17.04.2013 Views

mulheres do amazonas na narrativa dos viajantes - GT Nacional de ...

mulheres do amazonas na narrativa dos viajantes - GT Nacional de ...

mulheres do amazonas na narrativa dos viajantes - GT Nacional de ...

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

MULHERES DO AMAZONAS NA NARRATIVA DOS VIAJANTES<br />

Antônio Emilio Morga *<br />

No <strong>de</strong>correr <strong>do</strong> século XIX a vila e, posteriormente, a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ma<strong>na</strong>us<br />

recebeu a visita <strong>de</strong> vários <strong>viajantes</strong> estrangeiros. Entre eles, engenheiros, militares,<br />

<strong>na</strong>turalistas, médicos, mercenários e aventureiros e que nela estiveram por diferentes<br />

motivos. E registraram, em uma série <strong>de</strong> relatos, suas impressões sobre Ma<strong>na</strong>us e sobre<br />

as práticas sociais <strong>do</strong>s seus habitantes.<br />

Não po<strong>de</strong>mos per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista que estas <strong>na</strong>rrativas foram escritas para leitores<br />

que não eram os habitantes da localida<strong>de</strong> <strong>de</strong>scrita, nem que as imagens que construíram<br />

das <strong>mulheres</strong> <strong>de</strong>correram <strong>de</strong> valores éticos provenientes <strong>de</strong> outra vivência cultural. Este<br />

fato é relevante <strong>na</strong> medida em que também possibilita pensarmos que os <strong>viajantes</strong> eram<br />

<strong>na</strong>rra<strong>do</strong>res para um público <strong>de</strong> leitores cujas condutas são regidas por princípios morais<br />

e estéticos que a princípio diferenciavam-se das práticas <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> da população<br />

<strong>de</strong> Ma<strong>na</strong>us.<br />

Também i<strong>de</strong>ntificamos algumas características <strong>na</strong>s falas <strong>do</strong>s <strong>viajantes</strong><br />

estrangeiros que tivemos a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a<strong>na</strong>lisar. Temas que <strong>de</strong>correram <strong>de</strong> suas<br />

observações das práticas afetivas no cotidiano das <strong>mulheres</strong> <strong>de</strong> Ma<strong>na</strong>us. Entre estes<br />

* Professor <strong>do</strong> Departamento <strong>de</strong> História e <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Pós – Graduação/UFAM<br />

1


VI Simpósio Nacio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> História Cultural<br />

Escritas da História: Ver – Sentir – Narrar<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Piauí – UFPI<br />

Teresi<strong>na</strong>-PI<br />

ISBN: 978-85-98711-10-2<br />

temas <strong>de</strong>stacamos alguns pontos que contribuíram para que os <strong>viajantes</strong> elaborassem um<br />

conjunto <strong>de</strong> imagens da mulher ma<strong>na</strong>uara.<br />

No conjunto <strong>de</strong> imagens perscrutadas sobre as <strong>mulheres</strong> <strong>de</strong> Ma<strong>na</strong>us há uma<br />

reincidência <strong>de</strong> imagens encontradas nos relatos <strong>do</strong>s <strong>viajantes</strong>. Imagens estas que, em<br />

vários relatos retratam a mulher ma<strong>na</strong>uara num quadro on<strong>de</strong> são caracterizadas como<br />

“filhas livres da <strong>na</strong>tureza”, “elegantes”, “bem vestidas”, “faceirice selvagens”,<br />

“<strong>na</strong>mora<strong>de</strong>iras”, “andam nuas, até muito crescidas”, “sereias escuras”, “educadas”,<br />

“corpo elástico”, “mães <strong>de</strong>dicadas”, “vagavam para cima e para baixo,<br />

<strong>de</strong>sembaraçadamente”, “uma gran<strong>de</strong> negligência”, “<strong>mulheres</strong> muito fáceis <strong>de</strong><br />

contentar”, “sentimento <strong>de</strong> pu<strong>do</strong>r”, “jovem fusca das florestas”, “meni<strong>na</strong>s quietas”, e<br />

“mistura <strong>de</strong> três raças”. Retratadas pelas cores branca, amarela, parda, escura e até ao<br />

mais profun<strong>do</strong> preto africano, os <strong>viajantes</strong> nos revelam, <strong>na</strong>s entrelinhas <strong>do</strong>cumentais, o<br />

pouco contato que tiveram com as <strong>mulheres</strong> brancas e, quan<strong>do</strong> o fizeram estavam no<br />

seio familiar das mais distintas da cida<strong>de</strong>.<br />

Observamos que estes temas são características que permeiam as falas <strong>do</strong>s<br />

<strong>viajantes</strong> ao registrarem as práticas afetivas das <strong>mulheres</strong> <strong>de</strong> Ma<strong>na</strong>us no <strong>de</strong>correr <strong>do</strong>s<br />

séculos XVIII e XIX.<br />

LER, SENTIR E NARRAR<br />

O calor cedia lentamente seu espaço para a chuva que fi<strong>na</strong>lmente começava a<br />

chegar. O Rio Negro e Solimões escorriam faceiramente pelas terras <strong>do</strong> Amazo<strong>na</strong>s.<br />

Após o término da missa <strong>de</strong> <strong>do</strong>mingo, <strong>na</strong> igreja Matriz, não se falava outra coisa. O<br />

gran<strong>de</strong> baile espalhava-se pelas bucólicas esqui<strong>na</strong>s ma<strong>na</strong>uaras. O sol tinha rei<strong>na</strong>va<br />

solenemente sobre a floresta, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> dias <strong>de</strong> chuva, e nesse ambiente a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Ma<strong>na</strong>us, <strong>na</strong> sua inquietu<strong>de</strong>, fervilhava entre cochichos. To<strong>do</strong>s comentavam e esperavam<br />

ansiosos pela noite <strong>de</strong> 5 <strong>de</strong> novembro.<br />

E <strong>na</strong> noite <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> baile <strong>na</strong>s ruas escuras ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> palácio iam surgin<strong>do</strong><br />

grupos <strong>de</strong> pessoas apressadas andan<strong>do</strong> a pé, com seus lampiões acesos a ilumi<strong>na</strong>r as<br />

ruas escuras da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ma<strong>na</strong>us.<br />

2


VI Simpósio Nacio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> História Cultural<br />

Escritas da História: Ver – Sentir – Narrar<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Piauí – UFPI<br />

Teresi<strong>na</strong>-PI<br />

ISBN: 978-85-98711-10-2<br />

No trajeto até a casa <strong>do</strong> gover<strong>na</strong><strong>do</strong>r, on<strong>de</strong> aconteceria o baile, o casal francês<br />

Agassiz observa: Aqui e ali, pelo caminho, viam-se, num canto <strong>de</strong> rua, surgir <strong>do</strong> escuro<br />

uma toalete <strong>de</strong> baile saltan<strong>do</strong> com cuida<strong>do</strong> por cima <strong>de</strong> poças <strong>de</strong> lama 1 formadas pela<br />

chuva que caia em abundancia no começo da noite.<br />

O salão ilumi<strong>na</strong><strong>do</strong> por gran<strong>de</strong>s lampiões, as corti<strong>na</strong>s aveludadas no tom azul<br />

escuro e branco que cintilavam <strong>na</strong> penúria da bucólica ilumi<strong>na</strong>ção, formava um<br />

ambiente com ares romântico. Em to<strong>do</strong>s os lugares que a vista alcançava viam-se<br />

olhares entrecruzan<strong>do</strong>-se. Ouviam-se sussurros ditos em segre<strong>do</strong>s e os gestos langui<strong>do</strong>s<br />

<strong>de</strong> amabilida<strong>de</strong>s preenchia o salão. Foi <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa atmosfera que o casal <strong>de</strong> <strong>viajantes</strong><br />

Luiz e Elizabeth Cary Agassiz teceram comentários sobre a toilettes femini<strong>na</strong>.<br />

Entretanto, quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s já haviam chega<strong>do</strong>, observei que nenhum<br />

<strong>do</strong>s vesti<strong>do</strong>s sofrera seriamente com a caminhada. Era gran<strong>de</strong> a<br />

varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> toaletes; sedas e cetins roçavam-se com lãs e musseli<strong>na</strong>s,<br />

e os rostos mostravam todas as to<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>s, [...]. 2<br />

Cerimoniosa e cheia <strong>de</strong> etiquetas, a socieda<strong>de</strong> ma<strong>na</strong>uara <strong>do</strong> século XIX<br />

perfilava nos seus salões distinções e regras precisas sobre o comportamento feminino<br />

repletos <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>s e modas.<br />

As damas, ao chegarem, vão sentar-se em fila <strong>na</strong>s banquetas colocadas<br />

ao longo das pare<strong>de</strong>s <strong>do</strong> salão <strong>de</strong> danças. De tempos em tempos, um<br />

cavalheiro avança corajosamente até essa formidável linha <strong>de</strong><br />

encantos femininos e diz algumas palavras; [...]. 3<br />

Entretanto, só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algum tempo, quan<strong>do</strong> o sorriso farto ressoava nos<br />

<strong>de</strong>lica<strong>do</strong>s e cheirosos ouvi<strong>do</strong>s e o olhar a per<strong>de</strong>r-se pelos fetiches <strong>do</strong> salão em música,<br />

com o calor <strong>do</strong> champanhe a ruborizar o rosto e o corpo a balançar suavemente é que a<br />

festa começa a tor<strong>na</strong>-se realmente alegre. 4 Neste auge da festa, senhoras e senhoritas<br />

sorriem enquanto verificavam os <strong>de</strong>talhes da toilettes e gesticulavam <strong>de</strong>scontraidamente<br />

e os jovens e maduros cavalheiros <strong>de</strong>sfilavam pelos quatro cantos <strong>do</strong> salão a <strong>de</strong>monstrar<br />

1 LOUIS, Agassiz. Viagem ao Brasil: 1865 – 1866 [por] Luiz Agassiz e Elizabeth Cary Agassiz.<br />

Tradução <strong>de</strong> João Etienne Filho. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São<br />

Paulo, 1975, p. 174.<br />

2 Ibid., p. 174<br />

3 Ibid., p. 174.<br />

4 Ibid., p. 174<br />

3


VI Simpósio Nacio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> História Cultural<br />

Escritas da História: Ver – Sentir – Narrar<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Piauí – UFPI<br />

Teresi<strong>na</strong>-PI<br />

ISBN: 978-85-98711-10-2<br />

sua virilida<strong>de</strong>, romantismo, sedução e sociabilida<strong>de</strong>. A graciosida<strong>de</strong> e a amabilida<strong>de</strong> das<br />

<strong>mulheres</strong> com os cavalheiros chamaram atenção <strong>do</strong> casal <strong>de</strong> <strong>viajantes</strong>,<br />

Nos melhores salões europeus tais eloqüências femini<strong>na</strong>s não eram <strong>de</strong><br />

bom tom. Contu<strong>do</strong> as brasileiras se divertiam com os gracejos que<br />

corriam soltos. Tu<strong>do</strong> isso entre taças <strong>de</strong> champanhe servi<strong>do</strong> quente. 5<br />

E foi preocupa<strong>do</strong> com que consi<strong>de</strong>rou excessivos sorrisos e sussurros<br />

femininos que o cronista criticou <strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>l um grupo <strong>de</strong> senhoras e<br />

senhoritas, que além <strong>do</strong> luxo <strong>de</strong>monstravam benevolências sinuosas conforme seu olhar<br />

perscrutou.<br />

atitu<strong>de</strong>s? 6<br />

Gran<strong>de</strong> foi a animação e luxo no Gran<strong>de</strong> Baile. As mais distintas<br />

famílias ma<strong>na</strong>uaras presentes. As senhoras e senhoritas <strong>na</strong> ocasião<br />

com toilettes e jóias resplen<strong>do</strong>rosas. Não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> perceber<br />

que algumas senhoras e senhoritas se excediam em amabilida<strong>de</strong>s com<br />

cavalheiros, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte se suas esposas ou preten<strong>de</strong>nte estivessem<br />

presente.<br />

E fi<strong>na</strong>liza sua nota questio<strong>na</strong>n<strong>do</strong>: não seria hora <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rar <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>das<br />

No mesmo jor<strong>na</strong>l, <strong>na</strong> sessão Fatos, um mora<strong>do</strong>r da cida<strong>de</strong>, que assi<strong>na</strong>va com o<br />

amigo da moralida<strong>de</strong> questio<strong>na</strong>va a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma jovem senhora no baile.<br />

Pergunta-se. O que fazia o mari<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma jovem esposa que alegre<br />

pelo champanhe trocava olhares, sussurros, sorrisos com um senhor,<br />

respeita<strong>do</strong> comerciante, sem se importar com a presença <strong>de</strong> sua<br />

esposa e filhas presente no baile. Acorda antes que os cornos<br />

cresçam <strong>de</strong>mais.<br />

O século XIX difundia, através <strong>do</strong>s seus agentes, a pedagogia das<br />

sensibilida<strong>de</strong>s e da urbanida<strong>de</strong>. A urbe <strong>de</strong>s<strong>de</strong> perío<strong>do</strong> emprestava uma série <strong>de</strong> imagens<br />

e representações sobre “estar e ser” <strong>na</strong> sociabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> cotidiano. As intervenções<br />

pedagógicas se processavam sobre o urbano, a cida<strong>de</strong> se mo<strong>de</strong>lava transforman<strong>do</strong> a<br />

paisagem e os indivíduos.<br />

Os novos equipamentos <strong>de</strong> urbanida<strong>de</strong>, cordialida<strong>de</strong>, sociabilida<strong>de</strong> e<br />

afetivida<strong>de</strong> requeriam cuida<strong>do</strong>s nos manuseios <strong>do</strong>s seus instrumentos. O recém-mun<strong>do</strong><br />

5 Ibid., p. 174.<br />

6 Apud, DIAS, Ednea Mascaranhas. A ilusão <strong>do</strong> Fausto (1890-1920). Ma<strong>na</strong>us: Valer, 1999, p. 167.<br />

4


VI Simpósio Nacio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> História Cultural<br />

Escritas da História: Ver – Sentir – Narrar<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Piauí – UFPI<br />

Teresi<strong>na</strong>-PI<br />

ISBN: 978-85-98711-10-2<br />

público cria<strong>do</strong> e recria<strong>do</strong> constantemente favorece os encontros e o cultivo <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>s.<br />

A sensibilida<strong>de</strong> empresta ao momento a profusão <strong>de</strong> todas as imagens que o olhar opera<br />

no seu <strong>de</strong>slocamento. Necessário, portanto, dizia os moralistas, era o condimento das<br />

atitu<strong>de</strong>s e <strong>do</strong>s gestos.<br />

Na proa <strong>de</strong> uma chala<strong>na</strong>, o francês Robert Avé-Lallemant se aproxima da<br />

cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ma<strong>na</strong>us. Um luar opaco tor<strong>na</strong>va as formas da floresta ainda mais misteriosas;<br />

tão intrigante e instigante quanto à indiferença da população cabocla que encontrou <strong>na</strong>s<br />

beiradas <strong>do</strong>s barrancos que margeavam o rio Negro e Solimões.<br />

Nunca esqueci os estranhos grupos <strong>de</strong> pé, <strong>na</strong> beira da margem, as<br />

crianças inteiramente nuas e os adultos meio vesti<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong>s com a<br />

mesma expressão <strong>de</strong> indiferença, to<strong>do</strong>s com a mesma cara, homens,<br />

<strong>mulheres</strong>, crianças! 7<br />

E <strong>na</strong> medida em que a chala<strong>na</strong> <strong>de</strong>slizava suavemente pelas águas <strong>do</strong> rio Negro,<br />

numa manhã ensolarada, enquanto bebericava uma xícara <strong>de</strong> café o médico Avé-<br />

Lallemant rompe sua introspecção diante da singeleza da ce<strong>na</strong> que seu olhar atento<br />

perscrutou <strong>na</strong> beirada <strong>do</strong> barranco. De uma vez, vimos mesmo diante <strong>de</strong> sua habitação<br />

toda uma família tapuia completamente nua; só a mulher trazia uma sainha azul muito<br />

curta; [...]. Deixan<strong>do</strong> transparecer toda sua sensualida<strong>de</strong> selvagem.<br />

Foi nos festejos juninos, da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ma<strong>na</strong>us, que o médico viajante entrou<br />

em contato com os cheiros e o<strong>do</strong>res <strong>do</strong> povo no adro da igreja matriz. E ao se misturar<br />

sentiu náuseas diante daqueles cheiros e o<strong>do</strong>res exala<strong>do</strong>s pelo povo <strong>na</strong>s festivida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

São Pedro e São Paulo, e compara a festivida<strong>de</strong> ao car<strong>na</strong>val parisiense. A propósito<br />

<strong>de</strong>vo consig<strong>na</strong>r que o o<strong>do</strong>r <strong>do</strong> povo <strong>de</strong> Paris, por ocasião <strong>de</strong>ssas aglomerações, é<br />

extraordi<strong>na</strong>riamente penetrante, [...]. 8 Convida<strong>do</strong> o viajante perscruta<strong>do</strong>r aceitou <strong>de</strong><br />

bom gra<strong>do</strong> o convite para se juntar a um grupo que preparava o almoço, fruto da caça <strong>de</strong><br />

formigas muito apreciadas pelo paladar da população branca e indíge<strong>na</strong>.<br />

Apesar <strong>de</strong> se sentir <strong>na</strong>usea<strong>do</strong> diante <strong>do</strong> almoço que aquele grupo <strong>de</strong> pessoas lhe<br />

oferecia, não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> apreciar em <strong>de</strong>talhes, os trejeitos <strong>de</strong> inocência da espevitada<br />

meni<strong>na</strong> moça que participava <strong>do</strong> almoço. Que segun<strong>do</strong> ele: uma linda rapariga <strong>de</strong> 20<br />

7 AVÉ-LALLEMANT, Robert. No Rio Amazo<strong>na</strong>s (1859). Tradução Eduar<strong>do</strong> <strong>de</strong> Lima Castro. Belo<br />

Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1980, p. 101.<br />

8 Ibid., p. 109.<br />

5


VI Simpósio Nacio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> História Cultural<br />

Escritas da História: Ver – Sentir – Narrar<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Piauí – UFPI<br />

Teresi<strong>na</strong>-PI<br />

ISBN: 978-85-98711-10-2<br />

anos <strong>de</strong> fartos cabelos negros seios que se <strong>de</strong>ixavam ver pela força da juventu<strong>de</strong> e com a<br />

boca mais fresca e os <strong>de</strong>ntes mais bonitos que se po<strong>de</strong> imagi<strong>na</strong>r. 9 Po<strong>de</strong>r-se-ia dizer que<br />

foi ao apreciar a beleza ainda selvagem, inocente e <strong>de</strong>ntes mais bonitos que se po<strong>de</strong><br />

imagi<strong>na</strong>r que o coevo viajante francês encontrou guarida para seu sofrimento estomacal.<br />

Se as náuseas o incomodavam e causavam <strong>de</strong>sconforto não foi, contu<strong>do</strong>, empecilho para<br />

que seu olhar repleto <strong>de</strong> inquietações observasse a a<strong>na</strong>tomia femini<strong>na</strong> através <strong>do</strong><br />

vestuário.<br />

Consistia <strong>na</strong> maioria das vezes numa camisa e saia. [...]. Sempre<br />

limpas, freqüentemente com borda<strong>do</strong>s que <strong>de</strong>ixavam ver alguns <strong>de</strong><strong>do</strong>s<br />

<strong>de</strong> corpo nu, em volta <strong>do</strong> cós da saía, [...] e os seios ficavam cobertos.<br />

Isso, <strong>na</strong> orla da floresta virgem, é encanta<strong>do</strong>r e dá uma impressão <strong>de</strong><br />

ingenuida<strong>de</strong>. 10<br />

Logo após a missa <strong>de</strong> <strong>do</strong>mingo pela manhã, enquanto conversava em frente <strong>do</strong><br />

adro da igreja <strong>de</strong> Nossa Senhora <strong>do</strong>s Remédios, o viajante não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> perceber a<br />

sensualida<strong>de</strong> da toilletes femini<strong>na</strong>.<br />

Os vesti<strong>do</strong>s claros, <strong>do</strong>mingueiros, <strong>de</strong> teci<strong>do</strong>s leves quase<br />

transparentes, assentavam sobre as formas admiráveis das raparigas,<br />

[...]. A cada passo o teci<strong>do</strong> fino da camisa abotoada no pescoço tremia<br />

sobre os seios firmes e elásticos, cuja exuberância não precisava ser<br />

sustida por nenhum colete. [...]. E gostei infinitamente da tranqüila<br />

atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> recolhimento daquelas bonitas figuras trigueiras. 11<br />

Em suas andanças pelo Rio Negro, e em contato com a população ribeirinha,<br />

branca, mestiça e indíge<strong>na</strong>, o viajante conviveu nestes espaços <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> e<br />

afetivida<strong>de</strong>, participan<strong>do</strong> <strong>de</strong> quermesses, missas, festejos religiosos, almoços, pescarias<br />

e visitas <strong>de</strong> cordialida<strong>de</strong> que lhe proporcionou momentos <strong>de</strong> leveza, alegria, tristeza e<br />

melancolia. Talvez, tristeza e melancolia ao ver <strong>na</strong> Vila <strong>de</strong> Égua, hoje cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Tefé, a<br />

jovem Berenice com seu olhar negro e com suas partes pudicas coberta por “minúscula<br />

tanga confeccio<strong>na</strong>da <strong>de</strong> plumas e pedras brilhosas <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> seus lin<strong>do</strong>s e firmes seios<br />

9 Ibid., p. 110<br />

10 Ibid., p. 116.<br />

11 Ibid., p. 119.<br />

6


VI Simpósio Nacio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> História Cultural<br />

Escritas da História: Ver – Sentir – Narrar<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Piauí – UFPI<br />

Teresi<strong>na</strong>-PI<br />

ISBN: 978-85-98711-10-2<br />

livres <strong>de</strong> qualquer empecilho que impedisse o olhar <strong>de</strong> contemplar a formosura da<br />

juventu<strong>de</strong>”. 12<br />

Entretanto, como <strong>na</strong>da <strong>do</strong> que é bom dura para sempre, Chegava ao fim a<br />

minha estadia em Ma<strong>na</strong>us. Robert Avé-Lallemant, nostálgico, entrega-se às <strong>do</strong>ces<br />

lembranças <strong>do</strong> Amazo<strong>na</strong>s e da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ma<strong>na</strong>us. Principalmente das <strong>de</strong>licadas e<br />

graciosas damas e senhoras irrefletidas que em muitas ocasiões o jovem médico tratou<br />

<strong>de</strong> cuidar das mais intensas e saborosas <strong>do</strong>res, sejam elas espirituais ou físicas, que com<br />

tanta prestabilida<strong>de</strong> se propôs a curar como médico.<br />

Po<strong>de</strong>mos perceber <strong>na</strong>s entrelinhas <strong>do</strong> seu relato que a toalete femini<strong>na</strong>, po<strong>de</strong>r-<br />

se-ia dizer, tinha a sua preferência diante <strong>do</strong> encantamento e da sensibilida<strong>de</strong> que<br />

<strong>de</strong>spertava no viajante. As toilettes das senhoras eram em gran<strong>de</strong> parte bonitas, muitas<br />

<strong>de</strong> gosto mesmo, nenhuma ridícula. Agradaram-me, porém, sobretu<strong>do</strong>, as maneiras<br />

discretas <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s. 13<br />

Enquanto isso, em Ma<strong>na</strong>us, Paul Marcoy relata que seus dias foram<br />

conscienciosamente dividi<strong>do</strong>s entre trabalhos, siestas e passeios, entre longos e<br />

<strong>de</strong>mora<strong>do</strong>s banhos nos igarapés espalha<strong>do</strong>s pela cida<strong>de</strong>. A elegância <strong>do</strong>s homens e das<br />

<strong>mulheres</strong> impressionou muito o viajante, que asseverou.<br />

A a<strong>do</strong>ção da moda francesa pelas pessoas abastadas, [...], permitem<br />

facilmente perceber que <strong>de</strong>ixamos para trás a barbárie, [...], on<strong>de</strong> se<br />

unem todas as correntes geográficas, intelectuais, políticas e<br />

comerciantes <strong>do</strong> país. 14<br />

Segun<strong>do</strong> nosso poético viajante, <strong>na</strong> cida<strong>de</strong> Barra <strong>do</strong> Rio Negro os mari<strong>do</strong>s<br />

cultivavam o feijão e cozinhavam-no com tocinho. A rosa é cultivada pela mulher, que<br />

i<strong>na</strong>la o seu perfume e se enfeita com ela. Fi<strong>na</strong>liza suas observações e seus estu<strong>do</strong>s sobre<br />

os usos e costumes da cida<strong>de</strong> e da população afirman<strong>do</strong> o prazer que sentia em estar<br />

nesse convívio aconchegante que usufruía nos seus banhos ten<strong>do</strong> por companhia as<br />

12 Ibid., p. 121.<br />

13 Ibid., p. 152.<br />

14 MARCOY, Paul. Viagens pelo Rio Amazo<strong>na</strong>s. Trad. Antonio Porro. 1º. Ed. Em português. Ma<strong>na</strong>us:<br />

Edições governo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>amazo<strong>na</strong>s</strong>, Secretaria <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> da Cultura, Turismo e Desporto e<br />

Editora da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Amazo<strong>na</strong>s, 2001, p. 169<br />

7


VI Simpósio Nacio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> História Cultural<br />

Escritas da História: Ver – Sentir – Narrar<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Piauí – UFPI<br />

Teresi<strong>na</strong>-PI<br />

ISBN: 978-85-98711-10-2<br />

risadinhas e brinca<strong>de</strong>iras inocentes das belas e <strong>do</strong>ces selvagens com seus longos cabelos<br />

negros.<br />

Alfred Russel Wallace, 1862, ao viajar pelo Amazo<strong>na</strong>s, atesta a veracida<strong>de</strong> que<br />

muitos <strong>viajantes</strong> estrangeiros falaram sobre a elegância, o bom gosto, o requinte e a<br />

moda francesa que corria solta pelos salões sociais ma<strong>na</strong>uara.<br />

Como era <strong>de</strong> se esperar nessas circunstâncias, a moda é uma <strong>de</strong> suas<br />

maiores preocupações. Aos <strong>do</strong>mingos, <strong>na</strong> missa, trajam-se to<strong>do</strong>s em<br />

gran<strong>de</strong> estilo. As <strong>mulheres</strong> comparecem elegantíssimas, num<br />

multicolori<strong>do</strong> <strong>de</strong>sfile <strong>de</strong> musseli<strong>na</strong>s e gazes francesas. Suas belas<br />

cabeleiras, cuida<strong>do</strong>samente arrumadas e a<strong>do</strong>r<strong>na</strong>das <strong>de</strong> flores, jamais se<br />

escon<strong>de</strong>m sob toucas ou chapéus. 15<br />

Se as <strong>mulheres</strong> perfilavam suas toaletes elegantíssimas <strong>na</strong>s festivida<strong>de</strong>s sociais<br />

e religiosas, por seu la<strong>do</strong>, os homens se transformavam nestas ocasiões em verda<strong>de</strong>iros<br />

cavalheiros.<br />

A seu la<strong>do</strong>, os cavalheiros, que durante a sema<strong>na</strong> ficaram nos seus<br />

imun<strong>do</strong>s armazéns em mangas <strong>de</strong> camisa e chinelos, agora trajam<br />

finíssimos ternos pretos, chapéus <strong>de</strong> feltro, gravatas <strong>de</strong> cetim e boti<strong>na</strong>s<br />

<strong>de</strong> verniz <strong>de</strong> cano bem curto. 16<br />

Diante <strong>de</strong> tanta urbanida<strong>de</strong>, afetivida<strong>de</strong> e sociabilida<strong>de</strong> Wallace sutilmente<br />

consegue perceber as amenida<strong>de</strong>s que regem a população masculi<strong>na</strong> e femini<strong>na</strong> <strong>de</strong><br />

Ma<strong>na</strong>us. Ten<strong>do</strong> participa<strong>do</strong> da missa festiva, convida<strong>do</strong> pelo padre com quem<br />

<strong>de</strong>senvolveu uma profícua amiza<strong>de</strong> constatou:<br />

Depois da missa, é hora das visitas <strong>de</strong> cerimônia, quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o<br />

mun<strong>do</strong> vai à casa <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, e lá ficam comentan<strong>do</strong> os<br />

escândalos que, se acumularam durante a sema<strong>na</strong>. Barra <strong>de</strong>ve ser a<br />

comunida<strong>de</strong> civilizada que tem os costumes mais <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes<br />

possíveis. 17<br />

A missa tor<strong>na</strong>va-se, <strong>na</strong> Ma<strong>na</strong>us <strong>do</strong> século XIX, ponto <strong>de</strong> encontro da<br />

sociabilida<strong>de</strong>, urbanida<strong>de</strong> e afetivida<strong>de</strong>. Era ao fi<strong>na</strong>l <strong>de</strong>ste encontro que a cida<strong>de</strong><br />

15 WALLACE, Alfred Russel.”Viagens pelos rios Amazo<strong>na</strong>s e Negro/ Alfred Russel Wallace”;<br />

Tradução Eugênio Ama<strong>do</strong>; apresentação Mário Guimarães Ferri.- Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São<br />

Paulo: Ed. da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1979. p. 110.<br />

16 Ibid., p. 110.<br />

17 Ibid.<br />

8


VI Simpósio Nacio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> História Cultural<br />

Escritas da História: Ver – Sentir – Narrar<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Piauí – UFPI<br />

Teresi<strong>na</strong>-PI<br />

ISBN: 978-85-98711-10-2<br />

fervilhava <strong>na</strong>s suas contradições. Lugar da manifestação da fé, a missa, também se<br />

tor<strong>na</strong>va encontro social e familiar. Nestas ocasiões a população <strong>de</strong> Ma<strong>na</strong>us não perdia a<br />

oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> usar a toalete mais chique. Afi<strong>na</strong>l <strong>de</strong> contas, era uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

colocar a conversa em dia. Diante <strong>do</strong> luxo da população em dias <strong>de</strong> missa, o jor<strong>na</strong>l <strong>do</strong><br />

Comércio chama atenção em nota para o excessivo barulho que ocorria no adro da<br />

igreja.<br />

Muitas coisas se têm visto em dias <strong>de</strong> Missa <strong>na</strong> igreja matriz.<br />

Namoricos corren<strong>do</strong> solto. Mulheres casadas a trocar olhares com<br />

cavalheiros. Toaletes extravagantes para solene ocasião. E a conversa<br />

a correr solta no adro da igreja durante a celebração da santa missa.<br />

Pedimos daqui que as pessoas reflitam diante <strong>do</strong> seu comportamento<br />

i<strong>na</strong><strong>de</strong>qua<strong>do</strong>. 18<br />

Anteriormente, o mesmo jor<strong>na</strong>l já advertia e chamava atenção <strong>do</strong>s pais que se<br />

fingem <strong>de</strong> cegos por não verem suas filhas em <strong>na</strong>moricos avança<strong>do</strong>s com homens<br />

solteiros e casa<strong>do</strong>s.<br />

Em dias <strong>de</strong> nove<strong>na</strong>s a movimentação era intensa <strong>na</strong>s cercanias da igreja. Além<br />

<strong>do</strong>s encontros amorosos e <strong>do</strong> romântico convívio, o comércio rolava solto, como<br />

constatou Barão <strong>de</strong> Santa<strong>na</strong> Néri em sua visita a Ma<strong>na</strong>us.<br />

Fiquei um tanto choca<strong>do</strong> pela ce<strong>na</strong> que presenciei nos arre<strong>do</strong>res da<br />

Igreja <strong>na</strong> festa da padroeira. Alerta<strong>do</strong> que fui por um amigo não pu<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ver a esposa <strong>de</strong> um ven<strong>de</strong><strong>do</strong>r <strong>de</strong> guloseimas trocan<strong>do</strong><br />

caricias com um jovem que mais parecia ser seu filho enquanto seu<br />

esposo em ple<strong>na</strong> festa trabalhava arduamente para tirar o sustento da<br />

família. 19<br />

E sobre o vestuário comenta que os amazonenses copiavam a moda francesa.<br />

Os homens se vestiam sobriamente, já as <strong>mulheres</strong> com mais leveza, porém coloridas e<br />

a<strong>do</strong>r<strong>na</strong>das.<br />

18 Jor<strong>na</strong>l <strong>do</strong> comércio – 08 – 06 - 1885<br />

Quanto à roupa, o habitante <strong>do</strong> Amazo<strong>na</strong>s se acredita obriga<strong>do</strong> a se<br />

submeter aos cortes das vestimentas européias. O pano escuro é <strong>de</strong><br />

rigor, bem como o chapéu <strong>de</strong> seda, usos absur<strong>do</strong>s em clima<br />

semelhante. As senhoras se mostram mais práticas e se vestem<br />

geralmente <strong>de</strong> fazendas leves, se bem que conservan<strong>do</strong> sempre um<br />

19 NÉRI, Fre<strong>de</strong>rico José <strong>de</strong> Santa<strong>na</strong>. O país das Amazo<strong>na</strong>s. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed.<br />

da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1979. p. 112.<br />

9


VI Simpósio Nacio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> História Cultural<br />

Escritas da História: Ver – Sentir – Narrar<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Piauí – UFPI<br />

Teresi<strong>na</strong>-PI<br />

ISBN: 978-85-98711-10-2<br />

certo toque parisiense. As roupas <strong>de</strong> teci<strong>do</strong> leve <strong>de</strong> algodão, seda e<br />

musseli<strong>na</strong> são usadas pelas pessoas da socieda<strong>de</strong>. 20<br />

Mario Ypiranga Monteiro, ao estudar o Boi Bumbá <strong>na</strong> cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ma<strong>na</strong>us <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

suas origens no século XVII ao século XX, comenta que nesta festivida<strong>de</strong> ocorre uma<br />

profusão entre o mun<strong>do</strong> sagra<strong>do</strong> e o profano. De certa forma, o <strong>de</strong>sejo e a luxúria<br />

<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>vam aqueles que participavam da brinca<strong>de</strong>ira. A nu<strong>de</strong>z sensual e erótica das<br />

<strong>mulheres</strong> e seus a<strong>do</strong>rnos era um traço marcante para quem se diverte nessa manifestação<br />

artística e cultural amazonense. Mulheres seminuas a representar as <strong>de</strong>usas que fizeram<br />

da floresta espessa sua morada preenchem olhares diante <strong>de</strong>ssa brinca<strong>de</strong>ira cultural.<br />

Segun<strong>do</strong> o autor, a socieda<strong>de</strong> ma<strong>na</strong>uara sempre foi uma socieda<strong>de</strong> que se<br />

espelhou <strong>na</strong> cultura européia, no que tange à moda, como o luxo e o requinte da cultura<br />

francesa. Esses elementos foram fundamentais <strong>na</strong> construção da nossa socieda<strong>de</strong> e da<br />

nossa cultura. As <strong>mulheres</strong> amazonenses foram sempre <strong>de</strong>senvoltas diante da sua<br />

sociabilida<strong>de</strong> e afetivida<strong>de</strong>. 21<br />

O <strong>na</strong>turalista inglês Henry Walter Bates, em sua passagem por Ma<strong>na</strong>us, diante<br />

das práticas <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> e afetivida<strong>de</strong> da população, formulou juízo ético diante <strong>do</strong><br />

que via e <strong>do</strong> que ouvia falar sobre <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>das práticas <strong>de</strong> afetivida<strong>de</strong> da população<br />

ma<strong>na</strong>uara. Tal observação o chocou diante <strong>do</strong> que consi<strong>de</strong>rava uma imoralida<strong>de</strong> e<br />

in<strong>de</strong>cência e justifica-se dizen<strong>do</strong> que conheceu outros recônditos pelo interior <strong>do</strong> Brasil<br />

e não constatou esse apego à imoralida<strong>de</strong>. [...], a promiscuida<strong>de</strong> sexual parecia<br />

constituir a regra geral em todas as classes, e os amores clan<strong>de</strong>stinos a ocupação mais<br />

importante da maior parte da população. 22<br />

Diante <strong>de</strong> uma vida amorosa <strong>de</strong> clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong>, assevera que <strong>na</strong>da justifica<br />

essa imoralida<strong>de</strong> sem freios que corre por todas as classes sociais.<br />

20 Ibid., p. 111.<br />

Não posso admitir que esse esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> coisas seja uma <strong>de</strong>corrência<br />

obrigatória <strong>do</strong> clima e das instituições vigentes, pois já morei em<br />

peque<strong>na</strong>s cida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> interior <strong>do</strong> Brasil on<strong>de</strong> os hábitos e o padrão <strong>de</strong><br />

21 MONTEIRO, Mário Ypiranga. Boi-Bumbá – História, a<strong>na</strong>lise fundamental e juízo crítico. Ma<strong>na</strong>us:<br />

Edição <strong>do</strong> autor, 2004, p. 173/4/8.<br />

22 BATES, Henry Walter. Um <strong>na</strong>turalista no rio Amazo<strong>na</strong>s. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp,<br />

1979, p. 24.<br />

10


VI Simpósio Nacio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> História Cultural<br />

Escritas da História: Ver – Sentir – Narrar<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Piauí – UFPI<br />

Teresi<strong>na</strong>-PI<br />

ISBN: 978-85-98711-10-2<br />

moralida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s seus habitantes eram tão eleva<strong>do</strong>s quanto os<br />

encontra<strong>do</strong>s em lugares similares <strong>na</strong> Inglaterra. 23<br />

Neste senti<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>mos perceber que o olhar <strong>do</strong>s <strong>viajantes</strong> não era linear.<br />

Alguns se diferenciavam <strong>na</strong> maneira <strong>de</strong> perceber a mulher no espaço público. Uma<br />

<strong>de</strong>stas distinções po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m moral. Condicio<strong>na</strong><strong>do</strong>s por valores provenientes<br />

da cultura européia, os <strong>viajantes</strong>, ao vivenciarem os usos e os hábitos da população <strong>de</strong><br />

Ma<strong>na</strong>us, não estavam isentos <strong>de</strong> um pré-julgamento. É bom lembrar que, mesmo sen<strong>do</strong><br />

filhos da cultura européia, os <strong>viajantes</strong> tinham formação, experiências e interesses<br />

diversifica<strong>do</strong>s, que transparecem nos seus relatos e <strong>na</strong> maneira <strong>de</strong> ver os mesmos<br />

objetos.<br />

Com base neste conjunto <strong>de</strong> falas sobre as <strong>mulheres</strong> <strong>de</strong> Ma<strong>na</strong>us, po<strong>de</strong>mos<br />

acreditar <strong>na</strong> benevolência das <strong>mulheres</strong> <strong>de</strong>sta região para com os <strong>viajantes</strong>? Ou estas<br />

atitu<strong>de</strong>s femini<strong>na</strong>s reinci<strong>de</strong>ntemente relatadas seria uma criação <strong>do</strong> imaginário <strong>de</strong>stes<br />

<strong>viajantes</strong>? Quais instrumentos teríamos para testar a veracida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s fatos <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>s pelos<br />

<strong>viajantes</strong> ao afirmarem que as <strong>mulheres</strong> ma<strong>na</strong>uaras eram benevolentes com a corte<br />

masculi<strong>na</strong>? A mulher benevolente seria só fruto da imagi<strong>na</strong>ção <strong>do</strong>s <strong>viajantes</strong>?<br />

São perguntas que não conseguimos respon<strong>de</strong>r <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>de</strong>sta pesquisa e<br />

que permanecem obscuras. Confesso que, completamente embriaga<strong>do</strong>, travei intenso<br />

duelo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início em que comecei a manusear as <strong>na</strong>rrativas <strong>do</strong>s <strong>viajantes</strong> estrangeiros<br />

que visitaram Ma<strong>na</strong>us no <strong>de</strong>correr <strong>do</strong> século XIX. Que papel coube à mulher <strong>do</strong><br />

Amazo<strong>na</strong>s nos jogos da sedução? Instiga<strong>do</strong> por esta pergunta e seduzi<strong>do</strong> pelas<br />

<strong>na</strong>rrativas <strong>do</strong>s <strong>viajantes</strong> procuramos enca<strong>de</strong>ar um conjunto <strong>de</strong> imagens que<br />

possibilitaram a construção da mulher ma<strong>na</strong>uara.<br />

Uma primeira questão é indagar a veracida<strong>de</strong> das ce<strong>na</strong>s <strong>de</strong> sedução relatadas<br />

pelos <strong>viajantes</strong>. Outra questão, diante da freqüência <strong>de</strong>stes relatos, é questio<strong>na</strong>r qual o<br />

papel das <strong>mulheres</strong> nestes jogos <strong>de</strong> sedução. Pensar numa mulher submissa, que ficava a<br />

mercê <strong>do</strong>s jogos amorosos <strong>do</strong>s <strong>viajantes</strong>, também seria equivoca<strong>do</strong> por impossibilitar-<br />

nos <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a própria dinâmica das formas <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stas <strong>mulheres</strong>.<br />

23 Ibid., p. 24.<br />

11


VI Simpósio Nacio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> História Cultural<br />

Escritas da História: Ver – Sentir – Narrar<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Piauí – UFPI<br />

Teresi<strong>na</strong>-PI<br />

ISBN: 978-85-98711-10-2<br />

Outra leitura possível para não incorrer no erro <strong>de</strong> não ver outras leituras<br />

subjacentes ao universo feminino é a que relacio<strong>na</strong>, por exemplo, o casamento como a<br />

única oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realização para a mulher <strong>na</strong> socieda<strong>de</strong> patriarcal brasileira. Esta<br />

única alter<strong>na</strong>tiva permitida ao sexo feminino não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> favorecer o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento intensivo da arte da sedução. 24<br />

Parece-nos que as <strong>mulheres</strong> <strong>do</strong> Amazo<strong>na</strong>s não eram indiferentes ao jogo da<br />

sedução. Pelas <strong>na</strong>rrativas <strong>do</strong>s <strong>viajantes</strong> po<strong>de</strong>mos observar - resguardan<strong>do</strong> o que fazia<br />

parte <strong>do</strong> imaginário <strong>de</strong> quem <strong>na</strong>rrava - que as <strong>mulheres</strong> <strong>de</strong>stas regiões também em<br />

<strong>de</strong>termi<strong>na</strong><strong>do</strong>s momentos eram partícipes <strong>de</strong> situações envolventes. Nossa hipótese se<br />

justifica <strong>na</strong> medida em que to<strong>do</strong>s os <strong>viajantes</strong> <strong>de</strong>screvem <strong>de</strong> forma sistemática uma<br />

mulher benevolente e amável. Em nenhuma ocasião encontramos referência ao<br />

contrário. Se <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, só temos falas masculi<strong>na</strong>s construin<strong>do</strong> a mulher sedutora e<br />

benevolente, portanto, é a partir <strong>de</strong>las que contamos o que se passou no Amazo<strong>na</strong>s, por<br />

outro, fica uma peque<strong>na</strong> dúvida diante <strong>do</strong>s papéis que elas ence<strong>na</strong>ram. Em momento<br />

algum estamos a dizer que as <strong>mulheres</strong> <strong>de</strong>sta região eram sedutoras, ape<strong>na</strong>s chamamos a<br />

atenção para o fato <strong>de</strong> que sem exceção to<strong>do</strong>s os <strong>viajantes</strong> registraram uma mulher<br />

benevolente nesta região.<br />

Não é objetivo <strong>de</strong>sta comunicação ir em busca <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s<br />

acontecimentos, e sim tentar compreen<strong>de</strong>r as práticas afetivas femini<strong>na</strong>s que<br />

possibilitaram a construção da mulher benevolente diante da corte masculi<strong>na</strong> no<br />

Amazo<strong>na</strong>s. O melhor conhecimento que se po<strong>de</strong> ter <strong>de</strong>las vem da <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> qual<br />

papel elas ence<strong>na</strong>m. 25 no cotidiano, on<strong>de</strong> as imagens são extraídas da sua visibilida<strong>de</strong> no<br />

espaço público da selva.<br />

24 SOUZA, Gilda <strong>de</strong> Mello e. O Espirito da Roupa: a moda no <strong>de</strong>zenove. São Paulo: Companhia das<br />

Letras, p. 92.<br />

25 VICENT-BUFFAULT, ANNE. História das Lágrimas: séculos XVIII e XIX. Trad. Luis Marques,<br />

Martha Gambini. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, p. 73.<br />

12


VI Simpósio Nacio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> História Cultural<br />

Escritas da História: Ver – Sentir – Narrar<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Piauí – UFPI<br />

Teresi<strong>na</strong>-PI<br />

ISBN: 978-85-98711-10-2<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AVÉ-LALLEMANT, Robert. No Rio Amazo<strong>na</strong>s (1859). Tradução Eduar<strong>do</strong> <strong>de</strong> Lima<br />

Castro. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo,<br />

1980.<br />

BATES, Henry Walter. Um <strong>na</strong>turalista no rio Amazo<strong>na</strong>s. Belo Horizonte: Itatiaia; São<br />

Paulo: Edusp, 1979.<br />

BERGER, Paulo. Ilha <strong>de</strong> Santa Catari<strong>na</strong>; relatos <strong>de</strong> <strong>viajantes</strong> estrangeiros nos séculos<br />

XVIII e XIX. Florianópolis, Editora da UFSC/Assembléia legislativa, 1984.<br />

DIAS, Ednea Mascaranhas. A ilusão <strong>do</strong> Fausto (1890-1920). Ma<strong>na</strong>us: Valer, 1999..<br />

DIAS, Ednea Mascaranhas. A ilusão <strong>do</strong> Fausto (1890-1920). Ma<strong>na</strong>us: Valer, 1999.<br />

LOUIS, Agassiz. Viagem ao Brasil: 1865 – 1866 [por] Luiz Agassiz e Elizabeth Cary<br />

Agassiz. Tradução <strong>de</strong> João Etienne Filho. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed.<br />

da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1975..<br />

MARCOY, Paul. Viagens pelo Rio Amazo<strong>na</strong>s. Trad. Antonio Porro. 1º. Ed. Em<br />

português. Ma<strong>na</strong>us: Edições governo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>amazo<strong>na</strong>s</strong>, Secretaria <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> da<br />

Cultura, Turismo e Desporto e Editora da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Amazo<strong>na</strong>s, 2001.<br />

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Boi-Bumbá – História, a<strong>na</strong>lise fundamental e juízo<br />

crítico. Ma<strong>na</strong>us: Edição <strong>do</strong> autor, 2004, p. 173/4/8.<br />

MORGA, Antônio Emilio Morga. Nos subúrbios <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo: masculinida<strong>de</strong> e<br />

sociabilida<strong>de</strong> em Nossa Senhora <strong>do</strong> Desterro no século XIX. Ma<strong>na</strong>us: Editora da<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Amazo<strong>na</strong>s, 2009.<br />

NÉRI, Fre<strong>de</strong>rico José <strong>de</strong> Santa<strong>na</strong>. O país das Amazo<strong>na</strong>s. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia;<br />

São Paulo: Ed. da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1979.<br />

SOUZA, Gilda <strong>de</strong> Mello e. O Espirito da Roupa: a moda no <strong>de</strong>zenove. São Paulo:<br />

Companhia das Letras.<br />

VICENT-BUFFAULT, ANNE. História das Lágrimas: séculos XVIII e XIX. Trad. Luis<br />

Marques, Martha Gambini. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra.<br />

WALLACE, Alfred Russel.”Viagens pelos rios Amazo<strong>na</strong>s e Negro/ Alfred Russel<br />

Wallace”; Tradução Eugênio Ama<strong>do</strong>; apresentação Mário Guimarães Ferri.- Belo<br />

Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1979.<br />

13

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!