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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS<br />

MÔNICA BENFICA MARINHO<br />

A CARREIRA DA PROSTITUTA MILITANTE<br />

Um estudo sobre o papel das práticas institucionais na<br />

construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da prostituta militante da Associação<br />

das Prostitutas da Bahia<br />

SALVADOR 2007


UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS<br />

MÔNICA BENFICA MARINHO<br />

A CARREIRA DA PROSTITUTA MILITANTE<br />

Um estudo sobre o papel das práticas institucionais na<br />

construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da prostituta militante da Associação<br />

das Prostitutas da Bahia<br />

Tese apresentada ao <strong>Programa</strong> <strong>de</strong> <strong>Pós</strong>-<br />

Graduação em Ciências Sociais da<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia, como requisito<br />

parcial <strong>para</strong> obtenção do grau <strong>de</strong> Doutor.<br />

Área <strong>de</strong> concentração: Sociologia<br />

Orientadora: Prof.ª Miriam Cristina M. Rabelo<br />

SALVADOR 2007


A Associação das Prostitutas da Bahia (APROSBA)


AGRADECIMENTOS<br />

A minha orientadora Miriam Cristina M. Rabelo, pelo empenho e por ter me apontado<br />

interessantes possibilida<strong>de</strong>s teóricas e práticas no campo da pesquisa.<br />

Ao <strong>Programa</strong> <strong>de</strong> <strong>Pós</strong>-Graduação em Ciências Sociais.<br />

A Celina, Fátima e Marilene, pela acolhida generosa.<br />

A todas as prostitutas que partici<strong>para</strong>m <strong>de</strong>ste estudo.<br />

A Tuca, meu companheiro, pelo carinhoso, paciente, e permanente apoio.


RESUMO<br />

Esta tese tem como objeto <strong>de</strong> investigação o papel das práticas institucionais na construção<br />

da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da prostituta militante da Associação das Prostitutas da Bahia (APROSBA).<br />

O objetivo é compreen<strong>de</strong>r o processo <strong>de</strong> construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da prostituta membro<br />

<strong>de</strong>sta associação, e como as práticas da instituição que colocam em funcionamento<br />

procedimentos, regras, normas e comunicações participam <strong>de</strong>sta construção. Partimos do<br />

pressuposto <strong>de</strong> que as práticas institucionais que conformam a APROSBA são<br />

transformadoras <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, e que o processo comunicacional, seja interpessoal ou<br />

mediado pelas tecnologias <strong>de</strong> comunicação, é um elemento central <strong>de</strong> tais práticas.<br />

Tomando como universo <strong>de</strong> investigação a Associação das Prostitutas da Bahia, <strong>de</strong>finimos<br />

como técnicas <strong>de</strong> coleta <strong>de</strong> dados a observação participante com a produção <strong>de</strong> relato<br />

etnográfico, entrevistas, e história <strong>de</strong> vida. Buscamos recuperar o processo <strong>de</strong> constituição<br />

da associação, e exploramos sua estrutura organizacional evi<strong>de</strong>nciando a idéia <strong>de</strong> que existe<br />

uma reorganização pessoal que se dá com base no funcionamento da instituição.<br />

Dedicamos-nos a investigar o processo <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> estigmatizada.<br />

Discutimos o campo da atuação da APROSBA na construção <strong>de</strong> uma nova imagem da<br />

prostituta, apontando temas e lutas que marcam a posição <strong>de</strong> militantes e não militantes.<br />

Investigamos o papel da mídia na construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> militante e, <strong>de</strong> forma<br />

específica, o seu uso como prática institucional. Enfim, ao consi<strong>de</strong>rarmos a militância como<br />

meio <strong>de</strong> superação da prostituição enquanto forma cultural envolvida em uma significação<br />

marginal, mostramos como as militantes da APROSBA, na apropriação e produção das<br />

práticas institucionais (que são produzidas no processo <strong>de</strong> interação), foram produzindo<br />

uma significação positiva do que é ser prostituta, mesmo que através <strong>de</strong> ações prenhes <strong>de</strong><br />

ambigüida<strong>de</strong>s.<br />

Palavras-chave: prostituição, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, comunicação, práticas institucionais.


RÉSUMÉ<br />

Cette thèse a comme objet <strong>de</strong> recherche le rôle <strong>de</strong>s pratiques institutionnelles dans la<br />

construction <strong>de</strong> l'i<strong>de</strong>ntité <strong>de</strong> la prostituée militant <strong>de</strong> l'Association <strong>de</strong>s Prostituées <strong>de</strong> la<br />

Bahia (APROSBA). L'objectif est comprendre le processus <strong>de</strong> construction <strong>de</strong> l'i<strong>de</strong>ntité <strong>de</strong><br />

la prostituée membre <strong>de</strong> cette association, et comme les pratiques <strong>de</strong> l'institution qui placent<br />

en fonctionnement <strong>de</strong>s procédures, règles, <strong>de</strong>s normes et <strong>de</strong>s communication participent <strong>de</strong><br />

cette construction. Nous partons du présupposition dont les pratiques institutionnelles qui<br />

se conforment APROSBA sont transformatrices d'i<strong>de</strong>ntités, et que le procès <strong>de</strong><br />

communication, soit interpersonnel ou négocié par les technologies <strong>de</strong> communication,<br />

c'est un élément central <strong>de</strong> telles pratiques. En prenant comme univers <strong>de</strong> recherche<br />

l'Association <strong>de</strong>s Prostituées <strong>de</strong> la Bahia, nous définissons comme <strong>de</strong>s techniques <strong>de</strong><br />

rassemble <strong>de</strong> données le observation participant avec la production <strong>de</strong> registre<br />

d’ethnographie, entrevues, et histoire <strong>de</strong> vie. Nous cherchons récupérer le procès <strong>de</strong><br />

constitution <strong>de</strong> l'association, et nous explorons sa structure organisationnelle en prouvant<br />

l'idée qui a une réorganisation personnelle qui est en relation avec le fonctionnement <strong>de</strong><br />

l'institution. Nous <strong>de</strong>dions à enquêter le processus <strong>de</strong> communication d'une i<strong>de</strong>ntité<br />

stigmate. Nous discutons le champ <strong>de</strong> la performance <strong>de</strong> APROSBA dans la construction<br />

d'une nouvelle image <strong>de</strong> la prostituée, en indiquant <strong>de</strong>s sujets et <strong>de</strong>s luttes qui marquent la<br />

position militants et non militants. Nous enquêtons le rôle <strong>de</strong> la mídia dans la construction<br />

<strong>de</strong> l'i<strong>de</strong>ntité militant et, <strong>de</strong> forme spécifique, son utilisation comme pratique institutionnelle.<br />

Enfin, à l'examen le militantisme comme à moitié <strong>de</strong> surpassement <strong>de</strong> la prostitution tant<br />

qu'il forme culturel engagée dans une significacion marginale, nous montrons comme les<br />

militants <strong>de</strong> APROSBA, dans l'appropriation et la production <strong>de</strong>s pratiques institutionnelles<br />

(qu'ils sont produits dans le processus d'interaction), ils ont produit une significacion<br />

positive dont c'est être prostituée même qu'à travers <strong>de</strong>s actions enceintes d'ambiguïtés.<br />

Mots-clé: prostitution, i<strong>de</strong>ntité, communication, pratiques institutionnelles.


LISTA DE FIGURAS<br />

Figura 1: Fol<strong>de</strong>r Seminário..................................................................................................27<br />

Figura 2: Fol<strong>de</strong>r do projeto”Beira <strong>de</strong> Estrada”..................................................................171<br />

Figura 3: Cartaz do projeto “Quando a noite cai”..............................................................172<br />

Figura 4: O uso da camisinha masculina e camisinha feminina.........................................173<br />

Figura 5: Fol<strong>de</strong>r institucional.............................................................................................174<br />

Figura 6: Marca da Aproba.................................................................................................175<br />

Figura 7: “Cartilha da cidadania”.......................................................................................176<br />

Figura 8: Maria Sem Vergonha...........................................................................................196<br />

Figura 9: Manual do multiplicador.....................................................................................196<br />

Figura 10: Clientes..............................................................................................................196<br />

Figura11: A<strong>de</strong>sivo...............................................................................................................197<br />

Figura 12: Ca<strong>de</strong>rneta...........................................................................................................197


LISTA DE GRÁFICOS<br />

Gráfico 1: Faixa Etária..........................................................................................................71<br />

Gráfico 2: Grau <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong>............................................................................................71<br />

Gráfico 3: Preferência da camisinha com cliente..................................................................72<br />

Gráfico 4: Preferência da camisinha com parceiro fixo........................................................73<br />

Gráfico 5: Quanto tempo faz programa................................................................................73<br />

Gráfico 6: Número <strong>de</strong> programas por semana......................................................................73<br />

Gráfico 7: Valor do programa...............................................................................................74<br />

Gráfico 8: Quem são os clientes............................................................................................74<br />

Gráfico 9: Preferência pelo cliente........................................................................................74<br />

Gráfico 10: Grau <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong>..........................................................................................75<br />

Gráfico 11: Preferência da camisinha com parceiro fixo......................................................76<br />

Gráfico 12: Quanto tempo faz programa..............................................................................77<br />

Gráfico 13: Número <strong>de</strong> programas por semana....................................................................77<br />

Gráfico 14: Valor do programa.............................................................................................77<br />

Gráfico 15: Quem são os clientes..........................................................................................78<br />

Gráfico 16: Preferência pelo cliente......................................................................................78


SUMÁRIO<br />

INTRODUÇÃO..................................................................................................................12<br />

CAPÍTULO 1. O MOVIMENTO DE PROSTITUTAS NO BRASIL E O<br />

SURGIMENTO E A VIDA ÍNTIMA DA ASSOCIAÇÃO DAS PROSTITUTAS DA<br />

BAHIA..................................................................................................................................18<br />

1.1 O movimento <strong>de</strong> prostitutas no Brasil.........................................................................21<br />

1.1.1Organizações <strong>de</strong> prostitutas: experiências que <strong>de</strong>ram certo..........................................26<br />

1.2 políticas, projetos, e práticas <strong>de</strong> prevenção da Aids <strong>para</strong><br />

prostituição..........................................................................................................................30<br />

1.3. O surgimento da Associação das Prostitutas da Bahia (APROSBA)......................36<br />

1.3.1 Uma nova fase..............................................................................................................41<br />

1.3.2 O funcionamento da instituição...................................................................................49<br />

1.3.3 os limites <strong>de</strong> pertencer a uma instituição.....................................................................55<br />

1.3.4 Ativida<strong>de</strong>s da instituição..............................................................................................60<br />

1.4. Caracterizando territórios on<strong>de</strong> a Aprosba atua......................................................65<br />

1.4.1. Uma breve consi<strong>de</strong>ração sobre o cliente.....................................................................80<br />

CAPÍTULO 2- A COMUNICAÇÃO DA IDENTIDADE DA PROSTITUTA<br />

MILITANTE DA ASSOCIAÇÃO DAS PROSTITUTAS DA BAHIA (APROSBA)<br />

NAS INTERAÇÕES FACE A FACE E NOS USOS DA MÍDIA...................................83<br />

2.1. Assumir a prática da prostituição..............................................................................83<br />

2.2. A comunicação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> marginal.............................................................89<br />

2.3. Sobre o encobrimento e o acobertamento..................................................................93<br />

2.4. A carreira da prostituta militante............................................................................100<br />

2.5. Alinhamentos exogrupais e intragrupais.................................................................103<br />

2.6. Das histórias tristes às histórias <strong>de</strong> triunfo..............................................................106


2.6.1. A história <strong>de</strong> Marilene...............................................................................................107<br />

2.6.2. A história <strong>de</strong> Fátima..................................................................................................116<br />

2.7. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e reflexivida<strong>de</strong>.........................................................................................123<br />

CAPÍTULO 3- MILITANTES E NÃO MILITANTES: APROXIMAÇÕES E<br />

DISTANCIAMENTOS.....................................................................................................126<br />

3.1.Vitimização..................................................................................................................126<br />

3.2.Violência.......................................................................................................................130<br />

3.3. Regulamentação da prostituição...............................................................................133<br />

3.4. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e linguagem..............................................................................................139<br />

3.5. Sobre o saber formal..................................................................................................143<br />

3.6. Sobre a aparência.......................................................................................................145<br />

3.6.1. Prostituição e beleza..................................................................................................149<br />

CAPÍTULO 4 - OS USOS DA MÍDIA COMO PRÁTICA INSTITUCIONAL.........153<br />

4.1. Aprosba na mídia.......................................................................................................155<br />

4.2. Mídia e construção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.............................................................................163<br />

4.2.1 A proposta <strong>de</strong> uma nova comunicação.......................................................................161<br />

4.2.2. As políticas <strong>de</strong> comunicação <strong>para</strong> prevenção da Aids..............................................165<br />

4.3. O papel ds materiais informativos produzidos pela Aprosba na construção da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da prostituta militante...................................................................................168<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS - IDENTIDADE AMBÍGUA: REFAZENDO O<br />

PERCURSO.......................................................................................................................182<br />

REFERÊNCIAS................................................................................................................188<br />

ANEXO..............................................................................................................................196


INTRODUÇÃO<br />

Uma mulher da vida era, ela própria, um anúncio luminoso<br />

aceso na noite ou a competir com o sol <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu nascer até o<br />

domínio do meio dia.<br />

Gey Espinheira, Ruínas, cinzas, recordações<br />

Nos vinculamos ao fenômeno da prostituição através da nossa participação, <strong>de</strong> 1995<br />

a 1996, na coor<strong>de</strong>nação do projeto <strong>de</strong> prevenção às DSTs/Aids voltado <strong>para</strong> mulheres que<br />

exercem a prática da prostituição em Salvador, Bahia, <strong>de</strong>senvolvido pelo Grupo <strong>de</strong> Apoio à<br />

Prevenção da Aids da Bahia (GAPA/BA). Permanecemos ainda, em 1996 e 1997, ligados à<br />

questão, quando prestamos assessoria ao projeto <strong>de</strong> prevenção da Aids entre mulheres<br />

prostitutas da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salvador, <strong>de</strong>senvolvido pelo Centro Bahiano Anti-Aids (CBAA),<br />

período em que foi constituída a Associação das Prostitutas da Bahia. Em 2000 nos<br />

aproximamos novamente do fenômeno da prostituição através <strong>de</strong>sta associação, que nos<br />

pediu auxílio na elaboração <strong>de</strong> projetos <strong>para</strong> concorrência no Ministério da Saú<strong>de</strong>.<br />

Paralelo aos projetos cursávamos naquele período, entre 1996 e 1999, o mestrado<br />

em Comunicação e Cultura Contemporâneas, do programa da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da<br />

Bahia investigando as campanhas <strong>de</strong> prevenção da Aids veiculadas pela televisão brasileira.<br />

Em 2002, <strong>para</strong> o curso do doutorado, tomamos a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> investigar a prostituição, agora<br />

numa perspectiva acadêmica, e ao mesmo tempo dar continuida<strong>de</strong> ao estudo da<br />

comunicação sobre Aids no formato das campanhas, realizado no mestrado. Assim sendo<br />

<strong>de</strong>finimos como objeto <strong>de</strong> investigação as representações sociais sobre o contágio e a<br />

prevenção do vírus HIV. Pretendíamos <strong>de</strong>senvolver este estudo em três diferentes<br />

universos: grupos <strong>de</strong> prostitutas, campanhas governamentais <strong>de</strong> prevenção da Aids<br />

veiculadas pela televisão, e os materiais <strong>de</strong> informação <strong>para</strong> a prevenção da Aids<br />

específicos <strong>para</strong> grupos prostituição. O objetivo era <strong>de</strong>senvolver uma análise com<strong>para</strong>tiva<br />

das representações sobre o tema nesses três universos, buscando verificar a sintonia entre as<br />

representações veiculadas nas campanhas e materiais informativos específicos,<br />

com<strong>para</strong>ndo-as com as representações nos grupos <strong>de</strong> prostitutas.


No encaminhamento do curso fomos nos distanciando do interesse pelo estudo das<br />

representações (o conceito fundamental era a representação social na perspectiva da<br />

psicologia social) como conceito central <strong>de</strong> nosso trabalho; e das campanhas <strong>de</strong> prevenção<br />

como universo <strong>de</strong> investigação, ao mesmo tempo em que as questões relacionadas à Aids<br />

iam se pulverizando e <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ser conformadoras do objeto <strong>de</strong> estudo. Como<br />

mantivemos contato com a Associação das Prostitutas da Bahia (Aprosba) neste período,<br />

re<strong>de</strong>finimos então como universo <strong>de</strong> investigação os materiais informativos produzidos pela<br />

instituição. Ou seja, resolvemos nos <strong>de</strong>dicar ao estudo do papel dos materiais informativos<br />

produzidos pela Associação das Prostitutas da Bahia <strong>para</strong> a promoção da saú<strong>de</strong>.<br />

Pretendíamos realizar tal investigação com base nos significados a eles atribuídos pelos<br />

agentes envolvidos na sua produção e recepção.<br />

Com o <strong>de</strong>senvolvimento do nosso trabalho <strong>de</strong> campo veio à tona um tema muito<br />

presente nas observações e nos relatos das mulheres membros da Aprosba: a questão da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. O se assumir prostituta fazia parte do discurso cotidiano das prostituas com as<br />

quais estávamos tendo contato, já que elas i<strong>de</strong>ntificavam tal questão como um problema<br />

central e um <strong>de</strong>safio <strong>para</strong> a formação da militância na prostituição. Como ser uma prostituta<br />

militante sem se assumir prostituta? Como assumir uma prática tão estigmatizada,<br />

principalmente perante a família? Íamos percebendo como as práticas associadas à<br />

militância, especificamente aquelas relacionadas à Aprosba, iam criando condições, apesar<br />

<strong>de</strong> pontuadas por conflitos, <strong>para</strong> que mulheres envolvidas com as práticas cotidianas da<br />

associação fossem assumindo o ser prostituta, mesmo que tal assunção, como mostraremos<br />

no nosso trabalho, estivesse envolta em ambivalências. Nossa pesquisa, então, foi tomando<br />

um outro rumo e nos percebemos discutindo o processo <strong>de</strong> construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da<br />

prostituta militante. Como a questão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> foi sendo cada vez mais recorrente, nos<br />

convocando, re<strong>de</strong>finimos mais uma vez o objeto <strong>de</strong> pesquisa, que passou a ser o papel das<br />

práticas institucionais na construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> militante das prostitutas da<br />

Associação <strong>de</strong> Prostitutas da Bahia (Aprosba), <strong>de</strong>finindo como universo <strong>de</strong> investigação<br />

esta associação. Finalmente <strong>de</strong>limitado nosso objeto e universo <strong>de</strong> investigação,<br />

consi<strong>de</strong>ramos como pressuposto que as práticas institucionais que conformam a Aprosba<br />

são práticas transformadora <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, e que o processo comunicacional, seja<br />

interpessoal ou mediado pelas tecnologias <strong>de</strong> comunicação, é um elementos central <strong>de</strong> tais


práticas. Definimos como objetivo compreen<strong>de</strong>r o processo <strong>de</strong> construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da<br />

prostituta militante da Aprosba, e como as práticas da instituição, que colocam em<br />

funcionamento procedimentos, regras, normas, e comunicações, participam <strong>de</strong>sta<br />

construção.<br />

A natureza do nosso objeto <strong>de</strong> pesquisa evoca uma exploração mútua da<br />

comunicação e da sociologia, pois como lembra Yves Winkin, em sua obra A nova<br />

comunicação: da teoria ao trabalho <strong>de</strong> campo, como pensar o mundo sem seus suportes<br />

comunicacionais? Sem os suportes comunicacionais como as linguagens, a escrita, a<br />

eletrônica, a informática “[...] (todos singulares e, ao mesmo tempo, complementares) não<br />

teríamos as condições mínimas <strong>para</strong> po<strong>de</strong>r pensar o mundo, “representá-lo”, e “<strong>de</strong>screvê-<br />

lo” e, até, po<strong>de</strong>r esperar ainda nele viver (WINKIN, 1998, p.9). Portanto, o que se <strong>de</strong>seja<br />

<strong>aqui</strong> é realizar uma “leitura comunicacional do mundo social”. Isso implica “[...] investigar<br />

etnograficamente os comportamentos, as situações, os objetos que, numa comunida<strong>de</strong> dada,<br />

são percebidos como portadores <strong>de</strong> um valor comunicativo”( WINKIN, 1998, P.13).<br />

Nosso método <strong>de</strong> pesquisa se configurou com a técnica da observação participante<br />

<strong>para</strong> a coleta <strong>de</strong> dados, com a produção <strong>de</strong> relato etnográfico que “[...] constitui-se <strong>de</strong><br />

relatos <strong>de</strong>talhados do que acontece no dia-a-dia das vidas dos sujeitos e é <strong>de</strong>rivado das<br />

notas <strong>de</strong> campo tomadas pelo pesquisador” (MOREIRA, 2002, P.52). Em relação à<br />

observação participante, nos inserimos na tipologia <strong>de</strong> Gold (GOLD apud MOREIRA,<br />

2002), na categoria <strong>de</strong> “participante como observador”. Neste papel, o pesquisador tem o<br />

consentimento prévio dos sujeitos <strong>para</strong> empreen<strong>de</strong>r o estudo e observá-lo em seus<br />

ambientes. Assim que a confiança é estabelecida, o pesquisador é aceito como membro do<br />

grupo e sua tarefa vai ser ganhar mais e mais familiarida<strong>de</strong> com ele, conhecer suas<br />

perspectivas e apreen<strong>de</strong>r mais e mais os sentidos e símbolos que o grupo <strong>de</strong>fine como<br />

importante e real. Também como técnica <strong>de</strong> coleta <strong>de</strong> dados utilizamos a entrevista semi-<br />

estruturada. Foram entrevistados os membros da Aprosba e li<strong>de</strong>ranças do Movimento<br />

Nacional <strong>de</strong> Prostitutas num total <strong>de</strong> onze entrevistas. Ainda utilizamos o método <strong>de</strong><br />

história <strong>de</strong> vida tópica 1 <strong>para</strong> acesso às experiências subjetivas <strong>de</strong> duas li<strong>de</strong>ranças da<br />

Aprosba. As prostitutas membros da Aprosba que partici<strong>para</strong>m <strong>de</strong>ste estudo tiveram seus<br />

1 De acordo com Moreira (2002, p. 55) [...] a história <strong>de</strong> vida tópica oferece um quadro mais segmentado da<br />

vida do sujeito. Representa um pedaço <strong>de</strong> sua vida. Material autobiográfico costuma ser a fonte primária <strong>de</strong><br />

dados”.


nomes revelados mediante autorização. Em relação às prostitutas que não são membros da<br />

Aprosba, as quais nos referimos na pesquisa, tiveram seus nomes preservados.<br />

Assumimos o papel <strong>de</strong> pesquisadora junto à instituição por um período <strong>de</strong> dois anos.<br />

Durante este período participamos das ativida<strong>de</strong>s do grupo; estabelecemos contato com<br />

locais <strong>de</strong> prostituição on<strong>de</strong> a Aprosba atua; participamos <strong>de</strong> encontros, e seminários<br />

organizados pela instituição; e fizemos contato com membros da instituição fora dos locais<br />

<strong>de</strong> trabalho. Todos os registros foram reunidos <strong>para</strong> montar um quadro que se aproxime não<br />

só da realida<strong>de</strong> observada, mas também da forma como as prostitutas se auto-imaginam e<br />

percebem sua realida<strong>de</strong>. Em função <strong>de</strong> tal consi<strong>de</strong>ração foram eleitas como ponto<br />

prioritário, no processo <strong>de</strong> análise, as <strong>de</strong>scrições feitas sobre elas mesmas e sobre seu<br />

grupo. Buscamos compreen<strong>de</strong>r como elas se auto-i<strong>de</strong>ntificam não só através <strong>de</strong> suas falas<br />

nas entrevistas, mas também através <strong>de</strong> outros comportamentos, atitu<strong>de</strong>s e valores<br />

manifestados ao longo dos contatos. A cada análise, tenta-se unir a autocategorização das<br />

mulheres e a percepção da observadora participante, consi<strong>de</strong>rando-se sempre as situações<br />

sociais nas quais os discursos são tecidos. O con<strong>texto</strong> <strong>de</strong> informalida<strong>de</strong> que vivenciamos ao<br />

longo do trabalho <strong>de</strong> campo foi o que mais revelou os sujeitos da pesquisa. Já que os dados<br />

mais expressivos sobre a vida do grupo em estudo foram coletados nessas situações.<br />

O presente trabalho é composto <strong>de</strong> quatro capítulos. O primeiro capítulo tem como<br />

título Associação das Prostitutas da Bahia: o surgimento e a vida íntima <strong>de</strong> uma<br />

instituição. Em um primeiro momento fazemos uma breve referência à história do<br />

movimento <strong>de</strong> prostitutas no Brasil e ao papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque <strong>de</strong> Gabriela Leite como sua<br />

ativista. Em um segundo momento tratamos das políticas <strong>de</strong> prevenção da Aids e dos<br />

projetos <strong>de</strong> prevenção da Aids <strong>para</strong> a prostituição, quando apresentamos um breve<br />

panorama das políticas <strong>de</strong> prevenção da Aids centrando a atenção nos projetos das<br />

organizações não governamentais voltados <strong>para</strong> a prevenção da Aids 2 entre mulheres<br />

prostitutas. Em um terceiro momento buscamos recuperar o processo <strong>de</strong> constituição da<br />

Aprosba, e exploramos sua estrutura organizacional evi<strong>de</strong>nciando a idéia <strong>de</strong> que existe uma<br />

reorganização pessoal que se dá com base no funcionamento da instituição, e tentamos<br />

apreen<strong>de</strong>r os elementos organizacionais relacionados à transformação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Nesse<br />

2 Atualmente a Organização da Socieda<strong>de</strong> Civil (OSC) é a <strong>de</strong>nominação dada as parcerias do Ministério da<br />

Saú<strong>de</strong> no combate a Aids. A OSC representa a socieda<strong>de</strong> civil no processo <strong>de</strong> análise e discussão <strong>de</strong> políticas<br />

públicas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> em DST/HIV/AIDS


percurso <strong>de</strong>limitamos os sujeitos da pesquisa, que são as prostitutas militantes. Em seguida<br />

abordamos as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvidas pela instituição, e caracterizamos os locais <strong>de</strong><br />

prostituição on<strong>de</strong> a Aprosba atua e on<strong>de</strong> se encontram as mulheres que vamos <strong>de</strong>nominar<br />

<strong>de</strong> não militantes, que são as prostitutas a quem são dirigidas as ações da Aprosba.<br />

O segundo capítulo intitula-se A comunicação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da prostituta militante<br />

da Associação das Prostitutas da Bahia (Aprosba) nas interações face a face e nos usos da<br />

mídia. Nele nos <strong>de</strong>dicamos a apreen<strong>de</strong>r como as mulheres membros da Associação das<br />

Prostitutas da Bahia, através das práticas institucionais, principalmente as <strong>de</strong> comunicação,<br />

buscam evi<strong>de</strong>nciar uma certa singularida<strong>de</strong> e a positivida<strong>de</strong> do fenômeno da prostituição<br />

em tensão com sua significação marginal. O grupo focalizado <strong>de</strong> maneira predominante<br />

neste capítulo é o formado por prostitutas membros da instituição, a que chamamos <strong>de</strong><br />

militantes. Também fazemos referência ao grupo formado por prostitutas que participam<br />

como receptoras das ações da instituição, quando tal referência se mostra esclarecedora<br />

<strong>para</strong> as questões abordadas. Neste capítulo ainda apresentamos os percursos <strong>de</strong> Marilene <strong>de</strong><br />

Jesus Silva e Maria <strong>de</strong> Fátima Me<strong>de</strong>iros, duas li<strong>de</strong>ranças do movimento <strong>de</strong> prostitutas da<br />

Bahia, tais quais narrados por elas, e tecemos algumas consi<strong>de</strong>rações sobre as trajetórias <strong>de</strong><br />

vida <strong>de</strong>stas duas li<strong>de</strong>ranças, tendo como base a noção <strong>de</strong> reflexivida<strong>de</strong>, e a idéia <strong>de</strong> projeto<br />

reflexivo do eu.<br />

No terceiro capítulo que tem como título Militantes e não militantes: aproximações<br />

e distanciamentos, discutimos o campo <strong>de</strong> atuação da Aprosba na construção <strong>de</strong> uma nova<br />

imagem <strong>de</strong> prostituta, evi<strong>de</strong>nciando temas e lutas que marcam a posição <strong>de</strong> militantes e não<br />

militantes. Vitimização, violência, regulamentação da prostituição, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e linguagem,<br />

saber formal, e a cultura da beleza são temas <strong>de</strong>batidos no capítulo.<br />

No quarto capítulo, Os usos da mídia como prática institucional, investigamos o papel<br />

da mídia na construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> militante e, <strong>de</strong> foram específica, o seu uso como<br />

prática institucional. Apresentamos o processo <strong>de</strong> inserção da instituição na mídia. Em<br />

seguida abordamos como a relação entre mídia e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é pensada no campo das teorias<br />

da comunicação, e situamos nossa investigação em relação aos estudos dos processos<br />

comunicacionais vigentes. A partir daí nos propomos a uma breve análise dos matérias<br />

informativos produzidos pela Aprosba, produção que se constitui como parte da prática


institucional da instituição, <strong>de</strong>stacando a relação <strong>de</strong>ssa mídia e a construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

da prostituta militante.


CAPÍTULO 1<br />

O MOVIMENTO DE PROSTITUTAS NO BRASIL E O SURGIMENTO<br />

E A VIDA ÍNTIMA DA ASSOCIAÇÃO DAS PROSTITUTAS DA<br />

BAHIA (APROSBA)<br />

Nana ( prostituta )- Qual é a rotina?O<br />

Raoul ( Cafetão)- A prostituta explora o charme <strong>de</strong>la <strong>para</strong><br />

construir uma boa clientela e estabelece suas condições <strong>de</strong><br />

lucro.<br />

Nana (Prostituta)-O que <strong>de</strong>vo fazer?<br />

Raoul (cafetão)- Em qualquer lugar o procedimento é o<br />

mesmo. Pelo jeito <strong>de</strong> se vestir, as atitu<strong>de</strong>s e m<strong>aqui</strong>agem a<br />

prostituta indica o seu nível<br />

Trecho do filme Viver a vida <strong>de</strong> Jean-Luc Godard, 1962<br />

Os processos <strong>de</strong> formação e ressignificação continuadas, os quais dão acesso aos<br />

múltiplos significados dos fenômenos, historicamente construídos, remetem ao tema da<br />

prostituição que se faz presente no nosso cotidiano prenhe <strong>de</strong> uma significação marginal.<br />

Berger e Luckman (1985) nos encaminham no sentido <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r como a realida<strong>de</strong> é<br />

socialmente construída e significados subjetivos se tornam fatos objetivos. Observam que o<br />

conhecimento que as pessoas têm da realida<strong>de</strong> envolve uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> tipificações, e nas<br />

interações face a face, que constituem a base da vida cotidiana, o outro é apreendido a partir<br />

<strong>de</strong> esquemas tipificadores. Tais esquemas tornam-se habituais com o <strong>de</strong>correr das gerações<br />

e, como hábitos, adquirem autonomia e institucionalizam-se. Esta institucionalização gera<br />

uma objetivida<strong>de</strong> percebida que é instituída e internalizada por meio <strong>de</strong> processo <strong>de</strong><br />

socialização. No entanto, apesar <strong>de</strong> a socialização ser um instrumento <strong>de</strong> conservação, os<br />

processos <strong>de</strong> ressocialização e as rupturas <strong>de</strong>correntes do enfretamento do não familiar<br />

possibilitam a ressignificação e a transformação social.<br />

A prostituição, como todo fenômeno social, tem seu percurso marcado por<br />

processos <strong>de</strong> ressignificação e transformação. Mas qual a significação dominante que<br />

partilhamos da prostituição? Como dissemos anteriormente, a prostituição carrega uma<br />

significação marginal, e como parte <strong>de</strong> um grupo social marginal as prostitutas são


afastadas econômica da categoria <strong>de</strong> trabalhadoras, e i<strong>de</strong>ntificadas como <strong>de</strong>sviantes do<br />

papel sexual socialmente aceito. Margaret Rago (1991) i<strong>de</strong>ntifica muito bem como a<br />

prostituição predominantemente é focalizada sendo tanto uma resposta à situação <strong>de</strong><br />

miséria econômica quanto transgressão a uma or<strong>de</strong>m moral acentuadamente rígida e<br />

castradora. Seu papel é consi<strong>de</strong>rado o <strong>de</strong> dar vazão aos impulsos libidinais represados no<br />

interior da família nuclear em troca, claro, <strong>de</strong> um preço <strong>de</strong> mercado que lhe imputa uma<br />

marca marginal in<strong>de</strong>lével. Bourdieu (2004) esclarece tal sentido ao tratar da oposição entre<br />

economia doméstica e economia mercantil, opondo a lógica das trocas sexuais domésticas,<br />

que não têm preço, à lógica das relações sexuais mercantis, que têm um preço <strong>de</strong> mercado<br />

explícito e são sancionadas pelas trocas monetárias. As mulheres domésticas, não têm<br />

utilida<strong>de</strong> material e nem preço, são excluídas da circulação mercantil e constituem-se como<br />

objetos <strong>de</strong> sentimento. Em oposição, as prostitutas, que têm preço <strong>de</strong> mercado explícito<br />

fundado na moeda e no cálculo, não são nem objeto nem sujeitos <strong>de</strong> sentimento, e ven<strong>de</strong>m<br />

seu corpo como objeto.<br />

Simmel (1993, p. 5) fala da ina<strong>de</strong>quação da relação <strong>de</strong> uma valor pessoal com a<br />

impessoalida<strong>de</strong> do dinheiro: “Porque assim que o dinheiro se torna a medida <strong>de</strong> todas as<br />

outras coisas [...] ele mostra uma ausência <strong>de</strong> cor e <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> que, em certo sentido,<br />

<strong>de</strong>svaloriza tudo <strong>aqui</strong>lo <strong>de</strong> que é o equivalente”. Sendo assim “[...] a coisa mais impessoal”,<br />

no caso o dinheiro “[...] é <strong>de</strong> todo ina<strong>de</strong>quado a servir <strong>de</strong> meio <strong>de</strong> troca contra um valor tão<br />

pessoal quanto a entrega <strong>de</strong> uma mulher”.<br />

Ainda numa tentativa <strong>de</strong> acessar a lógica que rege a prática da prostituição po<strong>de</strong>mos<br />

fazer referência a Gey Espinheira (1984), que nos mostra como a socieda<strong>de</strong>, ao estabelecer<br />

um tipo i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> conduta sexual legitimada representado pelo casamento, opõe a esta<br />

conduta, numa espécie <strong>de</strong> gradação, as relações extra-conjugais, ficando neste extremo a<br />

prostituição “[...] on<strong>de</strong> se verifica compra do <strong>de</strong>sempenho da pessoa na prestação <strong>de</strong><br />

serviços sexuais” (ESPINHEIRA, 1984, p. 37). No entanto, <strong>para</strong> o autor, esta prática sexual<br />

mercantilizada não <strong>de</strong>ve ser associada a uma prática ilegítima, e nem se constitui em uma<br />

conduta sexual imoral. As prostitutas têm visão <strong>de</strong> trabalho; possuem sistema <strong>de</strong> avaliação,<br />

classificação e racionalização que são próprios <strong>de</strong> sua experiência; organizam-se e


organizam a sua ativida<strong>de</strong>; trabalham com regras informais que são compartilhadas 3 .<br />

Gláucia Russo chama atenção <strong>para</strong> o fato <strong>de</strong> que existe um outro mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> afetivida<strong>de</strong> que<br />

é possível <strong>de</strong> ser construído nas relações on<strong>de</strong> o dinheiro faz a mediação: “Na prostituição,<br />

homens e mulheres são cúmplices uns dos outros. O silêncio marca a relação e preserva a<br />

individualida<strong>de</strong>. A confiança é o elemento fundamental. É preciso acreditar, jogar o jogo,<br />

construir uma cumplicida<strong>de</strong> recíproca, mesmo que momentânea” (RUSSO, 2006, p. 228).<br />

Os fatos históricos registram como os procedimentos higienistas no Brasil, no início<br />

do século XX 4 , responsabilizaram a prostituta pela disseminação <strong>de</strong> doenças adquiridas<br />

pelo ato sexual. Neste sentido, as prostitutas “[...] foram categorizadas como responsáveis<br />

pela <strong>de</strong>gradação física e moral dos homens e, por extensão, pela <strong>de</strong>struição das crianças e<br />

famílias. A<strong>de</strong>mais, elas pervertem, com o exemplo <strong>de</strong>sregrado <strong>de</strong> suas vidas públicas e do<br />

exercício <strong>de</strong> sua sexualida<strong>de</strong>, a moral da mulher-mãe, cuidadora, restrita à vida privada do<br />

lar” (GUIMARÃES & MERCHÁN-HAMANN, 2005, p. 05). Na confluência dos discursos<br />

médico, religioso e policial se cristalizam, portanto, as representações sobre a mulher<br />

prostituta que lhe atribuem significações marginais. Tais representações são compartilhadas<br />

pelo mundo da vida cotidiana 5 , e pela própria prostituta, nele inserida, já que essas<br />

representações ou interpretações inci<strong>de</strong>m na percepção que ela <strong>de</strong>senvolve sobre si mesma,<br />

no final ela é incluída e se inclui na categoria dos estigmatizados.<br />

Rago (1991) ressalta que muito pouco se diz sobre a especificida<strong>de</strong> da prática da<br />

prostituição ou <strong>de</strong> sua dimensão positiva, isto é, sobre as funções que <strong>de</strong>sempenha como<br />

modo diferenciado <strong>de</strong> funcionamento subjetivo, permitindo aflorar outras formas <strong>de</strong><br />

expressão do <strong>de</strong>sejo. Além disso, abstrai-se o erótico <strong>de</strong>sse microcosmo. Assim, se nos<br />

3 “A prostituição é uma das ocupações econômicas que se situam na parte mais baixa <strong>de</strong>ssa hierarquia <strong>de</strong><br />

valores com referência às ativida<strong>de</strong>s, ocupações econômicas e estrato social, embora seja uma profissão das<br />

mais rendosas entre aquelas que dispensam uma formação sistemática <strong>para</strong> serem exercidas<br />

(ESPINHEIRA,1996 P.47).<br />

4 “No passado, tanto no Brasil quanto em outros países, no plano do cuidado com a saú<strong>de</strong> dos homens, o<br />

advento das doenças venéreas, principalmente a sífilis, <strong>para</strong> a qual não havia medicação curativa eficaz,<br />

trouxe a necessida<strong>de</strong> da implementação <strong>de</strong> uma intervenção profilática em que foi focalizada, nesse sentido, a<br />

prostituição. Esse fato fomentou o <strong>de</strong>bate entre partidários do neo-regulamentarismo e os do abolicionismo<br />

(liberal ou proibicionista) e, ao mesmo tempo, norteou a política sanitária implementada então no Brasil <strong>para</strong><br />

o combate à prostituição. Deste modo, as doenças venéreas justificaram a repressão, tendo como base<br />

discursiva a medicina higienista que fundamentava seus pressupostos na busca do bem-estar da população”<br />

(GUIMARÃES & MERCHÁN-HAMANN, 2005, p. 3).<br />

5 “[...] toda interpretação <strong>de</strong>sse mundo se baseia num estoque <strong>de</strong> experiências anteriores <strong>de</strong>le, as nossas<br />

próprias experiências e aquelas que nos são transmitidas por nossos pais e professores, as quais na forma <strong>de</strong><br />

‘conhecimento á mão’, funcionam como um código <strong>de</strong> referência” (SCHUTZ, 1979 P.75).


distanciamos <strong>de</strong> um sentido marginal <strong>de</strong> tal prática po<strong>de</strong>mos perceber outras concepções<br />

que emergem: ocupação econômica legítima; locus <strong>de</strong> libertação da relação sexual —<br />

através da sua mercantilização, tão <strong>de</strong>sprezada — e dos condicionamentos impostos pela<br />

família e religião; locus <strong>de</strong> circulação dos fluxos <strong>de</strong>sejantes e <strong>de</strong> manifestação <strong>de</strong> outras<br />

formas <strong>de</strong> expressão do <strong>de</strong>sejo.<br />

Se evi<strong>de</strong>ncia atualmente, nas abordagens sobre a prática da prostituição, uma<br />

perspectiva que evoca um “[...] entendimento da cena da prostituição não mais como o mal<br />

necessário ou mesmo das especulações em relação a sua causalida<strong>de</strong>, mas sim como um<br />

espaço on<strong>de</strong> se estabelecem diferentes códigos <strong>de</strong> vivência e convivência, bem como <strong>de</strong><br />

emoções e afetivida<strong>de</strong>s”(GUIMARÃES & MERCHÁN-HAMANN, 2005, p. 08). Vão se<br />

impondo interpretações sobre o erotismo presente na prostituição, bem como sua<br />

legitimida<strong>de</strong> e profissionalização. Tal sentido, que vai envolvendo aos poucos a prática da<br />

prostituição, é reivindicado por um movimento <strong>de</strong> prostitutas que surge no Brasil, na<br />

década <strong>de</strong> 80 do século XX, e que começa a marcar presença ao buscar instaurar uma outra<br />

or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> significação do ser prostituta.<br />

1.1 O movimento <strong>de</strong> prostitutas no Brasil<br />

No dia dois <strong>de</strong> junho comemora-se o dia Internacional das Prostitutas instituído em<br />

1975 6 , quando “150 prostitutas francesas ocu<strong>para</strong>m uma igreja na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lyon em<br />

protesto contra preconceito e discriminação, repressão policial, prisões ilegais, multas<br />

arbitrárias, exploração sexual e até mesmo assassinatos <strong>de</strong> colegas, que eram<br />

negligenciados pelos órgãos públicos responsáveis pela garantia <strong>de</strong> direitos e promoção da<br />

justiça” 7 . No Brasil, o ano <strong>de</strong> 1979 constitui o marco inicial da visibilida<strong>de</strong> do processo <strong>de</strong><br />

organização das mulheres que têm como ativida<strong>de</strong> a prostituição e que passam a se<br />

6 Nesse mesmo ano foi criada a Associação <strong>de</strong> Prostitutas Francesas “[...] estimulando a organização do<br />

movimento <strong>de</strong> prostitutas inaugurado dois anos antes pelo Coyote, em São Francisco, pela primeira prostituta<br />

contemporânea a assumir a sua profissão publicamente: Margo St. James. A partir daí, a luta pelo respeito às<br />

mulheres da vida ganhou força, ampliando a organização da categoria em diversos países” Dia internacional<br />

da prostituta. Disponível em: . Acesso em 07/ 05/2006.<br />

7 Dia internacional da prostituta. Disponível em: . Acesso em 07/<br />

05/2006.


<strong>de</strong>nominar profissionais do sexo. São Paulo é o cenário e Gabriela Leite apresenta-se como<br />

li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong>ste movimento que começa fortalecer a categoria ao reivindicar seus direitos. A<br />

ex-aluna da USP, que se embrenhou no mundo da prostituição e no exercício <strong>de</strong> ser<br />

prostituta em São Paulo, começa a <strong>de</strong>nunciar atos <strong>de</strong> violência policial contra prostitutas e<br />

se <strong>de</strong>staca como li<strong>de</strong>rança em uma passeata contra agressões policiais, dando início à sua<br />

participação política. Na ocasião travestis e homossexuais resolvem se unir à manifestação<br />

<strong>para</strong> sensibilizar a opinião pública e reivindicar das autorida<strong>de</strong>s governamentais medidas<br />

contra as práticas violentas.<br />

Minha militância começou na prática não partidária. Milhares <strong>de</strong> prostitutas<br />

e travestis fechando o centro <strong>de</strong> São Paulo em pleno dia. Foi em 1979, na<br />

briga contra o <strong>de</strong>legado Richetti, que estava pren<strong>de</strong>ndo e torturando o<br />

pessoal das Bocas. A organização da passeata começou com os travestis,<br />

que buscaram a<strong>de</strong>sões Junto a nós. Eu e uma colega resolvemos percorrer<br />

todos os prédios e ruas da Boca do Lixo. Tudo foi feito num trabalho <strong>de</strong><br />

boca a boca, que resultou num baita movimento”(LEITE, 1992, P.85).<br />

A partir <strong>de</strong>ste momento, questões vinculadas ao exercício da prostituição<br />

começaram a mobilizar cada vez mais mulheres, e vai se instaurando uma outra concepção<br />

sobre o lugar da prostituta na socieda<strong>de</strong>, ou seja, com Gabriela Leite se i<strong>de</strong>ntifica um marco<br />

a partir do qual outros discursos e práticas políticas entre prostitutas e sobre a prostituta<br />

começam a circular no Brasil. Em 1986 ela e Lour<strong>de</strong>s Barreto, uma outra reconhecida<br />

li<strong>de</strong>rança do movimento <strong>de</strong> prostitutas no Brasil (que vai fundar, em 1990, o Grupo <strong>de</strong><br />

Mulheres Prostitutas da Área Central (GEMPAC) do Pará) se conhecem e discutem, assim,<br />

a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se organizar um evento em âmbito nacional. Este ocorre em “[...] julho<br />

<strong>de</strong> 1987, quando cerca <strong>de</strong> cinqüenta mulheres <strong>de</strong> diversas cida<strong>de</strong>s reúnem-se no Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro <strong>para</strong> a realização do I Encontro Nacional <strong>de</strong> Prostitutas, promovido pelo <strong>Programa</strong><br />

‘Prostituição e Direitos Civis’, funcionando no ISER 8 e coor<strong>de</strong>nado por Gabriela<br />

Leite”(MORAES, 1996, P.201). Neste encontro, <strong>de</strong> acordo com Moraes (1999), foram<br />

recorrentes as discussões sobre violência policial, o reconhecimento da profissão e a<br />

assunção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prostituta. O evento ganhou na época uma ampla expressão<br />

social e visibilida<strong>de</strong>, já que a mídia lastreou o acontecimento provocando <strong>de</strong>bates,<br />

polêmicas a<strong>de</strong>sões e con<strong>de</strong>nações:<br />

8 Instituto <strong>de</strong> Estudos da Religião


Era um momento histórico <strong>para</strong> nós, prostitutas, que há tanto tempo<br />

sonhávamos com esse encontro. Para torná-lo possível, batalhei como pu<strong>de</strong>,<br />

conseguindo apoio <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s como a inglesa OXFAN, através do seu<br />

escritório em Recife, que pagou a passagem das mulheres. A fundação<br />

Calouste Gulbenkian ce<strong>de</strong>u suas <strong>de</strong>pendências <strong>para</strong> o encontro, e o<br />

encerramento seria no circo voador — uma lona armada em pleno bairro<br />

histórico da Lapa, palco <strong>de</strong> shows antológicos [...] No primeiro dia do<br />

encontro, era tanto fotógrafo, tanto repórter, tanto jornalista, tanto gravador<br />

na minha frente, quando cheguei ao Calouste <strong>para</strong> a concretização do meu<br />

sonho <strong>de</strong> tanto tempo, que eu fiquei abobalhada, meia tonta <strong>de</strong> emoção, e<br />

passei isso pra imprensa (LEITE, 1992, p.128-129).<br />

Em 1988 é legalmente instituída a primeira associação das profissionais do sexo, a<br />

Associação da Vila Mimosa. Em 1989 acontece o segundo encontro, que introduziu a<br />

discussão sobre prevenção do HIV, o vírus da Aids. Colocar a Aids na pauta <strong>de</strong> discussão<br />

indica o modo como a constituição das associações das profissionais do sexo esteve ligada<br />

aos problemas oriundos do surgimento da Aids e às discussões sobre as formas <strong>de</strong> contágio<br />

do vírus HIV. A inclusão <strong>de</strong>sta discussão inseriu a categoria “[...] no processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sconstrução do recru<strong>de</strong>scimento das respostas sociais <strong>de</strong> discriminação e <strong>de</strong> preconceito<br />

dirigidas às população específicas que compunham o rol dos ‘grupos <strong>de</strong> risco’”<br />

(GUIMARÃES & MERCHÁN-HAMANN, 2005, p. 03). Neste momento também foi<br />

formalizada a criação da “Re<strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong> Profissionais do Sexo” 9 (Brasil, 2000),<br />

congregando as associações da classe <strong>de</strong> todo o país. Gabriela Silva Leite, gran<strong>de</strong> ativista<br />

referência inconteste do movimento associativo das prostitutas, comenta o surgimento da<br />

re<strong>de</strong>:<br />

Em 89 a gente fez um encontro no Rio <strong>de</strong> Janeiro, um nacional, só pra<br />

discutir saú<strong>de</strong> e já pra discutir essas questões que estamos discutindo agora.<br />

Essas histórias <strong>de</strong> quererem testar as prostitutas e tal. E aí a gente sentiu<br />

que, como a história da saú<strong>de</strong> com a questão da Aids tava ficando muito<br />

forte e outra vez a gente sendo culpada <strong>de</strong> transmitir doenças e tudo o mais,<br />

a gente resolveu se juntar mais e começar uma re<strong>de</strong>. Então a re<strong>de</strong><br />

9 Os objetivos da re<strong>de</strong> são assim apresentados: “Os principais objetivos norteadores das ações da re<strong>de</strong><br />

incluem a mobilização das profissionais do sexo <strong>para</strong> a reforma <strong>de</strong> leis referentes ao exercício da profissão, a<br />

vigília permanente contra a violência, a luta pela implantação <strong>de</strong> programas específicos <strong>de</strong> atenção à saú<strong>de</strong> e,<br />

a promoção da dignida<strong>de</strong> e auto-estima das profissionais do sexo”.ASSOCIAÇÃO DE CLASSE Brasil: 2000.<br />

<strong>Programa</strong> Nacional <strong>de</strong> DST/Aids. Disponível em : Acesso<br />

em 08/06/2004. Atualmente a re<strong>de</strong> é <strong>de</strong>nominada Re<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Prostitutas e se apresenta com a seguinte<br />

“missão”: “ promover a articulação política do movimento organizado <strong>de</strong> prostitutas e o fortalecimento da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> profissional da categoria, visando o pleno exercício da cidadania, a redução do estigma e da<br />

discriminação e a melhoria <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida na socieda<strong>de</strong>” Disponível em:<br />

. Acesso em 06/07/2006.


oficialmente começa em 89... Então ah.. nós tivemos <strong>de</strong>pois da fundação, a<br />

gente percebeu que ainda esse conceito <strong>de</strong> re<strong>de</strong> era um conceito muito novo<br />

né, um movimento aberto sem...sem eh ...sem presi<strong>de</strong>nte, sem essas coisas<br />

todas e pra nossa socieda<strong>de</strong> ainda era um conceito novo <strong>de</strong>mais aí a gente<br />

resolveu, fez um primeiro planejamento e resolveu dividir em regionais né?<br />

Pra ver se crescia e tal. Essa, essa fórmula, né, <strong>de</strong> regionais: Regional<br />

Nor<strong>de</strong>ste, Regional Norte, só não tinha Centro-Oeste, ah...porque não tinha<br />

nenhum movimento no centro- oeste, agora nós já temos algumas coisas<br />

(Informação verbal). 10<br />

Ela fala também das transformações no processo <strong>de</strong> constituição <strong>de</strong>ssa re<strong>de</strong>:<br />

Então ...e....agora nesse último planejamento nós percebemos que dava pra<br />

acabar com essa história <strong>de</strong> regional, né? E que não precisa disso porque o<br />

conceito <strong>de</strong> re<strong>de</strong> é horizontalida<strong>de</strong> e tal, mas ainda há todo um processo que<br />

a gente tá vivendo que é muito difícil na nossa socieda<strong>de</strong> as pessoas<br />

pensarem em horizontalida<strong>de</strong>, mas o conceito que a gente quer <strong>de</strong> re<strong>de</strong>, essa<br />

re<strong>de</strong> que a gente formou é uma re<strong>de</strong> que ela tem que ser aberta. Nós não<br />

queremos ah...legalizá-la, oficializá-la em cartório, nada. Ela não tem<br />

personalida<strong>de</strong> jurídica. Quem tem personalida<strong>de</strong> jurídica são as associações.<br />

A re<strong>de</strong> é a forma que a gente tem <strong>de</strong> se organizar E não tem presi<strong>de</strong>nte, não<br />

tem absolutamente nada. Todo mundo é responsável por essa re<strong>de</strong>. E essa<br />

questão <strong>de</strong> todo mundo ser responsável pela re<strong>de</strong> ainda é uma questão que<br />

as pessoas não pegaram bem, porque muitas vezes quando se fala da re<strong>de</strong><br />

fala aah...Gabriela da Re<strong>de</strong> (Informação verbal). 11<br />

Nos anos seguintes a 1989 ocorreram outros encontros nacionais e regionais<br />

reunindo prostitutas <strong>de</strong> todo o país, e surgiram outras associações como a Associação das<br />

Prostitutas do Ceará (APROCE) e o Grupo <strong>de</strong> Mulheres Prostitutas da Área Central<br />

(GEMPAC), em 1990; a Associação Sergipana <strong>de</strong> Prostitutas (ASP) em 1991; a Associação<br />

das Damas da Vida do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro; o Núcleo <strong>de</strong> Estudos da Prostituição no<br />

Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (NEP), em 1993. Em 1994 acontece o terceiro encontro nacional <strong>de</strong><br />

prostitutas com os seguintes temas em <strong>de</strong>bate: “lei, saú<strong>de</strong> e fantasias sexuais” 12 . Entre 1995<br />

e 2001 surgem novas associações: Vitória Régia, <strong>de</strong> Ribeirão Preto e Associação das<br />

Profissionais do Sexo da Bahia (APROSBA). Os anos <strong>de</strong> 2002 a 2005 são marcados pelas<br />

10<br />

Entrevista realizada durante o I Seminário Nor<strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Sustentabilida<strong>de</strong> das ações <strong>para</strong> Profissionais do<br />

Sexo . O seminário foi organizado pela Aprosba e realizado <strong>de</strong> 15 a 17 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2004 em Salvador no<br />

hotel Belmar<br />

11<br />

Entrevista realizada durante o I Seminário Nor<strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Sustentabilida<strong>de</strong> das ações <strong>para</strong> Profissionais do<br />

Sexo<br />

12<br />

Disponível em: . Acesso em 06/07/2006


seguintes ações da Re<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Prostitutas: participa, junto ao Ministério da Saú<strong>de</strong> da<br />

produção e lançamento da campanha nacional <strong>de</strong> prevenção das DST/AIDS entre<br />

prostitutas 13 ; com o <strong>de</strong>putado Fernando Gabeira, discute e <strong>de</strong>fine o projeto <strong>de</strong> legalização<br />

da prostituição; participa da conferência internacional sobre Aids; marca presença no<br />

Fórum Social Mundial.<br />

As associações <strong>de</strong> prostitutas registradas no Brasil: 14<br />

Associação <strong>de</strong> Mulheres Profissionais do Sexo do Estado do Amapá (AMPAP); Grupo <strong>de</strong><br />

Mulheres Prostitutas da Área Central (GEMPAC); Grupo <strong>de</strong> Mulheres Prostitutas da Área<br />

Central —Núcleo Castanhal (GEMPAC); Associação das Prostitutas do Ceará (APROCE);<br />

Associação <strong>de</strong> Prostitutas <strong>de</strong> Iguatu (CE) (APROSTI); Associação <strong>de</strong> Prostitutas <strong>de</strong> Russas<br />

(CE) (APROSTÍRUS); Associação das Trabalhadoras do Sexo <strong>de</strong> Sobral (CE) (ASTRAS);<br />

Associação das Prostitutas da Bahia (APROSBA); Associação das Prostitutas <strong>de</strong> Feira <strong>de</strong><br />

Santana (BA) (APROF); Associação Sergipana <strong>de</strong> Prostitutas (ASP); AMAZONA—<br />

Associação <strong>de</strong> Prevenção da Aids; Associação <strong>de</strong> Moradores e Amigos da Vila Mimosa<br />

(RJ) (AMOCAVIM); FIO D’ALMA (RJ); DAVIDA—Prostituição, Direitos civis, Saú<strong>de</strong><br />

(RJ); VITÓRIA RÉGIA— Associação <strong>de</strong> Prostitutas <strong>de</strong> Ribeirão Preto; Núcleo <strong>de</strong> Estudos<br />

da Prostituição (NEP) (RS); Vida Em Liberda<strong>de</strong> — Associação <strong>de</strong> Prostitutas <strong>de</strong><br />

Florianópolis. Ainda po<strong>de</strong>mos fazer referência às seguintes associações: Associação <strong>de</strong><br />

Profissionais do Sexo <strong>de</strong> Pernambuco (APS); Associação <strong>de</strong> Prostitutas do Rio Gran<strong>de</strong> do<br />

Norte (ASPRORN); Associação <strong>de</strong> Prostitutas <strong>de</strong> Feira <strong>de</strong> Santana (APROFS); Associação<br />

13 “A Coor<strong>de</strong>nação Nacional <strong>de</strong> DST e Aids, do Ministério da Saú<strong>de</strong>, lançou, durante o Seminário Aids e<br />

Prostituição, no dia 6 <strong>de</strong> março, em Brasília, uma campanha nacional <strong>de</strong> prevenção direcionada às<br />

profissionais do sexo feminino, com ênfase no <strong>de</strong>senvolvimento da auto-estima e da cidadania, como forma<br />

<strong>de</strong> mobilizar as profissionais <strong>para</strong> a promoção à saú<strong>de</strong>. A consciência <strong>de</strong> seus direitos, como a negociação<br />

com clientes pelo uso da camisinha, o esclarecimento do uso correto do preservativo e a promoção do<br />

preservativo feminino também é foco da campanha. A campanha, que tem como título "Sem vergonha,<br />

garota. Você tem profissão", veiculada no rádio e nos locais <strong>de</strong> prática do sexo pago. Além do spot <strong>para</strong><br />

rádio, contém material impresso (fol<strong>de</strong>r, cartilha) com informações sobre práticas seguras <strong>de</strong> sexo; principais<br />

doenças que po<strong>de</strong>m ser transmitidas nas relações sem o uso do preservativo; direitos humanos; <strong>de</strong>pendência<br />

química e redução <strong>de</strong> danos entre usuários <strong>de</strong> drogas injetáveis, e também tem a<strong>de</strong>sivos <strong>para</strong> banheiros;<br />

manual do multiplicador (profissionais do sexo que ensinam os companheiros a se prevenir das doenças) e<br />

bottons.” Profissionais do sexo—sem vergonha garota você tem profissão. Disponível em<br />

. Acesso em 08/02/2006. (Ver<br />

anexo figuras da campanha “Maria Sem Vergonha”)<br />

14 Dados do BRASIL: Ministério da Saú<strong>de</strong>. Secretária <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Coor<strong>de</strong>nação Nacional <strong>de</strong> DST e<br />

Aids. Profissionais do sexo: documento referencial <strong>para</strong> ações <strong>de</strong> prevenção das DST e da Aids—Brasília:<br />

Ministério da Saú<strong>de</strong>, 2002.


<strong>de</strong> Prostitutas do Maranhão (APROMA); Gabriela, Associação das Prostitutas <strong>de</strong> Camaçari<br />

(BA).<br />

1.1.1 Organizações <strong>de</strong> prostitutas: experiências que <strong>de</strong>ram certo.<br />

Em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2004 a Associação das Prostitutas da Bahia (Aprosba) organizou o<br />

I Seminário Nor<strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Sustentabilida<strong>de</strong> das Ações <strong>para</strong> Profissionais do Sexo, com o<br />

seguinte objetivo: “[...] ao acionar o tema da sustentabilida<strong>de</strong>, a Aprosba e <strong>de</strong>mais grupos<br />

envolvido preten<strong>de</strong>m aprofundar questões fundamentais <strong>para</strong> o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

institucional, técnico, político, cultural e financeiro <strong>de</strong> suas organizações”. 15 O evento<br />

chamou a atenção <strong>para</strong> a realida<strong>de</strong> das organizações que fazem parte do terceiro setor,<br />

colocando em foco o aumento do número <strong>de</strong> organizações e o conseqüente acirramento da<br />

competitivida<strong>de</strong> <strong>para</strong> obtenção <strong>de</strong> recursos, chamando a atenção <strong>para</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

profissionalização, gestão e transparência <strong>de</strong>stas organizações. O equilíbrio entre a<br />

profissionalização e a militância foi ressaltado como i<strong>de</strong>al a ser perseguido pelos grupos.<br />

Valorizou-se também a busca da visibilida<strong>de</strong> através <strong>de</strong> espaço na gran<strong>de</strong> mídia.<br />

15 Dados do programa do seminário<br />

Figura 1: Fol<strong>de</strong>r do Seminário


Para melhor caracterizar as questões e lutas enfrentadas pelas associações<br />

<strong>de</strong>stacamos a seguir os relatos <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças apresentados na mesa intitulada “Organizações<br />

<strong>de</strong> prostitutas: experiências que <strong>de</strong>ram certo”.<br />

a) Can<strong>de</strong>lária, da Associação Sergipana <strong>de</strong> Prostitutas (ASP) falou da associação criada em<br />

1987 com a fundação do GAPA e do trabalho <strong>de</strong> intervenção comportamental iniciado em<br />

1990. Falou da violência <strong>de</strong> que são vítimas as prostitutas. Em relação à violência que as<br />

mulheres sofrem, a resposta a esse fato foi a criação do Centro da Mulher Violentada.<br />

Referiu-se ao papel da imprensa na <strong>de</strong>núncia da violência, e reafirmou que “não somos<br />

coitadinhas, não precisamos ser carregadas com as mãos”. Afirmou que com sua luta hoje<br />

faz parte do Conselho Municipal e do conselho Estadual <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e disse ser aposentada<br />

como prostituta. Fez referência às estatísticas <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z, aborto, Aids entre as mulheres<br />

prostitutas, e falou da situação <strong>de</strong> trabalho das prostitutas que são trabalhadoras e que não<br />

têm renda comprovada; <strong>de</strong> como ela atua <strong>para</strong> fazer as mulheres “mostrarem a cara”, do<br />

treinamento e acolhimento das profissionais do sexo, e dos trabalhos nos municípios.<br />

Afirmou ter dificulda<strong>de</strong>s com a polícia militar, embora esta também aju<strong>de</strong>. Segundo ela as<br />

profissionais do sexo, no entanto, não precisam <strong>de</strong> proteção.<br />

b) Leila Barreto, do Grupo <strong>de</strong> Mulher Prostituta do Pará (GEMPAC) abordou o início do<br />

GEMPAC; os trabalhos <strong>de</strong>senvolvidos; a representativida<strong>de</strong> da organização na região norte;<br />

a busca da auto-organização das prostitutas; as ações <strong>de</strong> intervenção comportamental, a<br />

ocupação dos espaços; e a necessida<strong>de</strong> das prostitutas saírem da “vitimização”.<br />

Argumentou que a prostituição não <strong>de</strong>ve se ater às eternas indagações da socieda<strong>de</strong>, e que a<br />

mulher “é prostituta, não acha que é prostituta e enfraquece seus diretos. tratou da busca do<br />

fortalecimento da categoria e da questão da violência; fez referência à importância da<br />

Internet; e à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> participação da Re<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Prostitutas. Defen<strong>de</strong>u a<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se assumir, <strong>de</strong> assumir a profissão e <strong>de</strong> ser prostituta. E <strong>de</strong>screveu os<br />

trabalhos que a associação faz nos garimpos.<br />

c) Marinalva Ferreira, presi<strong>de</strong>nte da Associação das Profissionais do Sexo do Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Norte (ASPRORN), fez referência às parcerias estabelecidas pela associação. Dentre<br />

estas ressalta a parceria com a Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Norte. Esta parceria


permitiu que as mulheres da associação, inclusive ela, fossem alfabetizadas sendo que a<br />

igreja ce<strong>de</strong>u o espaço <strong>para</strong> as aulas. De acordo com ela isso foi extremamente relevante,<br />

pois é muito difícil que as prostitutas freqüentem a escola, seja pelos horários, seja pela<br />

discriminação que sofrem. Falou das ativida<strong>de</strong>s da associação, como a distribuição <strong>de</strong><br />

camisinhas, e a realização <strong>de</strong> oficinas <strong>de</strong> sexo seguro. Ela relatou a dificulda<strong>de</strong> <strong>para</strong> que as<br />

mulheres participem das reuniões da associação, e da importância do policial <strong>para</strong> a sua<br />

proteção. Ressaltou que o “bom comportamento” é fundamental <strong>para</strong> o respeito e segurança<br />

das mulheres. Elas, em sua opinião, <strong>de</strong>vem se vestir <strong>de</strong> forma mais a<strong>de</strong>quada, “não mostrar<br />

o peito e a bunda”. A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aconselhamento, cidadania, respeito, e saú<strong>de</strong> <strong>para</strong><br />

todas foi ressaltada pela presi<strong>de</strong>nte. Um fato relatado foi a tentativa <strong>de</strong> fechamento das<br />

“casas da vida” <strong>de</strong> Natal e a sua intervenção.<br />

d) Josângela, da Associação das Profissionais do Sexo <strong>de</strong> Feira <strong>de</strong> Santana, falou sobre a<br />

associação <strong>de</strong> Feira <strong>de</strong> Santana, que tem 20 mulheres associadas do centro e da periferia da<br />

cida<strong>de</strong>. O perfil das mulheres é <strong>de</strong> “baixa renda”. Relatou o sistema <strong>de</strong> semi-escravidão que<br />

os donos <strong>de</strong> prostíbulos impõe às mulheres e informou que a associação vem<br />

<strong>de</strong>senvolvendo “intervenção” com os donos <strong>de</strong> prostíbulos. Uma ativida<strong>de</strong> da associação<br />

que foi relatada é a vacinação das mulheres nos próprios prostíbulos<br />

e) Mirna, da (Associação das Profissionais do Sexo da Vale do Itajaí (APROSVI) relatou a<br />

dificulda<strong>de</strong> do trabalho <strong>de</strong> prevenção, e referiu-se às parcerias com a Polícia Militar, OAB,<br />

e Ministério da Saú<strong>de</strong>. Falou da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perseverança e união, e lembrou que as<br />

prostitutas têm po<strong>de</strong>r. Ressaltou a importância da auto-estima.<br />

f) Izete da Gabriela, Associação das prostitutas <strong>de</strong> Camaçari (BA), falou do início da<br />

associação na cida<strong>de</strong>, das dificulda<strong>de</strong>s da fundação <strong>de</strong> uma associação <strong>de</strong> prostitutas e <strong>de</strong><br />

encontrar mulheres que “se mostrem” e que <strong>de</strong>la participem. Lembrou que a associação <strong>de</strong><br />

Camaçari foi fundada em 2004, e o seu nome é Gabriela em homenagem a Jorge Amado e a<br />

Gabriela Leite. Relatou o trabalho <strong>de</strong> campo realizado na cida<strong>de</strong> <strong>para</strong> se observar a<br />

viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma associação, e constatou-se que existe a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança das<br />

mulheres <strong>de</strong> Camaçari. Registrou a existência do “shopping brega”, on<strong>de</strong> funcionam 15


“bregas”. A associação, segundo ela, projeta o atendimento a 200 mulheres. Izete justificou<br />

a fundação <strong>de</strong> uma associação em Camaçari em função do seu gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> “ bregas”,<br />

e do pólo petroquímico, e por esta ser uma cida<strong>de</strong> rica e ter muitos homens. Ela afirmou<br />

que o gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> “bregas” está incomodando a cida<strong>de</strong>, pois há mais “brega” do que<br />

bar, ocasionando uma disputa com outros estabelecimentos. Declarou estar na espera da<br />

participação das mulheres, lembrando mais uma vez da dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se arregimentarem<br />

mulheres ali.<br />

Conflitos e tensões permeiam o movimento <strong>de</strong> constituição <strong>de</strong> novos atores sociais, e,<br />

no caso da organização das prostitutas, o gran<strong>de</strong> problema i<strong>de</strong>ntificado no processo <strong>de</strong><br />

mobilização das prostitutas por todo o país, e que vai perseguir o seu movimento até o<br />

momento atual, é o <strong>de</strong> proteger a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> das mulheres, que apesar compartilharem das<br />

propostas do movimento, não <strong>de</strong>sejam se expor publicamente. Ou seja, a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

assunção <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> estigmatizada. Além dos preconceitos, esta categoria reúne<br />

uma série <strong>de</strong> impedimentos <strong>de</strong> natureza jurídico-política ao seu reconhecimento enquanto<br />

categoria <strong>de</strong> trabalhadoras. Permeadas, portanto, por conflitos e contradições, que as<br />

prostitutas vão consolidando uma outra significação da sua ativida<strong>de</strong>. A auto imagem<br />

<strong>de</strong>preciada <strong>de</strong> “puta-excluída-marginalizada”, no dizer <strong>de</strong> Moraes (1996), vai sofrer<br />

modificações na re<strong>de</strong>finição do seu papel social e proporcionar a abertura <strong>de</strong> caminhos <strong>para</strong><br />

a consolidação <strong>de</strong> um outro espaço social, rompendo com várias representações negativas.<br />

1.2. Políticas, projetos, e práticas <strong>de</strong> prevenção da Aids <strong>para</strong> prostituição<br />

O aparecimento da Aids foi marcado pela elaboração <strong>de</strong> representações negativas<br />

sobre pessoas e grupos “<strong>de</strong>sviantes”. Formas expurgatórias como culpa, pecado, <strong>de</strong>svio,<br />

crime, <strong>de</strong>sonra, vergonha e marginalida<strong>de</strong> marcam algumas <strong>de</strong> suas representações.<br />

Nos primeiros anos o estudo <strong>de</strong> sua distribuição na população apontava<br />

<strong>para</strong> uma quase exclusiva incidência entre os homossexuais masculinos [...]<br />

procurava-se uma ligação intrínseca entre homossexualida<strong>de</strong> e Aids. O<br />

mesmo elo aparecerá em todos os momentos da história da AIDS: na<br />

epi<strong>de</strong>miologia, na clínica, na opinião pública, no julgamento moral, na<br />

pesquisa [...]” (PARKER, 1994, p.15).


Essa associação vai enfraquecendo, quando é verificada a presença do vírus da Aids<br />

em outros grupos que não os dos homossexuais. Mas, segundo Parker (1994), como “[...] os<br />

aspectos biológicos da doença eram ainda pouco conhecidos, o critério <strong>de</strong> ‘pertença a<br />

grupos <strong>de</strong> riscos’ <strong>de</strong>finido pela epi<strong>de</strong>miologia era central <strong>para</strong> que um caso clínico parecido<br />

com AIDS fosse ou não classificado como tal. Os grupos <strong>de</strong> risco então <strong>de</strong>finidos eram os<br />

homossexuais masculinos, usuários <strong>de</strong> drogas endovenosas, receptor <strong>de</strong> sangue e<br />

hemo<strong>de</strong>rivados” (PARKER, 1994 p.21). Com o tempo, a noção <strong>de</strong> “grupo <strong>de</strong> risco”<br />

abarcou também aqueles consi<strong>de</strong>rados <strong>de</strong> comportamento promíscuo ou “<strong>de</strong>sviante”.<br />

Os militantes das Organizações Não Governamentais <strong>para</strong> Prevenção da Aids 16<br />

criticaram fortemente as representações da Aids como doença <strong>de</strong> homossexuais, assim<br />

como a restrição do contágio àqueles pertencentes ao chamado “grupo <strong>de</strong> risco”, on<strong>de</strong> se<br />

incluíam aí as prostitutas. Para eles, esta era mais uma forma <strong>de</strong> discriminação contra<br />

grupos já socialmente marginalizados. Tratava-se <strong>de</strong> uma objetivação da relação entre<br />

i<strong>de</strong>ológico e biológico, em que “[...] as categorias sociais e representações motivam e<br />

influenciam não apenas a percepção da epi<strong>de</strong>mia, mas também pelo impacto das atitu<strong>de</strong>s<br />

das pessoas, o seu próprio percurso” (PARKER, 1994a, P.28). Mas a Aids extrapolou a<br />

fronteira dos comportamentos <strong>de</strong>finidos como marginais. Nos anos 90, ela já era uma<br />

doença <strong>de</strong> todos. A infecção pelo vírus atinge os heterossexuais. Os casos <strong>de</strong> mulheres<br />

contaminadas aumentam a cada ano, sendo cada vez maior o número <strong>de</strong> crianças que<br />

nascem infectadas. Assim, a noção <strong>de</strong> “grupo <strong>de</strong> risco” dá lugar à <strong>de</strong> “comportamento <strong>de</strong><br />

risco”, que <strong>de</strong>ve ser compreendido como a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contágio por qualquer pessoa,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não se adotem as normas preventivas. As noções <strong>de</strong> “grupo <strong>de</strong> risco”,<br />

“comportamento <strong>de</strong> risco”, e “sexo seguro”, que significa sexo sem risco <strong>de</strong> contaminação,<br />

marcaram as representações da Aids entre os anos 80 e meados <strong>de</strong> 90. Assim, estas<br />

ONGs/Aids entraram em cena com a produção <strong>de</strong> discursos principalmente através <strong>de</strong><br />

16 “[...] é no período <strong>de</strong> 1992 a 1995 on<strong>de</strong> se concentra a inauguração em larga escala <strong>de</strong> instituições<br />

relacionadas com trabalhos voltados <strong>para</strong> as DST/HIV/Aids. A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> captação <strong>de</strong> recursos<br />

financeiros pelas organizações não governamentais, <strong>de</strong>corrente também da assinatura do Acordo <strong>de</strong><br />

Empréstimo com o BIRD, é consi<strong>de</strong>rada o fator <strong>de</strong>cisivo <strong>de</strong>ssa rápida proliferação <strong>de</strong> ONGs” PROJETOS DE<br />

INTERVENÇÃO. Brasil: 2000. <strong>Programa</strong> Nacional <strong>de</strong> DST/Aids. Disponível em: <br />

Acesso em 08/06/2004.


projetos <strong>de</strong> educação <strong>para</strong> prevenção da Aids. Os projetos eram direcionados <strong>para</strong> diversos<br />

grupos sociais incluindo aí grupos <strong>de</strong> prostituição.<br />

Em 1993 tem início o processo <strong>de</strong> inserção das ONGs/Aids na esfera<br />

governamental. É criada nesse mesmo ano uma unida<strong>de</strong> específica no organograma do<br />

<strong>Programa</strong> Nacional <strong>de</strong> Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids 17 voltada<br />

exclusivamente <strong>para</strong> a implantação <strong>de</strong> ações objetivando o fortalecimento institucional <strong>de</strong><br />

organizações da socieda<strong>de</strong> civil: a Unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Articulação com ONG. Dentre as suas<br />

diferentes ativida<strong>de</strong>s, a principal é a promoção anual <strong>de</strong> concorrência pública, visando a<br />

análise e a seleção <strong>de</strong> projetos comunitários das organizações não governamentais,<br />

passíveis <strong>de</strong> serem financiados pela esfera fe<strong>de</strong>ral. Neste período, como foi dito<br />

anteriormente, as ONGs/AIDS já vinham <strong>de</strong>senvolvendo projetos <strong>para</strong> prevenção das<br />

DST/Aids entre mulheres prostitutas, travestis e michês, projetos estes financiados por<br />

instituições internacionais. E a parceria com o Ministério da Saú<strong>de</strong> aparece como uma<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar continuida<strong>de</strong> a esses trabalhos e propor outros. Houve um gran<strong>de</strong><br />

investimento por parte do Ministério da Saú<strong>de</strong> e ONGs objetivando uma maior<br />

sensibilização em relação ao uso da camisinha por parte das mulheres que trabalham com a<br />

prostituição. Estes projetos instituíram ativida<strong>de</strong>s comuns como a produção e distribuição<br />

<strong>de</strong> materiais informativos, o repasse gratuito <strong>de</strong> preservativos, a promoção <strong>de</strong> palestras e<br />

oficinas, e a capacitação <strong>de</strong> multiplicadoras <strong>de</strong> informação. É importante ressaltar que os<br />

projetos tinham como núcleo central a promoção do uso da camisinha na prática da<br />

prostituição<br />

Em 1999 a Coor<strong>de</strong>nação Nacional <strong>de</strong> DST e AIDS do Ministério da Saú<strong>de</strong><br />

apresentou o resultado <strong>de</strong> um estudo que teve como objetivo a sistematização <strong>de</strong> dados<br />

relacionados à prevenção das DST/HIV/AIDS junto às prostitutas, com base em quarenta e<br />

cinco projetos financiados pela Coor<strong>de</strong>nação Nacional <strong>de</strong> Aids no período <strong>de</strong> 1993 a 1997,<br />

e executados por organizações não governamentais. Entre 1993 a 1997 foram concedidos<br />

17 O Ministério da Saú<strong>de</strong> estruturou sua administração a partir <strong>de</strong> <strong>Programa</strong>s Nacionais que visam o combate e<br />

a prevenção <strong>de</strong> diversas doenças endêmicas. Assim sendo, sua Coor<strong>de</strong>nação Nacional <strong>de</strong> DST e Aids tem o<br />

objetivo <strong>de</strong> formular e gerenciar as ações brasileiras <strong>de</strong> prevenção e assistência à epi<strong>de</strong>mia pelo HIV. As suas<br />

ativida<strong>de</strong>s prioritárias incluem: realização <strong>de</strong> campanhas <strong>de</strong> comunicação e informação, implantação <strong>de</strong><br />

serviços referentes à testagem sorológica e tratamentos, avaliação e replicação <strong>de</strong> programas bem sucedidos<br />

<strong>de</strong> assistência e prevenção e, aprimoramento do sistema <strong>de</strong> vigilância epi<strong>de</strong>miológica do HIV no País.<br />

PROJETOS DE INTERVENÇÃO. Brasil: 2000. <strong>Programa</strong> Nacional <strong>de</strong> DST/Aids. Disponível em:<br />

Acesso em 08/06/2004.


financiamentos a 427 projetos <strong>de</strong> ONG, voltados <strong>para</strong> a assistência e a prevenção das<br />

DST/HIV/Aids junto aos diversos segmentos da população. Foram i<strong>de</strong>ntificados 52<br />

projetos dirigidos aos profissionais do sexo, incluindo as mulheres, os travestis e os michês.<br />

Deste total foram <strong>de</strong>stacados 45 projetos on<strong>de</strong> as mulheres profissionais do sexo são<br />

inseridas, se<strong>para</strong>damente ou no conjunto, como alvo das iniciativas. Assim, esses 45<br />

projetos voltados às profissionais no sexo feminino compõem a análise feita das ações <strong>de</strong><br />

prevenção implantadas por 25 organizações não governamentais. A distribuição geográfica<br />

<strong>de</strong>ssas ações, diferentemente daquela obtida pela totalida<strong>de</strong> dos projetos financiados pela<br />

CN-DST/Aids, se concretiza <strong>de</strong> forma mais homogênea, acompanhando critérios que<br />

incluem, entre outros, a existência <strong>de</strong> instituições estruturadas <strong>de</strong> forma a garantir o bom<br />

<strong>de</strong>sempenho físico e financeiro dos projetos <strong>de</strong> intervenção, e a própria trajetória da<br />

consolidação do movimento <strong>de</strong> classe no País. “As Regiões Nor<strong>de</strong>ste e Su<strong>de</strong>ste concentram<br />

se<strong>para</strong>damente 31,14% dos projetos <strong>de</strong>senvolvidos, as Regiões Norte e Centro-Oeste,<br />

também se<strong>para</strong>damente, consolidam 11,36% e a Região Sul 15% do total <strong>de</strong> projetos”<br />

implantados (PROJETOS DE INTERVENÇÃO. Brasil: 2000. <strong>Programa</strong> Nacional <strong>de</strong><br />

DST/Aids ) 18 Buscava-se avaliar o conjunto das ações implantadas pelas organizações não<br />

governamentais nas respectivas regiões, os principiais facilitadores e dificultadores<br />

<strong>de</strong>tectados na execução das ativida<strong>de</strong>s propostas e, alguns dos resultados obtidos a partir<br />

das intervenções realizadas. “Essa análise mais abrangente teve como base, as informações<br />

registradas em relatórios técnicos elaborados pelas ONG e naqueles vinculados aos<br />

processos <strong>de</strong> supervisão e monitoramento implementados pela Unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Articulação com<br />

ONG da CN-DST/Aids”. (PROJETOS DE INTERVENÇÃO. Brasil: 2000. <strong>Programa</strong><br />

Nacional <strong>de</strong> DST/Aids ) 19<br />

Este estudo levantou os projetos <strong>de</strong> intervenção por região e os tipos <strong>de</strong> prostituição característicos<br />

<strong>de</strong> cada região do Brasil consi<strong>de</strong>rando as condições econômicas, <strong>de</strong>mográficas e epi<strong>de</strong>miológicas em que<br />

estava envolvida a prática da prostituição. O fator econômico como <strong>de</strong>terminante mais comum <strong>de</strong> ingresso na<br />

prostituição, a baixa escolarida<strong>de</strong>, e a violência física como presença constante na vida das prostitutas são<br />

situações levantadas pelos projetos. Em relação ao uso da camisinha com os clientes, alguns fatores não o<br />

favorecem, mesmo diante do conhecimento das prostitutas quanto a sua necessida<strong>de</strong>. Estes fatores são: a<br />

aparência saudável e a freqüência regular dos clientes, melhores ofertas <strong>de</strong> preço por um programa sem<br />

18 PROJETOS DE INTERVENÇÃO. Brasil: 2000. <strong>Programa</strong> Nacional <strong>de</strong> DST/Aids. Disponível em:<br />

Acesso em 08/06/2004.<br />

19 PROJETOS DE INTERVENÇÃO. Brasil: 2000. <strong>Programa</strong> Nacional <strong>de</strong> DST/Aids. Disponível em:<br />

Acesso em 08/06/2004.


camisinha, e consumo <strong>de</strong> bebidas alcoólicas, anfetaminas, cocaína e crack. Em relação ao perfil das<br />

prostitutas no Brasil e a assimilação <strong>de</strong> conhecimento e comportamentos preventivos relacionados à Aids, o<br />

estudo concluiu que:<br />

A <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> um perfil da profissional do sexo no Brasil é extremamente<br />

difícil, uma vez que existem vários tipos e categorias da profissão,<br />

estabelecidas a partir <strong>de</strong> variáveis pouco <strong>de</strong>finidas. A precarieda<strong>de</strong><br />

econômica e o difícil acesso aos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e educação, vêm<br />

contribuindo <strong>para</strong> diminuir ou anular a estrutura familiar das classes menos<br />

favorecidas ao longo das últimas décadas. Uma das conseqüências <strong>de</strong>ssa<br />

realida<strong>de</strong>, é a presença <strong>de</strong> um "incentivo" suplementar ao ingresso na<br />

prostituição <strong>para</strong> as mulheres da faixa etária <strong>de</strong> 15 a 26 anos. Assim, a<br />

profissão <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser uma opção individual, <strong>para</strong> se impor enquanto única<br />

alternativa na busca da sobrevivência. A exemplo do que acontece com a<br />

população brasileira <strong>de</strong> uma forma geral, a preocupação diária com a<br />

subsistência (fundamentalmente alimentação e moradia), não permite que a<br />

saú<strong>de</strong> seja inscrita como uma priorida<strong>de</strong> no cotidiano da profissional do<br />

sexo. Desta forma, a efetiva alteração em qualquer padrão <strong>de</strong><br />

comportamento - seja na adoção <strong>de</strong> práticas sexuais mais seguras, seja na<br />

promoção <strong>de</strong> cuidados com a saú<strong>de</strong> sexual e reprodutiva - ten<strong>de</strong> a se<br />

distanciar cada vez mais do cotidiano <strong>de</strong>ssas mulheres. No entanto, frente<br />

ao muito que já se avançou nessa área, e consi<strong>de</strong>rando a situação<br />

socioeconômica a que estão sujeitas as profissionais do sexo, é possível<br />

<strong>de</strong>finir a presença <strong>de</strong> uma efetiva assimilação <strong>de</strong> conhecimento e/ou<br />

comportamentos preventivos relacionados às DST/Aids, quando - e se -<br />

minimizadas as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sobrevivência. (PROJETOS DE<br />

INTERVENÇÃO. Brasil: 2000. <strong>Programa</strong> Nacional <strong>de</strong> DST/Aids) 20<br />

Entre 2001 e 2002 a Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília (UNB) realizou, a pedido da<br />

Coor<strong>de</strong>nação Nacional <strong>de</strong> DST e Aids do Ministério da Saú<strong>de</strong>, uma pesquisa nacional <strong>para</strong><br />

traçar o perfil da prostituta brasileira. Foram entrevistadas três mil mulheres nos estados do<br />

Maranhão, Paraíba e Sergipe (Região Nor<strong>de</strong>ste); São Paulo, Belo Horizonte e Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro (Su<strong>de</strong>ste); e Paraná, Santa Catarina e Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (Região Sul). Partici<strong>para</strong>m<br />

da pesquisa prostitutas e técnicos da Re<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Prostitutas. O principal objetivo da<br />

pesquisa da UNB foi medir a efetivida<strong>de</strong> das ações educativas em DST/Aids voltadas a<br />

mulheres profissionais do sexo em geral, promovidas por organizações não governamentais<br />

(ONGs) Para tanto, foram com<strong>para</strong>dos, em onze municípios do país, grupos <strong>de</strong> prostitutas<br />

20 PROJETOS DE INTERVENÇÃO. Brasil: 2000. <strong>Programa</strong> Nacional <strong>de</strong> DST/Aids. Disponível em:<br />

Acesso em 08/06/2004


que tiveram acesso a projetos <strong>de</strong> intervenção <strong>de</strong> ONGs com grupos que nunca partici<strong>para</strong>m<br />

<strong>de</strong>les.<br />

A pesquisa revelou que a maioria das prostitutas brasileiras tem <strong>de</strong> 20 a 29 anos,<br />

ganha até quatro salários mínimos, tenta escon<strong>de</strong>r dos outros a profissão,<br />

não <strong>completo</strong>u o primeiro grau, está na profissão há menos <strong>de</strong> cinco anos, e trabalha na<br />

rua, em bares e boates, fazendo programas em hotéis. As prostitutas com acesso a projetos<br />

<strong>de</strong> prevenção usam mais o preservativo com clientes e parceiros, e recorrem com maior<br />

freqüência a serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, realizando exames preventivos e <strong>de</strong> Aids em maior<br />

proporção Mulheres com mais <strong>de</strong> 40 anos se importam menos com a prevenção. Já as<br />

mulheres que não consomem nenhum tipo droga ilícita, nem álcool, e mulheres que só<br />

consomem álcool, usam preservativo na mesma proporção: 70%.<br />

De acordo com a pesquisadora Kátia Guimarães, é possível que, exatamente<br />

por saber que a bebida alcoólica po<strong>de</strong> levar ao esquecimento do<br />

preservativo, a mulher que bebe fique mais atenta. No entanto, quando o<br />

álcool é tomado com outra droga, ou mais <strong>de</strong> uma, aumenta muito o<br />

número das prostitutas que dispensam a camisinha. (O retrato da prostituta<br />

brasileira. Jornal Beijo da rua. Abril 2002 21<br />

Os pontos consi<strong>de</strong>rados positivos e negativos pelos pesquisadores relativos aos dois grupos<br />

são:<br />

[...]sabem colocar corretamente o preservativo masculino, têm orgulho <strong>de</strong><br />

sustentar os filhos, não sofrem discriminação nos serviços públicos <strong>de</strong><br />

saú<strong>de</strong>, sabem que o uso <strong>de</strong> drogas (legais ou ilegais) atrapalha na hora da<br />

prevenção, têm bons clientes, gostam da liberda<strong>de</strong> e do ambiente em que<br />

trabalham e consi<strong>de</strong>ram a ativida<strong>de</strong> bem mais vantajosa do que outras <strong>para</strong><br />

ganhar dinheiro [...] mas se sentem humilhadas e discriminadas por causa<br />

<strong>de</strong> profissão e evitam revelar o que fazem, principalmente <strong>para</strong> os filhos;<br />

têm <strong>de</strong> agüentar clientes <strong>de</strong>sagradáveis e outros que insistem em fazer<br />

programa sem camisinha; sofrem os efeitos da concorrência, reduzindo os<br />

preços; e evitam participar <strong>de</strong> associações <strong>de</strong> prostitutas porque temem<br />

assumir a profissão e ser i<strong>de</strong>ntificadas. (O retrato da prostituta brasileira.<br />

Jornal Beijo da rua, Abril 2002) 22 .<br />

21 O retrato da prostituta brasileira. Jornal Beijo da rua. Abril 2002. Disponível em:<br />

Acesso em 20/05/2005<br />

22 O retrato da prostituta brasileira. Jornal Beijo da rua. Abril 2002. Disponível em :<br />

Acesso em : 20/05/2005


O primeiro estudo, referido anteriormente, que apresentou um diagnóstico da<br />

prostituição no Brasil com base nos projetos <strong>de</strong>senvolvido pelas ONG/Aids entre 1993 e<br />

1997, mostrou que a exigência do uso da camisinha pelas prostitutas constituía, naquele<br />

momento, um obstáculo <strong>para</strong> a realização <strong>de</strong> programa, e era um produto que ainda não<br />

ocupava a lista <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s das prostitutas Já a segunda pesquisa (2001 a 2002),<br />

também já mencionada, realizada <strong>para</strong> avaliar as ações dos projetos alguns anos <strong>de</strong>pois, no<br />

que diz respeito principalmente ao uso da camisinha, mostrou uma situação diferente: a<br />

camisinha aparece incorporada à prática da prostituição e tal incorporação é avaliada como<br />

resultado dos projetos <strong>de</strong>senvolvidos. No entanto, o não uso da camisinha pelas prostitutas<br />

com seus parceiros fixos 23 foi revelado por este último estudo e tornou-se tema <strong>de</strong><br />

discussão da Re<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Prostitutas, a que a levou a propor, em 2003, uma<br />

campanha objetivando uma mudança <strong>de</strong> comportamento nesse sentido<br />

1.3 O surgimento da Associação das Profissionais do Sexo da Bahia (Aprosba)<br />

Em 1995 teve início o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um projeto <strong>de</strong> educação <strong>para</strong> prevenção<br />

da Aids entre mulheres prostitutas <strong>de</strong> baixa renda na Cida<strong>de</strong> do Salvador. Este projeto<br />

estava vinculado ao Grupo <strong>de</strong> Apoio à Prevenção da AIDS da Bahia (GAPA/BA) e era<br />

financiado por uma fundação internacional O projeto ficou sob nossa coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

início <strong>de</strong> 1995 até o final <strong>de</strong> 1996. Foram <strong>de</strong>senvolvidas algumas etapas que estavam em<br />

estreita sintonia com um padrão <strong>de</strong> projeto <strong>de</strong>senvolvido entre as ONGs: em um primeiro<br />

momento foram mapeadas áreas <strong>de</strong> prostituição <strong>de</strong> Salvador e realizado um levantamento<br />

<strong>de</strong> algumas característica <strong>de</strong>sse universo, como ida<strong>de</strong>, origem, motivos que levam a essas<br />

mulheres a exercerem tal prática, relação com parceiros e clientes, uso da camisinha,<br />

prática sexual, conhecimento sobre HIV/Aids, e consumo <strong>de</strong> drogas lícitas e ilícitas. Neste<br />

momento foi possível estabelecer vínculos bem próximos com as mulheres que seriam as<br />

futuras dirigentes da Associação das Prostitutas da Bahia, e encontrar “D. Rail<strong>de</strong>s”, “dona-<br />

<strong>de</strong>-casa” na La<strong>de</strong>ira da Montanha, um tradicional local <strong>de</strong> prática <strong>de</strong> prostituição. Este<br />

23<br />

A este respeito é esclarecedora as reflexões <strong>de</strong> Angus McLaren em História da contracepção: da<br />

antiguida<strong>de</strong> à actualida<strong>de</strong>.<br />

Tradução <strong>de</strong> Tereza Perez. Lisboa: Terramar, 1997.


encontro foi um daqueles momentos que fazem com que “os nós se <strong>de</strong>satem”. A casa <strong>de</strong> D.<br />

Rail<strong>de</strong>s foi o lugar <strong>de</strong> “acolhimento”, aquele on<strong>de</strong> nos sentíamos bem. Talvez pudéssemos<br />

falar <strong>aqui</strong> da força da simpatia, como belamente discorre Focault (2000) em “A prosa do<br />

mundo”. 24 Ela aceitou participar do trabalho e possibilitou o aceso às mulheres que<br />

trabalham na sua “casa”, além <strong>de</strong> servir <strong>de</strong> influência <strong>para</strong> outras “donas-<strong>de</strong>- casas” da<br />

mesma área. Este “encontro” não aconteceu em outros locais, dificultando o trânsito nas<br />

outras áreas <strong>de</strong> atuação do projeto 25 . Da casa <strong>de</strong> D. Rail<strong>de</strong>s, incentivada por ela, é que saiu<br />

a primeira, como era chamada, agente multiplicadora <strong>de</strong> informação <strong>para</strong> prevenção das<br />

DST/Aids, “treinada” pelo projeto do Grupo <strong>de</strong> Apoio à Prevenção da Aids da Bahia<br />

(GAPA/BA) 26 , e que seria dois anos <strong>de</strong>pois uma das fundadora e dirigente da Associação<br />

das Prostitutas da Bahia<br />

Em um segundo momento foram analisados os dados e produzidos relatórios do<br />

projeto. Estes dados serviram <strong>de</strong> referência <strong>para</strong> o terceiro momento do <strong>de</strong>senvolvimento<br />

do projeto, que foi a elaboração dos materiais informativos e a produção das chamadas<br />

“oficinas do sexo seguro” nas áreas trabalhadas. Finalmente foi oferecido a um grupo <strong>de</strong><br />

mulheres contatadas nas áreas, e que se mostraram interessadas, um curso <strong>para</strong> formação<br />

das multiplicadoras <strong>de</strong> informação sobre a prevenção das DST/AIDS.<br />

O encontro com Marilene <strong>de</strong> Jesus Silva, futura fundadora e dirigente da Aprosba,<br />

se <strong>de</strong>u durante o <strong>de</strong>senvolvimento do projeto do GAPA/BA, na La<strong>de</strong>ira da Montanha. Foi<br />

na “casa” <strong>de</strong> D. Rail<strong>de</strong>s que vi Marilene pela primeira vez. Sentada em uma mesa, muito<br />

tranqüila, acompanhada por um possível cliente. Sentia que D. Raíl<strong>de</strong>s tinha um carinho<br />

especial por ela. Sempre fazia referência à responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>la e o cuidado que tinha com<br />

a mãe que estava doente. Quando chegou o momento <strong>de</strong> formar as chamadas<br />

multiplicadoras <strong>de</strong> informação, convidamos as mulheres <strong>de</strong> várias “casas” on<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvia as ativida<strong>de</strong>s do projeto, mas poucas aceitaram participar. Incentivada por D.<br />

Raíl<strong>de</strong>s, Marilene <strong>de</strong>cidiu aceitar o convite. No primeiro dia do curso apenas quatro<br />

24 “Ela é princípio <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> atrai o que é pesado <strong>para</strong> o peso do solo e o que é leve <strong>para</strong> o éter sem peso;<br />

impele as raízes <strong>para</strong> a água e faz girar com a curva do sol a gran<strong>de</strong> flor amarela do girassol. Mais ainda,<br />

atraindo as coisas uma as outras por um movimento exterior e visível, suscita em segredo um movimento<br />

interior – um <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s que se substituem mutuamente: o fogo, porque quente e leve, se<br />

eleva no ar, <strong>para</strong> o qual as chamas infatigavelmente se erguem ; per<strong>de</strong>, porém, sua própria secura (que o<br />

aparentava à terra) e adquire assim certa umida<strong>de</strong> ( que o liga à água e ao ar); <strong>de</strong>saparece então em ligeiro<br />

vapor, em fumaça azul, em nuvem: tornou-se ar” (FOUCAULT, 2000, p.32).<br />

25 Mais a frente vamos fazer referência as áreas <strong>de</strong> atuação do GAPA/BA<br />

26 Mais adiante serão apresentados dados sobre esse projeto e uma <strong>de</strong>scrição mais <strong>de</strong>talhada <strong>de</strong>ssa situação


mulheres compareceram, e Marilene foi uma <strong>de</strong>las. Das quatro, duas foram até o final do<br />

curso e duas <strong>de</strong>sistiram. O projeto não tinha alcançado seu objetivo <strong>de</strong> formar no mínimo<br />

<strong>de</strong>z mulheres, e foi <strong>de</strong>cidido, então, que faríamos outra formação. Marilene, agora como<br />

multiplicadora, juntamente com a outra prostituta, participou na organização do curso,<br />

principalmente fazendo contato nas áreas <strong>de</strong> prostituição <strong>de</strong> atuação do projeto e<br />

convidando as mulheres a participar. No primeiro dia <strong>de</strong>sta segunda formação<br />

compareceram mais <strong>de</strong> vinte mulheres, e no final <strong>de</strong>z foram selecionadas <strong>para</strong> atuarem<br />

como agentes multiplicadoras. Ficou a cargo das mulheres selecionadas no curso participar<br />

<strong>de</strong> reuniões em áreas <strong>de</strong> prostituição <strong>para</strong> repasse <strong>de</strong> informações sobre a prevenção das<br />

DST/Aids, distribuição <strong>de</strong> material informativo sobre educação <strong>para</strong> prevenção da Aids<br />

entre prostitutas, e distribuição <strong>de</strong> camisinha. As mulheres eram remuneradas pelas<br />

ativida<strong>de</strong>s. Depois <strong>de</strong>sta formação, no final <strong>de</strong> 1996, <strong>de</strong>ixamos o projeto.<br />

Logo <strong>de</strong>pois, em 1997, o Centro Baiano Anti-Aids (CBAA) teve o projeto <strong>para</strong><br />

prevenção das DST/Aids entre prostitutas <strong>de</strong> Salvador “Mulheres da Vida” escolhido na<br />

seleção pública do CN-DST/Aids, e passou a receber financiamento do Ministério da<br />

Saú<strong>de</strong>. Recebemos, então, o convite <strong>para</strong> dar assessoria ao projeto. Neste mesmo período as<br />

ativida<strong>de</strong>s das multiplicadoras do projeto do GAPA/BA estavam praticamente <strong>para</strong>das, já<br />

que a maioria das “multiplicadoras <strong>de</strong> informação” o tinha abandonado. Ao aceitar o<br />

convite fizemos contato com Marilene e a convidamos a participar do projeto do CCBAA<br />

como multiplicadora <strong>de</strong> informações, e ela aceitou. Pedimos que sugerisse outras duas<br />

multiplicadoras, mulheres que realmente assumissem o compromisso <strong>de</strong> realizar as tarefas<br />

do projeto, e ela indicou Fátima e Patrícia 27 , ambas formadas como multiplicadora no<br />

projeto do GAPA/BA. Assim, reencontramos Maria <strong>de</strong> Fátima Me<strong>de</strong>iros, conhecida como<br />

Fátima, que seria a outra futura fundadora e dirigente da Aprosba, e as três multiplicadoras<br />

anteriormente formadas pelo do projeto do GAPA passaram a integrar o projeto do CBAA.<br />

Foi neste projeto que tiveram início as discussões <strong>para</strong> a formação <strong>de</strong> uma associação <strong>de</strong><br />

profissionais do sexo. A sensibilização das três multiplicadoras <strong>para</strong> a necessida<strong>de</strong> da<br />

constituição <strong>de</strong> tal associação aconteceu a partir <strong>de</strong> discussões com as pessoas envolvidas<br />

na coor<strong>de</strong>nação do projeto. Como o CBAA surgiu vinculado ao GGB (Grupo Gay da<br />

Bahia), gerenciado por Luiz Mott ⎯ e o projeto era coor<strong>de</strong>nado por uma militante do GLB<br />

27 Nome fictício


(Grupo Lésbico da Bahia), que também funcionava atrelada ao GGB, havia uma certa<br />

“tradição” na organização política <strong>de</strong> grupos que lutavam pela afirmação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

sexual consi<strong>de</strong>rada marginal. Patrícia, neste percurso, abandonou o projeto e entrou <strong>para</strong> a<br />

Igreja Evangélica. Marilene fala do surgimento da associação:<br />

Eu, Fátima e outra menina, profissional do sexo, a gente foi convidada pra<br />

tá trabalhando esse mesmo serviço que a gente tava fazendo pra outra<br />

instituição, o GAPA. Trabalhar no CBAA, Centro Bahiano Anti- Aids<br />

como agente multiplicador <strong>de</strong> informação. E aí a gente começou trabalhar<br />

pra eles, fazendo um trabalho mesmo <strong>de</strong> campo com as meninas e foi a<br />

partir <strong>de</strong>sse momento, esse contato maior que a gente começou a organizar<br />

mesmo uma pesquisa, se as meninas gostariam que existisse uma<br />

associação voltada pra classe, pra categoria, pra melhorar a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

vida, se elas participariam. Aí houve uma pesquisa realmente e a maioria<br />

gostaria que tivesse uma associação voltada pra melhoria da classe. E aí foi<br />

aquela luta toda, discriminação pra registrar em cartório. E aí a Aprosba<br />

nasceu junto com ajuda <strong>de</strong> alguns grupos que foi o GLB e o CBAA que <strong>de</strong>u<br />

a maior força pra gente e a gente ficou mais ou menos um.. não, dois anos<br />

com esses grupos e <strong>de</strong>pois houve um <strong>de</strong>svínculo com esses grupos e a gente<br />

tá andando sozinha.<br />

A existência <strong>de</strong> várias outras associações das chamadas profissionais do sexo em<br />

outros estados foi um fator motivador <strong>para</strong> as prostitutas. Realizaram-se intercâmbios com<br />

outras associações, quando foram obtidas informações a respeito do que significa uma<br />

associação das profissionais do sexo. A partir daí, nesse mesmo ano, 1997, foi criado o<br />

estatuto, sendo eleitos os membros da diretoria, que contava também com a participação <strong>de</strong><br />

pessoas que não exerciam a prostituição. Além disso, no estatuto, não havia restrições<br />

quanto ao sexo do participante.<br />

Po<strong>de</strong>–se afirmar que a associação surgiu conduzida por agentes vinculados ao<br />

movimento <strong>de</strong> afirmação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sexual, os quais se mobilizaram <strong>para</strong> o<br />

questionamento da relação inequívoca entre Aids e homossexualida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ram início a<br />

projetos <strong>de</strong> educação <strong>para</strong> prevenção da Aids. A consolidação da associação foi<br />

acontecendo no esteio das ações <strong>de</strong>sses grupos que já estavam instituídos. Contato com a<br />

mídia na busca <strong>de</strong> visibilida<strong>de</strong>, elaboração <strong>de</strong> projetos que possibilitassem o financiamento<br />

das ações da associação, participação em seminários, congressos e outras ativida<strong>de</strong>s<br />

necessárias <strong>para</strong> a consolidação <strong>de</strong> grupos foram ativida<strong>de</strong>s gerenciadas pelos<br />

coor<strong>de</strong>nadores que pertenciam às entida<strong>de</strong>s já citadas.


Um momento <strong>de</strong> ruptura se <strong>de</strong>u quando o Grupo Lésbico da Bahia (GLB), que se<br />

encontrava atrelado ao Grupo Gay da Bahia, resolveu buscar sua “in<strong>de</strong>pendência”. A<br />

Aprosba escolheu ficar associada ao GLB. 28 A partir daí os membros da Aprosba passaram<br />

a estar submetidos ao gerenciamento do GLB, que coor<strong>de</strong>nava e assessorava os projetos,<br />

cabendo às prostitutas somente o papel <strong>de</strong> educadoras e representantes “legais” e<br />

simbólicas da associação. A falta <strong>de</strong> informação e <strong>de</strong> formação necessárias <strong>para</strong> os<br />

procedimentos que fazem estabelecer e funcionar essas organizações, talvez possa ser<br />

consi<strong>de</strong>rada o fator principal que permitiu que, em relação ao “lugar” <strong>de</strong>stinado a cada<br />

membro da instituição, coubesse às prostitutas aquele que compete cumprir as<br />

<strong>de</strong>terminações dos melhores posicionados, que barganham a partir <strong>de</strong> uma competência<br />

adquirida nos anos <strong>de</strong> “militância”. Naquele momento participavam do funcionamento da<br />

Aprosba duas representantes do Grupo Lésbico da Bahia, Fátima, Marilene, Celina —que<br />

também foi multiplicadora do GAPA/BA e foi convidada por Fátima e Marilene a<br />

participar da instituição, <strong>de</strong>pois que a Aprosba foi fundada, 29 e uma outra prostituta que<br />

permaneceu na instituição durante mais ou menos um ano.<br />

O contínuo contato com organizações, a participação em encontros e outros eventos,<br />

o contato com representantes <strong>de</strong> instituições, que são bastante favoráveis aos objetivos da<br />

associação, foram fazendo com que as prostitutas adquirissem uma certa “segurança”. Elas<br />

começaram a questionar os lugares que lhes eram <strong>de</strong>stinados. E, assim, a Aprosba <strong>de</strong>cidiu<br />

buscar sua in<strong>de</strong>pendência do Grupo Lésbico da Bahia, dando o primeiro passo com a<br />

elaboração <strong>de</strong> projetos <strong>para</strong> a concorrência do Ministério da Saú<strong>de</strong>. Tendo sido aprovado<br />

um dos projetos iniciou-se assim, em 2001, uma nova fase na constituição da Aprosba. Foi<br />

<strong>de</strong> fundamental importância <strong>aqui</strong> a parceria com Pathfin<strong>de</strong>r, uma organização internacional<br />

com uma filial no Brasil. Esta instituição possibilitou a organização estrutural da Aprosba<br />

que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2001, funciona <strong>de</strong> forma não atrelada a nenhum outro grupo e em parceria com<br />

várias outras instituições.<br />

Mas quem <strong>de</strong>sejava realmente uma associação? De quem foi a iniciativa? Se<br />

recapitularmos o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> projeto <strong>para</strong> prevenção das DST/Aids entre prostitutas<br />

28 De acordo com Fátima o Grupo Lésbico da Bahia esteve mais junto da Associação <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua fundação.<br />

Para ela, houve com o GLB a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um aprendizado sobre os procedimentos relativos ao<br />

gerenciamento <strong>de</strong> projetos e da instituição (Transcrição <strong>de</strong> material <strong>de</strong> registro <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> campo)<br />

29 Celina, Fátima e Marilene e permanecem juntas até o momento sendo as figuras chave da instituição.


difundido entre as ONGs/Aids, pelo <strong>Programa</strong> Nacional <strong>de</strong> Aids, <strong>para</strong> captação <strong>de</strong> recursos<br />

em meados da década <strong>de</strong> 90, veremos que ali estava incluso, como um dos seus itens a<br />

proposta <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> associações <strong>de</strong> prostitutas através <strong>de</strong>sses projetos. Assim, é através<br />

do percurso <strong>de</strong> projetos <strong>para</strong> prevenção das DST/Aids entre prostitutas, <strong>de</strong>senvolvidos por<br />

ONGs/Aids, que surge a Aprosba. Não se po<strong>de</strong> dizer, portanto, que foi resultado da<br />

organização <strong>de</strong> prostitutas <strong>para</strong> reivindicarem seus direitos, como aconteceu com as<br />

associações que surgiram no bojo <strong>de</strong> um movimento na década <strong>de</strong> 80. Assim, como tantas<br />

outras iniciativas, como lembra Gabriela Leite, a criação da Aprosba foi o resultado<br />

esperado <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> projetos do governo que são preenchidos e <strong>de</strong>senvolvidos pelas<br />

ONGs/Aids na busca <strong>de</strong> financiamentos.<br />

Mesmo estando o surgimento da associação atrelado a um projeto com<br />

financiamento do governo fe<strong>de</strong>ral, é necessário reconhecer que ele se <strong>de</strong>senvolveu no seio<br />

<strong>de</strong> uma instituição que se <strong>de</strong>stacava pela organização em torno da afirmação dos<br />

homossexuais. Como já foi dito, o Centro Baiano Anti Aids (CBAA) surgiu vinculado ao<br />

Grupo Gay da Bahia, gerenciado por Luiz Mott e coor<strong>de</strong>nado por uma militante do GLB<br />

(Grupo Lésbico da Bahia), que também funcionava atrelado ao GGB. Neste sentido<br />

Marilene e Fátima inseriram-se em uma certa “tradição” <strong>de</strong> organização política <strong>de</strong> grupos<br />

que lutavam pela afirmação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sexual consi<strong>de</strong>rada marginal. Esse dado<br />

torna-se fundamental <strong>para</strong> a construção <strong>de</strong> uma visão “crítica” dos comportamentos<br />

dominantes em relação às práticas <strong>de</strong> prostituição por parte das duas li<strong>de</strong>ranças e seus<br />

membros.<br />

1.3.1. Uma nova fase<br />

A Associação das Prostitutas da Bahia (APROSBA) foi fundada em 1997 30 , e é uma<br />

organização da socieda<strong>de</strong> civil (ONG – Organização Não-Governamental) sem fins<br />

lucrativos A instituição se apresenta como “formada por um grupo <strong>de</strong> pessoas interessadas<br />

30 De 1997 até 2004 a Aprosba era <strong>de</strong>nominada Associação das Profissionais do Sexo da Bahia. A partir <strong>de</strong><br />

2004, ela passou a ser <strong>de</strong>nominada Associação das Prostitutas da Bahia. De acordo com a coor<strong>de</strong>nadora geral<br />

da instituição a mudança se <strong>de</strong>ve à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> afirmar a prática da prostituição e não escondê-la atrás da<br />

“rótulos” como “profissionais do sexo”. Esta mudança vai ser discutida <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>talhada no capítulo 3.


no bem-estar das prostitutas que batalham no Estado da Bahia”. E afirma como sua<br />

“missão”: “[...] batalhar <strong>para</strong> a educação das mulheres profissionais do sexo da Bahia<br />

valorizando-as como cidadãs, conscientes dos seus direitos e <strong>de</strong>veres, e investindo na<br />

capacitação e organização da classe <strong>para</strong> sua inclusão na socieda<strong>de</strong>”. 31 A Aprosba<br />

<strong>de</strong>senvolve suas ações em estreita colaboração com o <strong>Programa</strong> nacional <strong>de</strong> DST/Aids do<br />

Ministério da Saú<strong>de</strong> 32 , que é o maior financiador <strong>de</strong> seus projetos. 33 . Também atua através<br />

<strong>de</strong> doações, parcerias e trabalhos voluntários.<br />

Como foi dito anteriormente, em 2001 a Aprosba se se<strong>para</strong> do Grupo Lésbico da<br />

Bahia (GLB) e iniciou-se uma nova fase da instituição. Ela passou a ser constituída <strong>de</strong><br />

quatro prostitutas: as duas fundadoras, Fátima e Marilene, Celina e uma voluntária. Esta<br />

formação permaneceu durante alguns meses até outros atores passarem a fazer parte da<br />

instituição, como mostraremos mais a frente. Também já dissemos que foi <strong>de</strong> fundamental<br />

importância neste momento a parceria com Pathfin<strong>de</strong>r que já tinha contatos informais com<br />

membros da Aprosba em seminários e encontros. Esta parceria dura até hoje. Assessorados<br />

pela organização, membros da Aprosba passaram por formações como o “planejamento<br />

estratégico”, “capacitação <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças”, “cursos <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong> projetos” e outros<br />

treinamentos. Esta formação foi visivelmente percebida nas posturas dos membros da<br />

Aprosba, que passaram a se sentir mais capacitados, portanto mais seguros <strong>para</strong> gerenciar a<br />

instituição e se assumirem como atores centrais. Mesmo antes <strong>de</strong>sta fase foi também visível<br />

como o nível <strong>de</strong> consumo das prostitutas que são membros da Aprosba aumentou<br />

consi<strong>de</strong>ravelmente: passaram a se vestir melhor, cuidar mais da aparência, sendo que uma<br />

das mulheres adquiriu um carro, por exemplo.<br />

Depois <strong>de</strong> se <strong>de</strong>svincular do Grupo Lésbico da Bahia a Aprosba, <strong>para</strong>lelo às<br />

ativida<strong>de</strong>s junto a Pathfin<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>cidiu participar da concorrência pública do Ministério da<br />

Saú<strong>de</strong> <strong>para</strong> a seleção <strong>de</strong> projetos comunitários das organizações não governamentais <strong>de</strong><br />

prevenção das DST/AIDS. Surgiu aí uma dificulda<strong>de</strong>, pois até então as duas li<strong>de</strong>ranças da<br />

associação, Fátima e Marilene, não tinham a experiência em elaborar projetos e não<br />

31 Dado do material informativo no formato <strong>de</strong> fol<strong>de</strong>r produzido em 2002 e que tem a seguinte “chamada”:<br />

“História <strong>de</strong> uma organização que luta pelo direito a igualda<strong>de</strong>. No capítulo 4 <strong>de</strong>ste estudo vamos apresentar e<br />

discutir <strong>de</strong> forma mais <strong>de</strong>talhada os materiais informativos produzidos pela Aprosba.<br />

32 Dados contidos no material informativo da instituição no formato <strong>de</strong> fol<strong>de</strong>r que tem como slogan<br />

“Camisinha não esqueça: na batalha, este ainda é o melhor programa” s/data<br />

33 Projetos financiados pelo Ministério da Saú<strong>de</strong>: “Trottoir”, “Mulheres da vida”, “Quando a noite cai”,<br />

“Beira <strong>de</strong> estrada.


dominavam os procedimentos básicos <strong>de</strong> informática. Elas então nos pediram ajuda na<br />

elaboração dos projetos, e assim foram elaborados e enviados <strong>para</strong> concorrência pública do<br />

Ministério da Saú<strong>de</strong> dois projetos <strong>de</strong> prevenção das DST/AIDS: o projeto “O canto das<br />

sereias”: prevenção <strong>de</strong> DSTs/HIV <strong>para</strong> mulheres profissionais do sexo da orla marítima <strong>de</strong><br />

Salvador-BA”, e o projeto “Beira <strong>de</strong> Estrada: prevenção <strong>de</strong> DST/HIV <strong>para</strong> caminhoneiros<br />

do Município <strong>de</strong> Camaçari da região Metropolitana <strong>de</strong> Salvador-Ba”. Este último foi, entre<br />

os dois, o que ganhou a concorrência. O objetivo do projeto foi assim <strong>de</strong>finido: <strong>de</strong>senvolver<br />

ativida<strong>de</strong>s preventivas com intervenções comportamentais <strong>para</strong> adoção <strong>de</strong> práticas sexuais<br />

comerciais mais seguras <strong>para</strong> os caminhoneiros e mulheres profissionais do sexo <strong>de</strong><br />

Camaçari (postos <strong>de</strong> gasolina) — região metropolitana <strong>de</strong> Salvador. As seguintes ativida<strong>de</strong>s<br />

estavam previstas:<br />

a) contatar “corpo-a corpo” os caminhoneiro e mulheres profissionais do sexo <strong>de</strong>ssa área<br />

<strong>para</strong> repasse <strong>de</strong> informações corretas sobre a prática do sexo mais seguro;<br />

b) aplicar questionário <strong>para</strong> testar o conhecimento sobre HIV/AIDS em caminhoneiros e<br />

mulheres profissionais do sexo <strong>de</strong>ssa área;<br />

c) distribuir preservativos junto a essa população.<br />

d) produzir e distribuir material IEC (Informação, Educação, Comunicação);<br />

e) educar corretamente sobre saú<strong>de</strong> e educação sexual;<br />

f) cadastrar os caminhoneiro e mulheres profissionais do sexo contatados nessa área.<br />

As ativida<strong>de</strong>s relacionadas ao projeto se <strong>de</strong>senvolveram entre <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2001 e<br />

<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2002. A coor<strong>de</strong>nação do projeto ficou a cargo <strong>de</strong> Marilene. Pela primeira vez,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a Aprosba foi fundada, um projeto esteve sob a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />

prostituta. Até então, tanto a coor<strong>de</strong>nação como outras funções mais especializadas, como<br />

assistente <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação, ficavam a cargo <strong>de</strong> agentes vinculadas ao GLB, que eram<br />

consi<strong>de</strong>radas mais capacitadas <strong>para</strong> coor<strong>de</strong>nar os projetos. A equipe que <strong>de</strong>senvolveu as<br />

ativida<strong>de</strong>s do projeto era formada por cinco prostitutas e uma agente externa que não<br />

exercia a prática da prostituição e trabalhava como voluntária As ocupações eram as<br />

seguintes: Marilene coor<strong>de</strong>nadora, Fátima assessora <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação, e três prostitutas que<br />

naquele momento estavam se aproximando da Aprosba, mas ainda com vínculos informais.


Duas <strong>de</strong>las, Andréia e Telma iriam <strong>de</strong>pois fazer parte da associação e a outra se afastaria da<br />

instituição 34 .<br />

O Projeto “Beira <strong>de</strong> estrada: prevenção das DSTs/AIDS entre caminhoneiros”<br />

abrangia postos <strong>de</strong> gasolina da região <strong>de</strong> Camaçari , on<strong>de</strong> notadamente existe a prática da<br />

prostituição. Em um primeiro momento foi realizado o mapeamento da área, i<strong>de</strong>ntificando<br />

os postos que <strong>de</strong>veriam ser interveniados. Os critérios adotados <strong>para</strong> seleção dos postos<br />

foram: presença <strong>de</strong> caminhoneiros que fazem <strong>para</strong>das, presença <strong>de</strong> mulheres que trabalham<br />

com a prostituição, localização que possibilite uma maior circulação <strong>de</strong> caminhões. Como<br />

Fátima e Marilene conheciam esta área não foi houve dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> selecionar os locais.<br />

Em um segundo momento foram realizadas visitas objetivando conhecer o universo dos<br />

caminhoneiros, e a partir daí, iniciar o trabalho <strong>de</strong> informação <strong>para</strong> prevenção das<br />

DSTs/AIDS, com distribuição <strong>de</strong> camisinhas e material informativo. As visitas mensais<br />

foram realizadas pela equipe, sendo muito bem aceitas pelos caminhoneiros. Vale ressaltar<br />

que o apoio da gerência dos postos foi muito importante <strong>para</strong> o acesso aos locais. Foi<br />

constatado que o nível <strong>de</strong> informação sobre as DSTs/AIDS era muito baixo entre esses<br />

profissionais, mas que também havia uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se orientar melhor através <strong>de</strong><br />

informações. Foi observado que presença das prostitutas nos postos é mais freqüente<br />

durante à noite, e que os caminhoneiros costumam freqüentar as casas <strong>de</strong> prostituição<br />

próximas às suas <strong>para</strong>das.<br />

Foram produzidos, como uma das ativida<strong>de</strong>s do projeto, mil fol<strong>de</strong>rs abordando as<br />

DST/AIDS e ensinando a colocar corretamente a camisinha, com seguinte slogan: “Siga em<br />

frente com segurança: use sempre camisinha”. Também foram produzidos quinhentos<br />

bonés on<strong>de</strong> foram impressos a imagem e slogan do fol<strong>de</strong>r.<br />

O <strong>de</strong>safio maior do primeiro projeto gerenciado pelas prostituas pô<strong>de</strong> ser<br />

i<strong>de</strong>ntificado como o domínio <strong>de</strong> certos conhecimentos: usar corretamente o computador;<br />

fazer prestações <strong>de</strong> contas do projeto <strong>para</strong> o Ministério da Saú<strong>de</strong>, e elaborar os relatórios<br />

exigidos. Tais dificulda<strong>de</strong>s foram sendo superadas no fazer cotidiano, informalmente, com<br />

auxílio <strong>de</strong> agentes externos que mantinham vínculos com a instituição. Já em relação ao<br />

trabalho <strong>de</strong> campo, as experiências anteriores <strong>de</strong> Fátima e Marilene como multiplicadoras<br />

34 Mais adiante, neste capítulo, vamos discorrer sobre os membros, cargo e funções das pessoas envolvidas<br />

nas ativida<strong>de</strong>s da Aprosba, quando esclareceremos o processo <strong>de</strong> formação das multiplicadoras <strong>de</strong> informação<br />

que serão treinadas pela Aprosba e passarão a fazer parte da instituição.


<strong>de</strong> informação lhes forneceram um repertório apropriado <strong>para</strong> esta ação, no que diz respeito<br />

à prevenção das DST/AIDS. Além disso, os caminhoneiros fazem parte <strong>de</strong> um universo<br />

bem conhecido das prostitutas, o que permitiu elas se sentirem perfeitamente à vonta<strong>de</strong>.<br />

Assim sendo, Fátima e Marilene conseguiam envolver os caminhoneiros e gerentes <strong>de</strong><br />

postos <strong>de</strong> foram bastante espontânea. Nas visitas que acompanhamos percebia-se um misto<br />

<strong>de</strong> espanto, admiração e incredulida<strong>de</strong> dos caminhoneiros diante <strong>de</strong> mulheres que se<br />

<strong>de</strong>claravam prostitutas, participantes <strong>de</strong> uma associação e ainda informadoras sobre<br />

doenças sexualmente transmissíveis. A pergunta mais freqüente entre os caminhoneiros era:<br />

“Vocês são mesmo prostitutas?”.<br />

Paralelo ao <strong>de</strong>senvolvimento do projeto “Beira <strong>de</strong> estrada”, três projetos financiados<br />

pelo Ministério da Saú<strong>de</strong>: “Trottoir”, “Mulheres da vida”, e “Quando a noite cai”, que<br />

tiverem início quando a Aprosba estava atrelada ao Grupo Lésbico da Bahia (GLB), foram<br />

renovados, tendo as prostitutas na coor<strong>de</strong>nação.<br />

Uma outra ativida<strong>de</strong> que se apresentou, no início, como um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio <strong>para</strong><br />

Aprosba, na sua fase em questão, foi o treinamento e posterior gerenciamento <strong>de</strong><br />

multiplicadoras <strong>de</strong> informação. Em setembro <strong>de</strong> 2001, em parceria com a Coor<strong>de</strong>nação<br />

Municipal <strong>de</strong> DST e AIDS, foram treinadas oito prostitutas, selecionadas por prostitutas da<br />

Aprosba <strong>para</strong> assumirem a função <strong>de</strong> multiplicadoras <strong>de</strong> informação, que <strong>de</strong>pois passou a<br />

ser <strong>de</strong>nominada educadoras <strong>de</strong> pares. Andréia e Telma, que partici<strong>para</strong>m do projeto “Beira<br />

<strong>de</strong> estrada”, estavam entre as oito mulheres. O treinamento, <strong>de</strong> 20 horas, foi realizado por<br />

prostitutas da Aprosba e agentes da Secretária Municipal <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e buscou trabalhar, <strong>de</strong><br />

acordo com Fátima: “o que é um agente multiplicador; como abordar uma profissional do<br />

sexo <strong>para</strong> repasse <strong>de</strong> informações, a auto-estima e cidadania, planejamento familiar, sexo<br />

mais seguro, direitos e <strong>de</strong>veres”.<br />

Acompanhamos, por um período <strong>de</strong> três meses, a presença das oito educadoras <strong>de</strong><br />

pares formadas pela Aprosba. Neste período, foi criado <strong>para</strong> Izete, uma das educadoras, o<br />

cargo <strong>de</strong> monitora. Ou seja, ela passou a ter a função <strong>de</strong> monitorar o trabalho das outras<br />

sete educadoras. Este cargo, que correspon<strong>de</strong> à satisfação <strong>de</strong> certos padrões <strong>de</strong> conduta e<br />

<strong>de</strong>sempenho, instituiu uma hierarquia entre as educadoras que não foi bem aceita por elas,<br />

pois foi consi<strong>de</strong>rada um meio <strong>de</strong> uma “colega” se impor à outras, ou “se achar melhor que<br />

as outras”. Por outro lado, ocupar o cargo <strong>de</strong> monitora implicou, naquele momento, o


estabelecimento <strong>de</strong> um vínculo <strong>de</strong> confiança, fazendo com que a monitora fosse ficando<br />

mais próxima da instituição. A carreira <strong>de</strong> Izete seguiu as seguintes etapas: no início <strong>de</strong> sua<br />

participação na Aprosba ela atuava como voluntária. Após passar por um treinamento<br />

passou a educadora <strong>de</strong> pares e daí a monitora das educadoras. Nesse processo ela foi alvo<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança por parte da equipe dirigente a quem estava subordinada, e por parte das<br />

educadoras que relutavam em se submeter a ela. Ficava bem evi<strong>de</strong>nte que ela ainda não<br />

“pertencia” à instituição quando por meio <strong>de</strong> pisca<strong>de</strong>las, cochichos e gestos, membros da<br />

instituição indicavam que <strong>de</strong>terminados assuntos e informações não <strong>de</strong>viam ser partilhados<br />

com ela. 35 Como monitora Izete foi passando a ter um papel mais central na instituição<br />

participando <strong>de</strong> formações, encontros, e coor<strong>de</strong>nando reuniões. Finalmente ela assumiu a<br />

direção da “Gabriela: Associação das Prostitutas <strong>de</strong> Camaçari”. Nesse percurso mudou a<br />

maneira <strong>de</strong> se vestir, passando a usar “terninhos”. Em 2004 Izete participou do I Seminário<br />

<strong>de</strong> Sustentabilida<strong>de</strong> organizado pela Aprosba, como membro da instituição e palestrante.<br />

Este evento efetiva a sua mudança <strong>de</strong> status: havia se tornado membro da Aprosba. 36<br />

Acompanhar o percurso <strong>de</strong> Izete permite perceber como as práticas institucionais têm um<br />

papel fundamental na transformação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Strauss (1999, p.104) enfatiza que<br />

quando os caminhos <strong>de</strong>ssa transformação são institucionalizados o sujeito po<strong>de</strong> balizar seu<br />

progresso, observar a distância a que chegou e quanto tem ainda a percorrer. A trajetória da<br />

monitora ilustra bem essa situação. Ela po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada aquela que passou no teste da<br />

instituição. As análises <strong>de</strong> instituições realizadas por Goffman ( 2000) e Strauss (1999) nos<br />

lembram que uma instituição possui meios regularizados <strong>de</strong> testar e <strong>de</strong>safiar seus membros.<br />

Se, por exemplo, um provável membro estiver estreitamente i<strong>de</strong>ntificado com a instituição<br />

alguns testes serão <strong>de</strong>cisivos <strong>para</strong> que tenha auto-respeito e o reconhecimento dos membros<br />

35 Na transição <strong>de</strong> um grupo <strong>para</strong> outro, significativos problemas relativos à vinculação <strong>de</strong>vem ser<br />

enfrentados. Segundo Schutz (1979, p.88), <strong>para</strong> o sujeito o padrão cultural do novo grupo não tem a<br />

autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um sistema comprovado <strong>de</strong> receitas, e isso, se por nenhum outro motivo, porque ele não<br />

participa da tradição histórica vivida através da qual o grupo se formou. “Túmulos e reminiscências não<br />

po<strong>de</strong>m ser nem transferidos nem conquistados”. O estranho, portanto, aproxima-se do outro grupo como<br />

um recém chegado no sentido literal do termo. “Do ponto <strong>de</strong> vista do grupo, ele é um homem sem<br />

história”.<br />

36 Frente ao nervosismo <strong>de</strong> Izete, que quase a impedia <strong>de</strong> falar, quando está expondo a criação da associação<br />

<strong>de</strong> Camaçari Fátima comenta: em tom jocoso “É a primeira vez <strong>de</strong>la”, o que provoca risos. Strauss lembra que<br />

“[...] é praticamente necessário um período <strong>de</strong> tolerância logo <strong>de</strong>pois da admissão formal ao novo status. Essa<br />

tolerância é racionalizada com frases como ‘isso leva tempo’, ‘ele ainda não está totalmente integrado nele’,<br />

‘todos nós cometemos erros no começo, até apren<strong>de</strong>rmos que’[ ...]”( 1999, p.111).


<strong>de</strong> que superou o <strong>de</strong>safio. No caso da monitora po<strong>de</strong>mos dizer que ela passou pelos testes<br />

da Aprosba 37 .<br />

De acordo com Strauss (1999, p. 109), “A afiliação a um grupo ou estrutura social<br />

implica, inevitavelmente, a passagem <strong>de</strong> um status <strong>para</strong> outro. Essas passagens são<br />

institucionalizadas, <strong>de</strong> modo que os indivíduos se movem por entre eles numa seqüência<br />

or<strong>de</strong>nada”. Assim, conseguir obter um status po<strong>de</strong> exigir do sujeito que tenha uma certa<br />

experiência, e se satisfaçam certos padrões <strong>de</strong> conduta e <strong>de</strong>sempenho. Para Strauss (1999),<br />

a estabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada estrutura social repousa em gran<strong>de</strong> parte numa<br />

pre<strong>para</strong>ção a<strong>de</strong>quada <strong>para</strong> essas etapas seqüenciais. Motivações apropriadas a um status<br />

anterior — e usualmente inferior — <strong>de</strong>vem ser abandonadas ou transmutadas, e novas<br />

motivações <strong>de</strong>vem ser acrescidas <strong>para</strong> substituir as antigas. “[...] o movimento <strong>de</strong> passagem<br />

<strong>de</strong> um status <strong>para</strong> outro, bem como a frustração <strong>de</strong> ter <strong>de</strong> permanecer involuntariamente<br />

num status, <strong>de</strong>termina as condições <strong>para</strong> a mudança e o <strong>de</strong>senvolvimento das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s”<br />

(STRAUSS, 1999, p.115). No que diz respeito à situação <strong>de</strong> Izete, como das <strong>de</strong>mais<br />

prostitutas que passaram a fazer parte da Aprosba po<strong>de</strong>mos dizer que houve sim uma<br />

mudança <strong>de</strong> status, e que foi necessário a satisfação <strong>de</strong> certos padrões <strong>de</strong> conduta e<br />

<strong>de</strong>sempenho. No entanto não po<strong>de</strong>mos dizer que tais mudanças, na experiência das<br />

prostitutas da Aprosba, foram altamente institucionalizadas. Consi<strong>de</strong>ramos que a<br />

experiência dos membros da instituição é marcada pelo estigma da prostituição, e, por mais<br />

que estes o enfrentem, situações cotidianas envolvendo este enfrentamento são<br />

caracterizadas por uma ambigüida<strong>de</strong> que leva as prostitutas envolvidas com a Aprosba a<br />

relativizar a importância dos procedimentos institucionais, quando não os <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rando<br />

(Situações estas que vamos analisar no capítulo 2 <strong>de</strong>ste trabalho).<br />

A educadora <strong>de</strong> pares <strong>de</strong>senvolve as seguintes ativida<strong>de</strong>s nas áreas <strong>de</strong> prostituição<br />

<strong>de</strong> atuação da Aprosba, pelas quais recebe uma remuneração <strong>de</strong> R$80,00 mensais:<br />

a) aplicar questionário, quando algum projeto <strong>de</strong>senvolvido pela instituição “prevê” uma<br />

<strong>de</strong>terminada coleta <strong>de</strong> dados, como por exemplo, no projeto “Beira <strong>de</strong> Estrada”, em que<br />

estava previsto um questionário <strong>para</strong> saber sobre o conhecimento sobre HIV/AIDS entre os<br />

caminhoneiros daquela área;<br />

37 Disciplina pessoal; falar em público; assumir na mídia a condição <strong>de</strong> prostituta; quando necessário, se<br />

dispor a realizar trabalhos voluntários. Estas são algumas “provas” pelas quais os candidatos a membros da<br />

instituição <strong>de</strong>vem passar.


) realizar as chamada “oficina <strong>de</strong> sexo mais seguro”, que objetiva a <strong>de</strong>monstração dos<br />

procedimentos corretos <strong>de</strong> se colocar e retirar a camisinha masculina e a camisinha<br />

feminina. É necessário <strong>para</strong> a realização <strong>de</strong>stas oficinas materiais como próteses penianas,<br />

mo<strong>de</strong>los pélvicos, lubrificantes e camisinhas;<br />

c) distribuir camisinha;<br />

d) distribuir materiais educativos e <strong>de</strong> informação;<br />

e) fazer reuniões <strong>para</strong> esclarecimentos sobre as DST/Aids e sobre a Aprosba.<br />

Como foi dito anteriormente, um grupo <strong>de</strong> oito educadoras já participou da<br />

instituição. Das oito uma, Andréia, assumiu um cargo <strong>de</strong> secretária e ficou bastante<br />

envolvida com a instituição, e outra, Izete, assumiu o cargo <strong>de</strong> monitora. Seis mulheres<br />

restantes ficaram, então, encarregadas, <strong>de</strong> forma restrita, às ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> campo 38 . Este<br />

grupo <strong>de</strong> seis mulheres caracterizava-se pela falta <strong>de</strong> coesão. Presenciamos diversas vezes,<br />

entre elas, nas reuniões que acontecem na se<strong>de</strong> da instituição, agressões verbais e ameaças<br />

<strong>de</strong> agressões físicas. O “bate-boca” relativo ao não cumprimento das tarefas com acusações<br />

mútuas, e situações <strong>de</strong> conflito que elas vivenciavam na prática da prostituição, e que eram<br />

trazidas <strong>para</strong> a se<strong>de</strong> da Aprosba, constituíam parte da rotina institucional. Havia, por parte<br />

<strong>de</strong>las, muitas reclamações relativas ao material que a Aprosba disponibilizava <strong>para</strong> fazerem<br />

o trabalho nas áreas. Como achavam <strong>de</strong> difícil compreensão e manipulação, usavam esse<br />

material <strong>de</strong> forma incorreta. Por outro lado, as coor<strong>de</strong>nadoras faziam duras críticas às<br />

educadoras relativas à falta <strong>de</strong> interesse, relatórios mal-feitos, falta <strong>de</strong> empenho em trazer<br />

mulheres <strong>para</strong> as reuniões que acontecem todas as terças-feiras na se<strong>de</strong> da instituição, e<br />

inexistência <strong>de</strong> reuniões nas áreas <strong>de</strong> atuação da Aprosba <strong>para</strong> realização <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s. Nas<br />

reuniões com as educadoras podia-se observar um processo <strong>de</strong> negociação envolvendo<br />

coor<strong>de</strong>nadoras, monitora e educadoras. Aí eram <strong>de</strong>stacadas as ações mais significativas<br />

<strong>para</strong> a instituição envolvendo educadora e monitora. Quando, por exemplo, a coor<strong>de</strong>nadora<br />

geral tomou a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfazer este grupo <strong>de</strong> educadoras e organizar outro grupo, pois<br />

aquele vinha se mostrando inoperante, a monitora diante <strong>de</strong> tal situação pediu a<br />

permanência <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>las justificando a <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> interesse por parte <strong>de</strong> tal<br />

educadora, como o cumprimento das tarefas, assiduida<strong>de</strong>, e pontualida<strong>de</strong>. Na discussão<br />

também foi reconhecido o importante papel <strong>de</strong> uma outra educadora, que já tinha sido<br />

38 Todos os membros da Aprosba participam dos trabalhos <strong>de</strong> campo além <strong>de</strong> atribuições específicas na<br />

instituição, como veremos.


afastada anteriormente por ser consi<strong>de</strong>rada um membro “<strong>de</strong>sorganizador” do grupo. No<br />

entanto foi lembrado que, apesar da incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal educadora no estabelecimento <strong>de</strong><br />

uma relação não conflitiva com as colegas, sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> arregimentar mulheres <strong>para</strong><br />

as reuniões e seu reconhecimento da importância do trabalho da instituição eram<br />

indiscutíveis. Como resultado o grupo <strong>de</strong> educadora foi <strong>de</strong>sfeito e permaneceram as duas<br />

educadoras que tiveram suas ações reconhecidas como importantes <strong>para</strong> a instituição: Mara<br />

e Telma, que conquistaram o lugar <strong>de</strong> membros da Aprosba.<br />

1.3.2. O funcionamento interno da instituição<br />

No centro da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salvador, na rua Virgílio Damásio, em uma pequena sala no<br />

quarto andar do velho Edifício Bonfim, funciona a se<strong>de</strong> da Aprosba. Para se chegar até o<br />

andar on<strong>de</strong> funciona a se<strong>de</strong> pega-se um antigo e ruidoso elevador. O também antigo<br />

ascensorista mostra seu risinho malicioso diante das mulheres da Aprosba que entram e<br />

saem do elevador. Quando o elevador chega no quarto andar ele abre uma gra<strong>de</strong> <strong>de</strong> ferro<br />

que serve <strong>de</strong> proteção entre o elevador e o fosso do prédio. As “mulheres” saem sempre<br />

chamando a atenção pelas gargalhadas e gracejos que o alegram bastante. Neste andar<br />

funcionam também outras salas com os mais diferentes serviços: vendas <strong>de</strong> imóveis,<br />

contabilida<strong>de</strong>, elaboração <strong>de</strong> próteses <strong>de</strong>ntárias, por exemplo. Em uma <strong>de</strong>ssas salas, que foi<br />

anteriormente ocupada pela Aprosba quando estava junto com o Grupo Lésbico da Bahia,<br />

funciona o Grupo Palavra <strong>de</strong> Mulher. A sala da Aprosba atualmente está divida em dois<br />

ambientes. Quando passamos por uma porta protegida por uma gra<strong>de</strong> <strong>de</strong> ferro e entramos<br />

na sala, nos <strong>de</strong><strong>para</strong>mos com um ambiente on<strong>de</strong> estão espalhadas almofadas pelo chão que<br />

ficam na frente e muito próximas à estante (do lado esquerdo <strong>de</strong> quem entra) <strong>de</strong> livros dos<br />

mais variados assuntos, e materiais informativos da Aprosba e <strong>de</strong> várias outras instituições.<br />

Do lado direito há um armário on<strong>de</strong> se guarda documentos e ficam entulhadas caixas<br />

contendo camisinhas. Na pare<strong>de</strong> encontra-se um painel com recortes <strong>de</strong> jornal que<br />

estampam fotos <strong>de</strong> Marilene sendo recebida pelo prefeito da cida<strong>de</strong>, e outros recortes em<br />

que Fátima aparece participando <strong>de</strong> manifestações, o que confere a elas um capital<br />

simbólico.


Seguindo em frente, formando um outro ambiente, estão dispostos sobre três mesas,<br />

uma encostada na outra, dois computadores, impressoras, xerox, telefone e fax. Fazendo o<br />

limite entre um ambiente e outro encontram-se uma gela<strong>de</strong>ira e banquinhos, que ficam<br />

guardados, e encaixados um sobre o outro <strong>para</strong> economizar espaço. A relação com os<br />

vizinhos <strong>de</strong> sala é bastante informal. A se<strong>de</strong> funciona das 9 às 12h e das 14 às 18 h. No<br />

intervalo do almoço a sala se transforma em ambiente pessoal on<strong>de</strong> se faz a refeição,<br />

<strong>de</strong>ixada na gela<strong>de</strong>ira no início do expediente, e se permite espalhar um colchonete no chão<br />

<strong>para</strong> um <strong>de</strong>scanso.<br />

A Aprosba possui nove membros Quatro fazem parte da diretoria executiva e do<br />

conselho fiscal; três formam o grupo das educadoras <strong>de</strong> pares; e dois são do grupo dos<br />

prestadores <strong>de</strong> serviço, formado por uma voluntária e um assessor <strong>de</strong> comunicação que não<br />

exercem a prática da prostituição. Denominaremos <strong>de</strong> militantes aqueles membros que<br />

exercem a prática da prostituição. De acordo com Marilene, a Aprosba tem hoje 2000<br />

prostitutas cadastradas. Já o número <strong>de</strong> associados se resume aos membros da instituição<br />

que exercem a prática da prostituição. Ela explica a diferença entre estar cadastrada e ser<br />

associada:<br />

Cadastradas são aquelas meninas que ficam associadas, participam e vão<br />

embora, <strong>de</strong>pois aparece <strong>de</strong> novo, e <strong>de</strong>pois não aparece mais então fica<br />

cadastrada. As associadas são aquelas d<strong>aqui</strong> mesmo, sempre estão <strong>aqui</strong><br />

procurando o serviço, estão ajudando, participam <strong>de</strong> alguma maneira. A<br />

gente colocou no estatuto que a associada tem que pagar uma mensalida<strong>de</strong>,<br />

mas na prática não funciona, porque elas não contribuem. A gente tem que<br />

encontrar ainda alguma estratégia <strong>para</strong> que elas paguem, porque aí vai<br />

melhorar ainda mais os serviços oferecidos, né?(Informação verbal) 39<br />

Goffman (2003a) chama atenção <strong>para</strong> o fato <strong>de</strong> que os membros têm posições e<br />

categorias formais diferentes numa instituição, mas a <strong>de</strong>pendência mútua criada pelo fato<br />

<strong>de</strong> que eles pertencem à mesma equipe ten<strong>de</strong> a atravessar as clivagens sociais e estruturais<br />

na instituição. Em relação à equipe ele assim a <strong>de</strong>fine:<br />

[...] po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>finida como um conjunto <strong>de</strong> indivíduos cuja íntima cooperação é<br />

necessária, <strong>para</strong> ser mantida uma <strong>de</strong>terminada <strong>de</strong>finição projetada da situação. Uma<br />

equipe é um grupo mas não um grupo em relação a uma estrutura ou organização<br />

39 Entrevista dada em 16 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2004


social, e sim em relação a uma interação, ou série <strong>de</strong> interações, na qual é mantida a<br />

<strong>de</strong>finição apropriada da situação” (GOFFMAN, 2003a, p. 99).<br />

Quando a prostituta é i<strong>de</strong>ntificada como membro 40 da equipe, observa-se uma reorganização pessoal<br />

que se dá com base no funcionamento da instituição. Um conjunto explícito e formal <strong>de</strong> prescrições <strong>de</strong>vem<br />

ser obe<strong>de</strong>cido, como por exemplo: hora <strong>de</strong> trabalho, tarefas que <strong>de</strong>vem ser <strong>de</strong>sempenhadas por cada um na<br />

sua função, discursos a serem adotados, posturas diante das “não-iniciadas”, e conhecimentos que <strong>de</strong>vem ser<br />

adquiridos. Para que a instituição funcione supõe-se uma certa restrição, um comportamento mais ascético:<br />

não beber durante o expediente, cumprir os horários, assiduida<strong>de</strong> e pontualida<strong>de</strong>. Fazer programa passa a ser<br />

ativida<strong>de</strong> secundária a ser realizada fora do horário do expediente. A assiduida<strong>de</strong> e a pontualida<strong>de</strong> são<br />

comportamentos bastante valorizados. Àquelas a que se impõem as restrições ten<strong>de</strong>m a “fazer parte”, a serem<br />

aceitas pela instituição. Uma militante da diretoria executiva disse ser muito difícil encontrar alguém entre as<br />

mulheres prostitutas em quem se possa confiar, além do reconhecimento da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> alguma<br />

mulher sempre implicar no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> melhor remuneração. Se elas não ganham mais começam a trabalhar<br />

menos, ficam mais <strong>de</strong>sinteressadas e <strong>de</strong>satenciosas, como se o que recebem não seja mais suficiente. Também<br />

eram relatados casos <strong>de</strong> apropriação in<strong>de</strong>vida <strong>de</strong> dinheiro da instituição por parte <strong>de</strong> prostitutas que se<br />

aproximam da Aprosba. As prostitutas membros da diretoria executiva sempre se sentem “traídas” quando<br />

<strong>de</strong>scobrem que o interesse <strong>de</strong> uma prostituta que consegue algum tipo <strong>de</strong> cargo na instituição seja meramente<br />

econômico.<br />

É interessante fazer referência a como a lealda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um candidato a membro é posta<br />

constantemente à prova. Schutz (1979 p. 94) lembra que, com freqüência, a duvidosa<br />

lealda<strong>de</strong> do estranho é, infelizmente, mais do que um preconceito por parte do novo grupo.<br />

Isso é verda<strong>de</strong> especialmente nos casos em que o estranho não se mostra disposto ou capaz<br />

<strong>de</strong> substituir inteiramente o padrão cultural do grupo <strong>de</strong> origem pelo novo. Mas muitas<br />

vezes a acusação <strong>de</strong> <strong>de</strong>slealda<strong>de</strong> se origina da surpresa dos membros do grupo interno com<br />

relação ao fato <strong>de</strong> que o estranho não aceita totalmente seu padrão cultural como estilo <strong>de</strong><br />

vida natural e apropriado, e como a melhor solução possível <strong>para</strong> qualquer problema. Como<br />

afirma Schutz<br />

O estranho é chamado <strong>de</strong> ingrato, já que se recusa a ver que o padrão<br />

cultural que lhe é oferecido; lhe garante abrigo e proteção. Mas essas<br />

pessoas não compreen<strong>de</strong>m que o estranho, no estado <strong>de</strong> transição, não vê<br />

absolutamente esse padrão como abrigo protetor, mas um labirinto, no qual<br />

per<strong>de</strong>u completamente o sentido das coisas”(SCHUTZ,1979 p. 94).<br />

40 A noção <strong>de</strong> membro <strong>aqui</strong> é utilizada na perspectiva <strong>de</strong> Goofman. Para o autor, “Um membro <strong>de</strong> equipe é<br />

alguém <strong>de</strong> cuja cooperação dramatúrgica um indivíduo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>para</strong> promover uma dada <strong>de</strong>finição da<br />

situação” (Goofman, 2003a, p.81).


Para Schutz (1979), é só a partir do momento que o estranho reúne um conhecimento<br />

sobre função <strong>de</strong> interpretação do novo padrão cultural é que ele dá início à sua adoção<br />

como código <strong>para</strong> sua expressão. Eventos relacionados às práticas institucionais da Aprosba<br />

revelam que adotar um outro código <strong>de</strong> interpretação, aquele que <strong>de</strong>fine a militância, é uma<br />

tarefa complexa e árdua. Várias etapas <strong>de</strong>vem ser percorridas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que um indivíduo se<br />

afasta <strong>de</strong> seu grupo <strong>de</strong> origem até que passe finalmente a ser “membro” <strong>de</strong> um outro grupo.<br />

Esse processo, inclui, claro, a aceitação pelos outros integrantes do grupo <strong>de</strong>sse novo<br />

membro. Devemos consi<strong>de</strong>rar as informações <strong>de</strong> Schutz <strong>de</strong> forma cuidadosa ao pensar o<br />

processo <strong>de</strong> “mudança <strong>de</strong> grupo”, quando tratamos da constituição da Aprosba. No que diz<br />

respeito àqueles que se tornaram e os que estão em processo <strong>de</strong> se tornarem membros da<br />

Aprosba, não há exatamente um afastamento <strong>de</strong> seu grupo <strong>de</strong> origem, pois as mulheres<br />

prostitutas que passam a fazer parte da Aprosba continuam na prática da prostituição,<br />

freqüentando os locais on<strong>de</strong> fazem seus programas, interagindo com este espaço específico<br />

do qual elas são parte. Mas existe sim, um certo distanciamento do grupo <strong>de</strong> origem, pois<br />

ao entrarem na militância as mulheres passam a <strong>de</strong>snaturalizar uma série <strong>de</strong> procedimentos<br />

típicos do universo da prostituição, como a violência e a percepção da prostituição como<br />

uma prática marginal, por exemplo. Não significa, no entanto, que haja uma ruptura com tal<br />

universo, como já discutimos anteriormente ao tratar da mudança <strong>de</strong> status. Há uma série <strong>de</strong><br />

procedimentos, e valores típicos do mundo da prostituição que continuam a percorrer o<br />

universo das militantes, principalmente no que diz respeito à dificulda<strong>de</strong> relacionada à<br />

assunção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prostituta.<br />

Pisca<strong>de</strong>las, cochichos, conversas dissimuladas, espaço reservado aos verda<strong>de</strong>iramente<br />

membros, são alguns recursos observados na instituição <strong>para</strong> se isolar um pretenso membro<br />

da Aprosba. Quando a se<strong>de</strong> da instituição funcionou em um espaço mais amplo 41 , com salas<br />

se<strong>para</strong>das por pare<strong>de</strong> e porta, os espaços ficavam visivelmente <strong>de</strong>limitados. Hoje, em uma<br />

sala única, a instituição mantém o espaço <strong>de</strong>marcado através da proximida<strong>de</strong> (dos<br />

membros) e distância (dos não membros) dos locais on<strong>de</strong> ficam os materiais “privados” da<br />

instituição: documentos, projetos, e computadores. Os candidatos a membros ficam em uma<br />

situação intermediária entre visitantes e membros efetivos. Isso não significa que entre os<br />

41 A se<strong>de</strong> da Aprosba ocupou uma sala no Pelourinho durante o ano <strong>de</strong> 2004.


membros não exista uma hierarquização, que aliás é muito bem <strong>de</strong>marcada, como veremos<br />

a seguir. Compartilhar uma terminologia comum, elaborar pontos <strong>de</strong> consenso e fazer<br />

emergir classificações com base em experiência compartilhada são algumas das situações<br />

que juntam e se<strong>para</strong>m, autorizam e <strong>de</strong>sautorizam as pessoas em um <strong>de</strong>terminado grupo.<br />

O caminho institucional <strong>de</strong> ingresso na instituição <strong>para</strong> pertencer à diretoria executiva,<br />

como está colocado no seu estatuto, é o seguinte: participar como voluntária durante um<br />

período, e ser associada contribuindo mensalmente com o valor <strong>de</strong> R$2,00, estando assim<br />

apta a concorrer às eleições <strong>para</strong> a diretoria executiva. Em nenhum momento da história da<br />

Aprosba apareceram mulheres que conseguissem preencher os requisitos, <strong>para</strong> concorrer<br />

como candidatas. Ouvimos <strong>de</strong> uma militante da diretoria executiva que em um <strong>de</strong>terminado<br />

período uma prostituta, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ser voluntária, participar efetivamente das ações da<br />

instituição e passar a participar <strong>de</strong> projetos e receber remuneração, não satisfeita começou a<br />

exigir dinheiro que não lhe era <strong>de</strong>vido, e assim foi afastada da instituição. Depois disso ela<br />

fez campanha contra a Aprosba nas áreas <strong>de</strong> prostituição, se apresentando como candidata<br />

ao cargo <strong>de</strong> dirigente, mas suas ações não tiveram repercussão que garantissem sua<br />

participação como concorrente a algum cargo.<br />

Fazem parte da diretoria executiva Fátima, como coor<strong>de</strong>nadora geral; Marilene, como<br />

coor<strong>de</strong>nadora adjunta; e Celina como coor<strong>de</strong>nadora financeira. Andréia faz parte do<br />

conselho fiscal e junto com os membros da diretoria executiva compõe o que vou chamar<br />

<strong>aqui</strong> <strong>de</strong> equipe dirigente 42 .<br />

No período em que a instituição funcionava atrelada ao Grupo Lésbico da Bahia, os<br />

cargos <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nadora geral e coor<strong>de</strong>nadora adjunta, antes <strong>de</strong>nominados respectivamente<br />

<strong>de</strong> presi<strong>de</strong>nte e vice-presi<strong>de</strong>nte, eram mais <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> figurativa do que a expressão <strong>de</strong><br />

fato <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r que podia ser apreendido em sua praxis. A partir da autonomia da<br />

instituição esses papéis foram assumidos <strong>de</strong> fato pelas militantes da equipe dirigente, que<br />

passaram a exercer autorida<strong>de</strong> perante aqueles envolvidos com a instituição. Os cargos <strong>de</strong><br />

presi<strong>de</strong>nte e vice-presi<strong>de</strong>nte e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nadora geral e coor<strong>de</strong>nadora adjunta foram<br />

exercidos por Fátima e Marilene <strong>de</strong> forma alternada, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a fundação da associação.<br />

42 ‘Em assembléia geral realizada em abril <strong>de</strong> 2004 com o objetivo <strong>de</strong> eleger e empossar um nova diretoria foi<br />

votada a alteração do estatuto que no seu art. 20º <strong>de</strong>finia a diretoria executiva como: presi<strong>de</strong>nte, vicepresi<strong>de</strong>nte,<br />

tesoureiro e secretário. De acordo com a atual coor<strong>de</strong>nadora geral, tal mudança busca uma certa<br />

horizontalida<strong>de</strong> dos cargos. Ou seja, diminuir as distâncias <strong>de</strong> hierarquia entre dirigentes. (Transcrição <strong>de</strong><br />

registro <strong>de</strong> campo)


O po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão das coor<strong>de</strong>nadoras geral e adjunta é incontestável. Na<br />

caracterização dos cargos, estas duas coor<strong>de</strong>nadoras (duas li<strong>de</strong>ranças e fundadoras da<br />

Aprosba) assumem a atribuição <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> projetos e relatórios <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s<br />

relacionadas aos projetos <strong>de</strong>senvolvidos pela instituição; prestação <strong>de</strong> contas com<br />

financiadores dos projetos; participação na mídia através <strong>de</strong> entrevistas aos jornais<br />

impressos e televisivos; participação em programas <strong>de</strong> rádio e televisão; viagens <strong>para</strong><br />

participação em encontros, seminários e eventos da Re<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Prostitutas; seleção e<br />

admissão das educadoras <strong>de</strong> pares, prestadores <strong>de</strong> serviços. Além dos trabalhos internos<br />

elas também visitam áreas <strong>de</strong> prostituição <strong>de</strong> atuação da Aprosba em Salvador, mas com<br />

menor freqüência do que os outros membros da diretoria. E só estas duas coor<strong>de</strong>nadoras<br />

têm acesso ao carro que a instituição adquiriu junto ao Ministério da Saú<strong>de</strong> <strong>para</strong> realizar<br />

trabalho nas áreas <strong>de</strong> prostituição.<br />

A coor<strong>de</strong>nadora financeira, Celina, é uma espécie <strong>de</strong> secretária <strong>para</strong> todos os assuntos<br />

da Aprosba. Na hierarquia ela vem logo abaixo <strong>de</strong> Fátima e Marilene e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>stas duas,<br />

é a que está há mais tempo na instituição. Ela trata dos assuntos financeiros da instituição,<br />

faz e alimenta os contatos com outras instituições, e é responsável pela <strong>aqui</strong>sição e<br />

manutenção dos bens materiais. No caso <strong>de</strong> eventos organizados pela Aprosba, fica a seu<br />

encargo toda a sua estrutura. Celina também coor<strong>de</strong>na as ativida<strong>de</strong>s das educadoras e<br />

monitora, organiza e faz contatos com palestrantes das reuniões semanais, solicita, recebe e<br />

faz o controle das camisinhas. Consi<strong>de</strong>rada um elemento-chave na instituição, ela é, na<br />

forma <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira, chamada pelas outras <strong>de</strong> “a mulher dos papéis”. Tem uma autonomia<br />

relativa, pois todas as suas ações <strong>de</strong>vem passar pela anuência das coor<strong>de</strong>nadoras geral e<br />

adjunta.<br />

A cargo <strong>de</strong> Andréia, do conselho fiscal, ficam os trabalhos internos e externos do qual<br />

não se ocupam as coor<strong>de</strong>nadoras geral e adjunta, como por exemplo: pagar contas <strong>de</strong><br />

consumo da instituição, contatos com bancos <strong>para</strong> <strong>de</strong>pósito ou recebimento <strong>de</strong> dinheiro,<br />

entrega <strong>de</strong> materiais em outras instituições. Também compras, arrumações e limpeza da<br />

instituição são suas atribuições. Po<strong>de</strong>m também ser observadas <strong>de</strong>terminadas exigências<br />

extra-oficiais que as outras coor<strong>de</strong>nadoras po<strong>de</strong>m fazer a ela. Por exemplo: fazer compras<br />

pessoais <strong>para</strong> uma das coor<strong>de</strong>nadoras, e pagar contas particulares das coor<strong>de</strong>nadoras.<br />

Algumas atribuições suas também são as da coor<strong>de</strong>nadora financeira. Andréia, entre as três,


foi a que entrou por último na instituição. É muito comum encontrar Andréia e Celina<br />

<strong>de</strong>senvolvendo juntas as ativida<strong>de</strong>s relacionadas à instituição e também ativida<strong>de</strong>s fora da<br />

instituição. É bem visível a formação da día<strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nadora geral (Fátima) e coor<strong>de</strong>nadora<br />

adjunta (Marilene) <strong>de</strong> um lado, e <strong>de</strong> outro coor<strong>de</strong>nadora financeira (Celina) e conselho<br />

fiscal (secretária). Estas duas participam também dos trabalhos <strong>de</strong>senvolvidos nas áreas <strong>de</strong><br />

prostituição em Salvador. As quatro mulheres po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>radas os membros efetivos<br />

da instituição e um forte vínculo <strong>de</strong> confiança as liga.<br />

Apesar da presença <strong>de</strong> tal vínculo é importante consi<strong>de</strong>rar, como nos chama atenção<br />

Goffman (2003), que existem atributos que os membros <strong>de</strong> uma equipe <strong>de</strong>vem possuir <strong>para</strong><br />

que representem com segurança. Um <strong>de</strong>les, a “lealda<strong>de</strong> dramatúrgica” — que implica que<br />

os membros <strong>de</strong> uma equipe não <strong>de</strong>vem trair os segredos da equipe nos intervalos das<br />

representações, quer por interesse pessoal, por princípios ou falta <strong>de</strong> discrição — é um<br />

atributo permanentemente ameaçado <strong>de</strong> quebra em qualquer situação <strong>de</strong> equipe 43<br />

É importante <strong>de</strong>stacar duas situações que evi<strong>de</strong>nciam a natureza da instituição: uma,<br />

diz respeito ao fato <strong>de</strong> que a Aprosba é uma instituição pequena, o que lhe confere certas<br />

características específicas com tendência à “mistura” entre os âmbitos institucional e<br />

pessoal. Uma outra, é que o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> se manter a instituição faz com seus membros<br />

permaneçam, eles mesmos, engajados em um processo <strong>de</strong> aprendizado.<br />

1.3.3. Os limites <strong>de</strong> se pertencer a uma instituição<br />

De acordo com Goffman (2003b) pertencer a um grupo não é um processo acabado.<br />

Para compreen<strong>de</strong>r melhor esta assertiva seria interessante prestar atenção na idéia<br />

<strong>de</strong>senvolvida pelo autor <strong>de</strong> que a compreensão do vínculo social está intimamente<br />

relacionada a seus limites. Para o autor<br />

Os vínculos que unem o indivíduo a entida<strong>de</strong>s sociais <strong>de</strong> diferentes tipos<br />

apresentam proprieda<strong>de</strong>s comuns. A participação do indivíduo na entida<strong>de</strong><br />

43 “Talvez o problema <strong>de</strong>cisivo na manutenção da lealda<strong>de</strong> dos membros da equipe (e aparentemente aos<br />

membros <strong>de</strong> outros tipos <strong>de</strong> coletivida<strong>de</strong>s também) consiste em impedir que os atores se tornem tão<br />

emocionalmente ligados ao auditório que lhe revelem as conseqüências da impressão que lhe está sendo dada<br />

ou, por outros meios, façam a equipe , como um todo, pagar por este apego” (GOFFMAN, 2003 a, p.196).


– uma i<strong>de</strong>ologia, uma nação, um ofício, uma pessoa ou mesmo uma<br />

conversa – terá alguns aspectos gerais. Sentirá obrigações: algumas serão<br />

duras, pois incluem alternativas obrigatórias, trabalho a ser realizado,<br />

serviço a ser cumprido, tempo ou dinheiro gastos; outras serão mais suaves,<br />

pois exigem que sinta participação e ligação emocional. Portanto, a<br />

participação numa entida<strong>de</strong> social impõe compromisso e a<strong>de</strong>são<br />

(GOFFMAN, 2003b, p.147-148).<br />

No entanto o autor lembra que não se po<strong>de</strong> pensar claramente nas exigências <strong>de</strong><br />

compromisso e a<strong>de</strong>são que uma entida<strong>de</strong> social impõe a seus participantes sem pensar nos<br />

limites consi<strong>de</strong>rados a<strong>de</strong>quados <strong>para</strong> tais exigências. “Se todo vínculo supõe uma<br />

concepção ampla da pessoa ligada por ele, <strong>de</strong>vemos ir adiante e perguntar como o<br />

indivíduo enfrenta essa <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> si mesmo” (Goffman 2003b, p.149). Para Goffman<br />

(2003, p.151) um dos limites, o <strong>de</strong> confiança, aparece como uma situação que <strong>de</strong>ve ser<br />

reconhecida como extremamente importante no estabelecimento dos vínculos. Isso significa<br />

que uma organização, ao agir através <strong>de</strong> sua administração, precisa reconhecer limites <strong>de</strong><br />

confiança <strong>para</strong> a ativida<strong>de</strong> a<strong>de</strong>quada <strong>de</strong> cada participante em função <strong>de</strong> o ser humano ser<br />

“<strong>de</strong>finido como notoriamente fraco”. Assim, medidas <strong>de</strong> proteção se fazem necessárias. Um<br />

outro elemento que <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado no vínculo do indivíduo com a instituição é a<br />

amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> motivos. Os motivos mais substanciais que levam um indivíduo a agir po<strong>de</strong>m<br />

não ser aqueles que aparentemente se apresentam. Po<strong>de</strong>mos observar tal situação na<br />

indignação <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças da Aprosba em relação ao que consi<strong>de</strong>ram falta <strong>de</strong><br />

comprometimento <strong>de</strong> educadoras <strong>de</strong> pares que quase nunca se mostram interessadas nas<br />

ativida<strong>de</strong>s e pouco esforço fazem <strong>para</strong> arregimentar mulheres <strong>para</strong> a instituição; ou quando<br />

uma prostituta se aproxima da instituição <strong>de</strong>monstra um envolvimento incondicional com a<br />

Aprosba, ganha função em algum projeto e, por fim, é pega em alguma situação tentando se<br />

apo<strong>de</strong>rar in<strong>de</strong>vidamente do dinheiro da instituição; ou ainda quando na dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter<br />

projetos financiados a instituição entra em crise, alguns <strong>de</strong> seus membros se afastam e se<br />

mostram pouco solícitos.<br />

Strauss (1999) comenta que a existência das organizações <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua contínua<br />

reconstituição na ação e por meio <strong>de</strong>la. Os objetivos e estratégias das organizações estão<br />

sujeitos a controvérsias; o acordo po<strong>de</strong> assumir muitas formas diferentes, inclusive do<br />

entrecruzamento <strong>de</strong> objetivos intencionais ou conscientemente tolerados e a pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

objetivos. Monitora e educadoras, por exemplo, hierarquicamente estão submetidas à


equipe dirigente. E ainda, os vínculos <strong>de</strong> confiança que ligam as educadoras <strong>de</strong> pares à<br />

equipe dirigente são bem mais frouxos do que os que ligam a monitora à equipe. No<br />

entanto, não se po<strong>de</strong> dizer que esta compartilha da mesma confiança que os membros da<br />

equipe dirigente. Observamos que as educadoras que passaram pelo “teste” da Aprosba,<br />

apesar <strong>de</strong> serem consi<strong>de</strong>radas membros da instituição, estão em constante situação <strong>de</strong><br />

suspeição.<br />

Quando o autor evi<strong>de</strong>ncia os limites do vínculo não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar que é<br />

possível supor que todo vínculo implica uma concepção da pessoa ligada a ele. Portanto,<br />

nas disposições sociais <strong>de</strong> uma organização, se inclui uma concepção completa do<br />

participante — e não apenas uma concepção <strong>de</strong>le como e enquanto participante — mas,<br />

além disso, uma concepção <strong>de</strong>le como ser humano. Assim, a instituição tem uma<br />

interpretação geral dos seus participantes com a qual se espera que concor<strong>de</strong>m, pois quando<br />

um participante reconhece a legitimida<strong>de</strong> da ação do outro reconhece o direito do outro <strong>de</strong><br />

fazer suposições a respeito <strong>de</strong>le. Toda organização inclui uma disciplina <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>, mas<br />

o que se apresenta com extremamente significativo é o fato <strong>de</strong> que “[...] em algum nível,<br />

toda organização inclui também uma disciplina <strong>de</strong> ser — uma obrigação <strong>de</strong> ser um<br />

<strong>de</strong>terminado caráter e morar em <strong>de</strong>terminado mundo”(GOFFMAN, 2003b, p.152). 44<br />

Quando diz o que <strong>de</strong>ve fazer e porque <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>sejar fazer isso, a organização<br />

presumivelmente diz tudo o que o participante po<strong>de</strong>r ser.<br />

Mas Goofman (2003b, p 153-154) não <strong>de</strong>ixa esquecer que quando uma instituição<br />

oficialmente oferece incentivos externos e abertamente admite ter um direito limitado à<br />

lealda<strong>de</strong>, ao tempo e ao espírito do participante, se este aceita isso – o que quer que faça<br />

com seu prêmio e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do fato <strong>de</strong> admitir que seus interesses pessoais não se<br />

i<strong>de</strong>ntificam com os da instituição — tacitamente aceita uma interpretação <strong>de</strong> sua<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Interessante observar a vinculação entre compromisso e um senso <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Para isso, segundo Strauss (1999), nada mais significativo do que um exame do<br />

que significa empenhar-se e ser <strong>de</strong>dicado:<br />

44 “Po<strong>de</strong>mos ver facilmente essas concepções do homem nas organizações, nos movimentos políticos radicais<br />

e nos grupos religiosos evangélicos que acentuam padrões espartanos <strong>de</strong> bem-estar e valores conjuntos que<br />

são, ao mesmo tempo, intensos e penetrantes. Neste caso, o participante <strong>de</strong>ve colocar-se à disposição das<br />

necessida<strong>de</strong>s atuais da organização”


Empenhar-se é uma ação ou empreendimento continuado, que tem a ver<br />

com esforçar-se por alcançar <strong>de</strong>terminados valores que o indivíduo tem em<br />

alta estima. Uma vez que os valores não são questões puramente<br />

individualísticas, o esforço pessoal continua ser um empreendimento<br />

compartilhado. po<strong>de</strong>-se ver isso muito bem quando um indivíduo é membro<br />

claramente responsável <strong>de</strong> grupos que possuem objetivos muito bem<br />

<strong>de</strong>lineados. Na medida em que ele imagina ser parte integrante do grupo,<br />

associa-se ao avanço rumo às metas do grupo; o caminho <strong>para</strong> essas metas<br />

torna-se até certo ponto o próprio caminho; os fracassos na consecução das<br />

metas, os seus próprios fracassos: [...] É claro que o compromisso – e a<br />

convicção - raramente é total, visto que a maioria das pessoas têm fortes<br />

lealda<strong>de</strong>s e obrigações com mais <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> dominação (STRAUSS,<br />

1999, P.57-58).<br />

O envolvimento por muito tempo com um grupo é um movimento que implica um<br />

gasto <strong>de</strong> tempo e energia significativos na perseguição dos objetivos <strong>de</strong>ste grupo.<br />

Dedicação supõe motivação duradoura, e crenças firmes quanto ao lugar a que se pertence<br />

-— isto é, ao que se é. “[...] todo compromisso <strong>de</strong> longa duração significa uma <strong>aqui</strong>escência<br />

ao sacrifício, por mais fraco que possa ser o compromisso” (STRAUSS, 1999, p.58).<br />

Gostaríamos, então, <strong>de</strong> reiterar que é pelo viés das inclinações e dos hábitos<br />

exigidos pela prática institucional que as prostitutas são eliminadas da Aprosba. Se exige<br />

uma regularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, uma disciplina a que poucas são capazes <strong>de</strong> se dobrar. Embora<br />

algumas prostitutas tenham quase sido “aceitas” pela Aprosba, as dificulda<strong>de</strong>s relacionadas<br />

à assiduida<strong>de</strong>, pontualida<strong>de</strong>, previsibilida<strong>de</strong>, regularida<strong>de</strong>, e disponibilida<strong>de</strong> fizeram com<br />

que a carreira <strong>de</strong>ssas mulheres na instituição fosse abreviada. As que permanecem po<strong>de</strong>m<br />

ser i<strong>de</strong>ntificadas como aquelas que, além <strong>de</strong> ter conquistado tal disciplina, expressam<br />

continuamente a importância da instituição na sua vida pessoal e profissional, e a<br />

importância do trabalho da Aprosba nas áreas como um trabalho indispensável. A lealda<strong>de</strong><br />

das que permaneceram é afirmada quando se dispõem a trabalhar <strong>para</strong> a instituição durante<br />

alguns períodos sem receber remuneração. E o que se consi<strong>de</strong>ra nas avaliações das pessoas<br />

que <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra <strong>de</strong>senvolvem alguma ativida<strong>de</strong> junto na Aprosba é menos<br />

saber realizar o trabalho, e mais o envolvimento com a instituição. O saber fazer seria uma<br />

conseqüência disso. Envolvimento significa ser capaz <strong>de</strong> trabalhar <strong>de</strong> forma voluntária, ter<br />

disciplina e compromisso, principalmente disciplina em relação ao consumo <strong>de</strong> drogas<br />

lícitas e ilícitas. É interessante como um evento sobre comportamento em relação ao<br />

consumo <strong>de</strong> bebidas po<strong>de</strong> ilustrar a relação que as militantes da Aprosba estabelecem com<br />

o consumo do álcool: Duas mulheres não militantes que tinham participado do concurso <strong>de</strong>


eleza organizado pela Aprosba, como um dos acontecimentos do seminário sobre<br />

sustentabilida<strong>de</strong> 45 já referido anteriormente, sentiram a falta <strong>de</strong> bebida alcoólica no evento e<br />

se dirigiram a uma das coor<strong>de</strong>nadoras avisando que iriam aproveitar o intervalo <strong>para</strong><br />

comprar cerveja. A coor<strong>de</strong>nadora, com toda a compreensão e calma, inerente aos já<br />

iniciados, lhes recomendou que não fossem, pois elas não conseguiriam voltar a tempo <strong>de</strong><br />

acompanhar a retomada dos trabalhos. No entanto, a questão ali era muito mais a <strong>de</strong><br />

preservar a “fachada” (numa alusão a Goffman) do seminário. A participação <strong>de</strong>stas<br />

mulheres era irrelevante, já que era bastante visível que não havia nenhum engajamento<br />

<strong>de</strong>las nos trabalhos. Tanto que permaneceram perambulando pelas áreas <strong>de</strong> circulação e<br />

sala <strong>de</strong> espera do hotel, e presenciamos várias vezes elas se insinuando <strong>para</strong> os homens que<br />

também por ali circulavam. Também ouvimos os seus comentários sobre a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

conseguirem realizar algum programa com hóspe<strong>de</strong>s. Este comportamento foi acolhido<br />

com bastante naturalida<strong>de</strong> no seio do evento, já que não se tratava ali <strong>de</strong> militantes. Porém<br />

era perceptível o interesse <strong>de</strong> algumas militantes pelos hóspe<strong>de</strong>s que lhes ficavam a lançar<br />

olhares e sorrisos bastante sugestivos. No entanto as suas interações ocorriam no espaço <strong>de</strong><br />

tempo apropriado, como os intervalos dos trabalhos. Este evento po<strong>de</strong> exemplificar como<br />

uma certa disciplina é ao mesmo tempo, necessária <strong>para</strong> a militância, e aprimorada com o<br />

seu exercício. Porém, não <strong>de</strong>vemos esquecer que uma disciplina adquirida, e exercitada<br />

po<strong>de</strong> evanescer diante <strong>de</strong> uma situação impon<strong>de</strong>rável.<br />

Finalmente, po<strong>de</strong>mos dizer que, à semelhança do boxer estudado por Wacquant<br />

(2000), é por meio <strong>de</strong> uma disciplina pessoal exigida <strong>para</strong> a carreira <strong>de</strong> militante que<br />

prostitutas conseguem se manter na instituição. Consi<strong>de</strong>ramos que <strong>para</strong> aqueles que se<br />

tornaram membros da instituição foi fundamental uma certa categoria <strong>de</strong> percepção e <strong>de</strong><br />

apropriação que permitiram reconhecer, e i<strong>de</strong>ntificar os apelos da instituição.<br />

1.3.4. Ativida<strong>de</strong>s da instituição<br />

As ativida<strong>de</strong>s da instituição acontecem através <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> projetos. Nos<br />

que a Aprosba <strong>de</strong>senvolve aparecem listadas as seguintes atribuições como sendo da<br />

instituição:<br />

45 Vamos abordar o concurso <strong>de</strong> beleza no capítulo 3. <strong>de</strong>ste trabalho.


a) encaminhamento a postos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e ao DST/COAS;<br />

b) reuniões quinzenais nas áreas <strong>de</strong> prostituição <strong>de</strong> Salvador;<br />

a) intervenções em cida<strong>de</strong>s do interior do Estado;<br />

b) distribuição <strong>de</strong> preservativos nas áreas <strong>de</strong> prostituição e na se<strong>de</strong> da instituição;<br />

c) encaminhamento aos serviços do SAC (Serviço <strong>de</strong> Atendimento ao Cidadão) <strong>para</strong><br />

obtenção <strong>de</strong> documentação (CPF, RG, Certidão <strong>de</strong> Nascimento etc.);<br />

d) cursos profissionalizantes em parceria com a casa do trabalhador-Prefeitura<br />

Municipal;<br />

e) internamento em hospitais da re<strong>de</strong> pública <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>;<br />

f) distribuição <strong>de</strong> material informativo sobre prevenção das DST/AIDS <strong>para</strong><br />

população alvo nos locais <strong>de</strong> batalha;<br />

g) apoio jurídico gratuito;<br />

h) apoio Psicológico<br />

Faremos a seguir um comentário sobre uma das ativida<strong>de</strong>s da instituição que consi<strong>de</strong>ramos bastante<br />

significativa por ser permanente e realizada freqüentemente, uma vez que não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> financiamento <strong>de</strong><br />

projetos, requer contato direto e contínuo com grupos <strong>de</strong> prostitutas, e constitui uma ativida<strong>de</strong> que possibilitou<br />

uma observação mais <strong>de</strong>tida dos processos <strong>de</strong> interação: as reuniões realizadas todas as terças-feiras das 15:00<br />

às 16:00h na se<strong>de</strong> da instituição. Os participantes <strong>de</strong>stas reuniões se divi<strong>de</strong>m em quatro grupos: palestrantes;<br />

membros da instituição; visitantes, e “público-alvo” (formado predominantemente por prostitutas e alguns<br />

travestis) que são aqueles a quem são dirigidas as palestras e oficinas. Chamaremos <strong>de</strong> não militantes as<br />

prostitutas envolvidas como receptoras nas ativida<strong>de</strong>s da Aprosba, e que são as que trabalham na área central,<br />

ou como vamos <strong>de</strong>finir mais adiante, as prostitutas <strong>de</strong> baixa-renda.<br />

No dia da reunião a sala é organizada com bancos e ca<strong>de</strong>iras que são sempre<br />

dispostos em círculos. A arrumação e limpeza da sala ficam a cargo <strong>de</strong> Celina, Andréia,<br />

Izete, Mara e Telma. O início e término das reuniões são controlados por Fátima e<br />

Marilene. E na ausência <strong>de</strong>stas, por Celina. Na mesa on<strong>de</strong> fica um dos computadores é<br />

disposto o lanche, cujo cardápio varia <strong>de</strong> acordo com a importância do palestrante ou<br />

visitantes. Por exemplo, nas reuniões on<strong>de</strong> o palestrante é uma colega <strong>de</strong> uma outra<br />

instituição, ou “<strong>de</strong> casa”, como o Grupo Gay da Bahia, não se tem cerimônia e se serve<br />

biscoito e, quando a verba permite, frango assado. Se o palestrante tem um distanciamento<br />

maior da instituição, ou é “importante”, como um potencial financiador <strong>de</strong> projeto, se busca


servir algo mais “refinado” como uma torta com refrigerantes, ou um tipo <strong>de</strong> salgado (a<br />

preferência é pela coxinha). A <strong>de</strong>finição do cardápio e a compra do lanche são <strong>de</strong><br />

responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Celina e Andréia. O lanche é servido no final das reuniões por duas<br />

militantes que se alternam entre Andréia, Izete, Mara e Telma 46 .<br />

O clima da reunião é bem-humorado e amistoso. Aliás uma das maneiras<br />

características das mulheres participarem do tema exposto é bem jocosa: elas fazem graça<br />

enquanto expõem suas falas, riem muito quando falam, do que falam e <strong>de</strong>las mesmas, das<br />

colegas, dos clientes, e das pessoas com que interagem. As coor<strong>de</strong>nadoras e as educadoras<br />

se <strong>de</strong>stacam nesse item, mesmo porque elas dominam o espaço. As novatas comportam-se<br />

<strong>de</strong> maneira tímida, mas acabam, <strong>de</strong> uma maneira ou outra, sempre se pronunciando. O<br />

interesse assim como o <strong>de</strong>sinteresse na exposição do palestrante são bem visíveis entre as<br />

mulheres que são o “público - alvo”. Neste último caso as mulheres conversam o tempo<br />

todo com as colegas, dormem ou estão <strong>de</strong>sligadas do que está acontecendo ali. Fátima é<br />

quem sempre chama a atenção das <strong>de</strong>sinteressadas pedindo silêncio ou fazendo um breve<br />

discurso sobre falta <strong>de</strong> interesse das mulheres. É ela também que se <strong>de</strong>staca sempre dando<br />

seu <strong>de</strong>poimento e sempre interrompendo a fala do palestrante, contribuindo com o discurso.<br />

O convite do palestrante fica a cargo <strong>de</strong> Celina. Também a ata da reunião é <strong>de</strong> sua<br />

responsabilida<strong>de</strong>. No final da reunião é feita a distribuição <strong>de</strong> camisinhas 47 , que também é<br />

uma atribuição da monitora e educadoras.<br />

Os temas das reuniões, na sua maioria, são relacionadas à saú<strong>de</strong> em geral; beleza;<br />

prevenção das doenças sexualmente transmissíveis e Aids; violência contra a mulher;<br />

direitos e <strong>de</strong>veres da prostituta; e sexualida<strong>de</strong>. A questão da beleza é sempre discutida nas<br />

reuniões, pois a maioria das mulheres freqüentadoras são consi<strong>de</strong>radas, nas palavras das<br />

militantes, “<strong>de</strong>sleixadas com a aparência”. Assim, é sempre ressaltada a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se<br />

vestirem melhor, não engordar tanto e usar m<strong>aqui</strong>agem. Estes procedimentos levariam,<br />

ainda <strong>de</strong> acordo com as militantes, à valorização da mulher, tanto por parte <strong>de</strong>la como por<br />

parte do cliente. As militantes insistem que a beleza valoriza a prostituição.<br />

46 O oferecimento do lanche não é uma prática contínua, pois <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> a instituição ter o <strong>de</strong>vido recurso<br />

47 As mulheres cadastradas na instituição têm o direito a vinte camisinhas quinzenalmente. A entrega é feita<br />

no horário <strong>de</strong> funcionamento da instituição. As mulheres que participam das reuniões e recebem camisinhas<br />

nos dias <strong>de</strong>sta ativida<strong>de</strong> não são necessariamente cadastradas.


Geralmente as reuniões são o espaço on<strong>de</strong> as mulheres relatam experiências<br />

pessoais <strong>de</strong> violência doméstica e <strong>de</strong> clientes, relação <strong>de</strong> discriminação, relação com a<br />

família e comunida<strong>de</strong>, e práticas sexuais com os clientes. A <strong>de</strong>sinformação relacionada à<br />

fisiologia feminina e à saú<strong>de</strong> reprodutiva é bastante presente entre as não militantes que<br />

participam das reuniões. A questão da gravi<strong>de</strong>z é uma preocupação muito gran<strong>de</strong> entre elas.<br />

Quando o tema da palestra permite, elas sempre expõem suas inquietações quanto à<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ficarem grávidas. Uma questão sempre reiterada é a da necessida<strong>de</strong> do uso<br />

constante da camisinha. Essa é sempre uma questão “final” das abordagens educativas. A<br />

observação junto às mulheres que ocupam cargos na instituição e às receptoras do trabalho<br />

da Aprosba i<strong>de</strong>ntificou um alto valor atribuído a maternida<strong>de</strong>, além <strong>de</strong> um compromisso<br />

com o cuidado com os filhos. É constante a referência a estes nas conversas entre elas e nas<br />

reuniões. Po<strong>de</strong>-se dizer que os filhos se constituem em um tema dominante entre as<br />

mulheres. Estudos sobre prostituição evi<strong>de</strong>nciam ser falsa a crença na incompatibilização<br />

entre prostituição e família. Observamos nas falas das prostitutas que exercer a prática da<br />

prostituição e ser mãe aparecem <strong>de</strong> forma integrada e complementar.<br />

Uma das gran<strong>de</strong>s dificulda<strong>de</strong>s da Aprosba é arregimentar mulheres <strong>para</strong> reunião. A<br />

distribuição <strong>de</strong> camisinhas e o oferecimento <strong>de</strong> lanche são tidos como estratégias <strong>para</strong><br />

trazer as mulheres <strong>para</strong> os encontros. Por outro lado há o “uso não previsto” das reuniões<br />

quando as mulheres comparecem somente <strong>para</strong> receber a camisinha e ter alguma coisa que<br />

comer. Um dos recursos que as mulheres usam <strong>para</strong> obter estes dois benefícios e evitar<br />

participar é chegar quase ao final das reuniões. Apesar da instituição ameaçar só entregar<br />

camisinha àquelas que chegam no horário, com tolerância <strong>de</strong> quinze minutos <strong>de</strong> atraso, tal<br />

resolução nunca é posta em prática e todas as mulheres terminam por receber camisinhas e<br />

se alimentar.<br />

O fator tempo constitui um complicador <strong>para</strong> a organização das reuniões, pois a<br />

ativida<strong>de</strong> requer a <strong>para</strong>lisação do tempo <strong>de</strong> trabalho 48 . Esta é uma das gran<strong>de</strong>s dificulda<strong>de</strong>s<br />

em relação a uma efetiva participação <strong>de</strong> prostitutas nas reuniões. Como já comentamos, a<br />

pontualida<strong>de</strong> e a assiduida<strong>de</strong>, frutos <strong>de</strong> uma disciplina pessoal, são elementos que ganham<br />

48 De acordo com Moraes “A informalida<strong>de</strong> na organização <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> trabalho faz com que ele só se<br />

realize, enquanto ganho quando estão em plena ativida<strong>de</strong>. Isto acaba gerando uma forte preocupação e faz<br />

com que as prostitutas associem tempo e dinheiro como elementos <strong>de</strong>finidores <strong>de</strong>sta dinâmica”(MORAES,<br />

1995, P.165)


<strong>de</strong>staque quando se trata do universo da prostituição, pois aí vigora uma prática,<br />

principalmente na prostituição <strong>de</strong> baixa-renda, em que o consumo <strong>de</strong> álcool é intenso (sem<br />

contar que as mulheres são “aconselhadas” a beber com os clientes pelos donos e donas dos<br />

estabelecimentos) Isso, <strong>de</strong> uma certa forma, leva muitas mulheres a <strong>de</strong>sistirem <strong>de</strong><br />

compromissos com a instituição. Também dispensar um cliente em função <strong>de</strong> uma reunião<br />

é complicado, pois o cliente implica dinheiro no bolso. Ainda mais que muitas mulheres<br />

passam dias sem “fazer programa”. Elas sempre <strong>de</strong>finem um dia <strong>de</strong> trabalho em que<br />

conseguiram “fazer programas”, como “um dia <strong>de</strong> sorte”. Tudo isso faz que uma das<br />

exigências em relação ao trabalho das educadoras seja a <strong>de</strong> levar o máximo <strong>de</strong> mulheres das<br />

áreas on<strong>de</strong> elas atuam. Isto também faz com que a associação esteja sempre oferecendo<br />

algo vantajoso <strong>para</strong> que as mulheres “coloquem em suspenso” seu trabalho. Como já<br />

sugerimos estas vantagens po<strong>de</strong>m vir na forma <strong>de</strong> recebimento <strong>de</strong> camisinhas, gel<br />

lubrificante, e lanches. Também o tempo em que as mulheres que participam das reuniões e<br />

<strong>de</strong>vem ser expostas à informação que são repassadas é uma preocupação da instituição. O<br />

máximo <strong>de</strong> uma hora é o tempo consi<strong>de</strong>rado a<strong>de</strong>quado <strong>para</strong> esses eventos. Se esse período é<br />

ultrapassado as mulheres se mostram irriquietas, sem concentração, e não poupam<br />

expressões <strong>de</strong> <strong>de</strong>sagrado, forçando o encerramento da reunião 49<br />

O público das reuniões, que varia <strong>de</strong> <strong>de</strong>z a quinze mulheres e três travestis, é bastante flutuante. No<br />

entanto po<strong>de</strong>mos observar a assiduida<strong>de</strong> <strong>de</strong> três mulheres e um travesti, que expressam bastante interesse nas<br />

dinâmicas e temas abordados, não costumam conversar, dormir e estão sempre chamando a atenção dos<br />

<strong>de</strong>svios <strong>de</strong> atenção que ocorrem. 50<br />

Não preten<strong>de</strong>mos fazer <strong>aqui</strong> uma análise proxêmica que Hall (1989) <strong>de</strong>senvolve <strong>de</strong> forma brilhante.<br />

No entanto gostaria <strong>de</strong> fazer uma breve consi<strong>de</strong>ração sobre o espaço da reunião, pois observamos que ele é<br />

fundamental no controle das mulheres. Como a sala é apertada as mulheres ficam muito próximas uma das<br />

outras e sem liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> movimento. As que chegam atrasadas têm que ficar apinhadas do lado <strong>de</strong> fora, no<br />

vão da porta, on<strong>de</strong> se sentem mais à vonta<strong>de</strong> <strong>para</strong> conversar e fazer gracejos, pertubando o ambiente. É<br />

interessante observar como as mulheres que quando ficam <strong>de</strong>ntro da sala <strong>de</strong>monstram muito interesse nas<br />

discussões, ao ocupar o espaço externo se comportam <strong>de</strong> maneira a atrapalhar intencionalmente o fluxo da<br />

49 Quando palestrantes convidados não são alertados <strong>de</strong>sse dado, as vezes chegam com materiais <strong>para</strong> serem<br />

apresentados durante duas horas, o que inviabiliza os trabalho<br />

50 Ouvi <strong>de</strong> uma militante que é muito melhor <strong>de</strong>senvolver trabalho <strong>de</strong> prevenção às DST/AIDS com travestis<br />

que fazem programas, do que com as mulheres prostituas. Segundo ela, enquanto aqueles são atenciosos,<br />

interessados, as mulheres se mostram <strong>de</strong>sinteressadas. Esta com<strong>para</strong>ção é feita em função <strong>de</strong> ter tido sob sua<br />

coor<strong>de</strong>nação um projeto da Aprosba, financiado pelo Ministério da Saú<strong>de</strong> que tem como publico alvo, tanto<br />

mulheres como travestis.


eunião. O tamanho da sala também dificulta a ativida<strong>de</strong> do palestrante e o uso <strong>de</strong> recursos instrucionais. O<br />

<strong>de</strong>sconforto gerado pela falta <strong>de</strong> espaço, e calor, cria um ambiente dispersivo e aumenta a ansieda<strong>de</strong> das<br />

mulheres em relação à finalização do encontro. Mesmo com todas esses entraves a percepção da maioria das<br />

mulheres que se dispõem a comparecer às reuniões é que lá encontrarão um espaço protegido, fechado e<br />

reservado, fora <strong>de</strong> sua “área”, on<strong>de</strong> é possível assumir ser prostituta, falar <strong>de</strong> suas experiências e ter a garantia<br />

<strong>de</strong> que vão ser respeitadas. Também é importante a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> troca <strong>de</strong> experiências entre elas e o<br />

acesso a outras formas <strong>de</strong> conhecimento. Isto é relevante quando lembramos que a maioria <strong>de</strong>stas mulheres<br />

vive encerrada nas áreas <strong>de</strong> prostituição e sua sociabilida<strong>de</strong> se restringe ao espaço <strong>de</strong> trabalho e sua vida<br />

doméstica, quando a tem. 51<br />

Marilene fala da importância das reuniões:<br />

[...] a cada terça-feira a gente tem um palestrante <strong>aqui</strong> que não é a mesma<br />

coisa, cada terça-feira um palestrante com tema diferente. Então é um<br />

advogado, um pai <strong>de</strong> santo, é uma assistente social. Enfim, palestrantes com<br />

vários temas on<strong>de</strong> a gente vai apren<strong>de</strong>ndo a ficar mais consciente pra gente<br />

tá <strong>de</strong>senvolvendo trabalho mesmo aí <strong>de</strong> campo, com cliente; ter mais<br />

assunto pra conversar e ficar conscientizada dos riscos que a gente corre<br />

também no trabalho.<br />

Enfim, na percepção <strong>de</strong> Fátima e Marilene, estar bonita e bem informada é<br />

fundamental <strong>para</strong> a valorização da prostituição.<br />

1.4. Caracterizando territórios <strong>de</strong> prostituição on<strong>de</strong> a Aprosba atua<br />

Apresentaremos a seguir características <strong>de</strong> duas áreas que agregam vários pontos <strong>de</strong><br />

prostituição em Salvador, assim como um breve perfil das mulheres que trabalham nestas<br />

áreas. Tais espaços foram alvo <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> prevenção da Aids voltados <strong>para</strong> mulheres<br />

prostitutas <strong>de</strong> Salvador, <strong>de</strong>senvolvidos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1995, por Organizações Não Governamentais,<br />

como o Grupo <strong>de</strong> Apoio à Prevenção da Aids da Bahia (GAPA/BA), e o Centro Baiano<br />

Anti- Aids (CBAA). Atualmente essas áreas se inserem no âmbito <strong>de</strong> intervenção da<br />

Associação das Prostitutas da Bahia. As áreas que se distinguem pela sua geografia, sua<br />

51 Conheci uma mulher na La<strong>de</strong>ira da Montanha que tinha vindo <strong>de</strong> outro Estado e morava no “brega” on<strong>de</strong><br />

trabalhava. Ela se recusava a sair dali, a circular por outros espaços, pois tinha vergonha e medo <strong>de</strong> ser<br />

reconhecida como prostituta. É importante ressaltar que também a maior permanência no local implica uma<br />

maior possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conseguir um “programa” que vá lhe permitir ter o que comer ou levar alimento <strong>para</strong><br />

os filhos, já que muitas <strong>de</strong>stas mulheres têm um estado <strong>de</strong> vida bastante precário.


condição social e econômica, seu formato e sua plasticida<strong>de</strong> serão <strong>de</strong>nominadas <strong>aqui</strong> <strong>de</strong><br />

área central e a área da orla marítima. 52<br />

A área central congrega os pontos situados no centro da cida<strong>de</strong>, como: La<strong>de</strong>ira da<br />

Montanha, La<strong>de</strong>ira da Conceição, La<strong>de</strong>ira da Praça, Gameleira, rua Carlos Gomes, e ruas<br />

do Pelourinho:<br />

a) Pontos da área central:<br />

Bares :“Bar da Amanda”, “Bar da Nei<strong>de</strong>”, “Bar Recanto dos Coroas”, “Bar da Marinalva”<br />

“Bar 12”, “Bar Escurinha”, “Bar Damasco”, “Bar da Midi”, “Bar Santa Bárbara”, “Bar<br />

Drink 73”, “Bar da Áurea”, “Bar da Gracinha”, “Bar Resima”, “Bar Canto <strong>de</strong> Xangô”, “Bar<br />

Cravinho”, “Bar da Tina”, “Bar <strong>de</strong> Valmir”, “Bar Estilo”; “Bar Edifício Excelsior”; “Bar do<br />

Robson”<br />

Apesar <strong>de</strong> ganharem a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> “bares”, esses locais são chamados <strong>de</strong><br />

“bregas” pelas prostitutas, e se divi<strong>de</strong>m em dois aglomerados que se distinguem sob as<br />

formas <strong>de</strong> organização da ativida<strong>de</strong>. Um <strong>de</strong>les i<strong>de</strong>ntifica-se com os tradicionais “bordéis”,<br />

que são locais na sua maioria, explorados pelas “cafetinas” ou “donas <strong>de</strong> casa”, como são<br />

conhecidas pelas mulheres. Aí os fregueses consomem suas bebidas e as mulheres fazem<br />

seus programas 53 em pequenos e precários quartos, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m morar aquelas que vêm <strong>de</strong><br />

outras cida<strong>de</strong>s ou Estados. Para o programa a mulher paga o quarto, que custa em média <strong>de</strong><br />

R$5,00 a R$8,00 e é ela, e não a “dona da casa”, quem estipula o seu preço. Na negociação<br />

com o cliente, o programa po<strong>de</strong> variar <strong>de</strong> R$15,00 a R$50. Entre as mulheres, diz-se que o<br />

preço não é fixo, e que se o cliente gosta da parceira, ele sempre paga mais. Já o tempo do<br />

programa po<strong>de</strong> variar <strong>de</strong> 15 minutos a 1 hora. O brega também é um lugar on<strong>de</strong> os homens<br />

vão só <strong>para</strong> beber e conversar, ou seja <strong>para</strong> se divertir sem necessariamente requisitar os<br />

serviços sexuais das mulheres que ali se encontram. As mulheres se valorizam mostrando<br />

que se um programa custa <strong>de</strong> <strong>de</strong>z a quinze reais, elas po<strong>de</strong>m fazer com que o cliente pague<br />

até R$50, o que ressalta, <strong>de</strong> acordo com elas, a sua “habilida<strong>de</strong>”.<br />

O outro aglomerado funciona somente como ponto <strong>de</strong> encontro, e não tem área<br />

reservada <strong>para</strong> os programas. São gerenciados, na sua maioria, por homens. A mulher não<br />

52 Os dados apresentados forma coletados durante o ano <strong>de</strong> 2004<br />

53 O programa <strong>de</strong>ve ser entendido <strong>aqui</strong> como foi conceituado por .Sousa (2000) como con<strong>texto</strong> <strong>de</strong> negociação<br />

<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s dando ênfase a três elementos: as práticas, ou o conteúdo do serviço que será prestado, preço<br />

<strong>de</strong>sse serviço e o tempo disponível da prostituta.


paga nada <strong>para</strong> o estabelecimento, que tem seu lucro no consumo que o cliente faz ali. É a<br />

mulher quem estipula o preço do programa. Depois da negociação que acontece no local,<br />

ela vai com o cliente <strong>para</strong> um hotel nas proximida<strong>de</strong>s, geralmente um que seja referência do<br />

bar. Estes hotéis do centro, também precários, po<strong>de</strong>m cobrar <strong>de</strong> R$3,00 a R$10,00 reais<br />

pelo programa, que é pago pelo cliente. As mulheres referem-se a esses bares também<br />

como “bregas” apesar da oposição dos seus proprietários, que preferem <strong>de</strong>nominá-los locais<br />

<strong>de</strong> encontro. Esses estabelecimentos, na sua maioria, funcionam, <strong>de</strong> dia, das 9 às 19 horas,<br />

o que possibilita aten<strong>de</strong>r funcionários do comércio que aproveitam o horário do almoço ou<br />

o final do expediente. Nos locais on<strong>de</strong> existem mulheres resi<strong>de</strong>ntes, o horário <strong>de</strong><br />

funcionamento po<strong>de</strong> chegar até as 2 horas da manhã. As mulheres que trabalham nestes<br />

locais também circulam por ruas e praças da área central, sendo poucas as que procuram a<br />

área da orla.<br />

Boates: : “Boate Leda Cão”, “Boate Tchê Night Club”, “Boate Exótica Night Club”,<br />

“Boate Phantasy Night Club”; “Boate Sexappeal:<br />

Essas boates, que po<strong>de</strong>m funcionar <strong>de</strong> dia e <strong>de</strong> noite, além <strong>de</strong> serem locais <strong>de</strong> encontro<br />

oferecem espaços <strong>para</strong> que o programa seja realizado ali mesmo, além <strong>de</strong> apresentarem<br />

shows eróticos. As mulheres não têm autonomia <strong>para</strong> <strong>de</strong>finir o preço do programa, que é<br />

estipulado pelo estabelecimento, ficando uma parte <strong>para</strong> este e outra <strong>para</strong> elas. O que o<br />

cliente pagar a mais, fica <strong>para</strong> a mulher. A média é <strong>de</strong> 10 a 15 programas semanais. As<br />

mulheres <strong>de</strong>stes locais costumam trabalhar em mais <strong>de</strong> uma boate do centro <strong>de</strong> Salvador,<br />

prefererindo estes locais por consi<strong>de</strong>rá-los mais seguros.<br />

Casas <strong>de</strong> massagem 54 : “Casa <strong>de</strong> Massagem Núbia”, “Casa <strong>de</strong> Massagem Morgana”, “Casa<br />

<strong>de</strong> Massagem <strong>de</strong> Mônica<br />

54 É interessante o seguinte dado sobre a origem da associação casa <strong>de</strong> massagem e prostituição: “Ao final do<br />

século XIX houve gran<strong>de</strong> escândalo no Reino Unido, com casas <strong>de</strong> prostituição sendo estabelecidas com a<br />

fachada <strong>de</strong> institutos <strong>de</strong> massagens. Esta conexão entre uma prática terapêutica legítima e a prostituição nunca<br />

mais foi efetivamente <strong>de</strong>sfeita. A história se repetiu, quando um século <strong>de</strong>pois, por volta dos anos 80 do<br />

século XX, casas <strong>de</strong> prostituição foram estabelecidas em vários locais do mundo oci<strong>de</strong>ntal disfarçadas <strong>de</strong><br />

institutos <strong>de</strong> massagem tailan<strong>de</strong>sa. Aliado a esse fato histórico e ao fato <strong>de</strong> que o toque na nossa socieda<strong>de</strong><br />

tem uma forte conotação sexual, na massagem tailan<strong>de</strong>sa a proximida<strong>de</strong> do aplicador e do receptor é gran<strong>de</strong>;<br />

o primeiro usa seu corpo como apoio, peso e alavanca <strong>para</strong> movimentar e alongar o corpo do segundo. Para<br />

alongar o corpo e segmentos do receptor algumas das posições adotadas pelo aplicador po<strong>de</strong>m levar a alguém<br />

<strong>de</strong>savisado a interpretar erroneamente o que está acontecendo.” Disponível em:<br />

Acesso em 20/01/2005.


São locais on<strong>de</strong> os clientes, se assim o <strong>de</strong>sejarem, recebem massagem, como um<br />

elemento diferenciador dos outros locais. Não se po<strong>de</strong> dizer que as mulheres que aí<br />

trabalham são massagistas profissionais. Aliás, ser massagista não é um pré-requisito <strong>para</strong><br />

elas serem aceitas. Nessas casas, localizadas no centro, as mulheres não têm autonomia<br />

<strong>para</strong> negociar com o cliente, pois quem <strong>de</strong>fine o preço é o estabelecimento e ele varia <strong>de</strong><br />

R$30,00 a R$ 50,00. Deste valor, as mulheres ficam com uma média <strong>de</strong> 40% a 50% .Os<br />

programas acontecem no local, e geralmente as mulheres conseguem realizar <strong>de</strong>z a quinze<br />

programas por semana, sendo que algumas chegam a realizar mais <strong>de</strong> vinte programas<br />

semanais As profissionais <strong>de</strong>stes locais não costumam trabalhar em outros lugares na área<br />

central, pois consi<strong>de</strong>ram as casas <strong>de</strong> massagem mais discretas e seguras. Algumas mulheres<br />

fazem também uso dos classificados <strong>de</strong> jornal <strong>para</strong> oferecer seus serviços<br />

A rua: Praça da Sé, Av. Carlos Gomes, Rua do Bispo<br />

Nesses lugares, as mulheres esperam a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um programa, que é combinado<br />

no local. Depois, elas levam seus clientes aos hotéis nas proximida<strong>de</strong>s. Também becos e<br />

ruas <strong>de</strong>sertas são usados <strong>para</strong> fazer os programas, 55 o que po<strong>de</strong> ser bem mais barato do que<br />

nos outros locais e <strong>de</strong>morar muito menos<br />

Presenciamos um evento em que prostitutas discutiram entre si sobre o preço <strong>de</strong> um<br />

programa. Tal discussão teve início quando uma das mulheres leu uma matéria publicada<br />

no jornal A Província sobre o valor do programa em Salvador. Elas ficaram indignadas por<br />

se sentirem <strong>de</strong>sprestigiadas quando a matéria afirmava que um programa no centro da<br />

cida<strong>de</strong> podia ser feito até por R$ 5,00. Mas nas discussões, bastante agressivas, com<br />

acusações mútuas 56 entre elas, revelaram, numa espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>lação, que elas próprias fazem<br />

programa por um preço muito baixo , cinco ou <strong>de</strong>z reais. Foi citado o fato <strong>de</strong> “garotas” 57<br />

que fazem um “boquete” até por R$1,00 <strong>para</strong> comprar Crak, sendo isto con<strong>de</strong>nado <strong>de</strong> forma<br />

geral. A interferência <strong>de</strong> uma mulher fechou a discussão quando disse, <strong>de</strong> forma categórica,<br />

55<br />

Esses locais geralmente são utilizados quando a prestação <strong>de</strong> serviço é um “boquete”, como é conhecido o<br />

sexo oral.<br />

56<br />

O incômodo maior era a acusação mútua <strong>de</strong> haver uma espécie <strong>de</strong> vigilância entre elas quanto ao programa<br />

que fazem e o preço que conseguem com o cliente.<br />

57<br />

Essa é a <strong>de</strong>nominação que elas usam entre elas quando não fazem referência direta à mulher em questão


que, <strong>para</strong> quem precisa levar comida <strong>para</strong> os filhos 58 , R$10,00 compra muita coisa. Ela<br />

listou itens <strong>de</strong> alimentos que podia comprar com <strong>de</strong>z reais no bairro on<strong>de</strong> mora. Várias<br />

outras se manifestaram mostrando que, se a necessida<strong>de</strong> aperta, o preço do programa<br />

termina sendo relativo. Assim, a notícia publicada acabou sendo esquecida.<br />

A área da orla: Congrega locais situados ou próximos à orla marítima <strong>de</strong> Salvador<br />

b) Pontos da orla:<br />

Boates: “Boate Tchê Night Club”, “Boate Liberty Night Club”, “Boate Free Night Club”,<br />

“Boate Eros Night Club” “Boate Vip Club.”<br />

Casas <strong>de</strong> massagem: “Mina Café”, “Salvador Club Café”, “Relex For Man”, “Aqueça-se”<br />

ou “Casa <strong>de</strong> Eliene.”<br />

As casas <strong>de</strong> massagem ou os “cafés” têm a forma <strong>de</strong> organização semelhante às do<br />

centro variando quanto à clientela, ao po<strong>de</strong>r <strong>aqui</strong>sitivo do cliente, ao preço do programa e à<br />

aparência das mulheres. Os preços, que são <strong>de</strong>finidos pelo estabelecimento, variam <strong>de</strong><br />

R$150,00 a R$300,00, ficando 40% do valor <strong>para</strong> a mulher. As casas <strong>de</strong> massagem<br />

geralmente têm homens como gerentes, o que não significa que não existam mulheres nesta<br />

função.<br />

Rua: Porto da Barra; Rua Otávio Mangabeira, Piatã; Avenida Dorival Caymi, Itapuã;<br />

Avenida Manuel Dias da Silva, Pituba.<br />

“A prostituição <strong>de</strong> rua” é um termo que <strong>de</strong>fine a modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prostituição em que<br />

se <strong>de</strong>ve obter a clientela na rua, o que envolve um ritual <strong>de</strong> conquista que torna públicos<br />

estes objetivos. Po<strong>de</strong>-se consi<strong>de</strong>rar a rua um local livre. Ali, a mulher não está sob<br />

vigilância e nem tem que dividir seus ganhos com as “donas-<strong>de</strong>-casa”, com gerentes ou<br />

proprietários <strong>de</strong> estabelecimentos. Não está sob um regime que po<strong>de</strong> ser o <strong>de</strong> contenção ao<br />

consumo <strong>de</strong> drogas ilícitas ou a obrigação <strong>de</strong> consumo <strong>de</strong> drogas lícitas como a bebida.<br />

Esta modalida<strong>de</strong> está inserida em um sistema <strong>de</strong> classificação <strong>de</strong>senvolvido pelas mulheres<br />

que apontam posições <strong>de</strong> prestígio ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprestígio no interior da profissão Neste caso, as<br />

prostitutas da rua são consi<strong>de</strong>radas “as piores” na visão daquelas que trabalham nos<br />

58 Os filhos sempre surgem como justificativas <strong>para</strong> situações que são vivenciadas por elas e que são<br />

consi<strong>de</strong>radas impróprias.


estabelecimentos. “Donas-<strong>de</strong>-casa” chegam a <strong>de</strong>clarar que evitam mulheres que trabalham<br />

em prostituição <strong>de</strong> rua porque estas não são confiáveis, po<strong>de</strong>m ‘roubar” e costumam criar<br />

brigas e confusões. A gerente <strong>de</strong> uma casa <strong>de</strong> massagem localizada em Patamares afirmou<br />

que, “<strong>de</strong>ntro da sua casa”, não é permitido o uso <strong>de</strong> drogas ilícitas, mas quando as mulheres<br />

“querem usar” elas saem com sua permissão. Parece que o consumo <strong>de</strong> drogas é uma<br />

prática comum na profissão. 59 Em relação à bebida, <strong>de</strong> acordo com ela, as mulheres não são<br />

obrigadas a beber com os clientes 60 . Ela também afirmou que pe<strong>de</strong> <strong>para</strong> suas “garotas” não<br />

irem <strong>para</strong> a rua fazer programa, pois incomoda aos clientes ver garotas com as quais fazem<br />

programa atuando nas ruas. Apesar das restrições, parece que as mulheres, mesmo dos<br />

estabelecimentos fechados, fazem programas nas ruas, o que elas chamam <strong>de</strong> “pistão”.<br />

A prostituição <strong>de</strong> rua da orla visa principalmente os transeuntes <strong>de</strong> carro. O<br />

programa tem um preço que varia <strong>de</strong> R$30,00 a R$50,00 com a duração <strong>de</strong>, no máximo,<br />

uma hora e é realizado em hotéis próximos dos locais, pagando o cliente em média,<br />

R$10,00 pelo quarto. Claro que outros locais po<strong>de</strong>m ser usados, como motéis ou<br />

residências, e o programa po<strong>de</strong> se esten<strong>de</strong>r por mais tempo, assim como o cliente po<strong>de</strong><br />

pagar um outro valor. Os veículos também são usados <strong>para</strong> a realização do programa em<br />

lugares públicos. Isto não é aprovado pela Aprosba, pois constitui atentado ao pudor,<br />

fazendo da prática um crime e abrindo espaço <strong>para</strong> que a polícia atue com violência.<br />

Gostaria <strong>de</strong> ressaltar que o tempo, o valor e o local não são um padrão rígido, pois sofrem<br />

variações nas diferentes situações.<br />

Apesar da tentativa <strong>de</strong> categorização dos locais, não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> registrar que<br />

a ocupação <strong>de</strong>stes locais não segue padrões rígidos. As mulheres circulam por uns e outros.<br />

Por exemplo, uma mulher mais bem cuidada, que trabalha na La<strong>de</strong>ira da Montanha, po<strong>de</strong><br />

também ser encontrada em um bar como o Damasco ou mesmo fazendo “pistão” na orla.<br />

Claro que este fluxo tem seus limites estabelecidos pela ida<strong>de</strong> e aparência da mulher.<br />

É também importante <strong>de</strong>stacar que atualmente a prática da prostituição não se restringe<br />

aos espaços instituídos como <strong>de</strong> prostituição. Em qualquer lugar com gran<strong>de</strong> fluxo <strong>de</strong><br />

pessoas, po<strong>de</strong> acontecer o que as mulheres chamam <strong>de</strong> “viração”. Esta é uma prática<br />

59 Não realizei investigação sobre o consumo <strong>de</strong> drogas ilícitas entre essas mulheres. No entanto, em<br />

conversas informais entre as mulheres que freqüentam a reunião da Aprosba ,a referência sobre o consumo <strong>de</strong><br />

cocaína e crak entre as mulheres da área central é recorrente. Uma mulher que faz “pistão” na orla, afirmou<br />

que a maior parte do dinheiro ganho por ela e por suas colegas é usado <strong>para</strong> comprar cocaína.<br />

60 Não se tem informações conclusivas a esse respeito.


exercida por mulheres que querem ser mais discretas ou passarem <strong>de</strong>spercebidas. São<br />

mulheres que, na sua maioria, moram na periferia da cida<strong>de</strong> e vão <strong>para</strong> <strong>de</strong>terminados locais<br />

oferecer, <strong>de</strong> forma discreta, seus serviços. Os locais preferidos: Pelourinho, shoppings,<br />

bares e boates. Acertar um programa po<strong>de</strong> ser visto como uma simples conversa.<br />

Apresentaremos a seguir um breve perfil das prostitutas que trabalham nas duas áreas<br />

caracterizadas anteriormente:<br />

a) As prostitutas da área central<br />

Selecionamos <strong>de</strong>z locais <strong>de</strong> atuação da Aprosba na área central. O critério foi o <strong>de</strong><br />

consi<strong>de</strong>rarmos locais significativos por receberem com mais freqüência os agentes das<br />

instituições. Os locais são os seguintes: dois bares da La<strong>de</strong>ira da Montanha, um bar na<br />

Conceição, Praça da Sé, Bar Damasco, Bar Cairu, casa <strong>de</strong> massagem Morgana, e casa <strong>de</strong><br />

massagem <strong>de</strong> Mônica. Nestes locais fizemos contato com 72 mulheres e coletamos dados<br />

através <strong>de</strong> questionário.<br />

Das mulheres contatadas, 56% têm acima <strong>de</strong> 28 anos, enquanto 44% estão<br />

concentradas na faixa <strong>de</strong> 20 a 28, anos como nos mostra o gráfico abaixo:<br />

63 %<br />

32 %<br />

5 %<br />

18 a 28 anos<br />

29 a 39 anos<br />

40 a 50 anos<br />

Gráfico 1– Faixa Etária<br />

Em relação ao nível <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong>, 51% das mulheres têm o primeiro grau<br />

in<strong>completo</strong> enquanto 5% não sabem ler nem escrever. Ver gráfico a seguir:


Não sabe ler nem escrever<br />

Segundo grau <strong>completo</strong><br />

Segundo grau in<strong>completo</strong><br />

Primeiro grau <strong>completo</strong><br />

Primeiro grau in<strong>completo</strong><br />

51%<br />

5%<br />

8%<br />

22%<br />

14%<br />

Gráfico 2-Grau <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong><br />

A maioria das mulheres, 75%, tem filhos. Deste total, 40% não moram com os<br />

filhos. Geralmente estes moram com os avós, enquanto elas moram com colegas <strong>de</strong><br />

trabalho ou sozinhas.<br />

Os dados da pesquisa revelam também que a maioria das mulheres usa<br />

preservativos com os clientes. Todas afirmaram atualmente usar a camisinha, sendo que a<br />

preferência é pela masculina (89%), enquanto 11% respon<strong>de</strong>ram que tanto faz usar a<br />

camisinha masculina ou feminina.<br />

11%<br />

89%<br />

Prefere camisinha<br />

masculina<br />

Não tem<br />

preferência<br />

Gráfico 3 -Preferência da camisinha com cliente<br />

Das mulheres, 12% já tiveram gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> cliente. Deste total, 6% abortaram e 6%<br />

levaram a gravi<strong>de</strong>z adiante. O uso da camisinha encontra resistência quando se trata <strong>de</strong><br />

parceiros fixos, que são aqueles com quem mantêm uma relação afetiva e mais duradoura.<br />

De 40% das mulheres que afirmaram ter parceiro fixo, 23% afirmaram não usar camisinha<br />

com ele..<br />

A gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> parceiros é um dado bastante observado e que não afasta a mulheres<br />

da sua ativida<strong>de</strong> (encontramos mulheres grávidas <strong>de</strong> oito meses trabalhando) já que elas<br />

têm na prática da prostituição sua única fonte <strong>de</strong> renda. Pouquíssimas po<strong>de</strong>m contar com


uma outra fonte e é insistente a reclamação sobre a falta <strong>de</strong> ajuda financeira por parte dos<br />

parceiros. As mulheres que moram com os parceiros (21/%), são a base <strong>de</strong> sustento tanto<br />

<strong>de</strong>la e dos filhos, como <strong>de</strong> seus companheiros.<br />

Escon<strong>de</strong>r a ativida<strong>de</strong> da família é uma atitu<strong>de</strong> comum entre elas. Do total <strong>de</strong><br />

mulheres, 45% disseram que só as colegas <strong>de</strong> batalha sabem que elas fazem programa e<br />

21% as colegas <strong>de</strong> batalha e o parceiro. Quando a ativida<strong>de</strong> é revelada <strong>para</strong> a família, a mãe<br />

é o membro da família a quem elas (8%) mais confiam seu “segredo”; pai e mãe (4%); toda<br />

família (4%), e 16% afirmaram que todos sabem o que elas fazem.<br />

Em relação ao tempo que exercem a prática da prostituição, a maioria (33%) está na<br />

prostituição entre 1 e 3 anos; 25% entre 1 e 11 meses; 16% há mais <strong>de</strong> 10 anos;13% entre 4<br />

e 6 anos; 8% há menos <strong>de</strong> um mês; e 5% entre 7 e 10 anos<br />

Menos <strong>de</strong> 1 mês<br />

1-11 meses<br />

1-3 anos<br />

4-6 anos<br />

7-10 anos<br />

Mais <strong>de</strong> 10 anos<br />

13%<br />

5%<br />

16%<br />

33%<br />

8%<br />

25%<br />

Gráfico 5 -Quanto tempo faz programa<br />

Das mulheres contatadas, 47% fazem <strong>de</strong> 6 a 10 programas por semana, 20% <strong>de</strong> 10 a<br />

15, 20% <strong>de</strong> 1 a 5, e 13% mais <strong>de</strong> 20.<br />

O valor do programa po<strong>de</strong> variar <strong>de</strong> 10 a 100 reais conforme o estabelecimento<br />

on<strong>de</strong> a mulher trabalha, como vimos anteriormente quando tratamos dos territórios e<br />

programas. Do total das mulheres 28% recebem <strong>de</strong> 10 a 20 reais, 36% <strong>de</strong> 21 a 30 reais;<br />

28% <strong>de</strong> 31 a 50 reais; e 8% <strong>de</strong> 51 a 100 reais. Observe o gráfico a seguir:


28%<br />

8%<br />

36%<br />

28%<br />

10 a 20 reais<br />

21 a 30 reais<br />

31 a 50 reais<br />

51 a 100 reais<br />

Gráfico 7 -Valor do programa<br />

Dos clientes <strong>de</strong>ssas mulheres, 89% são apenas homens e 11% são homens e mulheres.<br />

Homens e mulheres<br />

Apenas homens<br />

89%<br />

11%<br />

Gráfico 8 - Quem são os clientes<br />

Os homens mais velhos (a partir <strong>de</strong> 30 anos) e os“gringos” são os preferidos como clientes<br />

<strong>de</strong> 41% das mulheres. As que preferem só os homens mais velhos somam 30%; só os<br />

homens mais novos 13%. As outras faixas aparecem no gráfico a seguir:


6%<br />

41%<br />

6% 4%<br />

13%<br />

30%<br />

Homens velhos<br />

Homens novos<br />

Homens velhos<br />

e gringos<br />

homens novos<br />

e gringos<br />

todos os<br />

homens<br />

Mulheres<br />

Gráfico 9- Preferência pelo cliente<br />

São as seguintes justificativas <strong>para</strong> a preferência por homens mais velhos como clientes:<br />

“são mais tranqüilos”; “respeitam o tempo do programa”; “são mais compreensivos;<br />

“respeitam e valorizam mais a mulher”; “são mais rápidos”, “são menos exigentes”. Quanto<br />

aos “gringos”, a preferência por estes clientes é por pagar melhor. Em relação à preferência<br />

por homens mais novos elas afirmam que “é mais gostoso fazer programa com homens<br />

mais novos”, “dá mais prazer”. Já a não preferência pelos homens mais novos se justifica<br />

por serem “mais exigentes”; “usarem o tempo total”; “sempre querem mais variações <strong>de</strong><br />

posições”, “difícil <strong>para</strong> pagar”, “querem sempre mais e pagar sempre menos”. A<br />

preferência pelas mulheres é por “serem mais carinhosas” e “conhecerem melhor a mulher”<br />

Sobre como se relacionam com a prática da prostituição, 45% disseram gostar mais ou<br />

menos do que fazem. Estas afirmam estar na prostituição porque “é a única fonte <strong>de</strong> renda”,<br />

e por “falta <strong>de</strong> opção”. Incomoda a essas mulheres o fato <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>rem que tem esta<br />

ocupação e ficarem clan<strong>de</strong>stinas. As que disseram não gostar do que fazem somam 30%, e<br />

as que gostam do que fazem 25%. Estas últimas mulheres consi<strong>de</strong>ram que têm uma boa<br />

ocupação, pois experimentam diferentes tipos <strong>de</strong> relação e conhecem vários tipos <strong>de</strong><br />

pessoas, ganham mais, ganham dinheiro rápido, pagam suas contas, conhecem homens<br />

diferentes, se divertem, têm liberda<strong>de</strong>, sendo a prostituição melhor do que o trabalho <strong>de</strong><br />

empregada doméstica.<br />

Nos pontos que justificam a prática da prostituição estão bem presentes a representação<br />

<strong>de</strong> que a prostituição coloca as mulheres diante <strong>de</strong> uma relativa liberda<strong>de</strong> no mundo do<br />

trabalho – pela ausência <strong>de</strong> um patrão e autonomia <strong>de</strong> horários. Estas fazem menção a


situações <strong>de</strong> trabalho opressoras, principalmente o emprego doméstico, em oposição à<br />

ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prostituição, que é vista como <strong>de</strong> relativa liberda<strong>de</strong> se com<strong>para</strong>da com outras<br />

situações profissionais a que têm acesso. Além do mais a prostituição é sempre consi<strong>de</strong>rada<br />

uma ativida<strong>de</strong> que cria melhores condições <strong>de</strong> sobrevivência com relação às outras que<br />

apresentam remunerações mais baixas.<br />

Das mulheres contatadas, 84% já ouviram falar da Associação das Prostitutas da<br />

Bahia (Aprosba). Deste total, 80% conhecem o trabalho da associação, e 62% costumam ir<br />

às vezes à se<strong>de</strong> da Aprosba. Já 25% disseram ir sempre, enquanto 13% afirmaram nunca ir<br />

até a se<strong>de</strong> da instituição.<br />

b) Prostitutas da área da orla<br />

Selecionamos três pontos localizados na área da orla. O critério utilizado foi o<br />

mesmo que conduziu a seleção dos pontos da área central, ou seja, os pontos com mais<br />

ativida<strong>de</strong>s relacionadas aos projetos <strong>de</strong> prevenção das DST/AIDS <strong>para</strong> mulheres prostitutas.<br />

Fizemos contato com um número <strong>de</strong> trinta e quatro mulheres.<br />

A faixa <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> que concentra o maior número <strong>de</strong> mulheres, 90%, é <strong>de</strong> 20 a 28<br />

anos. 10% do total têm entre 30 e 39 anos. É interessante observar que as mulheres acima<br />

<strong>de</strong> trinta anos têm pouco espaço nestes pontos da orla.<br />

Em relação ao nível <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> 42%, das mulheres têm o primeiro grau<br />

in<strong>completo</strong> enquanto que 24% o primeiro grau <strong>completo</strong>; 6% o segundo grau in<strong>completo</strong>;<br />

17% segundo grau <strong>completo</strong>; e 11% superior in<strong>completo</strong>.<br />

17%<br />

6%<br />

24%<br />

11%<br />

24%<br />

42%<br />

42%<br />

Gráfico 10- Grau <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong><br />

Primeiro grau<br />

in<strong>completo</strong><br />

Primeiro grau<br />

<strong>completo</strong><br />

Segundo grau<br />

in<strong>completo</strong><br />

Segundo grau<br />

<strong>completo</strong><br />

Superior<br />

in<strong>completo</strong><br />

Po<strong>de</strong>mos observar <strong>aqui</strong> um maior grau <strong>de</strong> instrução em relação às mulheres da área central.


Todas as mulheres disseram usar preservativos com os clientes, e confirmaram o<br />

uso da camisinha, sendo que a preferência é pela masculina. Uma parcela <strong>de</strong> 76% das<br />

mulheres tem parceiro fixo, sendo que <strong>de</strong>ste total 85% são do sexo masculino e 15% do<br />

sexo feminino.<br />

Das mulheres que afirmaram ter parceiro fixo do sexo masculino, 35% afirmaram<br />

não usar camisinha (masculina ou feminina) com ele. O total <strong>de</strong> mulheres que têm mulheres<br />

como parceiras afirmaram não usar a camisinha (feminina) com elas<br />

35%<br />

6%<br />

59%<br />

Camisinha<br />

Masculina<br />

Nenhuma<br />

Tanto Faz<br />

Gráfico 11-Preferência pela camisinha com parceiro fixo<br />

. Escon<strong>de</strong>r a ativida<strong>de</strong> da família é uma atitu<strong>de</strong> predominante entre as prostitutas.<br />

76% <strong>de</strong>las disseram que só as colegas <strong>de</strong> batalha sabem que elas fazem programa e 12% só<br />

as colegas <strong>de</strong> batalha e o parceiro. Em relação aos seus pais, a mãe é quem sabe que elas<br />

exercem a prática da prostituição (6%). Também 6% disseram que toda família sabe que<br />

elas fazem programa.<br />

E o ingresso na prostituição é recente <strong>para</strong> uma gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>stas mulheres: 47%<br />

exercem esta prática entre 1 e 11meses; 30% entre 1 e 3 anos e 23% entre 3 e 6 anos. Estes<br />

dados apontam <strong>para</strong> uma diferença em relação às mulheres da área central que têm mais<br />

tempo na prostituição.<br />

Das mulheres pesquisadas 45% fazem <strong>de</strong> 1 a 5 programas por semana; 23% <strong>de</strong> 6 a<br />

10; 18% <strong>de</strong> 10 a 15 ; 6% <strong>de</strong> 15 a 20 e 6% mais <strong>de</strong> 20. Ver o gráfico seguir:


23 %<br />

30 %<br />

47 %<br />

Gráfico 12 – Quanto tempo faz programa<br />

1 a 11 meses<br />

1 a 3 Anos<br />

4 a 6 Anos<br />

O valor do programa varia <strong>de</strong> 30 a 200 reais. Dos clientes <strong>de</strong>ssas mulheres 59% são apenas<br />

homens e 41% têm como clientes homens e mulheres.<br />

Se com<strong>para</strong>rmos os clientes da orla com os das mulheres da área central vamos ver<br />

que mulheres ou casais costumam procurar mais prostitutas nos pontos da orla e, portanto,<br />

pertencem a uma camada <strong>de</strong> clientes mais privilegiada economicamente do que a da área<br />

central.<br />

Os homens mais velhos (a partir <strong>de</strong> 30 anos) e os gringos são os preferidos como<br />

clientes <strong>de</strong> 76% das mulheres. A preferência pelos mais velhos e casais é <strong>de</strong> 12%. A<br />

preferência pelos mais novos, pelos gringos e pelos mais velhos é também <strong>de</strong> 12%. Estes<br />

dados não diferem em relação a preferência das mulheres da áreas central a não ser no fato<br />

<strong>de</strong> que o homem mais novo não aparece como uma das preferências.<br />

12%<br />

12 %<br />

76 %<br />

Homens mais<br />

velhos e<br />

gringos<br />

Homens mais<br />

velhos e casais<br />

Homens mais<br />

novos e<br />

gringos<br />

Gráfico 16- Preferência pelo cliente


Um total <strong>de</strong> 41% das mulheres disseram que não gostam do que fazem. Elas<br />

justificam a reposta por consi<strong>de</strong>rarem a prostituição “perigosa”, “terem clientes chatos”, “é<br />

humilhante”, “não se sentem bem”, “não é legal ficar com um homem sem gostar”, “é anti-<br />

social”, “precisa escon<strong>de</strong>r o que faz, “tem que fazer o que não tem vonta<strong>de</strong> por dinheiro”,<br />

“não tem outro trabalho”.<br />

Já 23% disseram gostar do que fazem e justificam pelo fato <strong>de</strong> “po<strong>de</strong>r ganhar<br />

dinheiro rápido”, “terem mais liberda<strong>de</strong>”, “é melhor que outros trabalhos e ganha mais”.<br />

Aquelas que disseram gostar mais ou menos são 18%, assim como as que disseram <strong>de</strong>testar<br />

o que fazem. Das mulheres contatadas, 82% já ouviram falar da Aprosba, mas <strong>de</strong>ste total<br />

nenhuma disse conhecer o trabalho da instituição.<br />

Consi<strong>de</strong>ra-se que as mulheres membros da Aprosba e aquelas que participam das<br />

reuniões da Aprosba fazem parte do que se convencionou chamar “baixa prostituição”<br />

Lança-se mão das reflexões <strong>de</strong> Moraes (1995, p. 27) sobre as categorizações que surgem<br />

<strong>para</strong> ressaltar as diferenças entre as formas <strong>de</strong> organização da ativida<strong>de</strong>. De acordo com a<br />

autora “[..] as <strong>de</strong>nominações ‘alta’e ‘baixa’ prostituição <strong>de</strong>vem ser relativizadas quando se<br />

trata <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r a lógica da categoria no seu conjunto” Em seu relato <strong>de</strong> investigação em<br />

Vila Mimosa, ela <strong>de</strong>clara:<br />

Na vila Mimosa encontrei um número significativo que já havia trabalhado<br />

em outros lugares <strong>de</strong>finidos como locais <strong>de</strong> “prostituição <strong>de</strong> alto nível”.<br />

Perguntava por que teriam ido <strong>para</strong> a “zona”, consi<strong>de</strong>rada “baixo<br />

meretrício”. Na tentativa <strong>de</strong>sta compreensão, fui <strong>de</strong>scobrindo que os valores<br />

que são normalmente colocados <strong>para</strong> <strong>de</strong>finir um tipo <strong>de</strong> prostituição mais<br />

requintada ⎯ valores como nível sócio-econômico da clientela e da<br />

localida<strong>de</strong>, refinamento do ambiente, entre outros ⎯ não eram lembrados<br />

como elementos fundamentais à satisfação no trabalho. Po outro lado, em<br />

resposta à mudança prevalecia uma perspectiva <strong>de</strong> busca <strong>de</strong> melhores<br />

condições profissionais, condições estas que teriam ido buscar na Vila<br />

Mimosa. Os valores <strong>de</strong>stacados nesse sentido relacionavam-se: à<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma maior liberda<strong>de</strong>, à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> maiores ganhos sem<br />

tanta pressão <strong>de</strong> gerentes, à ausência ou redução da exploração por agente<br />

internos, ao menor nível <strong>de</strong> competição, às maiores garantias <strong>para</strong> o uso do<br />

preservativos ,entre outros[...] Devemos enten<strong>de</strong>r que a história da Vila<br />

Mimosa, enquanto zona <strong>de</strong> meretrício — e, com ela, o movimento<br />

associativo que surge nesta localida<strong>de</strong> — não <strong>de</strong>ve ser colocada como uma<br />

exceção que torna este tipo <strong>de</strong> organização social um caso isolado e único<br />

<strong>de</strong> “baixa prostituição”, apresentando condições <strong>de</strong> trabalho fora dos<br />

padrões que a própria terminologia expressa. Esta trajetória <strong>de</strong>ve sim


qualificar ainda mais as consi<strong>de</strong>rações acerca da relativida<strong>de</strong> da questão.<br />

(MORAES, 1995, P 28)<br />

Mesmo consi<strong>de</strong>rando as reflexões <strong>de</strong> Moraes, principalmente no que se refere à<br />

característica flutuante <strong>de</strong>sse universo, a tendência da presente investigação é levar em<br />

conta a geografia do local <strong>de</strong> trabalho das mulheres <strong>para</strong> se tentar uma categorização. É<br />

visível, em <strong>de</strong>terminados locais, o grau <strong>de</strong> pobreza e precarieda<strong>de</strong> em que se encontram as<br />

mulheres e o próprio espaço. Não per<strong>de</strong>mos <strong>de</strong> vista, porém, como nos chamou a atenção<br />

Moraes, que essa categorização não é rígida. Uma observação <strong>de</strong> uma militante da Aprosba<br />

po<strong>de</strong> ilustrar a questão: segundo ela uma mulher po<strong>de</strong> trabalhar em locais consi<strong>de</strong>rados<br />

pobres, mas o cliente po<strong>de</strong> pagar melhor que numa casa mais sofisticada. Ou mesmo po<strong>de</strong>-<br />

se presenciar carro “bacana” <strong>para</strong>do na La<strong>de</strong>ira da Montanha, lugar consi<strong>de</strong>rado <strong>de</strong> baixo<br />

meretrício. Estas exceções, no entanto, não têm suficiente força <strong>para</strong> suplantar uma<br />

percepção <strong>de</strong> que as mulheres que são membros da Aprosba e aquelas que freqüentam a<br />

se<strong>de</strong> da instituição, estariam relacionadas à “baixa prostituição”, em função <strong>de</strong> todas elas<br />

serem oriundas <strong>de</strong> “locais” mais pobres on<strong>de</strong> exerciam, ou ainda exercem, a prática da<br />

prostituição.<br />

Fátima, ao falar da prática da instituição, <strong>de</strong>fine bem a situação <strong>de</strong>sse universo:<br />

Fátima - A gente trabalha mesmo com mulher <strong>de</strong> baixa-renda. A <strong>de</strong> média,<br />

alta-renda não procura a gente e não se assume.<br />

Mônica- O que <strong>de</strong>fine ser <strong>de</strong> baixa-renda?<br />

Fátima - É o local on<strong>de</strong> trabalha. Por exemplo: as meninas que trabalham na<br />

rua mesmo, na orla, fazendo “pistão”; quem trabalha na La<strong>de</strong>ira da<br />

Montanha; no Comércio; em casa <strong>de</strong> massagem, mas, mas... que não seja<br />

aquelas finas...<br />

1.4.1. Uma breve consi<strong>de</strong>ração sobre o cliente<br />

Talvez seja interessante fazer algumas consi<strong>de</strong>rações sobre a percepção que a<br />

prostituta tem do cliente. Em primeiro lugar vale observar que os laços que os unem, que<br />

não são <strong>de</strong> natureza exclusivamente mercadológica. A amiza<strong>de</strong>, por exemplo, po<strong>de</strong> manter


ligados a prostituta e o cliente. Vanessa 61 , 44 anos, que batalha no centro, vive esta<br />

experiência:<br />

Muitos clientes não me procuram mais, só procuram por amiza<strong>de</strong>. Me<br />

procuram assim pra beber uma cerveja, na saída me agrada, me dá R$10,<br />

me dá R$20, me dá R$5, mas saí assim ...ele mesmos me fala: “Vanessa ,<br />

quero sair com sua colega”. Eu dou a maior força. Eu sinto que eles já não<br />

me quer mais. Mas também eles não me abandona <strong>de</strong> vez, nunca me<br />

abandonaram. Sai comigo às vezes e quando sai com minhas colega me<br />

agrada, me dá sempre uma pontinha.<br />

Ela ainda fala dos clientes fixos, que ten<strong>de</strong>m a se tornar somente amigos: “Agora<br />

mesmo eu tenho dois, eu já tive seis, agora só tenho dois” De acordo com Souza (2000,<br />

p.126) os clientes fixos “[...] são ‘especiais’, <strong>completo</strong>s, são os que gastam bastante num<br />

bar e procuram as relações sexuais. Às vezes passam a obter privilégios junto às donas-<strong>de</strong>-<br />

casa e prostitutas que se tornam solícitas, amigas e protetoras <strong>de</strong>les”.<br />

Souza (2000) e Surfistinha (2005) relatam como o encontro do cliente e prostituta<br />

constitui um local on<strong>de</strong> fantasias, segredos e frustrações são vivenciadas, e talvez só<br />

possam ser vivenciadas ali. Surfistinha fala do papel da prostituta <strong>de</strong> realizar fantasias:<br />

Na putaria, a gente entra em contato com um lado mais verda<strong>de</strong>iro e<br />

menos hipócrita das pessoas. Elas não escon<strong>de</strong>m seus <strong>de</strong>sejos mais<br />

secretos, liberam fetiches que não confessariam a ninguém, nem sob<br />

tortura. Com garota <strong>de</strong> programa, ninguém precisa fazer jogo <strong>de</strong><br />

cena. Eles vêm até mim <strong>para</strong> realizar fantasias. Funcionamos como<br />

terapeutas, às vezes. Meu critério <strong>de</strong> normalida<strong>de</strong> mudou muito <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que passei a viver <strong>de</strong> sexo. Mesmo assim, em algumas ocasiões há<br />

situações difíceis <strong>de</strong> esquecer (SURFISTINHA, 2005, p. 76).<br />

Ela relata uma situação que parece ser bastante comum:<br />

61 Nome fictício<br />

Trabalhando nos privês, <strong>de</strong>scobri que têm muitos homens casado, muitos<br />

mesmo, geralmente entre 35 e 45 anos, que querem é que você seja “ativa”<br />

<strong>para</strong> eles. ‘Você tem brinquedinhos?’, eles perguntam ao telefone. ‘Sim,<br />

muitos’. ‘E quais são?’ ‘Tem <strong>de</strong> tudo. Basta me dizer com o que você gosta<br />

<strong>de</strong> brincar’. ‘Tem vibrador?’ (SURFISTINHA, 2005, p. 77).


Algumas <strong>de</strong>finições do que seja um bom ou mau cliente fornecidas por prostitutas<br />

que <strong>de</strong>ram entrevista ao Beijo <strong>de</strong> rua 62 são as seguintes: O bom cliente é aquele que: é “[...]<br />

limpo, bom pagador, educado e carinhoso. Dá prazer à mulher. Leva <strong>para</strong> festa, almoço e<br />

passeio. Dá presente. Faz gozar. Enten<strong>de</strong> a profissão. Usa camisinha. Respeita o<br />

combinado. Não se apaixona. Não é ciumento. É objetivo, pergunta o preço e não<br />

pechincha.” O mau cliente: “Paga pouco e exige muito. Não quer usar camisinha. Não se<br />

<strong>de</strong>ci<strong>de</strong>. É agressivo. Cheira mal. Apaixona-se e tem crises <strong>de</strong> ciúmes. Quer tirá-la ‘<strong>de</strong>ssa<br />

vida’. Bebe muito. Não paga o combinado.”<br />

Para os clientes a boa profissional “É compreensiva, <strong>de</strong>monstra interesse por ele e<br />

gosta da transa. Nunca pergunta se ele já gozou. Demonstra que ele é alguém especial.<br />

Gosta <strong>de</strong> conversar. Realiza o combinado. Usa e sabe colocar a camisinha” A má<br />

profissional: “Não <strong>de</strong>monstra interesse pelo homem nem pela transa. Pergunta se ele já<br />

gozou. Não gosta <strong>de</strong> conversar. Não faz o combinado. Não sabe pôr a camisinha”.<br />

Para as prostitutas a boa profissional é aquela que “Anda arrumada e cheirosa, não<br />

abusa <strong>de</strong> bebida, sabe colocar a camisinha, procura <strong>de</strong>scobrir a fantasia do cliente, negocia<br />

antes do programa, realiza o combinado, i<strong>de</strong>ntifica o bom cliente, preserva a intimida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>le, sabe fazer o cliente voltar, não faz fofocas enquanto está na batalha”. E aquela que<br />

não é boa profissional: “ignora a conversa do cliente, não se interessa por ele, não realiza o<br />

combinado, trabalha só <strong>para</strong> sustentar vícios, não usa camisinha, não gosta do seu trabalho,<br />

é fria e impaciente, muda o valor do programa, trata mal o cliente, anda mal vestida ou nua,<br />

rouba ou usa drogas.”<br />

Gostaríamos <strong>de</strong> registrar que, apesar <strong>de</strong> as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvidas pela instituição<br />

estarem voltadas <strong>para</strong> mulheres prostitutas, não se <strong>de</strong>sconhece que, atualmente, a prestação<br />

<strong>de</strong> serviços sexuais por parte dos homens ganha visibilida<strong>de</strong>. Um lugar interessante <strong>para</strong> se<br />

constatar este fato são os anúncios nos classificados dos jornais <strong>de</strong> Salvador. A mulher<br />

também vai ganhando, cada vez mais, status <strong>de</strong> cliente, tanto <strong>de</strong> homens como <strong>de</strong> mulheres<br />

que exercem a prática da prostituição. Também o atendimento a casais, oferecido por<br />

mulheres e homens, é uma presença constante nesses anúncios.<br />

62 Beijo da rua é uma publicação mensal da Organização Não Governamental Davida - Prostituição, Direitos<br />

Civis, Saú<strong>de</strong>. Em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2004 foi lançado O Beijo da rua on-line: http://www.beijodarua.com.br


CAPÍTULO 2<br />

A COMUNICAÇÃO DA IDENTIDADE DA PROSTITUTA MILITANTE DA<br />

ASSOCIAÇÃO DAS PROSTITUTAS DA BAHIA (APROSBA) NAS INTERAÇÕES<br />

FACE A FACE E NOS USOS DA MÍDIA<br />

Os significados são, em última instância, submetidos a<br />

riscos subjetivos, quando as pessoas, à medida que se


tornam socialmente capazes, <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser escravos<br />

<strong>de</strong> seus conceitos <strong>para</strong> se tornarem seus senhores.<br />

Marshall Sahlins, 2003<br />

Neste trabalho, buscamos apreen<strong>de</strong>r como as mulheres membros da Associação das<br />

Prostitutas da Bahia, através das práticas institucionais, evi<strong>de</strong>nciam uma positivida<strong>de</strong> do<br />

fenômeno da prostituição em tensão com sua significação marginal. Tomaremos como<br />

elemento fundamental <strong>de</strong>stas práticas institucionais, os processos <strong>de</strong> comunicação tanto<br />

interpessoais como aqueles que envolvem a mídia. O grupo focalizado <strong>de</strong> maneira<br />

predominante neste momento será o formado por prostitutas membros da instituição, que<br />

chamamos <strong>de</strong> militantes. Também faremos referência ao grupo composto <strong>de</strong> prostitutas que<br />

participam como receptoras das ações da instituição, quando tal referência for esclarecedora<br />

<strong>para</strong> as questões que <strong>aqui</strong> serão abordadas.<br />

2.1 Assumir a prática da prostituição<br />

Inúmeros estudiosos da prostituição compartilham da perspectiva <strong>de</strong> Moraes (1995,<br />

p.31) <strong>de</strong> que a prostituta é percebida como um “[...] elemento que representa a<br />

<strong>de</strong>sorganização do padrão <strong>de</strong> conduta sexual admitido. É então produzida uma<br />

classificação da prostituta que <strong>de</strong>staca a idéia <strong>de</strong> perigo e <strong>de</strong> <strong>de</strong>formação do seu papel<br />

feminino”. O que nos move em direção a esta assertiva é compreen<strong>de</strong>r como um<br />

estereótipo po<strong>de</strong> ser revertido mediante certas práticas. Então, a questão que se coloca<br />

<strong>aqui</strong> é: como significações são construídas no processo <strong>de</strong> interação, através <strong>de</strong> um<br />

conjunto <strong>de</strong> práticas institucionalizadas 63 , fornecendo uma imagem mais favorável da<br />

prática <strong>de</strong> prostituição?<br />

É possível i<strong>de</strong>ntificar duas dimensões, entre as quais oscila uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

prostituta: <strong>de</strong> um lado, observa-se a construção <strong>de</strong> um perfil <strong>de</strong>preciativo da categoria, que<br />

geralmente é manifestado por mulheres que vivem mais intensamente o conflito da<br />

63 Goffman (2003, p.85) lembra que “[...] tais práticas exprimem solidarieda<strong>de</strong>, unida<strong>de</strong> e compromisso<br />

conjunto com relação à instituição”.


i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prostituta. Ocorre quando, na prática <strong>de</strong> prostituição, se criam mecanismos <strong>de</strong><br />

uma não i<strong>de</strong>ntificação como prostituta, tendo-se como referência valores dos mo<strong>de</strong>los<br />

dominantes que interferem nas suas condutas. Elas sentem vergonha e escon<strong>de</strong>m o que<br />

fazem.<br />

Por outro lado, tem-se a construção <strong>de</strong> um perfil mais positivo da categoria ligado às<br />

mulheres que ten<strong>de</strong>m a relativizar os preconceitos. Não se po<strong>de</strong> dizer que este seja um<br />

padrão dominante na prática da prostituição, mas po<strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ntificado, mesmo que <strong>de</strong><br />

forma tênue, nesta prática; e po<strong>de</strong> ser mais observado quando o exercício da prostituição<br />

está ligado ao movimento associativista, que se caracteriza pela reivindicação <strong>de</strong> um espaço<br />

profissional e político. Este espaço, por sua vez, propicia às mulheres um status. que cobra<br />

<strong>de</strong>las o se assumir plenamente enquanto prostitutas. Conforme as militantes, o movimento<br />

associativo <strong>de</strong> prostitutas costuma estimular a assunção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prostituta, pois<br />

isto se constitui num fator importante <strong>para</strong> o discurso político. “Mostrar a cara” apresenta-<br />

se como uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> respeito. A questão que as militantes se colocam é: como uma<br />

mulher po<strong>de</strong> representar uma associação se ela própria não assume ser prostituta?<br />

As observações <strong>de</strong> campo vêm mostrar que o “se assumir prostituta” é uma<br />

disposição carregada <strong>de</strong> contradições com as quais <strong>de</strong>ve conviver o movimento <strong>de</strong><br />

prostitutas. O processo <strong>de</strong> assunção <strong>de</strong>sta i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é difícil, conflituoso, contraditório.<br />

Mas o que membros <strong>de</strong> uma instituição como a Aprosba compreen<strong>de</strong>m por “se assumir”?<br />

Marilene consi<strong>de</strong>ra que o “se assumir” significa superar os preconceitos vividos<br />

pelas prostitutas:<br />

Até hoje a gente enfrenta preconceito, mas sem medo, eu não tenho<br />

medo. Existe preconceito da socieda<strong>de</strong> mesmo. Das próprias<br />

profissionais do sexo, que já têm preconceito formado <strong>de</strong> que é<br />

crime,<strong>de</strong> que tem que ficar <strong>de</strong>primida, <strong>de</strong> que tem que ficar atrás da<br />

cortina, ninguém po<strong>de</strong>r ver. Aí você luta pra acabar esse<br />

preconceito.(Informação verbal) 64<br />

Para as militantes, assumir-se implica tornar público o exercício da prática da<br />

prostituição. E esta publicização exige <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a revelação <strong>para</strong> os íntimos até a exposição na<br />

mídia. Para elas, a condição <strong>de</strong> trabalhadora do sexo no espaço da família, principalmente<br />

<strong>para</strong> os filhos, po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado o passo mais importante, e o mais difícil, <strong>para</strong> se<br />

64 Entrevista dada em 10 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2004


vencerem os preconceitos impostos a esta prática, e a mulher po<strong>de</strong>r ser i<strong>de</strong>ntificada como<br />

uma militante. Além disso, o estabelecimento <strong>de</strong> relações francas e mais duradouras com<br />

seus companheiros é uma dificulda<strong>de</strong>, ou quase uma impossibilida<strong>de</strong>, trazida pela<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prostituta. Como afirma Esmeralda:<br />

Meu primeiro marido, quando eu fui morar com ele, ele não sabia. Depois<br />

que ele soube....Ele me seguia até o lugar que eu fazia programa, ele<br />

<strong>de</strong>scobriu e a gente se separou. E com esse po<strong>de</strong> ser que aconteça a mesma<br />

coisa, o dia que ele <strong>de</strong>scobrir a gente se<strong>para</strong>. Eu conheci ele numa festa, na<br />

festa <strong>de</strong> Santo Antônio. Não estava fazendo programa, tava curtindo com<br />

minhas amigas. Se eu conhecesse ele no brega, aí é diferente, aí ele já sabia<br />

minha vida. Assim mesmo, eu não acho legal porque eu vejo o exemplo <strong>de</strong><br />

outras meninas que arranja namorado no brega e <strong>de</strong>pois ele quer que<br />

sustente ele. Porque ele sabe que faz programa, aceita e <strong>de</strong>pois quer que<br />

sustente ele. Muitos até batem se ela não levar dinheiro <strong>para</strong> casa. A<br />

maioria das meninas não falam que fazem programa por isso mesmo.<br />

Primeiro, porque ele às vezes não aceita. Segundo, se aceitar, vai querer que<br />

ela dê na mão <strong>de</strong>le.(Informação verbal) 65<br />

A fala <strong>de</strong> Izete, membro da Aprosba que diz se assumir plenamente, mostra como a<br />

assunção da prostituição é a maior barreira à constituição <strong>de</strong> uma associação:<br />

Você tem que quebrar todo um elo. Você quebra o elo porque você tem que<br />

aparecer <strong>para</strong> a socieda<strong>de</strong>, você tem que aparecer pra seus pais, você tem<br />

que aparecer pro seus filhos, você tem que aparecer pro companheiro, <strong>para</strong><br />

socieda<strong>de</strong> e você não po<strong>de</strong> fechar as portas e dizer assim: “eu sou<br />

profissional do sexo, eu sou prostituta”, pra uma socieda<strong>de</strong>, é uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

comunicação. Você fala numa televisão, você fala num rádio: eu sou uma<br />

profissional do sexo, eu estou fazendo esse <strong>de</strong>senvolvimento com as minhas<br />

colegas. Então, você tem que ter todo um pre<strong>para</strong>tivo <strong>para</strong> informar à<br />

socieda<strong>de</strong> que você é profissional ... dá então pra você se mostrar <strong>de</strong> cara,<br />

<strong>para</strong> tá dando continuida<strong>de</strong> pra fundar uma instituição. Como têm muitas<br />

garotas que trabalham <strong>de</strong> espelho, trabalham <strong>de</strong> escudo: “pra minha família,<br />

eu trabalho em casa <strong>de</strong> família”, então fica meio difícil falar em uma ca<strong>de</strong>ia<br />

né, <strong>de</strong> televisão, em rádio, “eu sou profissional”. Graças a Deus, eu não<br />

tenho esse problema em falar “eu sou prostituta, eu sou profissional, eu tô<br />

na militância”; mesmo pra família. (Informação verbal) 66<br />

Para ela o que predomina entre as prostitutas é a seguinte fala: “Eu não faço, eu não<br />

faço isso (risos), eu vou sair, eu tô <strong>aqui</strong>...., mas assumir, assumir assim, é difícil”.<br />

65 Entrevista dada em 28 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2004<br />

66 Entrevista dada em 14 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2004


A atitu<strong>de</strong> relativa ao se “assumir” participa com peso significativo no<br />

estabelecimento <strong>de</strong> relação <strong>de</strong> tensão entre o movimento associativista e as prostitutas “não<br />

militantes”. No entanto esta tensão também está presente entre as próprias militantes. É<br />

importante ressaltar que a participação em uma associação <strong>de</strong> prostitutas, mesmo como<br />

dirigente, não significa que haja compartilhamento <strong>de</strong> uma certa doutrina formulada,<br />

historicamente, pelas li<strong>de</strong>ranças do movimento, o que gera situações <strong>de</strong> conflito. O<br />

movimento é marcado por diferenças, embates, principalmente no que tange à percepção<br />

sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prostituta. Po<strong>de</strong>mos observar condutas geradas pelas experiências<br />

cotidianas das mulheres que po<strong>de</strong>m, inclusive, colocar em questão sua lealda<strong>de</strong> ao<br />

movimento, como também veremos ao longo <strong>de</strong>sta investigação. Gabriela Leite comenta<br />

sobre as diferenças que marcam as associações no interior do movimento <strong>de</strong> prostitutas:<br />

o movimento:<br />

Como em todo movimento nós temos associações fortes, associações mais<br />

fr<strong>aqui</strong>nhas e associações que estão equivocadas. Eu acho que nós temos<br />

ainda muitas associações equivocadas que com o advento do toda a história<br />

do <strong>Programa</strong> Nacional <strong>de</strong> Aids, financiamento e a história <strong>de</strong> eles<br />

colocarem como um dos referenciais mesmo do projeto a formação <strong>de</strong><br />

associações, foi se formando associação por se formar, cê enten<strong>de</strong>u? Para<br />

colocar como resultado esperado, sabe? Depois como resultado <strong>de</strong> projeto e<br />

tudo o mais. E isso eu acho que trouxe alguns problemas porque muitas<br />

associações se formaram e as pessoas nem ficaram sabendo porque aquela<br />

associação e qual que era a gran<strong>de</strong> história daquela associação e tudo mais e<br />

tal, né? Então daí você chega a questões que tem a ver com estigma e tal,<br />

como a menina do Rio Gran<strong>de</strong> do Norte que veio me falar que pegava até<br />

mal ela ser presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma associação e estar fazendo programa.<br />

(Informação verbal) 67<br />

Ela fala <strong>de</strong> como a questão <strong>de</strong> assumir a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prostituta é um problema <strong>para</strong><br />

É por isso que eu digo que primeiramente é um movimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. E<br />

aí se você não tem esse princípio como princípio primeiro, né, da<br />

organização, cê per<strong>de</strong> todo o resto. Isso vira um entida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ajuda à<br />

prostituta , não um entida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prostituta <strong>para</strong> prostituta. Então eu acho que<br />

isso é uma das questões primeiras que nós vamos ter que prestar muita<br />

atenção agora inclusive nas capacitações <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança, do que é<br />

associativismo e tudo o mais. Que como bem disse a Leila, nós já passamos<br />

<strong>de</strong>ssa fase <strong>de</strong> ficar discutindo se é legal ser prostituta, não é legal ser<br />

prostituta, né? E agora quem entra na história tem que entrar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />

67 Entrevista realizada durante o I Seminário Nor<strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Sustentabilida<strong>de</strong> das Ações <strong>para</strong> Profissionais do<br />

Sexo realizado no período <strong>de</strong> 15 a 17 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 20004, em Salvador .


<strong>de</strong>terminadas, <strong>de</strong>terminadas linhas <strong>de</strong> trabalho, né? E aí não é fechar o<br />

movimento, é ele ficar mais forte mesmo, né? (informação verbal) 68<br />

Comenta como a Aprosba lida com o problema da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>:<br />

Agora, eu acho que também têm muitas associações fenomenais, né? A<br />

gente tem muitas associações fenomenais. Eu, particularmente, não é<br />

porque eu tô <strong>aqui</strong> não, eu adoro a Aprosba, gosto muito, porque ela traz um<br />

referencial novo que é o da juventu<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>u? As meninas... porque nós<br />

éramos...porque estamos ficando velhas né? (risos) E ninguém fica aí pra<br />

semente...e com toda uma história que é uma história <strong>de</strong> assumir a<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, né? Eu, eu, um cartaz que a gente tem, até lá na, na associação<br />

do Rio, lá no Davida, é um cartaz que eu acho que é fenomenal, das<br />

meninas, aquele que tá todo mundo com aquelas fitinhas na testa né? Isso,<br />

isso, isso, prostituta e essa coisa toda né? Eu sei qual foi o processo <strong>de</strong>las<br />

fazerem esse cartaz, sentadas num bar, pensaram esse cartaz, então eu acho<br />

isso é muito legal, né? Uma transa forte da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> profissional que não<br />

é fácil, não tô dizendo que é fácil, foi difícil pra mim, é difícil pra todo<br />

mundo tal, mas eu acho que é por aí que a gente vai<br />

trabalhando.(Informação verbal) 69<br />

Essa dificulda<strong>de</strong> ainda é relatada por Gabriela na sua coluna no Beijo da Rua<br />

Outro dia também fiquei sabendo <strong>de</strong> uma colega prostituta <strong>de</strong> longa data<br />

(35 anos) e militante do movimento <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 80, que ela está<br />

muito dividida querendo até sair do movimento porque encontrou um<br />

namorado e não contou pra ele que é prostituta. Agora ela está apaixonada e<br />

tem medo <strong>de</strong> que ele a <strong>de</strong>ixe, caso venha a saber do seu “passado”, ou seja,<br />

outra vez a volta à vida dupla, novamente uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> partida. Outra<br />

colega, também militante do movimento, não aceitou ser filmada <strong>para</strong> um<br />

documentário sobre prostituição porque não queria se expor como<br />

prostituta 70<br />

Se tomamos a categoria da assunção da prática da prostituição como fruto da<br />

articulação entre uma lógica interna da militância <strong>de</strong> prostituta, que se caracteriza pela<br />

afirmação <strong>de</strong>sta prática, e uma outra, da estigmatização, marcada pela negação <strong>de</strong>sta<br />

mesma prática, po<strong>de</strong>mos perceber que é da tensão entre estas duas dinâmicas que se<br />

revelam inconsistências e incoerências inerentes àquela categoria. Neste sentido, não<br />

po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> nos referir à mídia como elemento fundamental na construção da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> militante. A mídia constitui-se em um espaço no qual esta tensão <strong>de</strong>ve ser<br />

68 Entrevista citada na nota 68<br />

69 Entrevista citada na nota 68<br />

70 LEITE, Gabriela. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> partida. Jornal Beijo da rua. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Abr 2005. Coluna da Gabi, p.12


neutralizada, o lugar on<strong>de</strong> a consistência e a coerência relacionadas às condutas <strong>de</strong><br />

prostituta militante <strong>de</strong>vem ser confirmadas. Trataremos <strong>de</strong>sse ponto mais adiante.<br />

Essas consi<strong>de</strong>rações nos conduzem à idéia <strong>de</strong> que estamos lidando <strong>aqui</strong> com um processo <strong>de</strong><br />

ressignificação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> marginal. Tal ressignificação, acreditamos, po<strong>de</strong> ser compreendida a partir<br />

<strong>de</strong> um olhar atento sobre os processos comunicativos que produzem e expressam uma outra significação a<br />

respeito do que seja ser prostituta. Será, portanto, capital observar como os atores produzem e tratam a<br />

informação nas trocas e como utilizam a linguagem enquanto recurso. Isto implica efetuar uma análise das<br />

ações cotidianas dos agentes envolvidos nas ativida<strong>de</strong>s da instituição, análise que <strong>de</strong>ve ser feita do ponto <strong>de</strong><br />

vista dos participantes, <strong>de</strong> suas perspectivas. Esta percepção, que embasa o nosso trabalho, está associada à<br />

perspectiva <strong>de</strong> que, como evi<strong>de</strong>ncia Coulon (1995), as interações são fundamento da vida social na medida<br />

em que criam, permanentemente, suas microestruturas. Por conseguinte, a estrutura e a or<strong>de</strong>m social não<br />

existem in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente dos indivíduos que as constroem.<br />

Se consi<strong>de</strong>ramos que as relações humanas são mediadas por uma tradição coletiva<br />

que opera como uma mediação simbólica (quando viemos ao mundo, encontramos um<br />

mundo <strong>de</strong> instituições), não po<strong>de</strong>mos negligenciar o fato <strong>de</strong> que é a comunicação que<br />

permite a recepção <strong>de</strong>sta tradição ou <strong>de</strong> uma cultura instituída. É ela, afinal, que vai<br />

possibilitar novas instituições. Po<strong>de</strong>mos, então, dizer que as dimensões simbólicas e<br />

imaginárias que configuram as relações humanas se sustentam na e pela comunicação.<br />

Thompson (1999), ao abordar o papel dos meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa nas<br />

instituições do período mo<strong>de</strong>rno, <strong>de</strong>monstra como as formas <strong>de</strong> organização social estão<br />

em estreita relação com os processos comunicacionais.<br />

Insistindo ainda um pouco mais na importância dos processos comunicacionais na<br />

conformação da organização social, vamos dizer que um sistema sociocultural <strong>de</strong>fine-se<br />

pelo modo <strong>de</strong> comunicação que o especifica. Este modo <strong>de</strong> comunicação agrega tanto as<br />

tecnologias <strong>de</strong>stinadas a comunicar, assim como, conforme salienta Louis Quéré (1998),<br />

um dispositivo intelectual que é aí acionado <strong>para</strong> produzir, validar e transmitir os<br />

conhecimentos e os quadros motivacionais e normativos da ação. Se a vida em grupo<br />

está organizada em torno da comunicação, esta comunicação não apenas consiste na<br />

transmissão <strong>de</strong> idéias <strong>de</strong> uma pessoa a outra, mas envolve também um conjunto <strong>de</strong><br />

sentidos compartilhados. “Compartilhado quer dizer mais que o emprego <strong>de</strong> termos <strong>de</strong><br />

forma suficientemente análoga <strong>para</strong> que as pessoas se entendam entre si; significa


também que os termos <strong>de</strong>rivam <strong>de</strong> uma ação comunitária e, por sua vez, permitem, essa<br />

mesma ação” (STRAUSS, 1999, p.150).<br />

2.2. A comunicação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> marginal<br />

Concordamos que o conceito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é <strong>de</strong> difícil <strong>de</strong>finição (pois comporta elementos<br />

subjetivos), mas como lembra Anselm Strauss (1999, p.29) “[...] seja o que for, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> está associada às<br />

avaliações <strong>de</strong>cisivas feitas <strong>de</strong> nós mesmos — por nós mesmos e pelos outros”. Sugerimos <strong>aqui</strong> uma análise <strong>de</strong><br />

um processo social do qual emerge uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> “mais positiva” da prostituta. Esse processo é o <strong>de</strong><br />

construção <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> a partir da vinculação a uma instituição. Para compreendê-lo talvez seja<br />

interessante iniciar nossa reflexão apoiada nas idéias <strong>de</strong> Erving Goffman<br />

Na sua obra Estigma: notas sobre a manipulação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong>teriorada,<br />

Goffman discute a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> estigmatizada através <strong>de</strong> três conceitos-chave: i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

social, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do eu. Na sua abordagem da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

estigmatizada o tratamento da informação ganha especial relevo. Segundo Goffman (1998)<br />

o conceito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social permite consi<strong>de</strong>rar a estigmatização, e o conceito <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal permite consi<strong>de</strong>rar o papel do controle da informação na manipulação do<br />

estigma. Se as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s social e pessoal são parte, antes <strong>de</strong> mais nada, dos interesses e<br />

<strong>de</strong>finições <strong>de</strong> outras pessoas em relação ao indivíduo cuja i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> está em questão, “[....]<br />

a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do eu é, sobretudo, uma questão subjetiva e reflexiva que <strong>de</strong>ve<br />

necessariamente ser experimentada pelo indivíduo cuja i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> está em<br />

jogo”(GOFFMAN, 1998, P.117). Estes conceitos servirão <strong>de</strong> base <strong>para</strong> nossa discussão ao<br />

longo <strong>de</strong>ste capítulo, quando teremos oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvê-los.<br />

O conceito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do eu nos permite consi<strong>de</strong>rar o que o indivíduo po<strong>de</strong><br />

experimentar a respeito do estigma e sua manipulação, e nos leva a dar atenção especial<br />

à informação que ele recebe quanto a essas questões. Em A representação do eu na vida<br />

cotidiana, Goffman <strong>de</strong>senvolve uma perspectiva dramatúrgica, com o objetivo <strong>de</strong><br />

apreen<strong>de</strong>r a maneira pela qual o indivíduo apresenta a si mesmo e as suas ativida<strong>de</strong>s aos<br />

outros em situações cotidianas. Dá ênfase aos meios pelos quais o indivíduo dirige e<br />

regula a impressão que os outros formam a seu respeito, enfocando as relações grupais e<br />

o significado da apresentação e da comunicação num dado con<strong>texto</strong> social. Nesta sua


obra a interação social constitui um processo comunicativo a partir <strong>de</strong> um evento<br />

simbólico partilhado pelos atores sociais. Mas não <strong>de</strong>ve ser entendida somente como<br />

uma ativida<strong>de</strong> cooperativa que garante a adaptação do indivíduo à socieda<strong>de</strong>, mas<br />

também como uma representação no sentido da dramaturgia, através da qual pessoa<br />

transforma-se em persona - máscara.<br />

O eu”, portanto, como um personagem representado, não é uma coisa<br />

orgânica, que tem uma localização <strong>de</strong>finida, cujo <strong>de</strong>stino fundamental é<br />

nascer, crescer e morrer; é um efeito dramático, que surge difusamente <strong>de</strong><br />

uma cena apresentada, e a questão característica, o interesse primordial, está<br />

em saber se será acreditado ou <strong>de</strong>sacreditado”(GOFFMAN, 2003a, p.238-<br />

239)<br />

O “Eu” é, assim, algo que vai surgindo durante o processo <strong>de</strong> interação, fruto <strong>de</strong> diversas situações sociais<br />

em que o ator se inscreve na experiência e vivência cotidianas.<br />

Se <strong>para</strong> Goffman (1998) o conceito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social permite consi<strong>de</strong>rar a<br />

estigmatização, gostaríamos <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar, como extremamente esclarecedora <strong>para</strong> nossa<br />

investigação, o tratamento que o autor dá, em sua análise do estigma, à manipulação da<br />

informação por parte dos indivíduos estigmatizados. Sobre a natureza da informação que<br />

envolve o estigma, a mais relevante tem <strong>de</strong>terminadas proprieda<strong>de</strong>s. É uma informação<br />

sobre o indivíduo, sobre suas características mais ou menos permanentes, em oposição a<br />

estados <strong>de</strong> espírito, sentimentos ou intenções que ele po<strong>de</strong>ria ter num certo momento. Essa<br />

informação, assim como o signo que a transmite, é reflexiva e corporificada, ou seja, é<br />

transmitida pela própria pessoa a quem se refere, através da expressão corporal na presença<br />

imediata daqueles que a recebem. O autor lembra que Alguns signos que transmitem<br />

informação social po<strong>de</strong>m ser acessíveis <strong>de</strong> forma freqüente e regular, e buscados e<br />

recebidos habitualmente; esses signos po<strong>de</strong>m ser chamados <strong>de</strong> símbolos.<br />

Historicamente as prostitutas formaram uma categoria bem marcada com símbolos<br />

<strong>de</strong> estigmas. Jeffrey Richards recupera alguns <strong>de</strong>sses símbolos que <strong>de</strong>veriam<br />

obrigatoriamente fazer parte da apresentação da prostituta na ida<strong>de</strong> média:<br />

Primeiro, as prostitutas tinham que ser diferenciadas da população <strong>de</strong>cente<br />

pela prescrição <strong>de</strong> uma marca <strong>de</strong> infâmia, e segundo elas tinham que ser<br />

segregadas. Os canonistas do século XIII argumentavam que as prostitutas


<strong>de</strong>veriam ser assinaladas pelo uso <strong>de</strong> vestes distintivas, e o concílio <strong>de</strong> Paris<br />

(1212) <strong>de</strong>cretou: ‘Nós proibimos as prostitutas públicas (com quem a<br />

coabitação freqüente é mais eficiente do que a peste <strong>para</strong> trazer danos) <strong>de</strong><br />

serem permitidas a viver na cida<strong>de</strong> ou burg, mas, ao contrário [elas] <strong>de</strong>vem<br />

ser colocadas à parte, como é costume com os leprosos’. Esta disposição <strong>de</strong><br />

espírito levou ao surgimento, a partir do século XIII, <strong>de</strong> códigos <strong>de</strong><br />

vestimentas distintivos e zonas da ‘luz vermelha’. Em muitos lugares, a<br />

aiguillette, uma corda com nós pen<strong>de</strong>ntes do ombro e <strong>de</strong> cor diferente da do<br />

vestido, era a marca da infâmia. Era inspirada na cor vermelha jogada da<br />

sua janela por Raab, a meretriz, no livro <strong>de</strong> Josué. Tornou-se portanto o<br />

equivalente direto da rouelle dos ju<strong>de</strong>us e do guizo dos leprosos. A<br />

aiguillette vermelha era comum no reino da França, mas a marca variava<br />

em outros lugares. Em Toulouse era um nó branco; em Viena, um lenço<br />

amarelo; em Leipzig, uma capa amarela com adorno azuis; em Berna e<br />

Zurique, um chapéu vermelho; em Dijon e Avignon, uma braça<strong>de</strong>ira branca<br />

<strong>de</strong> quatro <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> largura. Em Milão, era uma capa branca; em Bérgamo,<br />

uma capa amarela; em Marselha, uma túnica listrada; em Bristol, um capuz<br />

listrado. Em Estrasburgo, era um chapéu do tipo pão <strong>de</strong> açúcar preto e<br />

branco; em Nimes, uma manga <strong>de</strong> cor diferente da do vestido; em Florença,<br />

luvas e um sino no chapéu” (RICHARDS, 1993, P.124).<br />

É preciso levar em conta também como o sujeito negocia essas informações. Já foi<br />

dito que o conceito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal permite consi<strong>de</strong>rar o papel do controle da<br />

informação na manipulação do estigma. Goffman (1988) nos mostra como o fator da<br />

i<strong>de</strong>ntificação encontra-se relacionado à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal quando as instituições utilizam-<br />

se <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> marcas <strong>para</strong> diferenciar a pessoa assim marcada <strong>de</strong> todos os outros<br />

indivíduos. Atributos biológicos imitáveis, como a caligrafia ou a aparência<br />

fotograficamente comprovada; itens que são registrados <strong>de</strong> maneira permanente, como<br />

certidão <strong>de</strong> nascimento, nome e número da carteira <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Isso não significa que,<br />

entre pessoas estigmatizadas, não haja um esforço <strong>de</strong> adquirir uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal que<br />

não seja a sua. Nesse caso a mudança <strong>de</strong> nome é significativa. Por exemplo, entre as<br />

prostitutas a utilização <strong>de</strong> nomes falsos é meio <strong>para</strong> i<strong>de</strong>ntificação pessoal. Mas sendo o<br />

nome um meio não muito confiável <strong>de</strong> fixar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, outros recursos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação<br />

são utilizados socialmente <strong>para</strong> garantir que não haja equívocos em relação à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

pessoal. Para Goffman (1988, p.74), mesmo que a informação sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal<br />

seja <strong>de</strong> um tipo que po<strong>de</strong> ser estritamente documentada e usada como proteção contra<br />

falsificações da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social, ainda assim é passível <strong>de</strong> falsificação. Ele faz a distinção<br />

entre falsa informação social e falsa informação pessoal:


[...] as normas relativas à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social [...] referem-se aos tipos <strong>de</strong><br />

repertórios <strong>de</strong> papéis ou perfis que consi<strong>de</strong>ramos que qualquer indivíduo<br />

po<strong>de</strong> sustentar [...] normas relativas à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal, entretanto,<br />

pertencem não a esferas <strong>de</strong> combinações permissíveis <strong>de</strong> fatos sociais mas<br />

ao tipo <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> informação que o indivíduo po<strong>de</strong> exercer com<br />

proprieda<strong>de</strong>” (GOFFMAN, 1988, p. 74)<br />

Para Goffman (1998) essa distinção, no entanto, não implica que i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social e<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal não estejam entrelaçadas. Ele evi<strong>de</strong>ncia o fato <strong>de</strong> que a construção <strong>de</strong><br />

uma i<strong>de</strong>ntificação pessoal se apóia em aspectos da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social. Por outro lado a<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar pessoalmente um indivíduo fornece um recurso <strong>de</strong> memória que é<br />

utilizado <strong>para</strong> organizar e consolidar a informação que diz respeito à sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social<br />

Assim, “[...] o problema do indivíduo, no que se refere à manipulação <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

pessoal e social, variará muito segundo o conhecimento ou <strong>de</strong>sconhecimento que as pessoas<br />

em sua presença têm <strong>de</strong>le e, em caso positivo, segundo o seu próprio conhecimento do<br />

fato”(1998, p.77). Esse conhecimento ou <strong>de</strong>sconhecimento está associado ao que Goffman<br />

<strong>de</strong>fine como um indivíduo “<strong>de</strong>sacreditado” ou um indivíduo “<strong>de</strong>sacreditável”. Ser<br />

<strong>de</strong>sacreditado implica que sua “diferença” po<strong>de</strong> se tornar evi<strong>de</strong>nte nas seguintes situações:<br />

quando o indivíduo nos é apresentado e já temos conhecimento do fato; quando o indivíduo<br />

nos é apresentado e tomamos conhecimento do fato; e, finalmente, po<strong>de</strong> ser que não<br />

reconheçamos imediatamente sua diferença. Nesta situação a tensão <strong>de</strong>ve ser manipulada,<br />

pois é uma situação incerta e ambígua <strong>para</strong> todos os participantes, sobretudo <strong>para</strong> a pessoa<br />

estigmatizada. Quanto ao indivíduo <strong>de</strong>sacreditável, sua “diferença” não está imediatamente<br />

aparente e não se tem <strong>de</strong>la um conhecimento prévio 71 . Aqui, <strong>de</strong>vemos não mais consi<strong>de</strong>rar<br />

a manipulação da tensão gerada na interação, mas a manipulação da informação sobre a<br />

“diferença”. Deve-se estabelecer uma nítida distinção entre a situação da pessoa<br />

<strong>de</strong>sacreditada que <strong>de</strong>ve manipular a tensão e a situação da pessoa <strong>de</strong>sacreditável que <strong>de</strong>ve<br />

manipular a informação. “Os estigmatizados empregam uma técnica adaptativa, entretanto,<br />

que exige que o investigador consi<strong>de</strong>re essas duas possibilida<strong>de</strong>s. A diferença entre a<br />

visibilida<strong>de</strong> e a obstrução estão implícitas neste ponto” (GOFFMAN, 1998, p.113).<br />

71 De acordo com Goffman (1998) os outros po<strong>de</strong>m saber a diferença do indivíduo sem que ele saiba que os<br />

outros sabem.


Uma vez que indivíduo estigmatizado adquire mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que aplica a si<br />

mesmo a <strong>de</strong>speito da impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se conformar a eles, é inevitável que sinta alguma<br />

ambivalência em relação o seu próprio eu. O indivíduo estigmatizado, então, se <strong>de</strong>fine<br />

como não diferente <strong>de</strong> qualquer outro ser humano, embora ao mesmo tempo pessoas<br />

próximas o <strong>de</strong>finam como alguém marginalizado. Dada essa auto-contradição básica do<br />

indivíduo estigmatizado, é compreensível que ele se esforce <strong>para</strong> <strong>de</strong>scobrir uma doutrina<br />

que forneça um sentido consistente à sua situação. Assim, códigos <strong>de</strong> conduta são<br />

elaborados. “Estes códigos fornecem ao indivíduo estigmatizado não só uma plataforma e<br />

uma política e não só instruções sobre como tratar os outros, mas também receitas <strong>para</strong> uma<br />

atitu<strong>de</strong> apropriada em relação ao seu eu”(GOFFMAN, 1998, p.122). Não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar a relevância do tratamento que Gofffman dá a relação entre i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social e<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal <strong>para</strong> o estudo da prostituição.<br />

2.3. Sobre o encobrimento e o acobertamento<br />

Vimos que a questão relativa ao se assumir como prostituta é central <strong>para</strong> o<br />

movimento associativista. Por outro lado, o estigma da prostituição é um fenômeno<br />

reconhecido tanto pelo senso comum como pelos saberes especializados. Entre li<strong>de</strong>ranças<br />

do movimento é uma referência constante. Sendo um estigma exige do estigmatizado<br />

cuidados <strong>para</strong> não se expor in<strong>de</strong>vidamente. Moraes <strong>de</strong>staca essa idéia:<br />

[...] mulheres que omitem da família este seu <strong>de</strong>sempenho profissional<br />

obviamente apresentam um maior nível <strong>de</strong> rejeição quanto à assunção <strong>de</strong><br />

uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que as vincule ao trabalho com sexo. Este grupo apresenta<br />

argumentações que corroboram uma postura <strong>de</strong> resistência a qualquer forma<br />

<strong>de</strong> inserção na profissão, evitam ativida<strong>de</strong>s que exponham suas imagens ao<br />

reconhecimento público e, quando participam, condicionam isto a um<br />

encobrimento. Estas também costumam justificar a prostituição como<br />

ativida<strong>de</strong> exclusivamente transitória, preferindo não se envolver com<br />

colegas e acontecimentos comunitários (MORAES, 1995, p.73)<br />

O quadro <strong>de</strong>scrito por Moraes é dominante entre as mulheres que participam das ativida<strong>de</strong>s da<br />

Aprosba como receptoras. Muitas <strong>de</strong>ssas mulheres freqüentam há mais <strong>de</strong> cinco anos as reuniões semanais da


instituição, nas quais são discutidos temas que vão <strong>de</strong> dicas <strong>de</strong> beleza a diretos e <strong>de</strong>veres das prostitutas,<br />

reconhecem a importância do trabalho da Aprosba, principalmente no que diz respeito ao campo da saú<strong>de</strong>,<br />

mas são completamente impermeáveis a qualquer discurso que diga respeito à importância ou à necessida<strong>de</strong><br />

da prostituta se assumir enquanto prostituta, como veremos <strong>de</strong> forma mais <strong>de</strong>talhada mais adiante no nosso<br />

estudo.<br />

Quando uma pessoa, “efetiva ou intencionalmente, consegue realizar o<br />

encobrimento, é possível que haja um <strong>de</strong>scrédito em virtu<strong>de</strong> do que se torna aparente sobre<br />

ela, aparente mesmo <strong>para</strong> os que só o i<strong>de</strong>ntificam socialmente com base no que está<br />

acessível a qualquer estranho naquela situação social” (GOFFMAN, 1998, p.86). A<br />

prostituta que se encobre está constantemente prevenida <strong>para</strong> não ser apanhada em<br />

flagrante. Ainda mais que, segundo Goffman, é importante <strong>para</strong> um indivíduo a<br />

preservação <strong>de</strong> uma boa recordação <strong>de</strong> si por parte daquelas pessoas com as quais já não<br />

vive mais. “Essa preocupação sentimental com aqueles com quem não temos mais contato<br />

efetivo nos mostra um dos castigos que merece uma ocupação imoral [...]” (GOFFMAN,<br />

1998, p.90)<br />

É comum essa situação entre prostitutas que participam das ações da Aprosba, que<br />

vieram do interior e vivem essa experiência. O relato <strong>de</strong> Rosa 72 é ilustrativo:<br />

Eu vim do interior e moro no lugar que faço programa, na la<strong>de</strong>ira da<br />

Montanha. Minha família ficou no interior e todo mundo da minha<br />

família sabe que eu faço programa: meus filhos, minha mãe, meu<br />

irmão, mas os vizinhos não sabem, eu não quero que eles fiquem<br />

sabendo. Lá é uma cida<strong>de</strong> pequena e eu não quero não...(Informação<br />

verbal) 73<br />

A preocupação neste caso, não é o encobrimento <strong>para</strong> a família, situação dominante<br />

entre as prostitutas, mas <strong>para</strong> a comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> origem. Ainda é interessante notar, com<br />

relação ao encobrimento, uma situação ambivalente, já que diferente <strong>de</strong> outras profissões, a<br />

prostituição exige um modo particular, visível <strong>de</strong> exibição <strong>de</strong> si, do corpo. Por outro lado<br />

tal exibição está associada aos locais instituídos como espaço <strong>de</strong> prática da prostituição. No<br />

que diz respeito à prostituição <strong>de</strong> baixa renda são, geralmente, lugares “marginais” que<br />

“protegem” as mulheres do reconhecimento in<strong>de</strong>sejável por parte da família, amigos,<br />

72 Não é o nome enquanto exercendo a ocupação (o nome <strong>de</strong> “batalha”), nem é o nome verda<strong>de</strong>iro<br />

73 Registro <strong>de</strong> campo


vizinhos (o que é mais difícil no caso da prostituição e rua). No entanto, como mostraremos<br />

logo mais à frente, as mulheres po<strong>de</strong>m sempre se <strong>de</strong><strong>para</strong>r com situações constrangedoras.<br />

A transformação da percepção e das práticas <strong>de</strong> prostituição inclui a transformação<br />

dos símbolos <strong>de</strong> estigma. Atualmente po<strong>de</strong>mos dizer que as marcas estigmatizantes que são<br />

impressas na aparência, em relação às prostitutas, encontram-se quase que <strong>de</strong>svanecidas.<br />

Qualquer uma po<strong>de</strong> passar <strong>de</strong>sapercebida na sua ocupação. O que permanece como marca<br />

distintiva são os locais que são instituídos como espaços <strong>de</strong> prática da prostituição. Mesmo<br />

assim lembramos, como foi mencionado no capítulo anterior, que qualquer espaço po<strong>de</strong> ser<br />

ocupado pela prostituição sem que as mulheres que ali se encontram, com o objetivo <strong>de</strong><br />

“fazer programa,” sejam i<strong>de</strong>ntificadas, se assim o <strong>de</strong>sejarem, como prostitutas. Essa<br />

questão po<strong>de</strong> ser discutida <strong>de</strong> forma mais significativa a partir das consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong><br />

Goffman <strong>de</strong> como o mundo do sujeito está dividido espacialmente <strong>para</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

social e sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal. Segundo Goffman po<strong>de</strong>-se indicar que, <strong>de</strong>vido à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

social, o indivíduo que tem um atributo diferencial secreto encontrar-se-á durante a rotina<br />

diária e semanal em três tipos possíveis <strong>de</strong> lugares:<br />

Haverá lugares proibidos ou inacessíveis, on<strong>de</strong> as pessoas do seu tipo estão<br />

proibidas <strong>de</strong> ir [...] Há lugares públicos nos quais pessoas <strong>de</strong>sse tipo são<br />

tratadas cuidadosamente e, às vezes, penosamente, como se não estivessem<br />

<strong>de</strong>squalificadas <strong>para</strong> uma aceitação rotineira quando, na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma<br />

certa maneira, o estão. Finalmente, há lugares retirados on<strong>de</strong> as pessoas<br />

<strong>de</strong>sse tipo po<strong>de</strong>m se expor e perceber que não precisam escon<strong>de</strong>r o seu<br />

estigma [...] Em alguns casos, essa liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ação é conseqüência da<br />

escolha da companhia <strong>de</strong> pessoas que têm estigmas iguais ou<br />

semelhantes...Em outros casos, o lugar retirado po<strong>de</strong> ser involuntariamente<br />

criado como resultado do agrupamento administrativo <strong>de</strong> indivíduos, contra<br />

sua vonta<strong>de</strong>, em função <strong>de</strong> um estigma comum O mundo do indivíduo em<br />

lugares públicos, proibidos, e lugares retirados, estabelece o preço que se<br />

paga pela revelação ou pelo ocultamento e o significado que tem o fato <strong>de</strong> o<br />

estigma ser conhecido ou não, quaisquer que sejam as estratégias <strong>de</strong><br />

informação escolhidas (GOFFMAN, 1988, p.86).<br />

Os problemas e conseqüências do encobrimento po<strong>de</strong>m ser melhor entendidos consi<strong>de</strong>rando-se o fato<br />

<strong>de</strong> que o mundo espacial do indivíduo está dividido em várias regiões, segundo as contingências nelas<br />

contidas <strong>para</strong> a manipulação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal. O indivíduo que se encobre po<strong>de</strong> encontrar-se em<br />

situações não previstas que o obrigam a dar uma informação que o <strong>de</strong>sacredita. E como muito bem registra<br />

Goffman (1998, p.96) “[...] cada grupo <strong>de</strong> estigmatizados parece ter seu repertório próprio <strong>de</strong> relatos <strong>de</strong><br />

advertência sobre uma exibição embaraçosa e a maior parte <strong>de</strong> seus membros po<strong>de</strong> dar exemplo <strong>de</strong> sua


própria experiência”. Nos locais <strong>de</strong> atuação da Aprosba, que são locais institucionalizados <strong>de</strong> prática <strong>de</strong><br />

prostituição, as mulheres sempre têm experiências <strong>de</strong>ssa natureza a relatar. Vamos ver algumas <strong>de</strong>ssas<br />

experiências <strong>de</strong> mulheres que trabalham na La<strong>de</strong>ira da Montanha:<br />

Michelle - Na minha cida<strong>de</strong> ninguém sabe o que eu faço. Aqui em Salvador<br />

é fácil, as pessoas não se conhece eu moro <strong>aqui</strong> mesmo. Um dia apareceu<br />

um rapaz da minha cida<strong>de</strong>, ele não me viu. Eu corri e fiquei escondida com<br />

medo e que ele me visse e contasse na minha cida<strong>de</strong>. (Informação verbal) 74<br />

Verônica - Eu tava na La<strong>de</strong>ira da Montanha, na porta da casa que eu faço<br />

programa. Cê sabe que todo mundo que tá ali é puta. O meu ex- marido<br />

passou e me viu. Aí ele contou pra toda a minha família. Meus filhos<br />

ficaram sabendo, eu não queria. Eles não me con<strong>de</strong>na, não fala mal <strong>de</strong> mim.<br />

Eu não <strong>de</strong>ixo faltar nada pra eles (informação verbal) 75<br />

Estas experiências, como tantas outras, nos lembram que o estigma não atinge<br />

exclusivamente o indivíduo estigmatizado, mas também as pessoas próximas a esse<br />

indivíduo. É importante <strong>de</strong>stacar que os locais <strong>de</strong> prostituição em Salvador,<br />

principalmente os mais favorecidos, estão sendo cada vez mais encobertos e não po<strong>de</strong>m<br />

ser mais visualizados com tanta facilida<strong>de</strong>. Não são mais locais segregados como<br />

décadas atrás, mas convivem, sem <strong>de</strong>stoar, em qualquer o espaço da cida<strong>de</strong>. Disfarçados<br />

<strong>de</strong> cafés, misturados às áreas resi<strong>de</strong>nciais privilegiadas da cida<strong>de</strong>, só são i<strong>de</strong>ntificados<br />

por aqueles que, <strong>de</strong> uma maneira ou <strong>de</strong> outra, têm contato com a prática da prostituição.<br />

De qualquer forma, em Salvador, áreas que historicamente foram e ainda são ocupadas<br />

pela prostituição po<strong>de</strong>m ser “<strong>de</strong>scobertas” por qualquer pessoa <strong>para</strong> a qual o processo <strong>de</strong><br />

socialização já forneceu um repertório <strong>para</strong> i<strong>de</strong>ntificar tais espaços. E <strong>para</strong> aqueles que<br />

dominam os signos não há dúvida. Marilene conta como encontrou seu lugar <strong>de</strong><br />

trabalho:<br />

74 Registro <strong>de</strong> campo<br />

75 Registro <strong>de</strong> campo<br />

Quando minha mãe ficou doente a gente veio pra cá, morar <strong>aqui</strong> em<br />

Salvador e aí eu comecei aaa ....Eu não conhecia, nenhum lugar <strong>de</strong><br />

prostituição <strong>aqui</strong>, mas...puta sempre acha um jeitinho, né? Aí vou...um dia<br />

eu saí <strong>de</strong> manhã e disse: vou procurar on<strong>de</strong> é que tem um lugarzinho pra<br />

mim correr atrás, trabalhar. Porque inicialmente eu fui trabalhar <strong>de</strong> babá e<br />

doméstica não <strong>de</strong>u certo, passei um mês somente e disse: ahhh num dá certo


não. Aí o lugar que eu encontrei mais visível, que eu passei <strong>de</strong> ônibus e já<br />

vi logo <strong>de</strong> cara foi a La<strong>de</strong>ira da Montanha. Aí eu disse: ahhh vou saltar lá na<br />

frente e venho andando. Aí eu parei, voltei andando. A primeira casa que<br />

tinha ali era da Dona Raílda e aí comecei a batalhar ali.(Informação<br />

verbal) 76<br />

Po<strong>de</strong>mos falar <strong>de</strong> uma aprendizagem por parte das mulheres com que tivemos<br />

contato <strong>de</strong> como lidar com o tratamento que os outros lhe dão. As mulheres prostitutas<br />

apren<strong>de</strong>m não somente a i<strong>de</strong>ntificar suas iguais e os espaços <strong>de</strong> prática da prostituição,<br />

como também a lidar com o tratamento que os outros lhes dispensam Esse exercício as leva<br />

a <strong>de</strong>senvolver constantemente meios <strong>de</strong> encobrimento. O controle da informação sobre a<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> tem um significado importante nas relações e implica o uso <strong>de</strong> técnicas por parte<br />

do estigmatizado a fim <strong>de</strong> manipular a informação sobre si. Entre as prostitutas isso é bem<br />

conhecido: mudança <strong>de</strong> nomes, e ocultamento dos símbolos na utilização dos<br />

<strong>de</strong>si<strong>de</strong>ntificadores 77 são algumas estratégias <strong>de</strong> ocultamento <strong>de</strong> uma pessoa<br />

“<strong>de</strong>sacreditável”.<br />

Quando pensamos na carreira moral das militantes da Aprosba, o encobrimento aparece<br />

como uma fase <strong>de</strong> sua socialização anterior à militância – como é o das não militantes<br />

hoje. Segundo contam, quando percebem que <strong>de</strong>veriam estar acima do encobrimento,<br />

que se aceitam e se respeitam, não sentem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>r a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />

“Depois <strong>de</strong> um trabalhoso aprendizado <strong>de</strong> ocultamento, então o indivíduo po<strong>de</strong> começar<br />

a <strong>de</strong>saprendê-lo. É <strong>aqui</strong> que a revelação voluntária encaixa-se na carreira moral como<br />

uma das <strong>de</strong> suas fases [...] essa fase da carreira moral é tipicamente <strong>de</strong>scrita como a fase<br />

final, madura e bem ajustada – um estado <strong>de</strong> graça” (GOFFMAN, 1998, p.109). No<br />

entanto, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar as ambivalências que marcam “este estado <strong>de</strong><br />

graça”. Assim, se o encobrimento é uma situação comum entre prostitutas não<br />

militantes, em relação às prostitutas militantes po<strong>de</strong>mos falar <strong>de</strong> um acobertamento. Este<br />

diz respeito a uma outra situação que, segundo Goffman (1998) permite ao indivíduo<br />

antecipar-se a todas as outras. Neste caso há uma revelação voluntária que transforma,<br />

76 Entrevista dada em 10 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2004<br />

77 O <strong>de</strong>si<strong>de</strong>ntificador “[...] é um signo que ten<strong>de</strong> — real ou ilusoriamente — a quebrar uma imagem <strong>de</strong> outra<br />

forma coerente, mas nesse caso numa direção positiva <strong>de</strong>sejada pelo ator, buscando não só estabelecer uma<br />

nova pretensão mas lançar sérias dúvidas sobre a valida<strong>de</strong> da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> virtual”( GOFFMAN, 1988, p. 54).<br />

Uso <strong>de</strong> roupa que não exponha <strong>de</strong>masiadamente o corpo, <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> ter outro tipo <strong>de</strong> ocupação, como dona<br />

<strong>de</strong> casa, são exemplos da utilização <strong>de</strong> <strong>de</strong>si<strong>de</strong>ntificadores entre mulheres prostitutas com as quais tivemos<br />

contato.


adicalmente, a situação <strong>de</strong> um indivíduo que tem informações a manipular na <strong>de</strong><br />

alguém que <strong>de</strong>ve manipular situações difíceis, transformando a situação <strong>de</strong> pessoa<br />

<strong>de</strong>sacreditável na <strong>de</strong> uma pessoa <strong>de</strong>sacreditada Um dos métodos <strong>de</strong> revelação é o uso<br />

voluntário, por um indivíduo, <strong>de</strong> um símbolo <strong>de</strong> estigma, um signo extremamente visível<br />

e revelador. Goffman (1998) lembra que os programas militantes <strong>de</strong> todos os tipos<br />

po<strong>de</strong>m utilizar esse recurso, porque o indivíduo que se auto-simboliza, garante o seu<br />

afastamento da socieda<strong>de</strong> dos normais.<br />

No entanto, sabe-se que as pessoas que estão prontas a admitir que têm um estigma<br />

— em muitos casos porque ele é conhecido ou imediatamente visível - po<strong>de</strong>m, não<br />

obstante, fazer gran<strong>de</strong>s esforços <strong>para</strong> que ele não apareça muito. O objetivo do indivíduo é<br />

reduzir a tensão, ou seja, tornar mais fácil <strong>para</strong> si mesmo e <strong>para</strong> os outros uma relação<br />

dissimulada referente ao estigma, e manter um envolvimento espontâneo no conteúdo<br />

público da interação. Observamos que mulheres ligadas ao movimento <strong>de</strong> prostitutas<br />

po<strong>de</strong>m lançar mão da militância <strong>para</strong> se acobertarem, ou po<strong>de</strong>-se até dizer que a própria<br />

militância ten<strong>de</strong> a acobertar o estigma quando a mulher se<strong>para</strong>, no seu discurso, a militância<br />

da prática <strong>de</strong> “fazer programas”.<br />

Uma militante da Aprosba relatou a seguinte experiência que estava vivendo: ela<br />

estava namorando um homem, e parecia estar bem ligada a ele; ele sabia que ela era<br />

prostituta, mas que não fazia mais programa, pois agora era somente militante. No entanto<br />

suas colegas da instituição sabiam, e nós também, que isto não era verda<strong>de</strong>. No dia<br />

seguinte, ela <strong>de</strong>veria dar uma entrevista e sabia que iam lhe perguntar se ainda fazia<br />

programa, pois esta é uma pergunta certa quando se trata <strong>de</strong> entrevista, e sua resposta seria<br />

não. Seu drama era o fato <strong>de</strong> que suas colegas iriam recriminá-la, e ela estava dividida entre<br />

a lealda<strong>de</strong> à instituição e a manutenção do namorado, já que não fazer mais programa era<br />

uma exigência <strong>de</strong>le <strong>para</strong> manter o relacionamento. Para seu alívio, o <strong>de</strong>sdobramento da<br />

entrevista não exigiu um posicionamento <strong>de</strong> sua parte. Até on<strong>de</strong> foi possível observar não<br />

se falou mais nisso e ela continua com o namorado.<br />

Para Mara, educadora <strong>de</strong> pares, a Aprosba serve bem aos propósitos <strong>de</strong><br />

dissimulação da prática <strong>de</strong> prostituição:


Ninguém da minha família sabe que eu sou profissional do sexo né?<br />

Inclusive minha mãe morreu sem saber. Mas, se for o caso hoje, eu ter que<br />

dizer pra qualquer pessoa não tenho receio porque foi da prostituição que eu<br />

consegui ter o que tenho hoje.... Pra todos os efeitos quando eu via uma<br />

pessoa que eu conhecia eu já jogava Aprosba: “não, eu tô trabalhando pra<br />

Aprosba” (risos). Podia me ver lá no cabaré, mas pra todos os efeitos eu<br />

tava trabalhando pra Aprosba (risos) fazendo, entregando as camisinhas,<br />

fazendo o trabalho..... Mas aí eu já consegui me remo<strong>de</strong>lar um pouquinho,<br />

já consigo falar algumas coisas, não totalmente, mas já dá pra me abrir, já<br />

saí também em jornal, em revista e isso aí já ficou mais claro, né? Não<br />

precisou eu nem falar, o jornal (risos) ...as pessoas que me<br />

viam...(Informação verbal) 78<br />

Acompanhamos neste <strong>de</strong>poimento o acobertamento pela militância e ao mesmo tempo um exemplo<br />

<strong>de</strong> como o uso da mídia, como parte da prática institucional ao ser incorporada, po<strong>de</strong> trazer modificações <strong>para</strong><br />

o habitus da prostituição, participando na transformação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Consi<strong>de</strong>ramos anteriormente que a<br />

mídia é o lugar <strong>de</strong> apresentação da militante, on<strong>de</strong> as ambivalências relacionadas ao “se assumir” são tornadas<br />

invisíveis. Talvez esse mesmo espaço possa servir ao acobertamento, na medida em que <strong>de</strong>staca os elementos<br />

que envolvem a militância, ficando a questão da prática da prostituição relegada a um segundo plano. Sem<br />

consi<strong>de</strong>rar o fato <strong>de</strong> que o status atribuído àqueles que têm espaço na mídia po<strong>de</strong> também <strong>de</strong>sviar a atenção<br />

do estigma.<br />

Essa reflexão sobre a manipulação da informação por parte dos indivíduos<br />

estigmatizados, seja através do encobrimento ou acobertamento, sublinha, <strong>de</strong> acordo com<br />

Goffman (1998), que os indivíduos que têm um estigma “[...] po<strong>de</strong>m precisar apren<strong>de</strong>r a<br />

estrutura da interação <strong>para</strong> conhecer as linhas ao longo das quais <strong>de</strong>vem reconstruir a sua<br />

conduta se <strong>de</strong>sejam minimizar a intromissão <strong>de</strong> seu estigma” (1998, p115).<br />

2.4 A carreira <strong>de</strong> prostituta militante<br />

Seguindo a trilha da concepção do eu anteriormente apresentada, vamos tentar apreen<strong>de</strong>r<br />

a seqüência regular <strong>de</strong> mudanças que a constituição da Aprosba provocou no eu das<br />

78 Entrevista dada em 10 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2005


prostitutas que passaram a fazer parte da instituição. Evocamos <strong>para</strong> tanto a noção <strong>de</strong><br />

“carreira moral” <strong>de</strong>senvolvida por Goffman 79 Segundo ele:<br />

Tradicionalmente, o termo carreira tem sido reservado <strong>para</strong> os que esperam<br />

atingir os postos ascen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> uma profissão respeitável. No entanto, o<br />

termo está sendo cada vez mais usado em sentido amplo, a fim <strong>de</strong> indicar<br />

qualquer trajetória percorrida por uma pessoa durante a sua vida. Aceita-se<br />

a perspectiva da história natural: os resultados singulares são esquecidos,<br />

consi<strong>de</strong>rando-se as mudanças temporais que são básicas e comuns aos<br />

participantes <strong>de</strong> uma categoria social, embora ocorra in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />

em cada um <strong>de</strong>les. Essa carreira não é algo que possa ser brilhante ou<br />

<strong>de</strong>cepcionante; tanto po<strong>de</strong> ser um triunfo quanto um fracasso [...]uma<br />

vantagem do conceito <strong>de</strong> carreira é sua ambivalência. Um lado está ligado a<br />

assuntos íntimos e preciosos, tais como, por exemplo, a imagem do eu e a<br />

segurança sentida; o outro lado se liga à posição oficial, relações jurídicas e<br />

um estilo <strong>de</strong> vida, e é parte <strong>de</strong> um complexo institucional acessível ao<br />

público. Portanto o conceito <strong>de</strong> carreira permite que an<strong>de</strong>mos do público<br />

<strong>para</strong> o íntimo, e vice-versa, entre o eu e sua socieda<strong>de</strong> significativa sem<br />

precisar <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r manifestadamente <strong>de</strong> dados a respeito do que a pessoa<br />

diz que imagina ser” (GOFFMAN, 2003b, p.112).<br />

Em relação aos aspectos morais da carreira po<strong>de</strong>mos dizer estes se referem à<br />

seqüência regular <strong>de</strong> mudanças que a carreira provoca no eu da pessoa em seu esquema<br />

<strong>de</strong> imagens <strong>para</strong> julgar a si mesma e aos outros. Os ambientes sociais têm conseqüências<br />

<strong>para</strong> o eu. Assim, o eu surge não apenas através da interação com outros significativos,<br />

mas também <strong>de</strong> disposições que se <strong>de</strong>senvolvem numa organização, em benefício <strong>de</strong><br />

seus participantes<br />

Na perspectiva <strong>de</strong> Goffman (1998) a carreira moral do estigmatizado po<strong>de</strong> ser<br />

inicialmente <strong>de</strong>finida em duas fases: uma está relacionada ao processo <strong>de</strong> aprendizado e<br />

incorporação da perspectiva dos “normais” acerca do que é possuir um estigma. A outra<br />

diz respeito ao aprendizado <strong>de</strong> ser possuidor <strong>de</strong> um estigma e suas conseqüências. Deve-<br />

se também consi<strong>de</strong>rar as fases posteriores relativas aos processos <strong>de</strong> participação dos<br />

estigmatizados nos grupos <strong>de</strong> seus “iguais” (que oscila entre a incorporação da maneira<br />

<strong>de</strong> ser do grupo e sua rejeição) e as crenças sobre a natureza do “seu” grupo e do grupo<br />

79 Comentando sobre a idéia <strong>de</strong> carreira moral, Goffman (2003b) afirma que ela está presente nos trabalhos<br />

iniciais sobre cerimônias <strong>de</strong> transição <strong>de</strong> status, e em <strong>de</strong>scrições clássicas <strong>de</strong> psicologia social das mudanças<br />

extraordinárias na interpretação que a pessoa dá do seu eu, quando ocorre participação em seitas e<br />

movimentos sociais .


dos “normais” (po<strong>de</strong>ndo em <strong>de</strong>terminados momentos se i<strong>de</strong>ntificar em um maior grau<br />

com estes últimos). Po<strong>de</strong>mos abordar a carreira da prostituta que é membro da Aprosba<br />

segundo três fases: o período anterior à entrada na prostituição, o período em que passa a<br />

fazer parte da categoria <strong>de</strong> prostituta e o período em que passa a fazer parte da<br />

instituição. Centraremos nossa atenção nas duas últimas fases<br />

Para Goffman, ao se consi<strong>de</strong>rar o estágio que uma pessoa atingiu numa carreira,<br />

geralmente verificamos que ela constrói uma imagem do curso <strong>de</strong> sua vida – passado,<br />

presente e futuro – que corta, abstrai e <strong>de</strong>forma <strong>de</strong> tal maneira a permitir uma visão <strong>de</strong> si<br />

mesma que possa expor <strong>de</strong> maneira útil nas situações presentes. Esclarecedora <strong>para</strong> se<br />

compreen<strong>de</strong>r as significações que perpassam a trajetória da militante é a seguinte<br />

consi<strong>de</strong>ração do autor:<br />

Muito freqüentemente, a estratégia da pessoa em relação ao eu a coloca,<br />

<strong>de</strong>fensivamente, num acordo fundamental com valores básicos <strong>de</strong> sua<br />

socieda<strong>de</strong>, e assim po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>nominada uma apologia. Se a pessoa<br />

consegue apresentar uma interpretação <strong>de</strong> sua situação presente que mostre<br />

a atuação <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s pessoais favoráveis no passado, e um <strong>de</strong>stino<br />

favorável que a aguar<strong>de</strong> no futuro, po<strong>de</strong>-se dizer que tem uma história <strong>de</strong><br />

triunfo. Se os fatos do passado e do presente <strong>de</strong> uma pessoa são<br />

extremamente sombrios, o melhor que po<strong>de</strong> fazer é mostrar que não é<br />

responsável por <strong>aqui</strong>lo que veio a ser, e a expressão história triste é<br />

a<strong>de</strong>quada. É interessante notar que, quanto mais o passo <strong>de</strong> uma pessoa a<br />

afasta <strong>de</strong> concordância aparente com valores morais centrais, mais parece<br />

obrigada a contar essa história triste <strong>para</strong> qualquer companhia que encontre.<br />

Talvez responda, em parte, à necessida<strong>de</strong> que sente, em outros, <strong>de</strong> não<br />

receber afrontas aos seus <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> vida”(GOFFMAN, 2003,<br />

P.129).<br />

É fundamental a relação do estigmatizado com a comunida<strong>de</strong> informal e as<br />

organizações formais a que ele pertence em função <strong>de</strong> seu estigma. É, em gran<strong>de</strong> parte, em<br />

relação a esse grupo <strong>de</strong> iguais que é possível discutir a história natural e a carreira moral do<br />

indivíduo estigmatizado. Voltamos a salientar que uma <strong>de</strong>finição po<strong>de</strong> ser vista como algo<br />

que se insere nas disposições que um sistema social estabelece <strong>para</strong> seus participantes.<br />

Neste sentido, o eu não é uma proprieda<strong>de</strong> da pessoa a que é atribuído, mas resi<strong>de</strong> no<br />

padrão <strong>de</strong> controle social que é exercido pela pessoa e por aqueles que a cercam. Po<strong>de</strong>-se<br />

dizer que esse tipo <strong>de</strong> disposição social não apenas apóia, mas constitui o eu.


Avançando um pouco mais po<strong>de</strong>mos dizer que esse controle diz respeito<br />

fundamentalmente à informação. O pensamento <strong>de</strong> Goffman evi<strong>de</strong>ncia a idéia <strong>de</strong> que a<br />

interação social é por excelência um processo <strong>de</strong> ação comunicativa no qual os indivíduos<br />

<strong>de</strong>têm e geram informação. É precisamente esta gestão que possibilita <strong>de</strong>finir e gerir suas<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s.<br />

Se um aspecto importante <strong>de</strong> qualquer carreira é a interpretação que a pessoa constrói<br />

quando olha retrospectivamente <strong>para</strong> o seu progresso, isso po<strong>de</strong> ser muito bem i<strong>de</strong>ntificado<br />

quando prostitutas que passaram a fazer parte da Aprosba reconhecem a entrada na<br />

instituição como marco nas suas trajetórias, como <strong>de</strong>clara Mara:<br />

Quando eu conheci a Aprosba eu vim ter mais clareza do que é uma<br />

profissional do sexo, seus valores, seus direitos, que antes eu não ligava pra<br />

nada mesmo não, não ligava mesmo. Tudo tá bom, bebia <strong>de</strong> manhã, bebia<br />

<strong>de</strong> noite, usava droga, cheirava muita cocaína, vivia com a mesma roupa do<br />

corpo e assim que ia , não ligava pra me arrumar, não ligava pra me cuidar.<br />

Então muitas coisas mudou na minha vida <strong>de</strong>pois da associação.<br />

(Informação verbal) 80<br />

As mudanças em relação à sua aparência ficam entrelaçadas no amadurecimento que a<br />

associação e a ida<strong>de</strong> trouxeram. Se estabelece uma ligação da entrada na instituição e<br />

maior respeitabilida<strong>de</strong>:<br />

Depois da Aprosba eu mu<strong>de</strong>i , mu<strong>de</strong>i muito...Eu me vestia igual uma<br />

“piriguete”, mostrando a bunda, toda fuleira (risos), muito vulgar (risos).<br />

Aí, <strong>de</strong>pois, passando uns tempos eu vim ver que <strong>aqui</strong>lo não tinha nada a<br />

ver, não era eu que tava ali, era uma outra pessoa, então amadureci e acho<br />

que isso acontece com todas as mulheres que tão nessa vida (informação<br />

verbal). 81<br />

2.5. Alinhamentos exogrupais e intragrupais<br />

80 Entrevista dada me 10 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2005<br />

81 Entrevista dada me 10 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2005


O senso <strong>de</strong> pertencimento a um <strong>de</strong>terminado grupo e o <strong>de</strong> suas conseqüências<br />

sociais constituem uma dimensão importante na construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Conforme nos<br />

mostra Schutz (1979), é preciso diferenciar o significado subjetivo que o pertencer a um<br />

grupo assume <strong>para</strong> o indivíduo, do significado objetivo <strong>de</strong>sse pertencimento. Goffman<br />

(1998) ao analisar o papel do grupo na construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> estigmatizada propõe dois<br />

conceitos fundamentais: os alinhamentos exogrupais e alinhamentos intragrupais que se<br />

articulam <strong>de</strong> maneira interessante com a consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> Schutz.<br />

Ao discutir alinhamentos intragrupais, Goffman (1988, p.123) chama atenção <strong>para</strong> o<br />

fato <strong>de</strong> que o que informa as filosofias <strong>de</strong> vida dos estigmatizados é muito mais que o ponto<br />

<strong>de</strong> vista pessoal <strong>de</strong>sses indivíduos. Os grupos no sentido amplo <strong>de</strong> pessoas situadas na<br />

posição semelhante têm aí um papel fundamental, pois o que indivíduo é ou po<strong>de</strong>ria ser<br />

<strong>de</strong>riva do lugar que ocupam seus iguais na estrutura social. “O seu grupo real, então, é o<br />

agregado <strong>de</strong> pessoas que provavelmente terão <strong>de</strong> sofrer as mesmas privações que ele sofreu<br />

porque têm o mesmo estigma; seu grupo real, na verda<strong>de</strong>, é a categoria que po<strong>de</strong> servir <strong>para</strong><br />

o seu <strong>de</strong>scrédito” (GOFFMAN, 1988, p. 124). Esta perspectiva intragrupal po<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sembocar no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma “linha militante” on<strong>de</strong> o indivíduo po<strong>de</strong> ostentar<br />

alguns atributos estereotípicos que po<strong>de</strong>riam ser facilmente acobertados, mas não o são.<br />

Aliás, a visibilida<strong>de</strong> é uma “tradição” na militância <strong>de</strong> qualquer grupo, e que não é diferente<br />

com o movimento <strong>de</strong> prostitutas. A organização <strong>de</strong> eventos que dêem visibilida<strong>de</strong> ao<br />

movimento na mídia constitui parte consi<strong>de</strong>rável da prática institucional (passeatas,<br />

seminários, encontros, por exemplo). Nesses eventos todo o suporte que possibilite o<br />

registro da “mentalida<strong>de</strong>” do grupo como slogans em camisetas, faixas, bolsas, cartazes,<br />

assim como discursos e imagens na mídia, são recursos bastante utilizados.<br />

Goffman (1988) chama atenção <strong>para</strong> um dos problemas com que se <strong>de</strong><strong>para</strong> o<br />

indivíduo estigmatizado que está associado à militância que ao chamar a atenção <strong>para</strong> a<br />

situação dos seus iguais ele está, <strong>de</strong> uma certa forma, consolidando uma imagem pública <strong>de</strong><br />

sua diferença como uma causa real e seus companheiros estigmatizados como constituindo<br />

um grupo real. Por outro lado se ele procura algum tipo <strong>de</strong> se<strong>para</strong>ção, e não assimilação,<br />

po<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir que está necessariamente apresentando os seus esforços militantes na<br />

linguagem e estilo <strong>de</strong> seus inimigos. Além disso, os argumentos que apresenta, a situação


que examina, as estratégias que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> são parte <strong>de</strong> um idioma <strong>de</strong> expressão e <strong>de</strong><br />

sentimento que pertence a toda a socieda<strong>de</strong>.<br />

Enfim po<strong>de</strong>mos dizer que os alinhamentos intragrupais dizem respeito aos<br />

significado subjetivos que o grupo passa a ter <strong>para</strong> os seus membros. Conforme Schutz<br />

(1979, p. 82)<br />

fora”:<br />

[...] o significado subjetivo que o grupo tem <strong>para</strong> seus membros consiste<br />

em seu conhecimento <strong>de</strong> uma situação comum e, com ela, <strong>de</strong> um sistema<br />

comum <strong>de</strong> tipificações e relevâncias; [...] e o sistema <strong>de</strong> tipificações e<br />

relevâncias que <strong>de</strong>termina a situação forma uma “concepção relativamente<br />

natural do mundo”. Aqui, os membros, individualmente, estão à vonta<strong>de</strong>,<br />

isto é, encontram seu caminho sem dificulda<strong>de</strong> no meio comum, guiados<br />

por um conjunto <strong>de</strong> receitas e hábitos, costumes, normas etc., mais ou<br />

menos institucionalizados que os ajudam a viver em harmonia com seres e<br />

semelhantes pertencentes à mesma situação. O sistema <strong>de</strong> tipificações e<br />

relevâncias compartilhado com os outros membros do grupo <strong>de</strong>fine os<br />

papéis sociais, as posições e o status <strong>de</strong> cada um. Essa aceitação <strong>de</strong> um<br />

sistema comum <strong>de</strong> relevâncias leva membros do grupo a uma<br />

autotipificação homogênea (SCHUTZ, 1979, p. 82).<br />

Diferentemente o significado objetivo <strong>de</strong> pertencer a uma grupo é dado pelos “<strong>de</strong><br />

[...] é aquele significado que o grupo tem do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> estranhos,<br />

que falam dos membros <strong>de</strong>sse grupo em termo <strong>de</strong> “Eles”. Na interpretação<br />

objetiva, a noção <strong>de</strong> grupo é uma construção conceitual <strong>de</strong> quem está <strong>de</strong><br />

fora. Operando com seu sistema <strong>de</strong> tipificações e relevâncias, a pessoa que<br />

está <strong>de</strong> fora classifica indivíduos que mostram <strong>de</strong>terminados traços e<br />

características particulares numa categoria social que só é homogênea do<br />

seu ponto <strong>de</strong> vista, isso é, do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> quem está <strong>de</strong><br />

fora.(SCHUTZ, 1979, p.94).<br />

A situação característica dos “alinhamentos exogrupais” é aquela em que se pe<strong>de</strong><br />

que o “indivíduo estigmatizado se veja da perspectiva <strong>de</strong> um segundo grupo: os normais e a<br />

socieda<strong>de</strong> mais ampla que eles constituem. Essa perspectiva implica que os indivíduos<br />

estigmatizados se aceitem como pessoas normais. Essa aceitação, no entanto, vai se <strong>de</strong><strong>para</strong>r<br />

com o que o Goffman chama <strong>de</strong> “bom ajustamento” que exige que o estigmatizado se<br />

aceite, alegre e inconscientemente, como igual aos normais enquanto, ao mesmo tempo, se<br />

retire voluntariamente daquelas situações em que os normais consi<strong>de</strong>rariam difícil manter<br />

uma aceitação semelhante Em outras palavras, ele é aconselhado a correspon<strong>de</strong>r


naturalmente, aceitando com naturalida<strong>de</strong> a si mesmo e aos outros, uma aceitação <strong>de</strong> si<br />

mesmo que nós não fomos os primeiros a lhe dar. Assim, permite-se que uma aceitação<br />

fantasma forneça a base <strong>para</strong> uma normalida<strong>de</strong> fantasma<br />

Para o autor emerge uma contradição da condição <strong>de</strong> estigmatizado quando a<br />

socieda<strong>de</strong> lhe diz que ele é um membro do grupo social mais amplo. Assim, ela está<br />

querendo dizer que ele é um ser humano real, mas também “diferente”, e que seria absurdo<br />

negar essa diferença. Essa contradição é um <strong>de</strong>safio constante <strong>para</strong> aqueles que representam<br />

o estigmatizado. Eles se sentem obrigados a apresentar uma política coerente <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />

Tem-se, então, uma situação na qual a pessoa estigmatizada: se vê numa arena <strong>de</strong><br />

argumentos e discussões <strong>de</strong>talhadas referentes ao que ela <strong>de</strong>veria pensar <strong>de</strong> si mesma, ou<br />

seja, à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do seu eu. A seus outros problemas, ela <strong>de</strong>ve acrescentar o <strong>de</strong> ser<br />

simultaneamente empurrada em várias direções por profissionais que lhe dizem o que<br />

<strong>de</strong>veria fazer e pensar sobre o que ela não é, e tudo isso, pretensamente em seu próprio<br />

benefício. Como diz o próprio Goffman (1988, p.136) “Escrever ou fazer discursos<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo qualquer uma <strong>de</strong>ssas saídas é, em si, uma solução interessante, mas que,<br />

infelizmente, é negada à maior parte dos que simplesmente lêem e escutam”.<br />

Isso é bem aparente nas as ações da Aprosba que estão voltadas <strong>para</strong> a construção<br />

<strong>de</strong> uma política coerente <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prostituta e que se <strong>de</strong><strong>para</strong>m o tempo todo com<br />

uma contradição entre a crença <strong>de</strong> que não se é diferente (quando Fátima diz “a gente fala<br />

<strong>de</strong> igual <strong>para</strong> igual”) e uma rotina que as diferencia. No entanto as mulheres membros da<br />

Aprosba “negociam” com tal contradição tendo às mãos toda uma prática institucional.<br />

Para as prostitutas que não são militantes, mas participam das ações da Aprosba, a situação<br />

é muito mais complicada. Se assumir prostituta implica gerir uma situação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sconforto <strong>para</strong> suas rotinas. No entanto, essas mulheres são, permanentemente,<br />

convocadas a se assumirem, a se posicionarem em situações relacionadas, por exemplo, à<br />

violência, que é vista como “natural” no mundo da prostituta; a reconhecer seus direitos.<br />

Temos que concordar com Schutz (1979) <strong>de</strong> que as receitas ready-ma<strong>de</strong> apropriadas <strong>para</strong> a<br />

solução dos problemas por parte <strong>de</strong> um e <strong>de</strong> outro são bem diferentes.<br />

Numa relação <strong>de</strong> tensão, membros da Aprosba questionam o modo <strong>de</strong> ser prostituta<br />

das não militantes, consi<strong>de</strong>rando-o <strong>de</strong> valor menor ou inferior. Assim, as militantes buscam<br />

manter uma a<strong>de</strong>são a um outro modo <strong>de</strong> ser prostituta e tentam mudar a atitu<strong>de</strong> do grupo não


militante “[...] por meio <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> educação, <strong>de</strong> disseminação <strong>de</strong> informação ou <strong>de</strong><br />

persuasão e <strong>de</strong> propaganda apropriada” (SCHUTZ, 1979, p.87). O aprofundamento <strong>de</strong>sta<br />

questão implica discutir <strong>de</strong> forma mais <strong>de</strong>morada a relação entre militantes e não militantes<br />

no campo <strong>de</strong> ação da instituição, o que faremos no próximo capítulo.<br />

Apresentaremos a seguir os percursos <strong>de</strong> Marilene e Fátima, duas li<strong>de</strong>ranças do<br />

movimento <strong>de</strong> prostituta da Bahia, fundadoras e dirigentes da Associação <strong>de</strong> Prostitutas da<br />

Bahia.<br />

2.6. Das histórias tristes às histórias <strong>de</strong> triunfo: a trajetória <strong>de</strong> duas li<strong>de</strong>ranças<br />

Através <strong>de</strong> uma análise dos percursos feitos por Marilene e Fátima, tais quais<br />

narrados por elas, po<strong>de</strong>mos, em primeiro lugar, estabelecer o papel das práticas<br />

institucionais na construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> militante. Em segundo lugar, tentar<br />

i<strong>de</strong>ntificar os elementos–chave na ascensão das li<strong>de</strong>ranças. Isso implica, como nos<br />

ensina Bourdieu (2004), localizar essa trajetória no campo <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s oferecido a<br />

elas e a outros indivíduos com a mesma disposição (habitus) e a mesma posição social.<br />

Em terceiro lugar registrar, através do progresso da carreira moral das duas militantes, as<br />

versões sobre o surgimento do movimento <strong>de</strong> prostituta na Bahia.<br />

2.6.1. A história <strong>de</strong> Marilene <strong>de</strong> Jesus Silva<br />

Eu nasci na roça mesmo, não foi nem em maternida<strong>de</strong>, foi parteira mesmo.<br />

Nasci em uma casinha na roça. Esta roça ficava lá em Heliópolis, em uma<br />

fazenda no distrito <strong>de</strong> Heliópolis . E aí eu fiquei lá morando na roça sete<br />

anos. Depois <strong>de</strong> sete anos meu pai mudou pra cida<strong>de</strong> chamada Porto Ver<strong>de</strong>.<br />

Lá eu fiquei, comecei a estudar lá. Comecei a estudar com sete anos.<br />

Estu<strong>de</strong>i até a quarta série e saí lá <strong>de</strong>ssa cida<strong>de</strong> com treze anos, não tinha<br />

menstruado ainda. De lá minha família mudou novamente e foi morar em<br />

Estância. Aí mais ou menos cinco meses que eu estava lá veio a primeira<br />

menstruação. Eu sabia o que que era, mas eu me sentia diferente, assim, a<br />

mudança <strong>de</strong> você ser criança ainda e já tá se transformando em uma mulher,<br />

né? Uma adolescente. Aí comecei a namorar, mas meu pai, minha família<br />

era muito assim, rígida, ignorante. Quando meu pai mudou pra cida<strong>de</strong> ele<br />

foi ser comerciante, ele colocou uma vendinha, ele colocou um barzinho e<br />

eu ajudava ele, aten<strong>de</strong>ndo, ven<strong>de</strong>ndo. Meu namorado queria sair <strong>de</strong> mim


porque meu pai ficava muito em cima. Tinha só três meses <strong>de</strong> namoro e<br />

meu pai já queria que a gente casasse. Eu tinha quatorze anos. Aí aquela<br />

pressão e a gente terminou. Eu nem podia namorar sozinha, não podia sair,<br />

ele botava meu irmão perto eu me sentia horrível, assim, sem confiança,<br />

como se ...Eu não consegui enten<strong>de</strong>r direito qual a educação que eles<br />

queriam me dar, eu me sentia muito presa. Então a gente terminou, eu e<br />

meu namorado, aí meu pai começou a pegar no meu pé, porque eu não valia<br />

nada, eu não queria nada com a vida, que tava bom <strong>de</strong> eu ir embora e<br />

começou a pegar no meu pé. E nisso meu pai também é crente. Ele crente,<br />

minha mãe crente, eu não podia ir a uma discoteca que era coisa do diabo,<br />

não podia pintar unha que era coisa do diabo, não podia me pintar, não<br />

podia calçar um sapato <strong>de</strong> salto alto, uma roupa acima do joelho, uma calça<br />

comprida. Era tudo aquela roupa <strong>de</strong> crente, daqueles bem rigoroso mesmo.<br />

E eu ficava revoltada, porque eu não queria <strong>aqui</strong>lo pra mim. Eu pensava<br />

uma outra cosia pra mim, me arrumar, ficar bonitinha, arrumar namorado<br />

tal. E aí ele começou a pegar no meu pé. Eu não podia sair com ninguém, se<br />

eu arranjasse uma colega ele botava pra correr <strong>de</strong> casa dizendo que a colega<br />

ia me colocar em mau caminho Aí pronto, começou esse inferno todo . E eu<br />

fazia o quê? Eu fugia, saía e chegava <strong>de</strong> madrugada, ou no outro dia, mas aí<br />

ele me batia. Ele me batia muito, muito, muito. Eu ficava toda marcada. Aí<br />

eu fui ficando revoltada, revoltada aí nessa, o quê? Eu fiquei uns cinco<br />

meses assim até chegar um dia acontecer <strong>de</strong> ele <strong>de</strong>scobrir que eu não era<br />

mais virgem. Eu contei pra ele. Aí ele soube e me botou pra fora <strong>de</strong> casa.<br />

Quer dizer, ele queria me botar pra fora <strong>de</strong> casa e aí minha mãe disse que<br />

não, eu tinha o quê? Quatorze anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Aí meu pai começou a discutir<br />

com minha mãe e meu pai disse: ou ela ou você <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa. Aí eu<br />

ouvindo <strong>aqui</strong>lo, pra minha mãe não sair e ficarem brigando eu peguei e saí.<br />

Saí <strong>de</strong> casa, saí sem <strong>de</strong>stino. Quatorze anos, eu morava perto da BR 101, eu<br />

peguei fui pra pista. Sem saber <strong>para</strong> on<strong>de</strong> ir eu comecei a pedir carona e<br />

entrei num caminhão e o cara perguntou “Vai pra on<strong>de</strong>” e eu falei: “Tô sem<br />

<strong>de</strong>stino”. Aí contei minha situação. Aí ele me pegou, um caminhoneiro <strong>de</strong><br />

entregar revista, aí ele me pegou e disse: “Vamos embora viajar comigo”.<br />

Aí eu fui até o Rio Gran<strong>de</strong> do Norte (risos). Era um coroa. Pra mim naquele<br />

tempo era um coroa, trinta e oito anos, eu tinha quatorze, sem documento,<br />

sem nada. Aí ele disse: “Olhe, toda a semana eu tô passando por <strong>aqui</strong>”. Ele<br />

vinha <strong>de</strong> São Paulo e viajava <strong>de</strong> dia e <strong>de</strong> noite e quando ele não tava<br />

dirigindo tinha um outro cara, um companheiro <strong>de</strong>le que dirigia, era um<br />

caminhão baú: um ficava dormindo e outro dirigindo. Quando o outro<br />

cansava ia <strong>de</strong>scansar. O caro não <strong>para</strong>va, só pra tomar banho, comer, tomar<br />

café. Aí pronto, ele passava dia <strong>de</strong> segunda-feira, não, eu não me lembro<br />

mais o dia que ele passava....Não era final <strong>de</strong> semana ....Aí ele passava ia<br />

pra lá pra o Rio Gran<strong>de</strong> do Norte e voltava. Ele falou o seguinte “Eu vou<br />

botar você em um hotel”. Aí ele pegou, lá em Estância mesmo on<strong>de</strong> eu<br />

morava, foi no hotel, pagou a semana. Aí isso ficou mais ou menos um<br />

mês: ele vinha, pagava o hotel e a gente viajava. Quando a gente voltava ele<br />

ia pra São Paulo, me <strong>de</strong>ixava no hotel, pagava minha alimentação, tudo. Aí<br />

nessa eu fiquei grávida <strong>de</strong> minha primeira filha, <strong>de</strong> Michele. Essa é a<br />

história <strong>de</strong> Michele. Aí ele soube que eu estava grávida. Eu falei pra ele que<br />

eu tava grávida, ele queria que eu tirasse, me <strong>de</strong>u remédio pra mim tirar, eu<br />

ainda tentei, mas não consegui. E nessa ele sumiu, não apareceu e eu fiquei<br />

<strong>de</strong>vendo o hotel, sem ter como pagar o hotel. Nem tinha pra on<strong>de</strong> ir. Nisso


o dono do hotel começou a me procurar. E isso em troca <strong>de</strong> um prato <strong>de</strong><br />

comida: arroz com ovo. Foi assim que eu paguei o hotel. Peguei novamente<br />

e saí, o hotel era perto da pista também da BR aí eu fui pra pista. Disse:<br />

“Vou ver se arranjo outro daquele <strong>de</strong> novo (risos). Eu não tinha o que fazer,<br />

enten<strong>de</strong>u? Aí nessa, quando eu estou esperando carona tem uma loira perto<br />

<strong>de</strong> mim com um menininho loirinho, filho <strong>de</strong>la . Aí ela: “Você tá indo pra<br />

on<strong>de</strong>? Perguntou pra mim e eu falei:“Não sei”. Aí como ela era mais velha<br />

do que eu e eu era novinha ela ficou <strong>de</strong> olho em mim até pra pegar carona,<br />

enten<strong>de</strong>u? Aí eu contei minha situação pra ela, e ela disse: “Eu tô indo pra<br />

casa <strong>de</strong> minha tia, quer vir comigo?” Eu disse: “Vou”. Peguei e fui pra casa<br />

da tia <strong>de</strong>la, dizendo ela. Quando chegou, era o quê, em Buquim, Sergipe, a<br />

terra da laranja .Aí chegando lá não era nada <strong>de</strong> casa <strong>de</strong> tia <strong>de</strong>la, era uma<br />

boate. Mas era na roça mesmo. Era um povoadozinho, uma cida<strong>de</strong> bem<br />

pequinininha, uma casa <strong>aqui</strong>, outra ali. E esse brega <strong>de</strong>ntro dos matos<br />

mesmo. Chegando lá foi que ela foi me falar o que era. Pela primeira<br />

vez...aí pensei comigo: “Já tô no fogo é pra me queimar”. Mas eu fiquei<br />

assim sem querer, contra minha vonta<strong>de</strong>. Ficava com medo porque eu tinha<br />

uma visão muito <strong>de</strong> preconceito, muito já <strong>de</strong> minha família. Perto <strong>de</strong> minha<br />

casa, do outro lado da rua, tinha um brega e meu pai não queria nem que a<br />

gente passasse pela rua. E on<strong>de</strong> eu fui <strong>para</strong>r? No brega. Aí eu ficava “Ai<br />

meu Deus, será que não é perigoso?” Será isso, será <strong>aqui</strong>lo. Eu já tinha já a<br />

formação, o conceito <strong>de</strong> prostituta que era como se fosse um monstro, não<br />

era uma pessoa normal, era uma vadia, uma vagabunda, uma mulher que<br />

não prestava, uma mulher da rua. Aí fiquei, já que não tem outro jeito, não<br />

tem pra on<strong>de</strong> ir mesmo eu vou ficar.<br />

Meu primeiro programa foi com um velho. Mais <strong>de</strong> sessenta anos. E eu fui<br />

pro quarto com o velho. Ida<strong>de</strong> mais que do meu avô, na época. Aí eu: “Ai<br />

meu Deus do céu”!. E sem experiência e eu ficava perguntando pra ela<br />

como era, eu não tinha experiência nenhuma. Ela dizia é assim, é assim, é<br />

assim. Eu digo: “Tá bom”, e fui com o velho. Mas eu me repugnava<br />

todinha, assim, eu ficava sem jeito, até vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> vomitar me dava.<br />

Quando terminou <strong>de</strong> transar eu tomei um banho e eu fiquei toda empolada,<br />

assim como se eu tivesse com alergia. Naquele tempo não usava camisinha,<br />

sem camisinha. E o quarto, não tinha banheiro não, o banheiro era fora.<br />

Dentro do quarto tinha o quê: um litro <strong>de</strong> água com uma bacia pra lavar. Aí<br />

pronto saiu. Aí, segundo cliente. Eu sei que nessa cida<strong>de</strong>zinha, quando<br />

chegava menina nova todo mundo ficava sabendo, todo mundo ia lá ver<br />

quem era. Eu sei que aí foi o primeiro, o segundo, o terceiro, fazia fila, fazia<br />

fila. Aí eu comecei a gostar, ganhando dinheiro rapidinho, comecei a<br />

comprar roupas da moda na época, né? Eu gostava muito <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>,<br />

cabelo, shampoo, perfume, essas coisas todas. Aluguei logo um quartinho.<br />

Depois tinha meu quartinho, minhas coisas todas arrumadinhas. Aí <strong>de</strong>pois<br />

eu continuei, assim, pulando <strong>de</strong> galho em galho. Saía <strong>de</strong> um lugar, ia pra<br />

outro. Aí a barriga crescendo, a barriga crescendo e eu continuei<br />

trabalhando. Até oito meses e quinze dias <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z eu ainda trabalhei. Aí<br />

eu voltei pra casa, como já tinha um ano sem dar notícias ninguém sabia <strong>de</strong><br />

mim. Chegando em casa, nossa! Fiquei sabendo que a minha mãe chorava<br />

todo o dia, pensando que eu tinha morrido, o que tinha acontecido comigo.<br />

Meu pai me recebeu. Aí eu fiquei em casa na gravi<strong>de</strong>z. Menti, né? Não<br />

disse o que eu tava fazendo. Disse que eu tava trabalhando, e que tinha o<br />

cara que eu tava morando com ele, mas mentira, porque eu tava grávida.


Ainda disse que tava com sete meses e já ia completar os nove meses. Então<br />

eu fiquei em casa, quando tinha uma semana que eu tava em casa começou<br />

as dores. Eu fui pra maternida<strong>de</strong>, lá mesmo em Estância, na cida<strong>de</strong>,<br />

chegando lá, foi num tempo em que os médico estavam em greve. E eu não<br />

tinha feito nem pré-natal, não tinha feito nada. Chegando lá que ela me<br />

examinou, a médica disse: “A menina tá sentada, não tem jeito <strong>de</strong> ser<br />

normal tem que ser cesariana e nós não temos médico pra fazer cesária”.<br />

Minha mãe tinha ido comigo. Manda pra Aracaju. Aí encaminhou eu pra<br />

Aracajú, pra um hospital lá. E eu morrendo, morrendo <strong>de</strong> dor. Era onze<br />

horas da noite chegando lá, já era duas da madrugada em Aracajú. Aí<br />

chegando no hospital: “Não temos anestesia” Aí vai pra outro hospital, eu<br />

pensando já que ia morrer. Aí me encaminharam e eu fui pra outro hospital.<br />

Chegando lá tava em greve também, mas eu fiquei por lá mesmo. Eu disse:<br />

“Eu não vou sair pra lugar nenhum mais não” aí eu fiquei lá. Aí a mulher<br />

me fez o toque e tudo. Aí não tem anestesia, vai ter que parir no cru. A sala<br />

cheia <strong>de</strong> mulher, uma grita <strong>de</strong> um lado, outra grita do outro. E eu tinha o<br />

quê, quinze anos. Aí eu sei que na hora mesmo em que eu fui pra mesa, pra<br />

fazer o parto, sofri viu? Fui ter a menina oito horas da manhã, já. A menina<br />

nasceu toda roxa e eu pensava que a menina tinha algum problema. Como<br />

ela se criou sentada as pernas <strong>de</strong>la vinha <strong>aqui</strong> (ela <strong>de</strong>monstra a posição da<br />

criança com as pernas dobradas) era dobrada. Ela nasceu <strong>de</strong> bunda (risos).<br />

Eu comecei a gritar. Eu gritava. Fiquei rouca <strong>de</strong> tanto gritar. Aí o médico<br />

disse: “Pra você fazer você não gritou tanto assim né? Não ficou tão<br />

zangada assim”. Eu sei que quando eu vi aquela lâmina pra me cortar, me<br />

cortaram toda, nossa senhora. Nem se fosse cesária eu teria saído do<br />

hospital em três, quatro dias. Eu fiquei no hospital quinze dias. Fiquei<br />

quinze dias que eu não podia nem respirar, nem me mexer cheia <strong>de</strong> ponto.<br />

Cheia, cheia <strong>de</strong> ponto. Minha mãe não tinha vindo comigo pra Aracajú, mas<br />

veio me visitar E Michelle ainda ficou uns três dias lá, porque tava toda<br />

roxa, fora do peso. Eu bebia muito, eu fumava muito. Essa foi meu primeiro<br />

parto (risos), primeira parte (risos). Aí fui pra casa. Cheguei lá em casa e<br />

fiquei quinze dias em casa né? Aí saí. “Vou ali”. Falei pra minha mãe que<br />

eu ia no supermercado, que eu ia pra algum lugar. Só que eu já tava com o<br />

propósito <strong>de</strong> voltar pra trabalhar. Voltar pro brega e <strong>de</strong>ixar a menina em<br />

casa. Aí saí. Me man<strong>de</strong>i novamente. Larguei a menina lá, e não <strong>de</strong>i notícia<br />

mais. Fiquei mais ou menos uns três anos sem aparecer em casa e sem dar<br />

notícia. Larguei a menina lá. Meu pai queira dá a menina. Minhas irmãs não<br />

<strong>de</strong>ixou, minha mãe também não <strong>de</strong>ixou. Eu sei que Michelle foi criada<br />

pelas minhas irmãs uns três anos. Aí quando minha vida já tava mais<br />

estabelecida assim e eu tinha alugado uma casa, já tava com mais<br />

condições, fui lá e peguei. Eu já tava já em Alagoas. Batalhando já em<br />

Alagoas. Eu já tava com o pai <strong>de</strong> Michael, mas nesse tempo eu não tinha<br />

Michael ainda. Fui ter Micahel com vinte anos. E o pai <strong>de</strong> Michael eu<br />

conheci também batalhando lá em Alagoas, São Miguel. Fiquei com ele,<br />

morei com ele, engravi<strong>de</strong>i, mas ele bebia muito, me maltratava muito<br />

também. Apanhei muito e aí eu não suportei. Porque eu saí do brega pra<br />

morar com ele e foi pior. Eu peguei e abandonei tudo, tudo que tinha lá e<br />

peguei só o meu filho. Michael estava com seis meses <strong>de</strong> nascido e eu<br />

peguei e fui embora. Vim pro interior. Fui pra Estância, né? Quando eu<br />

cheguei em Estância meu pai e minha mãe não tava morando mais em<br />

Estância. Já tinha voltado pra Heliópolis, lá on<strong>de</strong> eu tinha nascido. Já tava


morando lá e eu peguei e fui pra lá. Mas eu fugi mesmo do cara lá <strong>de</strong><br />

Alagoas, porque ele disse se eu saísse era pra <strong>de</strong>ixar o filho <strong>de</strong>le. Que<br />

qualquer lugar que ele me encontrasse ele me matava, ia <strong>de</strong>scobrir on<strong>de</strong> eu<br />

tava. Até no inferno ele ia atrás. E até hoje ele não sabe. Fugi e pronto,<br />

porque ele era muito violento. Aí eu criei meus dois filhos. Michel nunca<br />

conheceu o pai.<br />

Eu encontrei meu pai, só que eu não encontrei minha mãe, que estava com<br />

problema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.Tava com problema renal aí ela tava fazendo tratamento<br />

<strong>aqui</strong>. Já tava com oito dias. Uma irmã minha trabalhava em casa <strong>de</strong> família<br />

<strong>aqui</strong>, que era uma doutora, e ela conseguiu uma coisa pra minha mãe se<br />

tratar e minha mãe tava <strong>aqui</strong> com ela Aí eu fiquei lá. Eu falei com minha<br />

irmã que tava <strong>aqui</strong> pra ela arrumar um emprego pra mim <strong>de</strong> doméstica ou<br />

<strong>de</strong> babá. Aí ela arranjou um emprego <strong>para</strong> mim. Fiquei no interior só quinze<br />

dias. Aí eu <strong>de</strong>ixei os meninos no interior, com uma prima minha tomando<br />

conta, e vim <strong>aqui</strong> pra Salvador. Minha irmã arranjou um emprego pra mim<br />

<strong>de</strong> doméstica e eu fiquei trabalhando na Barra. Nossa! Fiquei um mês. Eu<br />

fiquei um mês. Eu não agüentei porque eram dois meninos. Esses meninos<br />

eram <strong>de</strong>mais. Batiam e quebravam tudo. Faziam aula <strong>de</strong> Karatê e viam,<br />

batiam em mim, eu apanhava, dava porrada. Era uma coisa horrorosa,<br />

insuportável. Pra mim, eu não estava aturando. Aí eu cheguei e pedi minhas<br />

contas. Pedi minhas contas. Aí ela mandou eu passar lá na empresa <strong>de</strong>la pra<br />

pegar minhas contas aí o pessoal que trabalhava lá falou assim: “Você foi a<br />

primeira que passou um mês lá. Os outros só passaram uma semana, quinze<br />

dias”(risos). Aí eu falei com minha irmã <strong>para</strong> eu ficar lá junto uma semana<br />

com ela on<strong>de</strong> ela trabalhava, ela tinha um quarto <strong>de</strong> empregada, até eu<br />

arranjar alguma coisa pra mim, qualquer coisa. Só que eu ia passando <strong>de</strong><br />

ônibus na La<strong>de</strong>ira da Montanha, porque eu quase não conhecia Salvador. Aí<br />

eu vi, né? Como eu já tinha trabalhado...eu digo: “ Vou trabalhar <strong>aqui</strong><br />

agora”. Aí fui pra lá, fiquei lá na Montanha. Trabalhei mais ou menos uns<br />

dois anos lá. Na La<strong>de</strong>ira da Montanha. Quando eu trabalhei uns três meses<br />

eu aluguei uma casa, e eu fui e trouxe os meninos. Aí eu fiquei morando<br />

<strong>aqui</strong>, <strong>de</strong>pois minha mãe teve que vir pra cá morar <strong>aqui</strong> também. Minha<br />

família toda veio pra cá. A gente ven<strong>de</strong>u lá e comprou uma casinha <strong>aqui</strong>. A<br />

gente ficou todo mundo junto. Ai eu fiquei batalhando até hoje.<br />

Como a família ficou sabendo que ela fazia programa<br />

Pra minha mãe não <strong>de</strong>u pra eu contar, porque ela faleceu, eu não contei pra<br />

ela, mas <strong>de</strong>pois eu conversando com minha irmã ela disse que minha mãe<br />

sabia. Depois eu contei pro meu pai, <strong>de</strong>pois que eu comecei a trabalhar na<br />

organização da classe. Foi quando eu fui ter mais consciência, eu fui tendo<br />

mais auto-estima e eu peguei e tive uma conversa com meu pai, um pouco<br />

com medo da reação <strong>de</strong>le né? Mas aí ele me <strong>de</strong>u todo o apoio, eu fiquei<br />

assim...Do jeito que ele era e tal, mas o tempo vai ensinando as pessoas a<br />

viver, né? A respeitar a vonta<strong>de</strong> dos outros. Aí ele disse: “É melhor ven<strong>de</strong>r<br />

do que dá”. Porque as outras irmãs minhas ficavam com o cara <strong>de</strong> graça,<br />

ficava com um, com outro, <strong>de</strong> graça. Aí ele falava: “Pelo menos você tem<br />

tudo”. Tudo assim <strong>de</strong> pagar meu aluguel, cuidar dos meus filhos e ainda<br />

ajudava eles. Então <strong>de</strong>pois ele não me discriminou mais. Nesse tempo todo<br />

mundo na minha casa sabia. Todos. Teve uma mesmo que quando a


situação apertou, essa que arrumou o emprego pra mim, aí ela me pediu pra<br />

eu levar ela pra lá. Então eu já tava lá no comércio, no Damasco. Aí eu<br />

levei ela pra lá e ela ficou. Ela trabalhou lá uns dois anos. Aí ela arranjou<br />

um marinheiro lá mesmo fazendo programa, ficaram namorando. Ele<br />

morava lá no Rio e ela <strong>aqui</strong>. Com uns seis meses que eles estavam<br />

namorando e tal, a mulher <strong>de</strong>le faleceu, ele ficou viúvo, ele pegou ela, acho<br />

que passando uns três meses, ele pegou ela e levou pra lá. Aí ela ficou lá.<br />

Morou lá quatro anos, no Rio. Depois da morte <strong>de</strong> minha mãe e tudo, aí ela<br />

veio pra cá. Ela não separou não, ainda tá com ele. Tem uma outra irmã<br />

também que foi bem <strong>de</strong>pois. Eu chamei ela pra trabalhar na Aprosba como<br />

educadora, pra passar informação, fazer as visitas. Aí ela foi fazendo as<br />

visitas e foi fazendo programa (risos). Meus filhos sempre souberam. É<br />

claro que eles dá muito valor a mãe <strong>de</strong>le, só que eles sofrem o preconceito,<br />

discriminação, principalmente porque não foi registrado, nenhum dos dois.<br />

Nenhum dos pais registraram, quem registrou foi eu sozinha. No registro só<br />

tem o meu nome. Eles não conheceram o pai, nem querem conhecer. Mas<br />

isso eu acredito que já foi a formação que eu botei na cabeça <strong>de</strong>les, né?<br />

Des<strong>de</strong> pequeno. Botei não, sempre falei a verda<strong>de</strong>. Nunca menti sempre<br />

falei a verda<strong>de</strong>, como foi a história <strong>de</strong> Michele e a história <strong>de</strong> Michael. Eu<br />

sempre digo, <strong>de</strong> Michael, se ele quiser eu posso levar ele lá pra conhecer o<br />

pai. Nem sei se ainda é vivo ou morto, mas ele não quer. Já <strong>de</strong> Michele,<br />

ainda outro dia Michele tava falando que queria conhecer, mas vai ser<br />

difícil, porque eu não sei nem on<strong>de</strong> encontrar. Conheci assim, assim, ela<br />

sabe a história toda. Então não tem como encontrar. Não sei nem o nome do<br />

homem. O nome eu sei, mas o sobrenome não, não tem como.<br />

Eu tenho trinta e três anos, mas eu passei por muita experiência, muita. No<br />

mundo, <strong>de</strong> cada coisa assim eu já passei um pouquinho, vária coisas. Tenho<br />

trinta e três e parece que tenho cinqüenta. Trinta e três muito vividos. Muita<br />

experiência boa, ruim, péssimo.<br />

Eu nunca usei nome <strong>de</strong> batalha. As pessoas que colocavam nome em mim.<br />

Eu tive um nome <strong>de</strong> batalha lá em Alagoas que era galega, porque meu<br />

cabelo era todo loiro. Qualquer cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Alagoas não chama loira não,<br />

chama galega, a galeguinha. De cabelo loiro chama galega. Nunca escondi<br />

meu nome. Muitas pessoas perguntam “Esse é seu nome mesmo”? E eu<br />

digo:“ É”.<br />

A minha vida mudou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro dia em que eu te conheci. Na<br />

La<strong>de</strong>ira da Montanha batalhando e você estava fazendo aqueles trabalhos<br />

<strong>de</strong> prevenção às DST/AIDS. Você trabalhava no GAPA. A partir daquele<br />

momento eu fui convidada a fazer um treinamento <strong>de</strong> agente educador pra<br />

po<strong>de</strong>r tá trabalhando, passando informação pras meninas, minhas colegas.<br />

Então a partir <strong>de</strong>sse momento minha vida começou a mudar. Eu fui tendo<br />

mais conhecimento, eu estava me sentindo mais útil, enten<strong>de</strong>u? E a gente<br />

fez esse treinamento e agente ficou trabalhando mais ou menos um ano.<br />

Depois terminou o projeto, <strong>de</strong>pois teve uma segunda fase novamente que<br />

teve um outro treinamento com mais umas oito meninas. A gente trabalhou<br />

mais uns seis meses. Depois o projeto terminou então eu voltei a ficar sem<br />

esse serviço. Mas como eu era muito boa, já tinha trabalhado com você,<br />

você arranjou um outro projeto com o mesmo objetivo e aí me convidou.<br />

Me lembro como hoje, você ligou lá pra minha casa e aí você me fez o


82 Grupo Gay da Bahia<br />

83 Grupo Lésbico da Bahia<br />

convite, que era o GGB 82 , não era no CBAA, Centro Baiano Anti-Aids, e aí<br />

eu iria fazer o mesmo trabalho. Nem precisaria eu fazer treinamento, porque<br />

o serviço era o mesmo. O objetivo, o projeto, era prevenção às DST/AIDS e<br />

com profissional do sexo também. Então a gente trabalhou mais ou menos o<br />

quê, uns seis meses, foi seis meses mais ou menos. Então lá no Centro<br />

Baiano Anti-Aids a gente começou a dar continuida<strong>de</strong> dos trabalhos <strong>de</strong><br />

prevenção nas áreas <strong>de</strong> prostituição e tivemos a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tá junto<br />

com o GGB, com o GLB 83 , e foi quando a gente teve a idéia <strong>de</strong> tá<br />

organizando um movimento <strong>de</strong> prostitua <strong>aqui</strong> em Salvador. A gente<br />

pensava em Salvador e <strong>de</strong>pois a gente viu que era necessário ser a nível <strong>de</strong><br />

Bahia. Que a gente continuou trabalhando <strong>de</strong>pois, mais à frente, pra<br />

trabalhar nos interior. A gente teve oportunida<strong>de</strong> junto com o pessoal do<br />

GGB, Marcelo Cerqueira e você, Mônica, Fátima, Jane Pantel do GLB.<br />

Então a gente teve oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les dar uma força pra gente, pra ta<br />

organizando o movimento mesmo e fundar uma associação <strong>de</strong> prostitua na<br />

Bahia. Então encontramos muitas dificulda<strong>de</strong>s. Fizemos questionários pra<br />

aplicar com as meninas nas áreas pra saber se elas gostariam <strong>de</strong> ter uma<br />

associação voltada pra classe e se elas participariam. Muitas na época disse<br />

que gostariam, mas muitas não queriam partici<strong>para</strong> <strong>de</strong>vido ao preconceito.<br />

Então foram poucas as pessoas, a maioria que fundou a associação, que<br />

ajudou a fundar a associação, não era profissional do sexo. Só tinha eu,<br />

Fátima, Ivone e Zenai<strong>de</strong>. Então só foram as “panteras” (risos). Então a<br />

gente teve bastante dificulda<strong>de</strong> pra gente tá fundando essa associação. Eu<br />

fiquei como presi<strong>de</strong>nte, Fátima como vice-presi<strong>de</strong>nte, teve você também,<br />

teve Marcelo, teve Zora. Então foi o primeiro passo que a gente <strong>de</strong>u no<br />

movimento <strong>de</strong> prostitua da Bahia. Então a gente começou a trabalhar, mas<br />

sempre correndo atrás, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo ainda <strong>de</strong> ajuda, até do espaço físico do<br />

GLB e do GGB. Foi bastante difícil no início. Quer dizer no início, no<br />

meio, sempre a gente tem dificulda<strong>de</strong>s, né? Mas a gente continuou<br />

trabalhando com a prevenção também, mas o objetivo não era só prevenção,<br />

da associação só trabalhar prevenção, mas também trabalhar organização,<br />

direitos, cidadania. No início era bem voltado <strong>para</strong> prevenção porque a<br />

gente não tinha uma idéia, não tinha ainda um espelho. Eu não conhecia<br />

outra associação. Foi quando Marcelo Cerqueira trouxe as diretoras da<br />

Associação <strong>de</strong> Prostituas do Ceará. Então a gente foi conhecer melhor e tal,<br />

mas nosso objetivo era fundar a associação, porque as meninas tinha<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter um grupo voltado pra beneficiá-los mesmo assim contra<br />

a violência, que a gente sofria bastante violência, discriminação. Sofria não,<br />

ainda sofre, mas pelo menos tá minimizando mais essa questão.<br />

A Aprosba na minha vida pessoal mudou bastante, o conhecimento sobre<br />

vários assuntos. Sobre saú<strong>de</strong>, sobre direito. Principalmente o que mudou foi<br />

minha i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, o estigma mesmo, a questão <strong>de</strong> assumir a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>,<br />

porque eu não assumia, eu não assumia a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, passei a assumir. Eu<br />

era o quê, a presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma associação <strong>de</strong> prostituta. Então eu tinha que<br />

dar exemplo pelo menos pra minhas colegas que a gente consegue tudo que<br />

a gente quer se a gente lutar, a gente consegue.


Como foi se assumir<br />

84 Ela <strong>aqui</strong> está se referindo ao jornal Beijo da rua.<br />

Bastante difícil. Eu sentia medo. Inicialmente medo <strong>de</strong> minha família, mas<br />

logo pra minha família eu assumi. Eu tinha medo dos meus filhos também.<br />

Não medo <strong>de</strong>les porque eles sempre souberam o que eu fazia, mas medo <strong>de</strong><br />

eles sofrerem preconceito como sofreu quando eu aparecia na televisão. “A<br />

presi<strong>de</strong>nte das putas. Sua mãe é puta, vou comer sua mãe”. Essas coisas.<br />

Meus filhos chegaram em casa várias vezes chorando. Pessoas que não<br />

sabiam que eu era prostituta ficaram sabendo <strong>de</strong>pois da associação. A<br />

minha vida começou a mudar a partir <strong>de</strong>sse momento em que eu assumi a<br />

minha i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e comecei também a me valorizar, não a me <strong>de</strong>scriminar,<br />

porque temos muitas colegas que elas mesmo se <strong>de</strong>scriminam. Então é<br />

difícil assumir a questão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> como prostituta <strong>de</strong>vido à socieda<strong>de</strong>,<br />

você como se fosse um.... até parece como se fosse um outro ser. Porque eu<br />

tinha esse preconceito no início <strong>de</strong>vido à minha família, porque meu pai me<br />

falava <strong>de</strong> casa <strong>de</strong> prostituição, <strong>de</strong> puta, pra mim. Na minha visão era uma<br />

coisa estranha, uma coisa ruim, uma coisa que não prestava, não valia nada<br />

...eu não podia passar nem muito perto. Então eu já tinha esse preconceito,<br />

né? Já tava formado na minha cabeça. Então aí foi difícil na minha cabeça,<br />

quando eu comecei a falar na televisão, eu fiquei com medo, eu tremia,<br />

minha voz nem saía, eu parecia um bicho do mato (risos). Eu vivi minha<br />

vida quase toda, <strong>de</strong> adolescente até vinte sete anos, na prostituição. Então<br />

era uma vida presa. Era dali pra casa, <strong>de</strong> casa pra ali. Pouco saia, então era<br />

um outro mundo. Então eu parecia uma bicho do mato. Quando tinha que<br />

aparecer na televisão, assim eu ficava tremendo e com medo da reação das<br />

pessoas. Mas eu sempre fui tímida. Meu problema é timi<strong>de</strong>z, eu ainda sou<br />

tímida pra algumas coisas, até hoje eu ainda...claro que hoje eu tô mais,<br />

mais solta, mas antes era bastante complicado.<br />

Quando a mídia ajudou a gente e a gente ajudou eles. É como ...uma mão<br />

lava a outra. Quando eles falam <strong>de</strong> prostituição, com uma prostituta eles<br />

ficam doidos <strong>de</strong> saber...eles vão a fundo . Como sai no jornalzinho da<br />

Gabriela que ela tá falando, né? 84 Eles sempre procuram saber uma monte<br />

<strong>de</strong> coisas.” “Você ta assumindo, você acha que é bom ser prostituta, mas, se<br />

sua filha fosse?” Aquelas besteiradas todas, mas aí a gente aproveita já pra<br />

tá divulgando o trabalho, mostrando pra socieda<strong>de</strong> que existe, que tá tendo<br />

um movimento, que a gente tá lutando contra os preconceitos, a violência, a<br />

discriminação, lutando pra ter direito à igualda<strong>de</strong>, ser incluída na socieda<strong>de</strong>,<br />

ser reconhecida como profissão, porque é uma profissão também. Então a<br />

mídia ajudou bastante porque ia ser muito difícil, a gente bater <strong>de</strong> boca em<br />

boca, ficaria muito difícil, né? Era entrevista, logo no início, era comigo,<br />

porque eu era a presi<strong>de</strong>nte e sempre era comigo.<br />

Então a mídia ajudou bastante, tanto a televisão, como jornal, rádio. Então a<br />

oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a gente tá no rádio, no jornal muitas pessoas vai ter acesso<br />

<strong>de</strong> tarem lendo, se informando e vê que têm pessoas que tá trabalhando em<br />

benefício <strong>de</strong> pessoas, a favor da legalização da profissão, direitos da<br />

prostitua. Não só a prostituta, mas tem várias pessoas que não fazem parte<br />

do movimento que colaboram, que ajudam voluntariamente. Depois que eu<br />

saí na mídia eu me senti uma pessoa mais famosa, mais importante (risos).<br />

Meus clientes falam assim: “Pôxa, hoje eu quero sair com a presi<strong>de</strong>nte da


Aprosba”. Ou então tinha clientes que colecionava jornal, as matérias que<br />

saiam. Às vezes a mídia mesmo que procura a gente pra fazer matéria sobre<br />

valores, violência. Então eles ajudaram bastante. Inclusive sobre <strong>de</strong>núncias<br />

e tal. Então a imprensa ajuda bastante a quebrar esse preconceito. Nós não<br />

tivemos dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> acesso. Só algumas televisão, por exemplo a TV<br />

Bahia, a Educadora. Essas duas nunca se interessou. Por exemplo, a gente<br />

manda releese sobre um assunto assim, eles nunca ... se interessavam, tudo,<br />

mas nunca foram, quando iam não divulgavam, não botava na televisão.<br />

Nos jornais tivemos bastante apoio principalmente do Correio da Bahia, do<br />

jornal A tar<strong>de</strong>. Eles sempre... jornalistas que até eram colegas da gente, se<br />

tornou mesmo colega e dizia: “Eu tô a fim <strong>de</strong> ajudar vocês. O jornal <strong>aqui</strong> é<br />

<strong>de</strong> vocês, po<strong>de</strong>m falar o que quiserem, aproveita, eu tô ajudando”. Foi<br />

muito bom. A Tv Aratu também nós fizemos bastante entrevista. A<br />

Ban<strong>de</strong>irante. Então foi uma porta aberta pra gente e também tem o padre<br />

Joseval que ele é da Faculda<strong>de</strong>, parece que é teologia né? Parece que é<br />

teologia. Aí eu acho bastante importante esse trabalho que ele faz que ele<br />

manda os alunos ir na Aprosba fazer pesquisa sobre prostituição. Então a<br />

cada mês, uma vez por mês vem um monte <strong>de</strong> aluno procurar a gente pra<br />

gente dar entrevista. A gente vai na faculda<strong>de</strong> fazer palestra. Então é uma<br />

oportunida<strong>de</strong> ótima pra gente tá passando pra eles. Porque várias vezes eu<br />

fui na faculda<strong>de</strong>, pra fazer uma palestra, quando me apresentava, eles<br />

ficavam olhando assim: “ Pôxa , eu tava fazendo idéia, uma outra idéia <strong>de</strong><br />

você”. Pensando o quê, que eu fosse uma outra coisa, que eu tava vestida<br />

assim, totalmente diferente.“Pra você ver, eu sou uma pessoa normal como<br />

você. Eu posso passar por qualquer lugar e sou a mesma pessoa que você.<br />

Não sou diferente <strong>de</strong> ninguém.”<br />

Depois da Aprosba eu sinto que eu sou uma mulher mais corajosa, uma<br />

mulher mais valorizada. Eu nem sei como falar. Eu me sinto um outra<br />

mulher, totalmente diferente daquela outra, mais assim, digamos assim que<br />

eu me sentia lá embaixo e hoje eu tô me sentido assim como se eu fosse até<br />

o presi<strong>de</strong>nte. Eu acho o que me faz sentir assim é a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

assumir, <strong>de</strong> me assumir, oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecimento, <strong>de</strong> tá me<br />

infiltrando <strong>de</strong>ntro da socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> aparecer, <strong>de</strong> ser mais visível, enten<strong>de</strong>u?<br />

É a questão mesmo do estigma, da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> mesmo, <strong>de</strong> valorização, <strong>de</strong><br />

diminuição da violência. Por conta <strong>de</strong> ter ajudado minhas colegas, várias<br />

colegas, a mim também. A informação foi fundamental, foi não, sempre é.<br />

A gente nunca termina <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r. A gente sempre tá renovando,<br />

apren<strong>de</strong>ndo coisa nova .Todo dia as coisas tão mudando e a gente tá<br />

renovando. Em relação aos meu cliente mudou, mudou a prevenção, mudou<br />

a violência, que diminuiu mais. Mudou até o valor do programa mudou<br />

(risos). Eu até brincava, eu e Fátima “Ah, meu filho, sexo presi<strong>de</strong>ncial é<br />

mais caro” (risos).<br />

Eu era presa, eu fiquei livre, livre, eu me libertei é isso. É como se eu<br />

tivesse presa e agora eu tô liberta. Depois da Aprosba eu me senti mais<br />

valorizada pela família, principalmente pelo meu pai .<br />

Teve alguns momentos que eu achei que não era capaz, eu falei com Fátima<br />

“A gente não vai conseguir não”. “É só nós duas”. A gente queria que a<br />

Aprosba crescesse, que o movimento crescesse. Que tivesse outras meninas<br />

correndo atrás. Até hoje tá sendo muito difícil. Essa questão <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança. A<br />

questão <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança é complicado. Fica difícil assim uma, duas, três<br />

pessoas tá na li<strong>de</strong>rança o tempo todo. Tem que ter outras pessoas, outras


idéias, outra cabeça. Porque como eu disse o mundo tá aí evoluindo e a<br />

gente tem que tá vendo o que que tá mudando, ontem a prostituição era uma<br />

coisa hoje já é outra. Já tá totalmente diferente. Quer dizer, não tá diferente,<br />

mas têm mudanças, existe mudanças.<br />

A relação com a Re<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Prostituta<br />

Balanço da Aprosba<br />

É como se a gente fosse filhas. A Gabriela Leite que é presi<strong>de</strong>nte da re<strong>de</strong><br />

foi a que levantou a primeira ban<strong>de</strong>ira do movimento no Brasil. Então nós<br />

somos filhotinhas assim que tá se organizando em cada Estado, em cada<br />

cida<strong>de</strong> pra o movimento crescer. A Aprosba é bem afinada com a re<strong>de</strong>. A<br />

gente tem, como é que se diz, o perfil mesmo das normas mesmo assim que<br />

a gente busca bem certo mesmo, porque tem outras que têm um perfil<br />

totalmente diferente e prejudica o movimento. Como por exemplo, eu acho<br />

que pra <strong>de</strong>ntro do movimento, mesmo como li<strong>de</strong>rança tem que ser uma puta<br />

mesmo, enten<strong>de</strong>u? É, a gente tem que tá trabalhando pra o reconhecimento,<br />

pra ser valorizada pra socieda<strong>de</strong>, pra ser incluída na socieda<strong>de</strong> mesmo,<br />

porque não vai acabar, só faz crescer. Têm alguns movimentos que fazem o<br />

quê? Até mesmo pra conseguir algum projeto, qualquer coisa tá mais em<br />

função do dinheiro mesmo. As meninas, têm muitas meninas que já foram<br />

ser crentes, enten<strong>de</strong>u? O nosso objetivo é melhorara a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida,<br />

não chegar e tirar as meninas, vamos fazer outra coisa. É claro que a gente<br />

po<strong>de</strong> fazer outra coisa pra complemento, mas a gente não vai dizer: “Saia<br />

<strong>de</strong>ssa vida, vamos dar um curso <strong>para</strong> você sair, pra não fazer mais<br />

prostituição”. Não esse não é nosso objetivo.<br />

A Aprosba teve um resultado mais ou menos positivo. Uma cosia mais<br />

positiva, que eu digo assim noventa e nove por cento é a prevenção. A<br />

diminuição <strong>de</strong> DST, gravi<strong>de</strong>z, aborto, uso da camisinha. Então nesse lado<br />

noventa e nove por cento. Agora o lado <strong>de</strong> direitos, <strong>de</strong> violência, foi bem<br />

pouco. Diminuiu mais a violência do lado do homem porque eles, induzidos<br />

pela mídia, eles sabem que elas agora já procuram os direito, já tem quem<br />

lute por elas, elas não tão sozinhas, tem o movimento que tá correndo atrás<br />

e tal. Então através da mídia eles lêem no jornal, já tem esse conhecimento<br />

então eles já po<strong>de</strong>m pensar duas vez antes <strong>de</strong> fazer algum tipo <strong>de</strong> violência.<br />

Já diminui, <strong>de</strong>pois da Aprosba a violência diminuiu. Claro que não acabou,<br />

ainda tem bastante violência, mas minimizou um pouco.<br />

O que possibilitou se tornar uma li<strong>de</strong>rança<br />

Coragem. Primeiro <strong>de</strong> tudo foi coragem e querer mudar mesmo. Eu não sei<br />

nem falar. Coragem e acreditei. Eu tenho capacida<strong>de</strong>. Eu acreditei que eu<br />

podia. Eu tive interesse realmente, porque eu gosto sempre <strong>de</strong> mudanças, é<br />

uma coisa pessoal. Eu gosto <strong>de</strong> mudança. Eu não gosto, por exemplo, <strong>de</strong><br />

morar muito tempo numa casa, eu gosto <strong>de</strong> tá mudando, eu enjôo. Até com


homem mesmo. Eu gosto <strong>de</strong> um homem, passa um tempo eu enjôo, quero tá<br />

inovando, buscando algo diferente, porque a mesmice é muito chata . Eu<br />

tava ali me sentido agoniada ali, ali, ali, só fazendo <strong>aqui</strong>lo o tempo todo.<br />

Claro que tinha mudanças, né? Que não era com o mesmo cliente, as<br />

colegas, mas a ativida<strong>de</strong> era a mesma. Então eu sempre tive vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

apren<strong>de</strong>r algo, ter mais conhecimento. De tá fazendo outra cosia também.<br />

(Informação verbal) 85<br />

2.6.2. A história <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong> Fátima Me<strong>de</strong>iros<br />

85 Entrevista dada em 24 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2005<br />

Eu nasci no interior da Paraíba e muito cedo, assim com oito anos, eu já<br />

tive que começar a trabalhar. Meu pai morava na roça e tinha que ir pra<br />

roça junto com ele <strong>para</strong> apanhar algodão, feijão, milho, essas coisas que ele<br />

plantava, ele era agricultor. E como a gente morava no interior, a água era<br />

muito distante, muito distante. A gente tinha que... eu já andava com os<br />

bal<strong>de</strong>s <strong>para</strong> pegar água, e eu com oito anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Pegar lenha pra fazer<br />

comida, essas coisas. E com quinze anos eu fui morar em Natal. Minha<br />

irmã mais velha morava em Natal e meus pais ficaram doente. Minha mãe<br />

teve que fazer uma cirurgia em Natal e meu pai teve que fazer uma cirurgia<br />

no coração e foi pra Brasília <strong>para</strong> casa dos filhos <strong>de</strong>le da primeira família,<br />

então eu fiquei eu e minha irmã só nós duas, menor <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> no interior.<br />

Por isso a gente foi <strong>para</strong> Natal, pra casa <strong>de</strong> minha irmã. Eu nunca tive<br />

<strong>de</strong>ssas coisas assim <strong>de</strong> brincar. Eu brincava assim, quando tinha lua, quando<br />

meus primos aparecia lá a gente brincava, mas era coisa muito pouca,<br />

porque tinha que trabalhar mesmos na roça. Eu estudava na cida<strong>de</strong> também.<br />

Ia no carro <strong>de</strong> estudante que era uma dificulda<strong>de</strong> muito gran<strong>de</strong>. Do interior<br />

<strong>para</strong> lá era mais <strong>de</strong> uma hora e a gente tinha que ir nas camionetes, pau <strong>de</strong><br />

arara, era horrível. Aí com quinze anos fui morar em Natal e quando<br />

cheguei em Natal eu tive que trabalhar porque minha irmã era casada e foi<br />

toda a família morar <strong>de</strong>ntro da casa <strong>de</strong>la. E minha irmã não agüentava<br />

sustentar todo mundo, então eu fui procurar emprego e consegui um<br />

emprego numa firma <strong>para</strong> costurar. Fiz um curso <strong>de</strong> costureira e aprendi a<br />

costurar e trabalhava nessa firma. Aí com <strong>de</strong>zessete anos eu me casei,<br />

porque eu tinha vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> sair <strong>de</strong> casa né? Eu achava que a vida <strong>de</strong> casada<br />

era melhor porque minha mãe prendia a gente muito <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa. Tinha<br />

festa às vezes na esquina num clubezinho tal e ela não <strong>de</strong>ixava, era muito<br />

presa. Eu achava que a vida <strong>de</strong> casada era melhor. Aí eu me casei, tive logo<br />

uma filha e aí fiquei mais presa ainda. Quer dizer, não tinha experiência<br />

alguma. Eu tinha muita vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> curtir bastante e aí eu chamava ele <strong>para</strong><br />

sair e ele não ia, tinha preguiça, às vezes eu ia escondido. E quando eu<br />

completei vinte anos me separei. Eu não agüentava mais aquela vida <strong>de</strong><br />

casada. E aí eu já trabalhava em uma outra firma e até que eu gostava<br />

bastante da firma, só que eu tive que sair porque eu peguei uma alergia<br />

muito forte, que eu trabalhava com algodão. Aí eu me separei, pedi apoio<br />

em casa, eu disse que não gostava do marido que eu queria me se<strong>para</strong>r, mas<br />

eles tinha medo da família ficar falada, assim, mudaram até do bairro <strong>para</strong>


eu não ser vizinha <strong>de</strong>les. Assim eu bati na porta <strong>de</strong>les e eles não me<br />

aceitaram em casa, e eu disse <strong>para</strong> ele que eu não voltava mais, né? Aí eu<br />

caí no mundo, entrei na zona mesmo, porque eu já tinha vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir. Eu<br />

achava aquele mundo <strong>de</strong> fantasia, sei lá, eu nunca tinha ido num motel.<br />

Então minha vonta<strong>de</strong> mesmo era ir pro brega, transar com homens<br />

diferentes, eu queria era novida<strong>de</strong>. Como eu saí da firma por causa da<br />

alergia, eu não pensei duas vezes. Eu tinha uma colega minha que era<br />

cozinheira <strong>de</strong> uma casa <strong>de</strong> massagem, e ela disse: “Vamos embora pra lá, eu<br />

sou cozinheira numa casa <strong>de</strong> massagem, você vai adorar”. E não <strong>de</strong>u outra.<br />

Quando eu cheguei lá eu fiz muito sucesso em Natal. Aí só dava eu, né? Eu<br />

com vinte anos na época. Eu entrei velha, né? Era pra ter entrado com<br />

<strong>de</strong>zoito. Eu adorei, só pegava homem bonito, que me escolhia porque eu era<br />

novinha e ganhei dinheiro pra caramba. Aí eu pensei: “poxa, eu tenho meus<br />

irmãos que moram <strong>aqui</strong> em Natal”. Tinha um, que já faleceu, que ele era<br />

muito ignorante. Eu me separei, ele não ligou muito, mas acho que ele<br />

queria que eu não namorasse mais. “Se ele me pegar no brega? Meu<br />

cunhado é bregueiro, ele vai me bater”. Aí eu caí fora <strong>de</strong> Natal. Aí vim, <strong>de</strong><br />

cida<strong>de</strong> em cida<strong>de</strong>. Ganhei dinheiro em Recife, mas eu disse: “bom, já que<br />

eu sou puta mesmo eu vou conhecer todos os bregas do Brasil que eu pu<strong>de</strong>r<br />

e vou conhecer as cida<strong>de</strong>s todas, vou fazer turismo também” e foi o que eu<br />

fiz. Eu cheguei a Salvador porque eu tinha muita vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer a<br />

Bahia. Eu adorava Luís Caldas, Chiclete com Banana. Isso tem uns <strong>de</strong>zoitos<br />

anos já. Aí eu vim <strong>de</strong> carona. Eu sempre an<strong>de</strong>i o Brasil todo <strong>de</strong> carona. Eu<br />

adorava pedir carona, mesmo tando com dinheiro. A aventura, assim mexia<br />

comigo, sabe? Eu acho muito massa chegar na BR, botar o <strong>de</strong>do e pedir<br />

carona. Adorava aquela aventura. Melhor do que ir <strong>de</strong> ônibus, aquela coisa<br />

chata e eu ia conversando com os caminhoneiro, aproveitava e já fazia<br />

programa e era tão legal, assim. Hoje não, porque não dá mais e eu tô velha<br />

também (risos). Mas eu cheguei <strong>aqui</strong> <strong>de</strong> carona. Eu peguei uma carona em<br />

Aracajú. Eu pedi uma carona e pedi pro cara me <strong>de</strong>ixar num lugar on<strong>de</strong><br />

tivesse zona, né? Ele me <strong>de</strong>ixou <strong>aqui</strong> na Praça da Sé, porque todo centro<br />

tem brega (risos). Aí eu fui batalhar com estrangeiro em navio. Eu não<br />

conhecia ninguém <strong>aqui</strong>. Geralmente em todos lugares que eu ia eu não<br />

conhecia ninguém, eu ia com a cara e a coragem mesmo. Eu ia pro brega. A<br />

carona que eu pedia eu já pedia: “me <strong>de</strong>ixa no brega”. Se não fosse, eu<br />

pegava um motorista <strong>de</strong> táxi e perguntava a ele on<strong>de</strong> é que ficava a zona <strong>de</strong><br />

prostituição e ele me levava.<br />

Eu batalhei a primeira vez em Natal, Recife, <strong>de</strong>pois fui pra alagoas. Aí<br />

<strong>de</strong>pois vim pra Aracaju, Salvador, Rio <strong>de</strong> Janeiro. Aí <strong>de</strong>pois voltei pra<br />

Alagoas, voltei pra Bahia aí fui pra Belo Horizonte e voltei pra Salvador <strong>de</strong><br />

novo.<br />

Na verda<strong>de</strong> eu não tive muitos companheiros. Nunca tive. A maioria das<br />

pessoas com quem eu me relacionei era casada. Em Salvador eu morei com<br />

um policial quase três anos e tive uma filha com ele. Hoje ela tem doze<br />

anos, mora com o pai, mas a gente se vê sempre. Ela sabe que eu sou<br />

prostituta, o pai <strong>de</strong>la contou. Ela não fala sobre isso.<br />

A primeira experiência no brega


A entrada na militância<br />

A primeira vez no brega eu tive uma resistência, eu achei que o cara ia me<br />

dar um calote, porque na firma que eu trabalhava eu ganhava por hora, eu<br />

não me lembro quanto era, mas era como se fosse três salários hoje. Mas eu<br />

tava <strong>de</strong>sempregada porque eu tinha saído e tal. Aí quando eu entrei no<br />

brega, que eu fui com essa colega que era cozinheira, o cara era cliente <strong>de</strong><br />

uma menina, mas me mandou me chamar porque queria ficar comigo,<br />

porque não me conhecia, eu era nova. A proposta <strong>de</strong>le foi tão alta, que eu<br />

não acreditei que ele ia me dar daí aí eu resisti. Aí eu não saí com ele. Ao<br />

invés <strong>de</strong> ele me perguntar quanto era o programa, eu sem experiência<br />

alguma eu disse a ele: “Quanto é que você vai me dar?”Aí ele disse: “Eu<br />

vou lhe dar tanto”, e aí eu não acreditei. Depois uma menina disse: “Ele que<br />

<strong>de</strong>via perguntar a você, ele ainda dá mais do que isso, o cara é rico”. Aí<br />

veio o segundo e eu fiquei na dúvida. Eu achei o brega lindo, lá era a casa<br />

mais linda que eu já tinha entrado na minha vida né? Eu tava tão encantada<br />

que eu...e eu tinha vergonha <strong>de</strong> cobrar, eu não sabia, mas <strong>de</strong>pois que me<br />

acostumei...O primeiro cara que eu saí foi uma experiência danada, peguei<br />

logo uma doença, o primeiro. Não tinha esse negócio <strong>de</strong> camisinha nem o<br />

gerente nem a dona da casa num falava nada. É o cliente quem <strong>de</strong>cidia.<br />

Então quando eu saí com o rapaz ele disse: “Apaga a luz”. Eu apaguei a luz.<br />

Depois eu transei com ele e ele foi embora, pagou e foi embora. Eu não vi<br />

nada. Aí <strong>de</strong>pois chegou um segundo, né? Todo bonito. Até era filho <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>putado <strong>de</strong> Natal na época. Só que o cara todo mundo tinha medo, era<br />

problemático, ele tava com uma camioneta preta, ainda me lembro bem. E<br />

ele todo malhadado, esses caras cheio <strong>de</strong> massa muscular. Um homem<br />

muito bonito, lindo! Quando eu vi o cara eu me encantei. Agora eu não<br />

entendi porque as meninas fugiram tudo, se escon<strong>de</strong>ram, né? E eu não<br />

entendi. Só que ocara me chamou e eu saí com ele. E ele batia em mulher,<br />

fazia tudo. Só que ele não fez nada comigo porque ele me achava ingênua .<br />

Eu falei pra ele que eu tinha entrado naquele dia. E ele perguntou:“ E você<br />

já saiu com alguém?” E eu disse: “ Já, eu já saí com um rapaz hoje”. “E eu<br />

sou segundo”? E eu disse: “É”. Aí... ele tava com um colega. E ele disse: “E<br />

você quer sair comigo?” E eu disse: “Quero”. “A gente vai pro motel, a<br />

gente não vai ficar <strong>aqui</strong> não”. Aí eu não conhecia um motel ainda e fiquei<br />

doida pra ir. E eu transei com ele sem camisinha também. E ele me tratou<br />

super bem. Aí ele me pagou e me <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> volta na casa <strong>de</strong> massagem.<br />

Depois <strong>de</strong> uns dias ele voltou e disse que eu tinha passado doença pra ele.<br />

Mas ele pagou meu tratamento. A partir daí eu passei a me cuidar, a<br />

examinar cliente, usar camisinha.<br />

O interesse <strong>de</strong>spertou <strong>de</strong> fundar uma associação <strong>de</strong> prostituta há mais <strong>de</strong> 10<br />

anos quando vi pela televisão Gabriela Leite falar do Davida, que é uma<br />

associação <strong>de</strong> prostituta que tem lá no Rio <strong>de</strong> Janeiro e já tinha visto falar<br />

também do Ceará, né? Já tinha visto falar <strong>de</strong> uma que ia fundar em Minas<br />

Gerais, naquela época eu morava em Minas Gerais, mas a gente não teve<br />

assim oportunida<strong>de</strong> naquela época quando <strong>de</strong>spertou interesse, mais <strong>de</strong><br />

quatorze anos. Só que quando eu vim pra Salvador, eu comentava com<br />

minhas colegas que já tinha morado no Rio <strong>de</strong> janeiro, que conhecia<br />

também. Inclusive eu já até tinha ido no Davida com uma colega minha. Só


que fui convidada pra trabalhar no projeto do CBAA, Centro Baiano Anti<br />

Aids, e conheci Marilene e outras meninas, né aí surgiu a idéia <strong>de</strong> fundar a<br />

associação. Foi quando o, Marcelo do CBAA e Jane, que era do Grupo<br />

Lésbico da Bahia, e você também que trabalhava no projeto apoiou. E foi<br />

quando tudo começou. A gente participava, fizemos um questionário,<br />

levamos <strong>para</strong> as casas <strong>de</strong> prostituição perguntando pras meninas ...surgiu<br />

uma das perguntas se fizesse uma associação, se elas participariam, né? E<br />

todas aprovaram que sim, que participariam, como até hoje elas participam,<br />

né? Das reuniões e foi quando tudo começou, né aí a gente convidou,<br />

fizemos reuniões toda semana pra falar a respeito da associação e formamos<br />

uma um grupo <strong>de</strong> meninas que estavam interessada a fundar a associação,<br />

né? E foi quando realmente começou <strong>para</strong> formar a Aprosba, né? Foi uma<br />

equipe <strong>de</strong> oito pessoas. Tinha presi<strong>de</strong>nte, vice-presi<strong>de</strong>nte, tesoureira,<br />

conselheira e por aí vai. E fizemos estatuto, registramos tudo e estamos <strong>aqui</strong><br />

até hoje.<br />

Minha família até então não sabia, né? Mas eu acho que sabia, mas eles não<br />

queria comentar comigo. Porque como eu aju<strong>de</strong>i eles tanto na prostituição,<br />

se eu nem sou doutora nem nada <strong>para</strong> ganhar bem, o que que eles iam<br />

pensar? Só se eu fosse roubar ou traficar, e nada disso... ne´? Então quando<br />

eu comecei a falar mesmo que eu era puta , pronto.<br />

As pessoas não sabiam bem o que era a Aprosba, ou Grupo Gay da Bahia<br />

(GGB) e <strong>de</strong>pois que a gente saiu do GGB, que era junto com o GLB, a<br />

gente não caminhava, a gente não tinha muito idéia, até tinha, mas tinha<br />

toda aquela coisa <strong>de</strong> a gente passar por terceira, a gente não tinha muita<br />

autonomia, então as conquistas eram menos, hoje a gente tem maior<br />

conquista, porque a gente era vista como GLB, então, <strong>de</strong>pois que a gente se<br />

separou eu acho que tudo ficou mais fácil pra trabalhar, até, porque a gente<br />

tem idéia, idéia <strong>de</strong> prostituta e a prostituta bota a idéia pra frente pra<br />

funcionar, então eu acho tudo mais fácil agora <strong>de</strong>pois da se<strong>para</strong>ção. Não<br />

que a gente tenha ficado magoada, mas foi bem melhor assim, teve umas<br />

briguinhas pra gente se se<strong>para</strong>r, mas foi bem melhor, cada um pro seu lado<br />

e a gente fica conquistando assim os espaços<br />

Então estamos com muitas ativida<strong>de</strong>s. Toda terça-feira a gente tem reuniões<br />

semanais com encaminhamento <strong>para</strong> retiradas <strong>de</strong> documento. Aqui a gente<br />

trabalha muito, né? A gente faz entrega <strong>de</strong> preservativos, trabalhamos<br />

também com mercado social, que é a venda <strong>de</strong> preservativos sem ser o<br />

preservativo do Ministério da Saú<strong>de</strong>, fazemos encaminhamento <strong>para</strong> postos<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, temos projeto <strong>para</strong> curso profissionalizante e agora tamos <strong>de</strong> casa<br />

nova, né? É uma conquista nossa que a gente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da Aprosba que<br />

a gente vivia pulando <strong>de</strong> galho em galho agora a gente tá com uma casa,<br />

espero que seja pra muitos anos. Foi uma parceria, mas acho que a gente vai<br />

ficar muito tempo por <strong>aqui</strong>. E viajamos bastante <strong>para</strong> ao interior porque<br />

nosso objetivo também é formar essa mesma instituição, formar também o<br />

interior pras meninas ficarem bastante informadas, pra que elas, mais tar<strong>de</strong>,<br />

quem sabe, uma re<strong>de</strong> estadual <strong>de</strong> prostituta, pra gente ficar muito mais<br />

forte, trabalhar melhor.<br />

Também têm os materiais informativos. A gente, por exemplo, a gente tem<br />

aquele que tem assim: “Nenhuma profissão está escrita na testa”. Eu acho<br />

muito legal, assim, principalmente da Aprosba porque a gente faz<br />

exatamente direcionado <strong>para</strong> o nosso público que é profissional do sexo. Eu<br />

por exemplo não concordo com muito cartaz que eu vejo por aí, do


Ministério. Ele não faz um cartaz assim....ele só faz pra socieda<strong>de</strong>, então o<br />

nosso, a gente mostra mesmo, é prostituta, é uma coisa mesmo direcionada<br />

pra prostituta. Então muda muito. Hoje eu tava conversando com uma<br />

pessoa que disse: “Esse cartaz tá muito bom”. Eu tô com uma faixa <strong>de</strong><br />

prostituta na testa, Marilene tá <strong>de</strong> polícia, Andréia <strong>de</strong> secretária, Celina tá<br />

<strong>de</strong> médica, uma coisa assim. E ela diz: “Ninguém <strong>aqui</strong> se parece com<br />

nada”. E eu disse: “A Aids também não. Por isso nenhuma profissão está<br />

escrita na testa”. Por isso esse cartaz ficou muito bom. A gente coloca ele<br />

<strong>de</strong>ntro das casas <strong>de</strong> prostituição, e tem nossa cara. Eu acho que é muito<br />

importante a gente fazer um parecido com a gente mesmo, com a cara da<br />

gente. Que fica muito mais visível assim. Diferente do que o ministério faz.<br />

Que ele faz pra socieda<strong>de</strong>, ele não faz pra prostituta. Pra cada público ele<br />

<strong>de</strong>via fazer uma coisa parecida mas ele se preocupas mais com a socieda<strong>de</strong>,<br />

assim, como marido e mulher, essa coisa. Acho assim, não parece muito<br />

com a coisa que ele quer atingir. E a gente fazendo pra gente mesmo é<br />

muito diferente. Fica bem original que é bem o papel das meninas verem o<br />

cartaz e lembrar na hora <strong>de</strong> fazer o programa. E não só <strong>de</strong> Doenças<br />

Sexualmente Transmissíveis (DST), mas a gente faz por exemplo o cartaz<br />

<strong>de</strong> cidadania, né? O cartaz pra elas saberem o direito...porque nós temos<br />

direitos tanto quanto qualquer cidadão brasileiro, porque a gente paga, a<br />

gente paga nossas contas, imposto, a gente paga tudo, só que a partir do<br />

material institucional que a gente coloca isso é diferente. Elas pega, leêm e<br />

ela diz : “Eu sei. Antes eu não sabia agora eu tô sabendo, eu tô informada.<br />

Por exemplo, outro dia tinha uma menina na Praça da Sé o policial chegou e<br />

disse: “Sabia que é crime você tá <strong>aqui</strong> na praça”? E ela ficou calada, ela<br />

disse que achava que prostituição era crime e ela leu, <strong>de</strong>pois, o nosso fol<strong>de</strong>r<br />

e ela viu que se prostituir não é crime. Ela disse que agora ficou sabendo.<br />

Por que outros não fazem ? Tinha que ser a associação <strong>de</strong> prostituta pra<br />

dizer que prostituição não é crime? Porque outros que trabalham com<br />

direitos humanos não fizeram um fol<strong>de</strong>r, uma cartaz pra mostrar que<br />

prostituição não é crime? Então é muito importante a associação tá sempre<br />

mudando, tá sempre fazendo uma coisa diferente do outro pra prostituta<br />

apren<strong>de</strong>r. É bom <strong>de</strong>mais isso. A gente tá cansada <strong>de</strong>ssa história <strong>de</strong><br />

prevenção. A gente trabalha mais com a questão da cidadania. Foi quando<br />

surgiu a Aprosba por causa disso, da violência. Isso tem que mudar, e tá<br />

mudando.<br />

Como foi o processo <strong>de</strong> ser li<strong>de</strong>rança<br />

Uma conquista gran<strong>de</strong> nossa foi ter diminuído a violência.. Então isso<br />

mudou muito, bastante. Também a questão da DSTs foi uma conquista<br />

também, porque a gente tinha vergonha <strong>de</strong> chegar nos postos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,<br />

dizer que era prostituta <strong>para</strong> receber camisinha e viam a gente com outros<br />

olhares,né? E agora é diferente, elas vêm até <strong>aqui</strong> pra pegar camisinha é é<br />

nosso universo, elas jamais teriam vergonha <strong>de</strong> chegar <strong>aqui</strong> e dizer que é<br />

prostituta, porque <strong>aqui</strong> só tem prostituta, né? Mudou muito, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início<br />

da Aprosba você via muitas meninas grávidas, eu via muito, hoje você vê<br />

menos e a gente faz a pergunta: “Você faz o quê”? “Eu uso camisinha”. Isso<br />

tudo foi com a Aprosba, fazendo palestras, orientando das DSTs, gravi<strong>de</strong>z


in<strong>de</strong>sejada, então a gente vem conquistando esse espaço sim. É bem<br />

gratificante pra gente saber que a gente tá mudando, é muito preconceito,<br />

existe ainda muito preconceito, mas a gente não vive disso, mesmo porque<br />

já foi classificada a prostituição como ocupação, né?<br />

Antes <strong>de</strong> ser ocupação cada um diria o que queria, né? Agora a gente po<strong>de</strong><br />

por exemplo chegar na <strong>de</strong>legacia e dizer que nós não somos vadia, nós<br />

estamos trabalhando, porque a gente tá, isso não é um crime, simplesmente<br />

a gente faz do nosso corpo o que a gente quer, então a gente po<strong>de</strong> dizer:<br />

“Não, eu estou trabalhando”.<br />

Como se percebe antes e <strong>de</strong>pois da Aprosba<br />

Minha maneira <strong>de</strong> pensar, mudou muito e eu acho que eu amadureci<br />

também. Mas também não é muito bom ser li<strong>de</strong>rança não. Pelo menos <strong>aqui</strong><br />

na Bahia. Eu não sei lá fora. Eu sou muito criticada, como Fátima mesmo.<br />

As colegas criticam tanto, acham que não precisa <strong>de</strong> associação <strong>de</strong><br />

prostituta, elas não se acham prostituta. Depois, quando acontece alguma<br />

coisa eles vêm <strong>aqui</strong>. Fora a socieda<strong>de</strong> que critica pra caramba, né? Se eu<br />

apareço na televisão por uma coisa, quando cinco gosta, vinte não gosta.<br />

Então isso tudo a gente tem que se<strong>para</strong>r. Mas minha maneira <strong>de</strong> pensar<br />

mudou muito porque antigamente eu escondia muito, eu tinha vergonha <strong>de</strong><br />

falar algumas coisas, <strong>de</strong> reivindicar, hoje eu tenho que fazer isso. Então isso<br />

<strong>de</strong> uma certa foram me acostumou, né? Eu tenho que fazer, sou eu que vou<br />

e então eu tenho que fazer mesmo. Eu me sinto vitoriosa, porque, pelo<br />

menos com gran<strong>de</strong>s conquistas porque eu já passei muitas dificulda<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>ntro da Aprosba e sempre eu estou tentando superar. Eu me sinto uma<br />

mulher guerreira.<br />

Na via pessoal mudou às vezes pra melhor e pra pior. Porque hoje em dia<br />

eu sou muito mais pública e pras pessoas fica difícil se relacionar comigo<br />

pelo fato <strong>de</strong> falar que eu sou prostituta. Então fica mais difícil. Muita gente<br />

acha que eu tô incentivando, fazendo apologia e eu não faço isso. As pessoa<br />

ainda me vêem com maus olhos.<br />

Com relação aos clientes, aos companheiros eu não mu<strong>de</strong>i nada. Eles que<br />

mudaram comigo. Quando eu tô na zona eu faço o máximo possível <strong>para</strong><br />

que eles não saibam que eu sou Fátima da Aprosba. Eu faço questão que ass<br />

meninas saibam, os cliente não. Porque se eu vou batalhar, eu <strong>de</strong>ixo o<br />

trabalho da Aprosba <strong>aqui</strong>. A não ser que haja alguma, algum inci<strong>de</strong>nte que<br />

eu tenha que me envolver. Mas fora isso não. Mas como minha vida está<br />

muito pública eles me reconhecem, aí muda, eles me dão piadinha, às<br />

vezes, pergunta se sou mais cara que as outras. Isso é chato. Às vezes eu<br />

passo na rua e um cara diz: “Ah eu te vi na televisão”. Isso muda também.<br />

Mudou muito em relação aos clientes. Mas eu envelheci, Mônica. Hoje eu<br />

estou com quarenta anos.<br />

. Eu sempre tive atitu<strong>de</strong>. Eu sempre fui <strong>de</strong>cidida. Hoje eu digo que a<br />

Aprosba tem meu sangue. Porque por mais que eu <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> ser<br />

coor<strong>de</strong>nadora, eu vou sempre querer saber como está a Aprosba. Eu até<br />

digo que quando eu morrer minha alma vai ficar <strong>aqui</strong>. Porque eu me <strong>de</strong>i<br />

bastante <strong>para</strong> que a Aprosba chegasse ao que ela está até hoje e espero que<br />

futuramente ele cresça muito mais. Eu acho que eu tenho a cara da Aprosba,<br />

mas eu acho que eu tenho cara <strong>de</strong> prostituta também. Aqui eu vou morrer


A mídia<br />

2.7. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e reflexivida<strong>de</strong><br />

sempre dizendo que sou prostituta. Posso não estar mais saindo com<br />

ninguém e eu vou dizer que sou prostituta. Eu sempre tive atitu<strong>de</strong> pra<br />

qualquer coisa.<br />

A mídia ajuda e atrapalha. Se é do interesse da Aprosba, se é um releese<br />

que a gente envie pra eles contando alguma coisa da Aprosba, se eles não<br />

tiverem interesse a gente querendo, morrendo vonta<strong>de</strong> que esteja na mídia,<br />

eles não fazem nenhuma questão <strong>de</strong> publicar. Eles não tão nem aí. Agora,<br />

se for <strong>de</strong> interesse <strong>de</strong>les, o assunto <strong>de</strong>les... Então assim, eu acho que eles às<br />

vezes atrapalham. Por exemplo, a gente fala uma coisa <strong>aqui</strong>, e eles<br />

publicam outra. Não é todos. Lógico que a mídia ajuda, mas todo mundo<br />

sabe que a mídia atrapalha. De vez em quando. Acho que a mídia é<br />

fundamental <strong>para</strong> tudo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que eles falem certo. Eles querem botar<br />

palavra na boca da gente na maioria das vezes. É fundamental? Sim, porque<br />

também a Aprosba cresceu, teve alguns projetos nosso que foi muito<br />

interessante quando a mídia começou a publicar. E também a gente foi<br />

muito criticada através da mídia. Enquanto uns criticavam a Aprosba, com<br />

críticas horríveis, outros já mandavam amenizando, <strong>para</strong>benizando. Então<br />

não sei se é <strong>para</strong> ser uma guerra entre eles, mas o que eles querem na<br />

verda<strong>de</strong> é uma audiência. Então enquanto uns criticam outros tão aí<br />

ajudando. (Informação verbal) 86<br />

Faremos a seguir algumas consi<strong>de</strong>rações sobre as trajetórias <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> Marilene e<br />

Fátima, tendo como base a noção <strong>de</strong> reflexivida<strong>de</strong>, e a idéia <strong>de</strong> projeto reflexivo do eu, que<br />

daí <strong>de</strong>riva, <strong>de</strong>senvolvidas por Anthony Gid<strong>de</strong>ns (1989; 1993; 2002).<br />

A reflexivida<strong>de</strong> é <strong>para</strong> os indivíduos um mecanismo fundamental nos seus processos<br />

<strong>de</strong> construção i<strong>de</strong>ntitária. Ao <strong>de</strong>senvolver tal conceito Gid<strong>de</strong>ns (1989) lança mão do que ele<br />

consi<strong>de</strong>ra uma das principais contribuições das sociologias interpretativas: a compreensão<br />

da cognoscitivida<strong>de</strong> dos sujeitos como reflexiva 87 e das práticas sociais como sendo<br />

or<strong>de</strong>nadas recursivamente. Para Gid<strong>de</strong>ns (1989, p.02), a continuida<strong>de</strong> das práticas<br />

pressupõe reflexivida<strong>de</strong>, mas esta, por sua vez, só é possível <strong>de</strong>vido à continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

86 Entrevista dada em 14 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

87 Para Gid<strong>de</strong>ns a reflexivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser entendida “como algo assentado na monitoração contínua da ação<br />

que os seres humanos exibem, esperando o mesmo dos outros”(GIDDENS, 1989, p:3).


práticas que as tornam nitidamente “as mesmas” através do espaço e do tempo”, ou seja, <strong>de</strong><br />

sua or<strong>de</strong>nação recursiva. Essas noções são fundamentais <strong>para</strong> as formulações do autor, que<br />

consi<strong>de</strong>ra a reflexivida<strong>de</strong> como constituída <strong>de</strong> dois níveis. Um <strong>de</strong>les é o da consciência<br />

prática, que é o saber tácito que o agente tem da vida social, ou seja, da consciência pré-<br />

reflexiva, do mundo “naturalizado” ou o “mundo da vida”(numa alusão a Schutz). O outro<br />

nível é o discursivo, o da elaboração conceitual, da suspensão da naturalização. Para<br />

Gid<strong>de</strong>ns (1989)a monitoração reflexiva diz respeito à consciência prática, isto é, a como<br />

articular <strong>de</strong>terminados meios a <strong>de</strong>terminados fins. No entanto, não há uma divisão rígida e<br />

impermeável entre consciência discursiva e consciência prática: “[...] não há barreiras entre<br />

esses dois tipos <strong>de</strong> consciência; há apenas as diferenças entre o que po<strong>de</strong> ser dito e o que,<br />

<strong>de</strong> modo característico, é simplesmente feito”. (GIDDENS, 1989, p 05). Nesse sentido, ele<br />

vai afirmar o caráter reflexivo da ação. Os sujeitos produzem um saber que é monitorado e<br />

é estruturante da ação.<br />

Gid<strong>de</strong>ns (2002) ainda aborda uma reflexivida<strong>de</strong>, distinta do monitoramento<br />

reflexivo mais geral da ação, que ele chama <strong>de</strong> construção reflexiva da auto-i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, na<br />

qual o “eu” é visto como projeto reflexivo, pelo qual o indivíduo é responsável. Para o<br />

autor, este é um processo característico do que ele chama <strong>de</strong> alta-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, porque é<br />

neste período que se criam as condições <strong>de</strong> produção e difusão <strong>de</strong> conhecimentos<br />

especializados, <strong>de</strong> banalização <strong>de</strong> conceitos antes constitutivos <strong>de</strong> esferas fechadas do<br />

saber, que possibilitam ao indivíduo auto-interrogar-se. A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> se forja assim<br />

permanentemente por auto-reflexivida<strong>de</strong>, que permite ao indivíduo contar a sua própria<br />

história e reafirmar seu senso <strong>de</strong> coerência. Trata-se <strong>de</strong> conjugar, <strong>de</strong> maneira a mais<br />

satisfatória, seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> conformida<strong>de</strong> e seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong>. Segundo Gid<strong>de</strong>ns<br />

[...] hoje em dia, o eu é <strong>para</strong> todos um projeto reflexivo – uma<br />

interrogação mais ou menos contínua do passado, do presente e do<br />

futuro. É um projeto conduzido em meio a uma profusão <strong>de</strong><br />

recursos reflexivos: terapia e manuais <strong>de</strong> auto- ajuda <strong>de</strong> todas os<br />

tipos, programas <strong>de</strong> televisão, artigos e revistas (GIDDENS, 1993,<br />

P.41).<br />

Pensamos ser interessante nos <strong>de</strong>termos na “reflexivida<strong>de</strong>” que conforma o eu das<br />

li<strong>de</strong>ranças Fátima e Marilene, pois é recorrente nas suas narrativas uma concepção <strong>de</strong> si


mesmas orientada pela apropriação <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> saberes (como a literatura dos<br />

movimentos associativistas, que já circula por todo o país, os encontros, seminários, cursos<br />

<strong>de</strong> capacitação nas mais variadas ativida<strong>de</strong>s) que fizeram com que essas mulheres<br />

incorporassem um conhecimento especializado relacionado às suas ações envolvendo uma<br />

noção <strong>de</strong> eu. Assim, o projeto reflexivo do eu envolve uma reconstrução emocional do<br />

passado, <strong>para</strong> projetar uma narrativa coerente em direção ao futuro: na narrativa <strong>de</strong>ssas<br />

duas militantes po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar um marco nas suas trajetórias, <strong>de</strong> um antes e um<br />

<strong>de</strong>pois. Este marco é expresso pela apropriação <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> saberes e práticas<br />

institucionais, incluindo aí o uso da mídia como uma prática relevante, pois compreen<strong>de</strong><br />

um espaço privilegiado <strong>de</strong> uma narrativa reflexivamente or<strong>de</strong>nada do eu.<br />

Consi<strong>de</strong>ramos então que uma concepção <strong>de</strong> “si mesmas” por parte das militantes,<br />

referida anteriormente, orientada pela apropriação <strong>de</strong> conjunto <strong>de</strong> saberes, po<strong>de</strong> ser, em<br />

parte, pensada por essa idéia <strong>de</strong> projeto reflexivo do eu consi<strong>de</strong>rado por Gid<strong>de</strong>ns (2000).<br />

Vimos que a apropriação por parte <strong>de</strong>las <strong>de</strong> um saber formal que atravessa as práticas<br />

institucionais (e é ele próprio um dos fatores condicionantes da aproximação da prostituta<br />

com a militância ) participa na construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> militante. Por outro lado, as<br />

narrativas mostraram como a auto-i<strong>de</strong>ntificação com a militância esteve em estreita relação<br />

com outros elementos das práticas institucionais — como tarefas que <strong>de</strong>vem ser<br />

executadas, interações com pessoas concretas das mais diferente categorias, força,<br />

equilíbrio, disciplina — e não se constituiu apenas como um movimento reflexivo do<br />

sujeito. Ou seja, foi fundamental um saber fazer que só se sabe fazendo, interagindo.<br />

Quando Marilene e Fátima se voltam <strong>para</strong> seus passados com um olhar <strong>de</strong> militante,<br />

elas nos mostram que suas vidas na prostituição não foram uma escolha pré-concebida, mas<br />

aquela que elas fizeram diante das opções que tinham. Elas nos falam, sem um sentimento<br />

<strong>de</strong> vitimização, das dificulda<strong>de</strong>s que viveram e <strong>de</strong> como a prostituição possibilitou que elas<br />

cuidassem <strong>de</strong> si, dos seus filhos e <strong>de</strong> sua família. Elas se afastam <strong>aqui</strong> da situação analisada<br />

por Goffman, e já referida anteriormente, quando trata da carreira moral, <strong>de</strong> que se os fatos<br />

do passado e do presente <strong>de</strong> uma pessoa são extremamente sombrios, o melhor que po<strong>de</strong><br />

fazer é mostrar que não é responsável por <strong>aqui</strong>lo que veio a ser. A militância aparece como<br />

ponto <strong>de</strong> ruptura com uma percepção — como Marilene mesma se refere várias vezes ao<br />

longo <strong>de</strong> sua narrativa — preconceituosa da prostituta, inculcada principalmente pelo pai.


Fátima e Marilene assumem-se como prostitutas, reconhecem uma outra forma <strong>de</strong> pensar,<br />

<strong>de</strong> se comportar, <strong>de</strong> conhecer o mundo. Consi<strong>de</strong>ram-se capazes <strong>de</strong> assumir tarefas que antes<br />

parecia impossível que pu<strong>de</strong>ssem assumir. Elas visitam o gabinete do prefeito, têm espaço<br />

na mídia, circulam em ambientes <strong>de</strong> universida<strong>de</strong>s e escolas dando palestras e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo a<br />

idéia <strong>de</strong> que a prostituição é uma ocupação como outra qualquer, que <strong>de</strong>ve ser<br />

profissionalizada. Nos discursos a prostituição é sempre valorizada, e a atitu<strong>de</strong> que elas<br />

cobram das prostitutas é a <strong>de</strong> “lutar pela profissão”.<br />

CAPÍTULO 3<br />

MILITANTES E NÃO MILITANTES: APROXIMAÇÕES E<br />

DISTANCIAMENTOS<br />

Acho que as fantasias sexuais estão num plano muito<br />

mais complexo que qualquer teoria ou discurso<br />

político<br />

Gabriela Leite,1992<br />

Sugerimos que um conjunto <strong>de</strong> práticas institucionais da Aprosba po<strong>de</strong> representar a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construção e comunicação <strong>de</strong> uma imagem mais favorável da prática da<br />

prostituição. Um dos elementos fundamentais <strong>de</strong>sta construção e comunicação é a<br />

disposição <strong>de</strong> se assumir prostituta. Preten<strong>de</strong>mos, neste capítulo, apreen<strong>de</strong>r a dinâmica <strong>de</strong><br />

distanciamento e aproximação que caracteriza a relação das militantes com as não<br />

militantes. Discutiremos o campo <strong>de</strong> atuação da Aprosba na construção <strong>de</strong> uma nova<br />

imagem <strong>de</strong> prostituta, evi<strong>de</strong>nciando temas e lutas que marcam a posição <strong>de</strong> militantes e não<br />

militantes.


3.1 Vitimização<br />

A vitimização, é importante ressaltar, é tema caro ao movimento associativista <strong>de</strong><br />

prostitutas. É recorrente (entre li<strong>de</strong>ranças do movimento) o discurso que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> uma não<br />

interferência <strong>de</strong> instituições externas nas áreas <strong>de</strong> prostituição com o intuito <strong>de</strong> “cuidar” das<br />

mulheres. Elas reagem ao serem tratadas como “coitadinhas”. No I Seminário Nor<strong>de</strong>stino<br />

<strong>de</strong> Sustentabilida<strong>de</strong> das Ações <strong>para</strong> Profissionais do Sexo, já citado, o processo <strong>de</strong><br />

vitimização foi muito <strong>de</strong>batido. Uma atitu<strong>de</strong> da militância frente a esse processo po<strong>de</strong> ser<br />

ilustrada com a reação das li<strong>de</strong>ranças nacionais ao procedimento <strong>de</strong> vacinação nas zonas <strong>de</strong><br />

prostituição, que vem sendo realizado por algumas associações em parceria com os<br />

governos estaduais. Tal procedimento é consi<strong>de</strong>rado pelas militantes como “tutela por parte<br />

do governo”, um “processo <strong>de</strong> higienização”. Para as li<strong>de</strong>ranças as prostitutas não precisam<br />

que as vacinas cheguem até elas já que <strong>de</strong>vem buscá-las nos pontos on<strong>de</strong> estão disponíveis,<br />

como sujeitos <strong>de</strong> suas ações.<br />

Gabriela Leite chama a atenção não só <strong>para</strong> a autovitimização como <strong>para</strong> a<br />

tendência moralista — principalmente daqueles que, pensando assumir uma postura<br />

progressista, se arvoram em tratar da questão da prostituição — <strong>de</strong> se apontar a prostituta<br />

com “vítima do sistema”. Para ela<br />

Falar na prostituição através da pobreza é passar ao largo da sexualida<strong>de</strong>.<br />

Essas pessoas que se dizem progressistas gostam <strong>de</strong> tratar as prostitutas<br />

como vítimas, e <strong>de</strong>sta maneira elas per<strong>de</strong>m suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e cidadanias<br />

<strong>para</strong> ‘malda<strong>de</strong> intrínseca do sistema’ (LEITE, 1992, p.168).<br />

Uma outra maneira <strong>de</strong> abordar a questão, segundo Gabriela Leite, é reconhecer a<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se oficializar a prostituição como profissão. Na sua perspectiva cabe à<br />

prostituta pobre, frente à ausência <strong>de</strong> benefícios e direitos, lutar por estes e não ficar à<br />

mercê da benevolência do Estado. Moraes (1995) pon<strong>de</strong>ra que com a organização política a<br />

profissão <strong>de</strong> prostituta é então apresentada como uma “escolha” que é realizada por


algumas mulheres que viram nesta ativida<strong>de</strong> maiores vantagens e melhores condições <strong>de</strong><br />

ganho:<br />

Tornar a prostituição uma opção profissional num leque <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong><br />

introduz uma discussão acerca do reconhecimento da profissão. Mesmo não<br />

sendo o pensamento mais presente na categoria, é bastante significativo<br />

quanto à trajetória <strong>de</strong> formulação do discurso político (MORAES, 1995,<br />

p.89).<br />

Lúcia Paz, prostituta militantes do Núcleo <strong>de</strong> Estudo da Prostituição <strong>de</strong> Porto Alegre<br />

e da Re<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Prostituta, fala da “escolha” da prostituição:<br />

No Brasil, nós prostitutas acreditamos que todos os cidadãos, homens e<br />

mulheres, têm o direito <strong>de</strong> escolher no que querem trabalhar, e isso não é<br />

diferente com as prostitutas. Muitas vêm com o discurso <strong>de</strong> vítima da<br />

socieda<strong>de</strong> e não é assim. Há mulheres que dizem: vou batalhar um mês <strong>para</strong><br />

arrumar os <strong>de</strong>ntes, comprar um fogão, uma casa. E <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> cinco anos ela<br />

está lá. Isso quer dizer que é uma opção, e pelo estigma e pela<br />

discriminação que sofremos, tentamos encobrir, escon<strong>de</strong>r e assim<br />

enganamos nós mesmas 88<br />

A vitimização é uma situação presente na prática da prostituição, principalmente<br />

entre mulheres que compartilham uma perspectiva normativa em que a prostituta é<br />

percebida como uma mulher vitimizada pelas forças inelutáveis do acaso. Moraes lembra<br />

que “[...] ao viverem intensamente o conflito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> elas procuram enunciar a<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> saída da prostituição como forma <strong>de</strong> relativizar, ou anular, a imagem<br />

negativa <strong>de</strong> prostituta. As mulheres nessa situação não se vêem enquanto sujeitos <strong>de</strong> ação<br />

<strong>de</strong> sua trajetória e terminam por alimentar a expectativa <strong>de</strong> ações salvadoras <strong>de</strong> agentes<br />

externos”. 89 (1995, p. 58).<br />

88 LENZ, Flávio. Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> prostituta mobiliza ativistas no Fórum Social Mundial <strong>de</strong> Caracas. Disponível em<br />

http://wwwbeijodarua.com.br. Acesso em 27/01/2006<br />

89 O filme “Pretty Woman” (Uma linda mulher) ilustra bem esse clichê <strong>de</strong> uma “ação salvadora”. Também<br />

po<strong>de</strong>mos fazer referência ao clássico “Bonequinha <strong>de</strong> luxo” dirigido por Blake Edwards, que compartilha <strong>de</strong><br />

uma perspectiva salvacionsita. No filme, uma garota <strong>de</strong> programa ou uma prostitua <strong>de</strong> luxo — termos que são<br />

usados pela crítica cinematográfica <strong>para</strong> se referir à personagem Holly Colighly vivida por Audrey Hepburn<br />

—sonha em conseguir um milionário rico <strong>para</strong> se casar. Ela se envolve com um jovem escritor e gigolô, Paul<br />

Varjak personagem <strong>de</strong> George Peppard,que se tornou seu vizinho. Apesar <strong>de</strong> explorar uma atitu<strong>de</strong> bem<br />

resolvida da protagonista em relação a sua ocupação e sua saída da prostituição ser projetada através <strong>de</strong> ações<br />

bem articuladas <strong>para</strong> conseguir um rico marido, o <strong>de</strong>sfeixo se ren<strong>de</strong> ao “po<strong>de</strong>r do amor”. Holly abandona tudo<br />

<strong>para</strong> ficar com Paul, que já po<strong>de</strong> viver dos divi<strong>de</strong>ndos <strong>de</strong> escritor. Por outro lado temos Jane Fonda no papel<br />

da enigmática prostituta Bree no Filme “Klute: o passado con<strong>de</strong>na”, <strong>de</strong> Allan J. Pakula, <strong>de</strong> 1971. Bree se


Tanto o discurso religioso, que busca evi<strong>de</strong>nciar a imagem “da mulher prostituta arrependida”, como<br />

o discurso <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parcela da mídia estão propensos “[...] a aceitar o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> prostitutas que se<br />

dizem arrependidas <strong>de</strong> ‘estar naquela vida’ em que só ‘entraram’ por não ter outra forma <strong>de</strong> sobrevivência”<br />

(SOUSA, 1998, P.115). A relação entre falta <strong>de</strong> opção e necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sobrevivência que sustenta os<br />

discursos sobre as causas da prostituição, e gera a vitimização e auto-vitimização da prostituta, é<br />

problematizada em interessantes abordagens sobre a prostituição (MORAES, 1995; RAGO,1991; SOUSA,<br />

1998; GASPAR, 1985). Estas abordagens, assim como a nossa observação nos levam a ter como referência a<br />

idéia <strong>de</strong> que a questão não é “[...] dizer que todas estão felizes on<strong>de</strong> estão e nas condições em que se<br />

encontram; que pu<strong>de</strong>ram optar pela vida <strong>de</strong> prostituta” (SOUSA, 1998, p117). Mas também lembrar que se<br />

existem as “vítimas” não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar que existem mulheres “[...] que resolveram, <strong>de</strong> forma<br />

<strong>de</strong>liberada, se <strong>de</strong>dicar à prostituição por não estarem satisfeitas com o padrão <strong>de</strong> vida que po<strong>de</strong>riam ter através<br />

da profissão que exerciam” (GASPAR, 1985, P.94). Reafirmamos que o processo <strong>de</strong> vitimização não po<strong>de</strong> ser<br />

visto como dissociado do momento e posição social alcançada através da carreira <strong>de</strong> prostituta:<br />

A prostituição como forma <strong>de</strong> viabilizar planos econômicos, po<strong>de</strong> se<br />

manifestar através <strong>de</strong> situações em que procurem manter ou alcançar um<br />

padrão <strong>de</strong> vida mais elevado, seja garantindo os estudos dos filhos, ou até<br />

adquirindo a casa própria . Quando atingem este nível <strong>de</strong> racionalização, a<br />

permanência na ativida<strong>de</strong> aparece menos carregada <strong>de</strong> tensões, e a<br />

prostituta não se coloca mais como ‘vítima’ da necessida<strong>de</strong> econômica, mas<br />

como uma mulher empreen<strong>de</strong>dora e responsável, que procura viabilizar os<br />

seus sonhos <strong>de</strong> ascensão social. ( MORAES, 1995, p.89)<br />

No universo das não militantes encontramos as “vítimas” e as “donas <strong>de</strong> si”. Umas dizem se<br />

prostituir porque são obrigadas pela necessida<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong>testam o que fazem; outras porque consi<strong>de</strong>ram<br />

melhor do que fazer outra coisa como ser doméstica, por exemplo; outras porque gostam da profissão. Neste<br />

sentido, não po<strong>de</strong>mos dizer que exista uma relação inequívoca entre não militante e auto-vitimização<br />

No discurso das mulheres membros da Aprosba e na fala das não militantes que estão situadas no<br />

âmbito <strong>de</strong> ação da Aprosba, prevalece a representação <strong>de</strong> que a prostituição as coloca diante <strong>de</strong> uma relativa<br />

liberda<strong>de</strong> no mundo do trabalho – pela ausência <strong>de</strong> um patrão e autonomia <strong>de</strong> horários. Nos relatos das suas<br />

experiências, fazem menção a situações que são tidas como opressoras no <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> outras funções,<br />

principalmente o emprego doméstico, como já comentamos, em oposição à ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prostituição, que é<br />

vista como <strong>de</strong> relativa liberda<strong>de</strong> se com<strong>para</strong>da com outras situações profissões. Assim, a prostituição é sempre<br />

consi<strong>de</strong>ra simplesmente uma mulher que escolheu ser uma prostituta profissional sem nenhuma culpa ou<br />

<strong>de</strong>sculpas. Avalia seu profissionalismo pela capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar prazer e não sentir prazer “Eu nunca tenho<br />

orgasmo com clientes”, diz ela .E o que dizer da personagem Séverine, <strong>de</strong> a “Bela da tar<strong>de</strong>” (Belle <strong>de</strong> Jour),<br />

filme <strong>de</strong> Luis Buñuel, vivida por Catherine Deneuve, que sendo uma mulher casada com um médico, busca o<br />

prazer se prostituindo?


consi<strong>de</strong>rada uma ativida<strong>de</strong> que cria melhores condições <strong>de</strong> sobrevivência com relação às outras que<br />

apresentam remunerações mais baixas.<br />

O que po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar em relação às prostitutas que são membros da Aprosba é<br />

que, através da prostituição, elas tiveram a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> participar <strong>de</strong> uma organização,<br />

<strong>de</strong> se constituírem enquanto sujeitos ativos, <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolverem uma outra concepção, agora<br />

mais positiva, da prostituição, que as coloca em confronto com uma concepção dominante<br />

da prostituta enquanto vítima. Isto não significa que elas não sintam ou não expressem as<br />

dificulda<strong>de</strong>s do mundo da prostituição. No entanto a experiência <strong>de</strong> ser militante vai<br />

fazendo com que as tipificações do mundo cotidiano da prostituição sejam ressignificadas e<br />

as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse mundo sejam experimentadas a partir <strong>de</strong> uma consciência mais<br />

elaborada. Geralmente, quando a saída da prostituição é anunciada, esta faz-se em relação a<br />

uma necessida<strong>de</strong> que o próprio corpo coloca em função do <strong>de</strong>sgaste do tempo. A<br />

preocupação com o envelhecimento é bem presente entre as mulheres com as quais tivemos<br />

contato. Elas lembram umas às outras que, com a ida<strong>de</strong>, tudo fica mais difícil e assim elas<br />

precisam fazer “um pé <strong>de</strong> meia”. A questão que prevalece não é mais a <strong>de</strong> se livrar <strong>de</strong> uma<br />

ativida<strong>de</strong>, consi<strong>de</strong>rada cruel por parte <strong>de</strong> muitas prostitutas e discriminada pela socieda<strong>de</strong>,<br />

mas <strong>de</strong> garantir um futuro, dados os limites do corpo.<br />

3.2. Violência<br />

Marilene faz uma com<strong>para</strong>ção entre a prostituta e o jogador <strong>de</strong> futebol:<br />

Tem o tempo né...quando você vai ficando mais velha fica mais cansada,<br />

aparece meninas novas e aí ...carne nova no pedaço, né?[risos]. Eu ainda<br />

faço também, mas não é como antes, nem meu corpo agüenta também. Eu<br />

ficava, amanhecia o dia, trabalhava a noite toda, aquele pique, não é<br />

mais...É igual a jogador <strong>de</strong> futebol. Jogador <strong>de</strong> futebol tá no campo com<br />

sessenta anos ele não vai ter perna pra pegar bola[ risos]. (informação<br />

verbal) 90<br />

A jurisprudência do Ancien Régime previa, em relação à violência sexual 91 , que a<br />

qualida<strong>de</strong> da pessoa contra quem a violência é praticada aumenta ou diminui o crime.<br />

90 Entrevista dada no dia 16 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2004<br />

91 Ver Vigarello (1998), que analisa as diferentes sensibilida<strong>de</strong>s à violência nos diferentes períodos da<br />

história na sua obra História do estupro:violência sexual nos séculos XVI-XX. Ele mostra como nos séculos<br />

XVI a XX as diversas maneiras <strong>de</strong> recusa à mulher um stauts <strong>de</strong> sujeito levam a mascarar a violência sexual.


Parece que tal jurisprudência ainda pesa sobre nosso imaginário social, principalmente<br />

quando olhamos em direção aos vários tipos <strong>de</strong> violência sofridos pelas prostitutas. A<br />

violência é corriqueira, principalmente na baixa prostituição. Ela é, na sua maioria,<br />

praticada por clientes e policiais. Alguns relatos mostram que a violência po<strong>de</strong> ocorrer<br />

<strong>de</strong>ntro dos quartos <strong>de</strong> hotel, on<strong>de</strong> o cliente exige <strong>de</strong>terminadas práticas que são recusadas<br />

pelas mulheres; e <strong>de</strong>ntro dos carros, <strong>de</strong> homens que levam mulheres que trabalham nas<br />

ruas, sob a ameaça <strong>de</strong> armas <strong>de</strong> fogo, <strong>para</strong> lugares ermos, on<strong>de</strong> sofrem todo o tipo <strong>de</strong> abuso<br />

antes <strong>de</strong> serem ali abandonadas. A violência dos policiais é objeto <strong>de</strong> queixas freqüentes.<br />

Eles inserem a prostituta na categoria <strong>de</strong> “criminosa” e aí usam da “autorida<strong>de</strong>”, que se<br />

caracteriza por agressão física e encarceramento.<br />

A violência é um tema recorrente das li<strong>de</strong>ranças da Aprosba em <strong>de</strong>clarações na<br />

mídia, em encontros, seminários, nas reuniões na se<strong>de</strong> da instituição, e em reuniões<br />

informais. Fátima consi<strong>de</strong>ra a violência uma questão central <strong>para</strong> a associação, e avalia a<br />

sua diminuição como uma das conquistas da instituição:<br />

O nosso objetivo maior foi a questão da violência E isso melhorou oitenta por<br />

cento. Policiais também violentava as meninas. Hoje quando acontece isso, a gente<br />

vai pra televisão, a gente marca com o capitão, faz reunião. Inclusive nas nossas<br />

reuniões <strong>aqui</strong> a gente convida os policiais, muitas vezes pra ele tá conhecendo<br />

melhor, porque as pessoas confun<strong>de</strong>m muito a coisa da prostituta e da ladrona;<br />

então tem que saber se<strong>para</strong>r, né? Por causa disso a gente é vista pela socieda<strong>de</strong><br />

como marginal e isso mudou muito, porque a gente po<strong>de</strong> <strong>de</strong> igual pra igual tá<br />

falando junto pra socieda<strong>de</strong>, essa socieda<strong>de</strong> mentirosa que discrimina a prostituta,<br />

mas usufrui também né? Nossos clientes são o quê? Nossa socieda<strong>de</strong>, né? Os<br />

homens que procuram a gente e que <strong>de</strong>pois eles mesmos que violentam (Informação<br />

verbal) 92 .<br />

Marilene chama atenção <strong>para</strong> o um papel importante da mídia na coerção da violência por<br />

parte do cliente. Vamos retomar um trecho <strong>de</strong> sua entrevista registrada no segundo capítulo<br />

<strong>de</strong>ste estudo:<br />

92 Entrevista dada no dia 08 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2004.<br />

Diminuiu mais a violência do lado dos homens porque eles, induzidos pela<br />

mídia, eles sabem que elas agora já procuram os direito, já têm quem lute<br />

por elas, elas não tão sozinhas, tem o movimento que tá correndo atrás e tal.<br />

Então através da mídia eles lêem no jornal, já tem esse conhecimento então<br />

eles já po<strong>de</strong>m pensar duas vez antes <strong>de</strong> fazer algum tipo <strong>de</strong> violência. Já<br />

diminui, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Aprosba a violência diminuiu. Claro que não acabou,


ainda tem bastante violência, mas minimizou um pouco. A violência mais<br />

comum é as meninas que trabalham à noite, trabalham na pista. Violência<br />

<strong>de</strong> cliente, <strong>de</strong> policial. Meninas também que se envolvem com drogas, aí<br />

fica mais vulnerável à violência também. Elas mesmas cometem violência,<br />

mas essas não têm o conhecimento porque não tão associada à gente pra ter<br />

uma outra visão. (Informação verbal) 93<br />

O vínculo que a Aprosba mantém com a mídia permite a <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> casos <strong>de</strong><br />

violência contra prostitutas, como mostra a matéria abaixo publicada no jornal A Tar<strong>de</strong>:<br />

No início da semana, as profissionais do sexo Juliana, 22 anos; Rosângela,<br />

25 anos; e Érica, 27 anos (nomes fictícios) sofreram ameaças <strong>de</strong> agressão<br />

física e <strong>de</strong> morte por seguranças da boate Eros, localizada na Rua Minas<br />

Gerais, na Pituba 94 .<br />

A violência é <strong>de</strong> tal modo habitual que é percebida como “natural” pelas não<br />

militantes. Um evento bem significativo da naturalização da violência no universo das não<br />

militantes aconteceu no Bar Damasco, na área central. Uma prostituta foi <strong>de</strong>nunciada,<br />

supostamente por uma colega, por roubo <strong>de</strong> clientes. O policial chegou ao local e pediu que<br />

a mulher <strong>de</strong>nunciada fosse i<strong>de</strong>ntificada. Uma das mulheres presentes fez a i<strong>de</strong>ntificação da<br />

acusada, que sofreu imediatamente agressão física por parte do policial. A mulher agredida<br />

“jurou <strong>de</strong> morte” e expulsou da “área” aquela que fez a i<strong>de</strong>ntificação. Esta, se consi<strong>de</strong>rando<br />

mais fraca, abandonou o local e passou a andar armada. Ela fez a seguinte <strong>de</strong>claração em<br />

uma reunião na se<strong>de</strong> da Aprosba: “Já <strong>de</strong>i queixa na <strong>de</strong>legacia, se ela vier pra cima <strong>de</strong> mim<br />

tem guardado pra ela”, afirmou batendo a mão sobre a bolsa 95 . O fato gerou burburinho e<br />

tensão que duraram muitos dias entre as prostitutas que freqüentam a se<strong>de</strong> da Aprosba.<br />

Havia uma clara divisão entre aquelas que apoiavam a agredida pela falta <strong>de</strong> lealda<strong>de</strong> da<br />

colega que a <strong>de</strong>nunciou e, as outras que consi<strong>de</strong>ravam que a <strong>de</strong>nunciante foi corajosa ao<br />

enfrentar uma mulher tão temida no local. No entanto, em nenhum momento a agressão<br />

policial foi posta em causa, ou questionada.<br />

Em Seminário anteriormente citado, prostitutas <strong>de</strong> Feria <strong>de</strong> Santana e Juazeiro<br />

relataram a violência que prostitutas sofrem das donas ou donos <strong>de</strong> casas. Segundo essas<br />

mulheres, as prostitutas têm que se sujeitar a <strong>de</strong>terminadas situações que são impostas,<br />

93 Entrevista dada no dia 24 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2005<br />

94 LOBO, Sandro. Prostitutas querem direitos sociais garantidos por lei A Tar<strong>de</strong>, Salvador, 15 <strong>de</strong>z 2004.<br />

Ca<strong>de</strong>rno Especial<br />

95 Notas <strong>de</strong> campo


como num regime <strong>de</strong> semi-escravidão. Uma das li<strong>de</strong>ranças do movimento associativista<br />

perguntou <strong>de</strong> forma indignada: “Por que elas se sujeitam, o que as impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> resistir, <strong>de</strong><br />

sair?” 96 Johnson&Ferraro (2002) esclarecem muito bem este ponto quando abordam a<br />

vivência <strong>de</strong> mulheres em situações <strong>de</strong> violência e mostram como a violência po<strong>de</strong> ser<br />

relativizada e vivida como não problemática, mesmo que as pessoas mais próximas <strong>de</strong>ssas<br />

mulheres mostrem que a situação é ina<strong>de</strong>quada. De acordo com estes autores, mulheres que<br />

experimentam a violência <strong>de</strong> seus companheiros <strong>de</strong> forma repetida, ou o abuso sem<br />

sentimento <strong>de</strong> ser vítima, partilham um sistema <strong>de</strong> relevância que permite que mantenham<br />

um sentimento <strong>de</strong> que esta relação é boa, normal, ou pelo menos aceitável. Neste sentido é<br />

a quebra <strong>de</strong>sse sistema <strong>de</strong> relevância e adoção <strong>de</strong> um outro código <strong>de</strong> interpretação que vai<br />

permitir tornar uma situação problemática e oferecer nas palavras <strong>de</strong> Schutz (1979) uma<br />

receita apropriada <strong>para</strong> sua solução. Quando militantes da Aprosba colocam-se <strong>de</strong> maneira<br />

a questionar algumas situações típicas do mundo da prostituição, como a vitimização e a<br />

violência, elas expressam um ponto <strong>de</strong> ruptura com essas situações. Elas passam a<br />

compartilhar um sistema <strong>de</strong> relevância próprio do con<strong>texto</strong> interativo da militância que lhes<br />

permite problematizar situações tidas como “naturais”, como mostramos na seção<br />

“Alinhamentos exogrupais e intragrupais” do capítulo 2 <strong>de</strong>sta investigação.<br />

3.3. Regulamentação da prostituição<br />

Des<strong>de</strong> 2002 a prática da prostituição faz parte da categoria 5198-05 da Classificação<br />

Brasileira <strong>de</strong> Ocupações (CBO), elaborada pelo Ministério do Trabalho e do Emprego. Isso<br />

significa que a ativida<strong>de</strong> passa ser reconhecida pelo ministério, mas só passará a ser<br />

profissão com o processo <strong>de</strong> regulamentação da ativida<strong>de</strong>.<br />

Esse reconhecimento é efeito das ações do movimento <strong>de</strong> prostitutas no Brasil que<br />

durante décadas, sob a li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong> Gabriela Leite, lutam pela regulamentação da ativida<strong>de</strong>.<br />

Todo o processo <strong>de</strong> normatização da prostituição como ocupação, junto ao Ministério do<br />

96 Registro <strong>de</strong> notas sobre seminário


Trabalho, foi gerido pela Re<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Prostitutas que congrega várias associações.<br />

Po<strong>de</strong>mos dizer que esse processo expressa o “espírito” do movimento.<br />

Na CBO aquele ou aquela que exerce a prática da prostituição é “Profissional do sexo,<br />

compreendido como sinônimo <strong>de</strong>: “Garota <strong>de</strong> programa, Garoto <strong>de</strong> programa, Meretriz,<br />

Messalina, Michê, Mulher da vida, Prostituta, Puta, Quenga, Rapariga, Trabalhador do<br />

sexo, Transexual, Travesti.” 97<br />

• Descrição da ativida<strong>de</strong>:<br />

Batalham programas sexuais em locais privados, vias públicas e garimpos;<br />

aten<strong>de</strong>m e acompanham clientes homens e mulheres, <strong>de</strong> orientações sexuais<br />

diversas; administram orçamentos individuais e familiares; promovem a<br />

organização da categoria. Realizam ações educativas no campo da<br />

sexualida<strong>de</strong>; propagan<strong>de</strong>iam os serviços prestados. As ativida<strong>de</strong>s são<br />

exercidas seguindo normas e procedimentos que minimizam as<br />

vulnerabilida<strong>de</strong>s da profissão (CBO, 2006) 98<br />

Observamos que a ativida<strong>de</strong> como é <strong>de</strong>scrita vai além da prestação <strong>de</strong> um serviço. Ela<br />

expressa as ativida<strong>de</strong>s realizadas por prostitutas militantes como: realizar ações educativas<br />

no campo da sexualida<strong>de</strong>, promover a organização da categoria. Além <strong>de</strong> que administrar<br />

orçamentos individuais e familiares não indica ativida<strong>de</strong> específica do campo da<br />

prostituição. Talvez <strong>aqui</strong> pudéssemos falar muito mais <strong>de</strong> uma obrigação do que <strong>de</strong> um<br />

elemento relacionado à <strong>de</strong>scrição da ativida<strong>de</strong>. Os registros <strong>de</strong> discursos <strong>de</strong> prostituas, e as<br />

representações sobre este universo, costumam enfatizar as ações da prostituta como<br />

perdulárias. E, <strong>de</strong> fato, existe uma preocupação do movimento em discutir as formas <strong>de</strong><br />

organização do ganho, como veremos no próximo capítulo através da fala <strong>de</strong> Gabriela<br />

Leite. Como se trata <strong>de</strong> elementos importantes <strong>para</strong> o movimento, eles acabaram ganhando<br />

evidência (<strong>de</strong>slocada) no item “Descrição da ativida<strong>de</strong>”.<br />

• Condições gerais do exercício:<br />

97 Dados do CBO - Classificação Brasileira <strong>de</strong> Ocupações do Ministério do Trabalho e Emprego . Disponível<br />

em . Acesso em: 24 mar. 2006.<br />

98 Ver nota 10


Trabalham por conta própria na rua, em bares, boates, hotéis, porto,<br />

rodovias e em garimpos. Atuam em ambientes a céu aberto, fechados e em<br />

veículos, em horários irregulares. No exercício <strong>de</strong> algumas das ativida<strong>de</strong>s<br />

po<strong>de</strong>m estar expostos à inalação <strong>de</strong> gases <strong>de</strong> veículos, à intempéries, à<br />

poluição sonora e à discriminação social. Há ainda riscos <strong>de</strong> contágios <strong>de</strong><br />

DST, <strong>de</strong> maus-tratos, violência <strong>de</strong> rua e morte. (CBO,2006) 99<br />

• Recursos <strong>de</strong> trabalho: “Guarda-roupa <strong>de</strong> batalha, preservativo masculino e<br />

feminino,cartões <strong>de</strong> visita, documentos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação, gel lubrificante à base <strong>de</strong><br />

água, papel higiênico, celular”. 100<br />

• Competências pessoais:<br />

Demonstrar capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> persuasão, <strong>de</strong>monstrar capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão<br />

gestual, <strong>de</strong>monstrar capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realizar fantasias eróticas, agir com<br />

honestida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>monstrar paciência, planejar o futuro, prestar solidarieda<strong>de</strong><br />

aos companheiros, ouvir atentamente (saber ouvir), <strong>de</strong>monstrar capacida<strong>de</strong><br />

lúdica, respeitar o silêncio do cliente, <strong>de</strong>monstrar capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

comunicação em língua estrangeira, <strong>de</strong>monstrar ética profissional<br />

(CBO,2006) 101<br />

• Instituições que partici<strong>para</strong>m do processo <strong>de</strong> discussão e inclusão da prostituição<br />

como ocupação:<br />

Associação das Mulheres Profissionais do Sexo da Bahia (Asproba),<br />

Davida - Prostituição, Direitos Civis, Saú<strong>de</strong> (Rio <strong>de</strong> Janeiro), Grupo <strong>de</strong><br />

Apoio à Prevenção da Aids (Gapa-MG), Grupo <strong>de</strong> Mulheres Prostitutas do<br />

Estado do Pará (Gempac), Igualda<strong>de</strong> - Associação <strong>de</strong> Travestis e<br />

Transexuais do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, Núcleo <strong>de</strong> Estudos da Prostituição <strong>de</strong><br />

Porto Alegre(CBO,2006) 102<br />

A proposta <strong>de</strong> regulamentação está em trâmite no Congresso Nacional com o<br />

Projeto <strong>de</strong> Lei 192/93 do <strong>de</strong>putado fe<strong>de</strong>ral Fernando Gabeira. Em entrevista à revista Marie<br />

99 Ver nota 10<br />

100 Ver nota 10<br />

101 Ver nota 10<br />

102 Dados do CBO - Classificação Brasileira <strong>de</strong> Ocupações do Ministério do Trabalho e Emprego . Disponível<br />

em . Acesso em: 24 mar. 2006.


Clarie, o<strong>de</strong>putado afirma que a regulamentação 103 é uma importante questão no Brasil, pois<br />

as prostitutas enfrentam sérios problemas. Segundo ele, a aposentadoria, por exemplo, é<br />

vital <strong>para</strong> elas. “Muitas, ao envelhecer, acabam se sujeitando a riscos maiores, como<br />

dispensar o uso do preservativo”.<br />

Ele faz as seguintes consi<strong>de</strong>rações sobre a regulamentação:<br />

[...] é a garantia <strong>de</strong> que os serviços sexuais sejam pagos. A prostituição seria<br />

uma prestação <strong>de</strong> serviços e as prostitutas teriam contrato <strong>de</strong> trabalho e<br />

plano <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Elas já po<strong>de</strong>m contribuir com a Previdência, como<br />

profissionais do sexo, sendo autônomas. Mas <strong>de</strong>veriam ser registradas, ter<br />

salário, <strong>para</strong> ter os mesmos direitos <strong>de</strong> profissionais regulamentados. Se ela<br />

for contratada <strong>para</strong> ficar duas horas com um cliente, receberá o equivalente<br />

a esse tempo. Se o cliente só quis conversar com a prostituta, <strong>de</strong>verá pagar<br />

pelo tempo que ficou com ela. Isso po<strong>de</strong> funcionar com um contrato, que<br />

po<strong>de</strong> ser verbal ou não, seguindo o mesmo padrão <strong>de</strong> um técnico que cobra<br />

por hora. No caso daquelas que trabalham em bordéis, po<strong>de</strong> existir um<br />

salário fixo, que in<strong>de</strong>penda do número <strong>de</strong> pessoas com quem ela saia, e<br />

comissões combinadas com o dono do estabelecimento. Na Alemanha,<br />

on<strong>de</strong> esta questão está amadurecida, existem lugares em que a prostituta<br />

trabalha com um piso salarial e ganha comissões, como se fosse um<br />

comerciante. Qualquer pessoa que explore outra está sujeita a pena.<br />

Trabalho escravo está sujeito a pena. O que esse projeto permite é a<br />

instituição <strong>de</strong> um empresário ligado às prostitutas. O empregador não seria<br />

penalizado, mas será submetido a constrangimentos legais. Terá <strong>de</strong> prestar<br />

contas sobre o seu trabalho A minha preocupação, e também a dos alemães,<br />

foi fortalecer as mulheres em relação aos empresários. Mas, se os<br />

103 “No embate global sobre o tema, a Holanda, que também instituiu as tipplezones (zonas fechadas <strong>de</strong><br />

prostituição), faz parte, ao lado da Alemanha, do front da chamada 'prostituição cidadã'. Segundo essa visão,<br />

da qual são simpatizantes ainda a Áustria, o Reino Unido e a Irlanda, é responsabilida<strong>de</strong> do Estado legalizar<br />

uma ativida<strong>de</strong> da qual os próprios cidadãos têm necessida<strong>de</strong>. Do outro lado, como partidários que consi<strong>de</strong>ram<br />

a ativida<strong>de</strong> similar à escravidão, alinham-se países como a França, Itália, Espanha, Portugal, Finlândia,<br />

Dinamarca e Luxemburgo. Todos são signatários da Convenção das Nações Unidas, <strong>de</strong> 1949, que julga a<br />

prostituição como incompatível com a dignida<strong>de</strong> humana. Em 1999, a Suécia assumiu postura ainda mais<br />

radical <strong>para</strong> inibir a ativida<strong>de</strong>, penalizando clientes com multa e prisão por até seis meses. Conhecida como<br />

um dos <strong>para</strong>ísos do turismo sexual do mundo, a Tailândia adota lei que prevê multa tanto <strong>para</strong> quem oferece<br />

como <strong>para</strong> quem compra serviços sexuais. Os bordéis são estritamente proibidos e o incentivo à ativida<strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong> dar ca<strong>de</strong>ia. No dia-a-dia, contudo, as autorida<strong>de</strong>s fazem vista grossa aos infratores. No Irã, ao menos no<br />

papel, a lei é mais severa: os clientes são punidos com 75 chicotadas e expulsos da comunida<strong>de</strong> por três<br />

meses. Além do castigo, as prostitutas po<strong>de</strong>m ser presas. Para quem é flagrado em bordéis, a pena chega a <strong>de</strong>z<br />

anos. O tema não é menos controverso no Canadá. A prostituição é legal, mas todas as outras ativida<strong>de</strong>s a ela<br />

ligadas não. Estão proibidas pelo Código Penal a ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cafetões, a solicitação <strong>de</strong> serviços sexuais em<br />

lugar público e até mesmo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa, que passa a ser consi<strong>de</strong>rada bor<strong>de</strong>l. Inspirados no mo<strong>de</strong>lo holandês,<br />

os moradores <strong>de</strong> Montreal discutem atualmente a implantação <strong>de</strong> míni Red Light Districts na periferia das<br />

cida<strong>de</strong>s. O <strong>de</strong>bate, porém, está longe <strong>de</strong> ter fim.” (ALBUQUERQUE, Lina A profissão mais nova do mundo<br />

Marie Clarie, São Paulo, 20 mar 2006 .Disponível em:<br />

.acesso em 20 mar 2006


empresários não forem regulamentados, daremos a chance apenas <strong>de</strong><br />

existirem cooperativas, e mesmo uma cooperativa tem o seu presi<strong>de</strong>nte.<br />

Esse projeto po<strong>de</strong> beneficiar o empresário na medida em que ele entra na<br />

legalida<strong>de</strong>. Isso significa que ele estará sujeito à fiscalização, por exemplo,<br />

dos Ministérios do Trabalho e da Saú<strong>de</strong>. A proposta é permitir que existam,<br />

mas obrigando-os a atuar <strong>de</strong>ntro da lei (ALBUQUERQUE, 2006). 104<br />

Os críticos do projeto tomam como certo que “ninguém vira prostituta por opção”<br />

Sobre isso Fernando Gabeira comenta:<br />

Não concordo. Realmente as condições sociais têm um papel fundamental.<br />

Mas conheço mulheres que, mesmo não tendo se tornado putas por opção,<br />

<strong>de</strong>sejam continuar na ativida<strong>de</strong>. É uma objeção paternalista, como se elas<br />

esperassem <strong>para</strong> ser recolocadas na vida normal da socieda<strong>de</strong>. Se quiserem,<br />

ótimo. Mas não vejo razão <strong>de</strong> impedi-las <strong>de</strong> fazerem o que querem.<br />

(ALBUQUERQUE, 2006) 105 .<br />

Gabriela Leite, através da Re<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Prostitutas, mobilizou as prostitutas<br />

<strong>para</strong> a discussão da questão da legalização da prostituição, e juntamente com Gabeira,<br />

refletiu e propôs ações no que diz respeito à essa questão. Ao mesmo tempo ressalta que a<br />

profissionalização da prostituição é difícil, pois o estigma que cai sobre ela é difícil <strong>de</strong><br />

superar. “Esse estigma não consegue ser superado nem mesmo nas associações. Os<br />

preconceitos que as mulheres viveram como prostitutas ainda pesa muito. É o estigma <strong>de</strong><br />

puta” 106 . Ela se refere às casa <strong>de</strong> prostituição como trabalho ilegal, e afirma que as<br />

mulheres não po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r dos “donos” e “donas” <strong>de</strong>stes estabelecimentos. Ressaltada a<br />

importância do enquadramento nas leis trabalhistas, já que <strong>para</strong> ela a ausência <strong>de</strong> direitos<br />

trabalhistas é a questão central.<br />

Gabriela Leite e a organização não governamental DAVIDA são uma referência<br />

<strong>para</strong> a mídia quando o assunto é a regulamentação da profissão:<br />

104 ALBUQUERQUE A profissão mais nova do mundo Marie Clarie, São Paulo, 20 mar. 2006. Disponível<br />

em Acesso em 20 mar.<br />

20006<br />

105 ALBUQUERQUE. A profissão mais nova do mundo Marie Clarie, São Paulo, 20 mar. 2006. Disponível<br />

em Acesso em 20 mar.<br />

2006<br />

106 Notas do Seminário


Gabriela Leite é contrária ao argumento <strong>de</strong> que a legalização dos bordéis<br />

po<strong>de</strong> conferir mais po<strong>de</strong>r aos cafetões e cafetinas. "Reféns, elas (as<br />

prostitutas) estão agora, porque não têm como reclamar (dos abusos) <strong>para</strong><br />

ninguém. Isso é escravidão. E vai se reclamar a quem?", contraargumenta.(CHAGAS,<br />

2004). 107<br />

“Só assim haverá uma relação <strong>de</strong> trabalho mais clara entre<br />

empregador e empregado”, explica a socióloga, ex-prostituta e<br />

fundadora da re<strong>de</strong>, Gabriela Silva Leite, que também dirige a DAVIDA,<br />

ONG <strong>de</strong> orientação sexual e <strong>de</strong> classe <strong>para</strong> prostitutas cariocas<br />

(ATHAYDE, 2003, P.14-18). 108<br />

O <strong>de</strong>putado fe<strong>de</strong>ral Fernando Gabeira (PT-RJ) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a regulamentação<br />

da profissão. Há três meses, ele apresentou na Câmara projeto <strong>de</strong> lei,<br />

baseado na legislação alemã, que consi<strong>de</strong>ra a prostituição profissão, o que<br />

garantiria a elas direito a plano <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, carteira assinada e aposentadoria.<br />

Des<strong>de</strong> setembro, segundo a ONG Davida, o Ministério do Trabalho e<br />

Emprego consi<strong>de</strong>ra ocupação o trabalho da profissional do sexo. No Brasil,<br />

o número estimado <strong>de</strong> prostitutas é 25 mil (VAZ, 2002). 109 .<br />

Atualmente o papel das cafetinas (donas <strong>de</strong> casas <strong>de</strong> prostituição) e gerentes vem<br />

sendo cada vez mais <strong>de</strong>batido pelo movimento associativista em função do processo <strong>de</strong><br />

regulamentação da profissão. Existe o discurso <strong>de</strong> agentes externos em <strong>de</strong>fesa da prostituta<br />

como vítima da cafetina exploradora. Por outro lado, existe um reconhecimento, por parte<br />

do movimento associativista, da exploração da prostituta pela cafetina em todos os locais<br />

on<strong>de</strong> a prostituta não é autônoma. Mas esta relação é reconhecida pelas li<strong>de</strong>ranças do<br />

movimento <strong>de</strong> prostituta como característica <strong>de</strong> um sistema econômico, e não como uma<br />

situação exógena a esse sistema, como crêem os “<strong>de</strong>fensores” das prostitutas. Leite (1992,<br />

p.170) afirma: “A cafetina é um patrão como outro qualquer, e que explora, sim, como se<br />

explora em qualquer relação patrão-empregado”. Leite também argumenta que, com a<br />

regulamentação, as empresas <strong>de</strong> prostituição teriam que sair das sombras e as prostitutas<br />

seriam beneficiadas, pois po<strong>de</strong>riam ter seus diretos trabalhistas assegurados.<br />

107<br />

CHAGAS, Fernanda. Prostituta querem legalizar a profissão <strong>para</strong> ter direitos trabalhistas Tribuna da Bahia<br />

,Salvador. 17 <strong>de</strong>z <strong>de</strong> 2004<br />

108<br />

ATHAYDE, Phydia. Proibir, controlar ou liberar. Carta Capital. Sã Paulo, 08 jan 2003. Ca<strong>de</strong>rno Especial,<br />

pp.14-18<br />

109<br />

VAZ, Lucio. Prostituição po<strong>de</strong> ser regulamentada. Folha <strong>de</strong> São Paulo. São Paulo, 04 <strong>de</strong>z. 2002. Ca<strong>de</strong>rno<br />

Cotidiano,


Tradicionalmente, as cafetinas eram ex-prostitutas que ascendiam na profissão e<br />

<strong>de</strong>pois passavam ao controle das casas. Era uma função bastante <strong>de</strong>sejada, pois garantia<br />

rendimentos, mesmo <strong>de</strong>pois que a mulher não podia mais aten<strong>de</strong>r aos clientes. Hoje estas<br />

figuras que predominam nos “bregas”, são, na sua maioria, ex-prostitutas mas cuja função<br />

já não têm mais o mesmo valor <strong>de</strong> ascensão social <strong>de</strong>ntro da profissão. Moraes argumenta<br />

que por isso as prostitutas não se preocupam tanto em ocupar tal função. Atualmente as<br />

diferenciações hierárquicas não estão tão sedimentadas. Como a própria autora salienta,<br />

A cafetina era consi<strong>de</strong>rada mais culta, mais educada e mais refinada do que<br />

as outras mulheres; sua imagem era <strong>de</strong> ostentação e luxo, e se tinha por<br />

costume chamá-la <strong>de</strong> ‘madame’. Isto sugere o significado <strong>de</strong> ascensão<br />

social que o cargo trazia, colocando-se como uma posição cobiçada pelas<br />

prostitutas que se preocupavam com o ‘fim da carreira’ (MORAES, 1995,<br />

p.89).<br />

A tendência do movimento nacional <strong>de</strong> prostitutas, sob a diretriz da Re<strong>de</strong> Brasileira<br />

<strong>de</strong> Prostitutas, é rejeitar a participação da cafetina no movimento e como membro das<br />

associações. Estas questões nos mostram que estamos cada vez mais distantes da cafetina<br />

Rosa Cabarcas, personagem do livro Memórias <strong>de</strong> minhas putas tristes, <strong>de</strong> Gabriel Garcia<br />

Marques, no qual, sob o tema “envelhecer”, o escritor faz um fino e sensível elogio ao<br />

bor<strong>de</strong>l.<br />

O processo <strong>de</strong> regulamentação da prostituição é, sem dúvida, elemento fundamental<br />

na construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “prostituta assumida”. Os <strong>de</strong>bates sobre a regulamentação<br />

<strong>de</strong>scortinam um horizonte <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s que permite, como crê Gabriela Leite (1992),<br />

que em algum momento a prostituta possa ser uma trabalhadora como outra qualquer. Isso<br />

abriria um espaço, segundo ela, <strong>para</strong> “a socieda<strong>de</strong> discutir a sua sexualida<strong>de</strong> e entendê-la”.<br />

No entanto, se a regulamentação é bem vinda no âmbito do movimento <strong>de</strong> prostitutas no<br />

Brasil, entre as não militantes, que na sua maioria escon<strong>de</strong>m sua ocupação, ela se torna uma<br />

proposta incômoda. Isto porque diz respeito à uma questão central <strong>para</strong> o movimento <strong>de</strong><br />

prostitutas, e que se constitui como uma das maiores barreiras com a qual <strong>de</strong>ve lidar este<br />

movimento, que é o se assumir enquanto prostituta, como já discutimos no segundo<br />

capítulo <strong>de</strong>ste trabalho.<br />

3.4. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e linguagem


Compartilhando a perspectiva <strong>de</strong> Schutz (1979, p.97) <strong>de</strong> que “[...] todo grupo social,<br />

por menor que seja (ou mesmo todo o indivíduo), tem o seu próprio código privado,<br />

compreensível apenas <strong>para</strong> aqueles que partici<strong>para</strong>m <strong>de</strong> experiências passadas comuns on<strong>de</strong><br />

o código se criou, ou da tradição a elas associada”, compreen<strong>de</strong>mos que o acesso ao sentido<br />

<strong>de</strong> um <strong>texto</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rações acerca do con<strong>texto</strong> em que o <strong>texto</strong> é dito. Estamos<br />

salientando que não é só através do que é dito que se alcança as significações <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>terminado evento, pois a compreensão está assentada também em um discurso<br />

subtendido, que não está dito. A significação, assim, não surge apenas das palavras na<br />

oração, ela é dada em um con<strong>texto</strong> e remete a este con<strong>texto</strong>. Para Schutz (1979, p.97), a<br />

linguagem como código <strong>de</strong> interpretação e <strong>de</strong> expressão não consiste apenas nos símbolos<br />

lingüísticos catalogados no dicionário e nas regras sintáticas enumeradas numa gramática<br />

i<strong>de</strong>al. Os primeiros são traduzíveis em outras línguas; as últimas po<strong>de</strong>m ser compreendidas<br />

através <strong>de</strong> sua associação com regras equivalentes, ou exceções, da língua materna não-<br />

questionada. Nas interações, entretanto, a linguagem adquire seu próprio significado<br />

secundário, originado do con<strong>texto</strong> ou ambiente social <strong>de</strong>ntro do qual é usada, e recebe ainda<br />

coloridos especiais conforme a ocasião em que é empregada. Isso fica bem claro quando<br />

tratamos da nomeação prostituta. 110<br />

Mauss (1995) lembra que o nome precisa uma posição social. Assim, a nominação<br />

prostituta <strong>de</strong>nota uma posição social que, por sua vez, é qualificada como uma baixa<br />

posição social. Strauss (1999, p.31) enfatiza o “[...] nomear” como um ato <strong>de</strong> colocação ou<br />

<strong>de</strong> classificação — do eu e dos outros. Em tais colocações está implícita a avaliação das<br />

pessoas e <strong>de</strong> seus atos”. Uma questão relativa ao nomear ajuda a <strong>de</strong>svelar a <strong>de</strong>nominação<br />

distintiva que revela a prática da prostituição : se o nome revela os julgamentos <strong>de</strong> quem o<br />

fala, o que dizer da pessoa que o recebe?<br />

Em relação às mulheres militantes e não militantes, pergunta-se: De que maneira<br />

elas reagem à fixação <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> algum modo pela nominação prostituta?<br />

Gostaria, então, <strong>de</strong> comentar uma situação específica da posição das mulheres com relação<br />

110 Gilberto Freire é ilustrativo quando comenta a influência do negro na formação da língua portuguesa no<br />

Brasil: “Algumas palavras, ainda hoje duras ou acres quando pronunciadas pelos portugueses, se amaciaram<br />

no Brasil por influência da boca africana [...] A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que<br />

com a comida: machucou-as, tirou-lhe as espinhas, os ossos, as durezas, só <strong>de</strong>ixando <strong>para</strong> a boca do menino<br />

branco as sílabas moles (FREIRE, 2004 p. 414).


a essa nominação, <strong>de</strong>stacando em um primeiro momento as não militantes e, em um<br />

segundo momento as militantes membros da Aprosba.<br />

Ora, se “prostituta” encarna uma significação marginal que foi construída e<br />

fortalecida ao longo da história, como as mulheres po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>svencilhar-se <strong>de</strong>ste nome e por<br />

sua vez <strong>de</strong> toda aspereza que ele invoca? 111 A observação junto às mulheres que são<br />

receptoras do trabalho da Aprosba só veio confirmar como a nominação “prostituta” é<br />

<strong>de</strong>sprezada e <strong>de</strong>la se busca se afastar. Quase nunca as mulheres se nomeiam prostitutas, já<br />

que “garota <strong>de</strong> programa” é como elas preferem ser chamadas. Até então associamos a<br />

auto-referência por parte das mulheres como “garota <strong>de</strong> programa” a um “lugar”<br />

economicamente mais estruturado que, por sua vez, permite a instituição <strong>de</strong> um preço mais<br />

alto pelo “programa” realizado. No entanto, verificou-se que essa preferência, ou mesmo<br />

exigência, não se limita àquelas que trabalham em locais mais elitizados e que aten<strong>de</strong>m<br />

clientes com um maior po<strong>de</strong>r <strong>aqui</strong>sitivo, mas abarca todos os locais <strong>de</strong> atuação da Aprosba,<br />

incluindo os locais menos favorecidos, como as áreas e ruas do centro. Mulheres <strong>de</strong>stes<br />

locais afirmam também ser garotas <strong>de</strong> programa. 112 .<br />

Dentre as opiniões coletadas, há as <strong>de</strong> que “Prostituta é muito feio”, “é muito<br />

pesado”; “A garota <strong>de</strong> programa trabalha porque precisa, a prostituta porque gosta”; “A<br />

garota <strong>de</strong> programa sabe se comunicar”; “Prostituta trabalha qualquer horário, são<br />

agressivas pela falta <strong>de</strong> segurança do trabalho”; “Garota <strong>de</strong> programa se previne mais, se<br />

cuida mais”; “Prostituta procura o homem também <strong>para</strong> beber”; “Eu jamais diria que sou<br />

uma prostituta, pois garota <strong>de</strong> programa é diferente das mulheres que trabalham na rua”;<br />

“Há mais união entre as garotas <strong>de</strong> programa do que entre as prostitutas”; “Prostituta é<br />

“baixo astral”, “A prostituta trabalha na rua, usa droga”; “Prostituta é vulgar, se comporta<br />

como <strong>de</strong> quinta categoria, é sem qualificação”; “Não há diferença em prostituta e garota <strong>de</strong><br />

programa, mas me ofendo se for chamada <strong>de</strong> prostituta”; “Prostituta é xingar”; “Garota <strong>de</strong><br />

programa é mais a<strong>de</strong>quado <strong>para</strong> os dias <strong>de</strong> hoje”, prostituta é muito pesado; “Prostituta é<br />

nome feio; garota <strong>de</strong> programa é mais bonito”.<br />

111 No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, “prostituição” encontra como “<strong>de</strong>rivação por extensão <strong>de</strong><br />

sentido”: vida <strong>de</strong>vassa”, “<strong>de</strong>sregrada”, “ libertinagem”. E também como <strong>de</strong>rivação o sentido figurado:<br />

“aviltamento”, “<strong>de</strong>sonra” , rebaixamento.<br />

112 Coletamos estes dados através <strong>de</strong> uma “sondagem” Tem-se claro que uma “sondagem” em termos <strong>de</strong><br />

técnica investigativa é caracteristicamente superficial, mas não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezar a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> esboçar<br />

um problema <strong>para</strong> ser investigado <strong>de</strong> forma mais <strong>de</strong>tida.


O termo prostituta também foi alvo do movimento associativista, congregado em<br />

torno da Re<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Prostitutas 113 no seu esforço inicial pela mobilização da<br />

categoria, constituindo-se ainda em tema <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate da instituição, como <strong>de</strong>clara Gabriela<br />

Leite 114 :<br />

A Re<strong>de</strong> oficialmente começa em 89. Ela se chamava Re<strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong><br />

Prostituta e <strong>de</strong>pois ela mudou <strong>para</strong> Re<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Profissionais do<br />

Sexo. Agora, no planejamento estratégico que fizemos no Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

ela volta a se chamar, Re<strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong> Prostituta (Informação verbal) 115<br />

Novamente segundo Strauss (1999, p.32), “O fenômeno da ‘passagem’ é marcado<br />

muitas vezes por mudança <strong>de</strong> nomes: dissimulamos quem fomos ou somos a fim <strong>de</strong> parecer<br />

o que <strong>de</strong>sejamos ser [...] novos nomes assinalam uma passagem <strong>para</strong> novas auto-imagens”.<br />

A substituição do nome prostituta por profissional do sexo pela Re<strong>de</strong>, naquele momento,<br />

expressou a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se criar uma imagem da prostituição enquanto profissão. Mas<br />

quando a Re<strong>de</strong> passa a ser novamente a Re<strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong> Prostituta, ela revela um outro<br />

momento na luta do movimento em que outras questões se tornam centrais. Voltar a se<br />

nomear prostituta implica uma mudança, um rito <strong>de</strong> passagem que i<strong>de</strong>ntifica a mais<br />

legítima militante, aquela que se assume. 116 Afinal, este não é um dos maiores objetivos a<br />

serem alcançados? Isto implica superar os obstáculos, como nos rituais <strong>de</strong> passagem.<br />

Em conversa informal, uma das coor<strong>de</strong>nadoras da Aprosba explica que a substituição <strong>de</strong> profissional<br />

do sexo por prostituta se <strong>de</strong>u em função <strong>de</strong>ste último termo representar melhor uma categoria específica, que<br />

é a das mulheres que exercem a prática da prostituição. O nome profissional do sexo, por sua vez, diz respeito<br />

ao michê, ao travesti, e todos aqueles cuja ocupação está ligada à prática do sexo. Então, profissional do sexo<br />

não diz respeito somente à prostituta, e esta não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser uma profissão também. Esta busca pela<br />

especificida<strong>de</strong> ou singularida<strong>de</strong> da prostituta, que aparece como um dos <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adores da mudança, está<br />

113 Ver mais sobre a Re<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Prostitua na seção “O movimento <strong>de</strong> prostitutas no Brasil”<br />

114 Entrevista realizada durante o I Seminário Nor<strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Sustentabilia<strong>de</strong> das ações <strong>para</strong> Profissionais do<br />

Sexo realizado em Salvador, pela Aprosba em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2004.<br />

115 Gabriela <strong>aqui</strong> está se referindo ao encontro realizado no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em 2004, <strong>para</strong> discutir<br />

planejamento estratégico, e que reuniu as associações <strong>de</strong> todo o país. Neste encontro, <strong>de</strong>cidiu-se por adotar a<br />

nominação Re<strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong> Prostitutas.<br />

116 Qualquer conversão [...] é marcada freqüentemente por uma mudança completa <strong>de</strong><br />

nome, ato que significa a nova condição da pessoa aos olhos <strong>de</strong> Deus, do mundo e <strong>de</strong> si<br />

mesma – marcando um status e apondo um sinete sobre ele”.


ligada à intenção <strong>de</strong> um fortalecimento da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, ou melhor, da questão central do movimento: o<br />

assumir-se prostituta. Para a coor<strong>de</strong>nadora, o nome prostituta “não mascara a ativida<strong>de</strong>, enfrenta o “estigma”<br />

<strong>de</strong> frente” 117 . Prostituta, neste con<strong>texto</strong>, não <strong>de</strong>nota mais um baixo status, pois o nome foi resgatado da sua<br />

marginalida<strong>de</strong>.<br />

Como as militantes da Aprosba preferem ser chamadas?: Garota <strong>de</strong> programa porque é mais<br />

bonito”;“Profissional do Sexo, porque é profissão, é o ganha pão”, mas não me incomodo <strong>de</strong> ser chamada<br />

também <strong>de</strong> prostituta”; “Profissionais do Sexo, mas não <strong>de</strong> prostitutas;“Profissionais do Sexo” 118<br />

Apesar disso, no meio da “batalha”, é como “puta” que elas se referem umas às outras, ou são<br />

chamadas pelas pessoas com quem interagem. Isto foi observado nas conversas entre membros da Aprosba, e<br />

nas reuniões, entre as prostitutas não militantes 119 .<br />

3.5. Sobre o saber formal<br />

A apropriação <strong>de</strong> um saber formal evi<strong>de</strong>ncia-se, <strong>para</strong> as prostitutas, como marco em<br />

referência ao sentimento <strong>de</strong> pertencer a um segmento social que costuma ser classificado<br />

como <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> um conhecimento formal. Ou nas palavras <strong>de</strong>las como “ignorantes”,<br />

como <strong>de</strong>finem umas às outras. Esse dado é importante, pois o que nos chamou a atenção foi<br />

o gran<strong>de</strong> interesse e o esforço por parte das mulheres, que ganharam um certo status em<br />

função <strong>de</strong> sua ligação com a associação, <strong>de</strong> dominar a “fala correta” e a “escrita correta”.<br />

Como a maioria possui um baixo índice <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> e precisa <strong>de</strong> uma certa formação<br />

<strong>para</strong> lidar com a rotina <strong>de</strong> trabalho da instituição, a superação <strong>de</strong>ssa barreira constitui <strong>para</strong><br />

elas um <strong>de</strong>safio cotidiano. 120 Foi fundamental o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma prática através da<br />

participação em eventos, e do contato com a mídia e com várias outras instituições, o que<br />

permitiu a essas mulheres um aprendizado gradual que se <strong>de</strong>u não teoricamente, mas<br />

117 Segundo Marilene, todas as mulheres presentes no encontro tinham consciência da dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal<br />

<strong>de</strong>cisão, mas fizeram a escolha preferindo enfrentar as dificulda<strong>de</strong>s advindas da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, e <strong>de</strong> como isso<br />

po<strong>de</strong>ria ser uma barreira <strong>para</strong> as mulheres assumirem a “causa”.<br />

118 Esses dados foram coletados na reunião semanal da Aprosba on<strong>de</strong> estavam presentes duas coor<strong>de</strong>nadoras a<br />

monitora e duas educadoras. Fátima e Marilene, neste momento, encontravam-se no Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

participando do já referido encontro organizado pela Re<strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong> Prostitutas<br />

119 O filme Bellini e a esfinge, <strong>de</strong> Roberto Santucci, baseado no romance <strong>de</strong> Tony Belloto, explora muito bem<br />

como o termo “puta” circula nas interações do mundo da prostituição.<br />

120 Nas reuniões ou mesmo em conversas informais o discurso articulado é arranhado pela pronúncia incorreta<br />

<strong>de</strong> palavras que são inseridas <strong>para</strong> dar um toque <strong>de</strong> maior complexida<strong>de</strong> à fala, erro que passa <strong>de</strong>spercebido<br />

pelo público-alvo.


através da observação e da repetição, e que incluiu como já vimos, as noções <strong>de</strong> disciplina e<br />

<strong>de</strong> compromisso. As li<strong>de</strong>ranças da Aprosba, assim como as mulheres consi<strong>de</strong>radas<br />

membros, têm reconhecidamente essas características. Aquelas que souberam manipular<br />

a<strong>de</strong>quadamente estes elementos nas relações interpessoais se <strong>de</strong>stacaram e conquistaram<br />

posições vantajosas. 121 .<br />

Andréia, membro da Aprosba, fala <strong>de</strong> como é importante o acesso a um saber através da<br />

associação <strong>para</strong> uma conduta a<strong>de</strong>quada:<br />

Pra mim a Aprosba foi muito interessante, muito importante, porque através<br />

<strong>de</strong> palestras, reuniões que eu adquiri mais informações sobre tudo. Sobre<br />

direitos humanos, sobre prevenção, sobre até como a gente <strong>de</strong>ve agir como<br />

uma profissional do sexo, qual o direito que a gente tem. Antes quando eu<br />

vivia no brega, lá em baixo, não tinha informações como hoje eu tenho.<br />

Como por exemplo, se eu tiver na rua e alguém me discriminar porque eu<br />

sou profissional do sexo, eu já sei meus direitos que eu tenho. (Informação<br />

verbal) 122<br />

Apesar do reconhecimento da participação do saber formal na construção da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> militante, temos que lembrar que este saber isolado não é um elemento capaz<br />

<strong>de</strong> criar as possibilida<strong>de</strong>s <strong>para</strong> se tornar militante É necessário agregar a ele valores,<br />

comportamentos e atitu<strong>de</strong>s significativas <strong>para</strong> a cultura da militância.<br />

Quando se percorre o caminho <strong>de</strong> prostituta à prostituta militante, talvez possamos<br />

dizer que se vivencia o que Bourdieu (1996) concebe como uma crise da economia<br />

simbólica, uma ruptura <strong>de</strong> um acordo entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas.<br />

“[...] a ruptura não po<strong>de</strong> resultar apenas <strong>de</strong> uma simples tomada <strong>de</strong> consciência; a<br />

transformação das disposições não po<strong>de</strong> ocorrer sem transformação anterior ou<br />

concomitante das estruturas objetivas das quais elas são o produto e às quais po<strong>de</strong>m<br />

sobreviver” (BOURDIEU, 1996, p.194). Possivelmente esta idéia da ruptura nos aju<strong>de</strong><br />

como um elemento <strong>para</strong> a compreensão da constituição <strong>de</strong> uma militante.<br />

121 Marilene ao ter uma idéia sobre a produção <strong>de</strong> material informativo, perguntou <strong>de</strong> forma auto-elogiosa:<br />

“Você acha que uma universitária, que não participa da Aprosba, seria criativa assim?” Ela estava referindose<br />

a exigência do Ministério da Saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> se ter o grau superior <strong>para</strong> coor<strong>de</strong>nar projetos, e afirmando que um<br />

saber formal não implica uma capacida<strong>de</strong> criativa. Marilene falou que apesar <strong>de</strong> haver prostitutas<br />

universitárias, elas não participam da instituição. Então, como cobrar nível superior <strong>para</strong> coor<strong>de</strong>nar projetos?<br />

122 Entrevista dada no dia 09 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2005


3.6. Sobre a aparência<br />

Como a ação do tempo sobre o corpo constitui um aspecto importante na vida<br />

íntima e profissional da prostituta, vamos nos <strong>de</strong>dicar, nesta seção, a uma discussão sobre<br />

corpo e beleza. Gostaríamos <strong>de</strong> comentar que no contato que estabelecemos com as áreas<br />

centrais <strong>de</strong> prostituição em Salvador não observamos a existência <strong>de</strong> uma estrutura rígida<br />

<strong>de</strong> pré-requisitos com relação aos dotes físicos e a ida<strong>de</strong> <strong>para</strong> a entrada no mercado <strong>de</strong><br />

trabalho 123 . A ida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ganhar uma certa elasticida<strong>de</strong> quando aliada às habilida<strong>de</strong>s das<br />

mulheres em manter antigos e fiéis clientes. Na Praça da Sé, área central, por exemplo, é<br />

comum presenciar mulheres entre cinqüenta e sessenta anos sentadas nos bancos à espera<br />

<strong>de</strong> um antigo cliente. Não se está <strong>aqui</strong> <strong>de</strong>sconhecendo as dificulda<strong>de</strong>s que os anos trazem<br />

no transcorrer do exercício profissional, mas salientando que fatores <strong>de</strong> natureza afetiva que<br />

ligam a prostituta e seu cliente têm uma importância que não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sconhecida, e nem<br />

<strong>de</strong>sprezada. Os dotes físicos, como se disse, apesar <strong>de</strong> não serem um pré-requisto <strong>para</strong> a<br />

entrada e permanência na prostituição, são uma preocupação evi<strong>de</strong>nciada entre as<br />

militantes, e em menor proporção, entre as não militantes. Em relação às mulheres<br />

membros da Aprosba, po<strong>de</strong>mos dizer que um <strong>de</strong>sejo bem presente é ter um corpo bonito 124 ,<br />

e que elas estão sempre observando as pessoas que freqüentam a instituição: se são magras,<br />

gordas, feias, bonitas. Sempre se com<strong>para</strong>m umas com as outras, ou com agentes externos.<br />

A beleza, como todo fenômeno social, ganha significação na vigência <strong>de</strong> tempos e<br />

espaços <strong>de</strong>finidos, ao mesmo tempo que são constituintes <strong>de</strong>stes mesmos espaços e tempos.<br />

Norbert Elias (1994) 125 evi<strong>de</strong>ncia bem isso, quando analisa a construção das formas <strong>de</strong><br />

comportamentos e emoções na vida <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, discutindo <strong>de</strong> que maneira os<br />

123 Já, nos lugares <strong>de</strong> atuação da Aprosba localizados em espaços mais privilegiados como, por exemplo,<br />

Patamares, na orla, as mulheres que exercem a prostituição encontram-se numa faixa <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> entre 18 e 25<br />

anos. Esse dado foi fornecido pelos gerentes das casas. Também não encontramos mulheres mais velhas<br />

nesses estabelecimentos. Aliás, algumas mulheres aparentam ter menos <strong>de</strong> 18 anos. Leite (1992, p.76) faz<br />

uma referência à relação da ida<strong>de</strong> da prostituta com o lugar em que ela trabalha: “Em Copacabana, por<br />

exemplo, com 30anos já não dá mais <strong>para</strong> trabalhar, enquanto no mangue você encontra mulheres <strong>de</strong> 60<br />

anos”.<br />

124 Uma <strong>de</strong>las fez lipoaspiração e plástica.<br />

125 Em sua obra O processo civilizador uma história dos costumes, o autor <strong>de</strong>senvolve uma reflexão sobre<br />

como a socieda<strong>de</strong> da corte mantém nexos com a construção da civilida<strong>de</strong>, dos bons costumes, hábitos<br />

higiênicos à mesa e nos salões. Essa civilida<strong>de</strong> inspirou diversos manuais <strong>de</strong> boas maneiras <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século<br />

XVI. Ele mostra como no interior da corte do Antigo Regime se exercitou as boas maneiras que<br />

caracterizariam a socieda<strong>de</strong> burguesa do século XIX, civilização estruturada no controle do corpo e dos<br />

afetos.


“tempos” <strong>de</strong>vem estar “maduros”, ou “prontos” <strong>para</strong> <strong>de</strong>terminados mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong><br />

comportamento.<br />

Ao buscar registrar os processos históricos que moldaram o significado da beleza<br />

feminina, Gilles Lipovetsky (2000) i<strong>de</strong>ntifica a ausência da beleza feminina nas socieda<strong>de</strong>s<br />

primitivas, na qual o feminino estava estreitamente relacionado à celebração religiosa e ao<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> fecundida<strong>de</strong>. Na antiguida<strong>de</strong>, a beleza feminina encontrava-se associada a uma<br />

hierarquia sócio-econômica que emerge com a divisão social entre classes ricas e classes<br />

pobres.<br />

A partir do século XVI temos a <strong>de</strong>scoberta da beleza feminina como uma beleza<br />

espiritualizada 126 . De acordo com Likpovetsky (2000), até o século XVIII dominou uma<br />

concepção tradicional da beleza que tem por característica fundamental não se<strong>para</strong>r a<br />

beleza física das virtu<strong>de</strong>s morais. Com o processo mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> racionalização a cultura da<br />

beleza passa a obe<strong>de</strong>cer a uma lógica da especialização e <strong>de</strong> normalização sistemática.<br />

Neste período “[...] produziu-se um movimento <strong>de</strong> eliminação da exteriorida<strong>de</strong> perigosa do<br />

feminino, ao mesmo tempo que uma integração das mulheres na or<strong>de</strong>m nobre da cultura<br />

(2000, p. 127)”. Ao longo do século XX a beleza feminina entra na fase econômico-<br />

midiática com a cultura industrial e as mídias.<br />

Mas como compreen<strong>de</strong>r a injunção da cultura da beleza que marca nosso tempo?<br />

Vamos <strong>de</strong>stacar <strong>aqui</strong>, <strong>de</strong> forma rápida, duas perspectivas: por um lado, ela é compreendida<br />

como uma contra-alavanca dos avanços sociais das mulheres; uma coerção estética que<br />

aprisionaria as mulheres em preocupações estético-narcísicas, reproduzindo sua<br />

subordinação tradicional. (WOLF, 1990; GOLDENBERG, 2005) 127 . Por outro lado, a<br />

cultura da beleza é percebida como espaço <strong>de</strong> re-criação da autonomia individual<br />

(GIDDENS 2002; LIPOVETSKY, 2000).<br />

No que diz respeito à perspectiva que concebe a cultura da beleza como “tirânica”, há uma<br />

preocupação em relação à centralida<strong>de</strong> do corpo, observada entre mulheres <strong>de</strong> todos os segmentos sociais, que<br />

têm como característica a reprodução <strong>de</strong> padrões <strong>de</strong> beleza, impondo certas condutas em busca da sedução e<br />

126 “O humanismo da Renascença foi acompanhado <strong>de</strong> uma nova significação da beleza feminina, em ruptura<br />

com sua diabolização tradicional. [...] Longe <strong>de</strong> ser pura aparência sensível, a beleza é apresentada como<br />

‘esplendor da face divina’, manifestação <strong>de</strong> sua perfeição e <strong>de</strong> sua sabedoria. Ganhando uma dimensão<br />

metafísica”(LIPOVETSKY, 2000, P.115).<br />

127 “É no mínimo estranho pensar que, após décadas <strong>de</strong> lutas femininas pela liberação da opressão e pelo<br />

pleno exercício do prazer, após Leila Diniz se tornar um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> sexualida<strong>de</strong> revolucionária com seu corpo<br />

grávido exibido nas praias cariocas, muitas mulheres se submetam a um novo tipo <strong>de</strong> prisão. Só que <strong>de</strong>sta vez<br />

é mais difícil afirmar quem são (e <strong>de</strong>rrotar) os verda<strong>de</strong>iros carcereiros” (GOLDENBERG, 2005, P.49).


do reconhecimento do outro. A difusão <strong>de</strong> conselhos e imagens estéticas leva as mulheres a se relacionarem<br />

mal com sua aparência. Não haveria nenhum po<strong>de</strong>r real da beleza feminina; ao contrário, é esta que exerce<br />

uma tirania implacável sobre a condição das mulheres, gerando uma <strong>de</strong>svalorização <strong>de</strong> si. 128<br />

Diferentemente, a segunda perspectiva, compreen<strong>de</strong> a aparência como um projeto reflexivo do eu;<br />

neste sentido a preocupação e cuidado com o corpo, característica da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> avançada <strong>de</strong>ve ser<br />

entendida a partir da idéia <strong>de</strong> que o corpo participa do princípio <strong>de</strong> que o eu <strong>de</strong>ve ser construído. Para Gid<strong>de</strong>ns<br />

isso significa que<br />

Regimes corporais e a organização da sensualida<strong>de</strong> na alta mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> se<br />

abrem à atenção reflexiva contínua, contra o pano <strong>de</strong> fundo da pluralida<strong>de</strong><br />

da escolha. Tanto o planejamento da vida quanto a adoção <strong>de</strong> opções <strong>de</strong><br />

estilo <strong>de</strong> vida se integram (em princípio) aos regimes corporais. Seria muita<br />

miopia ver esse fenômeno apenas em termos <strong>de</strong> novos i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> aparência<br />

corporal (como a beleza ou juventu<strong>de</strong>), ou apenas produzido pela influência<br />

mercantilizada da propaganda. Tornamo-nos responsáveis pelo <strong>de</strong>senho <strong>de</strong><br />

nossos próprios corpos, e em certo sentido, indicado acima, somos forçados<br />

a fazê-lo quanto mais forem os con<strong>texto</strong>s sociais em que vivemos.<br />

(GIDDENS, 2002, P.98).<br />

Não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar as atribuições da mídia na propagação <strong>de</strong> uma<br />

certa maneira <strong>de</strong> fazer, um modo <strong>de</strong> se comportar em função <strong>de</strong> sua força e vigência na<br />

cultura oci<strong>de</strong>ntal como um todo, e no processo <strong>de</strong> instauração e solidificação do regime<br />

capitalista das socieda<strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rnas, bem como na cultura contemporânea. Marcel Maus<br />

(2003) já chamava atenção <strong>para</strong> o papel da mídia na configuração do hábito corporal por<br />

meio da imitação, quando notou que na França “[...] os modos <strong>de</strong> andar americanos, graças<br />

ao cinema, começam a se disseminar entre nós” (MAUSS, 2003, p. 404).<br />

Gid<strong>de</strong>ns (2002) sugere que as mulheres ao assistirem a televisão e lerem, entram em<br />

contato e procuram ativamente numerosas discussões sobre sexo, relacionamento e<br />

128 Foucault (1994), ao esclarecer a importância que os gregos atribuíam ao regime, o <strong>de</strong>fine como uma<br />

categoria fundamental através da qual se po<strong>de</strong> pensar a conduta humana; e se caracterizaria como a maneira<br />

pela qual se conduz a própria existência, permitindo fixar um conjunto <strong>de</strong> regras <strong>para</strong> conduta: “[...] um modo<br />

<strong>de</strong> problematização do comportamento que se fez em função <strong>de</strong> uma natureza que é preciso preservar e à qual<br />

convém conformar-se. O regime é toda uma arte <strong>de</strong> viver” (FOUCAULT, 1994, P.93) O regime, então, se<br />

<strong>de</strong>finiria em um duplo registro: o da boa saú<strong>de</strong> e o do bom estado da alma: “O regime físico <strong>de</strong>ve or<strong>de</strong>nar ao<br />

princípio <strong>de</strong> uma estética geral da existência, on<strong>de</strong> o equilíbrio corporal será uma das condições da justa<br />

hierarquia da alma: ‘ele estabelecerá a harmonia no seu corpo visando manter o acordo em sua alma”’<br />

(FOUCAULT, 1994, P.95). No entanto, o regime físico não <strong>de</strong>ve ser cultivado por si mesmo <strong>de</strong> modo<br />

<strong>de</strong>masiado intenso, pois po<strong>de</strong> ocorrer um exagero na importância que se lhe atribui e na autonomia que se lhe<br />

conce<strong>de</strong>. Desenvolver o corpo e adormecer a alma era a gran<strong>de</strong> preocupação dos gregos, preocupação que<br />

percorreu séculos e se encontra entre nós.


influências que afetaram suas posições na década <strong>de</strong> 80 do século XX, em uma socieda<strong>de</strong><br />

altamente reflexiva.<br />

Max Weber (2001) 129 <strong>de</strong>monstrou muito bem como <strong>de</strong>terminadas significações e<br />

atribuição <strong>de</strong> valores foram elementos <strong>de</strong>finidores <strong>de</strong> organizações sociais. Essa idéia <strong>de</strong><br />

Weber po<strong>de</strong> nos inspirar a pensar como uma socieda<strong>de</strong> midiática faz circular e evi<strong>de</strong>nciar<br />

certas significações que vão formar o espírito do tempo em questão. Neste sentido, a ação<br />

das mídias não <strong>de</strong>ve ser negligenciada na compreensão dos fenômenos que ganham<br />

<strong>de</strong>terminados significados, a partir das interações humanas que se fazem principalmente<br />

através <strong>de</strong>las. Nesse sentido não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> passar <strong>de</strong>sapercebido o papel da mídia<br />

na instituição <strong>de</strong> uma cultura da beleza que se propaga no século XX, e se perpetua no<br />

século XXI.<br />

As duas concepções sobre a injunção da beleza, que comentamos anteriormente,<br />

reconhecem o papel da mídia na constituição da cultura da beleza, mas <strong>de</strong> formas<br />

diferentes. Enquanto a concepção da tirania da beleza reconhece a mídia como meio <strong>de</strong><br />

propagação social das normas do corpo esbelto e da eterna juventu<strong>de</strong>, na concepção da<br />

aparência como um projeto reflexivo do eu a mídia é compreendida menos como<br />

produzindo o <strong>de</strong>sejo feminino <strong>de</strong> beleza do que o exprimindo e intensificando. 130<br />

Inspirando-nos em Bougnoux (1994), po<strong>de</strong>mos dizer que a análise da relação entre cultura<br />

da beleza e mídia se amesquinha quando se analisam os discursos sobre a beleza veiculados<br />

pela mídia como uma prática que regula um <strong>de</strong>terminado <strong>de</strong>sempenho, que <strong>de</strong>termina uma<br />

obediência a <strong>de</strong>terminadas regras. Por um outro viés, esses discursos po<strong>de</strong>m ser vistos<br />

129 Quando Weber analisa, em A Ética Protestante, como diferentes atitu<strong>de</strong>s religiosas influenciaram as ações<br />

dos homens sobre sua conduta econômica, ele estava interessado em compreen<strong>de</strong>r a <strong>de</strong>terminação precisa da<br />

religião numa <strong>de</strong>terminada socieda<strong>de</strong> e a <strong>de</strong>terminação da hierarquia dos valores adotados por uma época ou<br />

uma comunida<strong>de</strong>. O autor salienta que a razão <strong>de</strong> uma tendência específica <strong>para</strong> o racionalismo econômico<br />

observada entre os protestantes, e que não po<strong>de</strong> ser observada nos católicos, <strong>de</strong>ve ser procurada no caráter<br />

intrínseco permanente <strong>de</strong> suas crenças religiosas Essa colocação aponta <strong>para</strong> a evi<strong>de</strong>nciação das significações<br />

culturais que vai percorrer toda essa obra <strong>de</strong> Weber.<br />

130 “Longe <strong>de</strong> nós a idéia <strong>de</strong> negar o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> conformação estética da mídia feminina. Mas nunca é <strong>de</strong>mais<br />

insistir no fato <strong>de</strong> que as leitoras <strong>de</strong> revistas não se assemelham sistematicamente a seres passivos,<br />

conformistas e <strong>de</strong>svalorizados na imagem que têm <strong>de</strong> si pelo brilho das fotografias <strong>de</strong> moda. Estas funcionam<br />

também como sugestões positivas, fontes <strong>de</strong> idéias que permitem mudar o look, valorizar-se, tirar melhor<br />

partido <strong>de</strong> seus trunfos. Evi<strong>de</strong>ntemente, as mulheres imitam mo<strong>de</strong>los, mas cada vez mais, apenas aqueles que<br />

consi<strong>de</strong>ram passíveis <strong>de</strong> apropriação, e <strong>de</strong> acordo com sua auto-imagem[...] consumidora <strong>de</strong> imagens, nem<br />

por isso as mulheres são menos protagonistas, fazendo um uso pessoal e “criativo” dos mo<strong>de</strong>los propostos em<br />

gran<strong>de</strong> número. Evitemos diabolizar a mídia feminina: é preciso interpretar sua ação ao mesmo tempo como<br />

um meio <strong>de</strong> direção coletiva dos gostos e como um vetor <strong>de</strong> personalização e <strong>de</strong> apropriação estética <strong>de</strong> si”<br />

(LIPOVETSKY, 2000, p.168).


como <strong>aqui</strong>lo que orienta um sentido que já tem sua condição em uma prática coletiva, em<br />

um <strong>de</strong>sempenho entre sujeitos, em uma intersubjetivida<strong>de</strong>. “On<strong>de</strong> há interação, a<br />

causalida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong>rá ser linear, mas circular e complexa” (BOUGNOUX, 1994, p.38).<br />

3. 6.1 Prostituição e beleza<br />

A beleza é um dos temas das reuniões da Aprosba, em que as prostitutas não<br />

militantes são chamadas a ter uma preocupação com o corpo, cuidar da aparência como<br />

uma forma <strong>de</strong> se valorizar enquanto prostituta e mulher. Nas reuniões que tratam da beleza<br />

as palestrantes, em geral, são militantes e exercem ou exerceram a prática da prostituição.<br />

Por exemplo, Michele, da Associação dos Travestis <strong>de</strong> Salvador (ATRAS), foi convidada<br />

<strong>para</strong> falar sobre o tema da beleza em uma reunião. Ela chamou a atenção <strong>para</strong> o fato <strong>de</strong> que<br />

se uma prostituta quer receber mais pelo programa, ela <strong>de</strong>ve cuidar mais da aparência, ter o<br />

cuidado com a roupa, com o cabelo, usar pelo menos um batom, ter as unhas limpas e<br />

arrumadas. Das quinze mulheres presentes, duas foram i<strong>de</strong>ntificadas pelas presentes como<br />

prostitutas que têm tais cuidados por estarem bem vestidas e com uma leve m<strong>aqui</strong>agem.<br />

Elas se sentiram orgulhosas. Uma <strong>de</strong>las afirmou que se a mulher for “sabida” ela po<strong>de</strong> ficar<br />

bonita e gastar pouco. “Eu comprei esta blusa, por R$ 5,00 (disse apontado <strong>para</strong> a blusa) e<br />

estou fazendo o maior sucesso”. Também as discussões sobre o gostar do próprio corpo<br />

aparecem como um aspecto importante da relação com o corpo e a aparência.<br />

A Aprosba realizou, na abertura do I Seminário Nor<strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Sustentabilida<strong>de</strong> das<br />

Ações <strong>para</strong> Profissionais do Sexo, um concurso <strong>de</strong> beleza. O prêmio oferecido foi <strong>de</strong><br />

R$500,00 (quinhentos reais). O objetivo da instituição, segundo Fátima, ao promover tal<br />

evento, foi o <strong>de</strong> “valorizar a profissão, mostrar que na prostituição tem mulher bonita<br />

também”. Esta preocupação nos revela como a beleza aparece como elemento na<br />

construção <strong>de</strong> uma significação positiva da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prostituta. Militantes da Aprosba<br />

percorreram, durante dias, as áreas on<strong>de</strong> a instituição atuava divulgando o concurso. No<br />

final havia 20 mulheres inscritas, mas nenhuma compareceu, pois o principal entrave <strong>para</strong> a<br />

participação foi exigência <strong>de</strong> que elas não tivessem problemas em se i<strong>de</strong>ntificar como


prostituta, pois o evento teria visibilida<strong>de</strong> na mídia. Assim, dia da realização do concurso,<br />

como não tinha aparecido ninguém, Marilene foi buscar candidatas nas áreas. Ela acabou<br />

trazendo seis mulheres <strong>para</strong> participar do concurso: Karina (BarDamasco), Alana(Bar<br />

Damasco), Lídia (Associação <strong>de</strong> Sergipe), Joyce (Bar Damasco), Patrícia (Orla), e Graziele<br />

(Orla) 131 .<br />

As candidatas <strong>de</strong>sfilaram com uma performance que misturava os gestos <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sfile<br />

<strong>de</strong> moda e show erótico, e se pronunciaram a pedido <strong>de</strong> Gabriela Leite que estava<br />

presente. Das seis participantes, cinco não participavam do movimento <strong>de</strong> prostituta e<br />

não tinham nenhuma experiência <strong>de</strong> militância. Aquela era, sem dúvida, uma situação<br />

inusitada <strong>para</strong> elas. O fato <strong>de</strong> ter que falar em público foi bastante difícil, mas<br />

apropriando-se das falas prece<strong>de</strong>ntes cada uma logrou construir seu próprio discurso.<br />

Karina, a primeira a <strong>de</strong>sfilar, não quis falar; Alana falou que era dona-<strong>de</strong>-casa, mãe e<br />

contribuía com o prazer; Patrícia disse que gostava do que fazia e era com esse trabalho<br />

que se sustentava e sustentava a família; Lídia falou <strong>de</strong> forma muito bem articulada e<br />

com bastante <strong>de</strong>senvoltura em relação às outras mulheres. Disse que estava ali <strong>para</strong><br />

mostrar que era “gostosa”, “mesmo gordinha faço gostoso”. Ela ainda <strong>de</strong>clarou: “somos<br />

como qualquer mulher, temos que batalhar, ser feliz e criar nossos filhos”. Ela fez gestos<br />

carregados <strong>de</strong> uma sensualida<strong>de</strong> artificial. Além <strong>de</strong> Lídia ser muito bonita, seu discurso<br />

surpreen<strong>de</strong>u. Depois ficamos sabendo que ela já era uma “velha” militante do<br />

movimento <strong>de</strong> prostitutas <strong>de</strong> Sergipe e que foi convidada por Marilene <strong>para</strong> participar<br />

por falta <strong>de</strong> candidatas. Isso explica a sua fala bem articulada. Ela também se <strong>de</strong>stacou<br />

das outras mulheres por ser loira. Em seguida Joyce <strong>de</strong>sfilou, se apresentou e <strong>de</strong>clarou:<br />

“fazer é gostoso”. Já Graziele não fez nenhuma referência ao fato <strong>de</strong> ser prostituta, mas<br />

ao fato que o seu sonho era ser cantora, e cantou.<br />

Depois do <strong>de</strong>sfile e dos pronunciamentos <strong>de</strong>u-se início à votação pelo júri oficial,<br />

formado por li<strong>de</strong>ranças do movimento <strong>de</strong> prostitutas, representantes da Secretaria<br />

Municipal e Secretaria Estadual da Saú<strong>de</strong>, representantes do Ministério da Saú<strong>de</strong>, e juri<br />

popular (as pessoas ali presentes). A candidata vencedora foi a militante da Associação <strong>de</strong><br />

Sergipe. A forma afirmativa como ela se <strong>de</strong>finiu como prostituta, mãe e mulher bonita<br />

provocou uma reação muito positiva entre os presentes. Ela estava ali apresentando uma<br />

131 Ver mais sobre esses locais <strong>de</strong> prostituição no primeiro capítulo <strong>de</strong>ste trabalho


eleza que foi cultivada e que lhe era <strong>de</strong> direito. Levou o prêmio <strong>de</strong> R$500,00 e se<br />

comportou como a prostituta mais bonita participante do evento.<br />

No final do ano <strong>de</strong> 2005 foi lançada, pela organização não governamental Davida<br />

— Prostituição, Direitos Civis 132 , a grife DASPU 133 . É interessante observar como o<br />

concurso <strong>de</strong> beleza realizado pela Aprosba e o lançamento da DASPU fazem que a beleza e<br />

a moda 134 entrem no jogo da constituição das aparências, como expressivida<strong>de</strong>s plásticas<br />

<strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prostituta. Passa-se, assim, a evi<strong>de</strong>nciar uma dimensão estética, ou<br />

seja, da or<strong>de</strong>m da sensibilida<strong>de</strong>, como elemento significativo do movimento <strong>de</strong> prostituta.<br />

A <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> uma prostituta que <strong>de</strong>sfila a moda DASPU: “Agora as pessoas estão<br />

apoiando muito, aceitando mais a gente, sem aquele preconceito bobo”; ou a expressão<br />

“Estilista da auto-estima”, mostra que o viés da expressivida<strong>de</strong> plástica é muito bem vindo<br />

na prática da militância. A moda é tratada por Maffesoli (1996) como constitutiva da lógica<br />

da i<strong>de</strong>ntificação, como um fenômeno <strong>de</strong> uma estrutura envolvente. Segundo o autor, ela<br />

“garante a ligação <strong>de</strong> todos os elementos dis<strong>para</strong>tados que constituem as características<br />

essenciais <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada época. Mas, mais precisamente, <strong>de</strong>ssas épocas que, por<br />

razões que é ainda preciso analisar, privilegiam o estar junto coletivo” (MAFFESOLI,<br />

1996, p. 341) Para Lipovetsky (1989), a lógica da moda com seus princípios da sedução,<br />

efemerida<strong>de</strong>, superficilida<strong>de</strong> e aparência engloba esferas cada vez mais amplas da vida<br />

coletiva. E po<strong>de</strong>mos dizer que o movimento <strong>de</strong> prostituta se inclui aí.<br />

Como as militantes da Aprosba se relacionam com as práticas transformadoras da<br />

aparência? Como dissemos anteriormente, a esbeltez é um mo<strong>de</strong>lo bastante perseguido<br />

132 A organização foi fundada em 1992 por Gabriela Leite. “O protagonismo das profissionais do sexo é,<br />

assim, a principal conquista <strong>de</strong> Davida. Políticas públicas <strong>para</strong> a categoria, como as <strong>de</strong> prevenção <strong>de</strong><br />

DST/AIDS, direitos humanos e cidadania, têm passagem certa pelo movimento organizado. A primeira<br />

pesquisa nacional sobre as trabalhadoras sexuais (UNB/CN DST e AIDS) também contou com a assessoria da<br />

entida<strong>de</strong>. Outros importantes resultados das ações <strong>de</strong> Davida são a inclusão da profissão na Classificação<br />

Brasileira <strong>de</strong> Ocupações, do Ministério do Trabalho, e a apresentação ao Congresso Nacional <strong>de</strong> projeto <strong>de</strong> lei<br />

que reconhece a prostituição. Davida promove ainda a criação <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> bibliotecas <strong>de</strong> associações <strong>de</strong><br />

profissionais do sexo e <strong>de</strong> um Centro <strong>de</strong> Referência e Documentação em Prostituição. Atuando diretamente na<br />

capacitação <strong>de</strong> ONG e em ações educativas dirigidas a prostitutas, e articulada ao movimento internacional <strong>de</strong><br />

trabalhadoras do sexo, Davida publica o jornal Beijo da rua, <strong>de</strong> circulação nacional, com notícias sobre o<br />

movimento organizado e o dia-a-dia da prostituição.” Disponível em . Acesso em 26/01/206<br />

133 No capítulo 4 <strong>de</strong>ste trabalho vamos abordar <strong>de</strong> forma mais <strong>de</strong>tida o lançamento da grife DASPU<br />

134 “Oriunda do latim modus, que significa maneira, a moda é <strong>de</strong>nominada como maneira, modo individual <strong>de</strong><br />

fazer, ou uso passageiro que regula a forma dos objetos materiais, e particularmente, os móveis, as<br />

vestimentas e a coqueteria. Mais genericamente, maneira <strong>de</strong> ser, modo <strong>de</strong> viver e <strong>de</strong> se vestir. Curiosamente, e<br />

por uma espécie <strong>de</strong> ida e vinda linguística, a língua inglesa no mesmo momento recupera a palavra francesa<br />

façon (modo) e a transforma em fashion, e assim passa a nomear a moda” (PITOMBO, 2003, P.32).


pelas militantes, e observamos que a transformação dos seus corpos, através <strong>de</strong> dietas e<br />

cirurgia plástica, se <strong>de</strong>u com o processo <strong>de</strong> transformação <strong>de</strong> suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. A beleza e o<br />

cuidado com o corpo aparecem como mais um ingrediente do programa <strong>de</strong> militância da<br />

Aprosba. Talvez pudéssemos relacionar essa busca da beleza, compartilhando das<br />

perspectivas <strong>de</strong> Lipovetsky (2000) e Gid<strong>de</strong>ns (2002) 135 , com os processos <strong>de</strong> autonomia, <strong>de</strong><br />

ser dona <strong>de</strong> si, e <strong>de</strong> auto-apropriação <strong>de</strong> conquista individual que as práticas institucionais<br />

relacionadas ao movimento <strong>de</strong> prostitutas lhes possibilitaram. Para dominar tais práticas e<br />

produzir outras foi necessário um gran<strong>de</strong> empenho, como discutimos no primeiro capítulo<br />

<strong>de</strong>ste trabalho.<br />

CAPÍTULO 4<br />

OS USOS DA MÍDIA COMO PRÁTICA INSTITUCIONAL DA<br />

ASSOCIAÇÃO DAS PROSTITUTAS DA BAHIA<br />

135 Gid<strong>de</strong>ns nos chama atenção <strong>para</strong> o fato <strong>de</strong> que “[...] o corpo não é só uma entida<strong>de</strong> física que “possuímos”,<br />

é um sistema <strong>de</strong> ação, um modo <strong>de</strong> práxis, e sua imersão prática nas interações da vida cotidiana é uma parte<br />

essencial da manutenção <strong>de</strong> um sentido coerente <strong>de</strong> auto-i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> “Estar <strong>de</strong> dieta no sentido estrito da<br />

expressão é apenas uma versão particular <strong>de</strong> um fenômeno muito mais geral – o cultivo <strong>de</strong> regimes corporais<br />

como modo <strong>de</strong> influenciar reflexivamente o projeto do eu” (GIDDENS, 2002, P.95).


Eletricamente contraído, o globo já não é mais do que<br />

uma vila. A velocida<strong>de</strong> elétrica, aglutinando todas as<br />

funções sociais e políticas numa súbita implosão,<br />

elevou a consciência humana <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> a<br />

um grau dos mais intensos. É este fator implosivo que<br />

altera a posição do negro, do adolescente e <strong>de</strong> outros<br />

grupos. Eles já não po<strong>de</strong>m ser contidos, no sentido<br />

político <strong>de</strong> associação limitada.<br />

McLuhan, 1996<br />

As profusões <strong>de</strong> estudos sobre mídia e, principalmente, nossas experiências<br />

cotidianas vêm confirmar que as mídias instituem novas formas <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>,<br />

potencializam a participação na vida pública e participam cada vez mais <strong>de</strong> nosso con<strong>texto</strong><br />

íntimo. Experienciamos os acontecimentos sociais mediados pelas tecnologias <strong>de</strong><br />

comunicação. Como muito bem nos lembra Valver<strong>de</strong> (1996), nas socieda<strong>de</strong>s complexas em<br />

que vivemos, não vivemos simplesmente a experiência da comunicação interpessoal. Os<br />

meios <strong>de</strong> comunicação têm uma dimensão planetária jamais experimentada por outra<br />

cultura. Emerge, assim, como primordial, a compreensão do “[...] papel dos media na<br />

formação e na transformação dos modos <strong>de</strong> significação que conferem sentido coletivo à<br />

nossas experiências” (1996, p.68). Nesse mesmo plano, Wilson Gomes consi<strong>de</strong>ra que “[...]<br />

nada po<strong>de</strong> existir <strong>para</strong> nós como realida<strong>de</strong> se não cumpre uma das seguintes condições: a)<br />

pertencer ao minúsculo trecho <strong>de</strong> minha experiência cotidiana; b) estar inserido no circuito<br />

informativo dos mass media. A maior e socialmente importante parte da realida<strong>de</strong> respon<strong>de</strong><br />

à segunda condição”(GOMES, 1996, p.42). Thompson (1999) nos mostra como o processo<br />

<strong>de</strong> produção, transmissão e a recepção <strong>de</strong> conteúdos simbólicos na forma <strong>de</strong> mídia impressa<br />

— por exemplo a impressão e difusão da bíblia, dos romances e a produção <strong>de</strong> notícias —<br />

participou na formação da socieda<strong>de</strong> do século XVI ao séc. XIX. O autor traz <strong>para</strong> o campo<br />

da comunicação <strong>de</strong> massa uma reflexão sobre como o <strong>de</strong>senvolvimento das tecnologias da<br />

comunicação trouxe mudanças nos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> significação compartilhados no período da<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Ao alterar as condições espaço-temporais da comunicação, o uso dos meios<br />

técnicos também alterou as condições <strong>de</strong> espaço e <strong>de</strong> tempo e tornou os indivíduos capazes<br />

<strong>de</strong> agir e interagir a distância. Os meios <strong>de</strong> comunicação criaram novas formas <strong>de</strong> interação,<br />

novos tipos <strong>de</strong> visibilida<strong>de</strong> e novas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> difusão no mundo mo<strong>de</strong>rno. Como reconhece


Gid<strong>de</strong>ns (2002, p. 157) “[....] pela linguagem e imagem da mídia, os indivíduos também<br />

têm acesso a experiências que, em diversida<strong>de</strong> e distância, vão muito além do que po<strong>de</strong>riam<br />

ir na ausência <strong>de</strong>ssas mediações”.<br />

Castells aborda o papel da mídia em nossa cultura:<br />

[...] ser espectador /ouvinte da mídia absolutamente não constitui uma<br />

ativida<strong>de</strong> exclusiva. Em geral é combinada com o <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> tarefas<br />

domésticas, refeições familiares e interação social. É a presença <strong>de</strong> fundo<br />

quase constante, o tecido <strong>de</strong> nossas vidas. Vivemos com a mídia e pela<br />

mídia. McLuhan utilizou a expressão da mídia tecnológica como produtos<br />

básicos ou recursos naturais. Em vez disso, a mídia em especial o rádio e a<br />

televisão, tornou-se o ambiente audiovisual com o qual interagimos<br />

constante e automaticamente (CASTELLS, 1999a, p.358).<br />

Nesse sentido não temos como <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar o fato <strong>de</strong> os movimentos sociais<br />

i<strong>de</strong>ntitários, que proliferam na contemporaneida<strong>de</strong>, terem, cada vez mais, uma efetiva<br />

atuação na mídia. Manuel Castells (1999b) <strong>de</strong>dicou especial atenção a uma análise <strong>de</strong> como<br />

a mídia po<strong>de</strong> ser usada <strong>para</strong> expandir e consolidar i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Os movimentos sociais<br />

articulam-se em re<strong>de</strong>s e promovem eventos que chamam a atenção da mídia. E a<br />

potencialização das ações ocorre com a mobilização e formação da opinião pública<br />

nacional e internacional favorável à causa. Em uma velocida<strong>de</strong> antes inimaginada circulam<br />

<strong>de</strong>núncias e apelos. Observa-se que a formação <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s informáticas tem sido um recurso<br />

amplamente utilizado pela socieda<strong>de</strong> civil organizada, e a World Wi<strong>de</strong> Web têm atuado<br />

como importante meio <strong>para</strong> o fortalecimento <strong>de</strong> suas ações. Ou seja, a internet ampliou as<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> articulação conjunta entre entida<strong>de</strong>s com interesses comuns. Enfim, o<br />

avanço tecnológico da comunicação mostra-se como possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fortalecimento <strong>para</strong><br />

os movimentos sociais em curso.<br />

4.1. Aprosba na mídia<br />

Ao ligar a TV <strong>para</strong> assistir ao jornal da tar<strong>de</strong> da Re<strong>de</strong> Globo, no ano <strong>de</strong> 1999, nos<br />

<strong>de</strong><strong>para</strong>mos, com surpresa, com Fátima dando um <strong>de</strong>poimento. Ela estava ali, em re<strong>de</strong><br />

nacional, <strong>de</strong>nunciando a morte <strong>de</strong> uma prostituta ao tentar atravessar clan<strong>de</strong>stinamente em


um bote, com outras colegas, <strong>para</strong> um navio (é proibido receber prostitutas nos navio)<br />

ancorado no porto <strong>de</strong> Salvador, <strong>para</strong> fazer programas 136 . Depois disso a vimos em outros<br />

canais <strong>de</strong> TV, e suas <strong>de</strong>clarações apareceram também nos jornais da cida<strong>de</strong>.<br />

A relação da Aprosba com a mídia se estabeleceu <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu surgimento. No dia da<br />

sua fundação ela estava lá <strong>para</strong> registrar e divulgar o acontecimento. O Grupo Gay da Bahia<br />

e o Grupo Lésbico da Bahia, os quais, como já discutimos neste trabalho, estavam atrelados<br />

à Aprosba, reconheciam a importância da mídia <strong>para</strong> marcar o evento, já que através <strong>de</strong>sta<br />

as ações <strong>de</strong>sses grupos ganharam maior alcance, e, portanto, reconhecimento. E a Aprosba<br />

foi encaminhada neste sentido. A busca da visibilida<strong>de</strong> através da mídia é uma <strong>de</strong> suas<br />

práticas institucionais mais valorizadas, e que não <strong>de</strong>ve ser negligenciada. Insistindo ainda<br />

mais, po<strong>de</strong>mos dizer que o uso da mídia pela Aprosba, como prática institucional, é um<br />

elemento fundamental na construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> militante A atenção a este elemento<br />

permite, por conseguinte, compreen<strong>de</strong>r a relação que se constrói com a mídia na sua dupla<br />

natureza, como <strong>de</strong>staca Rui Sandrine: “[...] <strong>de</strong> integração, portanto <strong>de</strong> normalização, <strong>de</strong> um<br />

lado; e <strong>de</strong> espaço <strong>de</strong> auto-reflexivida<strong>de</strong> biográfica, portanto <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> outro<br />

lado” 137 . Se a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> se forja, como vimos em capítulos anteriores, permanentemente<br />

pela auto-reflexivida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar <strong>aqui</strong> a presença da mídia na<br />

construção reflexiva do eu, portanto, da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />

Em Salvador a experiência da profissionalização da prática da prostituição tem<br />

ganhado espaço significativo na mídia. Lembramos que essa experiência é por si só<br />

integradora normalizadora. Os jornais baianos <strong>de</strong>ram os seguintes <strong>de</strong>staques à questão<br />

durante os anos <strong>de</strong> 2004 e 2005:<br />

“A legalização é sinônimo <strong>de</strong> respeito pra gente, que po<strong>de</strong>ria ter acesso a<br />

benefícios como plano <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, aposentadoria e auxílio doença”, explica a<br />

coor<strong>de</strong>nadora da Associação das Profissionais do Sexo da Bahia (Aprosba),<br />

Fátima Me<strong>de</strong>iros (BRIGHAM 2004) 138<br />

136 O filme Cida<strong>de</strong> Baixa do diretor Sérgio Machado, aborda o triângulo amoroso entre dois jovens e uma<br />

prostituta que vivem na Cida<strong>de</strong> Baixa em Salvador. Cenas do filme retratam a prática da prostituição nos<br />

navios no porto <strong>de</strong> Salvador, e mostram o con<strong>texto</strong> <strong>de</strong> negociação que envolve tal prática, e o papel <strong>de</strong> seus<br />

diferentes agentes.<br />

137 RUI, Sandrine foule sentimentale: récit amoureux, média et réflexivité. Revue Reseaux. Disponível em<br />

cesso em: 20 nov.2005.<br />

138 BRIGHAM, Ciro. Prostitutas revelam como conviver com o preconceito. A Tar<strong>de</strong>, Salvador, 17 <strong>de</strong>z 2004.<br />

Aqui Salvador, p. 03.


Para a presi<strong>de</strong>nte da Aprosba, a regulamentação da profissão dificultaria<br />

que as casas <strong>de</strong> prostituição, uma vez regularizadas, colocassem na rua da<br />

amargura as prostitutas "velhas" e as doentes. "Prostituta doente é colocada<br />

<strong>para</strong> fora da casa e não tem direito a auxílio-doença", critica. A<br />

concorrência com as mais novas e a crise econômica generalizada faz com<br />

que muitas meretrizes aceitem programas em troca <strong>de</strong> cerveja ou <strong>de</strong> um<br />

prato <strong>de</strong> comida (CARVALHO, 2005). 139<br />

Participando da caminhada do Dia Internacional da Mulher pela segunda<br />

vez estava a Associação das Prostitutas da Bahia (Aprosba). Este ano, a<br />

categoria comemora oito anos <strong>de</strong> fundação da entida<strong>de</strong>. “Mostramos nossa<br />

cara, e nossa luta é contra o preconceito e em favor da legalização da nossa<br />

profissão”, disse Fátima Me<strong>de</strong>iros, coor<strong>de</strong>nadora geral da Aprosba<br />

(ANDRADE, 2005). 140<br />

Ainda: “Profissionais do sexo discutem regulamentação da ativida<strong>de</strong> em Seminário”<br />

141 : “Prostituta querem legalizar a profissão <strong>para</strong> ter direitos 142 .“Prostituta unidas:<br />

profissionais do sexo aproveitam o dia internacional da categoria <strong>para</strong> exigir respeito e<br />

direitos trabalhistas” . 143<br />

No espaço da mídia prostitutas militantes contam suas histórias, mostrando quem<br />

elas são, e o caminho que percorreram, evi<strong>de</strong>nciando suas subjetivida<strong>de</strong>s. Retomamos<br />

abaixo um trecho da entrevista <strong>de</strong> Marilene, apresentada no segundo capítulo <strong>de</strong>ste<br />

trabalho. Po<strong>de</strong>mos observar como a mídia teve um papel prepon<strong>de</strong>rante no seu percurso <strong>de</strong><br />

militante.<br />

A mídia ajudou a gente e a gente ajudou eles. É como ...uma mão lava a<br />

outra. Quando eles falam <strong>de</strong> prostituição, com uma prostituta eles ficam<br />

doidos <strong>de</strong> saber...eles vão a fundo [...] né? Eles sempre procuram saber uma<br />

monte <strong>de</strong> coisas”. Você tá assumindo, você acha que é bom ser prostituta,<br />

mas se sua filha fosse?”. Aquelas besteradas todas, mas aí a gente aproveita<br />

já pra tá divulgando o trabalho, mostrando pra socieda<strong>de</strong> que existe, que tá<br />

tendo um movimento, que a gente tá lutando contra os preconceitos, a<br />

violência, a discriminação, lutando pra ter direito a igualda<strong>de</strong>, ser incluída<br />

na socieda<strong>de</strong>, ser reconhecida como profissão, porque é uma profissão<br />

139 CARVALHO, Tatiany. Prostitutas buscam regulamentação da profissão. Correio da Bahia , Salvador,<br />

30mai.2005. Trabalho. Disponível em< http://www.correiodabahia.com.br> Acesso 30/05/2005<br />

140 ANDRADE, Ana. Caminhada <strong>de</strong> muitas ban<strong>de</strong>iras. A tar<strong>de</strong>, Salvador, 09 mar 2005. Local. Disponível em<br />

Acesso 09/03/2005<br />

141 LOBO, Sandro. Prostitutas querem direitos sociais garantidos por lei A Tar<strong>de</strong>, Salvador,.15 <strong>de</strong>z 2004.<br />

Ca<strong>de</strong>rno Especial<br />

142 CHAGAS, Fernanda. Prostitutas querem legalizar a profissão <strong>para</strong> Ter direitos trabalhistas Tribuna da<br />

Bahia Salvador. 17 <strong>de</strong>z <strong>de</strong> 2004<br />

143 BRIGHAM, Ciro. Jornal Dia internacional da prostituta Correio da Bahia, Salvador, 03 jun 2005 Aqui<br />

Salvador. Disponível em Acesso 03/06/2005


também. Então a mídia ajudou bastante porque ia ser muito difícil a gente<br />

bater <strong>de</strong> boca em boca, ficaria muito difícil, né? Era entrevista, logo no<br />

início, era comigo, porque eu era a presi<strong>de</strong>nte e sempre era comigo. Então a<br />

mídia ajudou bastante tanto a televisão, como jornal, rádio. Então a<br />

oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a gente tá no rádio, no jornal, muitas pessoas vai ter acesso<br />

<strong>de</strong> tarem lendo, se informando e vê que têm pessoas que tá trabalhando em<br />

benéfico <strong>de</strong> pessoas, a favor da legalização da profissão, direitos da<br />

prostitua. Não só a prostituta, mas têm várias pessoas que não fazem parte<br />

do movimento que colaboram, que ajudam voluntariamente. Depois que eu<br />

saí na mídia eu me senti uma pessoa mais famosa, mais importante (risos)<br />

Meus clientes falam assim: “Pôxa, hoje eu quero sair com a presi<strong>de</strong>nte da<br />

Aprosba”. Ou então tinha clientes que colecionava jornal, as matérias que<br />

saíam. Às vezes a mídia mesmo que procura a gente pra fazer matéria sobre<br />

valores, violência. Então eles ajudaram bastante. Inclusive sobre <strong>de</strong>núncias<br />

e tal. Então a imprensa ajuda bastante a quebrar esse<br />

preconceito.(Informação verbal) 144<br />

As ações da Aprosba sempre encontram repercussão na mídia. O último evento que<br />

ganhou um extraordinário espaço na mídia, e que acompanhamos, foi o pedido <strong>de</strong><br />

concessão <strong>de</strong> uma emissora <strong>de</strong> rádio FM a ser administrada pela instituição, em parceria<br />

com o Ministério da Cultura. Fátima <strong>de</strong>u a seguinte <strong>de</strong>claração no jornal Folha <strong>de</strong> São<br />

Paulo:<br />

Não sei se a proposta será aceita pelo Ministério das Comunicações, mas o<br />

nome <strong>de</strong> fantasia da emissora será "Zona FM"[...] A idéia <strong>de</strong> administrar<br />

uma emissora <strong>de</strong> rádio surgiu no fim <strong>de</strong> 2005. Hoje, no Brasil, existem<br />

rádios em nome <strong>de</strong> políticos, empresários e médicos, por exemplo. Por que<br />

as prostitutas não po<strong>de</strong>m ter um canal à sua disposição?"Sem nenhuma<br />

experiência no ramo, a Aprosba preten<strong>de</strong> "contratar" professores<br />

universitários e voluntários como locutores e técnicos. "Também vamos<br />

treinar algumas prostitutas que levam mais jeito <strong>para</strong> falar em público’. [...]<br />

a entida<strong>de</strong> também não <strong>de</strong>scarta a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recorrer à iniciativa<br />

privada. "Queremos mostrar que as prostitutas também são pessoas dignas,<br />

que exercem uma profissão como qualquer outra" (FRANCISCO, 2006) 145 .<br />

A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma emissora <strong>de</strong> rádio FM dirigida por prostitutas gerou<br />

diferentes reações nos mais variados setores sociais. Os menos conservadores e afeitos à<br />

causa, viram o fato como uma conquista da categoria; já os mais conservadores como um<br />

espaço <strong>para</strong> incentivo à prostituição. O que neste evento incomoda, surpreen<strong>de</strong>, é o fato <strong>de</strong><br />

144 Entrevista dada em 24 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2005<br />

145 FRANCISCO, Luiz. Prostitutas vão administrar rádio FM em Salvador. Folha <strong>de</strong> São Paulo, São Paulo ,<br />

08 mar 2006. Ilustrada.


uma categoria cercada <strong>de</strong> estigmas e preconceitos, relegada a lugares bem <strong>de</strong>marcados, <strong>de</strong><br />

"passivos receptores", emergir da mu<strong>de</strong>z e passar a ter acesso à palavra, a ser enunciadores<br />

em um processo comunicacional. Assim, aqueles que outrora eram apenas ouvintes, e tidos<br />

como minoria, passam a ser protagonistas. Lembramos que a palavra é instituinte do sujeito<br />

social, ela lhe dá visibilida<strong>de</strong> pública. Como afirma França (2002, p. 72), “[...] o outro<br />

<strong>de</strong>ntro do gran<strong>de</strong> “nós” se coloca não como o “falado”, o referente <strong>de</strong> construções externas<br />

<strong>de</strong> representação, mas como enunciador”.<br />

Des<strong>de</strong> que Orson Wells apresentou no rádio, na década <strong>de</strong> 30 do século XX, o<br />

romance <strong>de</strong> ficção científica <strong>de</strong> H. G. Wells: A guerra dos mundos, sobre a invasão <strong>de</strong><br />

marcianos, aterrorizando com tal relato milhares <strong>de</strong> americanos crédulos (evento que é<br />

exaustivamente citado nos estudos sobre meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa) até a web<br />

radio 146 do século XXI, esse meio <strong>de</strong> comunicação passou por muitas transformações. Mas<br />

o que não se po<strong>de</strong> contestar é que ele permanece como meio <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> fenomenal<br />

alcance 147 , e possibilitará certamente uma participação social mais ampliada da Aporsba.<br />

Uma emissora <strong>de</strong> rádio gerenciada pela instituição po<strong>de</strong>rá ser entendida como “fonte <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> direitos, [...] instrumento <strong>de</strong> mobilização social, <strong>de</strong> construção e reconstrução <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, como produtora <strong>de</strong> sentido através da afetivida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> ampliação <strong>de</strong><br />

possibilida<strong>de</strong>s pessoais e coletivas”. 148<br />

Outras entida<strong>de</strong>s ligadas ao movimento <strong>de</strong> prostitutas também vêm marcando<br />

presença na mídia. O lançamento da grife <strong>de</strong> roupa DASPU pela organização não<br />

Governamental DAVIDA, no final <strong>de</strong> 2005, por exemplo, constituiu-se em um fenômeno<br />

midiático que teve espaço em programas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> audiência, como o Fantástico, e foi alvo<br />

<strong>de</strong> atenção do programa Jô Soares, ambos da Re<strong>de</strong> Globo, emissora <strong>de</strong> televisão “aberta” <strong>de</strong><br />

. 146 “A rádio web surge na internet <strong>para</strong> ampliar os limites <strong>de</strong> transmissão regional impostos pela potência<br />

dos transmissores <strong>de</strong> ondas hertzianas e pela legislação, além <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nciar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

criar um estilo próprio <strong>de</strong> linguagem na re<strong>de</strong> das re<strong>de</strong>s” QUADROS et al.,. Radio web : uma experiência na<br />

UTP. 2004 XXVII Congresso Brasileiro <strong>de</strong> Ciências da Comunicação, Anais. Porto Alegre, 2004. CD- ROM<br />

147 A emissora FM O dia do Rio <strong>de</strong> janeiro,em março <strong>de</strong> 2006, teve em média 153.325 ouvintes por minuto. A<br />

emissora AM Globo também do Rio <strong>de</strong> Janeiro, no mesmo período, teve em média 185.163 ouvintes por<br />

minuto. Disponível em < http://www.almanaqueibope.com.br>. Acesso em 05/05/2006<br />

148 ROLDÃO, Ivete; MOREIRA, Reginaldo. Maluco beleza: a experiência <strong>de</strong> um programa <strong>de</strong> rádio<br />

produzido por usuários da saú<strong>de</strong> mental. XXVII Congresso Brasileiro <strong>de</strong> Ciências da Comunicação, Anais.<br />

Porto Alegre, 2004. CD- ROM


maior audiência no Brasil. 149 Já no Google, sistema <strong>de</strong> busca da Internet, havia 2.500<br />

referências à DASPU em maio <strong>de</strong> 2006. A seguir alguns trechos <strong>de</strong> matérias sobre a grife<br />

publicadas pelo jornal Folha <strong>de</strong> São Paulo:<br />

Uma outra iniciativa da ONG Davida é o lançamento <strong>de</strong> uma grife <strong>de</strong><br />

roupas <strong>para</strong> “profissionais do sexo e simpatizantes": a Daspu. Segundo as<br />

22 prostitutas do Estado do Rio, sócias no empreendimento, o nome é uma<br />

brinca<strong>de</strong>ira com a milionária loja <strong>de</strong> São Paulo, a Daslu. A primeira peça da<br />

nova grife será a camisa do bloco carnavalesco Prazeres Davida, que <strong>de</strong>verá<br />

começar a ser vendida no ensaio da próxima segunda na praça Tira<strong>de</strong>ntes.<br />

Inicialmente, as sócias investirão cerca <strong>de</strong> R$ 5.000 no projeto.(ROLDÃO;<br />

MOREIRA, 2004) 150<br />

Ameaçada <strong>de</strong> ser processada pela Daslu, consi<strong>de</strong>rada o maior centro <strong>de</strong><br />

compras <strong>de</strong> luxo do país, a organização não-governamental Davida, que<br />

aten<strong>de</strong> prostitutas, estuda uma forma jurídica <strong>para</strong> tentar manter o nome da<br />

sua grife <strong>de</strong> roupas, a Daspu. Ele é consi<strong>de</strong>rado ofensivo pela loja paulista,<br />

que não quer ver sua marca ligada à profissão que a ONG representa Em<br />

meio a essa discussão, a Davida lança, na próxima segunda-feira, as<br />

primeiras criações da grife, em um ensaio <strong>de</strong> bloco carnavalesco na praça<br />

Tira<strong>de</strong>ntes, no centro do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Até lá, a Davida ainda estará<br />

<strong>de</strong>ntro do prazo <strong>de</strong> <strong>de</strong>z dias estipulado pela Daslu <strong>para</strong> que mudasse o nome<br />

<strong>de</strong> sua grife A organização não-governamental <strong>de</strong> apoio às prostitutas<br />

Davida vai encarar a Daslu em ritmo <strong>de</strong> samba. Ontem, a ONG <strong>de</strong>sfilou<br />

pela primeira vez com camisetas da grife Daspu, no ensaio <strong>de</strong> seu bloco<br />

carnavalesco prazeres da vida. (RANGEL, 2005) 151<br />

A Davida teria até quinta-feira <strong>para</strong> mudar o nome da grife e não sofrer um<br />

processo da Daslu, que consi<strong>de</strong>ra "Daspu" um "<strong>de</strong>boche, visando "<strong>de</strong>negrir"<br />

a imagem da loja", além <strong>de</strong> possível fonte <strong>de</strong> prejuízos, <strong>de</strong>vido à<br />

semelhança.A coor<strong>de</strong>nadora da ONG, Gabriela Leite, afirma, entretanto,<br />

que lutará na Justiça pelo direito <strong>de</strong> fazer a alusão à butique paulistana.<br />

"Não se trata <strong>de</strong> ofensa. Ao contrário, é <strong>para</strong> mostrar que as meninas da<br />

vida também po<strong>de</strong>m ser elegantes."O advogado da Daslu, Rui Celso Reali<br />

Fragoso, nega que haja preconceito contra prostitutas e afirma que outras<br />

lojas <strong>de</strong> roupas já foram impedidas <strong>de</strong> usar nomes semelhantes<br />

(PEQUENO, 2005) 152<br />

Retalhos <strong>de</strong> malha colorida comprados a R$ 27 o quilo são a matéria-prima.<br />

Na salinha <strong>de</strong> reuniões da ONG Davida, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> os direitos das<br />

prostitutas, duas máquinas <strong>de</strong> costura produzem saias, tops, vestidos e<br />

camisetas. Em volta da mesa, quatro garotas <strong>de</strong> programa aproveitam o<br />

horário <strong>de</strong> folga <strong>para</strong> palpitar sobre os mo<strong>de</strong>litos, experimentar as peças e<br />

149<br />

Ver dados sobre audiência da televisão aberta no Brasil em http://www.almanaqueibope.com.br<br />

150<br />

RANGEL, Sérgio. Prostitutas a<strong>de</strong>rem à revitalização do Rio. Folha <strong>de</strong> São Paulo, São Paulo, 22 <strong>de</strong>z<br />

2005Ca<strong>de</strong>rno cotidiano.<br />

151<br />

Daslu ameaça processar ONG da grife Daspu l Folha <strong>de</strong> São Paulo, São Paulo 03 <strong>de</strong>z 2005 Cotidiano<br />

152<br />

PEQUENO, João. Grife DASPU estréia com samba Folha <strong>de</strong> São Paulo,São Paulo, 06 <strong>de</strong>z 2005.<br />

Cotidiano


abiscar novos croquis com canetas BIC. Está nascendo uma nova grife no<br />

bairro da Glória, no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Está nascendo a Daspu (BERGAMO,<br />

2005) 153<br />

O <strong>de</strong>sfile da grife Daspu no Fashion Rio virou notícia do jornal "Daily<br />

News", <strong>de</strong> NY, que publicou que "um grupo <strong>de</strong> prostitutas ofuscou Gisele<br />

Bündchen ao passar pela passarela". Um portal da Nova Zelândia também<br />

noticiou, dizendo que prostitutas "roubaram brilho <strong>de</strong> tops como Gisele".<br />

(BERGAMO, 2006) 154<br />

A Daspu não será a única contribuição das profissionais do sexo ao<br />

universo fashion. A Vila Mimosa, tradicional área <strong>de</strong> prostituição no centro<br />

do Rio, está prestes a fazer sua moda. A Amocavim (Associação dos<br />

Moradores do Condomínio e Amigos <strong>de</strong> Vila Mimosa) planeja <strong>para</strong><br />

setembro o lançamento da grife Gatinha Mimosa. A marca é resultado do<br />

trabalho que começou no fim <strong>de</strong> 2005. "Com o patrocínio do Ministério da<br />

Cultura e <strong>de</strong> outras entida<strong>de</strong>s, montamos oficinas e cursos <strong>de</strong> capacitação <strong>de</strong><br />

corte e costura", disse a coor<strong>de</strong>nadora <strong>de</strong> projetos da Amocavim, Clei<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Almeida.A idéia da grife é confeccionar camisetas, shorts, calças, biquínis,<br />

cangas e outras roupas, a preços baixos. O valor médio <strong>de</strong> uma camiseta<br />

será <strong>de</strong> R$ 10. (CHAVES, 2006) 155<br />

São 23h <strong>de</strong> segunda-feira e o <strong>de</strong>sfile da grife Daspu, criada por prostitutas<br />

cariocas, está <strong>para</strong> começar na rua Augusta. "Gente, como eu "tô" chique!<br />

Olha o meu estilo pop, super Madonna!", diz Adriana, <strong>de</strong> botas rosa. Ela é<br />

uma das sete prostitutas <strong>de</strong> SP convidadas a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a camisa da grife<br />

criada pela ONG Davida, que tem projetos sociais com garotas <strong>de</strong> programa<br />

do Rio. A Daspu ganhou fama <strong>de</strong>pois que a butique Daslu quis processar a<br />

ONG pela inspiração.(BERGAMO 2006) 156<br />

Para além do movimento <strong>de</strong> prostitutas, a prostituição tem tido uma presença<br />

constante na mídia, seja na forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia dE prostituição infantil, por exemplo, seja na<br />

sua representação em programas televisivos. 157 O fenômeno midiático “Bruna Surfistinha”<br />

explodiu na mídia no ano <strong>de</strong> 2005. Bruna Surfistinha é o nome <strong>de</strong> “guerra” <strong>de</strong> Raquel<br />

153 BERGAMO, Mônica. O mundinho fashion Daspu. Folha <strong>de</strong> São Paulo São Paulo. 11 <strong>de</strong>z 2005 Ilustrada<br />

São Paulo, 2006<br />

154 BERGAMO, Mônica. O mundo é Daspu Folha <strong>de</strong> São Paulo São Paulo, 21 jan 2006. Ilustrada<br />

155 CHAVES, Adriana. Prostituas do Rio criam outra grife. Folha <strong>de</strong> São Paulo São Paulo, 31 mar 2006.<br />

Cotidiano<br />

156 BERGAMO, Mônica. A noite da Daspu na rua augusta. Folha <strong>de</strong> São Paulo. São Paulo. 06 abr 2006.<br />

Ilustrada<br />

157 Nas três últimas telenovelas veiculadas pela Re<strong>de</strong> Globo <strong>de</strong> Televisão, <strong>de</strong>nominadas “novela das oito”<br />

aparece o tema da prostituição. Na telenovela “A senhora do <strong>de</strong>stino”, <strong>de</strong> Aguinaldo Silva, veiculdada nos<br />

anos 2004 e 2005, tivemos a personagem Nazaré Te<strong>de</strong>sco, uma prostitua maléfica interpretada por Renata<br />

Sorrah. Em 2005, na telenovela “América”, <strong>de</strong> Glória Perez, foi tratado en passant o tema da prostituição<br />

quando Ju, personagem <strong>de</strong> Viviane Victorette, uma das dançarinas brasileiras <strong>de</strong> uma boate em Miami,<br />

assumiu também fazer programas além <strong>de</strong> dançar . Na atual novela “Belíssima”, <strong>de</strong> Silvio <strong>de</strong> Abreu, tem sido<br />

abordado o tráfico internacional <strong>de</strong> mulheres. A personagem Taís, interpretada pela atriz Maria Flor vive a<br />

experiência <strong>de</strong> vítima do tráfico sendo obrigada a se prostituir na Grécia.


Pacheco, que se apresenta como ex-garota <strong>de</strong> programa. Sua “fama” teve início com a<br />

produção <strong>de</strong> um blog em que relatava suas experiência <strong>de</strong> prostituta, e que virou sensação<br />

na Internet. Ela lançou o livro O Doce Veneno do Escorpião: o diário <strong>de</strong> uma garota <strong>de</strong><br />

programa, que nos primeiros meses <strong>de</strong> 2006 esteve em primeiro lugar na lista dos mais<br />

vendidos na categoria não ficção. O livro é um <strong>de</strong>poimento coletado e redigido por Jorge<br />

Tarquini:. uma espécie <strong>de</strong> registro <strong>de</strong> suas experiências enquanto prostituta que foram<br />

relatadas no blog, intercaladas com sua história <strong>de</strong> vida. Rachel Pacheco, enquanto ex-<br />

Bruna Surfisitnha, esteve presente em inúmeros programas televisivos, e <strong>de</strong>u entrevistas a<br />

vários jornais e revistas nacionais e internacionais, <strong>para</strong> falar <strong>de</strong> sua experiência <strong>de</strong><br />

prostituta.<br />

4.2. A proposta <strong>de</strong> uma “nova” comunicação<br />

Ao longo dos anos 50, na época em que o “mo<strong>de</strong>lo telegráfico” começa a ganhar<br />

uma posição dominante na reflexão teórica sobre a comunicação, alguns pesquisadores<br />

americanos tentam retomar a partir do zero o estudo do fenômeno da comunicação<br />

interpessoal evitando a abordagem <strong>de</strong> Clau<strong>de</strong> Shannon 158 . Esses pesquisadores, que faziam<br />

parte da escola <strong>de</strong> Palo Alto” 159 , partilham um consenso que se funda numa oposição à<br />

utilização nas ciências humanas do mo<strong>de</strong>lo matemático <strong>de</strong> comunicação, pois consi<strong>de</strong>ram<br />

que esta <strong>de</strong>ve ser estudada nas ciências humanas segundo um mo<strong>de</strong>lo que lhes seja próprio.<br />

Ao elaborarem uma concepção “orquestral” da comunicação 160 , conferindo-lhe uma<br />

158 “A teoria matemática da comunicação por ele proposta em seu livro em 1949 é, portanto, uma teoria da<br />

transmissão [...] Shannon propõe um esquema <strong>de</strong> “sistema geral da comunicação”. Enten<strong>de</strong> por isso uma<br />

ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> elementos: a fonte <strong>de</strong> informação que produz uma mensagem (a fala no telefone), o emissor, que<br />

transforma a mensagem em sinais (o telefone transforma a voz em oscilações elétricas), o canal, que é o meio<br />

utilizado <strong>para</strong> transportar os sinais (cabo telefônico), o receptor , que reconstrói a mensagem a partir <strong>de</strong> sinais,<br />

e a <strong>de</strong>stinação, que é a pessoa (ou coisa) a que a mensagem é enviada. Durante a transmissão, os sinais<br />

po<strong>de</strong>m ser perturbados por ruído (chiado na linha)” (WINKIN, P. 26, 1998).<br />

159 Wikin (2000) <strong>de</strong>staca membros <strong>de</strong> três gerações da escola <strong>de</strong> Palo Alto: Gregory Bateson, Ray<br />

Birddwhistell, Ervin Goffman, D. Jackson, Edward Hall, A Scheflen, P. Watzlawick e Stuart Sigman. A<br />

comunicação <strong>para</strong> estes autores é um processo social permanente que integra múltiplos modos <strong>de</strong><br />

comportamento: a fala, o gesto, o olhar, a mímica, o espaço interindividual.<br />

160 “A analogia da orquestra tem por objetivo mostrar como po<strong>de</strong>mos dizer que cada indivíduo participa da<br />

comunicação, mais do que é a sua origem ou ponto <strong>de</strong> chegada. A imagem da partitura invisível lembra mais<br />

particularmente o postulado fundamental <strong>de</strong> uma gramática do comportamento que cada um utiliza em seus<br />

intercâmbios mais diversos com o outro. É neste sentido que po<strong>de</strong>ríamos falar <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo orquestral da


dimensão pragmática, afastam-se da perspectiva da comunicação no sentido <strong>de</strong> transmissão.<br />

E investem na noção <strong>de</strong> “participação na comunicação”. Segundo Winkin esta noção não é<br />

simples <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r, pois “[...] obriga a superar o quadro <strong>de</strong> interação (indivíduo-indivíduo<br />

ou indivíduo-máquina) <strong>para</strong> alcançar dimensões coletivas e rituais dos processos<br />

comunicacionais; sugere outras espacialida<strong>de</strong>s e temporalida<strong>de</strong>s, situadas além do <strong>aqui</strong>-e-<br />

agora” (1998, p.201).<br />

Na perspectiva <strong>de</strong>sses autores a análise <strong>de</strong> conteúdo, dominante nas teorias da<br />

comunicação, é questionada. Pois, assim como os enunciados da linguagem verbal, as<br />

“mensagens” oriundas <strong>de</strong> outros modos <strong>de</strong> comunicação não têm significação intrínseca,<br />

porque só no con<strong>texto</strong> do conjunto dos modos <strong>de</strong> comunicação, ele próprio relacionado<br />

com o con<strong>texto</strong> da interação, a significação po<strong>de</strong> ganhar forma. Esta abordagem da<br />

comunicação quase nunca está presente nas referências sobre pesquisas em comunicação.<br />

De acordo com Lopes (2001, p. 52), no Brasil, na década <strong>de</strong> 50 do sec. XX, predominaram<br />

as pesquisas funcionalistas da comunicação; entre a década <strong>de</strong> 60 e 70 daquele século as<br />

pesquisas funcionalistas e as pesquisas críticas sobre a indústria cultural; a partir da década<br />

<strong>de</strong> 80 as pesquisas funcionalistas e as pesquisas em comunicação com forte influência<br />

gramsciniana. Valver<strong>de</strong> (2003, p.07) lembra que no registro <strong>de</strong> “crítica da cultura <strong>de</strong><br />

massa”, ou, como ele mesmo afirma, mais recentemente no registro <strong>de</strong> “crítica da cultura<br />

das mídias”, “[...] predominaram as abordagens fundadas na crítica ao imaginário e à<br />

i<strong>de</strong>ologia que seriam veiculados pelos meios <strong>de</strong> comunicação ou a <strong>de</strong>núncia da<br />

subordinação da produção simbólica à lógica da “indústria cultural”. Este foi o caso dos<br />

trabalhos da chamada Escola <strong>de</strong> Frankfurt”. Seria um erro, no entanto, tomar como finda a<br />

presença <strong>de</strong>sta escola na abordagem sobre a “cultura das mídias”; pelo contrário, como<br />

<strong>de</strong>staca o próprio Valver<strong>de</strong>, sua inspiração “encontra-se ainda presente nas pedagogias da<br />

leitura que se propõe a estimular uma recepção crítica, capaz <strong>de</strong> fazer frente à influência<br />

dos meios”.(2003, p.07)<br />

Quando não é o silêncio das teorias da comunicação sobre a corrente pragmática da<br />

comunicação, po<strong>de</strong>mos observar <strong>aqui</strong> ou ali, nas suas diversas obras sobre teorias da<br />

comunicação, breves referências a correntes como o interacionismo simbólico e a<br />

comunicação, em oposição ao “mo<strong>de</strong>lo telegráfico”. O mo<strong>de</strong>lo orquestral equivale, na verda<strong>de</strong> , a ver na<br />

comunicação o fenômeno social que o primeiro sentido da palavra traduzia muito bem,....o pôr em comum, a<br />

participação, a comunhão.”(WIKIN, 1998, p.34)


etnometologia, apresentados como sociologias interpretativas que, ao rejeitarem a análise<br />

do conteúdo e o método das técnicas quantitativas <strong>de</strong> pesquisa como sendo incapazes <strong>de</strong> dar<br />

conta da dimensão subjetiva do processo <strong>de</strong> comunicação, reabilitam o <strong>de</strong>stinatário em sua<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir sentido e <strong>de</strong>senvolver procedimentos <strong>de</strong> interpretação 161 . Ora, as<br />

abordagens das teorias da comunicação que apresentam estas duas correntes como opondo-<br />

se ao mo<strong>de</strong>lo estrutural funcionalista da comunicação, ou ao mo<strong>de</strong>lo matemático da<br />

comunicação, as mantêm presas à universalida<strong>de</strong> do esquema emissor/receptor <strong>de</strong>stacando-<br />

o como fundamento <strong>de</strong> toda a situação comunicativa. Assim, trata-se sempre <strong>de</strong><br />

transmissões intencionais <strong>de</strong> mensagens <strong>de</strong> um lugar <strong>para</strong> outro. Esse, certamente, não é o<br />

caso da etnometodologia, e do interacionismo simbólico porque é exatamente a dicotomia<br />

emissor-receptor ou o esquema emissor- mensagem - receptor que vão ser rejeitados por<br />

estas correntes. Além disso o interacionismo simbólico, quando se apresenta nos estudos<br />

das teorias da comunicação, não é bem interpretado, pois é consi<strong>de</strong>rado uma corrente dos<br />

estudos <strong>de</strong> recepção 162 . Talvez a observação etnográfica das situações <strong>de</strong> comunicação<br />

(procedimento <strong>de</strong> investigação do interacionismo simbólico) leve a confundí-lo com os<br />

estudos <strong>de</strong> recepção que tem como método <strong>de</strong> investigação a etnografia da audiência 163 .<br />

Vamos, ainda, comentar a ausência <strong>de</strong>ssas correntes no âmbito das teorias da<br />

comunicação tomando como referência as consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> França (2002):<br />

161 Sobre esta apresentação do interacionismo simbólico e da etnometodologia no âmbito das teorias da<br />

comunicação ver MATTELART & MATTELART, 2004, p.132-142.<br />

162 Ver Robert Wite (1999, p.42) que em seu artigo Tendências dos Estudos <strong>de</strong> Recepção assim se refere à<br />

abordagem do interacionismo simbólico nas análises dos programas <strong>de</strong> mídia: “A fundamentação <strong>de</strong>sta<br />

corrente da Teoria da Audiência é a <strong>de</strong> que produtores e receptores negociam <strong>para</strong> obter respostas que<br />

coincidam com as intenções <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>les. Os que criam os programas da mídia anseiam por estabelecer<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s buscando a aprovação <strong>de</strong> seus pares e da audiência em forma <strong>de</strong> cartas, telefonemas e comentários<br />

casuais na rua ou, mais indiretamente, por prêmios, pontuações, venda <strong>de</strong> produtos e dados numéricos sobre<br />

audiência. Quer se leve em consi<strong>de</strong>ração o pólo dos produtores <strong>de</strong> mídia ou o pólo dos receptores, o certo é<br />

que, dada a penetração da mídia na vida cotidiana, a importância da negociação na comunicação mediada está<br />

no fato <strong>de</strong> ela estabelecer padrões <strong>para</strong> a <strong>de</strong>finição o alcance e a validação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> na cultura<br />

contemporânea”.<br />

163 “O recurso à etnografia tem, a rigor, significado uma ‘enérgica <strong>de</strong>fesa’ <strong>de</strong> que o estudo das audiências<br />

televisivas se dê em seu cenário doméstico ‘natural’ e <strong>de</strong> que a recepção televisiva seja inserida nas práticas<br />

da vida cotidiana. Mas essa <strong>de</strong>fesa tem na maior parte das vezes se traduzido numa concepção estreita da<br />

etnografia, que se tem transladado aos Estudos Culturais como um mero sinônimo <strong>de</strong> investigação qualitativa.<br />

Enquanto a etnografia tem representado um esforço <strong>de</strong> interpretação da cultura como um sistema semiótico<br />

geral, pelo menos é assim que ela aparece em Geertz, nos estudos <strong>de</strong> recepção ela se torna um mero conjunto<br />

<strong>de</strong> técnicas que possibilitam ao investigador chegar aos receptores. Sobretudo possibilita aos investigadores<br />

chegaram ao ‘espaço doméstico” (GOMES, 2002, p.210).


É interessante registrar o relativo ostracismo a que foram relegadas [...] por<br />

parte dos estudiosos da comunicação – outras concepções e autores (como<br />

A. Schutz, G. Simmel, G. H. Mead e o interacionaimso simbóloico, a escola<br />

<strong>de</strong> Chicago, a Escola <strong>de</strong> Palo Alto) que, numa perspectiva completamente<br />

distinta, enfatizam a natureza interativa das trocas simbólicas, a intervenção<br />

criativa dos homens, o dinamismo inscrito no terreno da experiência e do<br />

vivido, a diversida<strong>de</strong> e pluralismo que marcam as pequenas cenas do<br />

cotidiano. A explicação da pouca importância atribuída a essas<br />

contribuições po<strong>de</strong> ser imputada ao fato <strong>de</strong> que tais autores nadavam contra<br />

a corrente, num século e numa ciência social voltados <strong>para</strong> a construção das<br />

gran<strong>de</strong>s verda<strong>de</strong>s e das generalizações totalizadoras (FRANÇA, 2002,<br />

p.62).<br />

Colocando em xeque esse silêncio po<strong>de</strong>mos encontrar hoje, nos Estados Unidos e<br />

Europa, uma geração <strong>de</strong> antropólogos e sociólogos da comunicação que vêm se <strong>de</strong>dicando<br />

aos estudos da mídia tendo como referência os princípios da Escola <strong>de</strong> Palo Alto, o<br />

interacionismo simbólico e a etnometodologia. Bastante citadas nos estudos, sobre as novas<br />

tecnologias da comunicação são as obras <strong>de</strong> Ervin Goffman, que é apresentado como um<br />

dos representantes do interacionismo simbólico 164 . Winkin, por exemplo, com o espírito<br />

que conformou aquela escola, <strong>de</strong>dica-se a difundir o que ele chama <strong>de</strong> a “nova<br />

comunicação”, concebida como uma instituição social on<strong>de</strong> o ator social “participa <strong>de</strong>la<br />

não com suas palavras, mas também com seus gestos, seus olhares, seus silêncios” (1988,<br />

p.14). E <strong>aqui</strong> aparece a tão apreciada metáfora da orquestra:<br />

Em sua qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> membro <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada cultura, o ator social faz parte<br />

da comunicação, assim como os músicos fazem parte da orquestra. Mas,<br />

nessa vasta orquestra cultural, cada um toca adaptando-se ao outro. Só um<br />

pesquisador da comunicação po<strong>de</strong>rá reconstituir fragmentos <strong>de</strong> partitura,<br />

que se revelarão provavelmente <strong>de</strong> alta complexida<strong>de</strong> (WIKIN, 1998, p.14)<br />

Stéphane Olivesi (1995) faz referência a como o mo<strong>de</strong>lo orquestral da comunicação,<br />

<strong>de</strong>finido por Wikin, sintetiza os pressupostos comuns aos membros da escola <strong>de</strong> Palo Alto e<br />

que, <strong>para</strong>lelamente a este mo<strong>de</strong>lo, se faz prevalecer a idéia segundo a qual as diferentes<br />

formas <strong>de</strong> organização social se estruturam a partir <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> interação que <strong>de</strong>finem<br />

regras e modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> “estar junto”. Estes trabalhos vêm abrir espaços <strong>para</strong> o estudo das<br />

mídias na sua relação com o cotidiano com base em abordagens her<strong>de</strong>iras do pragmatismo<br />

apropriado pela Escola <strong>de</strong> Chicago (que por sua vez fez florescer o interacionsimo<br />

164 Meyerowitz, aliado aos conceitos <strong>de</strong> Goffman, busca compreen<strong>de</strong>r como a “mídia, especialmente a<br />

eletrônica, altera a ‘geografia situacional’ da vida social”(GUIDEENS, 2002, P. 83).


simbólico), da Escola <strong>de</strong> Palo Alto; e da fenomenologia <strong>de</strong> Schutz (que inspirou o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento da etnometodologia). 165<br />

Gostaríamos, agora, <strong>de</strong> fazer referência a um processo comunicativo que envolve<br />

um produto específico <strong>de</strong> comunicação, os “materiais informativos” produzidos pela<br />

Aprosba, e compreen<strong>de</strong>r como estes participam na construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prostitutas<br />

militantes. Consi<strong>de</strong>ramos que o acesso a tal processo po<strong>de</strong> se dar com base,<br />

fundamentalmente, nas interações nas quais os produtos <strong>de</strong> comunicação ganham e<br />

produzem significação. Ou, como propõe Yves Winkin (1998, p.13), investigando “[...]<br />

etnograficamente os comportamentos, as situações, os objetos que, numa comunida<strong>de</strong> dada,<br />

são percebidos como portadores <strong>de</strong> um valor comunicativo”. Antes, porém, <strong>de</strong> nos<br />

embrenharmos nesse campo é importante fazer algumas consi<strong>de</strong>rações sobre as situações<br />

em que tais “materiais” surgem como produto das políticas <strong>de</strong> comunicação<br />

governamentais <strong>de</strong> prevenção da Aids.<br />

4.2.1 As políticas <strong>de</strong> comunicação <strong>para</strong> prevenção da Aids<br />

A televisão, sendo consi<strong>de</strong>rada o mais importante meio <strong>de</strong> transmissão <strong>de</strong><br />

informações no Brasil, atravessa <strong>de</strong> forma mais explícita as diversas camadas da socieda<strong>de</strong><br />

brasileira e une as mais diversas regiões do país. Por essas características, segundo Parker<br />

(1994b, p.106), ela “[...] emergiu como foco natural das campanhas <strong>de</strong> educação e<br />

informação sobre AIDS <strong>de</strong>senvolvidas a nível nacional <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1986. Essas campanhas<br />

foram produzidas por agências <strong>de</strong> propaganda <strong>para</strong> o <strong>Programa</strong> Nacional <strong>de</strong> AIDS do<br />

Ministério da Saú<strong>de</strong>”. Em correspondência ao reconhecimento da força <strong>de</strong> imersão da tv<br />

nos mais diversos segmentos sociais e do papel das campanhas <strong>de</strong> informar e mudar<br />

comportamentos, produziram-se formas <strong>de</strong> monitoramento dos anúncios veiculados. As<br />

críticas das ONGs às campanhas po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>radas o mo<strong>de</strong>lo mais significativo <strong>de</strong>sse<br />

monitoramento.<br />

165 Ver HANS, Joas. Interacionismo simbólico. In:GUIDDENS, Anthony; TURNER , Jonathan.(orgs) Teoria<br />

Social Hoje. São Paulo:Editora UNESP, 1999. Também HERITAGE, John C.. Etnometodologia<br />

In:GUIDDENS, Anthony; TURNER, Jonathan. (orgs) Teoria Social Hoje. São Paulo:Editora UNESP, 1999.


Po<strong>de</strong>ria-se supor que o fenômeno da Aids é apenas um problema <strong>de</strong> domínio da<br />

saú<strong>de</strong> pública. Um olhar atento mostra o quão enganosa é esta suposição: a Aids vai muito<br />

além do domínio da saú<strong>de</strong>, por abarcar uma dimensão verda<strong>de</strong>iramente política que se<br />

constituiu em um campo <strong>de</strong> forças on<strong>de</strong> se mobilizam diferentes atores, que buscam trazer<br />

<strong>para</strong> si o domínio do fenômeno. Essa dimensão política foi marcante <strong>para</strong> a questão da Aids<br />

no último <strong>de</strong>cênio. Assim, os problemas colocados pela Aids <strong>para</strong> as autorida<strong>de</strong>s e a<br />

administração pública tiveram que ser tratados não só como uma questão <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública,<br />

mas também como uma questão política em que se coloca em evidência o po<strong>de</strong>r do Estado<br />

e suas ações.<br />

É importante sublinhar que campanhas públicas são só uma parte das ações <strong>de</strong><br />

prevenção do Estado, mas uma parte muito significativa, pois a mais visível e a mais<br />

exposta. Paicheler (2000) mostra como o engajamento do Estado na prevenção revela essa<br />

ação sob a perspectiva <strong>de</strong> duas ameaças: não apenas a insatisfação da população, mas<br />

sobretudo a <strong>de</strong> grupos significativos, po<strong>de</strong>ndo pesar sobre a opinião pública ou agir<br />

diretamente sobre o Estado, constituindo-se em grupos <strong>de</strong> pressão. Isso <strong>de</strong>monstra que a<br />

comunicação pública é o viés pelo qual o Estado veicula informações, mas não <strong>de</strong>ve ser<br />

encarada, unicamente, sob seu aspecto operacional. Ela se dirige a uma larga audiência que<br />

testemunha o interesse do Estado por um problema particular. E ao extremo, po<strong>de</strong> substituir<br />

a ação.<br />

O Estado não controla as informações difundidas sobre a Aids. Às campanhas se<br />

juntam numerosas mensagens sobre a Aids vindas <strong>de</strong> uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> instituições e<br />

atores, através dos mais variados “meios”. Os discursos difundidos transmitem as<br />

informações sobre a doença, sua evolução, sua transmissão, meios <strong>de</strong> prevenção,<br />

“proscrições e prescrições”, enfim, veiculam uma visão <strong>de</strong> mundo. No entanto, os po<strong>de</strong>res<br />

públicos não <strong>de</strong>sconhecem a potencialida<strong>de</strong> da visibilida<strong>de</strong>. Ela aparece como fundamental,<br />

pois permite que a “opinião pública” “veja” o compromisso que esses po<strong>de</strong>res<br />

estabeleceram em relação à doença, sua orientação, em função <strong>de</strong> suas obrigações. E como<br />

bem assinala Rubim (1994), o “controle e o ten<strong>de</strong>ncial monopólio social do ato <strong>de</strong><br />

publicizar e dar visibilida<strong>de</strong> aparece como um dos novos momentos <strong>de</strong> inscrição do po<strong>de</strong>r”.<br />

As campanhas governamentais <strong>de</strong> prevenção da Aids foram majoritariamente avaliadas por<br />

seus “efeitos”, buscando-se verificar sua eficácia. Como observa Paicheler, primeiro essas


avaliações apresentam-se como uma tarefa escorregadia, pois é impossível se<strong>para</strong>r a<br />

comunicação governamental <strong>de</strong> um con<strong>texto</strong> complexo on<strong>de</strong> numerosas comunicações, a<br />

diferentes níveis, se entrelaçam. Segundo, os efeitos da comunicação <strong>para</strong> prevenção da<br />

Aids não são imediatos; eles só po<strong>de</strong>m ser analisados a longo prazo, sem que seja possível<br />

se<strong>para</strong>r o que po<strong>de</strong> ser atribuído à comunicação pública propriamente dita. Paicheler<br />

ressalta que freqüentemente os estudos dos efeitos da comunicação se fazem através das<br />

sondagens, buscando mensurar a eficácia da mensagem. Procura-se, geralmente, saber se<br />

ela cumpriu seu objetivo, se foi ou não transmitida sem encontrar oposições ou resistências.<br />

O que é importante ressaltar é que as campanhas <strong>de</strong> prevenção da Aids veiculadas<br />

pela televisão 166 , em fins dos anos 80 e nos anos 90 do século XX, colocaram em <strong>de</strong>bate as<br />

estratégias <strong>de</strong> comunicação do governo. Sendo uma doença sexualmente transmissível, <strong>para</strong><br />

a qual não havia perspectivas imediatas <strong>de</strong> se <strong>de</strong>scobrir uma vacina, muito menos cura, a<br />

prevenção <strong>de</strong>sempenhou um papel importantíssimo, assim como encontrou sérias<br />

dificulda<strong>de</strong>s. As campanhas que tiveram como objetivo <strong>de</strong>senvolver estratégias preventivas<br />

foram inicialmente criticadas por não abordarem as formas <strong>de</strong> redução <strong>de</strong> risco <strong>de</strong> uma<br />

maneira clara, e apresentarem a proposta <strong>de</strong> abstinência sexual como a melhor forma <strong>de</strong><br />

prevenção. Aliado a isso sentimentos <strong>de</strong> medo e pânico somados a um <strong>de</strong>sconhecimento da<br />

doença, que borbulhavam no interior da socieda<strong>de</strong> como um fato global, encontraram canal<br />

<strong>de</strong> expressão nessas campanhas. E estas também foram acusadas <strong>de</strong> “gerar imagens<br />

distorcidas da doença e <strong>de</strong> suas vítimas alimentando preconceito e discriminação ao<br />

colocarem em circulação a dimensão simbólica da doença ⎯ traduzida na associação entre<br />

sexualida<strong>de</strong> e morte e em noções como a <strong>de</strong> “grupo <strong>de</strong> risco”. Richard Parker (1994), na<br />

perspectiva <strong>de</strong> uma lógica da abordagem dos efeitos, argumenta que essas campanhas <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> alcance são ineficazes na sua proposta <strong>de</strong> mudança <strong>de</strong> comportamento <strong>de</strong> risco por<br />

serem generalistas, não estando direcionadas a grupos específicos. Distanciam-se, portanto<br />

166 Ver sobre as estratégias das campanhas, governamentais e não governamentais, <strong>de</strong> prevenção a Aids<br />

veiculadas pela televisão brasileira, a dissertação <strong>de</strong> mestrado <strong>de</strong>sta autora, intitulada Da ameaça à sedução:<br />

um estudo sobre as campanhas <strong>de</strong> prevenção da Aids veiculadas pela televisão. No que diz respeito às<br />

campanhas governamentais, esse trabalho faz um estudo <strong>de</strong>ssas campanhas entre os anos <strong>de</strong> 1987 e 1995<br />

analisando a mudança na forma da mensagem veiculada, que passa <strong>de</strong> uma imagem lúgubre da doença <strong>para</strong><br />

uma outra mais <strong>de</strong>scontraída. O estudo mostra como essas campanhas constituíram–se em meios privilegiados<br />

<strong>para</strong> se dar visibilida<strong>de</strong> e observar a trajetória da doença. A partir <strong>de</strong>ssa trajetória, foi possível se dar conta <strong>de</strong><br />

como as transformações da percepção da doença foram acompanhadas pelas abordagens das campanhas, a<br />

natureza <strong>de</strong> seus apelos e como estes respondiam à concepção da doença elaborada pela socieda<strong>de</strong> brasileira.


da “maneira <strong>de</strong> ser” <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado grupo cujo conhecimento é necessário <strong>para</strong> a<br />

produção <strong>de</strong> um “<strong>texto</strong>” que possa ser compartilhado plenamente. Buscando assim alcançar<br />

o “efeito” <strong>de</strong> uma mudança <strong>de</strong> comportamento em relação ao um “comportamento <strong>de</strong><br />

risco”, uma parte da comunicação <strong>para</strong> prevenção da Aids começa a ser direcionada então<br />

<strong>para</strong> a produção <strong>de</strong> materiais informativos dirigidos a grupos específicos, como prostitutas,<br />

por exemplo, que passam a se constituir em uma meta tanto do Ministério da Saú<strong>de</strong> como<br />

das organizações não governamentais que trabalham com a educação <strong>para</strong> prevenção da<br />

Aids. Em 1948, Paul Lazarsfeld e Robert Merton (2002), no clássico trabalho Comunicação<br />

<strong>de</strong> massa, gosto popular e a organização da ação social, já chamavam atenção, no que diz<br />

respeito à propaganda com objetivos sociais, do papel da condição <strong>de</strong> suplementação pelo<br />

contato direto, face a face, <strong>para</strong> o sucesso do efeito da propaganda. Segundo os autores,<br />

“[...] as discussões locais servem <strong>para</strong> reforçar o conteúdo da propaganda <strong>de</strong> massa. Tal<br />

mútua confirmação produz um ‘efeito reiterativo’ (LAZARSFELD; MERTON, 2002,<br />

p.130).<br />

As organizações não governamentais em parceria com as secretarias municipais e<br />

estaduais da saú<strong>de</strong> que <strong>de</strong>senvolveram, ou que ainda <strong>de</strong>senvolvem projetos específicos <strong>para</strong><br />

educação e prevenção das DSTs/AIDS entre mulheres que exercem a prática da prostituição<br />

em Salvador, têm como um dos principais produtos os materiais informativos. Na sua<br />

maioria, estes materiais são produzidos no formato <strong>de</strong> cartilhas, fol<strong>de</strong>rs, folhetos cartazes e<br />

ví<strong>de</strong>os.<br />

4.3. O papel dos materiais informativos produzidos pela Aprosba na construção da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da prostituta militante<br />

Assumimos a pressuposição <strong>de</strong> que a reflexivida<strong>de</strong> é <strong>para</strong> os indivíduos um<br />

mecanismo fundamental nos seus processos <strong>de</strong> construção i<strong>de</strong>ntitária, com a qual a mídia,<br />

no sentido que lhe atribuímos neste trabalho, contribui largamente hoje. Dando um<br />

enquadramento a esta questão, gostaríamos <strong>de</strong> discutir a participação <strong>de</strong> uma mídia<br />

específica, que são os materiais informativos produzidos pela Aprosba no processo <strong>de</strong><br />

construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus membros. Trata-se, como vimos, (da busca <strong>de</strong>


distanciamento) <strong>de</strong> significações marginais que envolvem o universo da prostituição. Estes<br />

materiais são comparáveis aos manuais <strong>de</strong> auto-ajuda, que têm caráter prático e<br />

correspon<strong>de</strong>m a expressões <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> reflexivida<strong>de</strong> que esboçam e ajudam a<br />

conformar. Não preten<strong>de</strong>mos investigar os modos <strong>de</strong> apreensão dos materiais por parte dos<br />

seus “receptores”, nem medir os efeitos que se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>m do consumo <strong>de</strong>ste produto.<br />

Nosso esforço está direcionado à compreensão dos mecanismos através dos quais ele faz<br />

sentido e contribui na construção <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Portanto, não se trata a <strong>aqui</strong> <strong>de</strong> uma<br />

análise <strong>de</strong> trocas <strong>de</strong> mensagens entre um emissor e um receptor, e ainda menos análise do<br />

conteúdo das mensagens trocadas. Procuramos observar comportamentos relacionados a<br />

essa mídia específica.<br />

Consi<strong>de</strong>ramos importante “olhar” o processo <strong>de</strong> produção dos materiais <strong>de</strong>stacando<br />

duas condições: Uma que envolve, no processo <strong>de</strong> produção, vários níveis <strong>de</strong> interação<br />

como a do movimento <strong>de</strong> prostituta da Bahia com as agendas das instituições financiadoras,<br />

principalmente o Ministério da Saú<strong>de</strong>; do movimento com as organizações empenhadas em<br />

questões referentes à violência contra a mulher, prevenção da Aids, e aos direitos e<br />

garantias constitucionais, por exemplo; e do movimento com outras associações <strong>de</strong><br />

prostitutas, além da interação entre seus membros. A outra condição exige um<br />

<strong>de</strong>slocamento da análise <strong>de</strong> conteúdo do material <strong>para</strong> seu “valor” na veiculação/construção<br />

da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do grupo.<br />

Quando os materiais informativos aparecem no con<strong>texto</strong> da comunicação <strong>para</strong> a<br />

prevenção da Aids, eles são <strong>de</strong>finidos como um meio <strong>de</strong> comunicação voltado a um público<br />

específico que tem como objetivo a mudança <strong>de</strong> comportamentos em relação ao<br />

comportamento <strong>de</strong> risco. A Aprosba, como já foi comentado anteriormente, surge ligada a<br />

projetos <strong>de</strong> prevenção das DSTs/Aids <strong>de</strong>senvolvidos por ONGs/Aids, e é uma instituição<br />

que também se mantém, principalmente, através <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> prevenção das DSTs/Aids<br />

voltados <strong>para</strong> mulheres prostitutas. Estes projetos, em sua gran<strong>de</strong> maioria, são financiados<br />

pelo Ministério da saú<strong>de</strong> e mantêm parcerias com instituições internacionais, e secretarias<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> do Estado e do Município. Portanto, um dos resultados <strong>de</strong> suas ações é a produção<br />

dos chamados materiais informativos 167 .<br />

167 Os materiais informativos estão sendo <strong>de</strong>nominados <strong>de</strong> IEC (Informação, Educação, Comunicação)


Des<strong>de</strong> que a Aprosba entrou em funcionamento atrelada a outras instituições, como o<br />

Grupo Gay da Bahia e Grupo Lésbico da Bahia e <strong>de</strong>pois só o GLB foram produzidos<br />

materiais informativos. Neste período as prostitutas membros da Aprosba tinham pouca<br />

ingerência na produção <strong>de</strong>sses materiais. Só quando a Aprosba <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> funcionar atrelada<br />

àquelas instituições, é que passa a <strong>de</strong>finir a concepção dos materiais informativos.<br />

Como Diz Marilene :<br />

A gente cria o conteúdo e a gente tem que ter um profissional, um consultor<br />

pra dizer a gente quer isso assim, assim, assado tal eles vai lá e sabe o que a<br />

gente quer e ele faz uma amostra, o <strong>de</strong>sign gráfico. E a gente vê se<br />

realmente é assim mesmo que a gente quer, que a gente tava pensando. Se<br />

for ok, se não for, senta <strong>de</strong> novo, não é assim e tal, tira isso d<strong>aqui</strong>, bota ali,<br />

enfim. São materiais informativos a<strong>de</strong>quados <strong>para</strong> população específica<br />

mesmo que é mulheres profissionais do sexo. São materiais que à vezes elas<br />

não po<strong>de</strong>m vir <strong>aqui</strong> ter todas as informações e a gente produz, cria esses<br />

material com nossa linguagem mesmo <strong>de</strong> campo e a gente tem uma equipe<br />

<strong>de</strong> educadores que tá nas áreas distribuindo esses material porque já que<br />

elas não po<strong>de</strong>m vir até <strong>aqui</strong> a gente vai até elas e no horário mesmo que ela<br />

não tá trabalhando , tá ali no ponto, tá <strong>para</strong>da po<strong>de</strong> pegar o material e olhar<br />

e vê que é interessante <strong>de</strong>pois procurar a gente e ficar informada e , não vou<br />

dizer assim educar, mas apren<strong>de</strong>r mais,né? Como funciona e a gente<br />

também vai tá agora que era pra gente ter feito que é nosso site. A gente vai<br />

tá, estamos criando e provavelmente a semana que vem a gente vai estar<br />

divulgando nosso site (Informação verbal) 168 .<br />

Da concepção dos materiais participam os “membros” da instituição e ocasionalmente<br />

“agentes externos” que estejam envolvidos no trabalho da instituição. O conteúdo do<br />

material segue diretriz da Re<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Prostitutas, que <strong>de</strong>fine os temas que em um<br />

<strong>de</strong>terminado momento são centrais <strong>para</strong> o movimento. O processo <strong>de</strong> elaboração e <strong>de</strong><br />

reprodução são acompanhados pelas mulheres que fazem os contatos.<br />

O primeiro material concebido pela Aprosba quando já funcionando <strong>de</strong> forma<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, no ano <strong>de</strong> 2001, foi parte do projeto <strong>de</strong> educação <strong>para</strong> prevenção da Aids<br />

entre caminhoneiros <strong>de</strong>nominado “Beira <strong>de</strong> estrada”. O projeto, como já observado, foi<br />

financiado pelo Ministério da Saú<strong>de</strong> e teve a duração <strong>de</strong> dois anos. O seu material foi<br />

produzido em formato <strong>de</strong> Fol<strong>de</strong>r e teve como slogan “Siga em frente com segurança: use<br />

camisinha”. Manteve-se a Logomarca da Aprosba, produzida no período em que a<br />

168 Entrevista dada no dia 23 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2004


associação funcionava junto ao Grupo Lésbico da Bahia. O conteúdo do folheto explica o<br />

que é DST, esclarece sobre algumas <strong>de</strong>las, ensina como se prevenir e como usar a<br />

camisinha. Essas informações geralmente são retiradas <strong>de</strong> outros materiais informativos<br />

produzidos pelo Ministério da Saú<strong>de</strong> ou outras instituições. Como a produção teve o apoio<br />

da Pathfin<strong>de</strong>r do Brasil, uma instituição que financia também alguns <strong>de</strong> seus projetos e com<br />

a qual a Aprosba estabeleceu fortes vínculos, a versão final foi levada <strong>para</strong> a apreciação da<br />

instituição que a aprovou <strong>de</strong> imediato.<br />

Figura 2: Fol<strong>de</strong>r do projeto “Beira <strong>de</strong> estrada”<br />

O material traz uma interessante associação <strong>de</strong> imagens que remetem ao universo do<br />

caminhoneiro, como a estrada em perspectiva e sinalizada, e uma placa cujo centro mostra<br />

uma seta indicando “siga em frente” que é a representação <strong>de</strong> uma camisinha.<br />

Na seqüência, como um produto do projeto “Quando a noite cai”, foi produzido um<br />

cartaz que tem como slogan: “Nenhuma profissão está escrita na testa, a Aids também não.<br />

Previna-se, use camisinha


Figura 3: Cartaz do projeto “Quando a noite cai”<br />

O cartaz apresenta a imagem <strong>de</strong> cinco mulheres e dois homens com faixas na testa<br />

indicando as seguintes profissões e ocupações: médica, advogado, prostituta, policial, dona<br />

<strong>de</strong> casa , michê, secretária. Os mo<strong>de</strong>los que aparecem no cartaz são prostitutas ligadas a<br />

Aprosba e membros do Grupo Gay da Bahia. O cartaz é sempre referido por Gabriela Leite,<br />

Fátima, e Marilene como o material expressivo do movimento associativista <strong>de</strong> prostituta,<br />

pois coloca em questão o assumir uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Retomando as falas <strong>de</strong> Gabriela Leite e<br />

Fátima presentes no segundo capítulo <strong>de</strong>sta investigação <strong>de</strong>stacamos:<br />

Gabriela -[...] um cartaz que a gente tem, até lá na, na associação do Rio, lá<br />

no Davida, é um cartaz que eu acho que é fenomenal, das meninas, aquele<br />

que tá todo mundo com aquelas fitinhas na testa né? Isso, isso, isso,<br />

prostituta e essa coisa toda né? Eu sei qual foi o processo <strong>de</strong>las fazerem<br />

esse cartaz, sentadas num bar, pensaram esse cartaz, então eu acho isso é<br />

muito legal, né? Uma transa forte da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> profissional que não é fácil,<br />

não tô dizendo que é fácil, foi difícil pra mim, é difícil pra todo mundo tal,<br />

mas eu acho que é por aí que a gente vai trabalhando.(Informação verbal) 169<br />

Fátima .A gente, por exemplo, a gente tem aquele que tem assim:<br />

“Nenhuma profissão está escrita na testa”. Eu acho muito legal, assim,<br />

principalmente da Aprosba porque a gente faz exatamente direcionado <strong>para</strong><br />

o nosso público que é profissional do sexo. Eu por exemplo não concordo<br />

com muito cartaz que eu vejo por aí, do Ministério. Ele não faz um cartaz<br />

assim....ele só faz pra socieda<strong>de</strong>, então o nosso, a gente mostra mesmo, é<br />

169 Entrevista realizada durante o I Seminário Nor<strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Sustentabilida<strong>de</strong> das Ações <strong>para</strong> Profissionais do<br />

Sexo realizado no período <strong>de</strong> 15 a 17 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 20004, em Salvador .


prostituta, é uma coisa mesmo direcionada pra prostituta. Então muda<br />

muito. Hoje eu tava conversando com uma pessoa que disse: “Esse cartaz tá<br />

muito bom”. Eu tô com uma faixa <strong>de</strong> prostituta na testa, Marilene tá <strong>de</strong><br />

polícia, Andréia <strong>de</strong> secretária, Celina tá <strong>de</strong> médica, uma coisa assim. E ela<br />

diz: “Ninguém <strong>aqui</strong> se parece com nada”. E eu disse: “A Aids também não.<br />

Por isso nenhuma profissão está escrita na testa”. Por isso esse cartaz ficou<br />

muito bom. A gente coloca ele <strong>de</strong>ntro das casas <strong>de</strong> prostituição, e tem nossa<br />

cara. Eu acho que é muito importante a gente fazer um parecido com a<br />

gente mesmo, com a cara da gente. Que fica muito mais visível assim.<br />

Diferente do que o ministério faz. Que ele faz pra socieda<strong>de</strong>, ele não faz pra<br />

prostituta.<br />

“Camisinha não esqueça: na batalha este ainda é o melhor programa”. Este é o slogan<br />

<strong>de</strong> um outro fol<strong>de</strong>r produzido em 2002 e <strong>de</strong>stinado às prostitutas, com informações sobre a<br />

camisinha feminina e como usá-la. Ele chama a atenção <strong>para</strong> as vantagens da camisinha<br />

feminina <strong>para</strong> quem “batalha” e o papel da Aprosba na sua distribuição: “A camisinha tem<br />

muitas vantagens <strong>para</strong> as mulheres profissionais do sexo. Quem nunca usou é só praticar e<br />

logo se acostuma. Isso é fácil. Afinal você é uma profissional. Agora na batalha, você vai se<br />

sentir mais segura e protegida. Experimente! Seja experta! Previna-se das DST/AIDS.” Foi<br />

acoplada ao fol<strong>de</strong>r uma camisinha feminina . Também foram incluídas informações sobre a<br />

camisinha masculina.<br />

Figura 4: O uso da camisinha masculina e camisinha feminina


A imagem <strong>de</strong>sse material, um conjunto <strong>de</strong> camisinhas coloridas e sobrepostas, indica a<br />

prevenção das DST/AIDS, mas po<strong>de</strong> ser interpretada como direcionada <strong>para</strong> o público em<br />

geral. O que vai dar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> ao material como <strong>de</strong>stinado à prostituta é exatamente seu<br />

slogan: “Na batalha, este ainda é o melhor programa”.<br />

Na seqüência foi produzido um outro fol<strong>de</strong>r que apresenta a seguinte “chamada”:<br />

“História <strong>de</strong> uma organização que luta pelo direito à igualda<strong>de</strong>”. Este material veicula<br />

informações sobre a Aprosba: sua “missão”, “ativida<strong>de</strong>s”, as vantagens das associadas e<br />

parcerias. O objetivo da comunicação é divulgar o trabalho da Aprosba entre os mais<br />

diversos grupos <strong>de</strong> prostituição <strong>de</strong> Salvador e <strong>de</strong> vários municípios do Estado Ele<br />

“inaugura” a marca da Aprosba, ou seja sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> visual. A instituição passa a ser<br />

nomeada não mais <strong>de</strong> Associação das Profissionais do Sexo da Bahia, mas Associação das<br />

Prostitutas da Bahia.<br />

Este material veiculou informações sobre a Aprosba, como: sua “missão”, “ativida<strong>de</strong>s”,<br />

as vantagens das associadas e parcerias<br />

Figura 5: Fol<strong>de</strong>r institucional<br />

Este fol<strong>de</strong>r é estritamente institucional, pois o seu objetivo é divulgar o trabalho da<br />

Aprosba. Nada no informativo diz respeito à prevenção das DST/AIDS, principal tema dos<br />

materiais até então. A marca da Aprosba sobressai sobre uma imagem noturna da orla <strong>de</strong>


Salvador, mais epecificamente da Barra e do Farol da Barra. Como estes são locais já<br />

reconhecidos como <strong>de</strong> prática da prostituição, e o título do projeto ao qual o fol<strong>de</strong>r está<br />

vinculado é “Quando a noite cai”, buscou-se uma imagem que tivesse relação com ele.<br />

Vale a pena algumas consi<strong>de</strong>rações sobre a marca da Aprosba. De acordo com Clotil<strong>de</strong><br />

Perez (2004, p.47), “As marcas se expressam, se dão a ver, se mostram <strong>de</strong> diversas<br />

maneiras, com o objetivo <strong>de</strong> potencializar seus efeitos <strong>de</strong> sentido. “O objetivo é estabelecer<br />

uma conexão ⎯ e se esta for emocional, tanto melhor”. A marca, ainda <strong>de</strong> acordo com a<br />

autora “[...] é uma espécie <strong>de</strong> ‘máquina’ <strong>de</strong> produzir significações e, nesse sentido, opera na<br />

construção <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado locus social” (PEREZ, 2004, p. 15).<br />

Figura 6: Marca da Aprosba<br />

O logotipo (que promove o acesso imediato ao universo representativo da marca) é uma<br />

representação pictórica, que compõe a marca e que po<strong>de</strong> ser verbalizada (o nome da<br />

marca). No caso da marca da Aprosba o tipo <strong>de</strong> letra, sua cor vermelha suavemente<br />

contornada em branco e preto, e sua forma sinuosa chamam a atenção principalmente<br />

quando relacionados à logomarca, uma representação visual estilizada na figura <strong>de</strong> uma<br />

boneca carregando uma bolsinha (símbolo da prática da prostituição que remete à expressão<br />

“rodando a bolsinha”) É uma marca “alegre”, divertida, po<strong>de</strong>-se dizer. A boneca com ar<br />

maroto e as cores vivas seduzem. Há <strong>aqui</strong> uma coerência entre o discurso organizacional e<br />

sua expressivida<strong>de</strong> simbólica? Acreditamos que sim. Se a as práticas institucionais da<br />

Aprosba se voltam permanentemente <strong>para</strong> a superação <strong>de</strong> uma significação marginal que<br />

envolve o ser prostituta, a positivida<strong>de</strong>, a “alegria”e a ludicida<strong>de</strong>, elementos constitutivos<br />

da marca, expressam muito bem o “espírito da instituição”, potencializando os seus<br />

esforços.


Um outro material produzido pela instituição, em 2003, é uma cartilha que tem como<br />

tema a “cidadania” e se intitula Cartilha da cidadania. O <strong>texto</strong> introdutório afirma que as<br />

informações contidas na cartilha po<strong>de</strong>m ajudar as prostitutas a “exercer melhor sua<br />

cidadania” além <strong>de</strong> divulgar o trabalho da Aprosba, sua “missão”, listando as ativida<strong>de</strong>s<br />

que <strong>de</strong>senvolve. Na parte sobre direitos e <strong>de</strong>veres há um <strong>texto</strong> sobre os direitos da<br />

prostituta, sobre documentos necessários e como obtê-los, sobre a discriminação, abuso <strong>de</strong><br />

autorida<strong>de</strong>, violência praticada contra as mulheres e como evitá-la. Um espaço é também<br />

<strong>de</strong>stinado às informações sobre saú<strong>de</strong>: prevenção das DST/AIDS, locais <strong>de</strong> atendimento.<br />

Além <strong>de</strong> informações sobre o câncer <strong>de</strong> mama, câncer do colo <strong>de</strong> útero e como evitá-los, e<br />

também sobre stress, ou seja, doenças que até então não tinham sido foco da instituição.<br />

Uma outra parte da cartilha é <strong>de</strong>stinada a informações <strong>de</strong> caráter lúdico relacionadas à<br />

música, culinária baiana, orixás e horóscopo.<br />

Figura 7: Cartilha da cidadania<br />

Sob um fundo rosa choque está a marca da Aprosba em tom prata. Abaixo aparece o<br />

título também em prata e caixa alta: “Cartilha da cidadania”. O formato do material remete<br />

à imagem <strong>de</strong> um passaporte. Aliás esta é a intenção, já que tenta expressar a idéia <strong>de</strong><br />

“passaporte <strong>para</strong> a cidadania”. Este é o material com conteúdo mais diversificado da


instituição, já fica <strong>para</strong> trás, <strong>aqui</strong>, a estreita vinculação da instituição com a questão da<br />

prevenção da Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis. Temas relacionadas aos<br />

direitos e <strong>de</strong>veres da prostituta ganham relevância.<br />

Os materiais informativos são distribuídos nas reuniões, nos locais <strong>de</strong> atuação da<br />

Aprosba, em encontros, seminários, eventos, e entre visitantes.<br />

Observamos que os materiais produzidos pela Aprosba, quando atrelada ao Grupo Lésbico<br />

da Bahia, tinham como foco central a saú<strong>de</strong>. A partir <strong>de</strong> 2001, com a Aprosba funcionando<br />

<strong>de</strong> forma in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, observa-se nos materiais uma mudança progressiva do foco da<br />

saú<strong>de</strong> <strong>para</strong> “direitos e <strong>de</strong>veres”, e “cidadania”. Gabriela Leite comenta que esta é uma<br />

tendência do movimento associativo <strong>de</strong> prostitutas, ou seja, buscar vincular <strong>de</strong> forma mais<br />

estreita o movimento às questões “mais políticas”, <strong>de</strong> fortalecimento da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>ixando a saú<strong>de</strong> em segundo plano.<br />

Gabriela Leite fala <strong>de</strong>ssa mudança:<br />

Hoje em dia eu acho o seguinte: que todas as associações têm que ter o seu<br />

próprio material que tem uma cara, na cida<strong>de</strong> e tudo o mais . Que tenha o<br />

folheto com a missão certinho, tal , porque isso mostra que a associação,<br />

que as pessoas que fazem parte da associação estão sabendo o que estão<br />

fazendo e mostra pra socieda<strong>de</strong> o que que é que aquela associação faz e<br />

isso é fundamental. Com relação aos materiais específicos pra prevenção <strong>de</strong><br />

Aids eu acho que hoje em dia não precisa fazer mais nada, só tem que<br />

aproveitar coisas antigas e modificar <strong>para</strong> coisas mais novas, mas não<br />

precisa fazer mais nada. Depois tem sido feito muito material, muito<br />

material, e muitos inclusive que não têm muito a ver enten<strong>de</strong>u? Por<br />

exemplo, eu acho que a campanha nacional (ver dados no site do ministério<br />

da saú<strong>de</strong>) a campanha nacional da “Maria sem vergonha” que nós ajudamos<br />

a fazer, que nós botamos lá nossa colher é uma campanha vitoriosa 170 .<br />

Porque você vê a “Maria sem vergonha” em tudo quanto é canto, ela tá em<br />

tudo quanto é canto, todo muito gosta <strong>de</strong>la tal. Então eu acho que essa<br />

história....aquela, aquela ca<strong>de</strong>rnetinha faz muito sucesso no mundo da<br />

prostituição. E foi muito difícil fazer aquela ca<strong>de</strong>rneta junto com o<br />

ministério porque a gente queria botar outros assuntos além da Aids, como<br />

nós conseguimos botar, né? E ela faz sucesso exatamente por isso, porque<br />

ela fala.... e tem até aquela, aquela no final....que tem aquela agendinha<br />

on<strong>de</strong> as pessoas botam o que ganhou no dia, faz as suas continhas que é<br />

muito importante pras prostitutas, não é? É útil <strong>de</strong>mais. Porque prostituta,<br />

por conta do estigma, sempre ela diz: ah, o dinheiro da gente é maldito, né?<br />

Ganha hoje, gasta hoje, é, mas o problema não é esse, que o que as pessoas<br />

ganham por mês a puta ganha por dia, não é? Então tem que ter uma<br />

170 Ver o primeiro capítulo <strong>de</strong>ste estudo na seção “O movimento <strong>de</strong> prostitutas na Brasil.


fórmula, um controle diário. Então a gente fez aquele negocinho <strong>para</strong><br />

controle diário e tal Então táva muito sucesso aquela cartilha, eu acho que<br />

se tem que reeditar alguma coisa, tem que se reeditar aquela cartilha eee<br />

com coisas mais mo<strong>de</strong>rnas e tal, tá? E agora não precisa também tentar<br />

mais inventar a roda, né? Porque muitas coisas já foram feitas, né? Inventar<br />

a roda eu acho que é bobagem. Agora que cada um tenha o seu material<br />

próprio, da sua associação, e tudo o mais, eu acho o máximo. (Informação<br />

verbal) 171<br />

Ela explica porque alguns materiais ainda têm como tema predominante a saú<strong>de</strong>:<br />

Existe financiamento <strong>para</strong> temas que não seja a Aids. A gran<strong>de</strong> questão é<br />

que as pessoas se atêm muito ao programa <strong>de</strong> Aids. O programa <strong>de</strong> Aids se<br />

você for ver lá toda a história do que que......o que nós conseguimos. Nas<br />

várias reuniões em Brasília e tudo o mais. O que que nós colocamos como<br />

principal questão: se a prostituta está se assumindo, se ela é uma pessoa que<br />

acredita na organização da sua classe ela vai se prevenir melhor da Aids.<br />

Então você po<strong>de</strong> botar no folheto do Ministério se quiser, porque nós, nós<br />

que <strong>de</strong>cidimos isso, enten<strong>de</strong>u? Nós agora, passamos por um edital do<br />

ministério e que, que era um edital nacional e um projeto nacional que nós<br />

fizemos, que é <strong>de</strong> fortalecimento da re<strong>de</strong> on<strong>de</strong> a questão da Aids aparece<br />

quase não aparece e nosso projeto foi aprovado, certo? Foi aprovado, mas<br />

assim, a gente fala assim: fortalecer o Beijo, fazer o site da re<strong>de</strong>, tá tudo lá.<br />

Dar mais atenção às meninas das cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fronteiras.(Informação<br />

verbal) 172<br />

Mas, como surge um material informativo? Vamos relatar duas experiências. A<br />

primeira foi em uma reunião na se<strong>de</strong> da Aprosba, que foi agendada com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

discutir o material informativo do projeto “Beira <strong>de</strong> Estrada”. Estavam presentes<br />

coor<strong>de</strong>nadora geral, a coor<strong>de</strong>nadora adjunta, a secretária, esta pesquisadora, o grupo<br />

sugeriu slogans <strong>para</strong> o primeiro material informativo produzido pela Aprosba<br />

“in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”. Numa espécie <strong>de</strong> colagem foi-se juntando a idéia <strong>de</strong> um, <strong>de</strong> outro até se<br />

chegar a um consenso sobre o que se queria. Finalmente o slogan “Siga em frente com<br />

segurança: use camisinha” agradou a todos. A elaboração gráfica ficou sob a<br />

responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um web<strong>de</strong>signer que realizou o trabalho <strong>de</strong> forma voluntária. Ele<br />

apresentou duas versões bastante interessantes que as mulheres receberam, juntaram parte<br />

171 Entrevista realizada durante o I Seminário Nor<strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Sustentabilida<strong>de</strong> das Ações <strong>para</strong> Profissionais do<br />

Sexo realizado no período <strong>de</strong> 15 a 17 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 20004, em Salvador .<br />

172 Ver nota 179


<strong>de</strong> uma com a parte <strong>de</strong> outra e as transformaram em um outro produto. O web<strong>de</strong>signer<br />

manifestou um certo <strong>de</strong>sagrado com o resultado<br />

A segunda experiência que acompanhamos se <strong>de</strong>u <strong>de</strong> forma inesperada. Estávamos em<br />

um banquinho na sala da Aprosba quando Marilene, Fátima e o assessor <strong>de</strong> comunicação<br />

retornaram do almoço o assessor sentaram ao nosso redor. Em um outro canto da sala,<br />

sentadas em almofadas estavam a coor<strong>de</strong>nadora <strong>de</strong> finanças e secretária, que ficaram a nos<br />

observar e fazer comentários entre si. Do grupo on<strong>de</strong> nós estavámos surgiu a conversa<br />

sobre a higiene dos hotéis do centro on<strong>de</strong> as mulheres fazem seus programas. Uma das<br />

coor<strong>de</strong>nadoras <strong>de</strong>screveu esses hotéis, <strong>de</strong> forma divertida, como lugares com total ausência<br />

<strong>de</strong> higiene. Os lençóis não são trocados, e as toalhas também não. Uma <strong>de</strong>las <strong>de</strong>monstrou,<br />

<strong>de</strong> forma caricatural, como enxuga o corpo todo com papel higiênico sob o olhar curioso do<br />

cliente. Os banheiros, quando existem, são precários: o sabão po<strong>de</strong> vir em forma <strong>de</strong> uma<br />

gran<strong>de</strong> barra, on<strong>de</strong> as mulheres tiram um pedaço, usam e pregam o restante. Geralmente o<br />

ralo está entupido fazendo com que a água, ao invés <strong>de</strong> escorrer, suba até os tornozelos da<br />

pessoa. Entre muitas gargalhadas, uma das mulheres simulava a posição preferida do ato<br />

sexual consi<strong>de</strong>rada por ela a mais higiênica, por não ficar muito em contato com o corpo do<br />

cliente; já, a outra simulava a sua preferida. “Fazer em pé” é uma das opções <strong>para</strong> evitar a<br />

cama com lençóis sujos. A partir <strong>de</strong>ssas <strong>de</strong>scrições carregadas <strong>de</strong> bom humor surgiu, por<br />

parte <strong>de</strong> Marilene, a idéia <strong>de</strong> fazer da higiene um tema <strong>para</strong> o próximo material<br />

informativo. Como estava sendo cobrado por parte da Coor<strong>de</strong>nação Estadual <strong>de</strong> DST/Aids<br />

um material “diferente” que não tivesse o formato tradicional <strong>de</strong> fol<strong>de</strong>rs ou cartilhas, a idéia<br />

foi bem aceita, mesmo porque, segundo uma das presentes, as mulheres não lêem mesmo.<br />

Assim elas pensaram em produzir um Kit higiene <strong>para</strong> “os programas”, que estaria aliando<br />

informação e tendo uma função utilitária: um tipo <strong>de</strong> necessaire contendo toalha, sabonete<br />

e saboneteira com a marca da Aprosba. Nesta marca, no entanto, <strong>de</strong>veria ser incluído um<br />

elemento que remetesse à higiene. Assim surgiu a idéia <strong>de</strong> se inserir a logomarca da<br />

Aprosba em uma toalha. Desta foram, através <strong>de</strong> um produto <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> se estaria<br />

divulgando a idéia <strong>de</strong> que a higiene é necessária <strong>para</strong> se manter a saú<strong>de</strong>, e também se<br />

estaria divulgando a imagem da instituição.<br />

As mulheres estavam preocupadas e irritadas porque a Coor<strong>de</strong>nação Estadual <strong>de</strong><br />

DST/Aids havia distribuído uma nota dizendo que, em concordância com as diretrizes do


<strong>Programa</strong> Nacional <strong>de</strong> DST e Aids do Ministério da saú<strong>de</strong>, estaria implementando nova<br />

política <strong>para</strong> elaboração <strong>de</strong> materiais informativos realizados pelas ONGs e financiados<br />

pela CE/DST/Aids/SESAB 173 . Segundo elas, essa política tolheria a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> criação<br />

dos materiais, pois elas ficariam presas às concepções <strong>de</strong> materiais da instituição<br />

financiadora. Esta questão no remete àquelas condições <strong>de</strong> produção dos materiais a que<br />

nos referimos anteriormente, que <strong>de</strong>stacam os vários níveis <strong>de</strong> interação que formam uma<br />

re<strong>de</strong> em que a Aprosba é só um dos nós e que, <strong>de</strong> uma certa forma, encaminham um certo<br />

conteúdo que <strong>de</strong>ve ser difundido. No ano 2005, quando foram divulgadas as normas dos<br />

órgãos financiadores <strong>para</strong> a produção <strong>de</strong> materiais informativos, a Aprosba estava<br />

finalizando seus projetos, e <strong>de</strong> lá até o ano <strong>de</strong> 2006 não <strong>de</strong>senvolveu nenhum que<br />

contemplasse a produção <strong>de</strong> informativos.<br />

Se nos afastamos <strong>de</strong> uma análise dos conteúdos que são veiculados pelos materiais, ou<br />

<strong>de</strong> um estudo <strong>de</strong> sua recepção por um <strong>de</strong>terminado grupo, e nos <strong>de</strong>temos em uma análise<br />

dos con<strong>texto</strong>s que tornam possível ou não a sua circulação, talvez possamos melhor<br />

compreen<strong>de</strong>r o papel dos materiais informativos no jogo das interações que produzem<br />

outras significações <strong>para</strong> a prostituição, e esclarecer a natureza da relação da instituição<br />

com tais materiais Embora as prostitutas, a quem tais materiais se <strong>de</strong>stinam, saibam muito<br />

pouco sobre o seu conteúdo, elas percebem que eles são “importantes” e sempre se<br />

movimentam no sentido <strong>de</strong> obtê-los. Por outra lado, se concebermos, numa perspectiva dos<br />

estudos dos efeitos da comunicação, que a função <strong>de</strong>sses materiais é a <strong>de</strong> “modificar<br />

comportamentos” <strong>de</strong> risco em relação as DST/Aids, ou informar sobre “direitos e <strong>de</strong>veres”<br />

veremos que esta expectativa é inócua, pois concordamos com Paicheler (2000) quando<br />

esta afirma que medir os efeitos <strong>de</strong> um produto é uma tarefa escorregadia. Mas se pensamos<br />

na interação que não se resume a uma troca <strong>de</strong> mensagens entre um emissor e um receptor,<br />

e ainda menos ao conteúdo das mensagens trocadas (como nos sugere a “nova<br />

comunicação”) percebemos que se instaura uma certa dinâmica on<strong>de</strong> os materiais ganham<br />

173 O conteúdo do comunicado:“Todos os materiais como fol<strong>de</strong>rs, cartazes e outros que tenham por finalida<strong>de</strong><br />

a educação em saú<strong>de</strong> e conhecimento e informação sobre prevenção as DST/HIV/Aids, promoção a saú<strong>de</strong> e<br />

direitos humanos entre outros, <strong>de</strong>vem conter necessariamente referências ao locais <strong>de</strong> atendimento do SUS no<br />

município e região. Todos os materiais produzidos <strong>de</strong>vem Ter aprovação técnica por meio escrito da<br />

CE/DST/Aids informando as questões técnicas <strong>de</strong> qualificação da informação contida, respeitando a<br />

linguagem própria <strong>de</strong> cada população alvo, <strong>de</strong> criativida<strong>de</strong> da proposta. O não cumprimento dos dois<br />

requisitos incorrerá no in<strong>de</strong>ferimento da prestação <strong>de</strong> contas e não pagamento da nota fiscal correspon<strong>de</strong>nte<br />

por parte da SESAB”


significações. Consi<strong>de</strong>rando tal perspectiva, o que está em jogo na relação das militantes<br />

com os materiais?<br />

O objetivo expresso pelas militantes em relação ao papel dos materiais, numa<br />

perspectiva normativa, é obter um <strong>de</strong>terminado efeito — que é a mudança <strong>de</strong><br />

comportamento em relação à informação sobre DST/Aids e direitos e <strong>de</strong>veres da prostituta.<br />

No entanto não se tem evidências, ou pelo menos nada permite sustentar uma tese <strong>de</strong> uma<br />

relação causal em que o que esteja jogo seja, primordialmente, uma mudança <strong>de</strong><br />

comportamento daqueles a quem os materiais se <strong>de</strong>stinam. Mas, muito mais a constituição<br />

<strong>de</strong> um espaço <strong>de</strong> representação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> militante que envolve a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

prostitua em significações mais positivas. Esta mídia, portanto, expressa a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

um grupo (militantes) <strong>de</strong> apropriação, elaboração, e expressão <strong>de</strong> um conhecimento formal,<br />

saberes estes valorizados, constituindo-se em um meio <strong>de</strong> integração. E também <strong>de</strong><br />

subjetivação, pois a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> elaboração implica um reconhecimento mútuo da<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada indivíduo <strong>de</strong> se constituir como sujeito. A mídia registra o espírito que<br />

move o grupo, situando-o em relação às não militantes, às outras associações e a um centro<br />

que formula os princípios do movimento (a Re<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Prostitutas). Ela comunica a<br />

militantes da Aprosba e aos “outros” a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />

Buscamos nos aproximar o máximo possível da significação dos materiais, indo além<br />

do significado atribuído a eles previamente, e isto implicou conhecer o mundo on<strong>de</strong> estes<br />

materiais ganham corpo e significação.


CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

IDENTIDADE AMBÍGUA: REFAZENDO O PERCURSO<br />

O objetivo <strong>de</strong>sta tese foi fazer uma análise do processo <strong>de</strong> construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

da prostituta militante da Aprosba, buscando compreen<strong>de</strong>r como um processo <strong>de</strong><br />

organização, com as subjetivida<strong>de</strong>s e as condições objetivamente colocadas, po<strong>de</strong> concorrer<br />

<strong>para</strong> a construção <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> coletiva. Foi proposta uma abordagem teórico-<br />

metodológica que <strong>de</strong>stacasse o processo comunicacional, seja interpessoal ou midiático, na<br />

conformação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, pois consi<strong>de</strong>ramos que as dimensões simbólicas e imaginárias<br />

que configuram as relações humanas se sustentam na e pela comunicação. Observamos<br />

como os atores produzem e tratam a informação nas trocas e como utilizam a linguagem<br />

enquanto recurso. Isto implicou efetuar uma análise das ações cotidianas dos agentes<br />

envolvidos nas ativida<strong>de</strong>s da instituição tomando como referência a perspectiva <strong>de</strong>stes<br />

agentes.<br />

Buscamos atravessar o labirinto em que se constituíram os dados coletados no<br />

trabalho <strong>de</strong> campo orientados pela constatação <strong>de</strong> que o se assumir prostituta é o maior<br />

<strong>de</strong>safio <strong>para</strong> a prostituta militante, e que este é um processo gradativo, ancorado nas<br />

práticas institucionais, principalmente as comunicativas. Mostramos como as práticas<br />

institucionais— compreendidas como os procedimentos, normas e regras inerentes ao<br />

funcionamento <strong>de</strong> uma instituição — foram apreendidas e produzidas em um incessante<br />

aprendizado, em que as militantes construíram a si produzindo novas práticas, argumento<br />

que percorreu todo o nosso trabalho.<br />

Delineamos um caminho, on<strong>de</strong> inicialmente consi<strong>de</strong>ramos que a lógica monetária<br />

mediando a relação sexual produz uma significação marginal da prática da prostituição; no<br />

entanto, salientamos o processo <strong>de</strong> ressignificação que envolve qualquer fenômeno social,<br />

no caso a prática da prostituição. Neste sentido privilegiamos as abordagens da prostituição<br />

que atualizam o tema (que é focalizado <strong>de</strong> forma predominante tanto como resposta a uma<br />

situação <strong>de</strong> miséria econômica, quanto transgressão a uma or<strong>de</strong>m moral vigente), adotando<br />

uma outra perspectiva que concebe tal prática como um espaço diferenciado <strong>de</strong> circulação


dos fluxos <strong>de</strong>sejantes, <strong>de</strong> manifestações <strong>de</strong> outra forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, espaço on<strong>de</strong> se<br />

estabelecem diferentes códigos <strong>de</strong> vivências e convivências, <strong>de</strong> emoções e afetivida<strong>de</strong>s.<br />

Em um primeiro momento tentamos apresentar uma narrativa que resgatasse a<br />

dinâmica do movimento <strong>de</strong> prostitutas no Brasil, e por sua vez o surgimento da Aprosba.<br />

Com este objetivo ressaltamos a luta do movimento associativista <strong>de</strong> prostitutas no<br />

Brasil, que busca instaurar uma outra or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> significação da prostituição, tendo como<br />

li<strong>de</strong>rança Gabriela Leite. Destacamos, por um lado, como uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> estigmatizada<br />

<strong>de</strong> prostituta emerge como o gran<strong>de</strong> problema a ser enfrentando pelo movimento <strong>de</strong><br />

prostituta no Brasil. Por outro lado, mostramos que este problema dificultou, mas não foi<br />

um impedimento à instituição <strong>de</strong> um processo em que a imagem <strong>de</strong>preciada da prostituta<br />

foi sofrendo modificações na re<strong>de</strong>finição do seu papel social, proporcionando o<br />

rompimento com várias representações negativas relacionadas à prática da prostituição.<br />

Exploramos o fato <strong>de</strong> como a questão da Aids entrou na pauta <strong>de</strong> discussão do<br />

movimento <strong>de</strong> prostitutas, indicando o modo como a constituição das associações esteve<br />

ligada aos problemas oriundos do surgimento da Aids e às discussões sobre as formas <strong>de</strong><br />

contágio do vírus HIV. Mostramos como os projetos <strong>para</strong> a prevenção das DST/Aids<br />

entre mulheres prostitutas, <strong>de</strong>senvolvidos por organizações não governamentais em<br />

parceria com o Ministério da Saú<strong>de</strong>, (que fez um gran<strong>de</strong> investimento objetivando uma<br />

maior sensibilização em relação ao uso da camisinha por parte das mulheres que<br />

trabalham com a prostituição), se constituíram em base <strong>para</strong> o surgimento <strong>de</strong> várias<br />

associações no Brasil, inclusive da Aprosba. Evi<strong>de</strong>nciamos <strong>aqui</strong> a emergência <strong>de</strong> duas<br />

li<strong>de</strong>ranças: Fátima Me<strong>de</strong>iros e Marilene Silva.<br />

Abordamos o percurso da Aprosba <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua fundação, atrelada ao Centro Baiano<br />

Anti-Aids e ao Grupo Lésbico da Bahia, até se tornar uma instituição in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e com<br />

parceiros fundamentais. Salientamos a adoção <strong>de</strong> uma postura ativa <strong>de</strong> suas li<strong>de</strong>ranças<br />

envolvendo as suas ações no que diz respeito a uma dinâmica da militância. Apresentamos<br />

o funcionamento interno da instituição, <strong>de</strong>stacando o processo <strong>de</strong> se tornar membro da<br />

instituição, os padrões <strong>de</strong> conduta e <strong>de</strong>sempenho que participam <strong>de</strong>ste processo <strong>de</strong><br />

pertencer e permanecer na instituição, tendo como base as reflexões <strong>de</strong> Strauss (1999) sobre<br />

esta questão.


Na narrativa da formação da Aprosba focalizamos a condição objetiva e uma<br />

dimensão subjetiva da formação e <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma instituição, nas quais estão<br />

imbricadas as experiências <strong>de</strong> Marilene e Fátima, <strong>de</strong>stacando como a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stas<br />

militantes e <strong>de</strong> outras que vão se tornar membros constituem-se a partir <strong>de</strong> uma prática e<br />

aprendizados permanentes.<br />

Dando seguimento à apreensão da construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da militante, através <strong>de</strong><br />

um olhar sobre as práticas institucionais, discutimos a comunicação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

estigmatizada, tendo como referência o pensamento <strong>de</strong> Goffman (1988), que analisa a<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> estigmatizada através dos conceitos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal e<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do eu, e dá um relevo especial ao tratamento da informação. Mostramos como o<br />

controle da informação sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> tem um significado importante nas relações e<br />

implica o uso <strong>de</strong> técnicas por parte do estigmatizado, a fim <strong>de</strong> manipular a informação<br />

sobre si, o que Goffman (1988) chamou <strong>de</strong> encobrimento, e como isso se dá com as<br />

prostitutas <strong>de</strong> um modo geral. Fazendo referência à carreira moral (uma noção <strong>de</strong> Goffman)<br />

das militantes da Aprosba, vimos que o encobrimento aparece como uma fase <strong>de</strong> sua<br />

socialização anterior à militância (como é o das não militantes hoje); no entanto,<br />

consi<strong>de</strong>rando as ambivalências que marcam a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prostitua militante,<br />

i<strong>de</strong>ntificamos um processo <strong>de</strong> acobertamento (noção <strong>de</strong> Goffman). Nesta situação o<br />

objetivo do indivíduo é reduzir a tensão, ou seja, tornar mais fácil <strong>para</strong> si mesmo e <strong>para</strong> os<br />

outros uma relação dissimulada co o estigma, e manter um envolvimento espontâneo no<br />

conteúdo público da interação. Consi<strong>de</strong>ramos como mulheres ligadas ao movimento <strong>de</strong><br />

prostitutas po<strong>de</strong>m lançar mão da militância <strong>para</strong> se acobertarem, ou, como a própria<br />

militância ten<strong>de</strong> a acobertar o estigma quando a mulher se<strong>para</strong>, no seu discurso, a militância<br />

da prática <strong>de</strong> “fazer programas”.<br />

Consi<strong>de</strong>ramos que a mídia é o lugar <strong>de</strong> apresentação da militante, on<strong>de</strong> as ambivalências<br />

relacionadas ao “se assumir” são tornadas invisíveis, ao mesmo tempo em que este é um espaço que serve ao<br />

acobertamento, na medida em que <strong>de</strong>staca os elementos que envolvem a militância ficando a questão da<br />

prática da prostituição relegada a um segundo plano, o que salienta a idéia <strong>de</strong> que o status atribuído àqueles<br />

que têm espaço na mídia po<strong>de</strong> também <strong>de</strong>sviar a atenção do estigma.<br />

Ao mesmo tempo que buscamos <strong>de</strong>stacar o papel das práticas institucionais na construção da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> militante, através <strong>de</strong> uma análise dos percursos <strong>de</strong> Marilene e Fátima, tentamos i<strong>de</strong>ntificar os<br />

elementos–chave da ascensão <strong>de</strong>ssas li<strong>de</strong>ranças. Para tanto foi necessário localizar essa trajetória no campo <strong>de</strong>


possibilida<strong>de</strong>s oferecido a elas e a outros indivíduos com a mesma disposição (habitus, numa alusão a<br />

Boudieu) e mesma posição social. Ainda, através do progresso da carreira moral captado nas narrativas das<br />

duas militantes, pu<strong>de</strong>mos acessar as versões sobre o surgimento do movimento <strong>de</strong> prostituta na Bahia.<br />

Finalmente tecemos algumas consi<strong>de</strong>rações sobre as trajetórias <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> Marilene e Fátima, tendo como<br />

base a noção <strong>de</strong> reflexivida<strong>de</strong>, e a idéia <strong>de</strong> projeto reflexivo do eu, que daí <strong>de</strong>riva, <strong>de</strong>senvolvidas por Anthony<br />

Gid<strong>de</strong>ns (1989; 1993; 2002). Consi<strong>de</strong>ramos que a reflexivida<strong>de</strong> é <strong>para</strong> os indivíduos um mecanismo<br />

fundamental nos seus processos <strong>de</strong> construção i<strong>de</strong>ntitária, e que conforma o eu das li<strong>de</strong>ranças Fátima e<br />

Marilene. Na narrativa <strong>de</strong>ssas duas militantes <strong>de</strong>stacamos o projeto reflexivo do eu que envolve uma<br />

reconstrução emocional do passado, <strong>para</strong> projetar uma narrativa coerente em direção ao futuro no qual<br />

po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar um marco nas suas trajetórias, <strong>de</strong> um antes e um <strong>de</strong>pois. Este marco é expresso pela<br />

apropriação <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> saberes e práticas institucionais, incluindo aí o uso da mídia como uma prática<br />

relevante, pois compreen<strong>de</strong> um espaço privilegiado <strong>de</strong> uma narrativa reflexivamente or<strong>de</strong>nada do eu. Por<br />

outro lado, as narrativas mostraram também como a auto-i<strong>de</strong>ntificação com a militância esteve em estreita<br />

relação com outros elementos das práticas institucionais - como tarefas que <strong>de</strong>vem ser executadas, interações<br />

com pessoas concretas das mais diferentes categorias, força, equilíbrio, disciplina - e não se constituiu apenas<br />

como um movimento reflexivo do sujeito. Ou seja, foi fundamental um saber fazer que só se sabe fazendo,<br />

interagindo.<br />

As situações relacionadas à vitimização, à violência, à profissionalização da<br />

prostituição, ao nomear, ao saber formal, à aparência, se <strong>de</strong>stacaram <strong>de</strong> forma recorrente<br />

durante nossa observação <strong>de</strong> campo. Assim nos <strong>de</strong>dicamos a analisar as relações que<br />

militantes e não militantes estabelecem. com tais situações, e evi<strong>de</strong>nciamos o processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>snaturalização <strong>de</strong>stas relações por parte das militantes. Conduziu nossa análise,<br />

principalmente, a idéia <strong>de</strong> sistema <strong>de</strong> relevância elaborada por Schutz (1979).<br />

Em um último momento discutimos os usos da mídia pela Aprosba como prática<br />

institucional, e como esta prática é um elemento fundamental na construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> militante. A atenção a este elemento permitiu compreen<strong>de</strong>r a relação que se constrói<br />

com a mídia na sua dupla natureza: <strong>de</strong> integração, portanto, <strong>de</strong> normalização <strong>de</strong> um lado; e<br />

<strong>de</strong> espaço <strong>de</strong> auto-reflexivida<strong>de</strong> biográfica, portanto, <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outro lado.<br />

Consi<strong>de</strong>ramos, então, a presença da mídia na construção reflexiva do eu, ou seja, da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />

A preocupação com tópicos da comunicação em situações <strong>de</strong> interação face-a-face<br />

está presente na obras <strong>de</strong> Goffman das quais nos apropriamos <strong>aqui</strong>. Gostaríamos <strong>de</strong><br />

ressaltar a importância da obras do autor na nossa intenção <strong>de</strong> explorara imbricação entre<br />

sociologia e comunicação, e as vantagens da análise interacionista <strong>para</strong> um estudo dos


processos <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Sua obra A representação do eu na vida cotidiana<br />

(2003), por exemplo, é bastante referenciada nos estudos sobre as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s que se<br />

constroem em espaço <strong>de</strong> interação <strong>de</strong> uma outra natureza que se constitui com as novas<br />

tecnologias <strong>de</strong> comunicação (a comunicação mediada por computador), pois consi<strong>de</strong>ra-se<br />

que neste espaço a representação do eu assume um caráter dramatúrgico, nos mecanismos<br />

<strong>de</strong> manifestação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> interação com o outro, muito mais potencializado que<br />

nas interações face-a face.<br />

Goffman (1999) ao analisar as formas <strong>de</strong> manipulação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> na vida social<br />

sob a perspectiva da representação, compreen<strong>de</strong> o indivíduo como um ator que representa<br />

um personagem baseado na construção <strong>de</strong> uma máscara, que é resultado da manipulação <strong>de</strong><br />

sua imagem social. Esse papel, segundo o autor, é representado em um palco <strong>para</strong> outros<br />

personagens e <strong>para</strong> uma platéia, que são as pessoas com quem se estabelece interação ou<br />

ligação e que também representam um papel, e têm expectativas em relação aos<br />

personagens que o indivíduo representa. No enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Goffman (199) o indivíduo<br />

manifesta a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e características <strong>de</strong> sua personalida<strong>de</strong> <strong>para</strong> as outras pessoas<br />

através do controle <strong>de</strong> informações a seu respeito, e da manipulação da impressão que essas<br />

informações causam ao outro. Neste sentido, no que diz respeito à nossa pesquisa pu<strong>de</strong>mos<br />

acompanhar nas ações da prostituta esse tenso e conflituoso processo, que diz respeito à<br />

comunicação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> estigmatizada. Ficou marcada no nosso trajeto a<br />

compreensão <strong>de</strong> que a linguagem acaba sendo o locus por excelência da negociação social<br />

dos significados e da <strong>de</strong>finição das situações sociais.<br />

Apesar da referência às obras “iniciais” <strong>de</strong> Goffman, não <strong>de</strong>sconhecemos a inegável<br />

contribuição dos últimos livros do autor <strong>para</strong> o campo <strong>de</strong> estudos <strong>de</strong> mídia, da comunicação<br />

e da antropologia: Frame analysis (1974), Gen<strong>de</strong>r advertisements (1979) e Forms of Talk<br />

(1981) estão no nosso horizonte <strong>de</strong> interesse <strong>para</strong> um estudo posterior sobre mídia e<br />

construção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, que preten<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>senvolver com base nas idéias inicialmente<br />

lançadas no quarto capítulo <strong>de</strong>sta investigação.<br />

Para finalizar gostaríamos <strong>de</strong> nos reportar a Sahllins (2003, p.12), que <strong>de</strong> forma<br />

instigante, sugere a possibilida<strong>de</strong> — que, segundo ele, é raramente consi<strong>de</strong>rada nas ciências<br />

sociais — <strong>de</strong> “[...] que tipos <strong>de</strong> ações usuais po<strong>de</strong>m precipitar formas sociais, ou vice-versa.


Nas ciências sociais geralmente damos priorida<strong>de</strong> às formas sociais sobre as práticas a elas<br />

associadas, e apenas nessa direção: o comportamento dos grupos envolvidos <strong>de</strong>rivando <strong>de</strong><br />

uma relação preexistente”. 174 É nesta perspectiva que tentamos localizar as reflexões <strong>aqui</strong><br />

apresentadas sobre o processo <strong>de</strong> construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> militante por parte <strong>de</strong><br />

prostitutas membros da Aprosba. Ao consi<strong>de</strong>rar a militância (enquanto conjunto <strong>de</strong> práticas<br />

e <strong>de</strong> idéias normatizadas) como meio <strong>de</strong> superação da prostituição, enquanto forma cultural<br />

envolvida em uma significação marginal, mostramos como as militantes da Aprosba na<br />

apropriação e produção das práticas institucionais (que se dá no processo <strong>de</strong> interação)<br />

foram elaborando uma outra significação da prostituição, que possibilitou a prostituta sair<br />

das sombras, atrair as luzes sobre si, e questionar o sentido <strong>de</strong> uma forma social, mesmo<br />

que através <strong>de</strong> ações prenhes <strong>de</strong> ambigüida<strong>de</strong>s.<br />

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174 Em relação a essa idéia Sahlins (2003, p.12) nos oferece o seguinte exemplo: “A amiza<strong>de</strong> produz o auxílio<br />

material: o relacionamento normalmente (e normativamente) prescreve um modo apropriado <strong>de</strong> interação.<br />

Entretanto se os ‘ amigos criam presentes’, ‘os presentes também criam amigos’, ou talvez como melhor<br />

diriam os esquimós, ‘dádivas criam escravos — como chicotes criam cachorros”


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SAHLINS, Marshall. Ilhas <strong>de</strong> história. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 2003.<br />

SCHIAVO, Ruiz Márcio. Preservativo masculino: Hoje mais necessário do<br />

que nunca!. Brasília: Ministério da Saú<strong>de</strong>, 1997.<br />

SCHUTZ, Alfred. Fenomenologia e relações sociais. Tradução <strong>de</strong> Ângela Melin. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Zahar Editores, 1979.


SIMMEL, George. Filosofia do amor Tradução <strong>de</strong> Luís Eduardo <strong>de</strong> Lima Brandão. São<br />

Paulo: Martins Fontes, 1993.<br />

SONTAG, Susan. Aids e suas metáforas. Tradução <strong>de</strong> Paulo Henriques Brito. São Paulo:<br />

Companhia das Letras, 1989.<br />

SOUSA, Francisca Ilnar. O cliente: o outro lado da prostituição. São Paulo: Annablume,<br />

2000.<br />

STRAUSS, ANSELM L. Espelhos e máscaras: A busca <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Tradução Geraldo<br />

Gerson <strong>de</strong> Souza. São Paulo: Editora da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1999.<br />

SURFISTINHA, Bruna. O doce veneno do escorpião: o diário <strong>de</strong> uma garota <strong>de</strong> programa.<br />

São Paulo: Panda Books, 2005.<br />

THOMPSON, John. B. A mídia e a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>: uma teoria social da mídia. Tradução <strong>de</strong><br />

Wagner <strong>de</strong> Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1999.<br />

QUADROS et al.. Radio web: uma experiência na UTP. XXVII Congresso Brasileiro <strong>de</strong><br />

Ciências da Comunicação, Anais, Porto Alegre, 2004. CD- ROM<br />

RUSSO, Gláucia. Rodando a bolsinha: dinheiro e relações <strong>de</strong> prostituição. Tese Doutorado<br />

em Cultura e Socieda<strong>de</strong>, 137f. <strong>Programa</strong> <strong>de</strong> <strong>Pós</strong>-Graduação em Ciências Sociais/UFRN,<br />

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VALVERDE, Monclar. Experiência e comunicação. Textos <strong>de</strong> cultura e<br />

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VALVERDE, Monclar. Recepção e sensibilida<strong>de</strong>. In: VALVERDE, Monclar (Org.). As<br />

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WACQUANT, Loïc. Corpo e alma: etnografia <strong>de</strong> uma aprendiz <strong>de</strong> boxe. Tradução <strong>de</strong><br />

Ângela Ramalho. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Relume Dumará, 2002.<br />

WINKIN, Yves. A nova comunicação: Da teoria ao trabalho <strong>de</strong> campo. São Paulo: Papirus,<br />

1998.<br />

WOLF, Naomi. The beauty Myth.Londres: Vintage, 1990.


Filmes<br />

A BELA da tar<strong>de</strong>. Título original: La Belle <strong>de</strong> jour. Direção: Luis Buñuel. Produção: Henri<br />

Baum, Raymond Haklim e Robert Hakim. Five Film/Paris Film. Distribuição: Miramax<br />

Film. Roteiro Luis Buñuel e Jean-Clau<strong>de</strong> Carrière, baseado no livro e Joseph Kossel.<br />

Duração 100 min., França, 1967.<br />

BELLINE e a esfinge. Direção Roberto Santucci. Produção: Theodoro Fontes e Tony<br />

Bellotto. Estúdio: AFrodisia Flores produções Ltda. Roteiro Alexandre Plosk, baseado no<br />

livro <strong>de</strong> Tony Belloto. Tempo <strong>de</strong> duração: 120 min., Brasil, 2001.


BONEQUINHA <strong>de</strong> luxo. Direção: Blake Edwards. Produção: Martin Jurow e Richard<br />

Sepherd. Estúdio: Paramount Pictures. Roteiro: George Axelrod, baseado no livro <strong>de</strong><br />

Truman Capote. Tempo <strong>de</strong> duração: 115 min, França, 1961.<br />

CIDADE baixa. Direção <strong>de</strong> Sérgio Machado. Produção: Maurício Andra<strong>de</strong> Ramos e Walter<br />

Salles. Estúdio: Ví<strong>de</strong>o Filmes Roteiro Sérgio Machado e Karim Aiouz. Tempo <strong>de</strong> duração<br />

93 min., Brasil, 2005.<br />

KLUTE o passado con<strong>de</strong>na. Direção <strong>de</strong> Alan J. Pakula. Produção: Alan J. Pakula e David<br />

Langs. Estúdio: Warner Bros. Roteiro: Dave Lewis. Tempo <strong>de</strong> duração: 114 min., EUA,<br />

1971.<br />

UMA linda Mulher. Título original: Pretty Woman. Direção <strong>de</strong> Garry Marshall. Produção:<br />

Aron Milchan e Steven Reuther. Estúdio: Touchstone Pictures. Roteiro: J. F. Lawton.<br />

Tempo <strong>de</strong> duração: 119 min., EUA, 1990.<br />

VIVER a vida. Título original: Vivre sa vie Direção <strong>de</strong> Jean-Luc Godard. Produção Pierre<br />

Braunberger. Roteio: Jean Luc Godard adaptado do livro <strong>de</strong> Marcel Sacotte.. Tempo <strong>de</strong><br />

duração: 85 min., França, 1962. Distribuição Magnus Opus DVD.<br />

ANEXO


Figura 8: Maria sem vergonha-<br />

Figura 10: Clientes<br />

Figura 9: Manual do multiplicador


Figura 11: A<strong>de</strong>sivo<br />

Figura 12: Ca<strong>de</strong>rneta

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