17.04.2013 Views

“Isso não é um cachimbo”: sobre os usuários de crack - Áskesis

“Isso não é um cachimbo”: sobre os usuários de crack - Áskesis

“Isso não é um cachimbo”: sobre os usuários de crack - Áskesis

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

O projeto 2 iniciou a distribuição do cachimbo <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, mas ele <strong>não</strong> foi<br />

bem aceito pel<strong>os</strong> usuári<strong>os</strong>, que alegavam vári<strong>os</strong> problemas: achavam o<br />

cachimbo muito gran<strong>de</strong> e, por isso, muito difícil <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>r no caso <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

batida policial; achavam tamb<strong>é</strong>m que, quando raspavam a borra, ela vinha<br />

com pedacinh<strong>os</strong> <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, ficando com g<strong>os</strong>to na hora <strong>de</strong> f<strong>um</strong>ar; alegavam,<br />

ainda, que o cachimbo “roubava” a droga na hora do uso porque sua grelha<br />

<strong>não</strong> <strong>é</strong> vedada e, por fim, criticavam o fato <strong>de</strong> ele <strong>não</strong> ser <strong>de</strong>smontável, o que<br />

dificultava a raspagem da piteira. Surgiram, então, as piteiras <strong>de</strong> silicone,<br />

que <strong>de</strong>veriam ser usadas individualmente e adaptadas a<strong>os</strong> divers<strong>os</strong> tip<strong>os</strong> <strong>de</strong><br />

cachimbo na hora do uso. Após a utilização, o usuário tira a sua piteira e<br />

passa o cachimbo para o outro, que coloca a sua piteira e f<strong>um</strong>a a droga.<br />

O cachimbo aqui repercute a ameaça <strong>de</strong> perseguição policial (tema que ainda será abordado<br />

nesse texto) e tamb<strong>é</strong>m, ao ser distribuído, passa por <strong>um</strong>a avaliação d<strong>os</strong> usuári<strong>os</strong>. Inicia-se, então,<br />

a tentativa <strong>de</strong> fazer <strong>os</strong> saberes da saú<strong>de</strong> pública interagirem com o d<strong>os</strong> usuári<strong>os</strong> <strong>de</strong> <strong>crack</strong>. É<br />

a distribuição do cachimbo <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira que começa a tornar mais explícito <strong>os</strong> hábit<strong>os</strong> <strong>de</strong> cons<strong>um</strong>o<br />

e, <strong>um</strong>a vez <strong>de</strong> p<strong>os</strong>se <strong>de</strong>les, vê-se o quanto o ins<strong>um</strong>o planejado era ineficaz. Nada seria feito<br />

<strong>de</strong> cima para baixo. A piteira nasce, pois, como <strong>um</strong>a mediação entre <strong>os</strong> dois pól<strong>os</strong>: <strong>os</strong> usuári<strong>os</strong><br />

fariam seus própri<strong>os</strong> cachimb<strong>os</strong> (ou, n<strong>um</strong> cenário que <strong>não</strong> p<strong>os</strong>sibilita isso, o comprariam <strong>de</strong> algu<strong>é</strong>m<br />

que conhece melhor o hábito <strong>de</strong> cons<strong>um</strong>o) e o PRD distribuiria a piteira individualizada.<br />

No projeto 3, a equipe <strong>de</strong> redução <strong>de</strong> dan<strong>os</strong> consi<strong>de</strong>rava ina<strong>de</strong>quado o material<br />

utilizado pel<strong>os</strong> usuári<strong>os</strong> para a confecção <strong>de</strong> seus própri<strong>os</strong> cachimb<strong>os</strong>,<br />

feit<strong>os</strong> a partir <strong>de</strong> pilhas usadas, isqueir<strong>os</strong>, cápsulas <strong>de</strong> bala <strong>de</strong> revólver e<br />

seringas que tinham sido utilizadas para injetar droga anteriormente. Diante<br />

do susto, a equipe <strong>de</strong>cidiu fazer <strong>um</strong>a reunião com <strong>os</strong> usuári<strong>os</strong> para discutir<br />

<strong>sobre</strong> a confecção <strong>de</strong> cachimb<strong>os</strong> mais apropriad<strong>os</strong>. Segundo Domanico, <strong>os</strong><br />

cachimb<strong>os</strong> produzid<strong>os</strong> nessa reunião ainda assim eram ina<strong>de</strong>quad<strong>os</strong>, mas<br />

a equipe entendia que tal estrat<strong>é</strong>gia po<strong>de</strong>ria servir para a<strong>um</strong>entar o vínculo<br />

com <strong>os</strong> usuári<strong>os</strong> – o que <strong>de</strong> fato aconteceu, embora <strong>não</strong> tenham conseguido<br />

elaborar <strong>um</strong> cachimbo men<strong>os</strong> dan<strong>os</strong>o.<br />

O que se passou com esse projeto <strong>é</strong> interessante na medida em que explicita que, mais que <strong>um</strong><br />

mero ins<strong>um</strong>o, falar <strong>sobre</strong> o cachimbo <strong>é</strong> tamb<strong>é</strong>m <strong>um</strong> modo <strong>de</strong> entrar em contato com o usuário,<br />

<strong>de</strong> estabelecer <strong>um</strong> contato afetivo, <strong>de</strong> criar <strong>um</strong> vínculo. Por meio <strong>de</strong> <strong>um</strong> objeto concreto, cujo<br />

uso correto po<strong>de</strong> implicar em mais ou men<strong>os</strong> contato com infecções, tamb<strong>é</strong>m se estabelece<br />

laç<strong>os</strong> <strong>de</strong> afinida<strong>de</strong> que, segundo <strong>os</strong> profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, são fundamentais para que <strong>os</strong> usuári<strong>os</strong><br />

cui<strong>de</strong>m <strong>de</strong> seu próprio corpo. Voltarei a esse tema mais adiante.<br />

O projeto 4 tamb<strong>é</strong>m teria promovido conversas com <strong>os</strong> usuári<strong>os</strong>, perguntandolhes<br />

a respeito do material necessário para o “cachimbo i<strong>de</strong>al”. A associação<br />

<strong>de</strong> moradores da comunida<strong>de</strong> emprestou a se<strong>de</strong> para que a oficina<br />

acontecesse. Os usuári<strong>os</strong> disseram que eram tub<strong>os</strong> <strong>de</strong> PVC e <strong>um</strong>a dobra <strong>de</strong><br />

tubo tamb<strong>é</strong>m chamada <strong>de</strong> joelho, al<strong>é</strong>m <strong>de</strong> <strong>um</strong> laminado que tinha que ter <strong>um</strong>a<br />

espessura diferente para a grelha que <strong>de</strong>veria ser presa com fita crepe. Os<br />

redutores logo trataram <strong>de</strong> angariar recurs<strong>os</strong> para produzir tal cachimbo em<br />

quantida<strong>de</strong> maior. Teriam contado a Domanico que, ao comprar <strong>os</strong> tub<strong>os</strong>, o<br />

dono do armaz<strong>é</strong>m forneceu gratuitamente alguns a mais, pois compreen<strong>de</strong>u<br />

que <strong>os</strong> cachimb<strong>os</strong> confeccionad<strong>os</strong> ajudariam a evitar que <strong>os</strong> usuári<strong>os</strong><br />

usassem qualquer material pego no lixo. Depois da oficina, o cachimbo <strong>de</strong><br />

PVC tornou-se <strong>um</strong> “sucesso” e sua circulação na rua começou a crescer. Por<br />

conta disso, a equipe começou a temer <strong>um</strong>a intervenção mais repressora da<br />

polícia. Só com o passar do tempo, a equipe teria percebido que aquele <strong>não</strong><br />

era o cachimbo i<strong>de</strong>al, pois na hora da raspagem ia com PVC e tudo. Mas, da<br />

mesma maneira que a criativida<strong>de</strong> na confecção d<strong>os</strong> cachimb<strong>os</strong> ocorria, <strong>os</strong><br />

<strong>Áskesis</strong> | v. 1 | n. 1 | jan/jul - 2012 | p. 32 – 45 | 39

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!