente<br />

“A Casa dos Espíritos” <strong>de</strong> Bille August, para logo mais dissecar a “Beleza Americana” com<br />

Sam Men<strong>de</strong>s e, finalmente, renovar o encantamento pelo “Cin<strong>em</strong>a Paradiso” guiada por<br />

Giuseppe Tornatore.<br />

107 A entrevistada se refere ao diretor sueco Ingmar Bergman, cujos filmes se <strong>de</strong>stacam pela sensibilida<strong>de</strong> e<br />

agu<strong>de</strong>za com que <strong>de</strong>vassa as fragilida<strong>de</strong>s e (im)possibilida<strong>de</strong>s do <strong>ser</strong>, como por ex<strong>em</strong>plo, “Gritos e Sussurros”<br />

(1973); “Cenas <strong>de</strong> um Casamento” (1974); “Sonata <strong>de</strong> Outono” (1978) e “Fanny e Alexan<strong>de</strong>r “ (1982) entre<br />

outros.<br />

256


Para as mulheres mais intelectualizadas, os filmes mais recentes do cin<strong>em</strong>a europeu<br />

mantêm a excelência: por isso, Débora se curva diante da “Rainha Elizabeth” <strong>de</strong> Stephen<br />

Frears e <strong>de</strong>svenda “O Segredo <strong>de</strong> Vera Drake” com Mike Leigh, enquanto o cin<strong>em</strong>a<br />

americano ainda é <strong>de</strong>preciado – “eu gosto mais do cin<strong>em</strong>a europeu ou do latino-americano,<br />

não gosto dos filmes americanos, com todo aquele aparato e violência” (Indira) –, apesar <strong>de</strong><br />

haver exceções, como por ex<strong>em</strong>plo, “Os Infiltrados” <strong>de</strong> Martin Scorsese. Sent<strong>em</strong>-se atraídas<br />

por enredos que entretec<strong>em</strong> histórias <strong>de</strong> vida, filmes históricos e, ou políticos, mas abominam<br />

as comédias e filmes <strong>de</strong> ação cuja distribuição mercantilizada <strong>em</strong> massa lhes confere não só a<br />

condição <strong>de</strong> produtos <strong>de</strong>scartáveis, mas elimina a diferença intraclasses. No entanto, Ana,<br />

Beatriz e Débora, abr<strong>em</strong> concessões para a nova safra <strong>de</strong> filmes nacionais, como por ex<strong>em</strong>plo,<br />

“Olga” <strong>de</strong> Jaime Monjardim e “Lavoura Arcaica” Luís Fernando Carvalho, cujos enredos<br />

cont<strong>em</strong>plam os critérios exigidos por elas para classificar um bom filme.<br />

As mulheres românticas, entretanto, ensaiam um movimento contrário, rejeitam os<br />

filmes <strong>de</strong> terror, mas se divert<strong>em</strong> s<strong>em</strong> conflitos entre um suspense e outro; Nelma consome<br />

sonhos românticos com direito a happy end <strong>em</strong> “Como se fosse a primeira vez” <strong>de</strong> Peter Segal<br />

e Lúcia se transporta para “A Casa do Lago” <strong>de</strong> Alejandro Agresti, nos quais o príncipe faz o<br />

t<strong>em</strong>po retroce<strong>de</strong>r e luta contra a força do <strong>de</strong>stino para manter a mulher amada ao seu lado.<br />

Encerrada a sessão <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a, po<strong>de</strong>m até não l<strong>em</strong>brar o nome do filme, “esqueci agora, é<br />

novo, passou recent<strong>em</strong>ente” (Nelma), o que importa é sonhar durante alguns momentos<br />

fugidios, “porque é o que a mulher quer para ela, sonhar e viver uma situação presente”<br />

(Lúcia), <strong>em</strong>bora haja aquelas que, para não se entregar<strong>em</strong> a fantasias, prefiram não ir ao<br />

cin<strong>em</strong>a.<br />

Entre as mulheres mais jovens, na faixa etária <strong>de</strong> 35 a 40 anos (Eva, Gina e Flora), o<br />

ethos do amor romântico também conduz a escolha dos enredos fílmicos preferidos. Eva<br />

i<strong>de</strong>ntifica-se com “Uma Linda Mulher” <strong>de</strong> Gary Marshall, sonha encontrar “O Jardineiro Fiel”<br />

257


<strong>de</strong> Fernando Meirelles e Gina, <strong>em</strong> experimentar “O Despertar <strong>de</strong> uma Paixão”, sob os acor<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> John Curran. No entanto, a romanticida<strong>de</strong> se entrelaça a outros critérios, elaborados a partir<br />

<strong>de</strong> suas trajetórias <strong>de</strong> vida afetiva e profissional, ou seja, excluindo filmes <strong>de</strong> terror ou<br />

violentos, “eu gosto <strong>de</strong> filme romântico com final feliz, gosto um pouquinho <strong>de</strong> drama, eu<br />

gosto <strong>de</strong> filme científico, documentário” (Eva).<br />

Neste sentido, Flora reconhece a trama <strong>de</strong> suas relações familiares <strong>em</strong> “O Campeão”<br />

<strong>de</strong> Franco Zeffirelli; busca ungüento para suas dores e usa como recurso didático <strong>em</strong> suas<br />

aulas, “O Óleo <strong>de</strong> Lorenzo”, <strong>de</strong> George Miller; Eva revisita o preconceito racial <strong>em</strong> “Crash –<br />

no limite”, <strong>de</strong> Paul Aggies e (im) possibilida<strong>de</strong>s das relações interraciais <strong>em</strong> “Dossiê<br />

Pelicano” <strong>de</strong> Alan Pakula, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se propõe re<strong>de</strong>scobrir a realida<strong>de</strong><br />

documentada <strong>em</strong> “Qu<strong>em</strong> somos nós”, <strong>de</strong> William Arntz, Betsy Chasse e Mark Vicente e,<br />

percorrer os caminhos da espiritualida<strong>de</strong> sob acor<strong>de</strong>s românticos <strong>em</strong> “Ghost” <strong>de</strong> Jerry Zucker.<br />

Em suma, para as mulheres mais velhas, os filmes preferidos contêm um componente<br />

i<strong>de</strong>ológico e político que confronta os valores societários, <strong>em</strong>bora possam também<br />

correspon<strong>de</strong>r à validação dos papéis e atributos sociais conferidos ao f<strong>em</strong>inino, enquanto para<br />

as jovens mulheres os filmes eleitos traduz<strong>em</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> respostas diante da<br />

complexida<strong>de</strong> assumida pelas relações sociais e réplicas a seus questionamentos interiores, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que revalidam o i<strong>de</strong>ário do amor romântico. O fato é que, por uma razão ou<br />

por outra, exceto Mabel e Jandira, as <strong>de</strong>mais mulheres investigadas vão habitualmente ao<br />

cin<strong>em</strong>a. Afinal, este é um lugar on<strong>de</strong> a mulher po<strong>de</strong> ir “tranquilamente sozinha”.<br />

Com relação à televisão, as mulheres na faixa etária <strong>de</strong> 53 a 67 anos (Jandira, Mabel,<br />

Ana, Débora, Beatriz e Indira), assist<strong>em</strong> a jornais para se manter<strong>em</strong> informadas e prefer<strong>em</strong><br />

aqueles transmitidos pelas re<strong>de</strong>s Ban<strong>de</strong>irantes e SBT, <strong>em</strong>bora acompanh<strong>em</strong> a programação da<br />

TV Senado, cuja gra<strong>de</strong> <strong>de</strong> programação t<strong>em</strong> “Qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> medo <strong>de</strong> música clássica”,<br />

apresentado por Artur da Távola, que Ana vê “duas, três vezes”, aos sábados e domingos,<br />

258


principalmente quando está tensa e agitada, pois ajuda a relaxar, além <strong>de</strong> <strong>ser</strong> “muito<br />

educativo”.<br />

No canal Globo News, Débora não per<strong>de</strong> documentários e programas <strong>de</strong> entrevistas<br />

como o ”Ob<strong>ser</strong>vatório Nacional”, conduzido por Lúcia L<strong>em</strong>e, enquanto Indira prefere os<br />

filmes franceses, exibidos no canal Eurochanell; ambas apreciam também programas<br />

veiculados nos canais Netwok e Nathional Geograpic sobre a vida animal e outras<br />

civilizações.<br />

Quanto às novelas, Débora acompanha, ocasionalmente, porque “não gosto muito”,<br />

<strong>em</strong>bora se interesse, <strong>em</strong> especial, pelos últimos capítulos; Indira assiste “à novela das oito” da<br />

Re<strong>de</strong> Globo, enquanto Lúcia rejeita as novelas porque a ficção se confun<strong>de</strong> com “a realida<strong>de</strong><br />

da vida”, permeada por “tanto <strong>de</strong>samor” e “violência” e, “eu já vivi a minha realida<strong>de</strong>, eu não<br />

preciso ver isso”, enquanto Jandira mantém a televisão <strong>de</strong>sligada, objeto inanimado a <strong>de</strong>corar<br />

a sala <strong>de</strong> estar do apartamento.<br />

Na faixa etária <strong>de</strong> 35 a 48 anos (Gina, Eva, Flora e Clara), enquanto Clara acompanha<br />

a gra<strong>de</strong> <strong>de</strong> programação da Re<strong>de</strong> Globo, assiste todos os jornais e novelas, porque “adoro”,<br />

inclusive Malhação 108 e programas humorísticos como “A Gran<strong>de</strong> Família”; mas execra<br />

“Zorra Total” e rejeita a protagonista <strong>de</strong> “A Diarista”, preferindo mudar o canal para a TVE<br />

ou assistir programas como o “Globo Ecologia” e “O Salto para o Futuro”, que guardam<br />

afinida<strong>de</strong> com seus projetos <strong>de</strong> aprimoramento profissional. Flora, entretanto, estabelece<br />

parâmetros para distinguir sua posição <strong>de</strong> classe, “assisto basicamente os canais fechados, na<br />

televisão aberta só jornais, [...] a televisão para mim é a televisão fechada, on<strong>de</strong> eu assisto<br />

Nathional Geografic e a Discovery”, programas jornalísticos, <strong>ser</strong>iados e filmes. A televisão<br />

aberta tece uma aproximação com as classes populares, enquanto a preferência pela televisão<br />

108 Seriado da Re<strong>de</strong> Globo exibido s<strong>em</strong>analmente no final da tar<strong>de</strong> para o público adolescente.<br />

259


fechada sugere um padrão <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, isto é, enuncia o capital cultural que distancia as<br />

classes médias das classes populares.<br />

A música consiste <strong>em</strong> um marcador <strong>de</strong> diferenças intraclasses, mas também<br />

geracional. As mulheres na faixa etária entre 50 e 67 anos, mais intelectualizadas (Helena,<br />

Ana, Indira, Beatriz e Débora), apreciam música clássica, Débora lê partituras e consegue<br />

i<strong>de</strong>ntificar peças dos compositores preferidos quando ouve, como Tchaikovski e Bach, porque<br />

estudou piano clássico; gostam também <strong>de</strong> ópera, jazz e adoram seus “velhinhos do blues”<br />

(Beatriz). Contudo, não esquec<strong>em</strong> <strong>de</strong> mencionar a música popular brasileira, seus cantores<br />

(as) e compositores favoritos, Ana l<strong>em</strong>bra com sauda<strong>de</strong>s Vinicius <strong>de</strong> Moraes e Gonzaguinha,<br />

<strong>de</strong>clara seu amor eterno à bossa nova e a Chico Buarque <strong>de</strong> Hollanda, que consegue como<br />

ninguém <strong>de</strong>svendar “a alma f<strong>em</strong>inina”, <strong>em</strong>bora re<strong>ser</strong>ve uma parcela <strong>de</strong> sua admiração para os<br />

representantes da “Tropicália” 109 – Gilberto Gil e Caetano Veloso – e para as interpretações<br />

viscerais <strong>de</strong> Maria Bethânia e <strong>de</strong> Milton Nascimento.<br />

O apreço pela música ultrapassa gerações e, por isso, as mulheres buscam atualizar seu<br />

repertório musical e <strong>de</strong>scobrir novos (as) intérpretes da música popular brasileira: Ana e<br />

Débora admiram Rosa Passos, consi<strong>de</strong>rada pelos aficionados da bossa nova como a versão<br />

f<strong>em</strong>inina <strong>de</strong> João Gilberto, cujo trabalho é mais reconhecido fora do País; i<strong>de</strong>ntificam-se com<br />

as letras do Barão Vermelho, a irreverência <strong>de</strong> Cazuza, Cássia Eller, Renato Russo e se<br />

ressent<strong>em</strong> com a sua perda precoce, enquanto procuram consolo com esses “meninos<br />

compositores” (Beatriz), instrumentistas e, ou intérpretes mais novos, como por ex<strong>em</strong>plo,<br />

Zeca Baleiro, Lenine, Iamandu Costa, Marisa Monte e Vanessa da Matta. Mencionam ainda<br />

outros estilos musicais, como o chorinho e o samba “<strong>de</strong> fundo <strong>de</strong> quintal” interpretado por<br />

109 A informante se refere ao movimento tropicalista, que <strong>em</strong>ergiu no cenário cultural brasileiro <strong>em</strong> 1967 – 1968,<br />

li<strong>de</strong>rado por músicos baianos, entre os quais Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Capinam e a cantora Gal<br />

Costa. “Tropicália” é o título <strong>de</strong> uma obra do artista plástico Hélio Oiticica, que nomeia uma canção <strong>de</strong><br />

Caetano Veloso, na qual o compositor elabora uma paródia sobre a socieda<strong>de</strong> brasileira daquela época e<br />

explora, <strong>de</strong> forma crítica e contestatória, os valores vigentes, <strong>em</strong> que o retrógrado e a vanguarda, o arcaico e o<br />

mo<strong>de</strong>rno, mau gosto e sofisticação ensaiavam um acumpliciamento entre as classes médias.<br />

260


Beth Carvalho, “mas não é para ouvir toda hora” (Ana). Contudo, Jandira e Mabel, aboliram a<br />

música popular <strong>de</strong> suas vidas e apenas ouv<strong>em</strong> cantos entoados durante a celebração <strong>de</strong><br />

cerimônias religiosas.<br />

As mulheres mais românticas, como Lúcia, gostam das interpretações <strong>de</strong> Chico,<br />

Bethânia e Fagner, da composição <strong>de</strong> Beto Gue<strong>de</strong>s intitulada “Quando eu te vi”, mas eleg<strong>em</strong><br />

Roberto Carlos como rei das baladas românticas que tanto apreciam, não se cansam <strong>de</strong> ouvir<br />

grupos musicais como The Fevers e Renato e seus Blue Caps, cujas letras ingênuas, segundo<br />

Lúcia, faz<strong>em</strong>-na reviver um t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que “não tinha muita malda<strong>de</strong>”, ao contrário da época<br />

atual, <strong>em</strong> que há “muita liberda<strong>de</strong> e libertinag<strong>em</strong>”, ou seja, <strong>em</strong> que o amor é <strong>de</strong>svestido <strong>de</strong><br />

romanticida<strong>de</strong> e transformado <strong>em</strong> mercadoria. Lúcia gosta <strong>de</strong> dançar e, por isso, aprecia<br />

outros estilos musicais, ouve forró e música caribenha, mais diferent<strong>em</strong>ente das mulheres<br />

intelectualizadas, não é <strong>em</strong>balada pelo “Buena Vista Social Club” 110 (Beatriz e Débora) e sim<br />

pelo Capim Cubano.<br />

Já as mulheres na faixa etária entre 35 e 48 anos (Gina, Eva, Flora e Clara)<br />

consi<strong>de</strong>ram-se “ecléticas”, percorr<strong>em</strong> vários estilos musicais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> música pop e rock<br />

nacional e internacional, ao reggae e new age, a forró, samba, música tecno, com muita<br />

pancada e, ou clássica. Eva, na adolescência, tentou <strong>ser</strong> tal e qual a cantora Rosana, “Como<br />

uma <strong>de</strong>usa”, experimentou o romantismo sob os acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Fábio Júnior, enquanto<br />

colecionava po<strong>em</strong>as <strong>de</strong> Vinícius e letras <strong>de</strong> Chico Buarque, para logo após <strong>de</strong>sejar usar óculos<br />

vermelhos como Herbert Viana, lí<strong>de</strong>r do grupo musical Paralamas <strong>de</strong> Sucesso e seguir os<br />

passos da Legião Urbana comandada por Renato Russo.<br />

Por essa razão, na fase adulta, gostam <strong>de</strong> Beto Gue<strong>de</strong>s e Rita Lee, mas também <strong>de</strong><br />

Bethânia, Adriana Calcanhoto e Leila Pinheiro, “ainda” (Flora) ouv<strong>em</strong> os Beatles e, vez por<br />

110 “Buena Vista Social Club” é o título <strong>de</strong> um disco produzido <strong>em</strong> 1996 pelo músico Ry Coo<strong>de</strong>r, no qual se<br />

reún<strong>em</strong> lendas do cenário musical cubano como por ex<strong>em</strong>plo, Compay Segundo, Ibrahim Ferrer e Ruben<br />

Gonzalez. Já o Capim Cubano é um grupo paraibano que realiza uma estilização da música caribenha e t<strong>em</strong><br />

conquistado o público mais jov<strong>em</strong>.<br />

261


outra, os sambas entoados por Zeca Pagodinho, Jorge Aragão e Beth Carvalho. Porém,<br />

enquanto Flora t<strong>em</strong> re<strong>de</strong>scoberto a música <strong>de</strong> Beethoven, Bach, Mozart e Vivaldi, Gina<br />

encontra eco nos versos <strong>de</strong> Ana Carolina sobre o rompimento amoroso e se fortalece para<br />

seguir sozinha; já as afro<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes envolvidas com a questão étnico-racial, como Eva, se<br />

i<strong>de</strong>ntificam com o lirismo <strong>de</strong> Djavan, apreciam o reggae do grupo musical Cida<strong>de</strong> Negra, <strong>em</strong><br />

especial o vocalista Toni Garrido, “meu sonho <strong>de</strong> consumo, <strong>de</strong>via <strong>ser</strong> feito <strong>em</strong> série” (Eva) e,<br />

mais recent<strong>em</strong>ente, estão atentas para o rap <strong>de</strong>senvolvido por Negra Li. Conforme elas<br />

mesmas afirmam, “é mais fácil eu dizer do que não gosto” (Clara), ou seja, ressaltam o<br />

preconceito <strong>em</strong> relação à música <strong>ser</strong>taneja – a dupla Chitãozinho e Xororó e Sula Miranda –,<br />

s<strong>em</strong> esquecer<strong>em</strong> <strong>de</strong> manifestar <strong>de</strong>sprezo pelo pago<strong>de</strong> e pelo axé music.<br />

Por outro lado, as mulheres nascidas entre 1940 e meados <strong>de</strong> 1950 (Ana, Beatriz,<br />

Débora, Indira, Nelma e Helena), gostam <strong>de</strong> sair, mas já não vão a qualquer lugar, “só se for<br />

um lugar melhor do que minha casa ou então quando eu recebo gente, que aí vamos <strong>em</strong>bora<br />

na folia” (Ana). As mais politizadas se ressent<strong>em</strong> do aumento da violência e,<br />

conseqüent<strong>em</strong>ente, da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se proteger<strong>em</strong> <strong>em</strong> ambientes padronizados, frios e<br />

seguros como Shoppings, on<strong>de</strong>, no enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Ana, “você se isola do <strong>ser</strong> humano”, pois<br />

diferent<strong>em</strong>ente das lojas populares e mercados, não há “gente que palpita”, disputa produtos<br />

nos “tabuleiros”, barganha preços e interage com os <strong>de</strong>mais compradores, “eu vi ali na loja<br />

mais barato do que aqui”.<br />

Ana também questiona a sedimentação <strong>de</strong> preconceitos direcionada para as <strong>solteira</strong>s<br />

na sua faixa etária, impelida a sentir “vergonha <strong>de</strong> andar com uma amiga, <strong>de</strong> dar um beijo, <strong>de</strong><br />

sair, <strong>de</strong> fazer carinho”. Com efeito, para resguardar-se <strong>de</strong> falatórios, Nelma sai mais com<br />

familiares do que com amigas, vai à praia, a restaurantes e bares apenas quando t<strong>em</strong><br />

companhia e, quando está solitária, automaticamente se dirige ao Shopping mais próximo,<br />

262


on<strong>de</strong> po<strong>de</strong> olhar as vitrines, inteirar-se sobre os lançamentos nas livrarias ou tomar um chopp,<br />

enquanto aguarda a próxima seção <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a.<br />

Mesmo para qu<strong>em</strong> não abdica <strong>de</strong> brincar no carnaval, é necessário adotar algumas<br />

precauções, “t<strong>em</strong> lugares que eu posso ir, fico <strong>em</strong> um lugar tranqüilo” (Nelma), isto é, dirige-<br />

se para prédios <strong>de</strong> familiares, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong> acompanhar a folia momesca <strong>em</strong> segurança. Jandira,<br />

entretanto, prefere permanecer <strong>em</strong> casa, prepara iguarias enquanto aguarda as visitas, cada vez<br />

mais raras, <strong>de</strong> sobrinhos (as), pois “os sobrinhos casam, é diferente <strong>de</strong> quando eles estão<br />

<strong>solteiro</strong>s”, constitu<strong>em</strong> sua própria família e, até os irmãos e cunhadas, diante da vida cada vez<br />

“mais agitada”, já não têm a mesma disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> antes. Resta então, retornar ao seio da<br />

Igreja e tramar um encontro com Deus e Jesus, seja através das Missas que freqüenta<br />

assiduamente, seja por meio <strong>de</strong> infindáveis orações e novenas na companhia <strong>de</strong> mulheres<br />

<strong>de</strong>votas como ela e, ou coor<strong>de</strong>nar grupos <strong>de</strong> convivência e ativida<strong>de</strong>s lúdicas promovidas pela<br />

Igreja para crianças e idosos, como faz Mabel.<br />

Por sua vez, as viagens consist<strong>em</strong> <strong>em</strong> válvulas <strong>de</strong> escape diante da vigilância e pressão<br />

familiar e, ou social re<strong>ser</strong>vada à mulher <strong>solteira</strong>, mas também são <strong>de</strong>finidas por Ana como<br />

“sonhos <strong>de</strong> consumo“ nos quais investe porque oferec<strong>em</strong> “um refresco na cabeça”, isto é, ela<br />

conhece pessoas e lugares diferentes e enriquece o seu “b<strong>em</strong> cultural”, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong><br />

que se abstrai da vida cotidiana, cuja rotina é filtrada pela banalização do olhar e flagra outras<br />

perspectivas <strong>de</strong>sse universo por meio do distanciamento. Assim, afirma Ana, viaja para<br />

“qualquer lugar do mundo”, mais <strong>de</strong> uma vez, porque “a percepção do estar” é diferente <strong>em</strong><br />

cada momento.<br />

Entre idas e vindas, Helena se sente mais atraída por “lugares exóticos”, como por<br />

ex<strong>em</strong>plo, o Egito e a Tunísia, Ana por países da América Latina como México e Argentina e,<br />

Nelma, por países europeus como a Inglaterra e a Dinamarca. Apesar <strong>de</strong> algumas se<br />

comunicar<strong>em</strong> <strong>em</strong> inglês, recusam-se a conhecer os Estados Unidos, porque “não gosto da<br />

263


cultura americana” (Helena), ou seja, a cultura americana é <strong>de</strong>preciada porque, ao contrário da<br />

cultura européia, não consegue instigar no plano imaginário um transbordamento do olhar.<br />

Em outras palavras, a cultura <strong>de</strong> massas americana é consi<strong>de</strong>rada popular e sugere a idéia <strong>de</strong><br />

uniformização, enquanto a cultura européia sintetiza uma imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> sofisticação e elitização<br />

que se enquadra mais ao gosto das classes médias.<br />

As viagens internacionais são alternadas por incursões ao território brasileiro,<br />

percorr<strong>em</strong> as praias <strong>de</strong> Jeriquaquara (CE), Porto <strong>de</strong> Galinhas (PE), Natal (RN) e Fernando <strong>de</strong><br />

Noronha (PE), mas s<strong>em</strong> <strong>de</strong>scuidar da bagag<strong>em</strong> cultural, cont<strong>em</strong>plam outras paragens, isto é,<br />

quando chegam ao Rio <strong>de</strong> Janeiro se dirig<strong>em</strong> à Estação da Luz para admirar o Museu da<br />

Língua Portuguesa e, quando vão a São Paulo, logo se programam para visitar o M<strong>em</strong>orial da<br />

América Latina. Até mesmo para Jandira, cuja vida é “mais restrita” ao espaço doméstico, as<br />

viagens acrescentam colorido à clausura auto-imposta e, por isso, não esquece <strong>de</strong> três<br />

“passeios ao sul do país” realizados na companhia <strong>de</strong> familiares.<br />

As mulheres na faixa etária <strong>de</strong> 35 a 48 anos (Gina, Eva, Flora e Clara) sa<strong>em</strong> <strong>em</strong> busca<br />

<strong>de</strong> diversão com grupos <strong>de</strong> amigas (os) <strong>solteira</strong>s (os) e, ou colegas <strong>de</strong> trabalho, freqüentam<br />

restaurantes, barzinhos e Shoppings, mas se queixam <strong>de</strong> que “eles não sab<strong>em</strong> ir a outros<br />

lugares” (Clara). Eventualmente vão a peças teatrais, shows musicais e, outras vezes sa<strong>em</strong><br />

para dançar com algum casal amigo, “eu danço com ele, ele me apresenta aos amigos, eu<br />

danço com os amigos <strong>de</strong>le”, diz Clara. Prefere, portanto, aparecer publicamente acompanhada<br />

e se sente constrangida <strong>de</strong> chegar sozinha nos lugares.<br />

Por outro lado, há aquelas cuja <strong>de</strong>dicação à expansão profissional lhes re<strong>ser</strong>va pouco<br />

t<strong>em</strong>po para entretenimento, evitam programas <strong>de</strong>morados, vão ao cin<strong>em</strong>a, sa<strong>em</strong> para jantar<br />

com amigos que enten<strong>de</strong>m o seu recolhimento e “compactu<strong>em</strong> com seus hábitos, suas ações”<br />

(Flora). Ocasionalmente, comparec<strong>em</strong> aos aniversários <strong>de</strong>sses amigos, mas levam “uma vida<br />

mais caseira” (Flora), que não interfere no trabalho e nos estudos. Por essa razão, as viagens<br />

264


também adquir<strong>em</strong> outro significado, o entretenimento é substituído pela busca <strong>de</strong> qualificação<br />

profissional <strong>em</strong> outras metrópoles, on<strong>de</strong> faz<strong>em</strong> novas <strong>de</strong>scobertas, apren<strong>de</strong>m a viver sozinhas<br />

e, ao retornar<strong>em</strong> à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> orig<strong>em</strong>, <strong>de</strong>svendam, como afirma Gina, “o lado provinciano da<br />

cida<strong>de</strong>”, o olhar censor que as segue a cada passo e lugar para on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>slocam, “quando<br />

você sai, no dia seguinte as pessoas sab<strong>em</strong> on<strong>de</strong> você foi, [...] porque todos se conhec<strong>em</strong>,<br />

então não precisa ler jornal, porque o jornal já está nas línguas e nas visões <strong>de</strong> cada um”<br />

(Gina).<br />

As viagens aproximam os projetos <strong>de</strong> vida das mulheres mais velhas: umas planejam<br />

<strong>de</strong>scobrir territórios inexplorados e expandir o capital cultural; outras preten<strong>de</strong>m rever lugares<br />

já visitados e explorar novas perspectivas ou <strong>de</strong>sfrutar da companhia prazerosa <strong>de</strong> amigos e,<br />

ou familiares, mas há também aquelas que programam viagens para, anônimas, escapar<strong>em</strong> da<br />

vigilância social exercida sobre seus corpos e, t<strong>em</strong>porariamente, fugir<strong>em</strong> da solidão afetiva.<br />

De uma forma ou <strong>de</strong> outra, a rotina e reveses da vida cotidiana, aparent<strong>em</strong>ente são esquecidos<br />

e, dão lugar a um cenário on<strong>de</strong> as mulheres recolh<strong>em</strong> novos tons, sabores e cheiros que<br />

arquivam na m<strong>em</strong>ória e levam para casa, até a próxima viag<strong>em</strong>.<br />

O trabalho, entretanto, revela distâncias: para Ana e Beatriz, que se aposentaram<br />

recent<strong>em</strong>ente, ou Indira, que está <strong>em</strong> vias <strong>de</strong> fazê-lo, os planos envolv<strong>em</strong> a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> uma<br />

ativida<strong>de</strong> que as mantenha ocupadas e com a qual se i<strong>de</strong>ntifiqu<strong>em</strong>, mas s<strong>em</strong> “um horário tão<br />

rígido” (Beatriz), porque priorizam o lazer e a cultura, mas esses planos também po<strong>de</strong>m<br />

pre<strong>ser</strong>var a centralida<strong>de</strong> do trabalho e, <strong>de</strong>sta feita, tomá-los como locus para fortalecer a<br />

tessitura <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas que comungam as mesmas i<strong>de</strong>ologias e visões <strong>de</strong> mundo,<br />

com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>bater<strong>em</strong> “soluções coletivas” (Ana) para a construção <strong>de</strong> uma<br />

socieda<strong>de</strong> mais justa e igualitária. Indira, entretanto, prefere adiar a aposentadoria, como se ao<br />

fazê-lo conseguisse retardar o envelhecimento, “é algo que me assusta muito, a aposentadoria,<br />

265


a velhice”, pois a aproximação do não-trabalho conspira para a revelação da imag<strong>em</strong> ainda<br />

negativa da velhice, isto é, improdutivida<strong>de</strong>, “<strong>de</strong>cadência física” e solidão afetiva.<br />

O trabalho mantém centralida<strong>de</strong> nas vidas das mulheres com ida<strong>de</strong> entre 48 e 53 anos<br />

(Clara, Helena, Mabel, Jandira e Nelma), então planejam “continuar estudando e<br />

trabalhando”, <strong>de</strong>senvolver projetos profissionais que envolv<strong>em</strong> “uma nova formação ou pós-<br />

<strong>graduação</strong>” (Helena). Em outros termos, recusam a acomodação e buscam “algo que faça<br />

mexer um pouco” (Helena), tramam novos <strong>de</strong>safios profissionais, <strong>em</strong>bora não se <strong>de</strong>scui<strong>de</strong>m<br />

dos planos pessoais, o que implica <strong>em</strong> consolidar<strong>em</strong> a autonomia individual e financeira para<br />

po<strong>de</strong>r<strong>em</strong> adquirir um imóvel próprio, continuar<strong>em</strong> viajando e, qu<strong>em</strong> sabe, encontrar<strong>em</strong> um<br />

hom<strong>em</strong> com qu<strong>em</strong> estabeleçam um relacionamento estável, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não tolha sua liberda<strong>de</strong><br />

e individualida<strong>de</strong> e, satisfaça suas necessida<strong>de</strong>s <strong>em</strong>ocionais, afetivas e sexuais. Em suma, a<br />

mulher preten<strong>de</strong> “continuar sendo feliz” (Nelma), na exata medida do que a vida lhe oferece e<br />

as cobranças sociais lhe permit<strong>em</strong> e, por isso, algumas omit<strong>em</strong> seus planos futuros, sonhos<br />

aparent<strong>em</strong>ente inconfessáveis que o passar dos anos não apagam, mas “vou <strong>de</strong>ixar nas mãos<br />

<strong>de</strong> Deus” (Jandira).<br />

Para as mulheres mais jovens, com ida<strong>de</strong> entre 35 e 43 anos (Gina, Eva e Flora), os<br />

projetos futuros priorizam a expansão da vida profissional, mas não esquec<strong>em</strong> a dimensão<br />

pessoal e, ou afetiva: Eva preten<strong>de</strong> se mudar para um imóvel recém-adquirido e comprar um<br />

carro, pois guiar “é uma coisa simples, mas me dá o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> que eu estou dirigindo a minha<br />

vida”, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que almeja “entrar para a docência” e, para tanto, t<strong>em</strong><br />

intensificado os estudos com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cursar um mestrado, que po<strong>de</strong> ampliar suas<br />

chances para ingressar na área acadêmica.<br />

Para Gina, que acabou <strong>de</strong> romper um noivado, o trabalho atua como bálsamo e, abraça<br />

como projeto alternativo “fazer doutorado e retomar pesquisas”, mas mantém “ainda a<br />

esperança <strong>de</strong> casar e ter filhos” e, para isso, t<strong>em</strong> investido <strong>em</strong> rituais para aten<strong>de</strong>r o padrão<br />

266


estético <strong>em</strong> vigor, uma vez que a competitivida<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina no mercado matrimonial, exige da<br />

mulher com mais <strong>de</strong> 30 anos “construir um corpo firme, musculoso e tônico, livre <strong>de</strong> qualquer<br />

marca <strong>de</strong> relaxamento ou <strong>de</strong> moleza” (LIPOVETSKY, 2000, p. 133).<br />

Finalmente, Flora, aos 43 anos e após aprovada <strong>em</strong> um concurso público, opta por se<br />

<strong>de</strong>dicar integralmente à docência e pesquisa científica, <strong>em</strong>bora no plano afetivo tenha a<br />

expectativa <strong>de</strong> “ainda encontrar alguém”, com qu<strong>em</strong> compartilhe a “vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver junto”,<br />

ou seja, as estatísticas suger<strong>em</strong> o contrário, “mas eu não <strong>de</strong>scarto completamente a<br />

possibilida<strong>de</strong>”. O fato é que se para algumas mulheres o casamento e formação <strong>de</strong> uma<br />

família consist<strong>em</strong> <strong>em</strong> meta precípua, para outras o amor é <strong>de</strong>sejado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o parceiro não<br />

interfira <strong>em</strong> seus projetos <strong>de</strong> realização profissional e busca <strong>de</strong> autonomia individual. Em<br />

outros termos, para as jovens mulheres, a realização pessoal é indissociável da realização<br />

profissional, mas s<strong>em</strong>pre há exceções, ou seja, mulheres para as quais o cumprimento dos<br />

papéis sociais tradicionais – esposa e mãe – consiste na principal fonte <strong>de</strong> realização e<br />

conquista pessoal.<br />

Já os homens investigados, ao contrário das mulheres, privilegiam <strong>em</strong> suas narrativas<br />

o trabalho e, por isso, falam sucintamente sobre as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> entretenimento. Costumam<br />

ler revistas s<strong>em</strong>anais, jornais, romances e livros técnicos; também assist<strong>em</strong> televisão, mas não<br />

vê<strong>em</strong> novelas, prefer<strong>em</strong> noticiários, programas <strong>de</strong> varieda<strong>de</strong>s, reportagens, <strong>ser</strong>iados, filmes e<br />

futebol, assim como ouv<strong>em</strong> músicas <strong>de</strong> diferentes estilos, clássicas, populares, instrumentais,<br />

forró, baladas <strong>em</strong> inglês, dancing e rock. As formas <strong>de</strong> entretenimento adotadas evi<strong>de</strong>nciam<br />

os marcadores <strong>de</strong> gênero e geracionais que conduz<strong>em</strong> suas escolhas e dão materialida<strong>de</strong> ao<br />

processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> sua auto-i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, permeado por movimentos <strong>de</strong> negação e, ou<br />

validação dos valores societários vigentes.<br />

Os homens na faixa etária <strong>de</strong> 41 a 56 anos (Gustavo, Dario, Edson, Camilo, Bernardo<br />

e Abílio) cultivam o hábito da leitura, mas a importância atribuída à leitura apresenta<br />

267


gradações diferenciadas: Camilo se <strong>de</strong>fine como “uma máquina <strong>de</strong> ler”, leitor voraz ao qual<br />

não escapa n<strong>em</strong> “bula <strong>de</strong> r<strong>em</strong>édio”, o que t<strong>em</strong> causado danos à visão, “os óculos vão<br />

mudando com uma velocida<strong>de</strong> incrível”, mas adia o quando po<strong>de</strong> a ida ao médico para<br />

exames <strong>de</strong> rotina enquanto força a vista ou suspen<strong>de</strong> as leituras t<strong>em</strong>porariamente. Entre os<br />

mais jovens, Gustavo consi<strong>de</strong>ra a leitura um prazer, se o livro “for pequeno eu acabo <strong>em</strong> um<br />

dia, se for gran<strong>de</strong> eu acabo <strong>em</strong> uma s<strong>em</strong>ana”; Edson não possui um estilo literário <strong>de</strong>finido,<br />

“leio tudo”, n<strong>em</strong> tampouco lê <strong>de</strong> forma sist<strong>em</strong>ática, “eu passo um t<strong>em</strong>po s<strong>em</strong> ler, às vezes saio<br />

lendo bastante”; Dario prefere direcionar suas leituras para áreas específicas.<br />

Entre os mais velhos, Bernardo l<strong>em</strong>bra que <strong>em</strong> criança visitou o universo infantil na<br />

companhia <strong>de</strong> Monteiro Lobato, mas também <strong>de</strong>scobriu Kant e Voltaire. Adulto, elege<br />

Machado <strong>de</strong> Assis como autor preferido e “Dom Casmurro” o livro <strong>de</strong> que mais gosta. Sua<br />

curiosida<strong>de</strong> o leva a <strong>de</strong>cifrar Sheakspeare, mas também a consumir “quilos” <strong>de</strong> livros <strong>de</strong><br />

terror, basicamente Edgar Alan Poe e livros pornográficos, mas porque “era vagabundo<br />

mesmo”, ou seja, <strong>de</strong>dicar horas à leitura implica <strong>em</strong> menosprezar a ativida<strong>de</strong> que confere<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> ao hom<strong>em</strong> – o trabalho.<br />

Para Camilo, as m<strong>em</strong>órias são visuais, não guarda “nomes n<strong>em</strong> coisas”, mas nunca<br />

esquece <strong>de</strong> algo que viu. Por isso, aprecia livros voltados para a arte, “estou lendo um livro<br />

sobre pintores antigos”, gosta <strong>de</strong> ler sobre Medicina Alternativa, tece mais um encontro com a<br />

espiritualida<strong>de</strong> 111 nas leituras do mestre budista Osho e, não t<strong>em</strong> interesse <strong>em</strong> ler sobre<br />

esportes, n<strong>em</strong> tampouco livros elaborados com fins comerciais, “venho <strong>de</strong>senvolvendo um<br />

faro para coisas que você vê, são encomendadas, <strong>de</strong>scarto”. Contudo, Abílio, apesar <strong>de</strong> ter<br />

herdado do pai intelectual “um monte <strong>de</strong> obrazinhas interessantes”, não se consi<strong>de</strong>ra um leitor<br />

111 Segundo Gid<strong>de</strong>ns (2002), a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tardia é responsável pelo surgimento <strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong><br />

sensibilida<strong>de</strong> religiosa e <strong>em</strong>preendimentos espirituais, na medida <strong>em</strong> que o indivíduo é confrontado com a<br />

instabilida<strong>de</strong>, incerteza e flui<strong>de</strong>z dos cenários <strong>de</strong> risco na vida social mo<strong>de</strong>rna. A busca dos indivíduos por<br />

novas formas <strong>de</strong> religião e espiritualida<strong>de</strong>, portanto, é impulsionada pela necessida<strong>de</strong> que esses indivíduos têm<br />

<strong>de</strong> encontrar o significado moral da própria existência.<br />

268


assíduo e, prefere discorrer sobre o interesse <strong>em</strong> conhecer mais sobre a civilização humana e<br />

filosofia, para <strong>em</strong> seguida afirmar: “é isso, não tenho lido”.<br />

Por outro lado, para qu<strong>em</strong> gosta <strong>de</strong> ler, como Dario, “o que aparece na frente eu vou<br />

lendo”, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que enfoque a espiritualida<strong>de</strong>, a área social e, ou “t<strong>em</strong>áticas ligadas à<br />

natureza” 112 (Edson). Por isso, lê jornais e revistas sobre viagens, um <strong>de</strong> seus hobbies; assina<br />

a Revista Terra, voltada para o meio-ambiente, assunto que t<strong>em</strong> <strong>de</strong>spertado seu interesse no<br />

momento, b<strong>em</strong> como lê esporadicamente a Isto É, “porque eu me cansei <strong>de</strong> ler essa coisa<br />

muito séria”. A literatura consegue pren<strong>de</strong>r sua atenção, especialmente os livros <strong>de</strong> José<br />

Saramago, “tenho quase todos os livros” e, se não conseguiu <strong>de</strong>codificar “O M<strong>em</strong>orial do<br />

Convento”, perseverante, ren<strong>de</strong>u-se ao “Ensaio sobre a Luci<strong>de</strong>z”.<br />

Finalmente, Gustavo <strong>de</strong>scobriu o amor pela literatura na infância e adolescência,<br />

“obrigado pela mãe”, através da “Chave do meu tamanho” e “Reinações <strong>de</strong> Narizinho”<br />

inventadas por Monteiro Lobato. Já adulto, aproximou-se <strong>de</strong> Dostoievski, Tolstoi e Proust,<br />

escalou a “Montanha Mágica” com Thomas Mann e, navegou além mar com Fernando<br />

Pessoa, mas <strong>em</strong>bora reconheça que escreveram livros maravilhosos, prefere <strong>de</strong>votar seu amor<br />

aos escritores latino-americanos que “falam das minhas raízes e me reconheço naqueles<br />

livros, reconheço a história dos meus ancestrais, da minha família no interior”. Assim,<br />

percorre a saga <strong>de</strong> “C<strong>em</strong> anos <strong>de</strong> Solidão”, reencontra o “Amor nos T<strong>em</strong>pos do Cólera” e<br />

revivesce a “M<strong>em</strong>ória das minhas putas tristes” na companhia <strong>de</strong> Gabriel Garcia Marquez;<br />

não esquece <strong>de</strong> mencionar outros “hermanos” como Júlio Cortazar e Pablo Neruda, n<strong>em</strong><br />

tampouco <strong>de</strong> se referir a autores brasileiros, como por ex<strong>em</strong>plo, Ariano Suassuna, Machado<br />

<strong>de</strong> Assis, Jorge Amado, Rub<strong>em</strong> Braga, Clarice Lispector, Rub<strong>em</strong> Fonseca e Otto Lara<br />

Resen<strong>de</strong>. Entretanto, não se recusa a ler romances históricos como “Equador”, do “patrício”<br />

Miguel Sousa Tavares.<br />

112 O interesse no meio-ambiente e engajamento <strong>em</strong> movimentos ecológicos são outras expressões da<br />

sensibilida<strong>de</strong> dos indivíduos na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tardia (Cf. GIDDENS, ibid.).<br />

269


A leitura <strong>de</strong> jornais impressos é abandonada e Gustavo prefere fazê-la através da<br />

Internet, pois há uma rejeição à superficialida<strong>de</strong> dos jornais locais, “cada um é Diário Oficial<br />

do político que comanda”, mas mantém um hábito adquirido <strong>em</strong> outro Estado, percorrer as<br />

páginas culturais da “Folha <strong>de</strong> São Paulo” e do “Jornal do Brasil” que indicam “direções para<br />

você escolher livros, escolher música”. A internet é também utilizada pelos homens para<br />

interagir<strong>em</strong> com pessoas que compartilham as mesmas visões <strong>de</strong> mundo, gostos e, ou<br />

possu<strong>em</strong> os mesmos estilos <strong>de</strong> vida, ou seja, os homens se comunicam com amigos (as)<br />

através do MSN e se filiam a comunida<strong>de</strong>s do Orkut, tais como “No Children” (Gustavo) e,<br />

“acho que é Viver Só, Morar Só, alguma coisa assim” (Bernardo).<br />

Já para os homens na faixa etária entre 33 e 40 anos (Miguel, Ivan, Lauro, Hel<strong>de</strong>r,<br />

Flávio e Júlio), voltados para a expansão profissional, a leitura <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> <strong>ser</strong> uma forma <strong>de</strong><br />

entretenimento, “gosto <strong>de</strong> ler também, quer dizer, eu gosto <strong>de</strong> estudar” (Júlio), ou seja, sua<br />

leitura é restrita a textos acadêmicos e trabalhos científicos. Flávio afirma que aprecia livros<br />

<strong>de</strong> história e filosofia, romances <strong>de</strong> auto-ajuda e espíritas, <strong>em</strong>bora o gosto pela leitura seja<br />

conjugado no t<strong>em</strong>po passado, “li muito” e não cite nenhum autor ou título. Em seguida,<br />

esclarece que “tenho lido mais via computador, por conta do preço dos livros”, para no t<strong>em</strong>po<br />

presente comentar o acúmulo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s, horário tardio <strong>em</strong> que retorna para casa, “quase<br />

no momento <strong>de</strong> dormir”. Em suma, Flávio culpa o cansaço por afastá-lo da leitura virtual,<br />

“fico muito pouco t<strong>em</strong>po” diante do computador, mas esse mesmo t<strong>em</strong>po se alonga e o<br />

cansaço se esvai para aten<strong>de</strong>r o convite <strong>de</strong> uma amiga e abrir uma conta no Orkut ou acessar<br />

sites com conteúdo erótico, “já acessei por curiosida<strong>de</strong> muitas vezes, mas não é constante,<br />

nunca tive esse vício”.<br />

Por sua vez, as leituras <strong>de</strong> Hel<strong>de</strong>r são impulsionadas por “alguma coisa que eu olhe e<br />

me atraia”, ficção, <strong>de</strong> vez <strong>em</strong> quando filosofia e, romance, só se alguém recomendar, “aí eu<br />

acabo lendo”, apesar <strong>de</strong> afirmar que “quando todo mundo fala <strong>de</strong>mais”, cria resistência, ou<br />

270


seja, “os Paulos Coelhos da vida que me perdo<strong>em</strong>”. Dessa forma, sublinha o livre arbítrio para<br />

escolher o livro que mais o interessa, <strong>em</strong>bora se renda às listas dos mais vendidos e tente<br />

<strong>de</strong>cifrar “O Código Da Vinci” inventado por Dan Brown.<br />

Os jornais <strong>de</strong> circulação nacional são lidos por Hel<strong>de</strong>r esporadicamente, “<strong>de</strong> vez <strong>em</strong><br />

quando eu dava uma olhada na Folha <strong>de</strong> São Paulo”, mas algumas seções dos jornais locais<br />

ainda são acompanhadas regularmente, principalmente os classificados, “como está o<br />

mercado, carros, imóveis”. O mesmo acontece com as revistas comerciais, ele cancelou a<br />

assinatura da Isto É, comprava esporadicamente “Caros Amigos” e, atualmente, “a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r<br />

da reportag<strong>em</strong>”, lê a “Carta Capital”, “Superinteressante” e, “‘Quatro Rodas’ quando não t<strong>em</strong><br />

jeito, para olhar uns carros” (Hel<strong>de</strong>r).<br />

O cancelamento da assinatura <strong>de</strong> revistas e jornais po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> atribuído à facilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

acesso a informações, notícias e publicações, “principalmente na área <strong>de</strong> trabalho”, através<br />

dos provedores da Internet, assim como revistas masculinas, “todo dia eu dou uma olhada no<br />

que t<strong>em</strong> <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>, [...] tudo que é foto está saindo aí no site, então não vejo mais razão<br />

para estar comprando” (Hel<strong>de</strong>r).<br />

Entre os mais jovens, como Miguel, a leitura se restringe ao trabalho, basicamente<br />

livros técnicos, “não é uma leitura por prazer, é coisa informativa”. Costuma adotar como<br />

“leitura fixa revistas s<strong>em</strong>anais, livro não”, por ex<strong>em</strong>plo, Veja e Isto É. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, os<br />

homens recorr<strong>em</strong> aos jornais locais para se manter<strong>em</strong> informados sobre os fatos e<br />

acontecimentos mais recentes. Embora façam uso da Internet, enquanto um acessa<br />

eventualmente os sites <strong>de</strong> conteúdo erótico e mantém sua conta no Orkut atualizada (Flávio),<br />

outro utiliza a Internet para conferir e-mails e mensagens recebidas, “sites raramente”<br />

(Miguel) ou prefere encerrar a conta do Orkut <strong>de</strong>vido à “falta <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong>” (Hel<strong>de</strong>r).<br />

Com relação ao cin<strong>em</strong>a, os homens na faixa etária <strong>de</strong> 41 a 56 anos (Gustavo, Dario,<br />

Edson, Camilo, Bernardo e Abílio), mesmo com um perfil mais intelectualizado e politizado,<br />

271


efer<strong>em</strong>-se a um ou outro filme, citam diretores favoritos, mas <strong>de</strong> forma concisa, ou seja,<br />

diferent<strong>em</strong>ente das mulheres, não entram <strong>em</strong> <strong>de</strong>talhes, esquec<strong>em</strong> títulos e não se pren<strong>de</strong>m a<br />

enredos. Enquanto uns apenas anunciam o estilo <strong>de</strong> filme preferido, outros apontam<br />

referências, mas há qu<strong>em</strong> não se sinta atraído pela sétima arte, b<strong>em</strong> como aquele que se <strong>de</strong>fine<br />

como “cinéfilo”, <strong>em</strong>bora também se mostre sucinto ao abordar os filmes e diretores favoritos.<br />

Os homens, portanto, citam apenas os filmes que a m<strong>em</strong>ória resgata <strong>em</strong> primeiro lugar.<br />

Entre os homens mais velhos, Bernardo não possui um estilo <strong>de</strong>finido, assiste a “todos<br />

os filmes”, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> “porcarias americanas” a “comédias <strong>de</strong> baixo nível”, <strong>em</strong>bora mencione<br />

apenas os filmes a que atribui “qualida<strong>de</strong>”, ou seja, focaliza o cin<strong>em</strong>a europeu e revê “Carne<br />

Trêmula” <strong>de</strong> Pedro Almodóvar e “Cin<strong>em</strong>a Paradiso” <strong>de</strong> Giuseppe Tornatore. Para Camilo,<br />

cujas m<strong>em</strong>órias são visuais, os títulos e enredos se apagam diante <strong>de</strong> cores e imagens, “já vi<br />

muitos filmes, não sei assim dizer exatamente um”, mas recomenda o filme brasileiro mais<br />

recente que assistiu, “O dia <strong>em</strong> que meus pais saíram <strong>de</strong> férias” <strong>de</strong> Cao Hamburger, cujo<br />

enredo procura ilustrar, para <strong>em</strong> seguida repudiar a cinebiografia <strong>de</strong> Frida dirigida por Julie<br />

Taymor, que consi<strong>de</strong>ra apelativa e superficial, “muito mal feito, Frida merecia coisa melhor”,<br />

porque tanto a arte <strong>de</strong> Frida quanto a sua relação com Diego Rivera são pouco exploradas no<br />

enredo fílmico e, a única l<strong>em</strong>brança que guarda na retina são as imagens do México, “uma<br />

coisa ímpar”.<br />

Entre os mais jovens, Edson afirma que o cin<strong>em</strong>a realiza uma “mágica”, “parece que<br />

por um t<strong>em</strong>po você entrou <strong>em</strong> outro plano” e, somente após as cenas finais, quando as luzes<br />

são acesas, você “volta a se conectar com o mundo” real. Neste sentido, foi capturado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

infância pelo velho projetor que exibia filmes <strong>em</strong> preto e branco no centro <strong>de</strong> lazer do interior<br />

on<strong>de</strong> morava, cujas cenas revive <strong>em</strong> Cin<strong>em</strong>a Paradiso, “eu me <strong>de</strong>smanchei no cin<strong>em</strong>a”.<br />

Embora aprecie o cin<strong>em</strong>a americano, Edson, acrescenta que é mero entretenimento, “às vezes<br />

estou a fim <strong>de</strong> ver a coisa da ação, da aventura, mas não me tocou”, ou seja, encerrada a<br />

272


seção, não guarda nenhum registro, “um vai se sobrepondo ao outro”, ao contrário dos<br />

momentos inesquecíveis vividos ao assistir “um filme muito antigo, <strong>de</strong> 1965”, o “que mais<br />

gostei, ‘Zorba, o grego’” <strong>de</strong> Michael Cacoyanni.<br />

Há também qu<strong>em</strong> é “freqüentador assíduo” do cin<strong>em</strong>a <strong>de</strong> arte, como Dario, que<br />

prefere assistir a dramas com conteúdo “forte” e, não abre concessões. Por isso, costuma ir ao<br />

cin<strong>em</strong>a sozinho, “as pessoas gostam muito <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a, mas vão para outros estilos, eu só vou<br />

para drama”. Então, resgata um filme visto faz anos, “O Amor e a Fúria”, <strong>de</strong> Lee Tamahori,<br />

cujo enredo enfoca o exacerbamento <strong>de</strong> conflitos nas relações familiares, “que me marcou<br />

muito, me <strong>em</strong>ocionei” e, a recente cinebiografia <strong>de</strong> “Olga”, dirigida por Jayme Monjardim.<br />

Gustavo se <strong>de</strong>fine como “cinéfilo” é categórico ao afirmar seu <strong>de</strong>sinteresse <strong>em</strong> relação aos<br />

“filmes <strong>de</strong> ação americano”, que não o “divert<strong>em</strong>”, <strong>em</strong>bora aprecie Quentin Tarantino. Prefere<br />

os cineastas europeus do Dogma 113 – Lars Von Trier, além dos cineastas espanhóis<br />

Almodóvar e Bigas Luna, mas apesar <strong>de</strong> <strong>ser</strong><strong>em</strong> muitos os filmes que o marcaram,<br />

instantaneamente lhe v<strong>em</strong> a l<strong>em</strong>brança <strong>de</strong> uma das tramas almodovarianas “Carne Trêmula”,<br />

pois “é um filme que até hoje me faz pensar bastante, eu gosto <strong>de</strong> filmes que me faz<strong>em</strong><br />

pensar”.<br />

Por sua vez, tudo indica que os homens na faixa etária <strong>de</strong> 33 a 40 anos (Ivan, Hel<strong>de</strong>r,<br />

Miguel, Lauro, Flávio, Nelson e Júlio) foram <strong>de</strong>finitivamente conquistados pelo cin<strong>em</strong>a<br />

hollywoodiano, “não têm preferência por um tipo” (Hel<strong>de</strong>r), gostam <strong>de</strong> dramas, filmes<br />

policiais, <strong>de</strong> ação e aventura, mas assist<strong>em</strong> comédias românticas apenas para agradar as<br />

namoradas, pois “as mulheres apreciam, é divertido” (Lauro). Enquanto Júlio elege entre os<br />

filmes favoritos dramas românticos como “Antes do Anoitecer”, <strong>de</strong> Richard Linklater; Lauro<br />

prefere “A Cida<strong>de</strong> dos Anjos”, <strong>de</strong> Brad Silverling. Já Ivan escolhe épicos, como “O<br />

Gladiador”, <strong>de</strong> Ridley Scoot e Hel<strong>de</strong>r seleciona filmes mais recentes para <strong>de</strong>finir seus gostos,<br />

113 Os cineastas dinamarqueses Lars Von Trier e Thomas Vinterberg criaram o manifesto Dogma <strong>em</strong> 1995, <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> um cin<strong>em</strong>a menos comercial e mais realista, cujos enredos focaliz<strong>em</strong> <strong>de</strong> forma simples a intrincada<br />

complexida<strong>de</strong> das relações cont<strong>em</strong>porâneas.<br />

273


aprecia “Crash,” <strong>de</strong> Paul Haggis, “que não é tão policial, mas t<strong>em</strong> aquela parte <strong>de</strong> drama”,<br />

mas <strong>de</strong>squalifica a versão cin<strong>em</strong>atográfica <strong>de</strong> Ron Howard para “O Código da Vinci”,<br />

consi<strong>de</strong>rada ainda pior do que o livro. O fato é que, para essa geração, o cin<strong>em</strong>a europeu com<br />

seus roteiros que buscam revelar as subjetivida<strong>de</strong>s e <strong>em</strong>oções mais íntimas <strong>de</strong>sperta menos<br />

interesse do que a pirotecnia e efeitos especiais dos filmes <strong>de</strong> ação americanos, ainda que, vez<br />

por outra, os homens se rendam a histórias sobre as relações amorosas cont<strong>em</strong>porâneas,<br />

regidas pela contingencialida<strong>de</strong>.<br />

No tocante à televisão, os homens mais velhos, <strong>em</strong>bora tenham aparelhos <strong>em</strong> suas<br />

residências, parec<strong>em</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhar <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> entretenimento, cujo caráter utilitário o inscreve<br />

na categoria <strong>de</strong> veículo transmissor <strong>de</strong> uma subcultura, à qual qualquer um t<strong>em</strong> acesso e, por<br />

isso, prefer<strong>em</strong> abordar outras ativida<strong>de</strong>s recreativas que os distingu<strong>em</strong> das <strong>de</strong>mais pessoas. Já<br />

as narrativas dos homens mais jovens são sucintas e imprecisas, <strong>de</strong>claram que assist<strong>em</strong><br />

televisão, mas pouco se refer<strong>em</strong> a canais e, ou programas televisivos, ou seja, entre uma<br />

ativida<strong>de</strong> e outra, vê<strong>em</strong> noticiários, filmes, e, como coloca Edson, “algum <strong>ser</strong>iado”,<br />

“programas <strong>de</strong> varieda<strong>de</strong>s” ou programas centrados <strong>em</strong> “t<strong>em</strong>áticas <strong>de</strong> viag<strong>em</strong>” exploradas<br />

pelo canal fechado Nathional Geographic, cujos títulos não são mencionados. S<strong>em</strong> rumo<br />

certo, seus <strong>de</strong>dos manuseiam velozmente o controle r<strong>em</strong>oto até encontrar<strong>em</strong> algo que lhes<br />

interesse, ou seja, quando o olhar se <strong>de</strong>para com dribles futebolísticos, não importa o time ou<br />

campeonato, confer<strong>em</strong> legitimida<strong>de</strong> às pretensas diferenças <strong>de</strong> gênero, pois “eu gosto <strong>de</strong><br />

futebol”, mas “eu não vejo novela” (Júlio).<br />

No que se refere à música, os homens com ida<strong>de</strong> acima <strong>de</strong> 40 anos (Dario, Edson,<br />

Gustavo, Abílio, Bernardo e Camilo) se <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> como ecléticos, ouv<strong>em</strong> “<strong>de</strong> tudo”, <strong>de</strong> rock a<br />

música popular brasileira, carnaval, <strong>ser</strong>tanejo e até “rappers”, mas tal ecletismo está<br />

condicionado aos padrões <strong>de</strong> consumo que confer<strong>em</strong> reconhecimento a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

classe. Dessa forma, eleg<strong>em</strong> <strong>de</strong>terminados estilos musicais, que classificam como “música<br />

274


oa”, selecionam compositores e intérpretes favoritos, enquanto outros são <strong>de</strong>scartados,<br />

“tenho meu limite”, porque são “chatos” (Bernardo).<br />

Bernardo continua a ouvir os acor<strong>de</strong>s da “bossa nova e seus filhos” e segue a trajetória<br />

musical dos ícones “tropicalistas”, isto é, Caetano Veloso e Gilberto Gil, b<strong>em</strong> como Gal Costa<br />

e Maria Bethânia, cujo início <strong>de</strong> carreira acompanhou <strong>de</strong> perto na década <strong>de</strong> 1970. Aprecia<br />

também Ari Barroso e, “alguma coisa <strong>ser</strong>taneja”, como a composição “Luar do Sertão” <strong>de</strong><br />

Catulo da Paixão Cearense, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que permanece atento a novas formas <strong>de</strong><br />

expressão musical, “outro dia estava ouvindo uma música <strong>de</strong> Ivete Sangalo e achei linda”, diz<br />

Bernardo, mas <strong>de</strong>precia “esses arranjos <strong>de</strong> Chitãozinho e Xororó” para a música <strong>ser</strong>taneja. Já<br />

Abílio, atribui ao excesso <strong>de</strong> trabalho o fato <strong>de</strong> “ouvir pouca música”, mas como<br />

“percussionista amador” continua tocando eventualmente com um grupo <strong>de</strong> amigos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que seja “música boa, fora o estilo ‘brega’, que eu <strong>de</strong>testo, aí incluído o axé, essa coisa da<br />

pagodada, estou fora”.<br />

Entre os homens mais jovens, Gustavo também t<strong>em</strong> “um gosto b<strong>em</strong> eclético”, suas<br />

preferências musicais são influenciadas pelo grupo familiar, “eu sou sobrinho <strong>de</strong> compositor e<br />

minha mãe s<strong>em</strong>pre ouvia música popular brasileira” e, <strong>de</strong>scobre Cartola, Chico Buarque e<br />

Paulinho da Viola, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que, na juventu<strong>de</strong>, se entusiasmou com a música da<br />

sua geração, isto é, conheceu o rock dos Rolling Stones, <strong>de</strong> Robert Plant e Led Zeppelin. Na<br />

ida<strong>de</strong> adulta, aprecia Gilberto Gil, Caetano Veloso e Maria Bethânia, mas acrescenta outros<br />

compositores e cantores (as) ao seu acervo musical: Djavan, Gonzaguinha, Simone, Nana<br />

Caymmi, Luiz Melodia e Tom Zé.<br />

Os homens entrevistados não esquec<strong>em</strong>, entretanto, <strong>de</strong> ressaltar suas músicas e<br />

intérpretes favoritos, cujos critérios eletivos reafirmam o entrelace entre as gerações e<br />

<strong>de</strong>senham “o referencial” do que gostam: Edson prefere as músicas “mais antigas” <strong>de</strong> Chico<br />

Buarque, como “A Banda”, mesmo não sendo da sua “época”, mas l<strong>em</strong>bra também que<br />

275


gostava do lado romântico <strong>de</strong> Gonzaguinha, exacerbado na letra <strong>de</strong> “Sangrando”, assim como<br />

se i<strong>de</strong>ntifica com a revolta <strong>de</strong> Caetano Veloso <strong>em</strong> relação à tirania estúpida da burguesia cujos<br />

“Podres Po<strong>de</strong>res” engendram a <strong>de</strong>sumanização e exclusão social na América Latina.<br />

Atualmente, continua ouvindo Dire Street e Simple Red, mas “estou escutando o Rappa”, isto<br />

é, sob a influência dos sobrinhos, <strong>de</strong>scobre e passa a gostar <strong>de</strong> gêneros musicais apreciados<br />

pelas novas gerações.<br />

Já Dario prefere eleger uma única música e intérprete como favoritas, “O Ciúme”, <strong>de</strong><br />

Caetano Veloso, “mas com Maria Bethânia”, enquanto Gustavo acrescenta à sua lista dois<br />

instrumentistas, Stan Getz e Astor Piazzolla, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> registrar, “são tantos que vai<br />

acabar faltando”, para <strong>em</strong> seguida apontar restrições à música <strong>ser</strong>taneja e baiana <strong>de</strong> má<br />

qualida<strong>de</strong>, uma “que não é <strong>ser</strong>taneja” <strong>de</strong> fato e, a outra, “que se chama sexy music, axé<br />

music”, ambas <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> conteúdo e valor musical. Para melhor ilustrar seu ponto <strong>de</strong><br />

vista, Gustavo l<strong>em</strong>bra dos carnavais passados e da “boa música” composta por Caetano<br />

Veloso, Moraes Moreira, Armandinho e compositores do Araketo e Olodum, que não são<br />

absorvidas atualmente pelo mercado fonográfico.<br />

Os homens na faixa etária <strong>de</strong> 33 a 40 anos (Ivan, Hel<strong>de</strong>r, Miguel, Lauro, Flávio,<br />

Nelson e Júlio) também <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> seu gosto musical como “muito eclético”, porque a música<br />

está relacionada ao “estado <strong>de</strong> espírito”, diz Hel<strong>de</strong>r. Entre os mais velhos, Flávio gosta <strong>de</strong><br />

dançar e prefere forró, uma vez que <strong>em</strong> sua cida<strong>de</strong> natal o São João é “excepcional”, enquanto<br />

Hel<strong>de</strong>r aprecia música popular brasileira, principalmente Chico Buarque, também costuma<br />

ouvir rock nacional e música orquestrada, <strong>em</strong>bora abomine música <strong>ser</strong>taneja, “é mesmo que<br />

me dar um tiro”. Contudo, Nelson, que “ama música” e é m<strong>em</strong>bro do coral da Igreja, aprecia<br />

vocais, vozes superpostas e, portanto, t<strong>em</strong> preferência por grupos musicais, entre os quais<br />

Boca Livre – já extinto – , 14 Bis e Roupa Nova.<br />

276


Entre os homens mais novos, enquanto Lauro afirma gostar <strong>de</strong> música clássica, Miguel<br />

argumenta que para “cada ocasião t<strong>em</strong> um tipo <strong>de</strong> música diferente”, durante os festejos<br />

juninos ouve e dança forró, “eu ouço <strong>de</strong> música brega a [...] música clássica, não t<strong>em</strong><br />

probl<strong>em</strong>a”, mas aprecia mesmo as baladas <strong>em</strong> inglês e reggae, “os tipos <strong>de</strong> música que eu<br />

gosto mais”. Há também Ivan, que escuta rock nacional e dancing, <strong>em</strong>bora tenha preferência<br />

por samba, alguns pouco conhecidos ou “do repertório <strong>de</strong> Zeca Pagodinho”, como por<br />

ex<strong>em</strong>plo, “Deixa a vida me levar”.<br />

Os homens na faixa etária <strong>de</strong> 41 a 56 anos (Gustavo, Dario, Edson, Camilo, Abílio e<br />

Bernardo) gostam <strong>de</strong> sair e, assim como as mulheres, não costumam ir a qualquer lugar,<br />

<strong>em</strong>bora por razões diferentes, a falta <strong>de</strong> segurança e violência urbana não são <strong>em</strong>pecilhos,<br />

mas, esclarece Camilo, a perda do po<strong>de</strong>r aquisitivo, “porque tudo custa muito dinheiro”,<br />

aliada à <strong>de</strong>smotivação e cansaço, pois “o dia-a-dia já é tão acelerado, que muitas vezes, <strong>de</strong><br />

noite, eu quero é dormir”. Dessa forma, Camilo restringe seus programas a “coisas ligadas à<br />

área da cultura”, fontes <strong>de</strong> inspiração para suas criações artísticas, evita reuniões sociais,<br />

aniversários e, só visita a casa <strong>de</strong> amigos quando o encontro t<strong>em</strong> a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> discutir<br />

algum projeto profissional que executam <strong>em</strong> parceria.<br />

Bernardo, quando está <strong>em</strong> casa, joga no computador e ouve música horas a fio, mas sai<br />

habitualmente para encontrar os amigos, “adoro bar”, vai exclusivamente ao cin<strong>em</strong>a e não ao<br />

Shopping, o que sugere um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorialização, ou seja, o cin<strong>em</strong>a é isolado dos<br />

<strong>de</strong>mais espaços que compõ<strong>em</strong> o Shopping. No entanto, Abílio, que trabalha inclusive nos fins<br />

<strong>de</strong> s<strong>em</strong>ana e, também gosta “<strong>de</strong> uma cervejinha”, freqüenta “barzinhos” à noite, ocasião <strong>em</strong><br />

que apela para a companhia <strong>de</strong> amigos (as), “não gosto <strong>de</strong> sair só, me sinto mal” e, por isso,<br />

evita sair <strong>de</strong>sacompanhado. Pela manhã, antes do horário <strong>de</strong> trabalho, pratica mountain bike,<br />

porque lhe “dá muito prazer” e, a ativida<strong>de</strong> física compensa o fato <strong>de</strong> <strong>ser</strong> fumante e consumir<br />

bebidas alcoólicas socialmente.<br />

277


Entre os homens mais novos, i<strong>de</strong>ntifica-se a prática <strong>de</strong> exercícios físicos <strong>em</strong><br />

aca<strong>de</strong>mias, geralmente após o horário <strong>de</strong> trabalho, o que inscreve a vaida<strong>de</strong> como um dos<br />

novos atributos <strong>de</strong> gênero assimilados pelo hom<strong>em</strong> mo<strong>de</strong>rno. Neste sentido, a ida à praia nos<br />

finais <strong>de</strong> s<strong>em</strong>ana <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> <strong>ser</strong> um pretexto para extravagâncias etílicas e gastronômicas e se<br />

transforma <strong>em</strong> mais um local para a prática <strong>de</strong> esportes, enquanto Dario prefere realizar<br />

caminhadas solitárias à beira mar, Gustavo escolhe jogar futebol e frescobol, mas não se<br />

expõe <strong>de</strong>masiado ao sol e “<strong>de</strong>testo barzinho <strong>em</strong> praia”, ou seja, prefere praias on<strong>de</strong> o ambiente<br />

natural é pre<strong>ser</strong>vado e o freqüentador po<strong>de</strong> transitar livr<strong>em</strong>ente, s<strong>em</strong> que esbarre <strong>em</strong> um<br />

amontoado <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>iras e mesas quando se dirige ao mar. Contudo, para Edson, que trabalha<br />

durante dias seguidos, as folgas prolongadas ensejam outros movimentos, <strong>em</strong>bora também<br />

goste <strong>de</strong> praia, prefere visitar o sítio da família, acampar ou viajar com os sobrinhos.<br />

Os homens mais novos gostam <strong>de</strong> assistir espetáculos <strong>de</strong> dança, shows musicais e<br />

peças teatrais. Contudo, cautelosos, procuram se certificar antecipadamente <strong>de</strong> que “a peça<br />

t<strong>em</strong> qualida<strong>de</strong>, pois eu já fui para muitas que não tinham qualida<strong>de</strong> nenhuma” (Gustavo), o<br />

que atribu<strong>em</strong> à falta <strong>de</strong> apoio cultural. Enquanto Dario se queixa da vida noturna <strong>de</strong>vido à<br />

falta <strong>de</strong> opções, “eu já não paciência <strong>de</strong> estar constant<strong>em</strong>ente com as mesmas pessoas,<br />

freqüentando os mesmos lugares”, Gustavo se ressente porque “a noite acaba cedo e é pouco<br />

animada”, mas “quando você t<strong>em</strong> bons amigos você consegue”.<br />

Em suma, o bar já não consiste <strong>em</strong> t<strong>em</strong>plo on<strong>de</strong> as tribos urbanas da década <strong>de</strong> 1970<br />

<strong>de</strong>votavam adoração a Baco, <strong>em</strong> meio a conversas que se prolongavam noite a<strong>de</strong>ntro, “já varri<br />

muitas madrugadas” (Camilo), <strong>em</strong> celebração à vida “que era uma festa permanente”<br />

(Bernardo), discutindo acaloradamente estratégias para s<strong>em</strong>ear<strong>em</strong> a revolução contracultural,<br />

cuja i<strong>de</strong>ologia compartilhavam com amigos (as), ou seja, “naquela época você saia sozinho e<br />

encontrava os amigos na noite, agora ninguém faz isso, ou você marca com alguém ou você<br />

vai ficar só”, diz Bernardo.<br />

278


Para os homens mais jovens, os bares se tornaram meros pontos <strong>de</strong> encontro, para<br />

on<strong>de</strong> se dirig<strong>em</strong> após mais um dia <strong>de</strong> trabalho, na tentativa <strong>de</strong> relaxar<strong>em</strong> das pressões e<br />

incertezas cotidianas com amigos (as), colegas, pessoas que escolh<strong>em</strong> ao sabor da ocasião, “é<br />

o bar com uma pessoa, amanhã com outra” (Dario), com as quais não discut<strong>em</strong> utopias, mas<br />

apenas fatos e acontecimentos do dia-a-dia, abafados pela música ao vivo e toques incessantes<br />

dos celulares, que buscam camuflar a ausência <strong>de</strong> comunicação e alheamento uns dos outros<br />

e, “talvez por isso, estou também evitando essa história <strong>de</strong> bares” (Dario).<br />

Os homens na faixa etária entre 33 e 40 anos (Ivan, Hel<strong>de</strong>r, Miguel, Lauro, Flávio,<br />

Nelson e Júlio) colocam a expansão profissional como priorida<strong>de</strong> e lhes sobra pouco t<strong>em</strong>po<br />

para o lazer, <strong>em</strong>bora isso não signifique que se isol<strong>em</strong> e fiqu<strong>em</strong> reclusos <strong>em</strong> suas casas. De<br />

fato, para aqueles que atuam na área acadêmica e faz<strong>em</strong> cursos <strong>de</strong> pós-<strong>graduação</strong> “os estudos<br />

têm tomado quase todo o meu t<strong>em</strong>po” (Lauro), mas não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> se divertir,<br />

ocasionalmente, vão a barzinhos com amigos (as) ou com a namorada, “<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não tenha<br />

DVD ou som muito alto” (Lauro), mas, às vezes, faz<strong>em</strong> como Júlio, “gosto muito <strong>de</strong> ficar <strong>em</strong><br />

casa” e, quando não estão estudando, distra<strong>em</strong>-se assistindo à televisão ou conversando com<br />

amigos (as) na Internet.<br />

A estabilida<strong>de</strong> profissional não diminui o ritmo <strong>de</strong> trabalho, que alguns intercalam<br />

com ativida<strong>de</strong>s físicas realizadas após o expediente, como natação e musculação, mas os fins<br />

<strong>de</strong> s<strong>em</strong>ana são <strong>de</strong>dicados à namorada, com qu<strong>em</strong> sa<strong>em</strong> para dançar ou à família. Já Nelson,<br />

que mantém relacionamentos <strong>de</strong>scartáveis e é cobrado pela Igreja <strong>em</strong> relação ao não-<br />

casamento, elege um grupo <strong>de</strong> colegas do trabalho com qu<strong>em</strong> costuma ir a restaurantes e<br />

barzinhos, mas também eventualmente, pois trabalha muito. Contudo, entre os mais jovens, o<br />

excesso <strong>de</strong> trabalho não é razão para não se divertir<strong>em</strong>, no “t<strong>em</strong>po que sobra é que eu saio, à<br />

noite e às vezes, <strong>de</strong> dia” (Ivan), isto é, sa<strong>em</strong> sozinhos para fazer compras, vão à praia ou ao<br />

279


cin<strong>em</strong>a, mas não freqüentam barzinhos s<strong>em</strong> a companhia <strong>de</strong> amigos ou <strong>de</strong> uma namorada,<br />

pois “acho meio <strong>de</strong>pressivo”, afirma Ivan.<br />

Os mais jovens prefer<strong>em</strong> ambientes <strong>de</strong>scontraídos, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m “ouvir uma música<br />

legal, interagir, conhecer pessoas novas” (Ivan); gostam <strong>de</strong> dançar e freqüentam baladas, b<strong>em</strong><br />

como <strong>de</strong>sfrutam o carnaval, <strong>em</strong> que “as pessoas vão para fazer<strong>em</strong> o que quer<strong>em</strong>”, apesar <strong>de</strong><br />

ter<strong>em</strong> momentos <strong>em</strong> que escolh<strong>em</strong> outras ativida<strong>de</strong>s e, “até fico <strong>em</strong> casa tranqüilo, boto um<br />

filme , não me sinto angustiado por estar sozinho” (Ivan). Contudo, exist<strong>em</strong> <strong>de</strong>terminados<br />

bares que não convém levar namorada, “é notório que a galera vai para azaração, [...] são<br />

bares para qu<strong>em</strong> está largado”, explica Hel<strong>de</strong>r. Para qu<strong>em</strong> mora só e não ajuda<br />

financeiramente a família, a vida noturna é mais intensa, ou seja, é estar “solto na gandaia”,<br />

sair por sair, “como se fosse obrigação”, bebe <strong>em</strong> excesso e, chega a hora <strong>em</strong> que os sinais <strong>de</strong><br />

cansaço começam a aparecer, pois “você fica s<strong>em</strong> uma coisa mais sólida”, porque “ali é tudo<br />

futilida<strong>de</strong>”, como reforça Hel<strong>de</strong>r.<br />

Já para Miguel, que vive na residência dos pais e, “por enquanto não tenho nenhuma<br />

pretensão <strong>de</strong> sair daqui”, <strong>em</strong>bora haja momentos <strong>em</strong> que se sinta solitário, a noite é sua<br />

companheira, “não <strong>de</strong>ixo <strong>de</strong> sair porque não tenho companhia”, freqüenta “os bares que estão<br />

mais movimentados”, on<strong>de</strong> t<strong>em</strong> “gente <strong>solteira</strong>”, com ida<strong>de</strong>s variadas e, principalmente<br />

durante os festejos juninos, “on<strong>de</strong> t<strong>em</strong> festa eu estou”. O fato é que gosta <strong>de</strong> dançar, beber e<br />

conversar com os amigos, mas se estiver namorando, não faz diferença, “eu vou para qualquer<br />

lugar, eu gosto <strong>de</strong> sair, <strong>de</strong> curtir”, afirma Miguel. Em suma, aproveita a vida e, por enquanto,<br />

a diversão <strong>de</strong>sorganiza tudo que aparente compromisso e soli<strong>de</strong>z, “gasto tudo, eu gosto <strong>de</strong><br />

viver o momento, não sou muito <strong>de</strong> pensar no futuro, meus pais reclamam muito”.<br />

Por sua vez, as viagens adquir<strong>em</strong> significados distintos para os homens <strong>em</strong> cada<br />

ida<strong>de</strong>/geração e, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre percorr<strong>em</strong> cida<strong>de</strong>s ou países <strong>de</strong>sconhecidos, mas certamente,<br />

permit<strong>em</strong> <strong>de</strong>sbravar territórios inexplorados na busca pela espiritualida<strong>de</strong>, instigam o<br />

280


transbordamento do olhar que somente se esvazia no processo <strong>de</strong> criação artística, mas<br />

também proporcionam distanciamento da realida<strong>de</strong> cotidiana e preench<strong>em</strong> lacunas na vida<br />

profissional e afetiva, assim como são percebidas como meio <strong>de</strong> libertação da vigilância<br />

social e familiar ou ainda forma <strong>de</strong> alcançar<strong>em</strong> expansão profissional e crescimento pessoal,<br />

além <strong>de</strong> explorar<strong>em</strong> outras paragens.<br />

Os homens na faixa etária <strong>de</strong> 41 a 56 anos (Gustavo, Edson, Dario, Camilo, Bernardo<br />

e Abílio) <strong>de</strong>svendam territórios com variadas intenções e <strong>de</strong> diferentes formas: Entre os mais<br />

velhos, uns migram <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s pequenas para centros urbanos mais <strong>de</strong>senvolvidos, on<strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>m se libertar da “formação muito rígida” (Dario), valores con<strong>ser</strong>vadores <strong>de</strong>fendidos pelo<br />

grupo familiar e, tentam explorar um estilo <strong>de</strong> vida alternativo no tocante a escolhas<br />

profissionais, “eu me meti com outras coisas” (Abílio), para retornar anos mais tar<strong>de</strong> à cida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> orig<strong>em</strong>, on<strong>de</strong> percorre trilhas com sua bicicleta e namora mulheres <strong>de</strong> outras capitais, ou<br />

seja, faz viagens curtas, com riscos calculados e passag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ida e volta. Contudo, Bernardo<br />

prefere recuperar as m<strong>em</strong>órias referenciais <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>slocamentos junto com a família <strong>de</strong> um<br />

bairro <strong>de</strong> classe média para outro, <strong>em</strong> <strong>de</strong>corrência do crescimento urbano, porque o lugar “se<br />

tornou insuportável”, moradias <strong>em</strong> diferentes ruas e avenidas, “a partir daí eu me tornei um<br />

cigano”, para <strong>em</strong> seguida comparar um período “muito divertido”, aos 30 anos, quando já<br />

morava só, “toda hora tinha gente entrando, saindo” e as mudanças com “a ida<strong>de</strong>, o t<strong>em</strong>po”,<br />

hoje ainda mora só, mas “aqui eu fico só mesmo”, afirma Bernardo.<br />

Camilo, que saiu da cida<strong>de</strong> natal para uma metrópole, para <strong>ser</strong> professor <strong>de</strong> dança<br />

cont<strong>em</strong>porânea, percorre capitais com a companhia na qual trabalha, <strong>de</strong>scobre o teatro e<br />

<strong>em</strong>preen<strong>de</strong> novas viagens artísticas, atua <strong>em</strong> artes cênicas, figurino e <strong>de</strong>signer <strong>de</strong> moda, como<br />

colunista <strong>de</strong> moda e apresentador <strong>de</strong> televisão, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que viaja por cida<strong>de</strong>s,<br />

países e continentes, ou seja, seu itinerário esquadrinha novas formas <strong>de</strong> expressão estética e<br />

artística, leva a trilhas, atalhos, linhas retas e curvas que o traz<strong>em</strong> <strong>de</strong> volta à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> orig<strong>em</strong>,<br />

281


on<strong>de</strong> reinventa o processo <strong>de</strong> criação, converte as imagens que se fixam <strong>em</strong> sua retina <strong>em</strong><br />

artes visuais que lhe proporcionam mais uma viag<strong>em</strong>, expor <strong>em</strong> outro país objetos <strong>de</strong><br />

consumo que transforma <strong>em</strong> arte “que po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> usável” (Camilo).<br />

Entre os mais novos, as viagens adquir<strong>em</strong> uma dimensão libertadora, na medida que<br />

os afastam t<strong>em</strong>porariamente da mesmice cotidiana, do trabalho repetitivo e insatisfatório, que<br />

já não traz <strong>de</strong>safios, então “po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> para longe, para perto”, explica Edson, rever a Chapada<br />

Diamantina, revisitar a Espanha ou Portugal ou então, com uma mochila nas costas, percorrer<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Colômbia, Bolívia, Argentina até o Chile, ou seja, viajar consiste <strong>em</strong> um dos<br />

“prazeres” que ele cultiva, fonte na qual renova suas energias, “parece como o cin<strong>em</strong>a<br />

funciona <strong>em</strong> mim, [...] quando estou na viag<strong>em</strong>, eu viajo mesmo, fica a coisa para trás”, ou<br />

seja, relaxa e consegue esquecer inquietações, preencher vazios e se livrar t<strong>em</strong>porariamente<br />

da rotina vivenciada no dia-a-dia.<br />

Já Gustavo não se refere a viagens, prefere se concentrar na migração para um centro<br />

urbano mais <strong>de</strong>senvolvido, aos 25 anos, “on<strong>de</strong> mu<strong>de</strong>i completamente a minha vida”,<br />

abandona a área <strong>de</strong> exatas <strong>em</strong> que trabalhava e abraça uma profissão na área <strong>de</strong> humanas, ou<br />

seja, sua viag<strong>em</strong> é impulsionada pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mudança radical, ruptura irrevogável com<br />

uma ativida<strong>de</strong> profissional “que eu não me sentia b<strong>em</strong> fazendo”. Entretanto, Dario rel<strong>em</strong>bra a<br />

ruptura com as prisões familiares e vigilância da cida<strong>de</strong> interiorana on<strong>de</strong> morava com a<br />

mudança para a capital, mas na vida adulta, diante das cobranças <strong>em</strong> torno do não-casamento,<br />

pensa <strong>em</strong> viajar e, qu<strong>em</strong> sabe, estabelecer um relacionamento duradouro, “eu tenho amigos na<br />

Europa, [...] já pedi a eles para arranjar<strong>em</strong> alguém lá, na brinca<strong>de</strong>ira, e na verda<strong>de</strong> é sério”<br />

(Dario).<br />

Para os homens na faixa etária entre 33 e 40 anos (Ivan, Hel<strong>de</strong>r, Miguel, Lauro,<br />

Flávio, Nelson e Júlio), as viagens são consi<strong>de</strong>radas como investimento que lhes assegura<br />

expansão e, ou estabilida<strong>de</strong> profissional. Júlio <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> fazer um intercâmbio <strong>de</strong> estágio e se<br />

282


<strong>de</strong>sloca para outro país, on<strong>de</strong> permanece durante seis anos, “eu fui ficando, fiz o mestrado” e,<br />

preten<strong>de</strong> retornar por mais seis meses, <strong>de</strong>sta feita através da modalida<strong>de</strong> do doutorado<br />

sandwich, enquanto Flávio concorre a uma bolsa <strong>de</strong> estudos para cursar o doutorado <strong>em</strong> um<br />

país “com a língua mais próxima à nossa” e é b<strong>em</strong>-sucedido porque “tive a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

hospedar <strong>em</strong> minha casa uma pessoa <strong>em</strong> um programa <strong>de</strong> intercâmbio”.<br />

Entre os mais novos, as viagens consist<strong>em</strong> <strong>em</strong> <strong>de</strong>slocamentos para diferentes capitais,<br />

após <strong>ser</strong><strong>em</strong> aprovados <strong>em</strong> concursos públicos que lhes asseguram estabilida<strong>de</strong> profissional, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que os afasta da vigilância da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> e da namorada, “com<br />

dinheiro na mão, morando só” (Hel<strong>de</strong>r) pela primeira vez. As viagens possibilitam a ele saciar<br />

a fome <strong>de</strong> aventuras s<strong>em</strong> amarras, “era inevitável, estava <strong>solteiro</strong>, namorava como um doido,<br />

[...] então foi aquela coisa <strong>de</strong> extravasar mesmo”, não s<strong>em</strong> antes alertar “às outras” que não<br />

criass<strong>em</strong> expectativas acerca <strong>de</strong> compromisso, pois tinha namorada fixa <strong>em</strong> sua cida<strong>de</strong>. Em<br />

suma, Hel<strong>de</strong>r reifica a cisão entre pecado e virtu<strong>de</strong> que <strong>de</strong>fine socialmente a mulher – ou se é<br />

uma coisa ou outra, santa ou puta – e, por isso, banqueteia-se com várias por mero<br />

entretenimento, enquanto a namorada, tal qual santa-mãe zelosa, aguarda pacient<strong>em</strong>ente seu<br />

retorno para se casar<strong>em</strong>.<br />

Para aqueles que ainda estudam e moram na residência dos pais, as viagens estão<br />

incluídas entre os projetos futuros, uma das coisas que preten<strong>de</strong>m fazer antes <strong>de</strong> assumir<br />

maiores responsabilida<strong>de</strong>s, ir<strong>em</strong> morar sozinhos ou constituír<strong>em</strong> suas próprias famílias. Por<br />

enquanto, explica Miguel, “vou viajar com meu pai, visitar a família”, isto é, as <strong>de</strong>spesas das<br />

viagens são custeadas pelos pais, que têm como finalida<strong>de</strong> o estreitamento dos laços<br />

familiares, principalmente quando migram <strong>de</strong> outras regiões do país, o que dificulta a<br />

convivência entre as famílias. Isso não significa, entretanto, que não se <strong>de</strong>sloqu<strong>em</strong> para<br />

cida<strong>de</strong>s e, ou capitais mais próximas nos fins <strong>de</strong> s<strong>em</strong>ana e feriados, apenas para “curtir”.<br />

283


Por outro lado, ob<strong>ser</strong>va-se que os projetos <strong>de</strong> vida dos homens estão centrados na área<br />

profissional, ainda que apresent<strong>em</strong> variações <strong>de</strong> uma geração/ida<strong>de</strong> para outra: entre os<br />

homens com ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 52 a 56 anos (Camilo, Bernardo e Abílio), o mais velho, Bernardo,<br />

preten<strong>de</strong> se <strong>de</strong>dicar a um campo menos complexo e <strong>de</strong>sgastante <strong>de</strong> sua área <strong>de</strong> formação,<br />

enquanto Camilo entrega-se por inteiro ao processo <strong>de</strong> criação artística e, planeja inaugurar<br />

um espaço cultural, on<strong>de</strong> possa integrar diferentes formas <strong>de</strong> manifestação artística, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que organiza uma exposição do seu trabalho no exterior. Já Abílio, investe há<br />

“muito t<strong>em</strong>po” na tentativa <strong>de</strong> “acertar na administração do meu negócio” e, por isso, adia<br />

outras ativida<strong>de</strong>s, inclusive o casamento, mas “eu quero casar”. Em resumo, os homens mais<br />

velhos priorizam um setor <strong>em</strong> seu estilo <strong>de</strong> vida e planos futuros: o trabalho, seja como<br />

ativida<strong>de</strong> r<strong>em</strong>unerada que lhes assegura estabilida<strong>de</strong> financeira e profissional, seja como<br />

paixão que os arrebata e mantém outros planos na espera.<br />

Na faixa etária entre 40 e 43 anos (Júlio, Gustavo, Dario e Edson), Dario, que atingiu<br />

estabilida<strong>de</strong> profissional e financeira, po<strong>de</strong> planejar a aquisição <strong>de</strong> uma proprieda<strong>de</strong> rural,<br />

on<strong>de</strong> conviva com a natureza e os animais, “apesar <strong>de</strong> eu <strong>ser</strong> da cida<strong>de</strong>”, programar uma<br />

viag<strong>em</strong> à Europa para rever amigos e ampliar o capital cultural, “mas eu pretendo me<br />

relacionar” ou seja, proprietário <strong>de</strong> bens imóveis, falta-lhe apenas a aquisição <strong>de</strong> bens afetivos<br />

– uma esposa e filhos – para cumprir o papel social re<strong>ser</strong>vado aos homens da sua ida<strong>de</strong>. Há<br />

Edson, que almeja explorar outro campo profissional, <strong>de</strong>dicar-se à docência e, para isso, t<strong>em</strong><br />

investido <strong>em</strong> cursos <strong>de</strong> especialização, <strong>em</strong>bora continue a planejar viagens nas quais se<br />

distancia da vida cotidiana e se fortalece para enfrentar novos <strong>de</strong>safios, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong><br />

que espera “voltar a ter” um relacionamento estável, ou melhor, “não <strong>de</strong>scarto” essa<br />

possibilida<strong>de</strong>. Contudo, Júlio que atua na área acadêmica e se prepara para cursar uma parte<br />

do doutorado no exterior, aspira obter estabilida<strong>de</strong> financeira e profissional, <strong>em</strong>bora <strong>de</strong>seje<br />

“talvez encontrar alguém, isso também, claro, faz parte do que eu quero para o futuro”.<br />

284


Por sua vez, os homens com ida<strong>de</strong> entre 33 e 38 anos (Ivan, Hel<strong>de</strong>r, Miguel, Lauro,<br />

Flávio, Nelson e Júlio) que alcançaram estabilida<strong>de</strong> profissional, explica Hel<strong>de</strong>r, planejam<br />

“seguir o caminho natural <strong>de</strong> todo mundo”, isto é, almejam “melhorar a condição econômica”,<br />

seja através <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> especialização ou aprovação <strong>em</strong> concursos públicos, mas também<br />

quer<strong>em</strong> se aperfeiçoar como pessoas para oferecer<strong>em</strong> segurança financeira e afetiva à família<br />

que preten<strong>de</strong>m formar, “isso já é uma forma <strong>de</strong> você per<strong>de</strong>r seu egoísmo” (Hel<strong>de</strong>r), caso<br />

encontr<strong>em</strong> uma mulher que os faça “<strong>de</strong>molir a minha meta profissional e a minha<br />

<strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> curtir a vida <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>”. Contudo, os mais jovens têm planos mais<br />

imediatos, enquanto Ivan, que é arrimo <strong>de</strong> família preten<strong>de</strong> intensificar as horas <strong>de</strong> trabalho<br />

para concluir a casa on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> com as irmãs e ter condições <strong>de</strong> adquirir um imóvel próprio,<br />

Miguel, que mora com os pais pensa “<strong>em</strong> viajar, passar um t<strong>em</strong>po fora”, conhecer outras<br />

culturas e acumular experiência <strong>de</strong> vida, “mas eu penso <strong>em</strong> casar”.<br />

Dessa forma, os estilos e projetos <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>senham a auto-i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mulheres e<br />

homens <strong>solteiro</strong>s, que ora reprisam velhos padrões <strong>de</strong> comportamento, ora esboçam novos<br />

arranjos, na tentativa <strong>de</strong> romper paradigmas. Contudo, mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s cultivam<br />

hábitos, experiências, ações e reações que se reflet<strong>em</strong> na escolha <strong>de</strong> diferentes estilos e<br />

projetos <strong>de</strong> vida, claramente <strong>em</strong>oldurados pela dualida<strong>de</strong> das inscrições <strong>de</strong> gênero. Em outros<br />

termos, os estilos e projetos <strong>de</strong> vida adotados pelas mulheres <strong>solteira</strong>s buscam protegê-las da<br />

vigilância sobre o seu corpo, exploração familiar e no trabalho, cobranças <strong>em</strong> torno do não-<br />

casamento e <strong>de</strong>scumprimento dos papéis sociais tradicionais <strong>de</strong> esposa e mãe, assim como<br />

amainar o isolamento social e solidão afetiva com a proximida<strong>de</strong> do envelhecimento.<br />

Já os homens <strong>solteiro</strong>s, apesar <strong>de</strong> <strong>ser</strong><strong>em</strong> alvo <strong>de</strong> cobranças sociais sobre o não-<br />

casamento e suspeitas relativas à sua sexualida<strong>de</strong>, são impelidos a priorizar o sucesso<br />

profissional e financeiro, o que lhes permite adiar o matrimônio, burlar o instituído e<br />

permanecer <strong>solteiro</strong>s ou planejar o matrimônio apenas como cumprimento do papel social<br />

285


esperado <strong>de</strong> um cidadão – <strong>ser</strong> cônjuge e pai, s<strong>em</strong> romanticida<strong>de</strong>. Em suma, os estilos <strong>de</strong> vida<br />

dos homens <strong>solteiro</strong>s ainda espelham os mo<strong>de</strong>los arquetípicos masculinos tradicionais<br />

associados à batalha, aventura e conquista no campo afetivo e profissional.<br />

286


6 CONCLUSÃO: REVELANDO A SOLTEIRICE EM ARACAJU E<br />

SALVADOR<br />

Neste estudo, procurei refletir sobre a solteirice f<strong>em</strong>inina e masculina, ou melhor,<br />

rever os construtos sobre a solteirice, adotando como eixo condutor as diferentes formas como<br />

mulheres e homens das classes médias conceb<strong>em</strong> e experienciam a condição <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>s. O<br />

objeto do meu estudo, portanto, foram as percepções que elaboram sobre a solteirice e suas<br />

experiências <strong>de</strong> vida, o que se mostrou um <strong>de</strong>safio na dimensão teórica, metodológica e<br />

operacional.<br />

Em primeiro lugar, <strong>de</strong>vo ressaltar que o t<strong>em</strong>a, quando mencionado às pessoas, parecia<br />

algo bizarro, s<strong>em</strong> propósito, face às profundas transformações na tessitura social e revolução<br />

do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>flagrada nas últimas décadas, o que nas mentalida<strong>de</strong>s sociais é sintetizado através<br />

<strong>de</strong> relações harmoniosas e igualitárias entre os gêneros, isto é, no reino da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> opção,<br />

que importância t<strong>em</strong> <strong>ser</strong> ou não <strong>ser</strong> <strong>solteiro</strong> (a)? Por outro lado, houve qu<strong>em</strong> acionasse os<br />

mo<strong>de</strong>los antigos e, categoricamente, inscrevesse a solteirice como uma condição exclusiva da<br />

mulher, atribuída à falta <strong>de</strong> atrativos para conquistar um marido, o que reforçava o caráter<br />

duvidoso do meu estudo. De uma forma geral, costumava ouvir argumentos que tentavam me<br />

dissuadir do que as pessoas consi<strong>de</strong>ravam uma perda <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po. Em suma, o t<strong>em</strong>a era<br />

<strong>de</strong>squalificado como objeto <strong>de</strong> pesquisa científica.<br />

Com efeito, no que se refere à bibliografia sobre o t<strong>em</strong>a, foram escassos os estudos<br />

que localizei acerca da solteirice e, ou celibato. Na França, por ex<strong>em</strong>plo, Fonseca (1989),<br />

Bourdieu (2002) e Perrot (2001) e no Brasil, Amorim (1992) e mais recent<strong>em</strong>ente Gonçalves<br />

(2007), o que confirma a pouca importância atribuída ao t<strong>em</strong>a no meio científico. As<br />

mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s pareciam relegados ao esquecimento e, dada a sua condição<br />

marginal na socieda<strong>de</strong>, optei por rastrear referências tangenciais <strong>em</strong> estudos sobre a socieda<strong>de</strong><br />

287


oci<strong>de</strong>ntal e brasileira, pesquisas sobre a mulher, artigos <strong>de</strong> revista, filmes e peças publicitárias<br />

mais recentes.<br />

Tal e qual na feitura <strong>de</strong> uma colcha <strong>de</strong> retalhos, foi preciso cerzir ponto a ponto a<br />

construção sócio-histórica da solteirice, através <strong>de</strong> alusões, referências e comentários esparsos<br />

<strong>em</strong> livros voltados para a história da família e casamento, tais como os estudos <strong>de</strong> Macfarlane<br />

(1990), Badinter (1986) e Gay (1989), Bassanezi (1996; 2000), Fáveri (1999) e Gol<strong>de</strong>nberg<br />

(1992; 2005) entre outros autores; estudos <strong>de</strong>mográficos <strong>de</strong> Berquó (1988; 1989), além <strong>de</strong><br />

romances, guias b<strong>em</strong>-humorados acerca das aventuras e <strong>de</strong>sventuras das (os) <strong>solteira</strong>s (os),<br />

como por ex<strong>em</strong>plo, Fielding (2001; 2002) e Von Atzingen e Costa (1997a; 1997b),<br />

arr<strong>em</strong>atados com visitas a comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>s do Orkut, reportagens e entrevistas<br />

publicadas <strong>em</strong> jornais e revistas comerciais que passei a colecionar. Desse modo, pu<strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificar mudanças conceituais acerca da solteirice, o surgimento <strong>de</strong> novas imagens e<br />

representações, assim como a adoção <strong>de</strong> novos comportamentos mo<strong>de</strong>lizadores pelas (os)<br />

<strong>solteira</strong>s (os) na socieda<strong>de</strong> cont<strong>em</strong>porânea, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que <strong>de</strong>tectava a permanência<br />

<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los arcaicos e estereótipos mal disfarçados que ainda envolv<strong>em</strong> a solteirice.<br />

No plano operacional, as mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s pareciam “invisíveis”, não<br />

conseguia localizá-los, mesmo tendo recorrido a um extenso sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s. Contudo, se os<br />

homens sondados por meus mediadores manifestavam indiferença <strong>em</strong> relação ao t<strong>em</strong>a e<br />

<strong>de</strong>sinteresse <strong>em</strong> prestar seu <strong>de</strong>poimento, as mulheres se mostravam arredias, <strong>de</strong>sconfiadas,<br />

mais um indício <strong>de</strong> que, para a mulher, <strong>de</strong>safiar a normativida<strong>de</strong> social instituída – o<br />

casamento e a formação <strong>de</strong> uma família –, é b<strong>em</strong> mais complexo do que as páginas <strong>de</strong> revistas<br />

e enredos fílmicos nos contam. Em outros termos, surgiam indicativos <strong>de</strong> que, na vida real, as<br />

mulheres <strong>solteira</strong>s acima <strong>de</strong> 30 anos ainda conviviam com cobranças sociais e familiares, mas<br />

também com suas próprias cobranças internas pelo não cumprimento dos papéis sociais<br />

esperados – esposa e mãe – daí porque evitavam falar sobre suas vidas.<br />

288


Conforme evi<strong>de</strong>nciei nas páginas iniciais, tomei como objeto <strong>de</strong> investigação os<br />

relatos biográficos gravados <strong>de</strong> treze mulheres e treze homens <strong>solteiro</strong>s, pertencentes às<br />

classes médias, que nunca conviveram maritalmente, na faixa etária entre 33 e 67 anos,<br />

resi<strong>de</strong>ntes <strong>em</strong> Aracaju e Salvador. Mais especificamente, pretendi <strong>de</strong>svendar suas<br />

representações e práticas sociais no campo da solteirice, expectativas relacionais e<br />

profissionais, estilos e projetos <strong>de</strong> vida. Em suma, a experiência vivida por essas mulheres e<br />

homens se tornou o foco <strong>de</strong>ste estudo.<br />

Inicialmente, procurei reparar na maneira como <strong>de</strong>steciam suas l<strong>em</strong>branças, idas e<br />

vindas nas diferentes t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong>s experimentadas, mas também como <strong>em</strong>olduravam suas<br />

histórias <strong>de</strong> vida, ora realçando <strong>de</strong>terminados aspectos <strong>em</strong> seus “calendários” pessoais<br />

(GIDDENS, 2002) ora <strong>de</strong>sviando <strong>de</strong> assuntos e, ou situações que consi<strong>de</strong>ravam<br />

particularmente incômodos. Em seguida, tentei interpretar seus <strong>de</strong>poimentos à luz do contexto<br />

sócio-histórico <strong>em</strong> que se in<strong>ser</strong><strong>em</strong>, tomando como aporte teórico as leituras realizadas sobre<br />

as transformações na tessitura social e na esfera da intimida<strong>de</strong>.<br />

Decerto, as sucessivas transformações no tecido social, principalmente nas últimas<br />

décadas, têm produzido reverberações no que tange à construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> masculina e<br />

f<strong>em</strong>inina, homens e mulheres já não são os mesmos, n<strong>em</strong> tampouco suas expectativas<br />

relacionais. Tudo indica, entretanto, que a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> homens e mulheres incorporar<strong>em</strong> novos<br />

comportamentos mo<strong>de</strong>lizadores, novas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e valores, as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e valores<br />

tradicionais permanec<strong>em</strong> redivivos, traduzindo-se numa justaposição <strong>de</strong> contrários que, longe<br />

<strong>de</strong> produzir transfigurações, subsume os velhos i<strong>de</strong>ários na ilusão i<strong>de</strong>ntificatória com o<br />

mo<strong>de</strong>rno. Dessa forma, se a imag<strong>em</strong> da (o) <strong>solteira</strong> (o) aparece associada à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

escolha, in<strong>de</strong>pendência e, sua conotação negativa se dilui diante <strong>de</strong> novos padrões <strong>de</strong><br />

conjugalida<strong>de</strong>, a formação do par e nuclearização da família persiste como mo<strong>de</strong>lo a <strong>ser</strong><br />

alcançado.<br />

289


Com efeito, os estudos realizados por autores como Gid<strong>de</strong>ns (2002) e Bauman (2004)<br />

têm se <strong>de</strong>dicado a investigar as profundas mudanças que vêm ocorrendo no processo <strong>de</strong><br />

constituição i<strong>de</strong>ntitária <strong>de</strong> mulheres e homens, assim como buscam refletir sobre a elaboração<br />

<strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> humana, diante <strong>de</strong> um mundo ambientado na incerteza e<br />

inexatidão, <strong>em</strong> que os indivíduos se vê<strong>em</strong> <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> segurança ontológica.<br />

Particularmente na esfera das relações pessoais, novos padrões <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong> e arranjos<br />

familiares são adotados, assim como “modos <strong>de</strong> comportamento e sentimento associados à<br />

vida sexual e conjugal tornaram-se móveis, instáveis e ‘abertos’. Há muito a ganhar; mas há<br />

um território inexplorado a mapear, e novos perigos a evitar” (GIDDENS, 2002, p. 19).<br />

Neste sentido, Bauman (2004, p. 23) pon<strong>de</strong>ra que o amor, <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> eternização,<br />

não oferece garantias e se torna “uma hipoteca baseada num futuro incerto e inescrutável”, ou<br />

seja, os relacionamentos se transformam <strong>em</strong> mercadorias como quaisquer outras, nas quais<br />

investimos s<strong>em</strong> a certeza <strong>de</strong> que <strong>ser</strong>ão “plenamente satisfatórias”. Em outras palavras, tanto a<br />

solidão quanto o relacionamento amoroso causam insegurança e ansieda<strong>de</strong> nos indivíduos, há<br />

consumidores pru<strong>de</strong>ntes que prefer<strong>em</strong> se abster <strong>de</strong> <strong>de</strong>cepções e permanec<strong>em</strong> sozinhos, outros<br />

que escolh<strong>em</strong> não formar uma família e ter filhos, outros tantos que tentam dosar proximida<strong>de</strong><br />

e distanciamento através <strong>de</strong> relacionamentos <strong>de</strong>scartáveis e, ou virtuais, mas exist<strong>em</strong> também<br />

aqueles que persegu<strong>em</strong> a unicida<strong>de</strong> do par, mesmo sobressaltados pela fragilida<strong>de</strong> e<br />

contingência que tramam os laços afetivos e, reprisam enredos tradicionais ou recorr<strong>em</strong> a<br />

novos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong> e arranjos para continuar<strong>em</strong> a “viver juntos”.<br />

Ob<strong>ser</strong>va-se, que tanto Gid<strong>de</strong>ns (1993; 2002) como Bauman (2004), ao estudar<strong>em</strong> as<br />

transformações da intimida<strong>de</strong> no “mundo líquido” <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong>os, focalizam a <strong>em</strong>ergência<br />

<strong>de</strong> novos padrões <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong>, a plasticização e elasticida<strong>de</strong> que mo<strong>de</strong>lam o exercício da<br />

sexualida<strong>de</strong> cont<strong>em</strong>porânea. No entanto, n<strong>em</strong> tudo que é sólido se dilui na atualida<strong>de</strong>, ou seja,<br />

suas formulações não consegu<strong>em</strong> se <strong>de</strong>sapegar <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo relacional que, <strong>de</strong> tão<br />

290


cristalizado no imaginário social, parece adquirir um caráter imanente – a formação do par,<br />

ainda que sob novas modalida<strong>de</strong>s e segundo outros códigos.<br />

Conforme Roberts (2006), <strong>em</strong> Nova Iorque, a insegurança e imprevisibilida<strong>de</strong> dos<br />

relacionamentos atuais têm contribuído para o aumento do número <strong>de</strong> casais <strong>solteiro</strong>s que<br />

conceb<strong>em</strong> a coabitação como um período <strong>em</strong> que testam sua afinida<strong>de</strong> e sinergia, antes <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>cidir<strong>em</strong> se casar, como forma <strong>de</strong> evitar o <strong>de</strong>sgaste do divórcio. Entretanto, há casais que<br />

cogitam o casamento apenas <strong>em</strong> caso <strong>de</strong> uma gravi<strong>de</strong>z, outros pares que não tencionam se<br />

casar, assim como aqueles que não se casam por solidarieda<strong>de</strong> a gays e lésbicas que são<br />

impedidos <strong>de</strong> legalizar sua união na maioria dos estados americanos. Faludi (2002), portanto,<br />

parece correta ao afirmar que o casamento e formação <strong>de</strong> uma família permanec<strong>em</strong> como<br />

mo<strong>de</strong>lo heg<strong>em</strong>ônico, apenas novos arranjos sob códigos antigos vêm sendo elaborados. Como<br />

diria Perrot (1993), esses pares rejeitam o nó, mas ainda <strong>de</strong>sejam o ninho.<br />

Por outro lado, Bárbara Whitehead, entrevistada por Trevisan (2003) constata que a<br />

solteirice t<strong>em</strong> crescido entre as mulheres resi<strong>de</strong>ntes nas metrópoles americanas, na faixa etária<br />

entre 30 e 40 anos, que são in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, cultas, liberadas sexualmente e, b<strong>em</strong>-sucedidas<br />

econômica e profissionalmente. A historiadora atribui como fator <strong>de</strong>terminante para o não-<br />

casamento o alto grau <strong>de</strong> exigência <strong>de</strong>ssas mulheres, que i<strong>de</strong>alizam um companheiro com<br />

qu<strong>em</strong> tenham <strong>em</strong>patia, compartilh<strong>em</strong> projetos, fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, respeito mútuo e apoio <strong>em</strong>ocional,<br />

ou seja, o hom<strong>em</strong> real se mostra incapaz <strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>r a suas expectativas relacionais.<br />

Segundo Whitehead, as mulheres in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e auto-suficientes parec<strong>em</strong> esquecer que, no<br />

mercado matrimonial, o hom<strong>em</strong> ainda <strong>de</strong>tém o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> escolha e, se tais exigências<br />

permanecer<strong>em</strong>, é b<strong>em</strong> provável que o número <strong>de</strong> mulheres sozinhas aumente ainda mais.<br />

Penso que as mulheres não esquec<strong>em</strong> da prerrogativa <strong>de</strong> escolha masculina no mercado<br />

matrimonial, mas como sujeitas <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>stino e, portanto, do seu <strong>de</strong>sejo, elas escolh<strong>em</strong> ficar<br />

sozinhas a se relacionar<strong>em</strong> com um parceiro que não satisfaça suas expectativas relacionais.<br />

291


Certamente, no rastro da revolução do <strong>de</strong>sejo, a conquista da liberda<strong>de</strong> sexual t<strong>em</strong><br />

possibilitado às mulheres <strong>de</strong>sfrutar<strong>em</strong> a sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma recreativa e o prazer sexual s<strong>em</strong><br />

culpas; as diferenças <strong>de</strong> papéis sexuais se tornam menos perceptíveis, mas as diferenças <strong>de</strong><br />

gênero permanec<strong>em</strong>: os homens ainda são educados para se resguardar<strong>em</strong> das <strong>em</strong>oções,<br />

exercer<strong>em</strong> controle tanto na esfera pública quanto no plano sexual (NOLASCO, 1993) e, por<br />

isso, esperam que suas parceiras, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da progressiva participação no mundo do<br />

trabalho, continu<strong>em</strong> como guardiãs dos afetos e prioriz<strong>em</strong> o cumprimento dos papéis<br />

tradicionais no espaço doméstico. No entanto, o amor no f<strong>em</strong>inino, no t<strong>em</strong>po presente, <strong>de</strong>ve<br />

<strong>ser</strong> compatível “com projetos <strong>de</strong> autonomia individual e com possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> compromisso<br />

profissional e social” (LIPOVETSKY, 2000, p. 49). Em suma, a permanência da assimetria<br />

amorosa t<strong>em</strong> provocado mais <strong>de</strong>sencontros do que encontros entre mulheres e homens<br />

<strong>solteiro</strong>s.<br />

No Brasil, autoras como Bassanezi (1996) e Fáveri (1999) ressaltam que, até meados<br />

da década <strong>de</strong> 1960, o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> e realização f<strong>em</strong>inina era alcançado por meio do<br />

casamento, formação <strong>de</strong> uma família e <strong>de</strong>dicação ao lar, ou seja, o “<strong>de</strong>stino natural” da<br />

mulher consistia <strong>em</strong> <strong>ser</strong> esposa, mãe e dona <strong>de</strong> casa. Por isso, as moças que permaneciam<br />

<strong>solteira</strong>s após os vinte e cinco anos, além <strong>de</strong> amargar<strong>em</strong> o sentimento <strong>de</strong> fracasso e<br />

incompletu<strong>de</strong> por não conseguir<strong>em</strong> conquistar um marido, tornavam-se alvo <strong>de</strong> zombaria,<br />

<strong>de</strong>scaso e eram rotuladas como “encalhadas” e “<strong>solteiro</strong>nas”. Para amenizar<strong>em</strong> a culpa por<br />

<strong>ser</strong><strong>em</strong> vistas como um estorvo para a família, uma das saídas honrosa é exercer<strong>em</strong> um<br />

trabalho r<strong>em</strong>unerado.<br />

Vale <strong>de</strong>stacar que as cobranças sociais <strong>em</strong> torno do não-casamento também atingiam o<br />

hom<strong>em</strong>, mas ao contrário da mulher, ele podia adiar o matrimônio até se sentir preparado para<br />

abdicar das liberda<strong>de</strong>s da vida <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong> e capaz <strong>de</strong> assumir as responsabilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> provedor<br />

econômico da futura família. Desse modo, aos trinta anos, o hom<strong>em</strong> ainda era consi<strong>de</strong>rado um<br />

292


“bom partido” para as jovens casadoiras e, mesmo aquele <strong>solteiro</strong> mais velho e obstinado<br />

s<strong>em</strong>pre podia mudar <strong>de</strong> idéia e escolher uma parceira, ou seja, o hom<strong>em</strong> <strong>solteiro</strong>,<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da faixa etária, não corria o risco <strong>de</strong> permanecer encalhado e, portanto, <strong>ser</strong><br />

excluído do mercado afetivo.<br />

Des<strong>de</strong> meados da década <strong>de</strong> 1960, a revolução contracultural, os movimentos<br />

<strong>em</strong>ancipatórios f<strong>em</strong>inistas, a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> novos métodos contraceptivos e a difusão da<br />

psicanálise produz<strong>em</strong> mudanças comportamentais, particularmente entre as classes médias.<br />

As mulheres ingressam nas universida<strong>de</strong>s, ampliam sua participação no mercado <strong>de</strong> trabalho e<br />

lutam por igualda<strong>de</strong> na dimensão pública e privada, b<strong>em</strong> como protestam contra a<br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> entre os sexos e a dupla moral sexual que até então regia as condutas <strong>de</strong><br />

mulheres e homens; surge o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> uma nova mulher, livre e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, autônoma,<br />

senhora <strong>de</strong> seu corpo e <strong>de</strong>sejos, supostamente dissociada dos papéis tradicionais <strong>de</strong> esposa-<br />

mãe.<br />

As mudanças valorativas também ating<strong>em</strong> o namoro que já não se configura <strong>em</strong><br />

compromisso <strong>de</strong>cisivo para o casamento e se torna mero ensaio do qual os pares entram e<br />

sa<strong>em</strong> na tentativa <strong>de</strong> reconhecer afinida<strong>de</strong>s eletivas; a experimentação do amor se liberta <strong>de</strong><br />

amarras contratuais e novos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> conjugalida<strong>de</strong> são inventados, os casamentos se<br />

tornam “abertos”, as famílias passam a conviver sob bases igualitárias, casais vivenciam uma<br />

gravi<strong>de</strong>z simbiótica, compartilham as tarefas domésticas e a educação dos filhos, assim como<br />

mulheres escolh<strong>em</strong> ter filhos através <strong>de</strong> “produção in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte” e o amor homossexual, que<br />

até então se mantinha inconfesso, <strong>de</strong>safia o preconceito. Isso não significa que os mo<strong>de</strong>los<br />

tradicionais tenham sido abolidos totalmente, a i<strong>de</strong>ologia patriarcal ainda or<strong>de</strong>na a construção<br />

i<strong>de</strong>ntitária do “macho” brasileiro, contribuindo para que as relações <strong>de</strong> gênero permaneçam<br />

assimétricas entre os casais (SARDENBERG, 1997).<br />

293


Por outro lado, Berquó (1989) argumenta que o movimento f<strong>em</strong>inista, ao incitar a luta<br />

por direitos iguais e auto-realização f<strong>em</strong>inina provoca mudanças no tocante à vivificação do<br />

<strong>de</strong>sejo e nas <strong>de</strong>cisões relativas à celebração e término <strong>de</strong> uniões conjugais, o que repercute na<br />

ida<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rada i<strong>de</strong>al para mulheres e homens contraír<strong>em</strong> matrimônio, no padrão <strong>de</strong><br />

conjugalida<strong>de</strong> adotado, na durabilida<strong>de</strong> da relação conjugal, na separação, recasamento ou<br />

não, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que influencia o celibato.<br />

De fato, a autora constata um aumento da ida<strong>de</strong> para início da vida conjugal, entre as<br />

mulheres, o que po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> atribuído tanto à expansão da escolarida<strong>de</strong> quanto ao investimento<br />

na carreira profissional, mas l<strong>em</strong>bra que, gradativamente, após os trinta anos, diminu<strong>em</strong> as<br />

chances f<strong>em</strong>ininas no mercado afetivo e, a partir dos cinqüenta anos, a probabilida<strong>de</strong> da<br />

mulher encontrar um parceiro é quase inexistente, o que não acontece com o hom<strong>em</strong>, cuja<br />

dinâmica para celebração ou ruptura <strong>de</strong> uniões conjugais não é condicionada pela faixa etária.<br />

Em suma, enquanto as oportunida<strong>de</strong>s para a mulher diminu<strong>em</strong> com o passar dos anos, as<br />

possibilida<strong>de</strong>s do hom<strong>em</strong> aumentam, o que reitera a assimetria no mercado matrimonial.<br />

Todavia, não é apenas o avanço da ida<strong>de</strong> que afeta a solteirice das mulheres nas<br />

classes médias. Tanto os estudos <strong>de</strong>senvolvidos por Gol<strong>de</strong>nberg (1992, 2005) e Diehl (2002)<br />

como reportagens publicadas <strong>em</strong> jornais e revistas comerciais por Zaidan e Chaves (2003),<br />

Almeida e Oliveira (2005) e Moherdaui (2006) indicam que apesar <strong>de</strong> priorizar<strong>em</strong> a<br />

realização profissional, in<strong>de</strong>pendência econômica, aquisição <strong>de</strong> um patrimônio e b<strong>em</strong>-estar<br />

físico e <strong>em</strong>ocional, essas mulheres ainda <strong>de</strong>sejam um “hom<strong>em</strong> pra chamar <strong>de</strong> seu”, mas<br />

parec<strong>em</strong> propensas a permanecer sozinhas porque os homens não consegu<strong>em</strong> correspon<strong>de</strong>r a<br />

suas expectativas e exigências. Em outras palavras, enquanto as mulheres esperam encontrar<br />

um “príncipe encantado” travestido <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, companheiro e cúmplice <strong>em</strong> estilos e<br />

projetos <strong>de</strong> vida, que as satisfaça sexualmente, mas também as proteja nos momentos <strong>de</strong><br />

vicissitu<strong>de</strong>, os homens se intimidam diante da autonomia, in<strong>de</strong>pendência e liberação sexual<br />

294


f<strong>em</strong>ininas. O que t<strong>em</strong> gerado <strong>de</strong>scompasso na dança a dois. O fato é que, escolhida ou<br />

forçada, a solteirice t<strong>em</strong> atingido <strong>em</strong> maior proporção as mulheres acima dos trinta anos, pois<br />

quanto maior o grau <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong>, qualificação e sucesso profissional, menor a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atrair um parceiro amoroso.<br />

Com efeito, ao <strong>de</strong>bruçar-me sobre as narrativas das mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s<br />

investigados, pu<strong>de</strong> verificar que suas percepções sobre a solteirice e experiências <strong>de</strong> vida são<br />

elaboradas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o processo <strong>de</strong> socialização, no qual as marcas <strong>de</strong> gênero <strong>de</strong>terminam a<br />

aprendizag<strong>em</strong> dos afetos e orientam a i<strong>de</strong>alização <strong>de</strong> projetos futuros no âmbito pessoal e<br />

profissional. Há <strong>de</strong> se ob<strong>ser</strong>var, entretanto, que no contexto social e familiar as relações <strong>de</strong><br />

gênero são atravessadas pela geração, raça e classe social a que pertence cada indivíduo, mas<br />

também pelos valores vigentes na localida<strong>de</strong> <strong>em</strong> que nasc<strong>em</strong> ou resi<strong>de</strong>m, o que leva essas<br />

mulheres e homens a assumir<strong>em</strong> atitu<strong>de</strong>s ora <strong>de</strong> conformismo, ora <strong>de</strong> resistência no tocante<br />

aos referenciais valorativos e padrões <strong>de</strong> comportamento aprendidos.<br />

Pu<strong>de</strong> constatar que, apesar da diferença com relação à <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> populacional e<br />

expansão urbana, tanto Aracaju como Salvador usam “régua e compasso” para <strong>de</strong>marcar os<br />

espaços por on<strong>de</strong> transitam e interag<strong>em</strong> os <strong>solteiro</strong>s das classes médias. As trilhas urbanas não<br />

re<strong>ser</strong>vam surpresas, os circuitos <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> não se renovam, o que gera um sentimento<br />

<strong>de</strong> abandono, ressentimento <strong>em</strong> relação às cida<strong>de</strong>s que lhes impõ<strong>em</strong> uma paisag<strong>em</strong> monótona,<br />

<strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> atrativos, com “uma ‘pluralida<strong>de</strong>’ <strong>de</strong> sujeitos e lugares isolados, encerrados <strong>em</strong><br />

si mesmos” (CARDOSO, 2007, p. 49). Vale <strong>de</strong>stacar, entretanto, as gerações mais novas<br />

consegu<strong>em</strong> atenuar a <strong>de</strong>ssintonia com os espaços <strong>de</strong> recreação ancoradas na re<strong>de</strong> <strong>de</strong> amigos.<br />

Já a proximida<strong>de</strong> da chamada “meia-ida<strong>de</strong>” impele as (os) <strong>solteira</strong>s (os) a viajar<strong>em</strong> para outras<br />

capitais e países, uma vez que a cronologia das suas cida<strong>de</strong>s está centrada nas gerações mais<br />

novas. Em suma, Aracaju e Salvador não oferec<strong>em</strong> circuitos <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> que cont<strong>em</strong>pl<strong>em</strong><br />

as necessida<strong>de</strong>s e aspirações das pessoas com ida<strong>de</strong> acima dos cinqüenta anos.<br />

295


As mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s <strong>de</strong> Aracaju e Salvador apresentam alguns<br />

comportamentos convergentes com aqueles i<strong>de</strong>ntificados <strong>em</strong> estudos sobre as classes médias<br />

<strong>de</strong> centros urbanos mais avançados e também tentam se basear <strong>em</strong> valores mo<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> cunho<br />

marcadamente individualista. No entanto, conviv<strong>em</strong> mais fort<strong>em</strong>ente com uma<br />

simultaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> valores con<strong>ser</strong>vadores que, cerceia seus ensaios libertários e a adoção <strong>de</strong><br />

novos comportamentos mo<strong>de</strong>lizadores, ou seja, o i<strong>de</strong>ário patriarcalista permanece subjacente<br />

nas relações familiares e trama os referenciais valorativos que conduz<strong>em</strong> as relações <strong>de</strong><br />

gênero entre as classes médias <strong>de</strong> Aracaju e Salvador.<br />

Portanto, ao contrário do que supunha quando iniciei este estudo, Aracaju e Salvador<br />

guardam muito mais proximida<strong>de</strong>s do que distâncias <strong>em</strong> relação à forma como a solteirice é<br />

pensada e vivida pelas mulheres e homens das classes médias investigados, <strong>em</strong>bora isso não<br />

signifique que essas marcações são inflexíveis. Ao contrário, elas acolh<strong>em</strong> novos mo<strong>de</strong>los e<br />

engendram reconfigurações, <strong>de</strong> forma a cont<strong>em</strong>plar as mudanças gestadas pelas relações entre<br />

os gêneros e as gerações. Senão, vejamos:<br />

O enredo familiar, <strong>de</strong>senhado pelo relacionamento entre pais e filhos e, pela educação<br />

recebida no espaço doméstico <strong>de</strong>terminam as escolhas <strong>de</strong> mulheres e homens no tocante à<br />

vida afetiva e profissional. Se para a geração mais velha, a aprendizag<strong>em</strong> dos afetos é<br />

<strong>de</strong>senhada pelos papéis assimétricos encenados pelos pais, a geração mais nova convive com<br />

relações <strong>de</strong> gênero mais <strong>de</strong>mocráticas, maior afetivida<strong>de</strong> entre os casais, o que trama<br />

diferentes trajetórias <strong>de</strong> vida. Dessa forma, as mulheres e homens engendram alternativas para<br />

fugir dos mo<strong>de</strong>los consuetudinários, enquanto as primeiras rejeitam a passivida<strong>de</strong> inscrita no<br />

casamento e maternida<strong>de</strong>, os últimos repudiam a automatização do trabalho revestida <strong>de</strong><br />

obrigatorieda<strong>de</strong>. Em suma, a revolução das mulheres t<strong>em</strong> início na esfera pública e se<br />

expan<strong>de</strong> no espaço doméstico. Já os homens prefer<strong>em</strong> direcionar sua rebelião para a dimensão<br />

296


pública e pessoal, mas s<strong>em</strong> questionar a dicotomia dos gêneros e diferenciação entre os sexos<br />

calcada na fisicalida<strong>de</strong>.<br />

Entre uma geração e outra, o trabalho assalariado adquire diferentes significados para<br />

o universo f<strong>em</strong>inino. Entre as mulheres mais velhas, o trabalho r<strong>em</strong>unerado e <strong>de</strong>dicação a<br />

uma carreira profissional consist<strong>em</strong> <strong>em</strong> alternativa para fugir<strong>em</strong> dos papéis instituídos –<br />

esposa, mãe e dona <strong>de</strong> casa, na medida <strong>em</strong> que a in<strong>de</strong>pendência financeira e autonomia<br />

afastam possíveis candidatos a marido. Ou seja, as conquistas são percebidas como<br />

mecanismos libertadores para a regência <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>stinos, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

contribu<strong>em</strong> para amenizar as cobranças familiares e sociais <strong>em</strong> torno do não-casamento.<br />

Certamente, há exceções, mulheres que reconhec<strong>em</strong> a segurança econômica adquirida através<br />

do trabalho, mas cujo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong> se encontra aprisionado aos mol<strong>de</strong>s tradicionais<br />

e, por isso, prefer<strong>em</strong> o espaço privado ao espaço público.<br />

Para as novas gerações <strong>de</strong> mulheres, os dispositivos <strong>de</strong> socialização engendram novos<br />

mo<strong>de</strong>los e padrões <strong>de</strong> comportamento, no tocante à <strong>de</strong>ss<strong>em</strong>elhança das posições <strong>de</strong> gênero:<br />

educadas para não seguir<strong>em</strong> os passos maternos, menosprezam as prendas domésticas e<br />

invest<strong>em</strong> nos estudos e na expansão profissional. O trabalho se transforma <strong>em</strong> i<strong>de</strong>al<br />

i<strong>de</strong>ntitário, espaço <strong>de</strong> realização pessoal e profissional, através do qual as mulheres alcançam<br />

autonomia, in<strong>de</strong>pendência <strong>em</strong>ocional e financeira. Em resumo, as conquistas profissionais são<br />

enaltecidas, a realização pessoal está condicionada ao sucesso e reconhecimento profissional,<br />

mas isso não implica que a dimensão afetiva seja subestimada, apenas já não <strong>de</strong>tém<br />

exclusivida<strong>de</strong> para dar sentido às suas vidas.<br />

O trabalho continua a assumir centralida<strong>de</strong> na construção i<strong>de</strong>ntitária dos homens, mas<br />

o sentido que lhe é atribuído apresenta variações entre uma geração e outra. A lógica<br />

contracultural <strong>de</strong>fine a relação dos homens que vivenciaram os “anos Rebel<strong>de</strong>s” com o<br />

trabalho, rebelam-se contra horários, regras e or<strong>de</strong>ns, ou seja, contestam a automatização, a<br />

297


urocracia e hierarquização presente no ambiente institucionalizado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a escolha<br />

profissional lhes permita manter o status e estilo <strong>de</strong> vida a que estão condicionados como<br />

m<strong>em</strong>bros das classes médias.<br />

Os her<strong>de</strong>iros da contracultura, mais pru<strong>de</strong>ntes e disciplinados, ensaiam outras formas<br />

<strong>de</strong> resistência, suas pequenas transgressões não ameaçam os valores vigentes n<strong>em</strong> os expõ<strong>em</strong><br />

a riscos ou imprevidência: exerc<strong>em</strong> <strong>em</strong>pregos públicos que lhes asseguram estabilida<strong>de</strong><br />

econômica, cujas ativida<strong>de</strong>s repetitivas são intercaladas por períodos <strong>de</strong> folga <strong>em</strong> que<br />

encenam um estilo <strong>de</strong> vida alternativo <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po parcial.<br />

Já os homens mais jovens, instados pela competitivida<strong>de</strong> do mercado e ameaça<br />

constante <strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>em</strong>prego, canalizam seus esforços <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po integral para os estudos e<br />

expansão profissional. Em suas trajetórias <strong>de</strong> vida, portanto, o conformismo se instala e não<br />

há lugar para resistência aos referenciais i<strong>de</strong>ntitários masculinos centrados na esfera<br />

profissional. Por essa razão, ao contrário das mulheres, os homens continuam a negligenciar a<br />

dimensão afetiva, uma vez que sua realização pessoal está condicionada à aprovação <strong>em</strong><br />

concursos públicos, que lhes asseguram estabilida<strong>de</strong>, in<strong>de</strong>pendência financeira e mobilida<strong>de</strong><br />

social.<br />

As percepções das mulheres e homens acerca da solteirice espelham as diferenças <strong>de</strong><br />

gênero que ainda tramam formas <strong>de</strong> pensar, sentir, mas também expectativas sociais<br />

divergentes <strong>em</strong> relação às suas trajetórias e comportamentos: as mulheres mais velhas<br />

resgatam nos escon<strong>de</strong>rijos da m<strong>em</strong>ória explicações para a solteirice e se rebelam contra as<br />

cobranças sociais e familiares <strong>em</strong> torno do não-casamento, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

procuram <strong>de</strong>sconstruir as estereotipias e rótulos que a acompanham na vida social. Essas<br />

mulheres <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> a solteirice como uma opção, um estado <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, porque vão para on<strong>de</strong><br />

e com qu<strong>em</strong> quer<strong>em</strong>, não <strong>de</strong>v<strong>em</strong> satisfação a ninguém. No entanto, algumas mulheres<br />

298


investigadas conceb<strong>em</strong> a solteirice como uma circunstância que, qu<strong>em</strong> sabe, po<strong>de</strong> <strong>ser</strong><br />

revertida, ou seja, ainda nutr<strong>em</strong> a expectativa <strong>de</strong> encontrar<strong>em</strong> um parceiro amoroso.<br />

As mulheres mais jovens também prefer<strong>em</strong> permanecer <strong>solteira</strong>s a ter<strong>em</strong> que<br />

reproduzir os velhos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência e submissão f<strong>em</strong>ininas para conquistar<strong>em</strong> um<br />

parceiro e, neutralizam as cobranças familiares e sociais, assim como alusões sobre sua<br />

orientação sexual através do convívio com amigas (os) também <strong>solteira</strong>s (os). Isso não<br />

significa que não sintam solidão <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminados momentos, question<strong>em</strong> as razões <strong>de</strong> sua<br />

solteirice, o porquê da in<strong>de</strong>pendência e autonomia f<strong>em</strong>inina ainda afastar possíveis parceiros,<br />

mas apesar disso, apostam na busca da felicida<strong>de</strong> e auto-realização, agora sozinhas e, qu<strong>em</strong><br />

sabe, mais adiante, b<strong>em</strong>-acompanhadas.<br />

Os homens mais velhos, ao contrário das mulheres, menosprezam e, ou relativizam as<br />

cobranças sociais e familiares, b<strong>em</strong> como suspeitas mal dissimuladas acerca <strong>de</strong> sua<br />

sexualida<strong>de</strong>. Vale <strong>de</strong>stacar que, enquanto a solteirice é circunstancial para os homens que<br />

simbolizam a heterossexualida<strong>de</strong> compulsória ou prefer<strong>em</strong> evi<strong>de</strong>nciar a plasticida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que se<br />

reveste o <strong>de</strong>sejo cont<strong>em</strong>porâneo, para o hom<strong>em</strong> que se <strong>de</strong>fine como homossexual a solteirice é<br />

racionalizada, alternativa escolhida com a intenção <strong>de</strong> pre<strong>ser</strong>var sua privacida<strong>de</strong> e liberda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ir e vir. Contudo, tanto uns quanto outros anunciam como aspecto negativo da solteirice a<br />

<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, <strong>de</strong>sorganização do espaço doméstico, fruto da “inaptidão” masculina para as<br />

prendas do lar, fabricada pelos dispositivos <strong>de</strong> socialização mo<strong>de</strong>ladores dos antagonismos <strong>de</strong><br />

gênero.<br />

Entre os homens mais novos, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e b<strong>em</strong>-sucedidos na profissão, assim<br />

como acontece com as mulheres, a proximida<strong>de</strong> dos quarenta anos torna as cobranças sociais<br />

relativas ao não-casamento mais incisivas e surg<strong>em</strong> ilações sobre sua sexualida<strong>de</strong>. No entanto,<br />

sent<strong>em</strong>-se <strong>de</strong>sconfortáveis e incompetentes não por estar<strong>em</strong> <strong>solteiro</strong>s, mas <strong>de</strong>vido a se<br />

questionar<strong>em</strong> sobre sua própria capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conquista. Diferent<strong>em</strong>ente das mulheres, os<br />

299


homens não se opõ<strong>em</strong> aos mo<strong>de</strong>los instituídos – o casamento e constituição <strong>de</strong> uma família –,<br />

prefer<strong>em</strong> se enquadrar e recorr<strong>em</strong> a terapias ou métodos alternativos <strong>de</strong> forma a reverter<strong>em</strong><br />

sua inaptidão para assumir<strong>em</strong> relacionamentos duradouros. Certamente, há exceções<br />

provocadas pelo histórico familiar e pela instabilida<strong>de</strong> do mundo mo<strong>de</strong>rno que, inib<strong>em</strong> o<br />

hom<strong>em</strong> a assumir compromissos e responsabilida<strong>de</strong>s irrevogáveis como a paternida<strong>de</strong>, o que<br />

torna a solteirice uma opção <strong>de</strong> vida.<br />

Com relação à dinâmica dos afetos, a primeira experiência sexual é l<strong>em</strong>brada pelas<br />

mulheres investigadas como momento <strong>de</strong> revelação do <strong>de</strong>sejo e da sexualida<strong>de</strong>, até então<br />

<strong>de</strong>sconhecida. Para as mulheres mais velhas, o início da vida sexual po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> consi<strong>de</strong>rado<br />

precoce ou tardio, na faixa etária entre <strong>de</strong>zoito e quarenta e seis anos, mas também po<strong>de</strong> não<br />

acontecer, isto é, a educação castradora inibe o <strong>de</strong>sejo e reprime o exercício da sexualida<strong>de</strong>, a<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da maior ou menor absorção dos i<strong>de</strong>ais revolucionários e <strong>em</strong>ancipatórios <strong>de</strong>fendidos<br />

a partir da década <strong>de</strong> 1960.<br />

Entre as mulheres mais jovens, a primeira experiência íntima acontece com namorados<br />

ou amigos, com qu<strong>em</strong> compartilham o aprendizado do prazer sexual <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>sinibida, s<strong>em</strong><br />

a obrigatorieda<strong>de</strong> do casamento. Por outro lado, o tabu da virginda<strong>de</strong> é reeditado às avessas e<br />

ocorre uma diminuição da ida<strong>de</strong> com que as mulheres iniciam a vida sexual, classificada<br />

como tardia aos <strong>de</strong>zenove anos, ou seja, a jov<strong>em</strong> que permanece virg<strong>em</strong> após essa ida<strong>de</strong> se<br />

torna alvo <strong>de</strong> especulações. Em suma, se nas gerações anteriores as mulheres ocultavam o<br />

início da vida sexual, nas gerações atuais a mulher <strong>de</strong>ve camuflar a contenção sexual,<br />

escolhida ou aci<strong>de</strong>ntal. De uma forma ou <strong>de</strong> outra, as mulheres não têm livre arbítrio para<br />

<strong>de</strong>cidir<strong>em</strong> sobre o início <strong>de</strong> sua vida sexual, pois o t<strong>em</strong>po é <strong>de</strong>terminado pela dimensão social<br />

e não escolha pessoal<br />

A iniciação sexual masculina reafirma o antagonismo <strong>de</strong> gênero e o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

virilida<strong>de</strong> brasileiro, <strong>em</strong>bora apresente variações entre uma geração e outra: Entre os homens<br />

300


mais velhos, o ingresso na vida sexual ocorre <strong>em</strong> bordéis, uma vez que os dispositivos<br />

socializatórios estimulam a experimentação precoce da sexualida<strong>de</strong> e varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> parceiras<br />

sexuais como forma <strong>de</strong>les comprovar<strong>em</strong> a atitu<strong>de</strong> viril e aprimorar<strong>em</strong> o <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho sexual.<br />

Todavia, os homens que tiveram uma educação liberal e, ou <strong>de</strong>sfrutaram da liberda<strong>de</strong><br />

sexual conquistada com a revolução do <strong>de</strong>sejo na década <strong>de</strong> 1970, ao contrário das mulheres,<br />

prefer<strong>em</strong> silenciar sobre sua intimida<strong>de</strong>, seja porque a primeira experiência íntima, ao<br />

contrário da mulher, não se torna especial, é igual a tantas outras, seja porque a prática<br />

homossexual ainda persiste como comportamento <strong>de</strong>sviante frente a heterossexualida<strong>de</strong><br />

compulsória.<br />

Para os homens mais novos, nascidos <strong>em</strong> cida<strong>de</strong>s interioranas e centros urbanos menos<br />

<strong>de</strong>senvolvidos, a iniciação sexual começa por volta dos 16 anos, <strong>em</strong> prostíbulos ou com<br />

garotas “mais avançadas” oriundas <strong>de</strong> metrópoles. Nas capitais mais cosmopolitas, surge uma<br />

mudança <strong>de</strong> cenário e <strong>de</strong> protagonistas, ou seja, o ingresso na vida sexual dos rapazes <strong>de</strong><br />

classes médias acontece com <strong>em</strong>pregadas domésticas. Contudo, há exceções, adolescentes<br />

que, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma educação mais liberal, têm a primeira experiência íntima com a<br />

namorada da mesma ida<strong>de</strong>, com qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>scobr<strong>em</strong> a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fundir sexo e afetivida<strong>de</strong>.<br />

No tocante às experiências sexuais, as mulheres mais velhas <strong>de</strong>scortinam novas<br />

possibilida<strong>de</strong>s do <strong>de</strong>sejo com a revolução sexual e constro<strong>em</strong> diferentes enredos, na exata<br />

medida da sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transgredir os padrões instituídos. No entanto, cabe ressaltar que<br />

essas mulheres não conceb<strong>em</strong> o sexo s<strong>em</strong> afetivida<strong>de</strong>, prefer<strong>em</strong> a solidão afetiva do que<br />

transitar<strong>em</strong> por relacionamentos sexuais <strong>de</strong>scartáveis, cujo gozo efêmero revela a vacuida<strong>de</strong><br />

do encontro.<br />

Certamente, a mulher s<strong>em</strong> par po<strong>de</strong> se relacionar com homens casados, <strong>de</strong>spertar o<br />

interesse <strong>de</strong> homens mais jovens ou <strong>de</strong>scartar homens mais velhos por se sentir atraída pelos<br />

mais jovens, mas as <strong>de</strong>ssintonias favorec<strong>em</strong> o <strong>de</strong>sencontro. Se uns não po<strong>de</strong>m oferecer<br />

301


<strong>de</strong>dicação e companhia <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po integral, outros possu<strong>em</strong> gostos, estilos e projetos <strong>de</strong> vida<br />

diferentes dos seus e, com os últimos, a tentativa <strong>de</strong> vivenciar aventuras sexuais<br />

<strong>de</strong>scompromissadas resulta <strong>em</strong> <strong>de</strong>sapontamento, na medida <strong>em</strong> que a mulher não consegue<br />

lidar com a dissensão entre sexo e afeto.<br />

Por isso, a solitu<strong>de</strong> parece acenar para as mulheres mais velhas, principalmente<br />

quando chegam aos cinqüenta anos s<strong>em</strong> um parceiro fixo, pois já não atra<strong>em</strong> os olhares<br />

cobiçosos dos homens. Além do <strong>de</strong>clínio físico e perda da capacida<strong>de</strong> procriativa, o<br />

fenecimento da juventu<strong>de</strong> as exclui do mercado amoroso, o que afeta sua auto-estima e<br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia momentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão, principalmente com a aposentadoria, quando se<br />

confrontam com a inativida<strong>de</strong> na esfera pública e privada, isto é, no trabalho, na casa e na<br />

cama.<br />

Entre as mulheres mais jovens, a ida<strong>de</strong> favorece as chances no mercado amoroso, mas<br />

os critérios eletivos têm afastado possíveis parceiros, uma vez que <strong>de</strong>sejam um hom<strong>em</strong> com<br />

qu<strong>em</strong> tenham afinida<strong>de</strong> intelectual e sexual, estilos e projetos <strong>de</strong> vida s<strong>em</strong>elhantes. Em outras<br />

palavras, prefer<strong>em</strong> permanecer sozinhas do que “mal-acompanhadas”, <strong>em</strong>bora estejam atentas<br />

para o <strong>de</strong>clínio da capacida<strong>de</strong> procriativa com a proximida<strong>de</strong> dos quarenta anos e acalent<strong>em</strong> o<br />

sonho <strong>de</strong> encontrar um parceiro e formar sua própria família. O certo é que quando estão s<strong>em</strong><br />

parceiro sexual, tanto as mulheres mais velhas como as mais jovens apelam para a companhia<br />

<strong>de</strong> amigas (os), ensaiam fórmulas para sublimar o <strong>de</strong>sejo e somente as mais liberadas<br />

recorr<strong>em</strong> à masturbação quando assaltadas pelo <strong>de</strong>sejo.<br />

Por sua vez, a experiência sexual masculina reafirma a assimetria sexual dos papéis<br />

afetivos, ainda que novos passos sejam ensaiados na dança erótico-amorosa: Os homens mais<br />

velhos, <strong>em</strong>bora já não possuam o mesmo apetite sexual da juventu<strong>de</strong>, caso o <strong>de</strong>sejo os<br />

instigue, raramente apelam para a masturbação, pois <strong>de</strong>sfrutam prazeres eventuais com<br />

amigas. A vida sexual também per<strong>de</strong> a intensida<strong>de</strong> para o hom<strong>em</strong> homossexual, <strong>em</strong>bora por<br />

302


outras razões, a chamada meia-ida<strong>de</strong> lhe rouba o po<strong>de</strong>r sedutivo e, não há mais paixões n<strong>em</strong><br />

varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> parceiros sexuais. Desse modo, escolhe aplacar o <strong>de</strong>sejo através do prazer<br />

solitário da masturbação e, canaliza os afetos para amigos (as) com qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> afinida<strong>de</strong>s.<br />

Já os homens mais novos, apesar <strong>de</strong> verbalizar<strong>em</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> afeto, amiza<strong>de</strong> e<br />

cumplicida<strong>de</strong> <strong>em</strong> seus relacionamentos, não consegu<strong>em</strong> se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r dos mo<strong>de</strong>los<br />

arquetípicos tradicionais: prefer<strong>em</strong> ter experiências íntimas com as namoradas, porque há<br />

troca <strong>de</strong> carinho, respeito e ternura, mas não se privam da diversão adicional com “amigas”,<br />

com qu<strong>em</strong> os <strong>de</strong>sejos sexuais são liberados s<strong>em</strong> censura e não há envolvimento sentimental.<br />

Em outros termos, os valores mo<strong>de</strong>rnos acolh<strong>em</strong> os mol<strong>de</strong>s arcaicos (FIGUEIRA, 1985), a<br />

namorada ainda é concebida como uma moça <strong>de</strong> família casadoira e a outra como uma garota<br />

mais permissiva, com a qual a diversão se esten<strong>de</strong> para uma amiza<strong>de</strong> que po<strong>de</strong> até persistir<br />

por <strong>de</strong>terminado t<strong>em</strong>po, mas se torna <strong>de</strong>scartável, caso a parceira sexual <strong>em</strong>ita sinais <strong>de</strong> que<br />

<strong>de</strong>seja um compromisso.<br />

Quando estão s<strong>em</strong> namorada fixa, os homens recorr<strong>em</strong> esporadicamente à<br />

masturbação, uma vez que contam com a disponibilida<strong>de</strong> das amigas, <strong>em</strong>bora não <strong>de</strong>ix<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

exercitar a varieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> relações casuais com mulheres que conhec<strong>em</strong> <strong>em</strong> bares e festas ou<br />

nas salas <strong>de</strong> bate-papo virtuais, cujo corpo é transformado <strong>em</strong> mercadoria que experimentam<br />

s<strong>em</strong> a obrigatorieda<strong>de</strong> da compra. De forma real ou virtual, no âmbito do <strong>de</strong>sejo, o hom<strong>em</strong> se<br />

relaciona sexualmente com uma mulher universal, ou melhor, com qualquer mulher, amigas,<br />

ficantes ou estranhas íntimas s<strong>em</strong> rosto, tanto faz, porque ainda usa os genitais como únicos<br />

agentes <strong>de</strong> carícia no bailado erótico.<br />

Por outro lado, a dinâmica da vida sexual masculina t<strong>em</strong> sido atingida pela<br />

in<strong>de</strong>pendência, autonomia e liberação sexual ensaiada pelas mulheres, o hom<strong>em</strong> ainda<br />

i<strong>de</strong>aliza a mulher como objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo e, confrontado com a inversão <strong>de</strong> papéis, sente-se<br />

frágil e inseguro. Em outras palavras, as mulheres in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e liberadas sexualmente<br />

303


ameaçam o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> masculinida<strong>de</strong> calcado na atitu<strong>de</strong> viril e <strong>de</strong>sapego pelos sentimentos,<br />

pois essas mulheres <strong>de</strong>snaturalizam a oposição <strong>de</strong>terminante das relações sociais entre os<br />

sexos, <strong>em</strong> que a dominação e controle masculinos se efetivam a partir da subordinação e<br />

passivida<strong>de</strong> f<strong>em</strong>ininas.<br />

Todavia, se os homens mais jovens ainda reificam a disjunção entre sexo e<br />

sentimentos, não se sent<strong>em</strong> intimidados com a iniciativa sexual f<strong>em</strong>inina, pois enten<strong>de</strong>m que<br />

o <strong>de</strong>sejo é inerente a ambos os sexos, <strong>em</strong>bora não consigam lidar com a in<strong>de</strong>pendência<br />

financeira da mulher que se torna o principal impeditivo para formação do casal, uma vez que<br />

o seu papel <strong>de</strong> provedor econômico do grupo familiar é usurpado pela mulher. De uma forma<br />

ou <strong>de</strong> outra, os homens enfrentam uma sensação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconforto diante do <strong>de</strong>sapossamento da<br />

condição <strong>de</strong> sujeitos e, receosos <strong>de</strong> <strong>ser</strong><strong>em</strong> transformados <strong>em</strong> objetos pelas mulheres,<br />

advert<strong>em</strong>: Eles ainda têm a prerrogativa <strong>de</strong> escolha no mercado amoroso e, se as mulheres não<br />

se tornar<strong>em</strong> mais con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, <strong>ser</strong>ão con<strong>de</strong>nadas à solidão afetiva.<br />

Com efeito, no imaginário social, o não-casamento das mulheres permanece<br />

inaceitável, o que repercute na convivência familiar. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da faixa etária, a conquista<br />

da estabilida<strong>de</strong> financeira não assegura in<strong>de</strong>pendência <strong>em</strong>ocional e, as mulheres <strong>solteira</strong>s,<br />

mesmo morando <strong>em</strong> suas próprias casas, tomam para si a obrigação <strong>de</strong> cuidar<strong>em</strong> dos pais<br />

idosos e doentes da família, assim como são pressionadas pelo grupo familiar, o que gera<br />

sentimentos <strong>de</strong> angústia, <strong>de</strong>pressão e culpa por se sentir<strong>em</strong> exploradas, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong><br />

que procuram relativizar a omissão dos outros filhos. Caso estejam aposentadas e não<br />

exerçam ativida<strong>de</strong>s laborais, a <strong>de</strong>dicação a pais, irmãos e sobrinhos <strong>ser</strong>ve para preencher as<br />

horas vazias, amenizar a solidão afetiva. Contudo, para as mulheres que moram <strong>em</strong> sua<br />

própria residência e não têm pais vivos, a vida <strong>de</strong> <strong>solteira</strong> possibilita a experimentação <strong>de</strong> uma<br />

“liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero” (BRITO DA MOTTA, 1999), na medida <strong>em</strong> que reg<strong>em</strong> seu <strong>de</strong>stino<br />

s<strong>em</strong> ingerências do grupo familiar.<br />

304


As cobranças relativas à solteirice masculina ocorr<strong>em</strong> mais freqüent<strong>em</strong>ente no<br />

ambiente <strong>de</strong> trabalho, quando o <strong>solteiro</strong> é instigado por colegas, <strong>em</strong> reuniões sociais e<br />

com<strong>em</strong>orações a assediar as mulheres disponíveis que se encontram presentes e, <strong>de</strong>ssa forma,<br />

comprovar<strong>em</strong> sua masculinida<strong>de</strong>. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, os colegas casados consi<strong>de</strong>ram a vida<br />

dos <strong>solteiro</strong>s oposta às suas, fantasiam sobre liberda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>scompromisso, in<strong>de</strong>pendência<br />

financeira, aventuras sexuais e, por isso, <strong>de</strong>monstram sinais <strong>de</strong> inveja.<br />

No ambiente <strong>de</strong> trabalho, as mulheres <strong>solteira</strong>s, ao contrário dos homens, não<br />

<strong>de</strong>spertam inveja, mas a compaixão dos colegas idosos que as consi<strong>de</strong>ram <strong>de</strong>samparadas por<br />

não ter<strong>em</strong> um marido, assim como são assediadas pelos colegas casados e próximos da sua<br />

faixa etária, que se candidatam como voluntários para suprir sua carência afetiva e sexual.<br />

Isso não significa que não haja proximida<strong>de</strong>s entre as vivências <strong>de</strong> mulheres e homens<br />

<strong>solteiro</strong>s no mundo do trabalho, isto é, ambos são encarregados <strong>de</strong> realizar<strong>em</strong> tarefas após o<br />

expediente ou que exijam horas extras, indicados para plantões, viagens ou <strong>ser</strong>viços <strong>em</strong> que<br />

<strong>de</strong>v<strong>em</strong> abdicar dos finais <strong>de</strong> s<strong>em</strong>ana e momentos livres. Contudo, as oposições <strong>de</strong> gênero<br />

elaboram reações distintas: a mulher manifesta sinais <strong>de</strong> fadiga e se sente explorada, mas<br />

reforça a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> doação consi<strong>de</strong>rada inerente ao f<strong>em</strong>inino, enquanto o hom<strong>em</strong> ignora o<br />

cansaço e transforma a disponibilida<strong>de</strong> integral <strong>em</strong> privilégio exclusivo do <strong>solteiro</strong> que lhe<br />

assegura facilida<strong>de</strong>s e vantagens no trabalho.<br />

As mulheres e homens investigados atribu<strong>em</strong> diferentes significados à solteirice, assim<br />

como vivenciam enredos e episódios <strong>de</strong>siguais que imprim<strong>em</strong> permanências e transformações<br />

<strong>em</strong> seus estilos e projetos <strong>de</strong> vida, sob a influência do contexto sócio-histórico <strong>em</strong> que se<br />

in<strong>ser</strong><strong>em</strong>, mas também inspirados pelo gênero, classe social, geração e grupo étnico a que<br />

pertenc<strong>em</strong>. No entanto, as <strong>de</strong>ss<strong>em</strong>elhanças também comportam analogias.<br />

Com efeito, ao contrastar os estilos e projetos <strong>de</strong> vida das mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s<br />

pertencentes às classes médias <strong>de</strong> Aracaju e Salvador, percebe-se um distanciamento nas<br />

305


narrativas biográficas <strong>de</strong> mulheres e homens que, na década <strong>de</strong> 1970, sonhavam com a<br />

<strong>de</strong>molição dos valores burgueses e transformação societária e os <strong>de</strong>poimentos pessoais <strong>de</strong><br />

mulheres e homens <strong>de</strong> gerações mais recentes, cuja revolução ambiciona apenas conquistas<br />

pessoais, ou seja, na cultura narcísica e individualista do mundo líquido e <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong><br />

sentido <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong>os, mulheres e homens buscam a todo custo segurança ontológica, n<strong>em</strong><br />

que para isso seja necessário re<strong>de</strong>senhar o processo <strong>de</strong> construção i<strong>de</strong>ntitária sob novas bases.<br />

Com efeito, os signos <strong>de</strong> distinção <strong>de</strong> classe têm convergido para o investimento na<br />

educação e carreira profissional, principalmente como forma <strong>de</strong> assegurar o pertencimento às<br />

classes médias, que adquire concretu<strong>de</strong> através da aquisição <strong>de</strong> um imóvel e carro próprios<br />

(O’DAUGHERTY, 1998). O distanciamento <strong>de</strong>ste grupo social com outros estratos sociais é<br />

também matizado pela referência às suas bases culturais (BOURDIEU, 1990), isto é, os<br />

sujeitos investigados procuram <strong>de</strong>monstrar uma maior sofisticação no tocante à escolha <strong>de</strong><br />

estilos musicais e literários, assim como imprim<strong>em</strong> um caráter seletivo aos lugares que<br />

freqüentam, <strong>de</strong> forma a tornar mais evi<strong>de</strong>ntes os marcadores <strong>de</strong> diferença.<br />

Todavia, as profundas transformações na tessitura social, particularmente nas últimas<br />

décadas, têm atingido as classes médias, produzindo uma reelaboração dos signos distintivos<br />

<strong>de</strong> classe. O universo intelectualizado e sofisticado composto por indivíduos que persegu<strong>em</strong> o<br />

aperfeiçoamento individual e apropriação <strong>de</strong> suas subjetivida<strong>de</strong>s através da psicanálise,<br />

i<strong>de</strong>ntificado por Velho (2002) entre as classes médias da zona sul carioca, contrasta com o<br />

universo composto pelas novas gerações das classes médias resi<strong>de</strong>ntes <strong>em</strong> Aracaju e Salvador,<br />

que adquir<strong>em</strong> outros gostos e padrões <strong>de</strong> consumo, ensaiam novos projetos e estilos <strong>de</strong> vida,<br />

<strong>em</strong> consonância com a volativida<strong>de</strong> e incerteza cont<strong>em</strong>porânea.<br />

Neste sentido, mulheres e homens prefer<strong>em</strong> se abstrair da realida<strong>de</strong> a concentrar seu<br />

olhar sobre as dores do mundo, o que se reflete no gosto literário, nos enredos fílmicos ou<br />

composições musicais que apreciam. A intelectualida<strong>de</strong> e politização das gerações passadas<br />

306


foram cooptadas por filmes <strong>de</strong> entretenimento cujo happy end previsível evita <strong>de</strong>sassossegos,<br />

seja sob acor<strong>de</strong>s românticos, no caso das mulheres, seja através <strong>de</strong> batalhas vencidas, no caso<br />

dos homens; livros <strong>de</strong> auto-ajuda e terapias alternativas ajudam os sujeitos não a<br />

<strong>de</strong>senvolver<strong>em</strong> um processo <strong>de</strong> crescimento pessoal, mas a conter<strong>em</strong> quaisquer expressões <strong>de</strong><br />

inconformismo.<br />

Os bares e restaurantes que freqüentam já não abrigam revolucionários, tornaram-se<br />

meros pontos <strong>de</strong> encontro, on<strong>de</strong> indivíduos <strong>em</strong> trânsito anestesiam vazios e o estresse da vida<br />

cotidiana; as mulheres e homens, cada vez mais isolados, buscam proteção no ambiente<br />

padronizado dos shoppings, on<strong>de</strong> mesmo cercados <strong>de</strong> pessoas, permanec<strong>em</strong> sozinhos e<br />

anônimos; as tribos se un<strong>em</strong> virtualmente, <strong>em</strong> salas <strong>de</strong> bate papo e comunida<strong>de</strong>s do Orkut,<br />

para logo se <strong>de</strong>sfazer<strong>em</strong> ao sabor <strong>de</strong> novos interesses e escolhas e, as viagens já não<br />

motivadas por buscas existenciais, mas consist<strong>em</strong> <strong>em</strong> rotas <strong>de</strong> fuga para as pressões sociais e,<br />

ou rotinização cotidiana.<br />

Por outro lado, os estilos e projetos <strong>de</strong> vida abraçados pelas mulheres revelam ensaios<br />

para burlar<strong>em</strong> a vigilância social e familiar ainda exercida sobre seu corpo e <strong>de</strong>sejos, assim<br />

como agenciar<strong>em</strong> a reversão das cobranças familiares e sociais <strong>em</strong> torno do não-casamento,<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<strong>em</strong>-se da exploração familiar e no trabalho; exercitar<strong>em</strong> a alterida<strong>de</strong> sexual e se<br />

<strong>de</strong>svincular<strong>em</strong> <strong>em</strong> <strong>de</strong>finitivo dos papéis tradicionais f<strong>em</strong>ininos – esposa, mãe e dona-<strong>de</strong>-casa,<br />

assim como amenizar<strong>em</strong> o isolamento social e solidão associados à mulher <strong>solteira</strong> com a<br />

proximida<strong>de</strong> do envelhecimento.<br />

Tudo indica que a imag<strong>em</strong> das <strong>solteiro</strong>nas “mal-amadas” e “frustradas” está <strong>em</strong> via <strong>de</strong><br />

extinção, principalmente porque a in<strong>de</strong>pendência econômica e autonomia f<strong>em</strong>inina têm<br />

<strong>de</strong>spertado a cobiça dos setores imobiliário, automobilístico, turístico entre outros, ou seja, se<br />

o capitalismo se apropriou dos movimentos <strong>em</strong>ancipatórios para instigar a expansão<br />

profissional da mulher <strong>em</strong> beneficio próprio, não há razão para duvidar que possa <strong>de</strong>molir os<br />

307


ótulos que ainda acompanham as mulheres <strong>solteira</strong>s na vida social, mas certamente, <strong>em</strong> outra<br />

t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> e geração.<br />

No contexto atual, as mulheres se auto<strong>de</strong>nominam como in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, engajadas<br />

politicamente, livres, <strong>de</strong>cididas e exigentes. Por isso, não quer<strong>em</strong> um “hom<strong>em</strong> mandão”, um<br />

“proprietário”, mas não faz<strong>em</strong> “apologia da solidão”, elas estão abertas a um relacionamento<br />

amoroso, caso apareça alguém “interessante” com qu<strong>em</strong> possam compartilhar suas vidas,<br />

<strong>em</strong>bora com o passar dos anos, a imag<strong>em</strong> do príncipe se mostre cada vez mais <strong>de</strong>sbotada. Em<br />

outros termos, apenas uma das mulheres estudadas enuncia o casamento como meta a <strong>ser</strong><br />

alcançada, isso não impe<strong>de</strong> que as <strong>de</strong>mais mulheres <strong>de</strong>sej<strong>em</strong> “um hom<strong>em</strong> para chamar <strong>de</strong><br />

seu”, ambicion<strong>em</strong> vivenciar a volatilida<strong>de</strong> da paixão e <strong>de</strong>sfrutar do sexo com nexo, isto é, o<br />

sexo com afetivida<strong>de</strong>, enleado ao ethos do amor romântico, mas as mulheres prefer<strong>em</strong><br />

permanecer sozinhas a ter<strong>em</strong> que abdicar <strong>de</strong> suas conquistas pessoais e profissionais.<br />

Por sua vez, a nova geração <strong>de</strong> homens <strong>solteiro</strong>s investe nos estudos, na expansão<br />

profissional e estabilida<strong>de</strong> financeira, mas não tenciona <strong>de</strong>sviar do “caminho natural”, isto é,<br />

cumprir o papel social esperado – cidadão, esposo e pai <strong>de</strong> família. No entanto, como <strong>de</strong>tém a<br />

prerrogativa <strong>de</strong> escolha no mercado amoroso, po<strong>de</strong> adiar o matrimônio por t<strong>em</strong>po<br />

in<strong>de</strong>terminado, s<strong>em</strong> abdicar da vida sexual. Por conseguinte, as “novas <strong>solteira</strong>s” estão<br />

fadadas a permanecer na “prateleira” do mercado matrimonial e amargar a solidão afetiva,<br />

não só por razões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>mográfica, mas também porque a assimetria sexual dos papéis<br />

afetivos continua.<br />

A tensão dialogal entre as mulheres e homens aponta para a coexistência <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los<br />

arquetípicos tradicionais e mo<strong>de</strong>rnos que po<strong>de</strong>m causar estranheza. No entanto, penso que a<br />

novida<strong>de</strong> é plasmada no interior daquilo que consi<strong>de</strong>ramos velho e ultrapassado, ou seja, entre<br />

continuida<strong>de</strong>s e mudanças, surge o esboço <strong>de</strong> um novo <strong>de</strong>senho da solteirice, cujos traços<br />

308


ainda se mostram pouco firmes e nítidos, mas <strong>de</strong>monstram <strong>de</strong>slocamentos nas percepções e<br />

práticas sociais <strong>de</strong> mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s.<br />

Vale l<strong>em</strong>brar que este estudo t<strong>em</strong> como cenário as cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Aracaju e Salvador,<br />

on<strong>de</strong> o antagonismo <strong>de</strong> gênero presente nas narrativas biográficas <strong>de</strong> treze mulheres e <strong>de</strong> treze<br />

homens ainda <strong>de</strong>termina vivências <strong>de</strong>siguais da solteirice, ou seja, as experiências <strong>de</strong><br />

mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> distintas <strong>em</strong> outras paisagens. Por outro lado, estou<br />

certa <strong>de</strong> que os fragmentos aqui reunidos po<strong>de</strong>m suscitar sentimentos ambivalentes, anuências<br />

ou discordâncias, mas a minha intenção não persegue a unanimida<strong>de</strong>, n<strong>em</strong> o óbvio.<br />

Neste estudo, pretendi tão somente <strong>de</strong>sconstruir as estereotipias que condicionam as<br />

trajetórias <strong>de</strong>siguais <strong>de</strong> mulheres e homens <strong>solteiro</strong>s como eu, romper com a banalização do<br />

olhar que recai sobre as <strong>solteira</strong>s e os <strong>solteiro</strong>s e, naturaliza sua condição marginal ou exalta<br />

seu protagonismo na socieda<strong>de</strong> cont<strong>em</strong>porânea. Por fim, entre cortes e recortes, tentei unir a<br />

trama <strong>de</strong> suas histórias <strong>de</strong> vida, ornei com laçadas até o nó que arr<strong>em</strong>ata o ponto final <strong>de</strong>ssa<br />

colcha <strong>de</strong> retalhos. Se eu consegui ou não tal intento, <strong>de</strong>ixo a cargo do (a) leitor (a) <strong>de</strong>cidir.<br />

309


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ANEXOS<br />

324


ANEXO A – ROTEIRO DE ENTREVISTA<br />

Nome: _________________ Ida<strong>de</strong>: ______ Naturalida<strong>de</strong>: _______________<br />

Escolarida<strong>de</strong>: _______________ Profissão: _________________<br />

1 – Como foi a sua infância?<br />

2 – Que fatos marcaram sua adolescência?<br />

3 - Como classifica a educação recebida durante a infância e a adolescência?<br />

4 – Como era o relacionamento familiar (com os pais e irmãos)?<br />

5 – On<strong>de</strong> você estudou?<br />

6 – Você chegou a se formar, <strong>em</strong> que?<br />

7 – Já fez algum curso <strong>de</strong> especialização? Por quê?<br />

8 – Em que você já trabalhou? O que faz atualmente?<br />

9 – Nas horas <strong>de</strong> folga o que costuma fazer?<br />

10 – Que lugares costuma freqüentar?<br />

11 – Você costuma sair sozinho (a) ou <strong>em</strong> grupo?<br />

12 – Com que ida<strong>de</strong> iniciou a vida sexual, on<strong>de</strong> e com qu<strong>em</strong>?<br />

13 – Você t<strong>em</strong> namorada (o) no momento?<br />

14 – Como é a sua vida sexual?<br />

15 – Quando você está s<strong>em</strong> parceiro (a) e sente <strong>de</strong>sejo sexual, o que faz?<br />

16 – O que é <strong>ser</strong> <strong>solteiro</strong> (a) para você?<br />

17 – Você acha que a solteirice é diferente para a mulher e para o hom<strong>em</strong>?<br />

18 – Quais os aspectos positivos e negativos <strong>de</strong> <strong>ser</strong> <strong>solteiro</strong> (a)?<br />

19 – Você já foi alvo <strong>de</strong> cobranças relativas ao não-casamento? Quais? De qu<strong>em</strong>?<br />

20 – Em que o fato <strong>de</strong> <strong>ser</strong> <strong>solteiro</strong> (a) interfere <strong>em</strong> sua vida?<br />

21 – Você já pensou ou pensa <strong>em</strong> se casar?<br />

21 – Quais os seus projetos futuros?


ANEXO B – FOLHEANDO AS PÁGINAS DO ÁLBUM: REVELAÇÕES<br />

INSTANTÂNEAS DAS ENTREVISTAS<br />

Realizar as entrevistas e registrar as histórias <strong>de</strong> vida dos informantes implica <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>dicar atenção aos cenários on<strong>de</strong> foram realizadas, as circunstâncias <strong>em</strong> que ocorreram,<br />

questões e probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong>stacados <strong>em</strong> seus <strong>de</strong>poimentos que distingu<strong>em</strong> ou aproximam uns dos<br />

outros, mas também captar a linguag<strong>em</strong> não verbal que utilizam <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminados momentos,<br />

isto é, <strong>de</strong>cifrar silêncios, gestos, expressões que dão visibilida<strong>de</strong> a sentimentos e <strong>em</strong>oções que<br />

às vezes preten<strong>de</strong>m ocultar. Neste sentido, pontuarei apenas os aspectos que consi<strong>de</strong>ro mais<br />

importantes para <strong>de</strong>senhar o perfil dos sujeitos investigados, assim como as singularida<strong>de</strong>s<br />

cont<strong>em</strong>pladas <strong>em</strong> cada história revelada. Para evitar sua i<strong>de</strong>ntificação, tomei mais uma<br />

precaução, o álbum foi organizado mediante uma colag<strong>em</strong> dos homens e outra das mulheres,<br />

na qual omito propositadamente a cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> os (as) entrevistei e nomes <strong>de</strong> lugares que<br />

freqüentam.<br />

ÁLBUM FEMININO<br />

Entrevista 1: Clara<br />

A informante t<strong>em</strong> 49 anos e a conheci <strong>em</strong> uma reunião social, <strong>em</strong> meados <strong>de</strong> 2005,<br />

ocasião <strong>em</strong> que dividimos a mesma mesa, acabara <strong>de</strong> concluir o doutorado e, ao saber que<br />

também estava fazendo, indagou sobre o t<strong>em</strong>a e, como é <strong>solteira</strong>, perguntei se po<strong>de</strong>ria dar seu<br />

test<strong>em</strong>unho e concordou s<strong>em</strong> hesitar. Des<strong>de</strong> então, encontramo-nos mais duas vezes, ocasiões<br />

<strong>em</strong> que reafirmou a disponibilida<strong>de</strong> para contribuir com a pesquisa.<br />

Quando lhe telefonei para agendar o encontro, mostrou-se bastante receptiva, estava<br />

<strong>de</strong> férias e, portanto, com t<strong>em</strong>po para conversarmos s<strong>em</strong> pressa. Marcamos para uma sexta-<br />

feira no final da tar<strong>de</strong>, <strong>em</strong> sua residência, passando <strong>em</strong> seguida a indicar referências que<br />

pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> me ajudar a chegar a sua casa.


Como fiz com todos os entrevistados, no dia anterior ao encontro telefonei para me<br />

assegurar que estaria disponível, mas não consegui contatá-la, <strong>de</strong>ixei uma mensag<strong>em</strong> na<br />

secretária eletrônica e, meia hora <strong>de</strong>pois retornou minha ligação, garantindo que estaria à<br />

minha espera no dia seguinte, no horário combinado.<br />

Ao chegar a sua casa, toquei a campainha e, atrás do portão, indagou se era eu,<br />

abrindo-o somente quando confirmei. Justificou-se ressaltando as precauções adotadas por<br />

uma mulher que mora sozinha para garantir a segurança e se sentir protegida, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o muro<br />

alto, a cerca elétrica até abrir o portão apenas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> a pessoa se i<strong>de</strong>ntificar.<br />

Inicialmente, mostrou-me os aposentos, a área externa, tecendo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ob<strong>ser</strong>vações<br />

relativas às reformas que vinha fazendo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que retornara do doutorado, realizado <strong>em</strong> outro<br />

estado, até comentários acerca <strong>de</strong> um churrasco que organizara para recepcionar os amigos.<br />

Em seguida, dirigimo-nos à sala e sentamos ao redor da mesa <strong>de</strong> jantar, conversamos<br />

sobre amenida<strong>de</strong>s, mas também sobre as dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas para cursar o doutorado<br />

distante <strong>de</strong> casa, da família e dos amigos; a <strong>de</strong>dicação quase exclusiva que n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre é<br />

entendida pelas pessoas. Mais à vonta<strong>de</strong>, colocou-se à disposição para iniciarmos a entrevista.<br />

Esclareci mais uma vez o objetivo da pesquisa e l<strong>em</strong>brei que trabalharia com histórias <strong>de</strong><br />

vida, ou seja, <strong>de</strong>ixaria que ela falasse livr<strong>em</strong>ente, fazendo uma ou outra pergunta para<br />

esclarecer possíveis dúvidas, indagar sobre algum aspecto que não fora abordado. Destaquei<br />

que sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>ser</strong>ia pre<strong>ser</strong>vada, mas achou graça e afirmou que contara a todos os seus<br />

amigos (as) que daria seu <strong>de</strong>poimento, portanto, não era segredo.<br />

Por quase três horas, falou da infância, do pai rígido e severo que a intimidava, mas<br />

também da segurança que ele e a mãe passavam para os sete filhos. O pai era espírita (antes<br />

afirmou que tinha um terreiro) e atendia <strong>em</strong> casa as pessoas, fazia orações e consultas. Era um<br />

hom<strong>em</strong> que tinha dificulda<strong>de</strong> <strong>em</strong> externar os sentimentos e, por isso, só veio a perceber o<br />

quanto ele gostava <strong>de</strong> sua mãe quando ela faleceu. Aos poucos, foi cismando <strong>em</strong> silêncios


cada vez mais longos, <strong>de</strong>finhando, a vida per<strong>de</strong>u o sentido para ele, o que piorou com a morte<br />

pr<strong>em</strong>atura <strong>de</strong> um dos filhos.<br />

Falou também da relação com os irmãos, a união com duas irmãs também <strong>solteira</strong>s,<br />

principalmente uma que mora <strong>em</strong> outro estado, com qu<strong>em</strong> divi<strong>de</strong> tudo, as duas se ajudam. Por<br />

ex<strong>em</strong>plo, quando comprou a casa, a irmã <strong>de</strong>u a cozinha.<br />

A entrevistada rel<strong>em</strong>brou os t<strong>em</strong>pos <strong>de</strong> escola: na infância, a discriminação enfrentada<br />

por <strong>ser</strong> negra e pobre; na adolescência, a aprovação <strong>em</strong> um teste <strong>de</strong> seleção para estudar <strong>em</strong><br />

uma escola pública freqüentada pela elite, ocasião <strong>em</strong> que a turma a aceitou s<strong>em</strong> restrições.<br />

Segundo afirma, foi o período mais feliz <strong>de</strong> sua vida, quando também passou a praticar vôlei,<br />

cuja importância é muito gran<strong>de</strong>, pois <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, conseguiu se relacionar e conquistar<br />

amigos, <strong>em</strong>bora o pai não autorizasse que viajasse com a equipe, nas competições<br />

interestaduais tinha s<strong>em</strong>pre que abandonar a seleção.<br />

Abordou amores platônicos da adolescência, o primeiro namorado aos 21 anos, com<br />

qu<strong>em</strong> se relacionou durante muito t<strong>em</strong>po, ele foi morar <strong>em</strong> outro estado, ficavam separados,<br />

nas férias se reencontravam; namorava outros, mas s<strong>em</strong>pre retomavam a relação. Comentou a<br />

perda da virginda<strong>de</strong>, aos 46 anos, com um rapaz que conheceu durante o doutorado: “Saí<br />

<strong>solteiro</strong>na e voltei <strong>solteira</strong>”.<br />

Ao percorrer o t<strong>em</strong>po presente, comentou sobre a relação com um rapaz mais jov<strong>em</strong>,<br />

que fez alguns trabalhos <strong>em</strong> sua casa, sabia conversar, tinha um português razoável, mas[...]<br />

(risos) terminou. Seus amigos sabiam, mas nunca iria apresentá-lo a eles.<br />

Define-se como uma mulher realizada profissionalmente, b<strong>em</strong>-sucedida, gosta <strong>de</strong><br />

dançar, ouve todo tipo <strong>de</strong> música, vai a shows, assiste muita televisão, programas da TVE<br />

voltados para a educação e meio-ambiente e todas as novelas da Re<strong>de</strong> Globo; <strong>de</strong>testa<br />

programas humorísticos, mas não per<strong>de</strong> <strong>ser</strong>iados cujo t<strong>em</strong>a é abordado com humor. Não t<strong>em</strong> o<br />

hábito <strong>de</strong> ler, apenas textos relacionados ao trabalho; também usa o computador apenas como


ferramenta <strong>de</strong> trabalho, para digitar suas pesquisas. Apesar <strong>de</strong> afirmar que também não<br />

aprecia telefone, possui três celulares que, segundo afirma, conseguiu <strong>em</strong> uma promoção e,<br />

utilizou após a entrevista para contatar amigas (os) e sondá-los sobre a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>ser</strong><strong>em</strong><br />

entrevistados por mim.<br />

As ligações para as (os) amigas (os) foram intercaladas por breves comentários sobre<br />

aspectos e, ou características que po<strong>de</strong>riam me interessar naquelas pessoas; evi<strong>de</strong>nciavam a<br />

curiosida<strong>de</strong> <strong>em</strong> conhecer algo mais acerca <strong>de</strong> um dos homens indicados ou então, revisavam<br />

seus projetos futuros e indicavam a solidão que às vezes a assalta.<br />

Enquanto lanchávamos ao som <strong>de</strong> uma das cantoras favoritas, <strong>de</strong>scontraída, <strong>de</strong>ixa<br />

escapar um olhar sonhador, antecipando o prazer <strong>de</strong> sair com a nova turma <strong>de</strong> amigas (os)<br />

logo mais; expressa o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> organizar um encontro com ex-colegas <strong>de</strong> escola que há<br />

muito t<strong>em</strong>po não vê, para <strong>em</strong> seguida expor o plano <strong>de</strong>, <strong>em</strong> breve, cursar o pós-doutorado. Ao<br />

nos <strong>de</strong>spedirmos, abraçou-me afetuosamente, convidou-me para visitá-la <strong>em</strong> outra ocasião e<br />

pediu para mantê-la informada sobre o andamento da pesquisa.<br />

Entrevista 2: Jandira<br />

A informante t<strong>em</strong> 53 anos e foi indicada por uma amiga da minha família, a qu<strong>em</strong> pedi<br />

para convencê-la a conversar comigo. Apesar <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar interesse, afirmou que nunca<br />

<strong>de</strong>ra uma entrevista e não sabia se sua história iria me interessar, fez-lhe também alguns<br />

questionamentos acerca da pesquisa, o que a levou a me passar o telefone. Nossa conversa foi<br />

breve, expliquei o objetivo da pesquisa, ressaltei o cuidado <strong>em</strong> pre<strong>ser</strong>var o anonimato das<br />

pessoas investigadas, o que a convenceu, marcou nosso encontro para uma segunda-feira,<br />

após o almoço, <strong>em</strong> sua residência.<br />

Não precisei confirmar a entrevista, no dia combinado ligou para l<strong>em</strong>brar que estava à<br />

minha espera. Ao chegar a sua casa, ob<strong>ser</strong>vei que as portas e janelas tinham gra<strong>de</strong>s, precaução


tomada por medo <strong>de</strong> <strong>ser</strong> assaltada, pois mora sozinha com a <strong>em</strong>pregada doméstica – termo<br />

que abomina, prefere chamá-la <strong>de</strong> secretária –, que nos finais <strong>de</strong> s<strong>em</strong>ana dorme <strong>em</strong> sua<br />

própria residência. Inicialmente, perguntou por minha amiga e, ao saber que estava no<br />

médico, insistiu para que lhe telefonasse e pedisse para que após a consulta fosse encontrar<br />

conosco. Como eu não tinha o telefone do médico, procurou no catálogo, pediu ajuda <strong>de</strong> outra<br />

amiga e, quando afinal conseguiu ligar para o consultório, somente após a interlocutora<br />

concordar <strong>em</strong> vir à sua casa <strong>de</strong>pois da consulta, concordou <strong>em</strong> começar a entrevista.<br />

Iniciou a entrevista falando da infância, consi<strong>de</strong>rada feliz; comparou a adolescência <strong>de</strong><br />

hoje à do seu t<strong>em</strong>po, no tocante à mudança <strong>de</strong> valores e comportamento, particularmente a<br />

obediência dos filhos para com os pais, inexistente nas famílias atuais, com o que eu <strong>de</strong>veria<br />

concordar, já que a nossa diferença <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> não era tanta e, supunha, fôramos educadas<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> princípios parecidos. Seu <strong>de</strong>poimento foi conduzido pelas perdas afetivas que teve<br />

ao longo da vida; primeiro o pai, <strong>de</strong>pois um sobrinho que amava como se fosse filho; <strong>em</strong><br />

seguida, a mãe e, finalmente, o irmão mais novo. Sua narrativa revisitou a dor, sofrimento,<br />

perda da fé <strong>em</strong> Deus até a reconciliação com a Igreja, <strong>em</strong> cujo seio encontrou alento.<br />

Des<strong>de</strong> a morte do pai, quando tinha 26 anos, cuidou da mãe, do lar, sua vida pessoal<br />

ficando <strong>em</strong> segundo plano. Hoje se arrepen<strong>de</strong>, quis sair <strong>de</strong> casa e morar sozinha, a mãe e os<br />

irmãos não <strong>de</strong>ixaram, foi ficando. Com a morte <strong>de</strong>la, estava com 46 anos e, apesar da<br />

dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> dormir só, já não pensava <strong>em</strong> se mudar, muito menos agora que transformou a<br />

casa <strong>em</strong> relicário, on<strong>de</strong> convive com imagens fotográficas, pinturas e objetos dos entes<br />

queridos que se foram.<br />

Segundo ela, teve namoricos, paqueras quando era jov<strong>em</strong>, mas s<strong>em</strong>pre escondido,<br />

tinha medo da reação dos pais, ao contrário da irmã, que s<strong>em</strong>pre foi namora<strong>de</strong>ira. Aos trinta<br />

anos, conheceu um rapaz, acha que trabalhava <strong>em</strong> uma estatal, mas teve medo e fugiu, hoje se


arrepen<strong>de</strong>, gostaria <strong>de</strong> fazer voltar o t<strong>em</strong>po, pois quando o pai morreu, achava que tinha todo<br />

pela frente. Queria ter aproveitado mais, porém “com respeito”.<br />

Hoje, pouco sai, não lê, nunca gostou <strong>de</strong> estudar, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ouvir música, não vai ao<br />

cin<strong>em</strong>a, quase não assiste televisão. Dedica-se aos afazeres domésticos, acabou <strong>de</strong> reformar a<br />

casa, sequer se mudou durante a reforma, dormia na cozinha. Traz os cristais e porcelanas<br />

s<strong>em</strong>pre brilhando, paninhos e toalhas <strong>de</strong> mesa engomadas, – que mantém guardadas <strong>em</strong> um<br />

armário adquirido só para esse fim –, prontas para qualquer eventualida<strong>de</strong>, como por<br />

ex<strong>em</strong>plo, a benção da casa após a reforma, ocasião <strong>em</strong> que recebeu o pároco, irmãos,<br />

cunhadas, sobrinhos e amigas.<br />

Arredia, t<strong>em</strong> poucas amigas que consi<strong>de</strong>ra como verda<strong>de</strong>iras, como nossa<br />

interlocutora, a qu<strong>em</strong> até hoje <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>sculpas por ter se esquecido <strong>de</strong> avisar que a mãe<br />

morrera. Algumas conhece <strong>de</strong>s<strong>de</strong> jov<strong>em</strong> e outras são vizinhas b<strong>em</strong> mais velhas, que a<br />

consolaram após a perda da mãe e a reconduziram à Igreja, com qu<strong>em</strong> vai à missa e reza<br />

novenas. Explica que sua <strong>de</strong>sconfiança se <strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong> uma amiga, ou pelo menos a<br />

consi<strong>de</strong>rava assim, - acolheu-a <strong>em</strong> sua casa – ter sido muito bruta com ela.<br />

Consi<strong>de</strong>ra-se muito feliz, porque t<strong>em</strong> Jesus no coração, afirma que a solteirice não a<br />

incomoda, nunca foi discriminada, s<strong>em</strong>pre se <strong>de</strong>u ao respeito, apesar <strong>de</strong> uma amiga, que<br />

namora um hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>squitado, sugerir que colocasse um rapaz <strong>em</strong> um quarto da casa para ter<br />

com qu<strong>em</strong> conversar, queria que ela também namorasse, – “e ela diz que é minha amiga!” –.<br />

Com o passar dos anos, seus dias têm sido invadidos pelo silêncio, os sobrinhos,<br />

casados e com sua própria família, já não têm tanto t<strong>em</strong>po para vê-la. É funcionária pública e,<br />

daqui a dois anos se aposenta, mas por enquanto, trabalha todas as manhãs e, as horas vazias<br />

são preenchidas ao telefone, às vezes é flagrada por vizinhas falando sozinha. Mas, guarda um<br />

sonho que, <strong>de</strong> olhos baixos, prefere manter <strong>em</strong> segredo.


Vale <strong>de</strong>stacar que seu <strong>de</strong>poimento foi entr<strong>em</strong>eado por pausas, nas quais indagava se<br />

era isso ou aquilo que eu queria ouvir, solicitava que eu fizesse perguntas, para então retomar<br />

sua narrativa, mas uma vez fomos interrompidas pelo telefone, era uma das companheiras da<br />

Igreja para combinar<strong>em</strong> uma visita a outra componente do grupo que precisava <strong>de</strong> apoio<br />

<strong>em</strong>ocional.<br />

Encerrou o <strong>de</strong>poimento afirmando mais uma vez que não sabia se aten<strong>de</strong>ra minhas<br />

expectativas, dando-me liberda<strong>de</strong> para resumir suas palavras, pois achava que falara <strong>de</strong>mais.<br />

Ao concluirmos a entrevista, ofereceu-me um lanche que mandara a “secretária” preparar e,<br />

logo após, mostrou-me a casa, explicando as mudanças feitas, chamando a atenção para um<br />

aparador antigo on<strong>de</strong> repousam porta-retratos dos entes queridos, – uma sobrinha aconselhara<br />

que retirasse as fotos, on<strong>de</strong> a única pessoa viva era ela –; mostrou-me ainda o “santinho” da<br />

missa <strong>de</strong> sétimo do sobrinho, com uma poesia <strong>de</strong>le e, os quadros que pintava e mantém nas<br />

pare<strong>de</strong>s da sala. Finalmente, entregou-me o álbum <strong>de</strong> fotos da cerimônia <strong>de</strong> benção da casa e,<br />

quando acabei <strong>de</strong> olhá-lo, pediu-me para lhe telefonar no dia seguinte, após transcrever a fita,<br />

pois caso quisesse saber mais alguma coisa ou tivesse alguma dúvida, po<strong>de</strong>ríamos nos ver<br />

novamente. Relutante <strong>em</strong> me <strong>de</strong>ixar partir, quando afinal nos <strong>de</strong>spedimos, encerrou-se atrás<br />

das gra<strong>de</strong>s, enquanto eu saia para o mundo lá fora.<br />

Entrevista 3: Beatriz<br />

A informante t<strong>em</strong> 62 anos, conheço-a há muitos anos, é amiga <strong>de</strong> duas primas minhas<br />

mais velhas e, adolescente, quando ia à casa <strong>de</strong> minha tia, muitas vezes acompanhei com<br />

curiosida<strong>de</strong> suas conversas, <strong>em</strong> que discutiam sobre amigos e namorados, peças teatrais e<br />

shows que tinham assistido. Na fase adulta, passei a <strong>ser</strong> incluída na roda <strong>de</strong> conversas, s<strong>em</strong>pre<br />

que lá me encontrava. Assim, quando comentei com ela sobre a pesquisa e indaguei se


po<strong>de</strong>ria entrevistá-la, foi bastante receptiva, afirmando que era só marcarmos o horário e<br />

local.<br />

Recebeu-me <strong>em</strong> seu apartamento, localizado <strong>em</strong> um village construído pela família,<br />

on<strong>de</strong> t<strong>em</strong> como vizinhas duas sobrinhas, que ali resi<strong>de</strong>m com maridos e filhos. Após nos<br />

cumprimentarmos, percorr<strong>em</strong>os os aposentos e, chegando ao primeiro piso, entramos na sala<br />

<strong>de</strong> televisão e leitura, <strong>em</strong> cuja porta colou fotos <strong>de</strong> seus ídolos, pessoas a qu<strong>em</strong> admira e do<br />

ex-namorado, aos quais me apresentou.<br />

Conversamos na varanda contígua à sala, ao som <strong>de</strong> uma mandala que se agitava ao<br />

sabor do vento. Ao lado da mesa <strong>em</strong> que sentamos, ficava um pequeno nicho, on<strong>de</strong><br />

repousavam búzios, oferendas, incensos, imagens <strong>de</strong> <strong>de</strong>uses e pedras energéticas que<br />

enunciavam o lado místico da dona da casa, mas também <strong>de</strong>nunciavam a influência da<br />

geração Woodstock, à qual pertence.<br />

Neste cenário, falou da infância e rejeição da mãe, que já tinha duas filhas, não<br />

planejara a última gravi<strong>de</strong>z e teve <strong>de</strong>pressão pós-parto, durante dois anos, talvez porque fosse<br />

muito vaidosa e ela nasceu com os pés tortos.<br />

Rel<strong>em</strong>brou a relação dos pais, consi<strong>de</strong>rados o casal mais bonito da cida<strong>de</strong> interiorana<br />

on<strong>de</strong> viviam, apaixonadíssimos um pelo outro, até que a mãe <strong>de</strong>scobriu que o pai era amante<br />

<strong>de</strong> uma balconista. Naquela época, as irmãs já estudavam na capital e ela acompanhou as<br />

brigas, lágrimas e, finalmente, a separação. Foram morar com a avó materna, apesar <strong>de</strong> o pai<br />

ter pedido perdão, a mãe foi irredutível e ainda a proibiu <strong>de</strong> vê-lo. Na adolescência mudou-se<br />

para a capital, tímida, na escola fez gran<strong>de</strong>s amigos, que mantém até hoje.<br />

Deixou <strong>de</strong> conviver com o pai e se sentiu rejeitada por ele também, somente aos 48<br />

anos conseguiu se reconciliar com o passado, a terapia a ajudou a perceber que o pai a amara<br />

– <strong>em</strong>ociona-se e segura as lágrimas –. Todo mês viajava <strong>de</strong> tr<strong>em</strong> com ela e uma tia à capital


para tratar dos pés e foi graças a esse cuidado que não ficou com seqüelas, mas quando<br />

<strong>de</strong>scobriu seu amor já era tar<strong>de</strong>, ele já falecera.<br />

Acredita que o fato da mãe ter uma personalida<strong>de</strong> forte, “tirana” e a profunda dor que<br />

sentiu com a separação tornaram-na uma pessoa árida, pouco afeita a carinhos. Cuidava <strong>de</strong>la e<br />

das irmãs fazendo roupas bonitas – s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong>u muita importância à aparência, estética –<br />

colocou-as <strong>em</strong> bons colégios, nada lhes faltava materialmente. L<strong>em</strong>bra também que a mãe não<br />

gostava do marido <strong>de</strong> uma das irmãs e tentou até agredi-lo fisicamente, quando ainda<br />

namoravam. Assim que os dois foram morar juntos, novamente foi nela que <strong>de</strong>scarregou<br />

mágoas, lamentos e lágrimas, o mesmo acontecendo quando a irmã do meio resolveu mudar-<br />

se para outro estado. Ela e essa irmã nunca <strong>de</strong>sejaram casar ou mesmo morar com alguém,<br />

argumenta que o sofrimento da mãe no casamento e após a separação <strong>ser</strong>viram como<br />

“antídoto” contra o casamento.<br />

S<strong>em</strong>pre namorou homens com qu<strong>em</strong>, sabia, não havia a menor possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

casamento, caras malucos, irreverentes, irresponsáveis, até mesmo o último namorado, – têm<br />

recaídas freqüentes –, quando se conheceram estava recém-separado, com três filhos<br />

pequenos que criava na casa da mãe e não tinha a mínima condição <strong>de</strong> assumir um<br />

compromisso. Houve até um jornalista, com qu<strong>em</strong> namorou por dois meses que sugeriu<br />

morar<strong>em</strong> juntos e, ela logo per<strong>de</strong>u o interesse, caiu fora.<br />

Falou então da solidão que a t<strong>em</strong> acompanhado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> morar com a mãe,<br />

aos 50 anos e se mudou para o village, localizado <strong>em</strong> um bairro distante, o que a distanciou<br />

dos amigos, que pouco a visitam. Além disso, há seis anos, um dos filhos do namorado teve<br />

uma crise e foi diagnosticado como esquizofrênico. Des<strong>de</strong> então se vê<strong>em</strong> menos, sa<strong>em</strong> pouco<br />

e, quando se sente só, a alternativa é visitar a mãe, que t<strong>em</strong> Alzheimer e está com quase 100<br />

anos, pelo menos conversa com as <strong>em</strong>pregadas, mas também vai ao Shopping e ao cin<strong>em</strong>a<br />

(filmes <strong>de</strong> arte), pelo menos não fica <strong>em</strong> casa. Ressente-se das irmãs, <strong>em</strong>bora goste muito


<strong>de</strong>las, por mais que se <strong>de</strong>dique à mãe, nunca parece suficiente, cobram muito <strong>de</strong>la, cada uma<br />

t<strong>em</strong> sua própria vida e as responsabilida<strong>de</strong>s reca<strong>em</strong> exclusivamente para ela, o que não acha<br />

justo.<br />

Recent<strong>em</strong>ente, após 16 anos <strong>de</strong> convívio, o namorado lhe disse que era melhor<br />

terminar<strong>em</strong>, estava s<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po para ela. Acha que ele quer viver a própria vida, estuda,<br />

trabalha, cuida dos filhos e ela já está aposentada. L<strong>em</strong>bra que nunca pu<strong>de</strong>ram viajar juntos,<br />

por causa do filho doente, cuja mãe não se dispõe a ficar com ele. Apesar <strong>de</strong> tudo, o ex-<br />

namorado telefona quase diariamente, v<strong>em</strong> vê-la <strong>em</strong> sua casa, sexualmente ele a completa,<br />

mesmo agora, <strong>em</strong> fase <strong>de</strong> separação, é se encontrar<strong>em</strong> e o tesão surge, mas percebe que<br />

precisa se recompor e assimilar o término da relação.<br />

Nesse momento, a irmã mais velha contraiu uma doença irreversível e a mãe está cada<br />

vez mais ausente, cuidar <strong>de</strong>las t<strong>em</strong> sido uma forma <strong>de</strong> preencher seus vazios, mas pela<br />

primeira vez na vida gostaria <strong>de</strong> se casar – risos –, pois a solidão t<strong>em</strong> sido um peso difícil <strong>de</strong><br />

suportar. Os amigos moram <strong>em</strong> outros estados e países, vê muito pouco até os que ainda<br />

resi<strong>de</strong>m na cida<strong>de</strong>, cada um com sua vida, seus probl<strong>em</strong>as, e seu bairro é tão longe que fica<br />

difícil visitá-los ou <strong>ser</strong> visitada por eles.<br />

Adora ler, atualmente seu interesse está voltado para o budismo, mas também aprecia<br />

autobiografias; a sobrinha diz que é casada com o jornal, gosta <strong>de</strong> estar atualizada,<br />

principalmente sobre a política do país. Com relação à música, costuma ouvir cantores (as)<br />

tropicalistas, mas também citou, entre os “meninos novos”, aqueles a que aprecia.<br />

Principalmente, escuta cantores <strong>de</strong> blues, carinhosamente chamados <strong>de</strong> “meus velhinhos”.<br />

Ganhou recent<strong>em</strong>ente um DVD <strong>de</strong> cantores cubanos da irmã, que não gostou, mas ela amou,<br />

t<strong>em</strong> muita vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer Cuba, um dos países que preten<strong>de</strong> visitar.<br />

Afirmou ainda que já foi discriminada por mulheres casadas, é muito afetuosa e o fato<br />

<strong>de</strong> <strong>ser</strong> <strong>solteira</strong> talvez as preocupe, s<strong>em</strong>pre que chega nos lugares é alvo <strong>de</strong> olhares, até já


comentou com o ex-namorado que, na sua ida<strong>de</strong>, tal situação n<strong>em</strong> cabe. Além disso, jamais se<br />

envolveria com um hom<strong>em</strong> casado.<br />

T<strong>em</strong> como projeto futuro se recompor afetivamente, casar com um velhinho que lhe<br />

faça companhia (risos) e intensificar o trabalho <strong>de</strong> massag<strong>em</strong> com pessoas idosas, que não<br />

têm carinho, o qual realiza esporadicamente e, talvez <strong>ser</strong>vir como voluntária <strong>em</strong> alguma<br />

instituição para idosos.<br />

A entrevista durou cerca <strong>de</strong> três horas e, enquanto falava, a informante alisava a minha<br />

mão que segurava o gravador, como se acarinhasse as palavras; quando queria controlar a<br />

<strong>em</strong>oção, interromper algum assunto ou enfatizar <strong>de</strong>terminado aspecto, afirmava<br />

interrogativamente: “Viu, minha flor?”. Ao encerrarmos, colocou o disco mais recente <strong>de</strong> uma<br />

das cantoras favoritas, que ouvimos enquanto conversávamos um pouco sobre o estado <strong>de</strong><br />

saú<strong>de</strong> da irmã, que fazia aniversário naquele dia e, pediu que nos encontráss<strong>em</strong>os dois dias<br />

<strong>de</strong>pois, para que pu<strong>de</strong>sse colocar alguma coisa que porventura tivesse esquecido.<br />

Com efeito, no segundo encontro, pediu-me para acrescentar uma discussão recente<br />

que tivera com o cunhado sobre sua posição i<strong>de</strong>ológica, percebe-se como humanista, por não<br />

tolerar injustiça social, ele a chamou <strong>de</strong> comunista, como se fosse uma aberração e, s<strong>em</strong> um<br />

motivo plausível, agrediu-a fisicamente, não <strong>de</strong>nunciou por causa da doença da irmã, passou a<br />

visitá-la somente quando sabia que não ia encontrá-lo, mas ela acabou <strong>de</strong>scobrindo, seu<br />

sofrimento era visível e, por isso, reconsi<strong>de</strong>rou.<br />

Na festa <strong>de</strong> aniversário <strong>de</strong>ssa irmã, logo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> nossa primeira entrevista, uma<br />

amiga, comentou que o cunhado lhe contara sobre a briga e afirmara que estava arrasado, pois<br />

a amava. Desconversou, mas falou com o ex-namorado que fora com ela, ambos cogitando<br />

um possível interesse sexual, mas não amor. Nesse mesmo dia, as sobrinhas pequenas<br />

estavam brigando e ela foi acomodar, explicando-lhes que quando as pessoas se gostam<br />

<strong>de</strong>v<strong>em</strong> <strong>ser</strong> carinhosas umas com as outras, abraçar, beijar e, não brigar. O cunhado aproveitou


a ocasião para se aproximar e <strong>de</strong>stilar insinuações, que não <strong>de</strong>ixavam dúvidas. S<strong>em</strong>pre soube<br />

que gostava <strong>de</strong>la, mas quanto a um sentimento maior, nunca quis pensar.<br />

Ao nos <strong>de</strong>spedirmos, abraçou-me carinhosamente, verbalizando, como todas as vezes<br />

<strong>em</strong> que nos encontramos, o quanto me acha zen, tranqüila, o que provavelmente explica o fato<br />

<strong>de</strong> ter se sentido tão à vonta<strong>de</strong> para me permitir a invasão <strong>de</strong> sua privacida<strong>de</strong> e intimida<strong>de</strong>.<br />

Entrevista 4: Lúcia<br />

A informante foi indicada por uma aluna <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> é parente, não fez objeções a dar<br />

seu test<strong>em</strong>unho, apenas pediu para que lhe telefonasse <strong>em</strong> uma sexta-feira, quando estaria<br />

livre. Tive um compromisso <strong>de</strong> trabalho e só a procurei no sábado pela manhã, ficando<br />

combinado que iria à sua casa no início da tar<strong>de</strong>. Indicou-me então referências que me<br />

ajudass<strong>em</strong> a localizar o en<strong>de</strong>reço mais facilmente. Lá chegando, encontrei seus pais, ambos<br />

idosos, sentados na varanda, perguntei por ela, que logo veio me receber. Dirigimo-nos à sala<br />

<strong>de</strong> entrada, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ríamos conversar mais re<strong>ser</strong>vadamente.<br />

Iniciou a entrevista falando da infância, teve uma educação rígida, cheia <strong>de</strong> proibições,<br />

era muito presa. O pai trabalhava <strong>em</strong>barcado e a mãe tinha receio <strong>de</strong> acontecer algo com os<br />

filhos e <strong>ser</strong> responsabilizada pelo marido.<br />

T<strong>em</strong> 50 anos, nasceu <strong>em</strong> outro estado, mas se mudou com a família quando ainda era<br />

b<strong>em</strong> jov<strong>em</strong>. É funcionária pública e trabalha na área <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> como enfermeira, <strong>em</strong>bora seja<br />

formada <strong>em</strong> Jornalismo, profissão que nunca exerceu, pois não conseguiu trabalho, sente-se<br />

frustrada por isso. Afirmou que t<strong>em</strong> um bom relacionamento com os irmãos (uma já morreu),<br />

eles a apóiam, mas são casados, apenas faz<strong>em</strong> visitas, percebe que por <strong>ser</strong> <strong>solteira</strong>, acham que<br />

cabe a ela ficar com os pais e cuidar <strong>de</strong>les. Disse também que a família nunca lhe cobrou<br />

casamento, mas já foi alvo <strong>de</strong> discriminação e preconceito. Entretanto, não importa o que<br />

outros pensam, mas o que pensa sobre si mesma.


Per<strong>de</strong>u a virginda<strong>de</strong> aos 36 anos, supõe que <strong>de</strong>vido à educação repressora, “tudo era<br />

pecado”, teve cerca <strong>de</strong> sete namorados, cujos relacionamentos duravam entre um e dois anos.<br />

Conheceu o último namorado quando tinha 45 e ele estava com 48 anos. Eles namoraram<br />

durante um ano, ele era ótimo, atencioso e resolveram morar juntos, mas durou apenas três<br />

meses, <strong>de</strong>scobriu que ele é esquizofrênico, fugiu com a roupa do corpo e voltou para a casa<br />

dos pais. Agora, se encontrar alguém, ótimo, senão, tudo b<strong>em</strong>. Planeja comprar um<br />

apartamento próximo à residência paterna, precisa <strong>de</strong> espaço próprio, mas não preten<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar<br />

<strong>de</strong> assisti-los.<br />

Romântica, não assiste a novelas porque falam da realida<strong>de</strong>, prefere ler romances ou<br />

livros <strong>de</strong> auto-ajuda. Gosta <strong>de</strong> ir ao cin<strong>em</strong>a, cita o título do último filme que assistiu e, com<br />

olhar sonhador, conta o enredo, <strong>de</strong>talha algumas cenas. Adora dançar, sente-se leve e livre,<br />

não per<strong>de</strong> shows que toqu<strong>em</strong> músicas caribenhas. Aprecia músicas românticas e, todas<br />

aquelas tocadas nas décadas <strong>de</strong> 1960 e 1970, pois era um t<strong>em</strong>po b<strong>em</strong> diferente <strong>de</strong> hoje, havia<br />

liberda<strong>de</strong>, mas não libertinag<strong>em</strong>.<br />

Quando <strong>de</strong>sliguei o gravador, contou-me mais <strong>de</strong>talhadamente sobre a convivência <strong>de</strong><br />

três meses com o ex-namorado, que me autorizou a usar na pesquisa e, <strong>de</strong>pois, concordou <strong>em</strong><br />

gravar: ele a agrediu fisicamente, fez-lhe ameaças, humilhou-a, além <strong>de</strong> mantê-la prisioneira<br />

<strong>em</strong> casa e ter inutilizado seu celular para não pedir ajuda à família, até que conseguiu fugir.<br />

Indicou-me o en<strong>de</strong>reço <strong>de</strong> sua residência para que passasse por lá e constatasse as condições<br />

precárias, a sujeira. Depois que se libertou ainda o encontrou cerca <strong>de</strong> três vezes, pediu-lhe<br />

que voltasse, pois tinham um caso mal resolvido, que fosse pegar as coisas que lá <strong>de</strong>ixara,<br />

mas afirmou que eram pertences <strong>de</strong> alguém que morrera e, portanto, podia doar a alguma<br />

instituição <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>.<br />

Contou-me ainda sobre a ida para um restaurante próximo à sua casa, dois dias antes<br />

da entrevista, com uma amiga separada e duas colegas casadas com qu<strong>em</strong> trabalha no


hospital, ocasião <strong>em</strong> que foram abordadas por três senhores que ali se encontravam. As<br />

amigas casadas se sentiram incomodadas, com receio <strong>de</strong> <strong>ser</strong> mal interpretadas, dar<strong>em</strong> a falsa<br />

impressão <strong>de</strong> que estavam disponíveis. Não houve nenhuma falta <strong>de</strong> respeito, apenas<br />

conversaram, não é uma <strong>solteira</strong> <strong>de</strong>sfrutável, às vezes sai só para dançar, conhecer pessoas e<br />

conversar, s<strong>em</strong> outras intenções, mas acha que não acreditaram e nunca mais sairão com ela,<br />

além <strong>de</strong> comentar<strong>em</strong> o ocorrido com os <strong>de</strong>mais colegas.<br />

Encerrado o <strong>de</strong>poimento, indagou-me acerca da pesquisa, como faria para garantir o<br />

anonimato dos informantes, perguntou-me se estava tendo dificulda<strong>de</strong> para coletar os dados,<br />

quantas <strong>solteira</strong>s faltavam para <strong>ser</strong> entrevistadas, oferecendo-se para sondar uma amiga<br />

também <strong>solteira</strong>, mas após aquele dia, nunca mais nos falamos, o que me leva a supor que,<br />

assim como tantas outras mulheres <strong>solteira</strong>s, a amiga preferiu não revelar sua história.<br />

Entrevista 5: Mabel<br />

A informante foi indicada por um colega <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> é parente e, assim que<br />

lhe telefonei, prontamente concordou <strong>em</strong> dar seu <strong>de</strong>poimento. Combinamos para uma sexta-<br />

feira, no final da tar<strong>de</strong>, mas compromissos profissionais fizeram com que só conseguíss<strong>em</strong>os<br />

nos encontrar três dias <strong>de</strong>pois, na <strong>em</strong>presa pública on<strong>de</strong> trabalha, após o expediente. Lá<br />

chegando, esperava-me na recepção e ali mesmo conversamos, uma vez que a maioria dos<br />

colegas fora <strong>em</strong>bora e ela, naquele dia, estava <strong>de</strong> plantão, o que a impedia <strong>de</strong> se ausentar.<br />

Tímida, <strong>de</strong> voz pausada e olhos fugidios, contou-me que t<strong>em</strong> 50 anos, mora com os<br />

pais, trabalha há cerca <strong>de</strong> 10 anos <strong>em</strong> uma instituição pública, on<strong>de</strong> atua no setor <strong>de</strong> triag<strong>em</strong>,<br />

recebe os usuários, ouve suas <strong>de</strong>mandas e os encaminha a <strong>de</strong>partamentos, instituições ou<br />

agenda audiências, <strong>de</strong> acordo com a situação apresentada.<br />

Nasceu no interior do estado e mudou-se para a capital ainda criança, mas nas férias<br />

s<strong>em</strong>pre voltava à cida<strong>de</strong> natal. T<strong>em</strong> sete irmãos, quase todos casados, mora com os pais,


juntamente com uma irmã, também <strong>solteira</strong>. Teve uma educação bastante rígida, a família é<br />

evangélica, mas sua infância foi feliz, diferente <strong>de</strong> hoje, só brincava com os irmãos não saia<br />

s<strong>em</strong> os pais, até para ir à escola, o pai levava e buscava.<br />

Explicou que somente na adolescência po<strong>de</strong> ir à escola sozinha, <strong>de</strong> ônibus, pois na<br />

época não tinham carro. Aos vinte e poucos anos começou a trabalhar, tinha o segundo grau,<br />

foi professora <strong>de</strong> crianças. Resolveu então fazer faculda<strong>de</strong>, cursou licenciatura <strong>em</strong> francês.<br />

Trabalhou durante <strong>de</strong>zesseis anos no Grupo Paes Mendonça, cuja venda a <strong>de</strong>ixou<br />

<strong>de</strong>s<strong>em</strong>pregada. Na época, tinha acabado <strong>de</strong> adquirir um apartamento, viu-se prestes a perdê-<br />

lo, não tinha condições <strong>de</strong> pagar as prestações. Um irmão propôs pagar a mensalida<strong>de</strong>, <strong>em</strong><br />

troca ficaria residindo no imóvel, até ela reestruturar sua vida, mas não foi o que aconteceu,<br />

tomou posse e se recusa a <strong>de</strong>volvê-lo. Por essa razão, teve que recorrer à justiça.<br />

Procurou <strong>em</strong>prego <strong>em</strong> outras <strong>em</strong>presas, mas s<strong>em</strong>pre ouvia que o salário era<br />

incompatível com suas qualificações, então resolveu tentar um concurso, sendo b<strong>em</strong>-sucedida.<br />

Quando já estava adaptada, foi convocada pela Prefeitura para lecionar, mas não po<strong>de</strong> aceitar,<br />

pois ambos eram cargos públicos. Gosta do que faz, mas o salário não é dos melhores, além<br />

<strong>de</strong> não oferecer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ascensão, pensa <strong>em</strong> fazer outro concurso, pois com 50 anos<br />

as chances <strong>de</strong> <strong>em</strong>prego são ainda menores. Apesar <strong>de</strong> ganhar pouco, conseguiu economizar e<br />

adquiriu outro apartamento, no próximo ano, preten<strong>de</strong> comprar um carro.<br />

Nas horas vagas, costuma ir à Igreja, on<strong>de</strong> também <strong>de</strong>senvolve ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

entretenimento com grupos <strong>de</strong> idosos e crianças. Gosta <strong>de</strong> ler livros religiosos ou <strong>de</strong> auto-<br />

ajuda, revistas s<strong>em</strong>anais e, ou dirigidas ao público f<strong>em</strong>inino e, <strong>de</strong> fofoca, pois “todo mundo<br />

gosta <strong>de</strong> saber a vida dos artistas”. Ouve músicas evangélicas e vai à praia quando quer fazer<br />

algo diferente.<br />

É virg<strong>em</strong>, teve apenas um namorado, que s<strong>em</strong>pre a tratou com respeito. Foi educada<br />

para casar, mas não vê possibilida<strong>de</strong>, os homens mais velhos só quer<strong>em</strong> meninas e os mais


jovens só quer<strong>em</strong> ficar s<strong>em</strong> compromisso, com o que não concorda. Percebe que as mulheres<br />

casadas vê<strong>em</strong> as <strong>solteira</strong>s como uma ameaça, por isso evita maiores contatos com homens<br />

casados. Resta-lhe, então sublimar <strong>de</strong>sejos e sonhos românticos, exilá-los <strong>de</strong> seus planos<br />

futuros e, com afinco, estudar para um novo concurso, comprar um automóvel e <strong>de</strong>ixar a casa<br />

dos pais, sonhos certamente mais tangíveis.<br />

Entrevista 6: Ana<br />

A informante t<strong>em</strong> 62 anos e cheguei a ela através <strong>de</strong> uma amiga, foram muitas as<br />

tentativas para contatá-la, mas estava envolvida na campanha eleitoral e somente após as<br />

eleições consegui falar com ela. Foi bastante receptiva e marcamos a entrevista para uma<br />

segunda-feira à noite, <strong>em</strong> sua residência, quando ambas estávamos disponíveis.<br />

Discorreu livr<strong>em</strong>ente sobre sua vida, <strong>de</strong>stacando, segundo ela, os momentos mais<br />

marcantes, que contribuíram para <strong>ser</strong> o que é hoje. L<strong>em</strong>brou da morte pr<strong>em</strong>atura da mãe, os<br />

cuidados <strong>de</strong>dicados ao irmão mais novo, que tinha apenas 10 meses quando ela morreu. O pai<br />

conseguiu <strong>em</strong>prego <strong>em</strong> outra cida<strong>de</strong>, mudou-se, ficaram com a avó e uma tia e, nas férias<br />

pegavam um tr<strong>em</strong> e ele os esperava na estação. Mas, logo se casou, quando o irmão<br />

completou 3 anos, ele foi morar com o pai e a madrasta, que sofrera um aborto. Novamente o<br />

conflito, tinham que optar entre permanecer com a avó e a tia ou residir<strong>em</strong> com o pai e a<br />

esposa. Os adultos finalmente <strong>de</strong>cidiram que as crianças mais velhas continuariam com a avó<br />

e a mais nova com o pai. Não foi tão difícil, pois nessa época o pai já retornara à cida<strong>de</strong>.<br />

Com 17 anos já trabalhava e tinha seu próprio salário, diferent<strong>em</strong>ente das moças da<br />

época, era in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, tinha muitas (os) amigas (os), mas assustava os rapazes, pois com<br />

aquela ida<strong>de</strong> eles não trabalhavam. Per<strong>de</strong>u a virginda<strong>de</strong> aos 18 anos com um namorado, ele<br />

queria casar e ela, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aquela época, não se sentia atraída pelo casamento ou maternida<strong>de</strong>.<br />

L<strong>em</strong>bra que na década <strong>de</strong> 1970 era moda produção in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, mas n<strong>em</strong> isso ela quis.


Concluiu o segundo grau, tentou vestibular para a área <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, mas não conseguiu<br />

passar. O trabalho a absorveu e <strong>de</strong>sistiu <strong>de</strong> cursar o terceiro grau, estudou francês, inglês, mas<br />

na hora das promoções era preterida por não ter nível superior. Resolveu então tentar o<br />

vestibular novamente, formou-se, <strong>de</strong>pois fez pós-<strong>graduação</strong> <strong>em</strong> outro estado, on<strong>de</strong> pensou <strong>em</strong><br />

fixar residência, mas o pai <strong>de</strong>scobriu um câncer e preferiu voltar para perto <strong>de</strong>le.<br />

Costuma ler romances, principalmente <strong>de</strong> autores latino-americanos e livros sobre<br />

política; vai muito ao cin<strong>em</strong>a, cita o nome <strong>de</strong> atores, diretores e filmes preferidos, sintetiza o<br />

enredo e aborda cenas que a <strong>em</strong>ocionaram; comenta também sobre o seu amor pela música,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> bossa nova, popular brasileira, jazz, até clássica, e <strong>de</strong>staca o nome <strong>de</strong> cantores (as) e<br />

compositores mais apreciados, tanto aqueles já consagrados quanto talentos recém-<br />

<strong>de</strong>scobertos. Também é uma freqüentadora assídua <strong>de</strong> espetáculos teatrais e, ou musicais, um<br />

amigo brinca e diz que po<strong>de</strong>ria <strong>ser</strong> porteira <strong>em</strong> algum teatro. Mas adora mesmo é viajar, para<br />

conhecer outros lugares, culturas e pessoas ou rever velhos amigos. Não é afeita a luxos,<br />

extravagâncias, exceto viajar, seja para o interior do estado ou para o exterior.<br />

Teve um namorado durante <strong>de</strong>z anos, faz dois anos que não se vê<strong>em</strong>, ela estava com<br />

câncer <strong>de</strong> pele – melanomas – e ele teve uma trombose, <strong>de</strong>cidiram se afastar por um t<strong>em</strong>po.<br />

Des<strong>de</strong> então, não se relacionou com mais ninguém, porque não encontrou qu<strong>em</strong> lhe<br />

interessasse. Recent<strong>em</strong>ente, voltaram a se falar por telefone, não sabe se vão voltar. Não sente<br />

solidão, t<strong>em</strong> muitos parentes, sobrinhos que a amam e a qu<strong>em</strong> ama – trata b<strong>em</strong> pensando no<br />

futuro – (risos); mesmo aposentada, continua trabalhando, é assessora <strong>de</strong> um sindicato, o que<br />

a mantém b<strong>em</strong> informada e, além disso, t<strong>em</strong> contato com pessoas interessantes.<br />

A solteirice para ela é uma opção e, por isso, não a incomoda, <strong>em</strong>bora já tenha sido<br />

alvo <strong>de</strong> discriminação, mas segundo afirma, sabe se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r e t<strong>em</strong> segurança <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> é e do<br />

que quer, então não permite que as pessoas invadam seu espaço e opin<strong>em</strong> sobre suas escolhas.


Seu <strong>de</strong>poimento durou cerca <strong>de</strong> três horas, a narrativa foi pontuada por reflexões sobre<br />

a conjuntura do país e ob<strong>ser</strong>vações indignadas sobre a injustiça social, b<strong>em</strong> como a sua<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> manter viva a utopia e acreditar na transformação da socieda<strong>de</strong>. Quando,<br />

satisfeita, <strong>de</strong>sliguei o gravador, conversamos ainda durante alguns minutos, <strong>de</strong>sculpou-se por<br />

se envolver tanto com a conversa que se esquecera <strong>de</strong> me oferecer uma água ou suco,<br />

respondi-lhe que seu test<strong>em</strong>unho para mim era mais do que suficiente. Encerramos o encontro<br />

com a chegada <strong>de</strong> um companheiro <strong>de</strong> militância política que viera visitá-la.<br />

Entrevista 7: Indira<br />

A informante t<strong>em</strong> 67 anos, foi indicada por uma colega minha <strong>de</strong> trabalho e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

primeiro contato concordou <strong>em</strong> <strong>ser</strong> entrevistada. Forneceu-me o en<strong>de</strong>reço e marcamos para<br />

conversar <strong>em</strong> sua residência, no final da tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma quinta-feira. Um pouco antes do horário<br />

combinado, telefonei para confirmar o encontro, pedir uma referência que me ajudasse a<br />

localizar a rua e, feito isso, para lá me dirigi.<br />

Recebeu-me <strong>de</strong> formal educada e cordial no vestíbulo do apartamento e, após me<br />

conduzir até a sala, sentamo-nos <strong>em</strong> um sofá, enquanto me lançava um olhar atento,<br />

perscrutador, queria saber qu<strong>em</strong> eu era, o objetivo da pesquisa, o que eu pretendia investigar.<br />

Após as minhas explicações, explicou que não se encontrava <strong>em</strong> uma <strong>de</strong> suas melhores fases,<br />

vinha atravessando um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão, mas mesmo assim, tentaria falar algumas<br />

coisas sobre sua vida.<br />

Contou que nasceu <strong>em</strong> outro país e até os 10 anos viveu no meio rural, <strong>de</strong>pois veio<br />

para o Brasil com os pais e irmãos, alguns parentes do lado paterno tinham imigrado fazia<br />

algum t<strong>em</strong>po. No começo, só convivia com os m<strong>em</strong>bros da própria coletivida<strong>de</strong>. O pai se<br />

suicidou aos 35 anos, <strong>de</strong>ixando a família à <strong>de</strong>riva, mas sobreviveram.


Estudou <strong>em</strong> escolas f<strong>em</strong>ininas, concluiu o ginásio, enquanto exercitava as prendas do<br />

lar, apren<strong>de</strong>u a cozinhar e costurar, preparando-se para o <strong>de</strong>stino das mulheres da família – o<br />

casamento –. Durante uma fase <strong>de</strong> sua vida, tanto ela quanto as irmãs apenas se prepararam<br />

para <strong>ser</strong><strong>em</strong> exímias donas <strong>de</strong> casa, esposas e mães <strong>de</strong>dicadas, mas se sentia inquieta, almejava<br />

mais, ainda que não soubesse o quê exatamente.<br />

Começou a trabalhar <strong>em</strong> uma <strong>em</strong>presa multinacional, retomou os estudos, conseguiu<br />

concluir um curso <strong>de</strong> secretariado noturno, surgiram novas oportunida<strong>de</strong>s no campo<br />

profissional, principalmente <strong>de</strong>vido à sua <strong>de</strong>senvoltura com outros idiomas e, foi promovida.<br />

Gosta do que faz, está s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> contato com pessoas interessantes, cursou faculda<strong>de</strong> e,<br />

<strong>em</strong>bora não exerça a profissão, os conhecimentos adquiridos a auxiliam muito <strong>em</strong> suas<br />

ativida<strong>de</strong>s rotineiras.<br />

Falou sobre a perda da virginda<strong>de</strong>, aos “vinte e muitos anos”, com um namorado e, da<br />

culpa por sentir <strong>de</strong>sejo sexual e aplacá-lo fora dos sagrados laços matrimoniais, o que era<br />

contrário à educação rígida que recebera. L<strong>em</strong>brou que, apesar <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejar o “príncipe<br />

encantado”, seus namorados, paradoxalmente, eram machistas e autoritários, talvez porque,<br />

inconscient<strong>em</strong>ente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> jov<strong>em</strong> já pressentisse sua incompatibilida<strong>de</strong> com o casamento.<br />

Relacionou-se durante vinte anos com um hom<strong>em</strong> que morava <strong>em</strong> outro país, viajavam juntos<br />

nas férias, ia para o exterior encontrá-lo ou ele vinha ao Brasil, mas cada um com sua vida,<br />

<strong>em</strong> seu próprio país, a família nunca lhe cobrou um compromisso permanente.<br />

Cultiva o hábito da leitura, gosta <strong>de</strong> romances, cita o título do último livro que leu,<br />

mas <strong>de</strong>staca que adquiriu um <strong>de</strong> auto-ajuda e não conseguiu terminá-lo; l<strong>em</strong>bra também o<br />

nome <strong>de</strong> autores preferidos. Às vezes costuma ir ao cin<strong>em</strong>a, mas quando está <strong>em</strong> casa assiste<br />

filmes franceses exibidos no canal Eurochannel, acompanhou a última novela das oito, na<br />

Re<strong>de</strong> Globo, mas prefere mesmo é ler a revista do jornal “El País”, que t<strong>em</strong> ótimos artigos.


Para ela, a revolução sexual ainda não aconteceu, os homens ainda prefer<strong>em</strong> as<br />

mulheres submissas, as in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes assustam, as mulheres continuam a fingir orgasmos e<br />

os homens s<strong>em</strong> se preocupar<strong>em</strong> <strong>em</strong> proporciona-lhes prazer, é muita hipocrisia.<br />

Comentou ainda sobre a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> enfrentar o envelhecimento, antes era admirada<br />

pelos homens, hoje t<strong>em</strong> plena consciência que não mais atrai os olhares masculinos e, isso é o<br />

que a incomoda mais, talvez por isso esteja <strong>de</strong>primida. Faz algum t<strong>em</strong>po está s<strong>em</strong> ninguém, o<br />

último relacionamento foi com um argentino mais jov<strong>em</strong>, que conheceu <strong>em</strong> uma <strong>de</strong> suas<br />

viagens. Aconselhada por uma amiga, arriscou, pagou sua passag<strong>em</strong> e ele veio encontrá-la no<br />

Brasil, estava certa, só queria usá-la, poucos dias <strong>de</strong>pois estava com outra mais jov<strong>em</strong>. Não<br />

sofreu, pois não estava apaixonada, mas também os homens mais velhos não a atra<strong>em</strong>, então<br />

só resta ficar sozinha.<br />

Ao encerrar seu <strong>de</strong>poimento, fez algumas perguntas sobre a pesquisa, pediu notícias da<br />

amiga que nos aproximou, mas parecia ausente, seu pensamento vagueava por outros lugares,<br />

suas últimas palavras <strong>de</strong>ixaram-me uma sensação <strong>de</strong> nostalgia, pois não po<strong>de</strong>ria retroce<strong>de</strong>r no<br />

t<strong>em</strong>po; não mais se sentia bela, atraente; a aposentadoria não tardaria a vir; os projetos futuros<br />

eram uma incógnita, <strong>em</strong>bora soubesse que não po<strong>de</strong>ria adiá-los mais, tinha apenas a certeza<br />

<strong>de</strong> que viveria muitos anos ainda, dada a longevida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua família.<br />

Entrevista 8: Flora<br />

A informante t<strong>em</strong> 43 anos, foi indicada por um amigo <strong>em</strong> comum que telefonou para<br />

ela e, após explicar sobre a pesquisa, passou a ligação para mim, que estada do seu lado.<br />

Conversamos rapidamente, mostrou-se receptiva, mas esclareceu que naquele dia tinha uma<br />

confraternização natalina e me pediu para contatá-la no dia seguinte, um domingo, pela<br />

manhã. Conforme combinado, telefonei para ela, mas solicitou o adiamento do encontro, pois


estava reformando a cozinha do apartamento e iria receber o marceneiro, marcamos então<br />

para o sábado seguinte.<br />

De início, tentou novamente adiar o <strong>de</strong>poimento, indagou sobre as entrevistas<br />

agendadas, se po<strong>de</strong>ríamos transferir a conversa para o dia seguinte, <strong>de</strong>pois questionou o<br />

t<strong>em</strong>po médio <strong>de</strong> cada entrevista e, finalmente concordou <strong>em</strong> se encontrar comigo após o<br />

almoço, <strong>em</strong> um dos Shoppings da cida<strong>de</strong>. Um pouco antes da hora marcada, ligou para avisar<br />

que se atrasaria um pouco, mas que a aguardasse <strong>em</strong> um dos cafés. Como não nos<br />

conhecíamos, <strong>de</strong>screvi algumas características que a ajudass<strong>em</strong> a me i<strong>de</strong>ntificar.<br />

Cheguei um pouco antes e, como o café estava lotado, aguar<strong>de</strong>i-a na entrada, pouco<br />

<strong>de</strong>pois se aproximou e, como vagara uma mesa, para lá nos dirigimos. Assim que nos<br />

sentamos, indagou sobre a pesquisa, a escolha do t<strong>em</strong>a, aproveitei para explicar a metodologia<br />

adotada, que comparou à sua própria pesquisa e dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas pra realizá-la,<br />

ressaltando que este tinha sido o principal motivo para colaborar comigo, sabe quanto t<strong>em</strong>po e<br />

esforço são <strong>de</strong>spendidos e, muitas vezes, por um motivo ou outro, não dá certo.<br />

Falou da infância, da ligação com a mãe, <strong>de</strong> sua introspecção, s<strong>em</strong>pre foi o que se<br />

chama “CDF”, vivia lendo, estudando. O mesmo aconteceu na adolescência, voltou-se para os<br />

estudos, daí consi<strong>de</strong>rar sua iniciação sexual tardia, aos 19 anos, com um professor. Concluiu a<br />

<strong>graduação</strong>, fez Mestrado e atualmente está cursando o Doutorado, é professora universitária.<br />

Embora econômica nas palavras, reticente, comentou que saiu da casa dos pais e foi<br />

morar sozinha para evitar conflitos com o pai e um irmão, ambos alcoólotras. Contou também<br />

que t<strong>em</strong> um vínculo afetivo mais forte com um irmão que <strong>de</strong>scobriu já crescida, tido pelo pai<br />

quando ainda era noivo <strong>de</strong> sua mãe. Gostam-se tanto que as pessoas até pensavam que eram<br />

namorados, pois não são parecidos e só andavam abraçados ou <strong>de</strong> mãos dadas.<br />

Falou também da ida para o interior, quando foi lecionar na Universida<strong>de</strong>, da casa que<br />

divi<strong>de</strong> com um colega e da relação que mantém com um professor casado, são momentos


ons, <strong>de</strong> compartilhamento, mas não t<strong>em</strong> expectativas, ainda aguarda o “príncipe encantado”<br />

(risos).<br />

Afirmou ainda que não sente solidão, <strong>em</strong>bora <strong>em</strong> datas com<strong>em</strong>orativas fosse bom ter o<br />

namorado ao lado, mas também t<strong>em</strong> que <strong>ser</strong> alguém que a compreenda, com qu<strong>em</strong> tenha<br />

afinida<strong>de</strong>, pois não gosta muito <strong>de</strong> sair, <strong>de</strong>dica-se aos estudos e pesquisas, então não po<strong>de</strong>ria<br />

acompanhar um namorado que gostasse <strong>de</strong> farrear.<br />

Nas horas vagas costuma assistir filmes, comenta alguns títulos e enredos, que a<br />

marcaram e costuma utilizar <strong>em</strong> sala <strong>de</strong> aula com os alunos; ouve muito música clássica e cita<br />

os compositores preferidos, mas também gosta <strong>de</strong> rock e do estilo new age. Na televisão<br />

assiste a filmes, <strong>ser</strong>iados e programas dos canais Nathional Geografic e Discovery.<br />

Explicou que às vezes é cobrada por parentes com relação à sua solteirice, mas acha<br />

que ainda vai encontrar alguém, heterossexual, para viver. A informante ressaltou a<br />

heterossexualida<strong>de</strong> como condição para um envolvimento afetivo tanto no início quanto no<br />

final da entrevista, o que não ocorreu nos <strong>de</strong>poimentos dos <strong>de</strong>mais sujeitos investigados.<br />

Outra coisa que chamou a atenção foi o fato <strong>de</strong>, no nosso segundo contato, ter<br />

afirmado que iria sondar outras (os) amigas (os) <strong>solteiro</strong>s para compor<strong>em</strong> a amostra da minha<br />

pesquisa e, no final da entrevista, quando perguntei se teria alguém para me indicar,<br />

aparent<strong>em</strong>ente esquecida da oferta anterior, disse que não l<strong>em</strong>brava <strong>de</strong> ninguém, somente<br />

alguns amigos que eram gays e, portanto, não valia à pena investigá-los. Ao nos <strong>de</strong>spedirmos,<br />

pediu-me que lhe enviasse o estudo quando estivesse concluído, pois gostaria muito <strong>de</strong> ler.<br />

Entrevista 9: Helena<br />

A informante t<strong>em</strong> 50 anos, foi indicada por uma amiga minha e, quando nos falamos<br />

por telefone, concordou imediatamente <strong>em</strong> dar seu test<strong>em</strong>unho, combinamos que eu ligaria no<br />

meio da s<strong>em</strong>ana para combinarmos o horário e o local on<strong>de</strong> nos encontraríamos. Marcamos a<br />

entrevista para um sábado, às 14:30 horas, <strong>em</strong> um café <strong>de</strong> um dos Shoppings da cida<strong>de</strong>, mas


ela atrasou, fora levar um sobrinho com virose ao hospital, ligou-me cerca <strong>de</strong> quarenta<br />

minutos <strong>de</strong>pois do horário previsto, avisando que acabara <strong>de</strong> chegar. Sentamo-nos <strong>em</strong> uma<br />

mesa mais re<strong>ser</strong>vada do café, perguntou-se sobre a pesquisa, como estava sendo <strong>de</strong>senvolvida,<br />

expliquei-lhe sobre a metodologia, o cuidado para pre<strong>ser</strong>var o anonimato das (os)<br />

respon<strong>de</strong>ntes.<br />

Começou então a contar sua história <strong>de</strong> filha única <strong>de</strong> um pai separado, muito mais<br />

velho que sua mãe e com filhos do casamento anterior, – que não conheceu –, pois viviam <strong>em</strong><br />

outro estado. Falou da ligação muito forte com o pai, ele marcou a sua vida, <strong>em</strong>bora o tenha<br />

perdido aos 11 anos, o que segundo ela contribuiu para que permanecesse <strong>em</strong> sua m<strong>em</strong>ória<br />

como o mo<strong>de</strong>lo masculino i<strong>de</strong>al.<br />

Comentou sobre seus relacionamentos amorosos, um noivo que não entendia porque<br />

não queria ir morar <strong>em</strong> sua fazenda, n<strong>em</strong> largar tudo para <strong>ser</strong> apenas mãe e esposa; outro com<br />

qu<strong>em</strong> se envolveu e também esperava que fosse <strong>em</strong>bora para outro estado e <strong>de</strong>ixasse sua mãe.<br />

Não foi, formou-se, fez especialização, algumas pessoas suger<strong>em</strong> que curse um mestrado, mas<br />

o investimento <strong>ser</strong>ia muito alto e, como é funcionária pública e não t<strong>em</strong> pretensão <strong>de</strong> lecionar,<br />

acha que não vale à pena.<br />

Gosta muito <strong>de</strong> ler, s<strong>em</strong>pre t<strong>em</strong> mais <strong>de</strong> um livro na cabeceira da cama e não dorme<br />

s<strong>em</strong> antes ler alguma coisa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> gibi a livros técnicos e romances; também aprecia a música<br />

popular brasileira, mas sua paixão mesmo é viajar, conhece e, ou preten<strong>de</strong> conhecer vários<br />

lugares do mundo, exceto os Estados Unidos, cuja cultura não a atrai. Afirma que, <strong>em</strong>bora<br />

more com a mãe <strong>de</strong> 80 anos, ela é muito in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, cada uma com sua vida própria, t<strong>em</strong><br />

muitas (os) amigas (os) com qu<strong>em</strong> costuma sair e viajar.<br />

Há cinco anos está s<strong>em</strong> namorado, mas não se sente só. Já lhe dis<strong>ser</strong>am que está<br />

<strong>solteira</strong> porque é muito exigente, t<strong>em</strong> a personalida<strong>de</strong> forte. Explica que não se vê namorando<br />

alguém que não possa acompanhá-la nos lugares ou <strong>em</strong> viagens, pois não t<strong>em</strong> recursos


econômicos para tanto, tampouco se relacionaria com um hom<strong>em</strong> mais novo, não teria o que<br />

conversar com ele. Então, acha que é melhor ficar sozinha.<br />

Comenta que sofria <strong>de</strong> obesida<strong>de</strong> mórbida, fez cirurgia <strong>de</strong> redução <strong>de</strong> estômago, mas<br />

esclarece, não comia <strong>em</strong> excesso, apenas tinha o metabolismo mais lento. Conseguiu<br />

<strong>em</strong>agrecer s<strong>em</strong> precisar recorrer a cirurgia plástica. Pon<strong>de</strong>ra que, certamente, a obesida<strong>de</strong><br />

atrapalhou sua vida afetiva nos últimos anos, pois alguém com auto-estima baixa não se gosta<br />

e, assim, qu<strong>em</strong> vai gostar <strong>de</strong>la (ele)? A terapia t<strong>em</strong> ajudado muito, <strong>em</strong> breve vai viajar, passar<br />

vinte e dois dias na Grécia. Esse é seu projeto <strong>de</strong> vida, viajar, além <strong>de</strong> continuar trabalhando<br />

no que gosta, com famílias probl<strong>em</strong>áticas.<br />

Após a entrevista, conversamos sobre amenida<strong>de</strong>s, indicou-me um local on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria<br />

conversar mais à vonta<strong>de</strong> com a próxima informante, que já havia chegado e aguardava nas<br />

proximida<strong>de</strong>s. Ambas entreolharam-se rapidamente, talvez para conferir se já tinham se<br />

encontrado <strong>em</strong> algum lugar e, enquanto ela permaneceu no primeiro piso, segui com a “nova<br />

amiga” para o andar superior, à procura <strong>de</strong> local mais a<strong>de</strong>quado, mas logo <strong>de</strong>pois, abordoou-<br />

nos novamente, mostrou-nos uma creperia, on<strong>de</strong> nos instalamos, então se <strong>de</strong>spediu, entrando<br />

rapidamente <strong>em</strong> uma loja <strong>de</strong> <strong>de</strong>partamentos.<br />

Entrevista 10: Eva<br />

A informante soube da pesquisa através <strong>de</strong> uma amiga <strong>em</strong> comum e foi a única que<br />

não precisou <strong>ser</strong> convencida a participar, ao contrário, ofereceu-se espontaneamente e, apesar<br />

<strong>de</strong> l<strong>em</strong>brá-la que tinha apenas 35 anos e talvez eu preferisse mulheres mais velhas, pediu-lhe<br />

que me passasse o seu telefone, caso eu quisesse conversar com ela, que tinha muitas histórias<br />

para contar. Quando liguei mostrou-se surpresa, mas não se fez <strong>de</strong> rogada, imediatamente<br />

concordou <strong>em</strong> me ver, marcamos para um sábado à tar<strong>de</strong>, por volta das 16 horas, quando já<br />

teria concluído outra entrevista, também agendada <strong>em</strong> um dos Shoppings locais, o que


terminou não acontecendo. A primeira entrevistada se atrasara e, quando esta chegou, ainda<br />

conversávamos, <strong>de</strong>sculpei-me pelo inconveniente e ela, sorri<strong>de</strong>nte, afirmou que ia fazer<br />

alguns pagamentos e <strong>de</strong>pois voltava.<br />

Meia hora <strong>de</strong>pois retornou e, como o local estava lotado, dirigimo-nos a uma creperia,<br />

on<strong>de</strong> me contou sua história. Teve uma infância feliz, era muito reforçada pelos pais e ligada<br />

ao irmão, brincavam juntos, ele era o pai <strong>de</strong> suas bonecas e, fazendo alusão à sua condição <strong>de</strong><br />

classe e étnico-racial, l<strong>em</strong>bra que apesar <strong>de</strong> negros, havia Natal <strong>em</strong> sua casa, ganhavam<br />

presentes, por ex<strong>em</strong>plo, o vi<strong>de</strong>ogame Atari e outros jogos que podiam compartilhar.<br />

Os pais s<strong>em</strong>pre incentivaram os estudos, concluiu o curso superior e acha que<br />

construiu uma reputação profissional, é respeitada pelos colegas, atua como vice-presi<strong>de</strong>nte<br />

do órgão representativo <strong>de</strong> sua categoria; trabalha com adolescentes <strong>em</strong> conflito com a lei <strong>em</strong><br />

uma instituição do governo e também <strong>de</strong>senvolve ações educativas voltadas para a saú<strong>de</strong> da<br />

população negra <strong>em</strong> terreiros e centros <strong>de</strong> umbanda. Embora consi<strong>de</strong>re seus <strong>em</strong>pregados<br />

satisfatórios, l<strong>em</strong>bra que é escalada nos finais <strong>de</strong> s<strong>em</strong>ana, convocada para substituir colegas<br />

faltosos ou ultrapassar o horário do expediente, s<strong>em</strong>pre que é necessário, sob a alegação <strong>de</strong><br />

que t<strong>em</strong> mais disponibilida<strong>de</strong> para fazer isso do que seus (suas) colegas casados (as).<br />

Nas horas vagas, gosta <strong>de</strong> ler crônicas e romances, cita alguns autores preferidos, mas<br />

afirma que suas leituras atualmente estão voltadas para livros técnicos, da área profissional.<br />

Aprecia música, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> reggae a música popular brasileira e rock, <strong>de</strong>fine-se como m<strong>em</strong>bro da<br />

geração “cabeça” da década <strong>de</strong> 1980, mas que também ouvia na adolescência baladas<br />

românticas. Costuma também ir ao cin<strong>em</strong>a, comenta os filmes que a marcaram e seus atores<br />

preferidos.<br />

Comprou um imóvel e estava se preparando para morar sozinha quando o pai faleceu<br />

e, como o irmão já casou, faz um ano que está com a mãe, agora que as coisas estão voltando<br />

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aos eixos preten<strong>de</strong> se mudar. Nesse último ano também apren<strong>de</strong>u a dirigir, pois antes o pai e o<br />

irmão a levavam aos lugares.<br />

Afirma que já lhe perguntaram se é lésbica, porque t<strong>em</strong> um colega <strong>de</strong> trabalho que está<br />

interessado nela e não quis namorá-lo. Se fosse não haveria probl<strong>em</strong>a, o fato é que só fica<br />

com alguém quando <strong>de</strong>seja e não apenas para mostrar que não está só. L<strong>em</strong>bra que já se<br />

relacionou com um hom<strong>em</strong> casado, mas não valeu à pena, ele ligou durante um t<strong>em</strong>po<br />

insistindo, mas acha que merece mais. Terminou com o último namorado faz pouco t<strong>em</strong>po,<br />

sua in<strong>de</strong>pendência os assusta, um amigo disse que foi apaixonado por ela, mas nunca<br />

conseguiu se <strong>de</strong>clarar.<br />

Falou também da questão racial, percebe que muitas vezes não é respeitada pelo<br />

próprio usuário porque é negra, usa roupas mais <strong>de</strong>spojadas e não taillers. Acha que os<br />

homens negros prefer<strong>em</strong> namorar mulheres brancas, por uma questão <strong>de</strong> status, ascensão<br />

social, mas não é contra relacionamentos interraciais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que sejam motivados por <strong>de</strong>sejo,<br />

atração. Contudo, o caso é que a mulher negra t<strong>em</strong> mais probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ficar sozinha do que<br />

a mulher branca 114 . Comentou ainda sobre um rapaz negro que se aproximou <strong>de</strong>la no trabalho<br />

e pediu para falar com a chefe do setor, s<strong>em</strong> cogitar que po<strong>de</strong>ria <strong>ser</strong> ela e seu constrangimento<br />

ao <strong>de</strong>scobrir.<br />

Por essas e outras, preten<strong>de</strong> investir cada vez mais na carreira profissional; cursar o<br />

mestrado, pois teve uma rápida experiência como professora universitária e achou<br />

gratificante. Planeja também se mudar da casa materna e morar sozinha <strong>em</strong> seu apartamento.<br />

Concluída a entrevista, conversamos mais um pouco sobre o crescente número <strong>de</strong><br />

faculda<strong>de</strong>s inauguradas nos últimos anos, o avanço da modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ensino à distância, b<strong>em</strong><br />

como os <strong>de</strong>safios e dificulda<strong>de</strong>s diante do processo <strong>de</strong> privatização e mercantilização do<br />

114 Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Weinberg e Mizuta (2005) que i<strong>de</strong>ntificam na Bahia uma maior tendência das mulheres<br />

negras sobreviver<strong>em</strong> s<strong>em</strong> parceiros, <strong>de</strong>vido à tradição matriarcal que vigora no Estado e forte influência do<br />

candomblé.


ensino. Em seguida, <strong>de</strong>spedimo-nos, pois eu tinha que me <strong>de</strong>slocar para outro Shopping, on<strong>de</strong><br />

me esperava outra informante.<br />

Entrevista 11: Nelma<br />

A informante t<strong>em</strong> 58 anos, foi recomendada por uma amiga comum e quando lhe<br />

telefonei no meio da s<strong>em</strong>ana, <strong>de</strong> imediato concordou <strong>em</strong> colaborar com a pesquisa, marcamos<br />

para o sábado, às 17h30min, na praça <strong>de</strong> alimentação <strong>de</strong> um Shopping. Porém, só pu<strong>de</strong> chegar<br />

uma hora mais tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vido a uma entrevista mais <strong>de</strong>morada, ao tráfego congestionado, mas<br />

também porque errei a entrada para o local, o que me atrasou ainda mais. Ao conseguir<br />

estacionar, liguei para ela, achei que cansara <strong>de</strong> me esperar, pois só me aten<strong>de</strong>u na terceira<br />

tentativa.<br />

Quando finalmente nos encontramos, <strong>de</strong>sculpei-me pelo atraso e agra<strong>de</strong>ci a sua<br />

paciência e disponibilida<strong>de</strong>. Incomodadas pelo barulho ensur<strong>de</strong>cedor, saímos à procura <strong>de</strong> um<br />

lugar on<strong>de</strong> pudéss<strong>em</strong>os conversar tranquilamente, sentamo-nos <strong>em</strong> uma mesa no final <strong>de</strong> uma<br />

livraria e, escondida atrás dos livros, calma e afetuosamente, contou-me sua história.<br />

Nasceu no interior do estado e veio adolescente para a capital, on<strong>de</strong> freqüentou um<br />

colégio interno, <strong>de</strong>pois os pais se mudaram para uma cida<strong>de</strong> próxima, on<strong>de</strong> havia ginásio e<br />

curso normal, voltou a morar com eles. Só retornou à capital para fazer faculda<strong>de</strong>.<br />

É funcionária pública, trabalha como educadora social <strong>em</strong> um órgão do Juizado da<br />

Infância e Adolescência e, quando não está trabalhando, cuida da mãe <strong>de</strong> 80 anos, pois os<br />

irmãos estão todos casados. S<strong>em</strong>pre residiu com a mãe e nunca pensou <strong>em</strong> morar só, <strong>em</strong>bora<br />

seja difícil duas donas-<strong>de</strong>-casa <strong>em</strong> um mesmo espaço, a mãe quer tudo do jeito <strong>de</strong>la, às vezes<br />

reclama e, prefere ficar calada.<br />

Falou que sua solteirice não foi uma escolha, mas uma circunstância. Teve um<br />

namorado <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> gostou, mas morava <strong>em</strong> outro estado e a relação terminou esfriando (esse


morreu). L<strong>em</strong>brou <strong>de</strong> outro, estrangeiro, queria que fosse morar com ele <strong>em</strong> seu país, mas não<br />

quis <strong>de</strong>ixar a mãe e, com olhar triste e distante, admite que guarda um certo arrependimento<br />

por não ter se arriscado.<br />

Comenta que gostaria <strong>de</strong> ter se casado, <strong>de</strong> ter filhos, mas nunca adotaria, pois o filho<br />

t<strong>em</strong> que ter um pai. Afirma também que, <strong>em</strong>bora não seja cobrada pela família com relação à<br />

solteirice, às vezes se sente sobrecarregada, é ela qu<strong>em</strong> resolve tudo para a mãe, que não diz<br />

nada, mas s<strong>em</strong>pre procura justificar a ausência dos irmãos sob a alegação <strong>de</strong> que têm sua<br />

própria família.<br />

Faz t<strong>em</strong>po que não namora, costuma sair com amigas, principalmente com os<br />

sobrinhos, para comer um caranguejo ou ir à praia. Costuma ir sozinha ao Shopping para fazer<br />

compras, às vezes toma um chopp ou assiste a filmes <strong>de</strong> suspense e comédias românticas.<br />

Aprecia músicas românticas, cita cantores e compositores preferidos, mas gosta mesmo é <strong>de</strong><br />

ler, <strong>em</strong>bora não tenha um gênero preferido, n<strong>em</strong> l<strong>em</strong>bre o título <strong>de</strong> algum livro ou <strong>de</strong> um autor<br />

<strong>em</strong> especial.<br />

Adora viajar, teve um irmão que morou muito t<strong>em</strong>po no exterior e esteve lá algumas<br />

vezes, aproveitou para conhecer vários países europeus, voltou mesmo <strong>de</strong>pois que ele morreu.<br />

Às vezes faz excursões com a família e, preten<strong>de</strong> fazer uma nova viag<strong>em</strong> <strong>em</strong> breve, explica<br />

que a mãe t<strong>em</strong> sua vida, é saudável e a irmã po<strong>de</strong> olhar por ela.<br />

Ao contrário da maioria das minhas entrevistadas, não pressente mudanças <strong>em</strong> sua<br />

vida, a única transgressão que se permite é pular carnaval, apesar das pessoas estranhar<strong>em</strong> que<br />

alguém da sua ida<strong>de</strong> ainda o faça, adora carnaval e, mais ainda, o grupo Araketu.<br />

Ao encerrar seu <strong>de</strong>poimento, com um sorriso s<strong>em</strong> alegria, acrescentou que esperava ter<br />

contribuído, pois não tinha certeza se falara o que eu queria ouvir. Agra<strong>de</strong>ci mais uma vez,<br />

abraçamo-nos afetuosamente e nos <strong>de</strong>spedimos, enquanto eu seguia para mais uma entrevista,


ela pretendia percorrer as lojas à procura <strong>de</strong> um presente para um sobrinho que faria<br />

aniversário no dia seguinte.<br />

Entrevista 12: Débora<br />

A informante t<strong>em</strong> 56 anos e foi indicada por uma das mulheres entrevistadas <strong>de</strong> qu<strong>em</strong><br />

é amiga. No início da pesquisa, concordou <strong>em</strong> dar seu <strong>de</strong>poimento, adiou algumas vezes e eu<br />

outras tantas, até que nos encontramos <strong>em</strong> uma reunião social e aceitou me receber <strong>em</strong> sua<br />

residência, no final da tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma sexta-feira, ocasião <strong>em</strong> que estaria disponível.<br />

Inicialmente, indagou acerca do ambiente mais a<strong>de</strong>quado para conversarmos, como<br />

<strong>de</strong>veria conduzir seu <strong>de</strong>poimento, o que eu gostaria <strong>de</strong> ouvir, se eu faria perguntas; afirmou<br />

que estava nervosa, com a boca seca e se levantou para pegar água – tomou mais <strong>de</strong> um copo<br />

– pois, segundo afirmou, o anti<strong>de</strong>pressivo que está tomando provoca ressecamento da boca.<br />

Falou da infância vivida <strong>em</strong> uma cida<strong>de</strong> do interior, da mãe fleumática e do pai<br />

extr<strong>em</strong>amente carinhoso que per<strong>de</strong>u aos 17 anos, do talento musical que a levou a estudar<br />

música <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os 4 anos; da rebeldia ao se recusar a tocar nas festas da família, pois se sentia<br />

um “macaquinho amestrado” e <strong>de</strong>sistir do piano para estudar violão. Com a morte do pai foi<br />

morar na casa dos avós, conclui o científico e retornou ao estado <strong>de</strong> orig<strong>em</strong>, <strong>de</strong>ssa vez para<br />

cursar a universida<strong>de</strong> na capital.<br />

L<strong>em</strong>bra do “bando” <strong>de</strong> amigos com qu<strong>em</strong> andava, pessoas livres, belas, s<strong>em</strong>pre foi<br />

irreverente, <strong>em</strong>bora muitas das loucuras atribuídas a ela, principalmente na década <strong>de</strong> 70, não<br />

passass<strong>em</strong> <strong>de</strong> invencionices, inclusive per<strong>de</strong>u a virginda<strong>de</strong> aos 27 anos, o que na época era<br />

inconcebível, mas gostava <strong>de</strong> flertar com o proibido e transgredir normas e mo<strong>de</strong>los.<br />

Talvez por isso, tenha assustado alguns homens, inclusive aquele por qu<strong>em</strong> foi<br />

apaixonada durante a faculda<strong>de</strong>, casou com outra mulher e somente anos <strong>de</strong>pois conseguiu


<strong>de</strong>clarar o amor do passado, supõe que a achava mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong>mais e incapaz <strong>de</strong> exercer o papel<br />

tradicional <strong>de</strong> esposa e mãe. Na ocasião, <strong>de</strong>u-se conta <strong>de</strong> que não queria casar n<strong>em</strong> ter filhos,<br />

pois os via como uma prisão, dado o caráter permanente, ou seja, evitou o que po<strong>de</strong>ria <strong>ser</strong><br />

“para s<strong>em</strong>pre” e ameaçasse sua liberda<strong>de</strong>. Apesar disso, não fugiu das paixões, viveu-as<br />

intensamente enquanto duraram, mas quando começavam a amornar, preferia romper a<br />

relação, pois a domesticação do amor nunca a atraiu.<br />

Comentou que adora ler, mas t<strong>em</strong> evitado, pois a leitura a instiga a escrever, o que é<br />

um processo muito doloroso, mas do qual não consegue ficar muito t<strong>em</strong>po afastada e, falou<br />

dos seus autores nacionais e estrangeiros favoritos, b<strong>em</strong> como suas <strong>de</strong>scobertas literárias mais<br />

recentes. Afirmou que gosta <strong>de</strong> música clássica, mas também flerta com outros gêneros,<br />

principalmente a música popular brasileira e citou os (as) cantores (as) mais ouvidos. Em<br />

seguida, <strong>de</strong>stacou a preferência por filmes europeus e rel<strong>em</strong>brou alguns títulos que a<br />

marcaram e os diretores <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a que mais admira. Mas, prefere ficar <strong>em</strong> casa e, raramente<br />

vai a algum lugar. Comunica-se com os amigos (as) pela internet, mas evita o MSN, pois acha<br />

cansativo e improdutivo conversar com mais <strong>de</strong> uma pessoa ao mesmo t<strong>em</strong>po.<br />

Com relação à vida profissional, explicou que já trabalhou com publicida<strong>de</strong>, com<br />

vendas, foi funcionária pública por um t<strong>em</strong>po, <strong>de</strong>pois dirigiu um órgão do governo, exerceu<br />

um cargo administrativo <strong>em</strong> uma construtora e, atuou <strong>em</strong> ONGs como educadora social, mas<br />

nunca conseguiu se adaptar, pois era muito exigente consigo mesma e achava que não<br />

correspondia às expectativas das pessoas. Por essa razão, seus <strong>em</strong>pregos foram s<strong>em</strong>pre<br />

t<strong>em</strong>porários. Faz alguns anos teve uma <strong>de</strong>pressão forte e voltou para o convívio da família.<br />

Acredita que o não-trabalho e a permanência <strong>em</strong> casa o dia inteiro não causam estranhamento<br />

pelo fato <strong>de</strong> <strong>ser</strong> mulher, cuja natureza é tida como doméstica, ao contrário do hom<strong>em</strong>, para<br />

qu<strong>em</strong> as cobranças e expectativas giram <strong>em</strong> torno da esfera pública, ou seja, um hom<strong>em</strong> que<br />

não trabalha é consi<strong>de</strong>rado um marginal.


Ao abordar sua solteirice, esclareceu que não a incomoda, mas percebe que esta é<br />

vista, principalmente pela mãe, como mais um marcador da diferença existente entre ela e as<br />

<strong>de</strong>mais pessoas. Explica que s<strong>em</strong>pre foi consi<strong>de</strong>rada estranha e, para po<strong>de</strong>r <strong>ser</strong> aceita, teve que<br />

se escon<strong>de</strong>r e forjar uma mediocrida<strong>de</strong> que tecesse a aproximação entre ela e os outros.<br />

Assim, já ouviu referências à sua solteirice como falha, incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atrair alguém que<br />

<strong>de</strong>sejasse se casar com ela. Finalmente, esclareceu que está sozinha há quinze anos, só fica<br />

com alguém que lhe acrescente, os homens mais velhos prefer<strong>em</strong> mulheres mais jovens e<br />

confessa não ter interesse por garotos.<br />

Depois <strong>de</strong> quase três horas e alguns copos <strong>de</strong> água, perguntou se correspon<strong>de</strong>ra ao que<br />

eu esperava e se conseguira colher as respostas que <strong>de</strong>sejava. Após ouvir minha resposta,<br />

<strong>de</strong>spedimo-nos afetuosamente, mas ainda não encerrara seu test<strong>em</strong>unho, no dia seguinte me<br />

ligou e pediu para que eu acrescentasse algumas ob<strong>ser</strong>vações. Suponho que, ao ficar sozinha,<br />

reescrevera sua história, in<strong>ser</strong>ira passagens, revisara argumentos até chegar ao texto <strong>de</strong>finitivo<br />

que me entregou.<br />

Entrevista 13: Gina<br />

A informante foi indicada por uma das mulheres entrevistadas <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> é colega <strong>de</strong><br />

trabalho, não fez objeções a dar seu test<strong>em</strong>unho, apenas pediu que a entrevista fosse realizada<br />

na minha residência, pois se sentiria mais à vonta<strong>de</strong>, uma vez que mora com a mãe e o irmão.<br />

Indagou ainda se po<strong>de</strong>ríamos nos encontrar <strong>em</strong> um domingo, ocasião <strong>em</strong> que estaria mais<br />

livre. Combinamos para o início da tar<strong>de</strong> e, quando chegou, <strong>de</strong>monstrava certa <strong>de</strong>sconfiança,<br />

os olhos percorrendo o ambiente à procura <strong>de</strong> intrusos, test<strong>em</strong>unhas in<strong>de</strong>sejadas que<br />

pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> se apropriar <strong>de</strong> sua história. Então, dirigimo-nos para a sala on<strong>de</strong> estudo e, talvez<br />

porque estávamos cercadas <strong>de</strong> livros, “test<strong>em</strong>unhas” silenciosas do que ali <strong>ser</strong>ia revelado,<br />

mostrou-se mais <strong>de</strong>scontraída, fez indagações acerca da pesquisa, as razões que motivaram a


escolha do t<strong>em</strong>a, que dificulda<strong>de</strong>s eu vinha enfrentando para <strong>de</strong>senvolver o estudo entre<br />

outras questões.<br />

Iniciou a entrevista falando da infância, teve uma educação muito rígida, cheia <strong>de</strong><br />

proibições, era muito presa. O pai trabalhava <strong>em</strong> uma <strong>em</strong>presa petrolífera <strong>de</strong> outro Estado e<br />

foi transferido para Aracaju. Alcoólatra, quando <strong>em</strong>briagado costumava exacerbar o seu lado<br />

agressivo e violento, do qual eram alvo a mãe e os filhos. Distante da sua família, a mãe<br />

durante muito t<strong>em</strong>po se resignou com os maus tratos, mesmo porque <strong>de</strong>pendia<br />

financeiramente do marido. Mas para compl<strong>em</strong>entar a renda familiar, o próprio companheiro<br />

montou um pequeno negócio para que ela administrasse. Aos poucos, a mãe foi conquistando<br />

in<strong>de</strong>pendência econômica e, quando a entrevistada fez <strong>de</strong>zenove anos, aconteceu a separação<br />

conjugal.<br />

A informante t<strong>em</strong> 36 anos, nasceu no interior <strong>de</strong> outro estado, mas se mudou com a<br />

família para Aracaju aos três meses <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Trabalha como professora <strong>em</strong> uma universida<strong>de</strong><br />

privada no interior <strong>de</strong> Sergipe. Afirmou que possui um bom relacionamento com a mãe e os<br />

irmãos, permeado por afeto e respeito, proteg<strong>em</strong> uns aos outros, s<strong>em</strong>pre enfrentaram as<br />

dificulda<strong>de</strong>s juntos e a relação conturbada com o pai fortaleceu a união com a mãe e irmãos..<br />

Teve o primeiro namorado aos 19 anos, quando os pais já estavam separados e freqüentava a<br />

Universida<strong>de</strong>. Atribui a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se socializar à educação repressora, o pai proibia o<br />

convívio com outras pessoas e, qualquer <strong>de</strong>slize dos filhos era motivo para o uso da<br />

palmatória e castigos. Além disso, o pai costumava <strong>de</strong>preciá-la, ressaltar a sua falta <strong>de</strong><br />

atrativos, o que acentuou sua timi<strong>de</strong>z e gerou insegurança. Per<strong>de</strong>u a virginda<strong>de</strong> aos 26 anos,<br />

quando se mudou para outro Estado para cursar o mestrado, ocasião <strong>em</strong> que se libertou das<br />

prisões a que estava condicionada pela educação recebida e também <strong>de</strong>scobriu o quanto a sua<br />

cida<strong>de</strong> era provinciana. Nesse período apren<strong>de</strong>u a cuidar <strong>de</strong> si mesma, fez amigos,<br />

<strong>de</strong>scortinou outros horizontes para a sua vida.


Segundo afirma, quando retornou a Aracaju, após concluir o mestrado, passou a<br />

trabalhar <strong>em</strong> uma universida<strong>de</strong> como professora e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então t<strong>em</strong> se <strong>de</strong>dicado à docência,<br />

mas a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> disciplinas que leciona impe<strong>de</strong> a realização <strong>de</strong> pesquisa, ativida<strong>de</strong> que<br />

preten<strong>de</strong> retomar o quanto antes, pois proporciona o aperfeiçoamento do conhecimento.<br />

Romântica, durante quatro anos namorou um rapaz e acreditava que estava prestes a<br />

realizar o seu maior sonho – casar e ter filhos. No entanto, o parceiro não tinha os mesmos<br />

planos e, por isso, terminaram a relação recent<strong>em</strong>ente. Ao relatar o romance s<strong>em</strong> final feliz, a<br />

entrevistada chorou ao comentar os sonhos <strong>de</strong>sfeitos, rel<strong>em</strong>brou a sensação <strong>de</strong> luto que a<br />

acometeu e a música <strong>de</strong> Ana Carolina que ouvia repetidamente a caminho do trabalho na<br />

tentativa <strong>de</strong> extravasar sua dor.<br />

Em seguida, falou sobre o retorno aos circuitos <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>, ida a restaurantes e<br />

cin<strong>em</strong>a com amigas; <strong>de</strong>screveu o último filme que assistiu, comentou sobre um livro que<br />

relata a vida do pianista João Carlos Martins e sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> superação, que acabou <strong>de</strong><br />

ler. Destacou também a matrícula <strong>em</strong> uma aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> musculação para cuidar da saú<strong>de</strong> e<br />

recuperar a forma, <strong>de</strong>vido à concorrência no mercado amoroso e mencionou os primeiros<br />

ensaios para retomar o jogo erótico, através <strong>de</strong> contatos <strong>em</strong> salas <strong>de</strong> bate papo da Internet.<br />

Abordou ainda os planos para o futuro, preten<strong>de</strong> se <strong>de</strong>dicar à profissão, realizar pesquisas<br />

científicas, cursar o Doutorado, mas também encontrar um parceiro, casar e ter filhos.<br />

Encerrado o <strong>de</strong>poimento, indagou-me sobre as situações que tenho enfrentado no<br />

<strong>de</strong>correr da pesquisa, as dificulda<strong>de</strong>s para a coleta dos dados, se os <strong>de</strong>poimentos dos (as)<br />

<strong>ser</strong>gipanos (as) são muito diferentes dos relatos feitos pelos (as) baianas. Conversamos<br />

durante um t<strong>em</strong>po acerca do prazer proporcionado pela pesquisa, trocamos informações e<br />

bibliografias. No final da tar<strong>de</strong>, afirmou que tinha um compromisso, <strong>de</strong>sejou-me sucesso e<br />

partiu, após me abraçar afetuosamente e pedir que a mantivesse informada sobre os resultados<br />

da pesquisa.


ÁLBUM MASCULINO<br />

Entrevista 1: Miguel<br />

O informante t<strong>em</strong> 33 anos, foi indicado por uma das mulheres entrevistadas, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong><br />

é primo. Ao lhe telefonar, <strong>em</strong> tom <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira, disse que eu gostaria <strong>de</strong> conhecê-lo porque<br />

ele era “encalhado”. Assim que nos falamos e expliquei o objetivo da pesquisa, concordou <strong>em</strong><br />

dar seu test<strong>em</strong>unho, ficando <strong>de</strong> me ligar na manhã seguinte para combinarmos o horário e<br />

local do encontro.<br />

Quando me telefonou, eu estava <strong>em</strong> uma reunião e fiquei <strong>de</strong> entrar <strong>em</strong> contato assim<br />

que estivesse livre, mas só consegui falar com ele no começo da tar<strong>de</strong>. Desculpei-me pela<br />

<strong>de</strong>mora e indaguei se preferia marcar outra data, uma vez que era sábado e talvez tivesse<br />

algum compromisso, não queria atrapalhá-lo. Contudo, afirmou que ficaria <strong>em</strong> casa e, se eu<br />

quisesse, po<strong>de</strong>ríamos conversar lá mesmo. Após concordar com a sua sugestão, anotei o<br />

en<strong>de</strong>reço e me dirigi à sua residência.<br />

Nunca tínhamos nos visto, cumprimentou-me <strong>de</strong> forma amistosa, convidou-me a<br />

entrar e indagou se gostaria <strong>de</strong> conversar na varanda, pois achava que teríamos mais<br />

privacida<strong>de</strong>, já que mora na residência dos pais. Inicialmente, mostrou-se cauteloso,<br />

conversamos amenida<strong>de</strong>s, falou-me um pouco da prima, que espontaneamente nos<br />

aproximara naquele momento, até que se colocou à disposição para respon<strong>de</strong>r minhas<br />

perguntas.<br />

Expliquei sobre o objetivo da pesquisa e a metodologia escolhida, enfatizando que<br />

pretendia ouvir sua história <strong>de</strong> vida e, por isso, faria poucas perguntas, <strong>de</strong>ixaria que falasse<br />

livr<strong>em</strong>ente sobre si mesmo, sua família, amigos, amores e, caso eu tivesse alguma dúvida ou<br />

quisesse saber sobre algo que não comentara, não hesitaria <strong>em</strong> perguntar-lhe.


A princípio, <strong>de</strong>screveu sua família, s<strong>em</strong>pre morou na mesma casa com os pais e três<br />

irmãos, dos quais dois estão casados, restaram ele e uma irmã mais nova, também <strong>solteira</strong>.<br />

Está cursando o terceiro grau, esclarece que começou dois cursos com os quais não se<br />

i<strong>de</strong>ntificou e trancou as faculda<strong>de</strong>s (risos), até optar por Letras, acha que <strong>de</strong>ssa vez se forma,<br />

pois gosta <strong>de</strong> estudar línguas.<br />

Atualmente leciona inglês <strong>em</strong> uma escola particular, planeja passar um t<strong>em</strong>po fora do<br />

pais para estudar, conhecer outros lugares e pessoas. Talvez por isso não se veja casado, com<br />

uma “família padrão”, acha que ainda t<strong>em</strong> muita coisa para aproveitar. Teve uma namorada<br />

durante seis anos, era apaixonado por ela, mas o término foi meio “complicado”, exatamente<br />

porque não se via pronto para assumir um compromisso mais duradouro, o casamento.<br />

Namorou duas moças <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>la, mas nada sério.<br />

Costuma ir a barzinhos, sai para se divertir, bater papo e dançar, s<strong>em</strong>pre encontra<br />

algum conhecido, eventualmente fica com alguma garota, para o hom<strong>em</strong> é mais fácil, <strong>em</strong>bora<br />

também se consi<strong>de</strong>re mais “paciente” que a maioria. Segundo afirma, no período junino é raro<br />

sentir solidão, s<strong>em</strong>pre t<strong>em</strong> uma festa e vai a todas. Gosta também <strong>de</strong> assistir filmes <strong>de</strong><br />

suspense e policiais, exceto dramas. Ouve todo tipo <strong>de</strong> música, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do momento, mas<br />

prefere reggae e baladas <strong>em</strong> inglês.<br />

A maioria dos amigos já está casada, são poucos os que continuam <strong>solteiro</strong>s, às vezes<br />

se vê<strong>em</strong>, mas normalmente sai sozinho. A mãe s<strong>em</strong>pre lhe pergunta quando <strong>ser</strong>á avó, ele<br />

<strong>de</strong>sconversa, brinca e diz que é fácil, mas ela argumenta, s<strong>em</strong> casamento não quer. Já o pai é<br />

tranqüilo, não faz cobranças, nas férias vão viajar para a casa <strong>de</strong> parentes <strong>em</strong> outro estado.<br />

Não se <strong>de</strong>finiu como <strong>solteiro</strong>, preferindo reforçar sua posição <strong>em</strong> relação ao casamento<br />

– não faz parte <strong>de</strong> seus planos a curto e médio prazo –. T<strong>em</strong> uma irmã <strong>solteira</strong> <strong>de</strong> 30 anos e<br />

três tias com mais <strong>de</strong> quarenta. Às vezes brinca com elas, mas são <strong>de</strong>dicadas à profissão,


in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e não vê nada <strong>de</strong>mais. Entretanto, acredita que as mulheres têm assustado os<br />

homens, estão cada vez mais exigentes, não lhes dão chance <strong>de</strong> se aproximar.<br />

A entrevista durou cerca <strong>de</strong> uma hora, enquanto nos <strong>de</strong>spedíamos, comentou que<br />

tentaria convencer os amigos <strong>solteiro</strong>s “Highlan<strong>de</strong>rs”, – os imortais – a dar<strong>em</strong> seu<br />

<strong>de</strong>poimento, argumentando que <strong>ser</strong>ia divertido reunir o grupo para comentar o que cada um<br />

respon<strong>de</strong>ra.<br />

Vale <strong>de</strong>stacar que, <strong>em</strong>bora simpático e educado, mostrou dificulda<strong>de</strong> <strong>em</strong> falar sobre si<br />

mesmo, suas respostas às minhas perguntas foram concisas, objetivas, para ele a vida é o<br />

presente. Além disso, fomos interrompidos, ora pela mãe, que chegou <strong>em</strong> casa e se mostrou<br />

intrigada com a minha presença, ora por um irmão que se aproximou do local on<strong>de</strong><br />

conversávamos e, após ouvir a menção à palavra <strong>solteiro</strong>, repetiu-a com um risinho <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>boche. Tudo indica, portanto, que sua “vida <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>” também é vigiada atentamente<br />

pelos familiares.<br />

Entrevista 2: Gustavo<br />

O informante t<strong>em</strong> 41 anos e foi indicado por uma amiga <strong>em</strong> comum. Não nos<br />

conhecíamos, a primeira vez que liguei para sua casa estava dormindo, na segunda tentativa a<br />

<strong>em</strong>pregada disse que havia saído, resolvi arriscar e <strong>de</strong>ixei um recado para que entrasse <strong>em</strong><br />

contato comigo assim que retornasse, pois sabia que aguardava meu telefon<strong>em</strong>a. Pouco t<strong>em</strong>po<br />

<strong>de</strong>pois ligou <strong>de</strong> volta e combinamos <strong>de</strong> nos encontrarmos <strong>em</strong> sua residência no final da tar<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sábado, pois tinha um trabalho para concluir.<br />

No horário combinado, recebeu-me <strong>em</strong> seu apartamento, on<strong>de</strong> mora só e, após nos<br />

cumprimentarmos, encaminhou-me para o seu gabinete. Inicialmente, compartilhamos<br />

notícias mais recentes sobre nossa amiga, expliquei-lhe o objetivo da pesquisa e como<br />

pretendia conduzir a entrevista, mas suponho que o fato <strong>de</strong> <strong>ser</strong> pesquisador contribuiu para


que se mostrasse mais à vonta<strong>de</strong>. Fiz poucas intervenções, fluente e objetivo, <strong>de</strong>dicou-se a<br />

recortar momentos mais significativos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua infância à vida adulta, principalmente<br />

<strong>de</strong>dicando-se a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r seus pontos <strong>de</strong> vista, visões <strong>de</strong> mundo, aspectos que o distanciam ou<br />

aproximam das pessoas.<br />

Falou sobre a infância feliz, a educação livre que recebeu dos pais, a <strong>de</strong>scoberta da<br />

literatura com a mãe, que lhe apresentou Monteiro Lobato. Da adolescência, l<strong>em</strong>brou os<br />

conflitos experimentados com a separação dos pais, quando tinha 13 anos e, <strong>de</strong>cidiu ficar com<br />

o pai, enquanto a mãe e as irmãs foram morar <strong>em</strong> outro estado. Reticente, pon<strong>de</strong>ra que hoje<br />

t<strong>em</strong> outra percepção sobre o assunto.<br />

Quando foi fazer vestibular, escolheu a profissão do pai, mas no quarto ano admitiu<br />

para si mesmo que não se i<strong>de</strong>ntificava com a área <strong>de</strong> exatas e abandonou o curso, mudou-se<br />

para outro estado e abraçou a área <strong>de</strong> humanas, escolhendo <strong>de</strong>ssa vez a profissão materna.<br />

Trabalha <strong>em</strong> um hospital público, on<strong>de</strong> aten<strong>de</strong> pessoas com transtornos mentais.<br />

Falou-me sobre sua vida afetiva, da iniciação sexual aos 14 anos, <strong>de</strong> namoros<br />

efêmeros e relativamente longos, mas principalmente da <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> não casar e ter filhos, <strong>em</strong><br />

virtu<strong>de</strong> da relação complicada dos pais e dos aspectos práticos do matrimônio, caso tivesse<br />

filhos tentaria evitar uma separação. Por essa razão, quando percebe que a namorada alimenta<br />

algum tipo <strong>de</strong> expectativa, expõe sua posição e a <strong>de</strong>ixa livre para continuar com ele ou<br />

procurar alguém que queira um compromisso permanente.<br />

Nas horas vagas pratica esportes, freqüenta regularmente a aca<strong>de</strong>mia; costuma ir a<br />

barzinhos com amigos, vai a shows ou peças teatrais, <strong>em</strong>bora se ressinta da vida cultural da<br />

cida<strong>de</strong>; gosta <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a e cita seus diretores preferidos, mas repudia os filmes <strong>de</strong> ação<br />

americanos. Adora música popular brasileira, ouve jazz e algumas bandas <strong>de</strong> rock<br />

estrangeiras, mas ressalta que <strong>em</strong>bora tenha um gosto eclético, não aprecia o axé music.


Define-se como uma pessoa feliz, com uma vida sexual satisfatória, <strong>solteiro</strong> cuja<br />

opção po<strong>de</strong> não <strong>ser</strong> <strong>de</strong>finitiva, qu<strong>em</strong> sabe mu<strong>de</strong> <strong>de</strong> idéia algum dia. Por enquanto, a vida <strong>de</strong><br />

<strong>solteiro</strong> o satisfaz e, <strong>ser</strong> <strong>solteiro</strong> não significa <strong>ser</strong> um solitário. Durante nossa conversa, fomos<br />

interrompidos pelo telefone duas vezes, por uma amiga que queria convidá-lo para sair e por<br />

minha interlocutora, curiosa para saber se já tínhamos conversado.<br />

Concluída a entrevista, acompanhou-me ao elevador e, enquanto aguardávamos,<br />

reforçou sua posição <strong>em</strong> relação ao não-casamento, comentando sobre uma namorada que<br />

costumava insistir para dormir<strong>em</strong> no mesmo horário, ficava assistindo algum programa<br />

interessante na televisão e ela do lado, louca <strong>de</strong> sono, terminava adormecendo. Mesmo<br />

incomodado com a situação, via-se obrigado a <strong>de</strong>sligar a televisão e ir dormir contra sua<br />

vonta<strong>de</strong>, para não <strong>ser</strong> in<strong>de</strong>licado. Quando o elevador chegou, <strong>de</strong>spedimo-nos, enquanto eu<br />

registrava na m<strong>em</strong>ória o episódio que guardara para encerrar sua história.<br />

Entrevista 3: Abílio<br />

O informante t<strong>em</strong> 55 anos e foi indicado por amigos que lhe falaram sobre a pesquisa<br />

e indagaram se po<strong>de</strong>ria dar seu <strong>de</strong>poimento, no que concordou prontamente, passando o<br />

número do seu telefone para que pudéss<strong>em</strong>os combinar o local e a hora. Quando lhe telefonei,<br />

mostrou-se receptivo e reafirmou sua disponibilida<strong>de</strong>, ficando combinado que nos<br />

encontraríamos à noite <strong>em</strong> um barzinho, para comermos um caranguejo e conversarmos.<br />

Quando cheguei ao local havia poucas pessoas, mas já esperava por mim,<br />

conversamos inicialmente sobre amenida<strong>de</strong>s, indagou-me sobre as razões que me levaram a<br />

escolher o t<strong>em</strong>a. Assim como outros homens entrevistados, <strong>de</strong>monstrou dificulda<strong>de</strong> <strong>em</strong><br />

transcorrer livr<strong>em</strong>ente sobre sua trajetória <strong>de</strong> vida, insistiu para que lhe fizesse perguntas<br />

diretas, às quais respon<strong>de</strong>ria. Expliquei-lhe que indicaria pontos a <strong>ser</strong><strong>em</strong> abordados, mas<br />

<strong>de</strong>ixaria as perguntas para quando quisesse explorar algum aspecto ou tivesse alguma dúvida.


Falou da infância, da educação rígida dos pais, dos valores repassados por eles, mas<br />

também das brinca<strong>de</strong>iras com os irmãos. Rel<strong>em</strong>brou a escola particular, também muito rígida,<br />

on<strong>de</strong> estudou o primário e o ginásio e s<strong>em</strong>pre foi contido, bom aluno, até <strong>ser</strong> transferido para<br />

uma escola pública, on<strong>de</strong> cursou até o segundo ano científico e po<strong>de</strong> usufruir <strong>de</strong> um maior<br />

grau <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, romper com a rigi<strong>de</strong>z e cometer pequenas transgressões, s<strong>em</strong> o<br />

conhecimento dos pais.<br />

No terceiro ano científico, foi estudar <strong>em</strong> um colégio renomado <strong>de</strong> outra capital, on<strong>de</strong><br />

às sextas-feiras os alunos podiam ir s<strong>em</strong> farda e até fumar. Apesar da mudança, l<strong>em</strong>brou que<br />

uma <strong>de</strong> suas primeiras notas <strong>de</strong> português foi excelente e fez questão <strong>de</strong> ir agra<strong>de</strong>cer aos<br />

antigos professores do primário, que o levaram <strong>de</strong> sala <strong>em</strong> sala para <strong>ser</strong>vir <strong>de</strong> ex<strong>em</strong>plo aos<br />

outros alunos, ficou muito envergonhado.<br />

Comentou os altos e baixos da vida profissional, <strong>em</strong>pregos públicos que abandonou<br />

por não gostar <strong>de</strong> <strong>ser</strong> patrão, a marcenaria que abriu com o incentivo <strong>de</strong> uma namorada e<br />

terminou provocando o rompimento, pois se esqueceu <strong>de</strong> cuidar da relação, até o restaurante<br />

<strong>de</strong> sucesso que inaugurou com um ex-sócio e o levou à falência. Retornou à cida<strong>de</strong> natal,<br />

trabalhou <strong>em</strong> órgãos públicos, montou a marcenaria e novamente faliu, pois acha que não t<strong>em</strong><br />

aptidão para administrar ou ven<strong>de</strong>r, apenas criar. Optou pela informalida<strong>de</strong>, construiu um<br />

galpão no fundo da casa, on<strong>de</strong> novamente se <strong>de</strong>dica à criação <strong>de</strong> suas peças.<br />

Ao falar <strong>de</strong> sua vida afetiva, recordou <strong>de</strong> sua musa, a mulher que o motivou a<br />

<strong>de</strong>senvolver o projeto da primeira marcenaria, com qu<strong>em</strong> viveu uma relação intensa durante<br />

três anos, mas também da última namorada, <strong>de</strong> outro estado, com qu<strong>em</strong> ficou durante 15 anos,<br />

mas como n<strong>em</strong> ela n<strong>em</strong> ele pretendiam se mudar <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>, só restava uma coisa a fazer,<br />

romper o namoro. Está há um ano s<strong>em</strong> namorada, mas t<strong>em</strong> amigas com qu<strong>em</strong> se relaciona<br />

sexualmente e a amiza<strong>de</strong> é pre<strong>ser</strong>vada. Contraditório, diz que é exigente <strong>em</strong> relação ás<br />

parceiras, <strong>em</strong>bora venha apren<strong>de</strong>ndo a <strong>ser</strong> con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte, para mais adiante afirmar que “o


hom<strong>em</strong> não escolhe a mulher, ele pensa que escolhe, mas é a mulher qu<strong>em</strong> escolhe o<br />

hom<strong>em</strong>”.<br />

Comentou que gosta <strong>de</strong> ler, seu pai tinha uma biblioteca que foi dividida entre os<br />

filhos quando faleceu, t<strong>em</strong> preferência por história cont<strong>em</strong>porânea e filosofia, mas não<br />

l<strong>em</strong>brou nenhum título <strong>de</strong> livro. Definiu-se como alguém musical, um percussionista amador,<br />

mas também não verbalizou preferências, apenas <strong>de</strong>stacou que não gosta <strong>de</strong> axé e pago<strong>de</strong>.<br />

Quase não vai ao cin<strong>em</strong>a, pois a recuperação da marcenaria t<strong>em</strong>-lhe afastado <strong>de</strong><br />

entretenimentos. Contudo, pratica motan bike e freqüenta barzinhos com amigos (as).<br />

Afirmou que nunca foi alvo <strong>de</strong> discriminação ou cobranças <strong>em</strong> relação ao seu estado<br />

civil, até mesmo porque se relaciona com toda faixa etária. Acha que apesar <strong>de</strong> estar <strong>solteiro</strong><br />

na sua ida<strong>de</strong>, ainda t<strong>em</strong> chance <strong>de</strong> casar, ter filhos para repassar os fundamentos aprendidos, o<br />

que requer o casamento, pois a convivência com eles é fundamental. Espera encontrar uma<br />

mulher que faça uma comidinha gostosa para ele e arrume a casa, já que é muito<br />

<strong>de</strong>sorganizado.<br />

Assim que <strong>de</strong>sliguei o gravador, porque já obtivera o <strong>de</strong>poimento que <strong>de</strong>sejava,<br />

mostrou-se mais eloqüente e me perguntou o que achava <strong>de</strong>le inverter o processo e me<br />

entrevistar. Fez questionamentos sobre minha vida afetiva, queria saber se estava namorando,<br />

se ficava com um hom<strong>em</strong> s<strong>em</strong> a expectativa <strong>de</strong> um compromisso, se tomava a iniciativa<br />

quando estava interessada, ao que respondi sucintamente, l<strong>em</strong>brando que na pesquisa o<br />

entrevistado era ele e não eu.<br />

Aparent<strong>em</strong>ente s<strong>em</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir <strong>em</strong>bora, resgatou na m<strong>em</strong>ória o surgimento do seu<br />

interesse pela marcenaria na adolescência, quando construía seus brinquedos, carrinhos <strong>de</strong><br />

ma<strong>de</strong>ira. Relatou situações <strong>de</strong> trabalho, amigos e lugares que conheceu, altos e baixos ao<br />

longo dos anos, voltou a falar da antiga namorada, acrescentando que po<strong>de</strong>ria estar casado,<br />

pois chegaram até a ficar noivos, mas “vacilei, vacilei”. Contudo, não hesitou <strong>em</strong> novamente


fazer perguntas sobre minha vida pessoal, on<strong>de</strong> e com qu<strong>em</strong> morava, se gostava <strong>de</strong> cozinhar,<br />

arrumar a casa. Finalmente, indagou se nenhum dos entrevistados tinha me convidado para ir<br />

à sua residência <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>. Fiz-me <strong>de</strong> <strong>de</strong>sentendida, ensaiei uma resposta geral, que incluía<br />

homens e mulheres entrevistadas.<br />

Mesmo entre um bocejo e outro, o entrevistado só concordou <strong>em</strong> sair quando quase<br />

não havia mais pessoas no bar, a televisão foi <strong>de</strong>sligada e os garçons começaram a recolher as<br />

mesas. Assim que pagamos a conta, pediu-me carona, pois fora a pé, <strong>de</strong>ixei-o <strong>em</strong> casa,<br />

<strong>de</strong>spedi-me <strong>de</strong> forma breve e segui adiante.<br />

Entrevista 4: Dario<br />

O informante t<strong>em</strong> 43 anos e foi indicado por uma colega <strong>de</strong> trabalho. Quando lhe<br />

telefonei, conversamos rapidamente e combinamos que, no dia seguinte, um sábado, ligaria<br />

para o seu celular e marcaríamos o local e horário da entrevista. Ao nos falarmos, pediu que<br />

nos encontráss<strong>em</strong>os pela manhã, no edifício on<strong>de</strong> mora, pois teria um compromisso à tar<strong>de</strong>,<br />

forneceu-me seu en<strong>de</strong>reço e pontos <strong>de</strong> referência. Não nos conhecíamos, assim que me<br />

i<strong>de</strong>ntifiquei na portaria do prédio se aproximou e, após nos cumprimentarmos, sugeriu que<br />

conversáss<strong>em</strong>os no salão <strong>de</strong> festas, vazio àquela hora.<br />

A entrevista durou cerca <strong>de</strong> duas horas e meia. Inicialmente, indagou sobre o objetivo<br />

da pesquisa, comentamos sobre as mudanças na socieda<strong>de</strong>, valores que vêm per<strong>de</strong>ndo sua<br />

força, sobre a colega e amiga que t<strong>em</strong>os <strong>em</strong> comum. Acredito que o fato <strong>de</strong> ter lecionado e se<br />

interessar pela área social nos aproximou, <strong>de</strong>ixando-o à vonta<strong>de</strong> para começar seu<br />

<strong>de</strong>poimento.<br />

Falou sobre a família, a relação difícil com o pai alcoólatra, muito rígido e a<br />

passivida<strong>de</strong> da mãe. L<strong>em</strong>brou da infância no interior, dos amigos e brinca<strong>de</strong>iras, da liberda<strong>de</strong>


e, a voz pausada, per<strong>de</strong>u-se <strong>em</strong> r<strong>em</strong>iniscências, revivendo as discussões acaloradas e o seu<br />

<strong>de</strong>spertar precoce para as questões sociais.<br />

Estudou <strong>em</strong> uma escola agrícola e <strong>de</strong>pois voltou para lecionar <strong>em</strong> sua cida<strong>de</strong>, mas logo<br />

foi aprovado <strong>em</strong> um concurso e veio para a capital, trazendo a irmã mais nova, para que ela<br />

também tivesse melhores oportunida<strong>de</strong>s. Cursou a faculda<strong>de</strong>, trabalha <strong>em</strong> uma <strong>em</strong>presa<br />

pública e se consi<strong>de</strong>ra realizado, b<strong>em</strong> sucedido profissionalmente.<br />

Possui um apartamento próprio, que divi<strong>de</strong> com a irmã, t<strong>em</strong> carro, freqüenta a<br />

aca<strong>de</strong>mia regularmente e quando está livre gosta <strong>de</strong> andar na praia. Costuma ir ao cin<strong>em</strong>a<br />

sozinho para assistir dramas, não per<strong>de</strong> filmes <strong>de</strong> arte e cita alguns que o marcaram. Aprecia a<br />

música popular brasileira, comenta compositores, cantoras (es) e músicas preferidas. Também<br />

cultiva o hábito da leitura, t<strong>em</strong> maior interesse por livros sobre o social ou política, mas<br />

atualmente t<strong>em</strong> lido sobre o espiritismo.<br />

Sofre <strong>de</strong> rinite alérgica, faz tratamento homeopático, que o t<strong>em</strong> levado a se conhecer<br />

melhor, refletir mais sobre si mesmo, seus limites e dificulda<strong>de</strong>s interiores. Uma <strong>de</strong>ssas<br />

limitações está no campo afetivo, não consegue se entregar às paixões, seus relacionamentos<br />

são curtos e, qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>ser</strong> dominado ou se sentir <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das parceiras o<br />

incomoda. T<strong>em</strong> receio <strong>de</strong> <strong>ser</strong> rejeitado, mas só na paquera, as mulheres mais <strong>em</strong>ancipadas o<br />

<strong>de</strong>ixam <strong>de</strong>sconfortável, não no plano econômico, mas <strong>em</strong>ocional, fica inseguro.<br />

Afirmou que a condição <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong> não o incomoda, não permite que as pessoas o<br />

question<strong>em</strong> sobre isso, mas é s<strong>em</strong>pre a mesma história, uma pessoa b<strong>em</strong> sucedida,<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, simpático, <strong>de</strong>pois dos 40 anos, “ou é homossexual ou[...]”, no seu<br />

subconsciente, também se pergunta: “Por que ainda não encontrei alguém se todo mundo<br />

encontra?” Sente-se incompetente. A família não cobra porque não <strong>de</strong>ixa, mas sua mãe fala<br />

s<strong>em</strong>pre do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ter um neto.


T<strong>em</strong> como projeto conhecer a Europa, comprar uma proprieda<strong>de</strong> rural, para plantar e<br />

criar animais e se relacionar com alguém. Sente falta <strong>de</strong> uma companheira, <strong>em</strong>bora reconheça<br />

sua dificulda<strong>de</strong> <strong>em</strong> compartilhar, faz tudo sozinho, já pediu a amigos que moram no exterior<br />

para lhe arranjar<strong>em</strong> uma namorada e, tentou <strong>em</strong> salas <strong>de</strong> bate papo da Internet, mas ali as<br />

pessoas se escon<strong>de</strong>m e quando se encontram pessoalmente, são b<strong>em</strong> diferentes ou então só<br />

quer<strong>em</strong> conversar sobre sexo, s<strong>em</strong> maior envolvimento.<br />

Concluído o <strong>de</strong>poimento, conversamos sobre suas impressões, a apreensão inicial foi<br />

pouco a pouco substituída pela <strong>de</strong>scontração, quando se <strong>de</strong>u conta estava falando sobre si<br />

mesmo, seus gostos, pontos <strong>de</strong> vista e projetos <strong>de</strong> vida e, tal qual nas consultas <strong>de</strong><br />

homeopatia, nossa conversa foi um exercício <strong>de</strong> reflexão, o que não o incomodou.<br />

Despedimo-nos <strong>de</strong> forma amistosa, prometeu conversar com seus amigos <strong>solteiro</strong>s e, caso<br />

tivess<strong>em</strong> interesse <strong>em</strong> dar seu test<strong>em</strong>unho, entraria <strong>em</strong> contato comigo.<br />

Entrevista 5: Edson<br />

O informante t<strong>em</strong> 44 anos e foi indicado por uma amiga da família, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> foi<br />

colega. Receptivo, quando falou comigo ao telefone concordou <strong>em</strong> conce<strong>de</strong>r a entrevista e<br />

pediu para me ligar no sábado, pela manhã, para combinarmos o horário e o local mais<br />

conveniente. Comunicou-se conforme prometera e acertamos o encontro <strong>em</strong> uma livraria <strong>de</strong><br />

um dos Shoppings locais, <strong>de</strong>i-lhe algumas características para que pu<strong>de</strong>sse me i<strong>de</strong>ntificar e fui<br />

ao seu encontro.<br />

Cheguei à livraria, aguar<strong>de</strong>i um pouco e como ninguém se aproximou, resolvi adquirir<br />

um livro no qual estava interessada. Quando estava no caixa, aproximou-se sorri<strong>de</strong>nte, estava<br />

acompanhado por uma sobrinha que, após as apresentações, retirou-se para que pudéss<strong>em</strong>os<br />

conversar mais à vonta<strong>de</strong>. Sentamo-nos <strong>em</strong> uma das mesas da livraria e, inicialmente,


conversamos amenida<strong>de</strong>s, expliquei-lhe o objetivo da pesquisa, a metodologia adotada, assim<br />

como fizera com os <strong>de</strong>mais entrevistados.<br />

L<strong>em</strong>brou da infância, vivida no interior <strong>de</strong> outro estado, para on<strong>de</strong> foi levado pelos<br />

pais para residir com a avó ainda com meses <strong>de</strong> vida, só voltou a conviver com os pais e<br />

irmãos aos 7 anos, <strong>em</strong>bora o visitass<strong>em</strong> durante as férias. Falou da avó e do amor que tinham<br />

um pelo outro, foi difícil <strong>de</strong>ixá-la e retornar à capital, morar <strong>em</strong> um prédio, era muito<br />

diferente da vida no interior, livre, s<strong>em</strong> horários e regras, mas conseguiu se acostumar.<br />

Comentou a ligação com os irmãos, principalmente o mais velho, com qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> mais<br />

afinida<strong>de</strong> e, do convívio e parceria com os sobrinhos. Foi reticente sobre a relação com os<br />

pais, afirmou que era boa, mas nunca pensara sobre o assunto, apenas ressaltando o esforço<br />

que fizeram para que tivesse uma educação melhor, freqüentasse uma escola particular,<br />

aconselhados por seus professores. T<strong>em</strong> nível superior, fez especialização e atualmente está<br />

cursando outra pós-<strong>graduação</strong>.<br />

Abordou também o trabalho <strong>em</strong> uma instituição pública, a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se adaptar a<br />

ativida<strong>de</strong>s rotineiras e a busca <strong>de</strong> uma maior qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, levando-o a optar pelo regime<br />

<strong>de</strong> escala, que lhe permite viajar, um dos seus hobbies. Prefere o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> plantão, pois<br />

quando está <strong>de</strong> folga po<strong>de</strong> se <strong>de</strong>dicar ao “ócio s<strong>em</strong> culpa”, como <strong>de</strong>fine um amigo seu.<br />

Comentou que adora cin<strong>em</strong>a, da magia capaz <strong>de</strong> transportá-lo para outro universo e<br />

repetiu algumas vezes o título <strong>de</strong> um filme que o reporta à infância, um período consi<strong>de</strong>rado<br />

feliz. Citou como referências musicais cantores e compositores brasileiros, além <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong><br />

rock, recordou músicas mais antigas que o marcaram e ressaltou a influência dos sobrinhos no<br />

tocante a novas <strong>de</strong>scobertas musicais.<br />

Gosta muito <strong>de</strong> ler, cita livros <strong>de</strong> seu escritor favorito, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> lá leu quase todas as<br />

obras, mas não conseguiu l<strong>em</strong>brar outros autores. Costuma ler revistas s<strong>em</strong>anais e <strong>de</strong> vez <strong>em</strong><br />

quando faz assinatura <strong>de</strong> uma voltada para o meio-ambiente, t<strong>em</strong>a que t<strong>em</strong> <strong>de</strong>spertado muito


seu interesse. Lê também jornais e assiste documentários <strong>em</strong> canais fechados <strong>de</strong> televisão,<br />

mas gosta mesmo é <strong>de</strong> “pegar a mochila” e viajar, já foi à Europa duas vezes, a última viag<strong>em</strong><br />

foi pela América, Colômbia, Chile, teve probl<strong>em</strong>as com a altitu<strong>de</strong> e retornou no Brasil. Ainda<br />

preten<strong>de</strong> viajar a Machu Picchu, no Peru, através do Tr<strong>em</strong> da Morte 115 .<br />

Com relação à vida afetiva, rel<strong>em</strong>brou uma namorada com qu<strong>em</strong> ficou durante <strong>de</strong>z<br />

anos, pensou <strong>em</strong> morar junto, – já me falara <strong>de</strong>la ao telefone –, faz dois se mudou para São<br />

Paulo, terminaram, mas permanec<strong>em</strong> amigos. Teve mais dois namoros duradouros e os<br />

<strong>de</strong>mais foram efêmeros, só se relaciona com alguém quando t<strong>em</strong> afinida<strong>de</strong>, caso contrário<br />

prefere ficar só.<br />

Afirmou ainda que nunca foi cobrado por <strong>ser</strong> <strong>solteiro</strong>, já viu isso com colegas,<br />

insinuações sobre sua sexualida<strong>de</strong>, mas com ele não acontece. Está s<strong>em</strong> namorada fixa faz um<br />

ano, sai com amigos, vai a barzinhos ou festas e, acontece <strong>de</strong> encontrar parceiras casuais, “<strong>de</strong><br />

uma noite” Com relação ao futuro, preten<strong>de</strong> fazer novas viagens e se tornar professor<br />

universitário, para isso está fazendo especialização.<br />

Vale <strong>de</strong>stacar que, quando nos falamos ao telefone para combinar nosso encontro,<br />

<strong>de</strong>finiu-se como um <strong>solteiro</strong> que não se encaixa na concepção clássica, mas quando indaguei a<br />

respeito durante a entrevista, tergiversou e disse que não sabia porque fizera tal afirmação.<br />

Enquanto conversávamos, algumas pessoas se aproximavam, folheavam livros e,<br />

curiosas quando avistavam o gravador e nosso aparente alheamento, com olhos e ouvidos<br />

atentos, procuravam <strong>de</strong>scobrir o teor da nossa conversa. Outro aspecto interessante diz<br />

respeito ao local, entre tantas mesas e sofás distribuídos na livraria, sentamo-nos justamente<br />

<strong>em</strong> uma mesa na qual repousava o sugestivo título “Como fisgar um <strong>solteiro</strong>”. Aproveitei para<br />

fazer uma brinca<strong>de</strong>ira, que <strong>ser</strong>viu para compor o clima <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontração e camaradag<strong>em</strong> que<br />

marcaram a entrevista e nossa <strong>de</strong>spedida.<br />

115 No Brasil, o viajante <strong>de</strong>sloca-se <strong>de</strong> ônibus <strong>de</strong> Corumbá – MS até a Estação <strong>de</strong> Puerto Quijarro, na fronteira<br />

boliviana, on<strong>de</strong> pega o Tr<strong>em</strong> da Morte que o levará a Santa Cruz <strong>de</strong> La Sierra.


Entrevista 6: Júlio<br />

O informante t<strong>em</strong> 40 anos, também não o conhecia e foi recomendado por uma amiga<br />

<strong>em</strong> comum. Quando lhe telefonei para saber se aceitava conversar comigo, afirmou que fazia<br />

algum t<strong>em</strong>po aguardava a minha ligação e combinamos para um sábado, no final da tar<strong>de</strong>, <strong>em</strong><br />

sua residência. Indicou-me como chegar ao local e afirmou que estaria me aguardando.<br />

Ao chegar <strong>em</strong> seu apartamento, após os cumprimentarmos, dirigimo-nos à varanda,<br />

on<strong>de</strong> me pediu notícias da amiga, quis saber o objetivo da pesquisa e quais perguntas eu<br />

queria lhe fazer. Expliquei-lhe a finalida<strong>de</strong> do estudo e esclareci que pretendia ouvir sua<br />

história <strong>de</strong> vida, gostaria que me contasse os fatos mais marcantes <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua infância à vida<br />

adulta.<br />

T<strong>em</strong> um irmão e uma irmã mais novos, s<strong>em</strong>pre foi muito unido com o irmão, <strong>em</strong>bora<br />

gostasse menos <strong>de</strong> sair do que ele, pois preferia ficar <strong>em</strong> casa. L<strong>em</strong>brou das brinca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong><br />

criança, da residência on<strong>de</strong> nasceu e daquela para on<strong>de</strong> a família se mudou durante sua<br />

adolescência. Mudou-se com a família para outra região, mas retornaram à cida<strong>de</strong> natal, o pai<br />

era médico e a mãe só voltou a estudar quando já estavam crescidos. Aos 18 anos foi estudar<br />

na capital vizinha e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, mora sozinho.<br />

Formou-se, fez intercâmbio <strong>de</strong> estágio <strong>em</strong> outro país, que esten<strong>de</strong>u para o mestrado,<br />

mas nunca pensou <strong>em</strong> fixar residência, <strong>em</strong>bora goste muito do país. Voltou à sua cida<strong>de</strong> natal,<br />

trabalhou como professor <strong>em</strong> uma universida<strong>de</strong> particular, mas novamente se mudou quando<br />

foi aprovado <strong>em</strong> um concurso para professor substituto da universida<strong>de</strong> pública on<strong>de</strong> leciona.<br />

Atualmente está cursando o doutorado e preten<strong>de</strong> retornar ao país on<strong>de</strong> fez o mestrado através<br />

<strong>de</strong> doutorado sandwish, por um período <strong>de</strong> seis meses.<br />

Afirmou que gosta <strong>de</strong> ficar <strong>em</strong> casa nas horas vagas, acompanha o noticiário na<br />

televisão, estuda, faz pesquisas na internet, comunica-se com amigas (os) pelo “MSN” e às<br />

vezes freqüenta salas <strong>de</strong> bate-papo, on<strong>de</strong> se interessou por duas garotas, mas quando as


conheceu pessoalmente, a relação não foi adiante. Costuma ir muito ao cin<strong>em</strong>a, porque po<strong>de</strong><br />

ir sozinho, prefere dramas ou filmes <strong>de</strong> ação. Eventualmente vai a barzinhos com amigos (as).<br />

Ao falar <strong>de</strong> sua vida afetiva, l<strong>em</strong>brou da iniciação sexual aos 17 anos, com uma<br />

prostituta, das namoradas que teve enquanto esteve fora do país, mas evitou um maior<br />

envolvimento, pois sabia que logo voltaria ao Brasil, preferiu não levar a sério. Comentou que<br />

seus relacionamentos foram s<strong>em</strong>pre efêmeros, está saindo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o reveillon com uma amiga,<br />

mas não a classifica como namorada, pois não há compromisso n<strong>em</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> estar com ela<br />

s<strong>em</strong>pre. Além disso, ainda gosta <strong>de</strong> uma mulher casada com qu<strong>em</strong> se envolveu, <strong>em</strong>bora<br />

tenham rompido.<br />

Afirma que a solteirice não o incomoda, às vezes é questionado por parentes,<br />

principalmente porque o irmão e a irmã, mais novos que ele, já são casados e têm filhos, mas<br />

os pais não faz<strong>em</strong> cobranças. Acha que nunca foi alvo <strong>de</strong> discriminação, apesar <strong>de</strong> as pessoas<br />

se mostrar<strong>em</strong> surpresas com o fato <strong>de</strong> na sua ida<strong>de</strong> ainda não ter casado. Contudo, sente-se<br />

b<strong>em</strong> só, gosta <strong>de</strong> estar consigo mesmo e, portanto, isso não interfere <strong>em</strong> sua vida.<br />

Seu <strong>de</strong>poimento foi sucinto, permeado por pausas, nos momentos <strong>em</strong> que fazia<br />

perguntas mais pessoais, <strong>em</strong>bora às vezes sorrisse diante <strong>de</strong> algum comentário. Tímido,<br />

dosava as palavras e apenas revelava o essencial. Afinal, eu era alguém que invadira a solidão<br />

e silêncio que tanto aprecia, mesmo com seu consentimento. Contudo, nosso encontro era<br />

efêmero, assim como nas salas <strong>de</strong> bate-papo que freqüenta, concluímos a conversa e nos<br />

<strong>de</strong>spedimos um do outro, até nos encontramos qualquer dia ou talvez nunca mais.<br />

Entrevista 7: Flávio<br />

O informante t<strong>em</strong> 38 anos e foi indicado por uma das mulheres entrevistadas, com<br />

qu<strong>em</strong> trabalha. Mostrou-se receptivo e pediu-me para ir à Universida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> leciona, no final<br />

da manhã, horário <strong>em</strong> que estaria mais disponível. Lá chegando, indaguei por ele na secretaria


e fui informada <strong>de</strong> que se encontrava <strong>em</strong> uma reunião, mas <strong>de</strong>ixara recado para que eu o<br />

aguardasse. Não <strong>de</strong>morou a chegar, e, após nos cumprimentarmos, sugeriu que<br />

conversáss<strong>em</strong>os <strong>em</strong> uma sala anexa, on<strong>de</strong> não <strong>ser</strong>íamos interrompidos.<br />

Inicialmente, indagou-me sobre a pesquisa, expliquei-lhe o objetivo e, discutiu<br />

brev<strong>em</strong>ente sobre as mudanças <strong>de</strong> comportamento, padrões <strong>de</strong> conjugabilida<strong>de</strong> e conceitos<br />

relativos a direitos civis e casamento, tomando como ex<strong>em</strong>plo os direitos adquiridos por<br />

parceiros <strong>de</strong> relações homoafetivas, como no caso <strong>de</strong> planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, conforme ocorreu com<br />

um colega <strong>de</strong> trabalho. Enfatizou ainda o aspecto <strong>de</strong>mográfico, o envelhecimento da<br />

população, que t<strong>em</strong> sido foco <strong>de</strong> suas pesquisas, comentando que acabara <strong>de</strong> realizar um<br />

documentário focalizando algumas manifestações da violência, dando ênfase ao abandono e<br />

maus-tratos <strong>de</strong> que são vítimas os idosos, mas também o seu retorno ao mercado <strong>de</strong> trabalho,<br />

diante do <strong>de</strong>s<strong>em</strong>prego dos jovens, t<strong>em</strong>a que <strong>de</strong>senvolve <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Doutorado. Feito isso,<br />

mostrou-se mais à vonta<strong>de</strong> e disposto a falar <strong>de</strong> sua vida.<br />

Nasceu no interior, estudou <strong>em</strong> escola pública e veio para a capital quando passou no<br />

vestibular. Teve uma infância tranqüila e feliz, como todo menino do interior, até os 13 anos,<br />

quando levou uma queda <strong>de</strong> bicicleta e quebrou os dois <strong>de</strong>ntes da frente, <strong>de</strong>ixando-o tímido e<br />

inseguro. Por volta dos 14 anos, teve sua primeira paixão e foi rejeitado pela garota, o que o<br />

marcou profundamente e, talvez por isso, pon<strong>de</strong>ra, não consegue se entregar totalmente <strong>em</strong><br />

seus relacionamentos. A iniciação sexual foi entre 15 e 17 anos, não sabe precisar a ida<strong>de</strong>, <strong>em</strong><br />

um bor<strong>de</strong>l, como era comum no interior. Falou também da relação dos pais, dos conflitos e<br />

brigas causados por incompatibilida<strong>de</strong>, ambos pensavam <strong>de</strong> forma totalmente diferente, mas<br />

supõe que isso não afetou seus futuros relacionamentos.<br />

Começou a trabalhar cedo, primeiro como office boy, <strong>de</strong>pois como auxiliar <strong>de</strong><br />

escritório, mas s<strong>em</strong>pre estudando. Prestou vestibular para a área <strong>de</strong> exatas, mas não foi<br />

aprovado e optou pela licenciatura, cuja concorrência era menor. Quando começou


i<strong>de</strong>ntificou-se com o curso, vinha do interior todos os dias, o que era muito cansativo, o pai<br />

não ficou satisfeito, mas a mãe o apoiou. Na faculda<strong>de</strong>, in<strong>ser</strong>iu-se <strong>em</strong> grupos <strong>de</strong> pesquisa,<br />

primeiro como voluntário e <strong>de</strong>pois como bolsista. Com a bolsa, po<strong>de</strong> mudar-se para a capital e<br />

foi morar <strong>em</strong> uma república. Ao se formar, foi convidado para lecionar na Universida<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>dicou-se às pesquisas e o mestrado e doutorado foram conseqüências.<br />

Colocou que <strong>de</strong>dica a maior parte do seu t<strong>em</strong>po ao trabalho e <strong>de</strong>pois da universida<strong>de</strong><br />

vai para a aca<strong>de</strong>mia, on<strong>de</strong> faz natação e musculação. Chega <strong>em</strong> casa tar<strong>de</strong>, cansado, mas<br />

s<strong>em</strong>pre t<strong>em</strong> algum artigo ou relatório para preparar no computador, que também usa para ler<br />

textos ou livros, que estão muito caros. Costuma ler romances espíritas, livros <strong>de</strong> auto-ajuda,<br />

mas não citou títulos ou autores preferidos. Gosta muito <strong>de</strong> dançar e <strong>de</strong> música,<br />

principalmente o forró, que s<strong>em</strong>pre ouviu <strong>em</strong> sua cida<strong>de</strong> natal, mas também não se recordou<br />

<strong>de</strong> cantigas ou compositores favoritos.<br />

Sobre sua vida afetiva, afirmou que teve relacionamentos relativamente longos, l<strong>em</strong>bra<br />

<strong>de</strong> uma namorada <strong>de</strong> seis anos, com qu<strong>em</strong> terminou por não se sentir pronto para o<br />

casamento; outra <strong>de</strong> dois anos, da qual se separou quando foi fazer o mestrado e, atualmente,<br />

namora uma moça b<strong>em</strong> mais jov<strong>em</strong>. Segundo afirma, no início da relação a diferença <strong>de</strong><br />

interesses não pesou, chegou até a pensar <strong>em</strong> casamento, ela não quis, agora é o contrário, o<br />

relacionamento v<strong>em</strong> esfriando, atribui como um dos fatores o fato <strong>de</strong>la não se dar b<strong>em</strong> com<br />

sua mãe.<br />

Comenta que após trinta anos <strong>de</strong> casada, a mãe se separou do pai e, na mesma época, a<br />

irmã <strong>de</strong>ixou o marido. Trouxe as duas e mais três sobrinhos pequenos para morar<strong>em</strong> perto<br />

<strong>de</strong>le, alugou uma casa, pois já estava acostumado a viver sozinho e não ia dar certo dividir<strong>em</strong><br />

o mesmo espaço, mas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte disso, assumiu o papel <strong>de</strong> pai dos sobrinhos.<br />

Seu <strong>de</strong>poimento é contraditório, ora afirma que a solteirice não incomoda e não sente<br />

falta <strong>de</strong> uma esposa, ora <strong>de</strong>clara que v<strong>em</strong> pensando <strong>em</strong> se casar, mas justifica: <strong>de</strong>vido à ida<strong>de</strong>,


a fatores biológicos, quer formar uma família, ter filhos. Porém, apesar <strong>de</strong> expressar o <strong>de</strong>sejo<br />

<strong>de</strong> se casar, reconhece que com o passar dos anos ficou mais exigente, o que dificulta<br />

encontrar alguém com qu<strong>em</strong> queira compartilhar sua vida. Nesse ínterim, comunica que t<strong>em</strong><br />

um filho <strong>de</strong> 14 anos, fruto <strong>de</strong> uma aventura inconseqüente, com o qual t<strong>em</strong> pouca<br />

convivência, pois mora com a mãe e seu companheiro no interior.<br />

Acredita que o fato <strong>de</strong> não se entregar por inteiro não é um <strong>em</strong>pecilho <strong>em</strong> seus<br />

relacionamentos, pois s<strong>em</strong>pre tomou a iniciativa do rompimento. Quando o questionei sobre<br />

tal afirmação, explicou que toda vez que se sente inseguro ou ameaçado na relação, prefere<br />

terminar o namoro a confrontar seus medos.<br />

Tudo indica que nosso encontro, um evento episódico, não o assustou, mas conce<strong>de</strong>u<br />

seu <strong>de</strong>poimento na exata medida que lhe permite sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> envolvimento, n<strong>em</strong> mais<br />

n<strong>em</strong> menos. Em outras palavras, contou algumas coisas, silenciou outras, calculadamente<br />

evitou se expor por inteiro e, encerrou a entrevista como faz na maioria das vezes, “quando<br />

não me sinto seguro, termino”. Conversamos ainda brev<strong>em</strong>ente, enquanto me acompanhava,<br />

gentilmente, à secretaria, para solicitar o telefone <strong>de</strong> uma colega que talvez pu<strong>de</strong>sse colaborar<br />

com a pesquisa.<br />

Entrevista 8: Lauro<br />

O informante t<strong>em</strong> 35 anos e foi indicado por uma amiga minha com qu<strong>em</strong> trabalha e,<br />

quando lhe telefonei para marcar a entrevista, <strong>em</strong> meio à nossa conversa a ligação foi<br />

interrompida. Algumas horas <strong>de</strong>pois ligou pedindo <strong>de</strong>sculpas, pois o celular <strong>de</strong>scarregara e<br />

sugeriu que nos encontráss<strong>em</strong>os <strong>em</strong> um dos Shoppings da cida<strong>de</strong>, <strong>em</strong> frente a uma cafeteria,<br />

no meio da tar<strong>de</strong>, quando havia menos pessoas circulando.<br />

Não nos conhecíamos e lhe <strong>de</strong>i algumas características que o ajudass<strong>em</strong> a me<br />

i<strong>de</strong>ntificar, mas quando chegou, perto do horário combinado, não me olhou, posicionou-se do


lado oposto, ficou <strong>em</strong> frente à escada rolante. Tentei ligar para o seu celular, estava <strong>de</strong>sligado<br />

e, cerca <strong>de</strong> quinze minutos <strong>de</strong>pois, quando eu já achava que não era ele (lia aparent<strong>em</strong>ente<br />

interessado a programação <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a), aproximou-se e perguntou se eu era a amiga <strong>de</strong> nossa<br />

interlocutora. Confirmei e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> nos cumprimentarmos, dirigimo-nos a uma das mesas da<br />

praça <strong>de</strong> alimentação, on<strong>de</strong> conversamos s<strong>em</strong> interrupções.<br />

Falou-me da infância e da adolescência rapidamente, <strong>de</strong>teve-se mais na fase presente,<br />

expressou seus pontos <strong>de</strong> vista acerca das mudanças no comportamento, nas relações e<br />

escolhas das pessoas. Nasceu <strong>em</strong> outro estado, é filho único, sua infância e adolescência<br />

foram tranqüilas, os pais lhe <strong>de</strong>ram uma educação leve, s<strong>em</strong> rigi<strong>de</strong>z, transmitiram-lhe noções<br />

sobre comportamento, mas s<strong>em</strong> impor.<br />

Contou que na adolescência teve muitas namoradas, saia com amigos, ia à praia, mas<br />

teve que se mudar <strong>de</strong>vido a questões familiares, sobre as quais foi reticente, e os familiares da<br />

mãe e novos amigos o ajudaram a se adaptar. Conheceu uma moça e retornou à sua cida<strong>de</strong><br />

natal, pois ela morava lá e queria ficar perto <strong>de</strong>la, achava também que teria mais perspectivas<br />

profissionais, mas o namoro acabou, frustraram-se as expectativas <strong>de</strong> conseguir um <strong>em</strong>prego<br />

melhor e veio <strong>em</strong>bora.<br />

Trabalhou <strong>em</strong> uma <strong>em</strong>presa <strong>de</strong> familiares e <strong>de</strong>pois no setor <strong>de</strong> contabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />

secretaria municipal. Foi aprovado na faculda<strong>de</strong> após quatro tentativas, quando se <strong>de</strong>cidiu<br />

pela área social, envolveu-se com pesquisa e atualmente está cursando o mestrado. Comentou<br />

que trabalha como professor universitário e, conciliar o ensino e as ativida<strong>de</strong>s do mestrado<br />

t<strong>em</strong> sido difícil, quase não lhe sobra t<strong>em</strong>po.<br />

Afirma que gosta <strong>de</strong> ler, <strong>em</strong>bora no momento suas leituras se restrinjam à bibliografia<br />

do mestrado, mas não citou títulos ou autores preferidos. Aprecia música clássica, vai a<br />

barzinhos com amigos e com a namorada, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o som não seja alto e possam conversar.


Costuma também ir ao cin<strong>em</strong>a, prefere aventura e drama, mas às vezes, é divertido<br />

assistir comédias românticas com a namorada.<br />

Comenta que já amou outras vezes, está com a atual namorada faz cinco anos, às vezes<br />

terminam, como agora, mas s<strong>em</strong>pre voltam, nunca <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> se falar, pois a afinida<strong>de</strong> é<br />

muito gran<strong>de</strong>. Consi<strong>de</strong>ra a solteirice uma circunstância que não o incomoda, t<strong>em</strong> outras<br />

priorida<strong>de</strong>s, ainda que <strong>de</strong>seje encontrar uma pessoa para compartilhar projetos <strong>de</strong> vida, mas<br />

no momento prioriza a realização profissional. Não pensa <strong>em</strong> ter filhos – se vier<strong>em</strong> <strong>ser</strong>ão<br />

b<strong>em</strong>-vindos – n<strong>em</strong> preten<strong>de</strong> se casar apenas para cumprir mo<strong>de</strong>los impostos, não concebe<br />

conviver com alguém com qu<strong>em</strong> não tenha sinergia. Colocou ainda que a in<strong>de</strong>pendência das<br />

mulheres não o intimida, ao contrário, mas vive b<strong>em</strong> sozinho, não t<strong>em</strong> medo da solidão, sabe<br />

o que quer e se não se cobra, quaisquer pressões não o afetam.<br />

Durante a entrevista, preferiu segurar o gravador, pareceu tranqüilo e relatou sua vida<br />

pessoal s<strong>em</strong> aparente constrangimento, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u seus pontos <strong>de</strong> vista com segurança. Quando<br />

concluiu o <strong>de</strong>poimento, conversamos ainda sobre a pesquisa que v<strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvendo para<br />

compor a dis<strong>ser</strong>tação, a ansieda<strong>de</strong> diante da proximida<strong>de</strong> da banca para qualificação, mas<br />

também sobre o meu estudo, o processo da coleta <strong>de</strong> dados, dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas e<br />

mudanças i<strong>de</strong>ntificadas nos test<strong>em</strong>unhos <strong>de</strong> homens e mulheres, entre uma cida<strong>de</strong> e outra.<br />

Despedimo-nos <strong>de</strong> forma cordial e, ao chegar <strong>em</strong> casa, quando me sentei para transcrever sua<br />

história, <strong>de</strong>scobri que não fora gravada, inadvertidamente, ele apertara o botão <strong>de</strong> pause<br />

repetidamente enquanto falava, o que talvez indique que não estava tão à vonta<strong>de</strong> quanto eu<br />

supunha. Além disso, dias <strong>de</strong>pois, encontrei com a amiga que nos aproximara e ela, surpresa,<br />

contou sobre sua <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> ir morar com a namorada e me perguntou: – Será que a entrevista<br />

mexeu com ele? –. Qu<strong>em</strong> sabe, o certo é que n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre as colocações dos informantes<br />

correspon<strong>de</strong>m a suas ações.


Entrevista 9: Ivan<br />

O informante t<strong>em</strong> 33 anos e foi indicado por um amigo meu com qu<strong>em</strong> trabalha e,<br />

assim que lhe falei sobre o meu interesse <strong>em</strong> entrevistá-lo, concordou. Encontramo-nos <strong>em</strong><br />

seu escritório, no início da noite, pois estivera viajando, tinha muito <strong>ser</strong>viço acumulado e<br />

pretendia continuar trabalhando <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> nossa conversa, conforme alegou.<br />

Inicialmente, expliquei o objetivo da pesquisa e a metodologia adotada, esclareci que<br />

não faria muitas perguntas, minha intenção era ouvir sua história <strong>de</strong> vida e, portanto, pretendia<br />

intervir quando tivesse alguma dúvida, para solicitar que explorasse <strong>de</strong>terminado aspecto ou<br />

questionar sobre algo que não abordara. Contudo, revelou-se pouco afeito a confidências, sua<br />

narrativa, seca, enviava mensagens curtas, tal qual telegrama, algumas vezes <strong>de</strong>ixando pistas<br />

para que eu pu<strong>de</strong>sse, caso quisesse, tentar <strong>de</strong>cifrar. Durante a entrevista, houve momentos <strong>em</strong><br />

que recuava para trás, encostava-se no espaldar da ca<strong>de</strong>ira, distante o mais possível do<br />

gravador (e <strong>de</strong> mim) e apenas respondia ao que lhe perguntava.<br />

Nasceu no interior do estado, per<strong>de</strong>u a mãe quando tinha 11 anos e teve que apren<strong>de</strong>r a<br />

realizar as tarefas domésticas e cuidar das irmãs mais novas, para ajudar o pai que trabalhava<br />

o dia todo. Na adolescência, o pai casou <strong>de</strong> novo, retraiu-se e passou a sair sozinho, <strong>em</strong>bora<br />

não tenha se <strong>de</strong>sligado da família. Veio estudar na capital, graduou-se, hoje resi<strong>de</strong> <strong>em</strong> uma<br />

casa com dois pavimentos, ele e as irmãs ficam no andar superior e o pai é seu vizinho, mora<br />

no piso inferior.<br />

Aos 17 anos, iniciou sua vida sexual com uma namorada, mais velha que ele, por<br />

qu<strong>em</strong> foi apaixonado, namoraram durante um t<strong>em</strong>po, tiveram um filho, mas nunca chegaram<br />

a morar juntos. L<strong>em</strong>brou do seu cuidado e carinho quando sofreu um aci<strong>de</strong>nte grave – que<br />

preferiu não comentar –, tratou-o como uma mãe. Contudo, evitou falar sobre o período do<br />

namoro, porque motivo se separar<strong>em</strong> e, ou como se relacionam atualmente. Da mesma forma,<br />

afirmou que ama o filho, mas não fez comentários sobre a convivência entre eles.


Nas horas vagas, como não gosta <strong>de</strong> ficar <strong>em</strong> casa, costuma ir ao cin<strong>em</strong>a para assistir<br />

filmes <strong>de</strong> ação ou comédia e, cita um dos filmes recentes que apreciou; vai também à praia ou<br />

a barzinhos com amigos. Gosta <strong>de</strong> ouvir música, principalmente samba e dancing e cantarola<br />

uma das músicas do compositor predileto. Lê regularmente livros técnicos <strong>de</strong> sua área<br />

profissional e revistas s<strong>em</strong>anais para se manter atualizado, vai pouco ao teatro e não gosta <strong>de</strong><br />

shows.<br />

Afirmou que está s<strong>em</strong> parceira fixa faz dois anos, foi apaixonado pela última<br />

namorada, mas não <strong>de</strong>u certo. Des<strong>de</strong> então, está sozinho, não acredita <strong>em</strong> relações eternas,<br />

exist<strong>em</strong> enquanto há parceria, companheirismo e, se <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> acontecer é melhor terminar. Às<br />

vezes, nas baladas, conhece alguém e fica s<strong>em</strong> compromisso. Colocou ainda que se sente b<strong>em</strong><br />

como <strong>solteiro</strong>, não pensa <strong>em</strong> se casar, nunca ninguém lhe cobrou casamento, mas espera<br />

encontrar alguém para dividir os sonhos, é bom acordar com o sorriso <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> se ama.<br />

Não gosta <strong>de</strong> fazer planos futuros, mas preten<strong>de</strong> diminuir o ritmo <strong>de</strong> trabalho, pois<br />

alterna funções na <strong>em</strong>presa e no funcionalismo público, <strong>em</strong>bora se sinta realizado na<br />

profissão. Preten<strong>de</strong> concluir a casa on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> e <strong>de</strong>pois comprar um apartamento próprio para<br />

morar sozinho.<br />

Ao encerrarmos a entrevista, indagou-me: – E então, qual o resultado? Expliquei-lhe<br />

que os meus cálculos, ao contrário dos <strong>de</strong>le, percorriam a inexatidão e, por isso, teria que<br />

ouvir outras histórias para rastrear diferenças e s<strong>em</strong>elhanças entre as <strong>solteira</strong>s e os <strong>solteiro</strong>s <strong>de</strong><br />

hoje e <strong>de</strong> antigamente.<br />

Dirigimo-nos então para a sala ao lado, on<strong>de</strong> o meu amigo e outro colega estavam<br />

trabalhando, o último fora informado sobre a pesquisa, após <strong>ser</strong>mos apresentados, perguntou<br />

sobre amigos (as) que tinham concordado <strong>em</strong> dar seu test<strong>em</strong>unho e, ao saber que <strong>de</strong>sistiram,<br />

prontificou-se a conseguir o telefone <strong>de</strong> pessoas <strong>solteira</strong>s, explicando que <strong>em</strong>bora não fosse


casado, já morara com uma namorada. Conversamos mais um pouco e me <strong>de</strong>spedi, enquanto<br />

eles retomavam o trabalho interrompido.<br />

Entrevista 10: Hel<strong>de</strong>r<br />

O informante t<strong>em</strong> 37 anos e foi indicado por uma amiga, quando nos falamos ao<br />

telefone concordou <strong>em</strong> dar seu <strong>de</strong>poimento, mas estava <strong>de</strong> plantão, prometeu manter contato<br />

no dia seguinte, para combinarmos o horário e o local <strong>de</strong> nossa conversa. Ligou no final da<br />

tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma sexta-feira e marcamos <strong>em</strong> uma praça próxima à sua residência. Na hora da<br />

entrevista, chovia muito e, quando estacionei no local, pensei <strong>em</strong> lhe telefonar para<br />

escolhermos outro lugar, já que era impossível uma conversa ao ar livre. Novamente, foi ele<br />

qu<strong>em</strong> ligou, veio ao meu encontro e, após nos cumprimentarmos, indagou se eu me<br />

incomodava <strong>em</strong> ir ao seu apartamento. Receptivo e muito comunicativo, começou a falar<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o elevador, como se fôss<strong>em</strong>os velhos conhecidos. Sentamo-nos <strong>em</strong> um sofá da sala,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> afastar o jornal com que se distraíra antes <strong>de</strong> ir me buscar.<br />

Falou da infância e <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>iras da meninice; da inconseqüência e rebeldia da<br />

adolescência; da pouca importância que dava aos estudos, quase foi reprovado duas vezes, só<br />

queria curtir. Comentou sobre sua in<strong>de</strong>pendência, que se manifestou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> essa época, como<br />

na ocasião <strong>em</strong> que pegou o carro do pai escondido para apren<strong>de</strong>r a dirigir e, quando foi<br />

<strong>de</strong>scoberto e repreendido, jurou a si mesmo que o único carro que dirigiria <strong>ser</strong>ia o seu.<br />

L<strong>em</strong>brou da época da faculda<strong>de</strong>, do trabalho como instrutor <strong>em</strong> cursos<br />

profissionalizantes, pensou <strong>em</strong> se tornar professor, mas <strong>de</strong>sistiu, foi selecionado como treinee<br />

por uma seguradora, <strong>de</strong>pois recebeu uma proposta melhor <strong>de</strong> outra seguradora, na qual<br />

chegou até a <strong>ser</strong> promovido, mas percebeu que as oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ascensão profissional e<br />

estabilida<strong>de</strong> eram poucas. Por isso, fez um concurso público, cuja aprovação mudou sua vida,


passou um t<strong>em</strong>po morando <strong>em</strong> outros estados e faz um ano e meio que retornou à cida<strong>de</strong><br />

natal.<br />

Sua iniciação sexual foi com 16 anos, com uma garota na qual estava interessado, ela<br />

preferia um amigo seu e lhe propôs que, se levasse esse amigo à casa <strong>de</strong> suas tias, ficaria com<br />

os dois, mas vida sexual ativa só teve aos 18 anos, com uma namorada.<br />

Comentou que teve muitas namoradas, alguns relacionamentos longos e outros<br />

efêmeros, relatou episódios acontecidos, mas preferiu <strong>de</strong>talhar um namoro <strong>de</strong> sete anos e<br />

meio, planejaram morar juntos ou casar, mas o <strong>de</strong>sgaste e a distância, quando foi transferido,<br />

fizeram com que “caísse na gandaia”, tinha outras namoradas, s<strong>em</strong> que ela soubesse.<br />

Falavam-se diariamente, brigavam s<strong>em</strong>pre e, quando estavam juntos, ela parecia fria, como se<br />

estivesse com ele por obrigação, finalmente conseguiu terminar a relação.<br />

Comentou que t<strong>em</strong> amigas com qu<strong>em</strong> se relaciona sexualmente, mesmo quando está<br />

com namorada fixa, mas é só ficar sozinho que algumas começam a querer que assuma um<br />

compromisso, não é o caso, pois se quisesse namorá-las o faria. Não soube ou não quis<br />

explicar o critério adotado para nomear namoradas e amigas, consi<strong>de</strong>ra muito subjetivo,<br />

principalmente “é uma questão <strong>de</strong> bater o olho, é ou não é”.<br />

Explicou que quando está s<strong>em</strong> namorada, vai com amigos a algum barzinho para<br />

“azaração” e s<strong>em</strong>pre encontra alguém. Contudo, não gosta <strong>de</strong> sair, quando se sente só prefere<br />

ler, alugar um filme ou ouvir música e, se estiver namorando, acha melhor ficar <strong>em</strong> casa, ao<br />

invés <strong>de</strong> freqüentar os mesmos lugares, encontrar as mesmas pessoas, fazer “o social” e às<br />

vezes escutar conversas chatas.<br />

Afirma que gosta <strong>de</strong> ler eventualmente revistas s<strong>em</strong>anais, acessa os jornais pela<br />

internet e t<strong>em</strong> interesse <strong>em</strong> filosofia, cita o último livro que adquiriu, um Best seller cuja<br />

polêmica na época do lançamento o <strong>de</strong>ixou curioso e cita o nome <strong>de</strong> um autor pelo qual não<br />

se interessa, apesar do sucesso <strong>de</strong> suas obras. Costuma ir ao cin<strong>em</strong>a, prefere filmes policiais e


dramas, cita um dos últimos que assistiu, cujo enredo reúne ambos os estilos. Aprecia também<br />

música, principalmente orquestrada, popular brasileira e rock nacional, cita o seu compositor<br />

favorito.<br />

Acha que a tendência é se casar e ter filhos, mas nunca foi cobrado pela família,<br />

s<strong>em</strong>pre ouviu o pai dizer que seus filhos não iriam casar, talvez porque ele e sua mãe vivam<br />

como irmãos. As pessoas é qu<strong>em</strong> questionam se e quando preten<strong>de</strong> casar, <strong>de</strong>pois os filhos,<br />

coisas assim. Gosta da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>, <strong>de</strong> cultivar seus hábitos e manias, dormir<br />

espalhado, ouvir música com volume alto, assistir o futebol s<strong>em</strong> brigar com a novela. Sabe<br />

que é uma questão <strong>de</strong> adaptação e acredita que mais tar<strong>de</strong> saberá lidar com o individualismo e<br />

ter uma companheira. Por enquanto, t<strong>em</strong> como único projeto retomar os estudos e fazer um<br />

concurso para técnicos <strong>de</strong> nível superior que lhe ofereça melhores condições salariais.<br />

Encerrado o <strong>de</strong>poimento, falamos ainda sobre a cida<strong>de</strong> e os padrões normativos que<br />

reg<strong>em</strong> a conduta <strong>de</strong> seus moradores; indagou os motivos alegados por aqueles (as) que se<br />

recusaram a colaborar com a pesquisa e verbalizou a preocupação com o sigilo e anonimato,<br />

enquanto assinava o termo <strong>de</strong> consentimento da entrevista, particularmente com uma possível<br />

i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> suas parceiras. Após tranqüilizá-lo, acompanhou-me até o carro, <strong>de</strong>spedimo-<br />

nos <strong>de</strong> forma afetuosa e segui caminho, enquanto l<strong>em</strong>brava, divertida, alguns episódios<br />

recriados por sua narrativa.<br />

Entrevista 11: Nelson<br />

O informante t<strong>em</strong> 36 anos, foi indicado por colegas meus <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> é amigo<br />

e, quando lhe telefonei, concordou <strong>em</strong> dar seu <strong>de</strong>poimento. Encontramo-nos <strong>em</strong> um domingo,<br />

pela manhã, <strong>em</strong> seu apartamento. Quando cheguei estava ansioso, <strong>de</strong>morei a localizar o<br />

en<strong>de</strong>reço e, segundo afirmou, tinha um compromisso, ao qual não mais se referiu, à medida<br />

que conversávamos e se acostumava com a minha presença.


Inicialmente, indagou sobre a pesquisa, comentei sobre o objetivo e a metodologia<br />

adotada, explicando que gostaria <strong>de</strong> ouvir a sua história, momentos mais significativos <strong>de</strong> sua<br />

vida, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância à fase adulta e faria perguntas s<strong>em</strong>pre que sentisse necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

aprofundar algum aspecto. Por último, l<strong>em</strong>brou-me da assinatura do termo <strong>de</strong> consentimento<br />

e, feito isso, iniciamos a entrevista.<br />

L<strong>em</strong>brou da família pobre, do pai que trabalhava <strong>em</strong> uma firma o dia todo e da mãe<br />

que tinha uma “venda” <strong>em</strong> casa, on<strong>de</strong> ele e o irmão, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequenos, também labutavam, mal<br />

sobrava t<strong>em</strong>po para brincar<strong>em</strong>, assim que chegavam da escola se dirigiam para a bo<strong>de</strong>ga.<br />

Apesar da vida dura, estavam juntos, mas aos 18 anos, prestes a <strong>ser</strong> chamado para o Serviço<br />

Militar, o pai faleceu e, como filho mais velho, teve que arranjar um <strong>em</strong>prego para sustentar a<br />

mãe e o irmão, mas não <strong>de</strong>ixou os estudos.<br />

Conta que tentou três vezes até <strong>ser</strong> aprovado no exame <strong>de</strong> seleção para a escola<br />

Técnica, fato que consi<strong>de</strong>ra como um divisor <strong>de</strong> águas <strong>em</strong> sua vida, – se conseguiu alcançar<br />

essa meta, po<strong>de</strong>ria conquistar qualquer coisa – e assim aconteceu. Quando concluiu o curso<br />

técnico, ainda muito jov<strong>em</strong>, foi selecionado por duas <strong>em</strong>presas e optou por uma na área <strong>de</strong><br />

extração <strong>de</strong> petróleo, mas assim que começou a trabalhar, pensou “eu não fico aqui <strong>de</strong>z anos”<br />

e, após nove anos, saiu da <strong>em</strong>presa para fazer o que realmente gosta. Graduou-se na área <strong>de</strong><br />

saú<strong>de</strong>, cursou o mestrado e ensina <strong>em</strong> cursos <strong>de</strong> <strong>graduação</strong> e pós-<strong>graduação</strong> <strong>de</strong> uma<br />

universida<strong>de</strong>.<br />

No campo afetivo, contou que teve uma namorada durante muito t<strong>em</strong>po, iam e<br />

voltavam, conhecia outras pessoas e ficavam afastados, mas <strong>de</strong>pois reatavam o namoro, até<br />

que <strong>de</strong>cidiram terminar. Vale <strong>de</strong>stacar que um dos interlocutores me procurou para saber se<br />

conseguira seu <strong>de</strong>poimento e perguntou se falara da ex-noiva, provavelmente curioso para<br />

enten<strong>de</strong>r o motivo do término, iniciativa do entrevistado, que causou mal-estar entre eles na<br />

ocasião.


Durante nossa conversa, não falou <strong>de</strong> amor ou relacionamentos mais duradouros,<br />

exceto <strong>de</strong>ssa ex-namorada, mesmo assim citada rapidamente. Comentou apenas sobre<br />

relações efêmeras com amigas com qu<strong>em</strong> se encontra eventualmente. Afirmou que está<br />

fazendo terapia e, atualmente, sente-se mais seguro para assumir um compromisso e se<br />

relacionar com alguém <strong>de</strong> forma mais permanente.<br />

Indagado sobre as razões que o impediam <strong>de</strong> ter uma namorada fixa ou pensar <strong>em</strong><br />

casamento, esclareceu que o fato <strong>de</strong> ter ficado cuidando da mãe <strong>de</strong>pois da morte do pai e sua<br />

relação com ela o impediam. Pedi para que explicasse melhor, mas foi reticente e optou por<br />

falar da luta para saír<strong>em</strong> do bairro on<strong>de</strong> moravam e se <strong>de</strong>sfazer<strong>em</strong> da “venda”, só mantiveram<br />

os aluguéis <strong>de</strong> umas casas que o pai <strong>de</strong>ixou e que ajudavam nas <strong>de</strong>spesas. T<strong>em</strong> seis anos que a<br />

mãe também faleceu, ficou morando com o irmão, mas ele casou e agora mora sozinho.<br />

Nas horas livres, costuma sair com os colegas <strong>de</strong> trabalho, vão a algum restaurante ou<br />

barzinho, mas isso é raro, pois trabalha muito. Lê apenas livros <strong>de</strong> sua área profissional e usa<br />

a internet como ferramenta <strong>de</strong> pesquisa. Perguntei se gostava <strong>de</strong> música e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma<br />

pausa, disse enfaticamente que amava música, principalmente vocais, vozes superpostas e,<br />

citou o nome dos conjuntos musicais favoritos. Comentou também que é m<strong>em</strong>bro do coral da<br />

Igreja.<br />

Falou ainda que se sente cobrado por ainda estar <strong>solteiro</strong>, no local <strong>de</strong> trabalho e na<br />

Igreja, mas procura sair s<strong>em</strong>pre com o mesmo grupo <strong>de</strong> colegas da faculda<strong>de</strong>, também<br />

<strong>solteiro</strong>s, uns proteg<strong>em</strong> os outros. Acha que a mulher é mais pressionada do que o hom<strong>em</strong><br />

pela solteirice, mas ele também sofre pressão, pelo menos percebe isso. Quando sente falta<br />

<strong>de</strong> sexo, liga para uma das amigas e sa<strong>em</strong> juntos. Mas, pon<strong>de</strong>ra, a terapia o t<strong>em</strong> ajudado, não<br />

se satisfaz mais com esse tipo <strong>de</strong> relacionamento. Na sua Igreja, a formação <strong>de</strong> uma família é<br />

importante, agora acha que está pronto. T<strong>em</strong> como projeto futuro, portanto, constituir sua<br />

própria família e, é claro, continuar trabalhando no que gosta.


Ao final da entrevista, perguntei se gostaria <strong>de</strong> receber a transcrição, respon<strong>de</strong>u que<br />

não precisava, mas tinha interesse <strong>em</strong> ler o trabalho quando estivesse pronto. Em seguida,<br />

acompanhou-me até a porta e nos <strong>de</strong>spedimos. Quando cheguei <strong>em</strong> casa, <strong>de</strong>scobri que seu<br />

test<strong>em</strong>unho não foi registrado, como preferiu segurar o gravador, não percebi que acionara o<br />

botão <strong>de</strong> escuta, <strong>de</strong>ixando a fita correr s<strong>em</strong> reproduzir suas palavras.<br />

Entrevista 12: Camilo<br />

O informante t<strong>em</strong> 52 anos e foi indicado por uma ex-colega <strong>de</strong> faculda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> é<br />

parente. Concordou <strong>em</strong> dar seu <strong>de</strong>poimento e, quando nos falamos, convidou-me para ir ao<br />

seu local <strong>de</strong> trabalho, <strong>em</strong> um sábado, pela manhã, quando estaria menos atarefado.<br />

Chegamos ao local no mesmo horário, estava abrindo a casa e, após nos<br />

cumprimentarmos, levou-me para conhecer seu ateliê e me mostrou telas, sapatos <strong>de</strong> uma<br />

exposição, roupas que confeccionou para espetáculos teatrais, papéis reciclados e azulejos<br />

<strong>de</strong>corados com que v<strong>em</strong> trabalhando, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que me explicava o processo <strong>de</strong><br />

criação <strong>de</strong> cada peça.<br />

Em seguida, sentei-me <strong>em</strong> um sofá e ele na ca<strong>de</strong>ira ao lado e iniciamos a entrevista, ou<br />

melhor, ele iniciou, questionou o objetivo da pesquisa e sua relevância, argumentou que a<br />

solteirice não era algo estranho nos dias <strong>de</strong> hoje, não havia mais padrões preestabelecidos e<br />

não via razão para eu querer <strong>de</strong>senvolver uma tese sobre o esse t<strong>em</strong>a. Expus alguns motivos,<br />

mas mesmo assim, mostrou-se incrédulo.<br />

Começou a falar rapidamente e, <strong>em</strong>bora eu tivesse explicado que gostaria <strong>de</strong> conhecer<br />

sua história <strong>de</strong> vida, voltou-se para a questão da solteirice, como se quisesse o quanto antes se<br />

ver livre daquela conversa e <strong>de</strong> mim. Entretanto, quando soube que o meu doutorado era na<br />

UFBa, indagou se conhecia uma professora que é sua amiga e, ao saber que ela lera meu


projeto, começou a relaxar. A partir daí, pouco perguntei, divagou sobre suas buscas<br />

existenciais, escolhas e projetos <strong>de</strong> vida.<br />

Falou da família, da liberda<strong>de</strong> com que os pais o criaram, s<strong>em</strong> impor mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong><br />

comportamento, da relação com os irmãos. Comentou que começou a freqüentar a faculda<strong>de</strong>,<br />

mas não concluiu, cursava dança cont<strong>em</strong>porânea e foi para outro estado fazer um curso e<br />

terminou ficando, aproximou-se do teatro e encenou uma peça, interessou-se pelo cenário e<br />

acabou fazendo outro curso, tornou-se cenógrafo e recebeu um prêmio pelo trabalho, <strong>de</strong>pois<br />

se interessou pelo figurino, mudou-se novamente e estudou moda e estilismo.<br />

Viajou para o exterior, estudou nos Estados Unidos, voltou ao Brasil e, algum t<strong>em</strong>po<br />

<strong>de</strong>pois, foi para a Europa, e <strong>em</strong> um dos países on<strong>de</strong> residiu, teve um programa <strong>de</strong> televisão<br />

sobre a cultura dos povos, entre as quais a cultura africana, que o levou a iniciar algumas<br />

pesquisas, cujos resultados o conduziram à cida<strong>de</strong> natal, uma vez que foi convidado para<br />

retornar e i<strong>de</strong>alizar a produção <strong>de</strong> um museu, que acabou não dando certo, mas <strong>de</strong>cidiu fixar<br />

residência na cida<strong>de</strong>.<br />

Faz um ano que montou o ateliê, mas mora com os pais, os irmãos se ressent<strong>em</strong> disso,<br />

têm ciúme, mas para ele é mais cômodo, não t<strong>em</strong> que se preocupar com questões domésticas,<br />

<strong>em</strong>bora às vezes se envolva tanto com o trabalho que acaba dormindo no ateliê. Acha que<br />

passa tanto t<strong>em</strong>po no ateliê que po<strong>de</strong> <strong>de</strong>fini-lo como sua morada e a casa dos pais, o lugar<br />

on<strong>de</strong> dorme.<br />

Afirmou que já saiu muito, mas diminuiu o ritmo, por falta <strong>de</strong> dinheiro e também<br />

porque não lhe sobra t<strong>em</strong>po. Contudo, costuma ir ao teatro assistir espetáculos <strong>de</strong> dança e<br />

peças teatrais; adora cin<strong>em</strong>a, citou o último filme que assistiu e comentou que prefere filmes<br />

<strong>de</strong> arte. Gosta <strong>de</strong> todo tipo <strong>de</strong> música, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> rapper a algumas músicas <strong>de</strong> carnaval e <strong>de</strong>stacou<br />

os (as) cantores (as) favoritos. Lê “tudo o que passa pela frente”, principalmente sobre<br />

espiritualida<strong>de</strong>, medicina alternativa e, no momento, um livro sobre pintores antigos. Em um


aparador, pu<strong>de</strong> ob<strong>ser</strong>var livros enfileirados, <strong>de</strong> fotografia, <strong>de</strong> moda e biografias que <strong>de</strong>v<strong>em</strong><br />

inspirar suas criações artísticas.<br />

Comentou que não se casou porque não aconteceu, a solteirice não foi uma escolha<br />

consciente, teve algumas namoradas, uma <strong>de</strong>las até fez um aborto, mas não acredita na posse<br />

do casamento, <strong>em</strong> alma gêmea. Não sente solidão, mas po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> que mu<strong>de</strong> <strong>de</strong> idéia, nada é<br />

<strong>de</strong>finitivo. Refletiu sobre as transformações da socieda<strong>de</strong> cont<strong>em</strong>porânea , múltiplos campos<br />

<strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> no tocante a mo<strong>de</strong>los familiares e formas <strong>de</strong> conjugabilida<strong>de</strong>. Mais uma vez,<br />

questionou o meu interesse <strong>em</strong> investigar a solteirice e acrescentou que achava válido,<br />

interessante, sabe que as pessoas s<strong>em</strong> um relacionamento fixo são alvo <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong>,<br />

suscitam questionamentos, mas mesmo assim achava engraçado, pois o mundo não<br />

comportava mais padrões únicos.<br />

Falou da ativida<strong>de</strong> a que t<strong>em</strong> se <strong>de</strong>dicado mais recent<strong>em</strong>ente, a pintura, da aceitação e<br />

reconhecimento do seu trabalho, dos planos para expor suas telas nos Estados Unidos, da<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> rever o México e das reformas que preten<strong>de</strong> realizar no ateliê, a negociação com a<br />

Prefeitura para transformar o terreno no fundo da casa <strong>em</strong> espaço cultural e aten<strong>de</strong>r a<br />

comunida<strong>de</strong> do bairro.<br />

Após concluirmos a entrevista, presenteou-me com um <strong>de</strong> seus trabalhos com papel<br />

reciclado e um livro que está roteirizando para transformar <strong>em</strong> peça teatral, passou-me seus<br />

telefones e e-mail, caso eu quisesse entrar <strong>em</strong> contato e nos <strong>de</strong>spedimos afetuosamente. Suas<br />

divagações sobre a vida, arte, as transformações societárias e sobre a solteirice foram uma<br />

viag<strong>em</strong> instigante, tramou o enredo e falou apenas o que <strong>de</strong>sejava, enquanto seus olhos<br />

acompanhavam o meu interesse na história que, prazerosamente, enredava para me entreter.<br />

Saí do ateliê e, somente a caminho <strong>de</strong> casa me l<strong>em</strong>brei que não falara da sua vida sexual,<br />

talvez porque, como frisou <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminado momento, seleciona as coisas que po<strong>de</strong>rão entrar<br />

no seu espaço <strong>de</strong> pensamento.


Entrevista 13: Bernardo<br />

O informante t<strong>em</strong> 56 anos e foi contatado por uma das entrevistadas, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> é<br />

amigo, a qual explicou o objetivo da pesquisa e indagou se po<strong>de</strong>ria colaborar. Conversamos<br />

ao telefone e concordou <strong>em</strong> me receber na sua residência, <strong>em</strong> um dia <strong>de</strong> sábado, pela manhã,<br />

quando estaria livre e po<strong>de</strong>ríamos conversar s<strong>em</strong> pressa.<br />

Inicialmente, conversamos amenida<strong>de</strong>s, perguntou se tivera dificulda<strong>de</strong> <strong>em</strong> localizar o<br />

prédio, pediu notícias da amiga, <strong>de</strong>sculpou-se pela <strong>de</strong>sorganização da sala, alegando<br />

sorri<strong>de</strong>nte que precisava daquele caos. Assim que nos sentamos, questionou sobre o que eu<br />

queria saber sobre sua vida. Expliquei que gostaria <strong>de</strong> ouvir sua história, l<strong>em</strong>branças da<br />

infância e adolescência, b<strong>em</strong> como acompanhar sua trajetória na vida adulta.<br />

Seu <strong>de</strong>poimento revisitou a casa gran<strong>de</strong> com quintal arborizado, on<strong>de</strong> viveu durante a<br />

infância e a adolescência com sua família extensa, seus avós, os pais e o irmão, além <strong>de</strong> tios<br />

(as) e primos (as). Mudou-se aos 21 anos e, <strong>de</strong>pois disso, virou “cigano”, residiu <strong>em</strong> diversos<br />

lugares, ora sozinho, ora com a mãe. L<strong>em</strong>bra especialmente <strong>de</strong> um prédio on<strong>de</strong> residiu,<br />

quando tinha 30 anos, cujos vizinhos eram amigos e a vida, naquela época, era uma gran<strong>de</strong><br />

festa.<br />

Graduou-se e fez curso <strong>de</strong> formação na área <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Contou que teve <strong>em</strong>pregos <strong>em</strong><br />

diferentes áreas, foi bancário durante um t<strong>em</strong>po e chegou a <strong>ser</strong> gerente, mas não gostava do<br />

que fazia; trabalhou na área social, dirigiu uma instituição governamental para meninos <strong>em</strong><br />

situação <strong>de</strong> rua, mas foi exonerado do cargo; reabriu o consultório, mas faltava algo, passou a<br />

ajudar o irmão <strong>em</strong> um restaurante e, apesar <strong>de</strong> satisfatório não suportou o <strong>de</strong>sgaste; fechou o<br />

consultório e, durante <strong>de</strong>z anos, integrou a equipe <strong>de</strong> uma instituição <strong>de</strong> pesquisa. Atualmente,<br />

presta <strong>ser</strong>viços ao Estado e preten<strong>de</strong> voltar a aten<strong>de</strong>r no consultório.<br />

Cultivava o hábito da leitura, mas está com dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> enxergar, mesmo <strong>de</strong> óculos,<br />

e por isso parou <strong>de</strong> ler, mas cita as obras que mais apreciou e autores favoritos. Ouve todo


tipo <strong>de</strong> música, <strong>em</strong>bora prefira a popular brasileira, principalmente a bossa nova, mas ressalta,<br />

t<strong>em</strong> limite, não gosta do gênero <strong>ser</strong>tanejo atual. Costuma ir ao cin<strong>em</strong>a – não t<strong>em</strong> um gênero<br />

<strong>de</strong>finido, mas fala <strong>de</strong> filmes que o agradaram – e se distrai jogando ou conversando com<br />

amigos no computador, mas gosta mesmo é <strong>de</strong> freqüentar bares.<br />

Afirmou que não gosta <strong>de</strong> falar da sua vida afetiva, porque é “s<strong>em</strong> graça”, sua<br />

iniciação sexual aconteceu aos 17 anos, é homossexual, teve apenas duas paixões, na década<br />

<strong>de</strong> 1970 e faz t<strong>em</strong>po não t<strong>em</strong> um parceiro, já tentou se relacionar com garotos <strong>de</strong> programa,<br />

mas uma relação sexual mecânica não o satisfaz. Apesar da ausência <strong>de</strong> uma relação amorosa,<br />

consegue viver b<strong>em</strong> sozinho.<br />

Preferiu falar da convivência com a mãe, sua <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, discrição e bom humor,<br />

recurso contrastivo utilizado para abordar a relação difícil com o pai, rígido, intransigente,<br />

chato, mau humorado, cujas expressões <strong>de</strong> cólera eram t<strong>em</strong>idas, <strong>em</strong>bora fosse inteligente,<br />

criativo e tivesse uma conversa agradável. Contou que o pai também era homossexual e<br />

<strong>de</strong>monstrou ressentimento pelo fato <strong>de</strong>le obrigar a esposa e filhos a uma convivência forçada<br />

com o parceiro, que se sentia no direito <strong>de</strong> interferir na vida familiar e continuou a fazê-lo,<br />

mesmo quando os pais se separaram.<br />

Ao falar da vida <strong>de</strong> <strong>solteiro</strong>, afirma que já foi alvo <strong>de</strong> discriminação, mas nada<br />

significativo, hoje as coisas estão mais leves, até mesmo porque você busca conviver com<br />

pessoas que lhe aceitam do jeito que é. Comentou sobre uma comunida<strong>de</strong> do Orkut, da qual é<br />

m<strong>em</strong>bro, voltada para pessoas que moram sozinhas como ele e viv<strong>em</strong> <strong>em</strong> meio à bagunça,<br />

cuja vantag<strong>em</strong> é sair e retornar à casa e, encontrar tudo exatamente no mesmo lugar on<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ixou.<br />

Ao encerrar o <strong>de</strong>poimento, convidou-me para conhecer o apartamento e a extensão da<br />

“bagunça”, percorr<strong>em</strong>os os aposentos, enquanto me explicava, entre risadas, o caráter prático


e utilitário da <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m doméstica. Despedimo-nos cordialmente, <strong>em</strong> meio a risadas, porque<br />

quase tropecei <strong>em</strong> uma mala “esquecida”, há quase um mês, ao lado da porta.

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