Kaio Felipe As representações de dilemas Morais e
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A REPRESENTAÇÃO DE DILEMAS MORAIS E EXISTENCIAIS EM NEON<br />
GENESIS EVANGELION<br />
FELIPE, <strong>Kaio</strong> 1<br />
Resumo: Este trabalho analisará as questões sociofilosóficas presentes no<br />
mangá Neon Genesis Evangelion, criado por Hi<strong>de</strong>aki Anno e <strong>de</strong>senhado por<br />
Yoshiyuki Sadamoto. Lançado em 1995 e ainda em produção, Evangelion se<br />
notabilizou pela profunda exploração das psiques <strong>de</strong> seus personagens, os<br />
quais apresentam intensos conflitos psicológicos. Começarei este artigo com<br />
uma análise do repertório filosófico <strong>de</strong>ste mangá, o qual envolve pensadores<br />
como Schopenhauer (―dilema do ouriço‖), Kierkegaard (<strong>de</strong>sespero humano) e<br />
Hegel (holismo e instrumentalida<strong>de</strong>), e como este repertório é simbolizado em<br />
três dos personagens da série: Shinji Ikari, <strong>As</strong>uka Soryu e Gendo Ikari. Também<br />
discutirei o uso da biotecnologia pelas organizações SEELE e NERV como<br />
engenharia social para criar ―uma nova humanida<strong>de</strong>‖. Ambas têm como objetivo<br />
o Projeto <strong>de</strong> Instrumentalida<strong>de</strong> Humana, que transformaria todos os seres<br />
humanos, incompletos e inconstantes, numa única entida<strong>de</strong> perfeita. A terceira<br />
parte do artigo será sobre a questão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, pois o próprio ato <strong>de</strong> pilotar o<br />
Evangelion representa um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio existencial para os três pilotos: Shinji<br />
(auto-menosprezo), <strong>As</strong>uka (superação <strong>de</strong> trauma) e Rei Ayanami (construção do<br />
―eu‖). Nesse sentido, farei uma breve excursão sobre a dimensão sociocultural<br />
<strong>de</strong>sta temática da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, afinal na década <strong>de</strong> 90 o Japão passava por uma<br />
aguda crise social e moral. Por fim, será feito um balanço <strong>de</strong> todas estas<br />
discussões sociológicas e morais presentes em Evangelion.<br />
Palavras-chave: Evangelion; Existencialismo; Filosofia Moral; Sociologia das<br />
Histórias em Quadrinhos.<br />
1. Introdução<br />
Neon Genesis Evangelion é possivelmente o anime/mangá mais aclamado<br />
por público e crítica nos últimos vinte anos. Poucas vezes uma obra do gênero<br />
alcançou tamanha popularida<strong>de</strong> e suscitou tantos <strong>de</strong>bates e controvérsias. O<br />
fato <strong>de</strong> Evangelion ter forte caráter metalingüístico, possuir personagens<br />
psicologicamente <strong>de</strong>nsos, um enredo instigante e apresentar vasto conteúdo<br />
filosófico, psicanalítico e religioso são as principais razões para tal repercussão.<br />
O enredo <strong>de</strong> Evangelion revela forte influência da mitologia gnóstica. Tudo<br />
começa há quatro bilhões <strong>de</strong> anos, com a colisão <strong>de</strong> um objeto esférico gigante,<br />
1 Mestrando em Ciência Política (IESP/UERJ).
<strong>de</strong>nominado ―Lua Negra‖, com a Terra; eis o chamado Primeiro Impacto. Como<br />
resultado, uma gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>tritos foi lançada em órbita,<br />
aglomerando-se e formando o satélite natural da Terra: a Lua. Porém, o núcleo<br />
da ―Lua Negra‖ trazia Lilith, uma das Sementes da Vida 2 ; sendo que outra já<br />
existia na Terra: Adão, enviado pela ―Lua Branca‖. O problema é que sob<br />
hipótese alguma duas Sementes po<strong>de</strong>m coexistir no mesmo planeta. No<br />
entanto, como a Lança <strong>de</strong> Longinus 3 <strong>de</strong> Lilith foi <strong>de</strong>struída, a lança que restou no<br />
planeta - a <strong>de</strong> Adão - se ativou para tentar corrigir a situação, e colocou Adão<br />
num estado <strong>de</strong> hibernação in<strong>de</strong>terminado. Livre, Lilith começa a espalhar a<br />
―sopa primordial‖ da qual a vida terrestre ―normal‖ nasce, e começou o processo<br />
evolutivo que se seguiu por bilhões <strong>de</strong> anos, o qual culminou com a raça<br />
humana. <strong>As</strong>sim, a humanida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Lilith, usurpou o lugar dos<br />
Anjos, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> Adão, como a raça dominante na Terra. 4<br />
No ano <strong>de</strong> 2000, uma expedição científica na Antártida <strong>de</strong>scobriu Adão<br />
inerte e a Lança <strong>de</strong> Longinus na qual ele foi empalado. No dia 13 <strong>de</strong> setembro<br />
foi realizada a experiência <strong>de</strong> contato entre um embrião humano (portanto, com<br />
DNA <strong>de</strong> Lilith) e Adão. Porém, a retirada da Lança <strong>de</strong> Longinus foi mal-sucedida;<br />
Adão só possuía o Fruto da Vida (e não ambos, pois o Fruto da Sabedoria é<br />
possuído por Lilith - cuja ―Lua‖ estava em outro lugar), e per<strong>de</strong>u o controle. A<br />
reintrodução da lança impediu uma tragédia ainda maior – o aparecimento <strong>de</strong><br />
outros anjos, que levariam a uma <strong>de</strong>struição completa da vida terrestre. Porém,<br />
ainda assim houve o Segundo Impacto, nome dado para o <strong>de</strong>sastre global que<br />
<strong>de</strong>struiu, direta (<strong>de</strong>sequilíbrio ecológico, com o <strong>de</strong>rretimento da Antártida e a<br />
elevação do nível dos mares) ou indiretamente (guerras civis acarretadas pela<br />
fome e escassez), meta<strong>de</strong> da população mundial. Além disso, a reaparição dos<br />
Anjos, que tentariam novamente entrar em contato com Lilith, era iminente.<br />
Diante <strong>de</strong> tal cenário, uma organização secreta chamada SEELE (―alma‖,<br />
em alemão) <strong>de</strong>scobriu que a Lua Negra <strong>de</strong> Lillith ficava no Japão, no chamado<br />
Geofront. Sobre ela foi construído o quartel da NERV, que, sob o comando <strong>de</strong><br />
2 Fonte: http://pt-br.neongenesisevangelion.wikia.com/wiki/Primeiro_Impacto<br />
3 A Lança <strong>de</strong> Longinus é um artefato extraterrestre com o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> penetrar qualquer Campo AT<br />
(campo <strong>de</strong> força que protege a ―alma‖ dos Evangelions e Anjos) e imobilizar seres divinos.<br />
4 Fonte: http://pt-br.neongenesisevangelion.wikia.com/wiki/Lilith
Gendo Ikari, continuou as pesquisas para realizar a experiência <strong>de</strong> criar um<br />
―Deus humano‖. Foram criados os Evangelions, humanói<strong>de</strong>s gigantescos (mas<br />
que parecem robôs, em razão <strong>de</strong> suas ―armaduras‖) e os únicos capazes <strong>de</strong><br />
vencer os Anjos. Todos os EV<strong>As</strong> são clones a partir do embrião <strong>de</strong> Adão, exceto<br />
a Unida<strong>de</strong> 01, clonada a partir <strong>de</strong> Lilith. O EVA-01 contém a alma da cientista<br />
Yui Ikari, esposa <strong>de</strong> Gendo e mãe <strong>de</strong> Shinji, o protagonista da série. Yui foi<br />
absorvida <strong>de</strong> propósito, mas ainda assim seu marido ficou abalado pelo<br />
acontecimento; além <strong>de</strong> abandonar o filho, passou a cultivar um objetivo<br />
diferente daquele que a SEELE havia lhe proposto. (Veremos mais sobre o<br />
Projeto <strong>de</strong> Instrumentalida<strong>de</strong> Humana no próximo capítulo.)<br />
2015. Em um mundo pós-apocalíptico, que tenta se reerguer após o<br />
Segundo Impacto, a bem-sucedida reconstrução econômica coexiste com o<br />
sentimento <strong>de</strong> que o fim se aproxima. É quando o Terceiro Anjo (já que Adão e<br />
Lilith são os dois primeiros) ataca Tóquio-3, cida<strong>de</strong> em cujo subsolo se encontra<br />
o Geofront. Os esforços militares da ONU são ineficazes; mesmo as bombas N2<br />
não afetam o Anjo. Nesse mesmo dia, Shinji Ikari é levado por Misato Katsuragi<br />
(diretora <strong>de</strong> operações estratégicas) à se<strong>de</strong> da NERV para encontrar seu pai, e<br />
recebe a missão <strong>de</strong> pilotar o EVA-01 e <strong>de</strong>rrotar o Anjo. Começa então o 1º<br />
capítulo <strong>de</strong> Neon Genesis Evangelion.<br />
Embora a versão em quadrinhos tenha sido lançada antes, em fevereiro <strong>de</strong><br />
1995, Evangelion surgiu como <strong>de</strong>senho animado, criado e dirigido por Hi<strong>de</strong>aki<br />
Anno. O anime possui 26 episódios, e foi exibido entre outubro <strong>de</strong> 1995 e março<br />
<strong>de</strong> 1996; o mangá, roteirizado pelo <strong>de</strong>senhista da série, Yoshiyuki Sadamoto,<br />
continua sendo publicado até hoje; por enquanto há 12 volumes (no formato<br />
japonês, com 180 páginas, que equivalem aos 24 volumes da edição brasileira),<br />
sendo que o 13º será lançada mundialmente em novembro <strong>de</strong> 2012.<br />
Cabe dizer que há algumas diferenças entre o anime e o mangá. Em<br />
primeiro lugar, o Shinji da versão em HQ é menos passivo-agressivo e mais<br />
revoltado que o apresentado no <strong>de</strong>senho animado. Além disso, o número <strong>de</strong><br />
Anjos foi reduzido <strong>de</strong> 17 para 12. O mangá mantém o clima soturno e misterioso<br />
da série, mas é mais ―didático‖ que o anime, explicando melhor a trama e<br />
contendo mais passagens que revelam o passado dos personagens. Por fim,
cabe salientar as diferenças entre os autores, apontadas por Marcel R. Goto: ―O<br />
estilo <strong>de</strong> Anno, fragmentado, sombrio, e explorando ao máximo as possibilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> expressão dos <strong>de</strong>senhos animados, dá nuances diferentes aos<br />
acontecimentos das <strong>de</strong> Sadamoto, que prefere um estilo narrativo linear, mais<br />
tradicional e direto.‖ (SADAMOTO, 2002, v. 7, p. 91)<br />
Outro contraste é que a versão em quadrinhos <strong>de</strong> Neon Genesis<br />
Evangelion centra o conflito nos problemas pessoais <strong>de</strong> seus caracteres. ―Desse<br />
modo, <strong>de</strong>slocou o centro <strong>de</strong> atenção das lutas, principal enfoque dos quadrinhos<br />
que seguem a linha mecha 5 , para o universo humano e psicológico das<br />
personagens.‖ (MENDES, 2006: 50) De toda forma, mantém-se o projeto<br />
estético que já havia no anime: ―Hi<strong>de</strong>aki Anno trata sempre do peso do talento<br />
inato, da obrigação <strong>de</strong> ser bem-sucedido quando se possui um gran<strong>de</strong> dom, e do<br />
medo <strong>de</strong> fracassar por não conseguir encontrar forças <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si para<br />
enfrentar seus fantasmas interiores.‖ (SADAMOTO, 2002, v. 3, p. 90)<br />
Feita essa apresentação, cabe dizer que o propósito <strong>de</strong>ste artigo é a<br />
análise <strong>de</strong> como Evangelion apresenta artisticamente as dúvidas e<br />
questionamentos relacionados à conduta social e intersubjetiva e ao sentido<br />
existencial <strong>de</strong> seus personagens. Diante disso, uma questão epistemológica vem<br />
à tona: por que estudar tais questões a partir <strong>de</strong> um mangá?<br />
Em primeiro lugar, as histórias em quadrinhos são, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu<br />
nascimento, uma forma <strong>de</strong> comunicação e, portanto, portanto um meio <strong>de</strong><br />
transmissão <strong>de</strong> mensagens. Por meio das imagens <strong>de</strong>senhadas, das palavras e<br />
diálogos, da representação pictórica, os quadrinhos manifestam valores,<br />
sentimentos, concepções, etc. (cf. VIANA, 2008) A abordagem sociológica dos<br />
quadrinhos centra sua análise em dois aspectos fundamentais: a produção<br />
social e a mensagem que apresenta em suas produções.<br />
Em segundo lugar, em HQs mais intelectualizadas é possível encontrar<br />
tanto um projeto estético (isto é, modificações operadas no âmbito da linguagem<br />
e a apresentação <strong>de</strong> uma visão sobre que é uma obra <strong>de</strong> arte) quanto um<br />
5 Pertencem ao gênero mecha títulos que tratam <strong>de</strong> qualquer tipo <strong>de</strong> mecanismo <strong>de</strong> alta<br />
tecnologia, em particular ―séries em que os heróis pilotam robôs gigantescos em batalhas tanto<br />
na Terra como no espaço si<strong>de</strong>ral ou planetas alienígenas.‖ (MENDES, 2006, p. 44).
projeto i<strong>de</strong>ológico, marcado pelo pensamento <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado contexto.<br />
Evangelion é esteticamente uma obra que, embora a priori pertença ao gênero<br />
mecha, <strong>de</strong>sconstrói constantemente os cânones do mesmo, a começar por seu<br />
caráter auto-reflexivo, beirando a meta-ficção. I<strong>de</strong>ologicamente, Neon Genesis<br />
Evangelion tem marcas da psicanálise freudiana (afinal, quase todos os<br />
personagens têm problemas e conflitos com seus pais e mães) e, como<br />
<strong>de</strong>monstrarei no capítulo a seguir, possui forte carga filosófica.<br />
2. O Repertório Filosófico <strong>de</strong> Neon Genesis Evangelion<br />
2.1. Schopenhauer e o Dilema do Ouriço<br />
Num dia frio <strong>de</strong> inverno, um grupo <strong>de</strong> ouriços se uniu em grupo cerrado<br />
para se proteger mutuamente do congelamento com seu próprio calor. Porém,<br />
logo sentiram os seus espinhos, o que os afastou novamente uns dos outros.<br />
Quando a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aquecimento novamente os aproximou e aquele<br />
incômodo se repetiu, eles oscilavam entre dois sofrimentos, até encontrarem<br />
uma meia distância, a partir da qual conseguissem suportar-se da melhor<br />
maneira possível. <strong>As</strong>sim também a necessida<strong>de</strong> da socieda<strong>de</strong>, nascida do vazio<br />
e da monotonia, leva os homens a viverem juntos; contudo, suas múltiplas<br />
qualida<strong>de</strong>s repelentes e seus erros insuportáveis fazem com que se distanciem<br />
<strong>de</strong> novo. A distância média que finalmente encontram, e pela qual po<strong>de</strong> subsistir<br />
uma vida em comum, consiste na poli<strong>de</strong>z e nas boas maneiras. (cf.<br />
SCHOPENHAUER, 2006: 168-169)<br />
Esta parábola <strong>de</strong> Arthur Schopenhauer foi utilizada numa conversa entre<br />
Misato e a cientista Ritsuko para <strong>de</strong>screver o comportamento <strong>de</strong> Shinji Ikari, o<br />
qual revelava dificulda<strong>de</strong> para <strong>de</strong>senvolver intimida<strong>de</strong> com as pessoas. Solitário,<br />
ele adota um comportamento cauteloso e distante, talvez por medo <strong>de</strong> se<br />
machucar. Em um <strong>de</strong> seus monólogos interiores, Shinji explicita este receio <strong>de</strong><br />
ter seus sentimentos feridos: ―Vou guardar meu coração no lugar mais oculto do<br />
meu corpo. <strong>As</strong>sim... não precisarei sentir mais nada.‖ (SADAMOTO, 2002, vol. 3,<br />
p. 36). Não são poucos os momentos em que ele hesita em pilotar o EVA,<br />
sentindo-se inútil e alegando que as pessoas (a começar por seu pai) só o vêem<br />
como piloto (imagem 1).
Shinji<br />
encaixa-se<br />
bastante no<br />
diagnóstico <strong>de</strong><br />
Schopenhauer<br />
sobre a<br />
condição<br />
humana: o<br />
mundo é<br />
essencialmente<br />
sofrimento;<br />
somos<br />
controlados por<br />
uma Vonta<strong>de</strong><br />
cega e irracional. A vida oscila eternamente entre a dor e o tédio, e a carência e<br />
a miséria existencial lhe são intrínsecas. Sempre que possível, a solidão é<br />
preferível à vida social, pois a sociabilida<strong>de</strong> é uma das inclinações mais<br />
perigosas e perversas, na medida em que nos põe em contato com seres cuja<br />
maioria é moralmente ruim e intelectualmente obtusa ou invertida. (cf.<br />
SCHOPENHAUER, 2006: 169) Esta forma melancólica e pessimista <strong>de</strong> encarar<br />
a existência humana po<strong>de</strong> levar a uma postura blasé - o que parece ser<br />
justamente o caso <strong>de</strong> Shinji Ikari.<br />
Em certo sentido, o ―herói‖ <strong>de</strong> Evangelion não é um personagem com que o<br />
público po<strong>de</strong> ter empatia; sua personalida<strong>de</strong> é assaz introspectiva. Aliás, o<br />
mundo <strong>de</strong> Neon Genesis Evangelion, em si, é como ele: uma interiorida<strong>de</strong><br />
fechada. Para Shinji, esta introspecção profunda aparece como uma realida<strong>de</strong><br />
imóvel; não por acaso, o tema que vem à tona a partir da 2ª meta<strong>de</strong> da série é:<br />
como lidar com essa interiorida<strong>de</strong> fechada, com essa ―prisão da<br />
autoconsciência‖? (cf. TSURIBE, 1999) Em outras palavras, uma questão central<br />
na saga <strong>de</strong> Shinji é o paradoxo entre a inevitabilida<strong>de</strong> e os limites <strong>de</strong> uma<br />
tentativa <strong>de</strong> interiorizar o mundo.
2.2. Kierkegaard e o Desespero Humano<br />
O episódio 16 do anime <strong>de</strong> Evangelion tem como título ―Sickness Unto<br />
Death‖ (―Doença até a Morte‖), justamente o nome da tradução inglesa para uma<br />
das obras mais famosas <strong>de</strong> Sören Kierkegaard: ―O Desespero Humano‖. Porém,<br />
a influência kierkegaardiana aparece em outros momentos da série,<br />
particularmente na construção da personagem <strong>As</strong>uka Langley, piloto do EVA-02.<br />
Segundo Kierkegaard, o <strong>de</strong>sespero é doença do espírito, do ―eu‖, po<strong>de</strong>ndo<br />
tomar três formas: o <strong>de</strong>sespero inconsciente <strong>de</strong> ter um ―eu‖ (sendo que tal<br />
ignorância <strong>de</strong> si é o verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sespero), o <strong>de</strong>sespero que não quer, e aquele<br />
que quer ser ele próprio. É a consciência que <strong>de</strong>termina a medida e natureza do<br />
<strong>de</strong>sespero; quanto maior ela for, mais ―eu‖ haverá; logo, maior será o <strong>de</strong>sespero.<br />
“O <strong>de</strong>sespero é, portanto, a „doença mortal‟, esse suplício<br />
contraditório, essa enfermida<strong>de</strong> do eu: eternamente morrer,<br />
morrer sem todavia morrer, morrer a morte. (...) Mas esta<br />
<strong>de</strong>struição <strong>de</strong> si própria que é o <strong>de</strong>sespero é impotente e não<br />
consegue os seus fins. A sua vonta<strong>de</strong> própria é <strong>de</strong>struir-se, mas<br />
é o que ela não po<strong>de</strong> fazer. (...) Eis o ácido, a gangrena do<br />
<strong>de</strong>sespero, esse suplício cuja ponta, dirigida sobre o interior, nos<br />
afunda cada vez mais numa auto<strong>de</strong>struição impotente.”<br />
(KIERKEGAARD, 1988: 199-200)<br />
Em outras palavras, o <strong>de</strong>sespero é morrer sem literalmente morrer; é<br />
querer libertar-se <strong>de</strong> si mesmo e jamais consegui-lo. Embora tal perspectiva<br />
esteja presente em outros personagens, é em <strong>As</strong>uka Soryu Langley que<br />
po<strong>de</strong>mos verificar um processo mais completo, envolvendo as três fases do<br />
<strong>de</strong>sespero kierkegaardiano.<br />
Ainda criança, <strong>As</strong>uka passou por uma experiência traumática: presenciou o<br />
suicídio da mãe. Durante muitos anos lidou com esse drama com <strong>de</strong>negação,<br />
focando-se exclusivamente na preparação para ser piloto do EVA-02. Seu<br />
perfeccionismo e sua atitu<strong>de</strong> arrogante funcionaram bem como sublimação<br />
durante algum tempo; porém, quando teve o seu orgulho ferido após duas<br />
<strong>de</strong>rrotas humilhantes nas batalhas contra os Anjos (as quais foram vencidas<br />
justamente pela Unida<strong>de</strong> 01 <strong>de</strong> Shinji), <strong>As</strong>uka reagiu com ira e ressentimento.<br />
Sua taxa <strong>de</strong> sincronização com o EVA começa a cair, e ela ainda teve que ouvir<br />
<strong>de</strong> Kaworu (o qual mais tar<strong>de</strong> revelaria ser o Último Anjo) uma dolorosa lição:
―Você nunca vai conseguir controlar o EVA se não abrir o seu coração. O EVA<br />
não é uma marionete. Ele tem vida própria. Você só não consegue sincronizar<br />
se estiver com o seu coração fechado.‖ (SADAMOTO, 2004, v. 17, pp. 45-46)<br />
Após ser <strong>de</strong>vastada psiquicamente por um ataque mental do 10º Anjo (o<br />
qual a fez se lembrar <strong>de</strong> seu trauma <strong>de</strong> infância), <strong>As</strong>uka cai em <strong>de</strong>pressão,<br />
ficando em estado catatônico. Sua superação veio <strong>de</strong> uma aceitação a si<br />
mesma: durante a batalha final contra a SEELE 6 , ela <strong>de</strong>scobriu que a sua mãe<br />
sempre a esteve protegendo, pois a alma <strong>de</strong>la estava ―alojada‖ no EVA-02, por<br />
meio da barreira protetora do Campo AT. Com isso, a piloto consegue processar<br />
a sua ansieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> separação, restaurando sua autoconfiança.<br />
Utilizando a teoria <strong>de</strong> Kierkegaard, po<strong>de</strong>ríamos dizer que <strong>As</strong>uka começou<br />
com um <strong>de</strong>sespero inconsciente <strong>de</strong> si mesmo (por exemplo, quando se protegia<br />
na persona <strong>de</strong> uma garota auto-suficiente e prepotente), passando por um<br />
<strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> não querer ser ela mesma (que vem à tona quando a sublimação<br />
fracassa e o ―fantasma‖ da morte da mãe - e a sensação <strong>de</strong> solidão disso<br />
resultante - volta a lhe assombrar) e, por fim, o <strong>de</strong>sespero acarretado por querer<br />
ser ela própria (que ocorre quando, ao <strong>de</strong>scobrir que seu Evangelion foi feito a<br />
partir da alma <strong>de</strong> sua mãe, <strong>As</strong>uka supera seu trauma).<br />
2.3. Hegel e a Instrumentalida<strong>de</strong><br />
Dos três filósofos analisados neste capítulo, Hegel é o único que não serviu<br />
<strong>de</strong> influência <strong>de</strong>clarada para Neon Genesis Evangelion. Ainda assim, há<br />
interessantes analogias entre sua filosofia e as ambições da NERV e SEELE.<br />
Manabu Tsuribe (1999) argumenta que o Projeto <strong>de</strong> Instrumentalida<strong>de</strong> Humana<br />
assemelha-se ao sistema da filosofia <strong>de</strong> Hegel, pois em ambos há a idéia <strong>de</strong> um<br />
sistema como um anel, em que o começo é o fim, e o fim é o começo. É um<br />
pensamento i<strong>de</strong>al, uma "auto-realização dos conceitos", que envolve as<br />
contradições e confrontos dinamicamente, integrando-os <strong>de</strong> forma monística.<br />
6 Após a morte do último Anjo (Kaworu), a SEELE tenta antecipar o Plano <strong>de</strong> Instrumentalida<strong>de</strong><br />
Humana e ataca a base da NERV, enviando tropas do exército japonês. Depois que a Unida<strong>de</strong><br />
02 <strong>de</strong>sperta e <strong>de</strong>strói os navios, helicópteros e bombas, finalmente aparecem os nove últimos<br />
EV<strong>As</strong>, com os quais a SEELE preten<strong>de</strong> imolar a Unida<strong>de</strong> 01 e iniciar os rituais do Terceiro<br />
Impacto.
A característica fundamental da dialética hegeliana é a idéia <strong>de</strong> que ―o<br />
Todo é igual à soma das Partes‖. Este holismo em Hegel é, contudo, um holismo<br />
segundo Lavoisier: ―na natureza, nada se cria, nada se per<strong>de</strong> e tudo se<br />
transforma‖ — sendo que ―natureza‖ é aqui entendida como sendo restrita à<br />
matéria, ou seja, tudo aquilo que tem massa e resulta da entropia da gravida<strong>de</strong>.<br />
Em Hegel, embora a Totalida<strong>de</strong> não seja uma classe <strong>de</strong> elementos que se <strong>de</strong>ixe<br />
<strong>de</strong>finir mediante a coleção <strong>de</strong> todos os elementos que a constitui, o autor<br />
também exclui que exista algum fator exógeno ao sistema (ou seja, à soma das<br />
partes) que <strong>de</strong>sempenhe qualquer função. 7<br />
De acordo com o pensamento hegeliano, a individualida<strong>de</strong> e a<br />
aci<strong>de</strong>ntalida<strong>de</strong> são reduzidas à universalida<strong>de</strong> e à inevitabilida<strong>de</strong>. Neste sistema,<br />
tudo se resume a um processo teleológico, em direção a um fim; aliás, a direção<br />
<strong>de</strong>ste telos já seria pressuposta no início. Neste sistema, o processo no qual<br />
uma criança se torna um homem e mesmo a história da humanida<strong>de</strong> são<br />
consi<strong>de</strong>radas como partes <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> evolução gradual para a<br />
realização da idéia (I<strong>de</strong>e). (cf. TSURIBE, 1999)<br />
O Projeto <strong>de</strong> Instrumentalida<strong>de</strong> Humana <strong>de</strong>senhado pela SEELE e NERV<br />
assemelha-se a certos aspectos <strong>de</strong>ste holismo <strong>de</strong> Hegel. Vislumbra-se um<br />
mundo comunitário: a idéia é fundir todas as almas humanas em uma só, para<br />
compensar os vazios <strong>de</strong> cada um e criar um ser perfeito e completo. Todos os<br />
campos AT, individuais, <strong>de</strong>sapareceriam para se fundir em um só. Seria o fim<br />
dos conflitos humanos, alcançando-se assim a harmonia. Portanto, o real<br />
objetivo da NERV e da SEELE é evoluir a espécie humana: o EVA é o ápice da<br />
existência dos homens; logo, chegando-se ao limite, é necessário evoluir. O<br />
projeto transformaria todos os seres humanos, incompletos e inconstantes,<br />
numa única entida<strong>de</strong> perfeita; ou seja, uma integração orgânica <strong>de</strong> todas as<br />
personalida<strong>de</strong>s. Após essa fusão acabariam os problemas, <strong>de</strong>ficiências, medos<br />
etc.; os homens per<strong>de</strong>riam sua individualida<strong>de</strong>, e se tornariam - só e unicamente<br />
- a Humanida<strong>de</strong>.<br />
Embora estejam envolvidas neste ambicioso empreendimento <strong>de</strong><br />
bioengenharia, NERV e SEELE têm objetivos diferentes: enquanto esta quer<br />
7 Fonte: http://espectivas.wordpress.com/2012/04/27/a-dialectica-<strong>de</strong>-hegel-e-anacronica/
gerar o Terceiro Impacto, Gendo Ikari tem como objetivo secreto se fundir com<br />
Yui 8 . Para a SEELE, a raça humana está estagnada; porém, ela po<strong>de</strong>ria evoluir<br />
mais um passo. Cabe, portanto, moldar o verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>stino da humanida<strong>de</strong>,<br />
que seria fundir todas as almas formando uma só e com isso extinguir as<br />
fraquezas, inseguranças e sofrimentos que cada pessoa carrega em si.<br />
Já a NERV carrega o propósito pessoal <strong>de</strong> seu Comandante Supremo:<br />
rever a alma da esposa. Embora oficialmente o objetivo <strong>de</strong>sta organização seja<br />
combater os Anjos, este é apenas o método, e não a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>la. Apesar <strong>de</strong><br />
Gendo parecer ser o vilão <strong>de</strong> Evangelion, na verda<strong>de</strong> ele é um personagem tão<br />
complexado e frágil quanto os <strong>de</strong>mais. Des<strong>de</strong> a morte da esposa, ele persegue<br />
obsessivamente seu plano, o que dá às pessoas à sua volta a impressão <strong>de</strong> que<br />
ele é frio e distante; mantendo mesmo diante <strong>de</strong> seu filho Shinji uma postura<br />
hostil. É possível que, durante alguns anos, ainda estivesse seguindo os<br />
objetivos da SEELE; porém, a experiência <strong>de</strong> incorporação <strong>de</strong> Yui pela Unida<strong>de</strong><br />
01 abala-o profundamente a ponto <strong>de</strong> mudar seus planos.<br />
Gendo não convoca Shinji para pilotar a Unida<strong>de</strong> 01 por nepotismo; na<br />
verda<strong>de</strong>, só seu filho é capaz <strong>de</strong> sincronizar com o EVA cuja alma é a da própria<br />
mãe. Depois da batalha contra o 9º Anjo, em que o Evangelion 01 ―<strong>de</strong>sperta‖ e,<br />
após uma impressionante <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, absorve o mecanismo S2 do<br />
Anjo (o qual lhe assegura tempo <strong>de</strong> funcionamento ilimitado, o que é um passo<br />
<strong>de</strong>cisivo para a Instrumentalida<strong>de</strong>), a SEELE finalmente percebe as intenções<br />
secretas <strong>de</strong> Gendo: ―Nós não precisamos <strong>de</strong> <strong>de</strong>uses materializados. Muito<br />
menos... se esse Deus for o filho do Ikari.‖ (SADAMOTO, 2003, v. 15, p. 86)<br />
Sendo assim, neste mundo pós-apocalíptico <strong>de</strong> Evangelion, o controle do<br />
<strong>de</strong>stino da Humanida<strong>de</strong> está nas mãos <strong>de</strong> duas organizações megalomaníacas<br />
e potencialmente <strong>de</strong>struidoras; o rastro <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição <strong>de</strong>ixado pelo Segundo<br />
Impacto não <strong>de</strong>ixa dúvidas quanto a isso. SEELE e NERV operam uma<br />
engenharia social em larga escala, na medida em que se utilizam da<br />
biotecnologia para alcançar seus propósitos. Porém, mesmo que em alguns<br />
8 No volume 7, Gendo consegue o embrião <strong>de</strong> Adão, o Primeiro Anjo, o que permitirá a fusão<br />
com Rei Ayanami, clone <strong>de</strong> Yui e portadora da alma <strong>de</strong> Lilith, e que é também a piloto da<br />
Unida<strong>de</strong> 00.
momentos se revele o ―complexo militar-político‖ (por exemplo, quando, após a<br />
<strong>de</strong>struição do último Anjo, a se<strong>de</strong> da NERV é invadida pelo governo japonês, a<br />
mando da SEELE), o ―po<strong>de</strong>r‖ almejado pelas duas organizações transcen<strong>de</strong>, não<br />
é estritamente material; como se viu no capítulo anterior, Neon Genesis<br />
Evangelion é uma distopia com forte fundo místico-religioso.<br />
Por fim, ainda sobre o Projeto <strong>de</strong> Instrumentalida<strong>de</strong> Humana, a questão é<br />
colocada <strong>de</strong> forma radical. Durante a batalha final e a iminência do Terceiro<br />
Impacto, Shinji Ikari, piloto do único EVA feito a partir <strong>de</strong> Lilith, precisa tomar<br />
uma <strong>de</strong>cisão: ou ele mantém sua individualida<strong>de</strong>, rejeita a instrumentalida<strong>de</strong> e<br />
continua a viver num mundo apocalíptico, ou aceita o projeto, vive num mundo<br />
i<strong>de</strong>al, mas no qual cada indivíduo <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> sê-lo para dar lugar à unida<strong>de</strong>.<br />
Consi<strong>de</strong>rando a fragilida<strong>de</strong> psíquica <strong>de</strong> Shinji, qual <strong>de</strong>cisão ele tomará?<br />
3. O Três Pilotos e a Questão da I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
Susan Napier (2002) afirma que Evangelion po<strong>de</strong> ser visto como um<br />
romance <strong>de</strong> formação (Bildungsroman), em que há um gradual processo <strong>de</strong><br />
amadurecimento e auto-<strong>de</strong>scoberta do protagonista. Shinji teria <strong>de</strong> lidar com<br />
uma or<strong>de</strong>m patriarcal (na medida em que seu pai é também seu chefe) e a forte<br />
presença do feminino (as pilotos Rei e <strong>As</strong>uka, a capitã Misato, a cientista Ritsuko<br />
e o próprio EVA, que é uma entida<strong>de</strong> maternal). Os Anjos seriam como o ―outro‖<br />
que precisa ser repudiado para que o sujeito em questão (ou seja, Shinji)<br />
amadureça. Seria o protagonista capaz <strong>de</strong>, ao longo da trama, <strong>de</strong>senvolver uma<br />
forma coesa <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>?<br />
Na opinião <strong>de</strong> Manabu Tsuribe, a resposta é ―não‖:<br />
“Talvez Evangelion tenha <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> ser uma história em um<br />
<strong>de</strong>terminado ponto. No episódio 6 da série <strong>de</strong> TV 9 , Shinji e Rei,<br />
que eram „crianças <strong>de</strong> mente fechada‟, lutaram juntos contra um<br />
Anjo e „abriram suas mentes‟, trocando sorrisos um com o outro.<br />
Embora esta cena tenha provavelmente sido o primeiro clímax<br />
da série, talvez Neon Genesis Evangelion como uma história <strong>de</strong><br />
„crescimento e in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> um menino‟, como um<br />
Bildungsroman - terminou naquele ponto. Evangelion como uma<br />
história parou por aí. Na segunda meta<strong>de</strong> da série (...), a<br />
evolução do tempo como uma história parou e o mundo <strong>de</strong><br />
9 Equivalente no mangá aos capítulos 16 a 19, que compõem o volume 6 da edição brasileira.
Evangelion começou a gradualmente abordar a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
forma auto-referencial. Não há qualquer evolução <strong>de</strong> uma<br />
história a partir dali.” (TSURIBE, 1999)<br />
A análise do perfil psicológico dos três pilotos po<strong>de</strong> elucidar se há ou não<br />
um processo <strong>de</strong> amadurecimento. Antes <strong>de</strong> tudo, adotarei uma distinção<br />
proposta por Charles Duan (2001) <strong>de</strong> duas formas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do ―eu‖ [self]: a<br />
―real‖ (inerentemente presente no ―eu‖, sua natureza) e a ―construída‖ (produzida<br />
a partir <strong>de</strong> observações e interpretações humanas ―não-naturais‖ <strong>de</strong> uma<br />
pessoa, feitas tanto por ela mesma quanto pelos outros) Trocando em miúdos, a<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> real é criada pela pessoa real, on<strong>de</strong> não há falta <strong>de</strong> auto-<br />
entendimento do ―eu‖; já a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> construída é feita a partir <strong>de</strong><br />
<strong>representações</strong> simbólicas <strong>de</strong>ssa pessoa.<br />
Tal distinção é utilizada pelo autor para afirmar que o tema <strong>de</strong> Evangelion é<br />
o estudo dos fatores que levam os personagens a escolherem viver por meio do<br />
―eu‖ construído ao invés do ―eu‖ real, e as maneiras pelas quais eles finalmente<br />
se libertam <strong>de</strong>sses fatores restritivos. Tal estudo seria feito pela exploração <strong>de</strong><br />
como se dá a auto-<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong>sses fatores pelos personagens, no intuito <strong>de</strong><br />
que a própria audiência/público da série possa <strong>de</strong>scobrir os mesmos fatores em<br />
si mesmos e se libertar <strong>de</strong> maneiras semelhantes.<br />
O primeiro ―caso‖ que analisarei é Shinji Ikari, que encarna <strong>de</strong> forma trágica<br />
- e não épica, heróica - o fardo <strong>de</strong> pilotar o EVA, algo que só o faz sofrer. Ele é<br />
um herói relutante, e afirma constantemente que não pilota a Unida<strong>de</strong> 01 por um<br />
senso <strong>de</strong> <strong>de</strong>ver cívico ou por amor à humanida<strong>de</strong>, mas porque é tão fraco que<br />
<strong>de</strong>ixa os outros tomarem as <strong>de</strong>cisões por ele. O filho <strong>de</strong> Gendo Ikari possui forte<br />
auto-menosprezo, ou seja, age como se fosse indiferente a tudo, incapaz <strong>de</strong><br />
reação. Porém, ao mesmo tempo Shinji teme que, sem o EVA, ele não é nada.<br />
Por trás da aparência fraca e medrosa, no fundo ele luta para ter a aprovação<br />
das pessoas, especialmente <strong>de</strong> seu pai. Segundo o próprio Yoshiyuki<br />
Sadamoto, no início Shinji busca esse reconhecimento pilotando o EVA-01, ―mas<br />
acaba se questionando sobre seu papel na NERV e o valor da sua própria vida.‖<br />
(SADAMOTO, 2001, v. 2, p. 89)
É possível afirmar que Shinji usa a covardia como ―máscara‖ para escon<strong>de</strong>r<br />
sua verda<strong>de</strong>ira natureza. Para Charles Duan (2001), há três momentos que<br />
indicam tal possibilida<strong>de</strong> interpretativa são: primeiro, quando Shinji se recusa a<br />
<strong>de</strong>struir o EVA-03, possuído por um Anjo, mas contendo um ser humano <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong>le (Toji Suzuhara, amigo <strong>de</strong> Shinji); segundo, a in<strong>de</strong>cisão do personagem<br />
quando Kaworu, o último Anjo, lhe pediu para que o matasse; por fim, o colapso<br />
moral que abateu Shinji após matá-lo, fazendo com que, mesmo no controle do<br />
EVA-01 durante os rituais do Terceiro Impacto, ele continuasse agindo <strong>de</strong> forma<br />
evasiva.<br />
<strong>As</strong> três cenas têm em comum o fato <strong>de</strong> Shinji Ikari estar ―empo<strong>de</strong>rado‖,<br />
habilitado para se tornar não uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> criada, mas um criador (ou<br />
<strong>de</strong>struidor) <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s alheias. Como piloto do único Evangelion feito a partir<br />
<strong>de</strong> Lilith, ele adquire o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> julgar a humanida<strong>de</strong>, pois está em suas mãos se<br />
o Terceiro Impacto ocorrerá ou não. Porém, mesmo nesta situação extrema<br />
Shinji reage contra sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> real, portando-se como covar<strong>de</strong>, criando um<br />
escudo para o seu próprio po<strong>de</strong>r. Ele teme que, ao usá-lo, causará dor aos<br />
outros; mesmo que reconheça sua liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha, Shinji constata que<br />
aceitar sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> real não leva a um único e pre<strong>de</strong>terminado <strong>de</strong>stino, e é<br />
essa dúvida - entre continuar na ―zona <strong>de</strong> conforto‖, eximindo-se <strong>de</strong> suas<br />
responsabilida<strong>de</strong>s, ou aceitar a si mesmo, com o risco <strong>de</strong> ferir as pessoas que<br />
estima - que o corrói. (cf. DUAN, 2001)<br />
No final, Shinji acredita que todos o o<strong>de</strong>iam, mas reconhece que, para que<br />
isso mu<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> apenas <strong>de</strong>le mesmo. Nas palavras do Fuyutsuki,<br />
subcomandante da NERV, ―sua verda<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser alterada, simplesmente, pela<br />
maneira como você a aceita‖. Com isso, Shinji recusa a Instrumentalida<strong>de</strong> e<br />
aceita sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> real, o que envolve lidar com sua individualida<strong>de</strong> (e,<br />
portanto, sua incompletu<strong>de</strong>): ―Eu me o<strong>de</strong>io... mas, talvez eu possa ser capaz <strong>de</strong><br />
me amar. Talvez minha vida tenha um valor maior. Sim. Eu não sou nada além<br />
<strong>de</strong> mim. Eu sou eu. Eu quero ser eu. 10 Quero continuar a existir nesse mundo!<br />
Eu sou digno <strong>de</strong> viver aqui!‖ (BRODERICK, 2002)<br />
10 Notem aqui um traço do terceiro tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero kierkegaardiano: querer ser ele próprio.
Por sua vez, <strong>As</strong>uka Langley, assim como Shinji, tem um background <strong>de</strong><br />
família disfuncional. Ambos per<strong>de</strong>ram precocemente suas mães e têm pais<br />
ausentes - embora no caso <strong>de</strong> <strong>As</strong>uka, isso ocorra porque ela é fruto <strong>de</strong> uma<br />
inseminação artificial. Porém, ao invés <strong>de</strong> agir <strong>de</strong> forma introspectiva, a piloto do<br />
EVA-02 adota uma atitu<strong>de</strong> arrogante, à la ―posso me virar sozinha‖.<br />
<strong>As</strong>uka torna-se obcecada pelo sucesso profissional, e escon<strong>de</strong> seu trauma<br />
familiar com <strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> eficiência no trabalho. O fato <strong>de</strong> ter sido criada<br />
na Alemanha a fez estudar num sistema educacional em que a eficiência e a<br />
excelência são cobradas implacavelmente. <strong>As</strong>uka também adquire uma relação<br />
<strong>de</strong> dominação técnica com o mundo exterior, tratando os objetos, as pessoas e<br />
seu próprio Evangelion como meios para o seu o seu fim: preservar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
construída <strong>de</strong> ser uma piloto bem-sucedida. A seguinte passagem do mangá<br />
mostra como ela vinculava seu bem-estar ao reconhecimento <strong>de</strong> seu talento: ―Se<br />
eu fui escolhida entre tantos para ser uma piloto... e eu luto e <strong>de</strong>rroto estes<br />
Anjos... e se todos reconhecerem esses feitos... então estarei feliz.‖<br />
(SADAMOTO, 2002, v. 8, p. 52)<br />
Porém, quando as barreiras protetoras e agressivas que <strong>de</strong>senvolveu para<br />
si são quebradas, o <strong>de</strong>licado quadro clínico <strong>de</strong> <strong>As</strong>uka é <strong>de</strong>svelado. Seu EVA<br />
pára <strong>de</strong> funcionar porque, como dissera Kaworu, ela ―não abre o seu coração‖,<br />
tratando-o como marionete, robô. O ataque psíquico do 10º Anjo - e, com isso, a<br />
recordação do passado sombrio - a faz ficar <strong>de</strong>pressiva. O primeiro passo para a<br />
cura <strong>de</strong> <strong>As</strong>uka é a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> real: o fato <strong>de</strong> ser uma garota<br />
carente, que quer que alguém que a proteja. Isso ocorre justamente quando<br />
reconhece que sua mãe não a abandonou, mas esteve este tempo todo<br />
cuidando <strong>de</strong>la, por meio do Campo AT, no EVA-02. Após tal <strong>de</strong>scoberta, ela sorri<br />
e diz: ―Mamãe. Era você quem esteve me protegendo por todo este tempo.‖<br />
(SADAMOTO, 2010, v. 24, p. 34)<br />
Por sua vez, Rei Ayanami, piloto do EVA-00, é como uma construção a<br />
partir do vazio; o fato <strong>de</strong> ser um clone <strong>de</strong> Yui Ikari potencializa seu caráter <strong>de</strong><br />
―tabula rasa‖. Não por acaso, a interrogação <strong>de</strong> Rei é mais metafísica que a <strong>de</strong><br />
Shinji e <strong>As</strong>uka: inicialmente consi<strong>de</strong>ra-se uma ―casca vazia com uma alma falsa‖,<br />
mas sua voz interior sugere que ela é formada pelas interações com os outros -
e isso a faz ter medo <strong>de</strong> cessar e <strong>de</strong>saparecer das mentes <strong>de</strong>les. Ao longo da<br />
série ela gradualmente <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter Gendo, seu ―criador‖, como único referencial,<br />
e se aproxima <strong>de</strong> Shinji. Este processo também é o <strong>de</strong> questionamento <strong>de</strong> seu<br />
―eu‖ construído (a piloto que segue or<strong>de</strong>ns) e a busca por uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> real.<br />
Em uma das cenas mais emocionantes <strong>de</strong> Neon Genesis Evangelion, Rei<br />
se suicida, ao colocar o EVA-00 em modo <strong>de</strong> auto<strong>de</strong>struição e assim <strong>de</strong>rrotar o<br />
penúltimo Anjo. Porém, antes disso, ela e o inimigo têm uma estranha<br />
―conversa‖, na qual o Anjo revela os <strong>de</strong>sejos inconscientes <strong>de</strong> Ayanami: ―Você<br />
tem (...) a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter [Shinji] Ikari só para você. (...) Você se sente tão<br />
sozinha que... <strong>de</strong>sejaria ele sempre perto <strong>de</strong> você. Esse é o seu coração. Cheio<br />
<strong>de</strong> tristeza, ódio e melancolia.‖ (SADAMOTO, 2006, v. 19, pp. 26-28) Imobilizada<br />
pelo Anjo e temendo que este ataque o EVA-01, Rei Ayanami vê como única<br />
solução explodir a Unida<strong>de</strong> 00. Porém, pouco <strong>de</strong>pois se <strong>de</strong>scobre que ela era<br />
apenas a ―Segunda‖ <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> clones. A ―Terceira‖ inicialmente não se<br />
lembra <strong>de</strong> nada que ocorreu com as cópias anteriores, mas ao longo do tempo<br />
<strong>de</strong>scobre sua misteriosa conexão com elas.<br />
Rei Ayanami também <strong>de</strong>sempenhará um papel importante no Projeto <strong>de</strong><br />
Instrumentalida<strong>de</strong> Humana, pois, como foi dito no capítulo anterior, ela é<br />
portadora da alma <strong>de</strong> Lilith. Rei, contudo, recusa-se a se fundir com Gendo e<br />
resolve se unir com Shinji, seu ―filho‖ (afinal, ela foi clonada a partir <strong>de</strong> Yui), cujo<br />
EVA é feito a partir do corpo <strong>de</strong> Lilith. Com isso, inicia-se o Terceiro Impacto.<br />
Porém, após muito refletir, Shinji recusa esta fusão com sua ―mãe‖, e escolhe<br />
que <strong>de</strong>veria estar com <strong>As</strong>uka, sua alterida<strong>de</strong> radical, o ―outro‖ que ele nunca<br />
po<strong>de</strong>ria se fundir em um só.<br />
Evangelion, portanto, termina quando Shinji encontrou <strong>As</strong>uka como "o<br />
outro". Para Shinji, ela é uma existência ambígua: por um lado, <strong>As</strong>uka o inspira e<br />
se importa com ele, mas por outro ela também é uma existência fora <strong>de</strong> seu<br />
controle, o ―outro‖ que nunca po<strong>de</strong> ser interiorizado. A ambigüida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>As</strong>uka é<br />
também a ambigüida<strong>de</strong> do próprio Evangelion. (cf. TSURIBE, 1999)<br />
4. Evangelion e o Mal-Estar Japonês nos Anos 90<br />
Em 1995 o Japão passou por dois <strong>de</strong>sastres, sendo um natural e outro feito<br />
pelo próprio homem. O primeiro foi o terremoto <strong>de</strong> Kobe, em 17 <strong>de</strong> janeiro, que
vitimou mais <strong>de</strong> seis mil pessoas e causou enormes prejuízos materiais para a<br />
cida<strong>de</strong>. Apenas dois meses <strong>de</strong>pois, em 20 <strong>de</strong> março, seguidores da seita Aum<br />
Shinrikyo (Aum Verda<strong>de</strong> Suprema) conduziram ataques simultâneos em cinco<br />
carros <strong>de</strong> diferentes trens do metrô <strong>de</strong> Tóquio com gás sarin, resultando em 12<br />
mortes e cerca <strong>de</strong> 5500 pessoas afetadas <strong>de</strong> alguma forma, sendo mais <strong>de</strong> 1300<br />
com lesões permanentes, como cegueira. (cf. ANTONIOLI, 2012).<br />
O terremoto e o ataque terrorista abalaram o já combalido moral da<br />
população japonesa, que atravessava uma recessão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1990. Kauê Antonioli<br />
relacionou <strong>de</strong> forma intrigante os dois eventos com o sucesso <strong>de</strong> Evangelion:<br />
“Se um dos objetivos da Aum com o ataque foi violentar o país,<br />
para forçá-lo à auto-reflexão, isso <strong>de</strong> fato aconteceu. Não apenas<br />
com os intelectuais que estudaram o caso, mas as próprias<br />
vítimas, ao invés <strong>de</strong> apenas <strong>de</strong>monizar o culto, o fizeram não<br />
sem mirar seu <strong>de</strong>do indicador para o espelho. (...) Para o Japão,<br />
o atentando no metrô <strong>de</strong> Tóquio foi uma advertência e o fato<br />
pontual da virada histórica do país, o início <strong>de</strong> uma nova era,<br />
menos brilhante e pomposa. 1995 foi também o ano do terremoto<br />
<strong>de</strong> Kobe e do lançamento <strong>de</strong> Neon Genesis Evangelion, que não<br />
teve o apelo popular que conquistou com seu teor pessimista<br />
apenas por acaso.” (Ibi<strong>de</strong>m)<br />
O estado <strong>de</strong> espírito japonês estava em crise; mais do que isso,<br />
predominava no país, particularmente entre os jovens, a sensação <strong>de</strong> anomia,<br />
isto é, <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> objetivos e perda <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong>corridos do acelerado<br />
<strong>de</strong>senvolvimento econômico e das profundas alterações sociais, os quais<br />
<strong>de</strong>bilitaram a consciência coletiva. Embora generalizado, este mal-estar dos<br />
anos 90 foi mais forte no Japão; talvez pela experiência da bomba atômica na II<br />
Guerra, mas também por uma antiga preocupação cultural com a transitorieda<strong>de</strong><br />
da vida, os japoneses <strong>de</strong>senvolveram uma crítica apocalíptica à tecnologia, a<br />
qual se manifestou em muitos mangás e animes (um exemplo notório é Akira).<br />
Moldou-se uma cultura <strong>de</strong> massa obcecada pela temática do ―fim do mundo‖, e<br />
Evangelion po<strong>de</strong> ser visto como uma alegoria <strong>de</strong>ste Japão pós-mo<strong>de</strong>rno.<br />
Esta visão pessimista da tecnologia aparece em Neon Genesis Evangelion<br />
na medida em que há um questionamento sobre a relação do homem e da<br />
máquina, sendo que esta parece cada vez mais dominar e interferir na realida<strong>de</strong>.<br />
A problematização da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> humana no contexto da tecnologia é levada em
uma direção crescentemente apocalíptica, uma atmosfera <strong>de</strong> ―<strong>de</strong>sespero<br />
cultural‖ concretamente manifestada no inci<strong>de</strong>nte envolvendo a Aum Shinrikyo e<br />
que também serviu <strong>de</strong> inspiração i<strong>de</strong>ológica e estética para mangás como<br />
Evangelion. (cf. NAPIER, 2002, p. 103-107)<br />
Os dramas dos personagens <strong>de</strong> Evangelion também refleteM algo<br />
culturalmente específico ao Japão: a crescente <strong>de</strong>sconfiança e alienação entre<br />
as gerações. A<br />
distância entre Shinji e<br />
seu pai é um exemplo<br />
sintomático disso. A<br />
cena em que se<br />
encontram no cemitério<br />
para velar o túmulo <strong>de</strong><br />
Yui (fazia 11 anos<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua morte) foi<br />
uma das raras em que<br />
os dois chegaram a<br />
conversar, e ainda<br />
assim foi um diálogo<br />
duro (Imagem 2).<br />
Neon Genesis Evangelion também po<strong>de</strong> ser visto como a história da<br />
superação <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>pressão - no caso a <strong>de</strong> seu criador, Hi<strong>de</strong>aki Anno. Na 1ª<br />
edição do mangá há um texto <strong>de</strong>le, intitulado ―O que estamos tentando criar?‖,<br />
que é uma verda<strong>de</strong>ira carta <strong>de</strong> intenções da série:<br />
“[O cenário em que se passa Neon Genesis Evangelion é] um<br />
mundo saturado <strong>de</strong> visões pessimistas. O mundo no qual nossa<br />
história começa (...) somente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> terem sido removidos<br />
todos os traços do otimismo. Há ali um garoto <strong>de</strong> 14 anos com<br />
medo <strong>de</strong> ter contato com outras pessoas. Ele consi<strong>de</strong>ra esse<br />
contato inútil, abandonou qualquer esforço para que os outros o<br />
compreendam e tenta viver em um mundo isolado. É um garoto<br />
que se sente abandonado pelo pai e se convenceu <strong>de</strong> que é uma<br />
pessoa completamente <strong>de</strong>snecessária para o mundo. Um<br />
menino amedrontado, que não tem coragem [sequer] <strong>de</strong> se<br />
suicidar.” (SADAMOTO, 2005, pp. 182-183)
Esta <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Shinji Ikari, quando comparada com o trecho a seguir,<br />
po<strong>de</strong> ser vista como um auto-retrato <strong>de</strong> Anno:<br />
“Em Neon Genesis Evangelion estão <strong>de</strong>positados quatro anos da<br />
minha vida, a vida <strong>de</strong> um homem estraçalhado, incapaz <strong>de</strong><br />
realizar o que quer que fosse. Um homem que fugiu <strong>de</strong> tudo<br />
durante quatro anos, e <strong>de</strong> quem o máximo que se po<strong>de</strong>ria dizer é<br />
que não estava morto.” (Ibi<strong>de</strong>m, p. 182)<br />
É plausível que o período <strong>de</strong> quatro anos <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão <strong>de</strong> Anno foi a<br />
principal fonte dos elementos psicológicos da série e <strong>de</strong> seus personagens, pois<br />
ele escreveu no papel muitas das provações e tormentos <strong>de</strong> sua condição<br />
<strong>de</strong>pressiva. Durante a produção da série, Hi<strong>de</strong>aki Anno se <strong>de</strong>sencantou com o<br />
estilo <strong>de</strong> vida otaku, consi<strong>de</strong>rando-o uma forma <strong>de</strong> autismo forçado.<br />
Suce<strong>de</strong>ram-se aos pais e avós que trabalharam arduamente pela<br />
reconstrução do Japão (as décadas <strong>de</strong> 1940 a 70) uma geração <strong>de</strong> jovens<br />
<strong>de</strong>siludidos, formados sob valores materialistas e carentes <strong>de</strong> propósitos<br />
existenciais. Muitos <strong>de</strong>les encontraram na cultura otaku uma válvula <strong>de</strong> escape<br />
para seu <strong>de</strong>slocamento social: Akai Takami, co-fundador da Gainax (famoso<br />
estúdio <strong>de</strong> animação, responsável por animes como o próprio Evangelion),<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-os: ―É porque são abafados pelo meio social que os jovens escapam<br />
para a dimensão virtual. Nossa geração cresceu sem razão real para se orgulhar<br />
<strong>de</strong> si mesma.‖ (ANTONIOLI, 2011) Porém, Anno não os poupa da crítica <strong>de</strong><br />
serem escapistas, <strong>de</strong> fugirem do confronto com a realida<strong>de</strong>.<br />
5. Conclusão<br />
Uma das coisas mais notáveis sobre Evangelion é que a série funciona em<br />
em quatro níveis distintos. Po<strong>de</strong> ser simplesmente apreciado como uma<br />
aventura sci-fi habilmente realizada, mas é também uma sátira sombria do<br />
gênero mecha, uma parábola sobre amadurecimento e um tratado sobre como<br />
enfrentar a solidão e a incerteza no mundo adulto. (cf. CRANDOL, 2002)<br />
Ao longo <strong>de</strong>ste artigo procurei mapear as principais questões que marcam<br />
Neon Genesis Evangelion. Quase todas elas lidam com o 3º e o 4º <strong>de</strong>stes níveis<br />
<strong>de</strong> interpretação estabelecidos por Mike Crandol (2002). Diferentemente <strong>de</strong><br />
outros títulos do gênero mecha, em que a ênfase é dada nos robôs, Evangelion
etrata a vida dos personagens com suas imperfeições e problemas. ―Evi<strong>de</strong>ncia-<br />
se, então, a analogia entre a própria vida e o mundo dos quadrinhos: a vida<br />
concebida como mangá e mangá concebido como vida.‖ (MENDES, 2006, p. 57)<br />
É possível dizer que temos nesta HQ uma ―lição‖ envolvendo a aceitação<br />
da condição humana: postula-se que qualquer lugar po<strong>de</strong> ser o paraíso,<br />
contanto que se tenha o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> viver. Há também uma crítica à mentalida<strong>de</strong><br />
―tecno-gnóstica‖, isto é, a mescla <strong>de</strong> engenharia social com ambições místicas.<br />
Nesse sentido, a mensagem <strong>de</strong> Evangelion é que o homem não po<strong>de</strong> fundar<br />
uma nova realida<strong>de</strong>, moldar a humanida<strong>de</strong> a seu bel-prazer, como se o<br />
conhecimento das verda<strong>de</strong>s divinas fosse acessível a alguns mortais, e estes<br />
pu<strong>de</strong>ssem interferir profundamente na vida dos <strong>de</strong>mais - no caso da SEELE e<br />
NERV, causando o Segundo Impacto e encaminhando o Terceiro.<br />
Há também a idéia, com ecos <strong>de</strong> Schopenhauer, <strong>de</strong> que as pessoas nunca<br />
po<strong>de</strong>rão acabar com sua solidão, porque todas elas estão fundamentalmente<br />
sozinhas. Sendo assim, cabe aceitar a incompletu<strong>de</strong> inerente à natureza<br />
humana, e <strong>de</strong>senvolver uma distância média que nos permita evitar tanto a<br />
completa solidão quanto os <strong>de</strong>sgastes da sociabilida<strong>de</strong>. Além disso, quando<br />
Shinji Ikari aceita a vida e recusa a instrumentalida<strong>de</strong>, acaba indiretamente<br />
fazendo uma o<strong>de</strong> ao livre-arbítrio: todo ser humano tem o potencial <strong>de</strong> criar seu<br />
próprio mundo. A fábula do amadurecimento <strong>de</strong> Shinji, ao mesmo tempo em que<br />
é autobiográfica, talvez também procure convencer a nós, leitores, <strong>de</strong> que<br />
somos dignos <strong>de</strong> viver neste mundo. O mesmo po<strong>de</strong> ser dito do processo <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> <strong>As</strong>uka, que apren<strong>de</strong>u a aceitar a si mesma (isto é, sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
real), reconhecendo as próprias fragilida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> lado a persona<br />
arrogante e auto-suficiente que construíra.<br />
Por outro lado, consi<strong>de</strong>rando o retrato soturno da psique humana que há<br />
na série, a visão apocalíptica <strong>de</strong> Neon Genesis Evangelion também po<strong>de</strong> ser<br />
vista como irônica: mesmo quando pensamos ter controle da realida<strong>de</strong> à nossa<br />
volta, na verda<strong>de</strong> estamos à sua mercê, como personagens nas mãos do<br />
<strong>de</strong>stino - ou dos autores/<strong>de</strong>senhistas. (cf. NAPIER, 2002, p. 115)<br />
Outra dimensão pessimista <strong>de</strong> Evangelion vem à tona quando se consi<strong>de</strong>ra<br />
seu contexto histórico e cultural: o Japão dos anos 1990, um país sob anomia,
conflitos geracionais, temores apocalípticos e uma <strong>de</strong>sconfiança sobre a<br />
capacida<strong>de</strong> da tecnologia <strong>de</strong> gerar bem-estar ao invés <strong>de</strong> (ainda mais) <strong>dilemas</strong><br />
morais e existenciais. Por estas e outras razões (como a estética), a trama <strong>de</strong><br />
Evangelion tornou-se cada vez mais sombria à medida que a série progrediu.<br />
In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do olhar adotado ser otimista ou amargo, em ambos<br />
os casos Neon Genesis Evangelion aparece certamente como um mangá (e<br />
anime) intrigante e <strong>de</strong>nso, que encanta seus leitores (e espectadores) com os<br />
dramas e angústias <strong>de</strong> seus personagens. Estes vivem uma gran<strong>de</strong> aventura<br />
apenas para <strong>de</strong>scobrirem que esta não po<strong>de</strong> compensar as necessida<strong>de</strong>s<br />
humanas básicas <strong>de</strong> amor e amiza<strong>de</strong>.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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REFERÊNCIAS FOTOGRÁFICAS<br />
Imagem 1: http://www.mangapt.net/online/Shinseiki_Evangelion/v02_c11/15<br />
Imagem 2: http://www.mangapt.net/online/Shinseiki_Evangelion/v05_c29/21