“Isso não é um cachimbo”: sobre os usuários de crack - Áskesis
“Isso não é um cachimbo”: sobre os usuários de crack - Áskesis
“Isso não é um cachimbo”: sobre os usuários de crack - Áskesis
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
profissional e o indivíduo atendido que dote o segundo <strong>de</strong> recurs<strong>os</strong> materiais, mas <strong>sobre</strong>tudo<br />
emocionais, para iniciar <strong>um</strong>a reflexão <strong>sobre</strong> a situação na qual se encontra. Baseado n<strong>um</strong>a<br />
relação intersubjetiva, o vínculo <strong>é</strong> <strong>de</strong>scrito a partir <strong>de</strong> <strong>um</strong>a linguagem política fortemente baseada<br />
no respeito a<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> h<strong>um</strong>an<strong>os</strong>. Nota-se, assim, que o cachimbo <strong>é</strong> importante porque<br />
aciona <strong>um</strong>a proximida<strong>de</strong>, cujo objetivo <strong>é</strong> fazer o usuário perceber que tem “direito a ter direit<strong>os</strong>”.<br />
Por meio do cachimbo, po<strong>de</strong>-se at<strong>é</strong> chegar à “consciência política”.<br />
É aqui então que o texto volta para o seu início. E que a cena <strong>de</strong>scrita na abertura do artigo<br />
encontra solo histórico, social e político. Como já escrito, contrastando com a dificulda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> obter informações <strong>de</strong>talhadas <strong>sobre</strong> a trajetória pessoal e social d<strong>os</strong> usuári<strong>os</strong>, observa-se<br />
<strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> ênfase em conversas que giram em torno d<strong>os</strong> objet<strong>os</strong> utilizad<strong>os</strong> para o cons<strong>um</strong>o<br />
<strong>de</strong> <strong>crack</strong>. Não me parece, contudo, que seja aleatório que se fale <strong>de</strong>sses objet<strong>os</strong> justamente<br />
para aqueles profissionais que buscam fortalecer laç<strong>os</strong> <strong>de</strong> confiança e afeição, <strong>sobre</strong>tudo se<br />
tiverm<strong>os</strong> em conta que, junto com a droga, esse <strong>é</strong> o principal objeto que <strong>de</strong>ve ser escondido<br />
ou <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> lado em caso <strong>de</strong> abordagem policial. Portanto, essas conversas dizem muito<br />
mais. Elas ganham a esfera da intimida<strong>de</strong>. E, ainda, para meus propósit<strong>os</strong> elas são importantes<br />
porque m<strong>os</strong>tram que a relação entre <strong>os</strong> usuári<strong>os</strong> e seus utensíli<strong>os</strong> está muito longe <strong>de</strong> ser<br />
meramente instr<strong>um</strong>ental. No vocabulário local, escutei muitas vezes <strong>os</strong> nomes “Bóris”, como já<br />
dito, e “Catarina” como referência a<strong>os</strong> cachimb<strong>os</strong>. Mas a cena abaixo, <strong>de</strong>scrita por <strong>um</strong> redutor<br />
durante entrevista, parece indicar <strong>um</strong>a ainda mais complexa e <strong>de</strong>licada interação:<br />
Um dia eu cheguei em <strong>um</strong> lugar e conheci <strong>um</strong>a senhora que usava <strong>crack</strong>, at<strong>é</strong><br />
traficava no local tamb<strong>é</strong>m. No primeiro dia que eu tava no ambiente com as<br />
pessoas do redução <strong>de</strong> dan<strong>os</strong>, <strong>um</strong> d<strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> dias em campo, ela chegou<br />
em mim e falou: “vem cá, vem cá, vem cá, vou te apresentar o perninha”. Eu<br />
falei: “legal, vamo conhecer o perninha”, achando que o perninha era <strong>um</strong> filho<br />
<strong>de</strong>la, <strong>um</strong> cara. Daí ela tirou do bolso o cachimbo <strong>de</strong> <strong>crack</strong> e falou: “eu sou<br />
o perninha, muito prazer”. E eu olhei e pensei: “como assim perninha?” daí<br />
eu percebi que a relação <strong>de</strong>la com aquele cachimbo <strong>de</strong> <strong>crack</strong> era realmente<br />
<strong>um</strong>a relação pessoal com aquilo, <strong>não</strong> era simplesmente <strong>um</strong> instr<strong>um</strong>ento,<br />
<strong>um</strong> cachimbo <strong>de</strong> <strong>crack</strong> só, <strong>não</strong>. Eu tive que catar o cachimbo na mão, dizer:<br />
“prazer perninha”, sabe? E ela: “cheira o cachimbo pra você ver o cheiro<br />
g<strong>os</strong>t<strong>os</strong>o que tem”, n<strong>é</strong>? E eu assim, poxa, cru, falei: “vam<strong>os</strong> aí, n<strong>é</strong>, meu?”,<br />
cheirei o cachimbo, aquele cheiro forte <strong>de</strong> <strong>crack</strong>, <strong>de</strong> cinza e refletindo: “ela<br />
g<strong>os</strong>ta disso”, n<strong>é</strong> meu? “Esse <strong>é</strong> o barato <strong>de</strong>la”. E ela perceber que eu tive essa<br />
relação, que eu conheci o perninha, fez com que ela <strong>não</strong> ficasse com <strong>um</strong> p<strong>é</strong><br />
atrás comigo e a gente conversou, sentou e trocou maior id<strong>é</strong>ia...<br />
Para al<strong>é</strong>m <strong>de</strong> m<strong>os</strong>trar a relação próxima estabelecida entre a usuária e o redutor por meio da<br />
atitu<strong>de</strong> amist<strong>os</strong>a do segundo, a cena revela <strong>um</strong>a afeição entre a usuária e aquele cachimbo,<br />
chamado por ela <strong>de</strong> “perninha”. Se a cena n<strong>os</strong> parece estranha ou digna <strong>de</strong> algo que beira a<br />
irracionalida<strong>de</strong>, voltem<strong>os</strong> ao exemplo que Gell (1998, p.18-19) dá acerca <strong>de</strong> si mesmo e da sua<br />
relação com o seu carro, <strong>um</strong> toyota, chamado <strong>de</strong> “toyolly” por sua família, ou simplesmente<br />
“olly”. O carro <strong>é</strong> muito bem cuidado e, em troca, só quebrou em situações que <strong>não</strong> <strong>de</strong>ram a<strong>os</strong><br />
seus don<strong>os</strong> <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> inconveniente. Contudo, se o Toyota quebrar <strong>um</strong>a noite, longe <strong>de</strong> casa,<br />
Gell diz que consi<strong>de</strong>rará tal feito <strong>um</strong>a traição, ingratidão e consi<strong>de</strong>rará o carro culpado por isso.<br />
O autor diz: “Eu sei que tais sentiment<strong>os</strong> são <strong>um</strong> tanto quanto bizarr<strong>os</strong>, mas eu tamb<strong>é</strong>m sei que<br />
99% d<strong>os</strong> don<strong>os</strong> <strong>de</strong> carr<strong>os</strong>, assim como eu, atribuem personalida<strong>de</strong> a<strong>os</strong> seus automóveis” 11 . E <strong>é</strong><br />
por essa razão que ele diz respeitar formas <strong>de</strong> interação entre pessoas e objet<strong>os</strong> que ele <strong>não</strong> <strong>é</strong><br />
capaz <strong>de</strong> compartilhar.<br />
11 Tradução livre minha.<br />
<strong>Áskesis</strong> | v. 1 | n. 1 | jan/jul - 2012 | p. 32 – 45 | 42