entre o bordado eo papel: a poesia portuguesa de autoria ... - TEL
entre o bordado eo papel: a poesia portuguesa de autoria ... - TEL
entre o bordado eo papel: a poesia portuguesa de autoria ... - TEL
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />
ENTRE O BORDADO E O PAPEL: A POESIA PORTUGUESA DE<br />
AUTORIA FEMININA NO PRIMEIRO QUAR<strong>TEL</strong> DO SÉCULO XX.<br />
Suilei Monteiro Giavara 1<br />
Para Michelle Perrot a palavra da mulher “pertence à vertente<br />
privada das coisas; ela é da or<strong>de</strong>m do coletivo e do informal”. 2 Assim, as<br />
ações também eram cerceadas pela própria educação burguesa voltada<br />
para o casamento que circunscrevia o território <strong>de</strong> atuação feminino às<br />
pare<strong>de</strong>s do lar ou, no máximo, às obrigações sociais impostas pela “vida<br />
familiar”. Consequentemente, isso fez com que o discurso feminino, quando<br />
não proibido, ganhasse o status <strong>de</strong> pouca serieda<strong>de</strong> e, às vezes, até mesmo<br />
<strong>de</strong> levianda<strong>de</strong>, visto que não habitava o espaço público on<strong>de</strong> as <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong><br />
importância são tomadas.<br />
Na literatura, o panorama também não era diferente, a começar pelo<br />
fato <strong>de</strong> que a divulgação das primeiras produções literárias <strong>de</strong> mulheres ser<br />
feita geralmente nas reuniões domésticas em que se tomava o chá, nos restritos<br />
“salões literários”, ou em jornais locais, magazines e outras publicações<br />
<strong>de</strong>stinadas ao público feminino. Assim, cabe dizer que, embora o final do século<br />
XIX e início do seguinte tenham sido palco <strong>de</strong> profundas mudanças na<br />
condição feminina, as escritoras do período ainda precisavam enfrentar adversida<strong>de</strong>s<br />
relacionadas ao precário nível <strong>de</strong> instrução da mulher <strong>portuguesa</strong><br />
e, obviamente, lutar contra o preconceito <strong>de</strong> alguns críticos mais ferrenhos<br />
que procuravam minar, por motivos <strong>de</strong>claradamente sexistas, o vigor <strong>de</strong>ssas<br />
primeiras manifestações, a exemplo <strong>de</strong> Ramalho Ortigão para quem a pretensão<br />
das mulheres <strong>de</strong> a<strong>de</strong>ntrar no mundo das letras tem como resultado “duas<br />
catástrofes: o estado da literatura nacional e o estado da cozinha nacional.” 3<br />
No entanto, com o passar do tempo, os progressos advindos dos<br />
i<strong>de</strong>ais pós-revolucionários e o aumento do nível <strong>de</strong> escolarização, fomentaram<br />
a id<strong>eo</strong>logia feminista que, embora ainda <strong>de</strong> forma oficiosa, colocou<br />
1 Doutoranda – UNESP/Assis – sugiavara@yahoo.com.br<br />
2 PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. 1. ed., Bauru: Edusc, 2005. p. 317<br />
3 Apud: ALONSO, ALONSO, Cláudia Pazos. Imagens do Eu na <strong>poesia</strong> <strong>de</strong> Florbela Espanca.<br />
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997. p. 19 e 22
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />
em discussão a função da mulher na socieda<strong>de</strong> e, consequentemente, os<br />
estereótipos “enraizados” no imaginário popular que até então endossavam<br />
as representações da figura feminina associadas à uma supervalorização<br />
da sensibilida<strong>de</strong> em <strong>de</strong>trimento da sua racionalida<strong>de</strong>. Tal avanço cultural<br />
propiciou o rompimento das pare<strong>de</strong>s domésticas e a mulher pô<strong>de</strong> inserirse<br />
em espaços majoritariamente masculinos, <strong>entre</strong> eles a <strong>poesia</strong>, conforme<br />
po<strong>de</strong> ser comprovado por um rápido olhar nas antologias <strong>de</strong> Nuno Catarino<br />
Cardoso (1917), <strong>de</strong> Antonio Salvado (1961) 4 e <strong>de</strong> Albino Forjaz (1931),<br />
intituladas, respectivamente, Poetisas Portuguesas, Antologia das Mulheres<br />
Poetas Portuguesas e Poetisas <strong>de</strong> Hoje que listam o nome <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> uma<br />
centena <strong>de</strong> poetisas. Esses dados, por um lado, revelam a importância do<br />
período para a conquista <strong>de</strong> um espaço mais abrangente para essa <strong>poesia</strong>,<br />
mas, por outro, também levam ao questionamento dos motivos que fizeram<br />
com que essa produção tão ampla tenha sido colocada na coxia da história<br />
da literatura.<br />
O próprio Antonio José Saraiva diz que, embora no começo do século<br />
tenha havido algumas ações vanguardistas, “uma <strong>de</strong>cidida qualificação<br />
literária geral da mulher <strong>portuguesa</strong>” só acontecerá na década <strong>de</strong> 50, 5 <strong>de</strong>ixando<br />
transparecer que havia um critério <strong>de</strong> valoração e que este era construído<br />
em bases androcêntricas, nas quais as produções femininas eram<br />
vistas como obras <strong>de</strong> valor menor principalmente porque falavam <strong>de</strong> amor<br />
ou <strong>de</strong> temas correlatos.<br />
Em tempo, convém lembrar que a inserção da mulher na ativida<strong>de</strong><br />
literária pela via da subjetivida<strong>de</strong> propicia o afloramento <strong>de</strong> um discurso<br />
peculiar à medida que revela traços da exclusão social que a obrigou a explorar<br />
o universo interior e isso “significou dar visibilida<strong>de</strong> a um imaginário<br />
até então encoberto e silenciado; nesse imaginário, o amor, a sexualida<strong>de</strong>, o<br />
corpo, o <strong>de</strong>sejo, o trabalho, a maternida<strong>de</strong>, a amiza<strong>de</strong>, a memória, a história<br />
e a nacionalida<strong>de</strong> adquirem novos sentidos, [...] levantando a questão da<br />
relação <strong>entre</strong> linguagem, po<strong>de</strong>r e resistência [...]”. 6<br />
4 Convém especificar que embora a obra tenha sido publicada na segunda meta<strong>de</strong> do século<br />
XX, nela constam nomes <strong>de</strong> poetisas da primeira meta<strong>de</strong>.<br />
5 SARAIVA, História da Literatura Portuguesa. 7. ed. Porto: Martins Fontes, 1973. p. 1125.<br />
6 SCHMIDT, Rita Terezinha. Recortes <strong>de</strong> uma história: a construção <strong>de</strong> um fazer/saber. In:
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />
Na verda<strong>de</strong>, esse cerceamento, principalmente da temática, induziu<br />
as escritoras a encontrar “formas sutis, na <strong>poesia</strong> lírico amorosa para<br />
falar do amor/<strong>de</strong>sejo, sem que sofressem punições sociais (marginalização<br />
e con<strong>de</strong>nação da socieda<strong>de</strong>) ou morais (estimatizadas como mulheres permissivas<br />
ou histéricas).” 7 Embora a parte relativa ao não sofrer represálias<br />
não seja totalmente verda<strong>de</strong>ira, como bem comprovam os episódios nada<br />
calorosos da recepção crítica à Florbela Espanca (1894 – 1930) e Judith Teixeira<br />
(1880 – 1959), poetisas que enfoco aqui, essas estratégias permitiram<br />
que as obras pu<strong>de</strong>ssem circular por espaços mais amplos, fomentando a já<br />
crescente visibilida<strong>de</strong> das escritoras.<br />
Nos primeiros livros <strong>de</strong> Florbela Espanca – Livro <strong>de</strong> Mágoas (1919)<br />
e Livro <strong>de</strong> Sóror Sauda<strong>de</strong> (1923) 8 – como afirma Maria Lúcia Dal Farra, o<br />
erotismo é marcado por um “sinal <strong>de</strong> menos” pela própria dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
expressão imposta pelo tema. No entanto, isso não impediu que, em meio a<br />
algumas apreciações con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes - como a <strong>de</strong> Gastão <strong>de</strong> Bettencourt<br />
que exalta o primeiro livro como “missal <strong>de</strong> amargura que a nossa alma<br />
compreen<strong>de</strong>” (O Azeitonense) ou que seus versos eram reflexos <strong>de</strong> “toda<br />
ternura, todo o sentimento <strong>de</strong> uma alma <strong>de</strong> mulher” (O Século da Noite) - ela<br />
fosse <strong>de</strong>sprezada por gran<strong>de</strong> parte da crítica contemporânea e que vários<br />
jornais, utilizando-se dos episódios atípicos <strong>de</strong> sua biografia, não poupassem<br />
esforços para que sua obra fosse renegada. D<strong>entre</strong> esses, o mais feroz<br />
foi A época que, na voz <strong>de</strong> seu diretor J. Fernando <strong>de</strong> Sousa (vulgo Nemo),<br />
atribuiu-lhe o epíteto <strong>de</strong> “escrava <strong>de</strong> harém” e ao seu livro o mérito <strong>de</strong> ser<br />
“digno <strong>de</strong> ser recitado em honra da Vênus impudica”. 9<br />
RAMALHO, Cristina. (org) Literatura e feminismo: propostas teóricas e reflexões críticas. Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro: Elo, 1999. p. 32<br />
7 ALVES, Ivia. Amor e Submissão: formas <strong>de</strong> resistência <strong>de</strong> <strong>autoria</strong> da literatura <strong>de</strong> <strong>autoria</strong><br />
feminina? In: RAMALHO, Cristina. Op. cit., p. 111<br />
8 Embora os dois livros citados tenham sido editados em vida, os seus primeiros poemas<br />
foram organizados num livro que foi encontrado ainda manuscrito e permaneceu inédito até<br />
a publicação feita por Maria Lúcia Dal Farra, sob a seguinte referência: Espanca, Florbela.<br />
Trocando olhares. Maria Lúcia Dal Farra (Org.). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,<br />
1994.<br />
9 Todas as referências partem do texto <strong>de</strong> Maria Lúcia Dal Farra, intitulado O Affaire Florbela<br />
Espanca. In: DAL FARRA, ESPANCA, Florbela. Poemas. Maria Lúcia DaI Farra (org.). 1. ed.. São<br />
Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 10.
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />
No entanto, se no primeiro livro a verve erótica florbeliana pareça<br />
se apresentar muito mais pela via da compaixão, pois ela está sempre a<br />
reiterar a sua tristeza, como se quisesse trazer para si o olhar do outro pela<br />
pieda<strong>de</strong>, a partir do segundo ela já distribui pequenas senhas que encaminham<br />
o leitor para o pendor sensual que terá sua maturação em Charneca<br />
em Flor, como é perceptível em O nosso mundo (p. 182): 10 “A vida, meu Amor,<br />
quero vivê-la! / Na mesma taça erguida em tuas mãos, / Bocas unidas hemos<br />
<strong>de</strong> bebê-la!”, ou mesmo Crepúsculo (p. 192): “E a tua boca rubra ao pé<br />
da minha / É na suavida<strong>de</strong> da tardinha / Um coração ar<strong>de</strong>nte, palpitando...”<br />
e, por fim, Exaltação (p. 203), soneto que encerra o livro: “Viver!... Beber o<br />
vento e o sol!... Erguer / Ao céu os corações a palpitar! / Deus fez os nossos<br />
braços pra pren<strong>de</strong>r, / E a boca fez-se sangue pra beijar!”.<br />
Já em Charneca em Flor, obra publicada postumamente em 1931,<br />
embora a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> poética florbeliana algumas vezes pareça associada<br />
à Mendiga, (p. 225), à Crucificada (p. 235) ou à Pobre <strong>de</strong> Cristo (p. 251), a<br />
metáfora da “Charneca ru<strong>de</strong> a abrir em Flor” <strong>de</strong>ixa explícita a sua receptivida<strong>de</strong><br />
para esse sentimento agora celebrado sem interdições. Mais do que<br />
isso, este livro, instaura a “dupla chama”, a relação <strong>entre</strong> o prazer erótico e<br />
o prazer estético, atribuindo ao sentimento amoroso a capacida<strong>de</strong> visceral<br />
<strong>de</strong> gerar a vida e, ao mesmo tempo, acrescer a potência criadora, configurando<br />
a “linguagem literária” como um “modo <strong>de</strong> liberação da culpa e<br />
do medo <strong>de</strong> exprimir-se a mulher para além dos reduzidos limites que lhe<br />
impõe a socieda<strong>de</strong>”, 11 como sugere Ser Poeta (p. 229): “E é amar-te, assim,<br />
perdidamente... / É seres alma e sangue e vida em mim / E dizê-lo cantando<br />
a toda gente!”<br />
Também no soneto Volúpia (p. 238), essa capacida<strong>de</strong> revigorante<br />
do erotismo é reafirmada quando, num gesto <strong>de</strong>spudorado <strong>de</strong> falsa <strong>entre</strong>ga:<br />
“Num frêmito vibrante <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong>, / Dou-te o meu corpo prometido à<br />
morte!” o sujeito lírico feminino domina ferozmente o ente amado, entorpecendo-o<br />
nas suas artimanhas <strong>de</strong> sedução, tal qual a pantera “que mata pelo<br />
10 As citações dos poemas <strong>de</strong> Florbela Espanca partem também da edição organizada por<br />
Maria Lúcia Dal Farra, por isso faço constar apenas as páginas on<strong>de</strong> se encontram.<br />
11 SOARES, Angélica. O erotismo em Charneca em Flor. In: LOPES, Óscar et al. A Planície e o<br />
Abismo. 1. ed.. Évora: Vega, 1997. p. 135
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />
raro gosto <strong>de</strong> matar”: “E do meu corpo os leves arabescos / Vão-te envolvendo<br />
em círculos dantescos / Felinamente em voluptuosas danças...”.<br />
Contemporânea <strong>de</strong> Florbela e, muito provavemente sua conhecida, 12<br />
Judith Teixeira, cujas obras foram escritas <strong>entre</strong> os anos <strong>de</strong> 1923 e 1927,<br />
também não teve um début literário muito feliz: seu primeiro livro <strong>de</strong> poemas,<br />
Decadência, foi apreendido pelo governo civil e indicado à cremação,<br />
juntamente com Sodoma Divinizada – <strong>de</strong> Raul Leal – e Canções – <strong>de</strong> Antonio<br />
Botto – sob a alegação <strong>de</strong> que estes eram “livros <strong>de</strong> uma literatura consi<strong>de</strong>rada<br />
imoral, – afrontosa das virtu<strong>de</strong>s públicas”. 13 Toda essa enervação<br />
social ren<strong>de</strong>u a ela o epíteto <strong>de</strong> “<strong>de</strong>savergonhada” e ao seu livro <strong>de</strong> “imoral”,<br />
isso sem mencionar a ridicularização feita através da publicação <strong>de</strong> uma<br />
caricatura <strong>de</strong> mulher nua e muito gorda vestida apenas <strong>de</strong> chapéu, acompanhada<br />
<strong>de</strong> uma paródia 14 nada cortês <strong>de</strong> seu poema “A Bailarina vermelha”,<br />
(p.134) do qual cito um trecho: Ela passa, / a papoula rubra, / esvoaçando<br />
graça, / A sorrir... / Original tentação / <strong>de</strong> estranho sabor: / a sua<br />
boca – romã reluzente, / a refulgir!... [...].<br />
Ainda em junho <strong>de</strong> 1923, Judith Teixeira publica Castelo <strong>de</strong> Sombras,<br />
um livro <strong>de</strong> 22 poemas que ela faz questão <strong>de</strong> dizer que foi “intencionalmente<br />
cauteloso” <strong>de</strong>vido aos episódios pouco calorosos <strong>de</strong> que fora vítima em<br />
virtu<strong>de</strong> do primeiro. De fato, agora ela ameniza bastante o erotismo “tão ousado”<br />
da obra prece<strong>de</strong>nte, optando por manter uma atmosfera mais <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte<br />
e conforme o contexto literário instigava, como bem sugere Nostalgia<br />
(p. 103): “- Mas a luz da minha alma não voltou... / Perdi-a, e nunca mais eu<br />
soube <strong>de</strong>la / <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia em que a tua m’a levou!”<br />
12 Florbela publica o soneto “Charneca em Flor” – que abre o livro homônimo – na revista<br />
Europa, na edição <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1925, época em que Judith Teixeira dirigia a revista.<br />
13 MONSANTO. Antonio. Livros Proibidos. A propósito duma or<strong>de</strong>m do Sr. Governador Civil.<br />
A Capital. 22/03/1923. p. 1. Todas as citações dos poemas <strong>de</strong> Judith Teixeira foram retiradas<br />
da edição aqui referida, por isso cito apenas a página on<strong>de</strong> se encontram: TEIXEIRA, Judith.<br />
Poemas. Lisboa: & Etc, 1996.<br />
14 A caricatura e a paródia encontram-se na seguinte obra FRANÇA, José Augusto. Os Anos<br />
Vinte em Portugal. Estudo <strong>de</strong> Factos Sócio-Culturais (extra-textos). Lisboa: Editorial Presença,<br />
1992. Segue-se a paródia: Ela pena / Entornando suor, / A <strong>de</strong>sfazer-se em banha. / Um sonho<br />
<strong>de</strong> volúpia / Logo ali se <strong>de</strong>sfaz / Em franca gargalhada / Ao vê-la <strong>de</strong>sgrenhada. / E ela passa /<br />
Fulva, anafada, in<strong>de</strong>cente, / Flor do vício / Espapaçando graxa / Na água gordurosa / Que ela<br />
sua, / Como chouriça ar<strong>de</strong>nte, / Infernal e langorosa / ... Toda nua... / Toda nua!...
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />
Entretanto, em maio <strong>de</strong> 1926, Nua. Poemas <strong>de</strong> Bizâncio, seu terceiro<br />
livro <strong>de</strong> poemas, é anunciado pela Revista Contemporânea para ser lançado<br />
em Junho. Neste, Judith retoma, já na epígrafe da poetisa francesa <strong>de</strong>claradamente<br />
lésbica Rene Vivien, a “projeção lésbica” que a colocou numa<br />
condição <strong>de</strong> dupla marginalida<strong>de</strong> por ser mulher poeta e tematizar o homoerotismo,<br />
o que a inseriu “numa terra <strong>de</strong> ninguém, numa posição in<strong>de</strong>fesa<br />
perante uma moral burguesa, misógina e sexista que inundou a crítica e a<br />
literatura da época.” 15<br />
Em agosto, imprime-se De Mim. Conferência. Em que se explicam as<br />
minhas razões sobre a Vida, sobre a Estética, sobre a Moral, texto no qual ela<br />
apresenta os motivos <strong>de</strong> sua poética, todavia sem assumir a pecha maldita<br />
que a socieda<strong>de</strong> lhe imputara. No ano seguinte, 1927, imprime-se Satânia.<br />
Novelas, <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro livro que contém duas novelas: a primeira homônima ao<br />
livro e a segunda intitulada “Insaciada” e, a partir daí, Judith recolheu-se no<br />
mais absoluto silêncio.<br />
Toda a obra judithiana, obe<strong>de</strong>cendo aos critérios da chamada “Literatura<br />
<strong>de</strong> Sodoma” em voga na época, apresenta um pendor para a luxúria,<br />
com uma propensão homoerótica a que René Garay, 16 atribui “uma importância<br />
id<strong>eo</strong>lógica no movimento mo<strong>de</strong>rnista”, <strong>de</strong>vido à “honestida<strong>de</strong> sexual”,<br />
à “experimentação fônica” e às “imagens oníricas” fortes e inusitadas,<br />
que permitem aproximar Judith do Mo<strong>de</strong>rnismo hispano-americano. 17<br />
De fato, suas composições são repletas <strong>de</strong> imagens possuidoras<br />
do “máximo <strong>de</strong> expressão”, como, por exemplo, os versos do poema “Perfis<br />
Deca<strong>de</strong>ntes”, (p. 38-39) no qual, bem ao estilo bau<strong>de</strong>laireano, <strong>de</strong>senvolvese<br />
uma relação homossexual feminina, num ritmo envolvente, ao mesmo<br />
tempo voraz, que mescla lampejos <strong>de</strong> volúpia com a imaterialida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntista:<br />
15 GARAY, René Pedro. Sexus sequor: Judith Teixeira e o discurso mo<strong>de</strong>rnista português.<br />
Faces <strong>de</strong> Eva: Estudos sobre a mulher. n. 5. Lisboa: Edições Colibri, 2001. p. 66<br />
16 René Pedro Garay, professor cubano, escreveu Judith Teixeira e o Mo<strong>de</strong>rnismo Sáfico<br />
Português, obra na qual. ele compara a poética judithiana às líricas da poetisa grega Safo pelo<br />
viés confessional e homo-erótico que ela <strong>de</strong>ixa antever em seus versos.<br />
17 GARAY. Op. cit., 2001. p.59-60
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />
[..]<br />
Fitaram-se as bocas sensuais!<br />
Os corpos subtilizados,<br />
femininos,<br />
<strong>entre</strong> mil cintilações<br />
irreais,<br />
enlaçaram-se<br />
nos braços longos e finos!<br />
E mor<strong>de</strong>ram-se as bocas abrasadas,<br />
em contorções <strong>de</strong> fúria, ensangüentadas!<br />
[...]<br />
Para concluir, lembro que a literatura <strong>de</strong> <strong>autoria</strong> feminina foi sempre<br />
olhada a partir <strong>de</strong> especificida<strong>de</strong>s ditadas pelos “manuais <strong>de</strong> história<br />
da literatura”, cujo parâmetro <strong>de</strong> admissão era uma concepção <strong>de</strong> “feminilida<strong>de</strong>”<br />
associada pelo i<strong>de</strong>ário medieval cristão à pureza, à religiosida<strong>de</strong><br />
e ao inefável. Assim, escritoras que ousassem “reivindicar o direito <strong>de</strong> as<br />
mulheres falarem abertamente <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>sejos e <strong>de</strong> temas sexuais”, 18 como<br />
é o caso das poetisas aqui enfocadas, não po<strong>de</strong>riam ser benquistas numa<br />
socieda<strong>de</strong> que ainda vivia sob forte influência da Igreja Católica. Portanto,<br />
como bem ressalva Ria Lemaire, como a história literária tem se configurado<br />
um solilóquio que ressoa somente a voz masculina e isso acaba escamoteando<br />
“as complexas relações <strong>entre</strong> uma socieda<strong>de</strong> e sua literatura, impedindo,<br />
assim a percepção do <strong>papel</strong> das id<strong>eo</strong>logias nas obras literárias e na<br />
socieda<strong>de</strong>, bem como a inter-relação <strong>de</strong> suas funções”, 19 é primordial que<br />
a leitura <strong>de</strong> obras, como as aqui enfocadas, não prescinda <strong>de</strong> verificar as<br />
maneiras encontradas por elas <strong>de</strong> “reterritorializar” o privado, espaço on<strong>de</strong><br />
a mulher permaneceu confinada durante longo tempo da história da humanida<strong>de</strong>,<br />
trazendo-o para esse espaço público, até então majoritariamente<br />
masculino, que é a literatura.<br />
18 MUZART, Zahidé Lupinacci. Feminismo e literatura ou quando a mulher começou a falar.<br />
In: MOREIRA, Maria Eunice (org.). História da Literatura, t<strong>eo</strong>rias, temas e autores. Porto Alegre,<br />
Mercado Aberto, 2003.p. 269<br />
19 LEMAIRE. In: HOLLANDA, 1994, p. 59
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />
Termino com algumas ressentidas palavras <strong>de</strong> Judith Teixeira: “É<br />
assim, pois, que em Arte se altera a verda<strong>de</strong> da vida. E a arte tem <strong>de</strong> viver<br />
conscientemente ligada a essa mentira, e, assim, a sensibilida<strong>de</strong> do artista<br />
fica às vezes em conflito com a vida vivida por toda a gente.” 20<br />
20 TEIXEIRA, Judith. Poemas. Lisboa: & Etc, 1996. p.208.
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />
Bibliografia<br />
ALONSO, Cláudia Pazos. Imagens do Eu na <strong>poesia</strong> <strong>de</strong> Florbela Espanca. Lisboa:<br />
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997.<br />
ALVES, Ivia. Amor e Submissão: formas <strong>de</strong> resistência <strong>de</strong> <strong>autoria</strong> da literatura <strong>de</strong><br />
<strong>autoria</strong> feminina? In: RAMALHO, Cristina. (org.) Literatura e feminismo: propostas<br />
teóricas e reflexões críticas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Elo, 1999, p. 107-116.<br />
ESPANCA, Florbela. Poemas. Maria Lúcia DaI Farra (org.). 1. ed.. São Paulo: Martins<br />
Fontes, 1996.<br />
FRANÇA, José Augusto. Os Anos Vinte em Portugal. Estudo <strong>de</strong> Factos Sócio-Culturais<br />
(extra-textos). Lisboa: Editorial Presença, 1992.<br />
GARAY, René. Judith Teixeira e o Mo<strong>de</strong>rnismo Sáfico Português. Lisboa: Universitária<br />
Editora, 2002.<br />
_________. Sexus sequor: Judith Teixeira e o discurso mo<strong>de</strong>rnista português. Faces<br />
<strong>de</strong> Eva: Estudos sobre a mulher. N. 5. Lisboa: Edições Colibri, 2001. p. 53-74<br />
MUZART, Zahidé Lupinacci. Feminismo e literatura ou quando a mulher começou a<br />
falar. In: MOREIRA, Maria Eunice (org.). História da Literatura, t<strong>eo</strong>rias, temas e autores.<br />
Porto Alegre: Mercado Aberto, 2003. p. 267-78<br />
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. 1. ed., Bauru: Edusc,<br />
2005.<br />
SARAIVA, Antônio José & LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. 7. ed.<br />
Porto: Martins Fontes, 1973.<br />
SCHMIDT, Rita Terezinha. Recortes <strong>de</strong> uma história: a construção <strong>de</strong> um fazer/saber.<br />
In: RAMALHO, Cristina. (org) Literatura e feminismo: propostas teóricas e reflexões<br />
críticas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Elo, 1999. p. 23-40.<br />
SOARES, Angélica. O erotismo em Charneca em Flor. In: LOPES, Óscar et al. A<br />
Planície e o Abismo. 1. ed.. Évora: Vega, 1997. p. 127-35<br />
TEIXEIRA, Judith. Poemas. Lisboa: & Etc, 1996.