17.04.2013 Views

“Isso não é um cachimbo”: sobre os usuários de crack - Áskesis

“Isso não é um cachimbo”: sobre os usuários de crack - Áskesis

“Isso não é um cachimbo”: sobre os usuários de crack - Áskesis

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Em <strong>um</strong>a roda, Vivian, o namorado e mais <strong>um</strong> homem preparam <strong>os</strong> seus cachimb<strong>os</strong> n<strong>um</strong><br />

“mocó” na linha. Com muita concentração esfarelam a pedra e a acomodam em cima das<br />

cinzas <strong>de</strong> cigarro, n<strong>um</strong> cachimbo feito por eles mesm<strong>os</strong>. O <strong>de</strong> Vivian foi confeccionado<br />

a partir <strong>de</strong> <strong>um</strong> cano <strong>de</strong> PVC marrom, o do seu namorado a partir <strong>de</strong> <strong>um</strong> isqueiro cortado<br />

ao meio. O do terceiro homem foi produzido com <strong>um</strong>a lâmpada: ele havia feito <strong>um</strong> furo<br />

na parte mais cilíndrica <strong>de</strong>la e, em cima, tendo tirado o seu bocal, <strong>de</strong>p<strong>os</strong>itava as cinzas<br />

e a pedra. Um d<strong>os</strong> redutores se interessa por essa feitura incom<strong>um</strong> e fala: “<strong>de</strong>ixa eu ver<br />

o seu Bóris?”. O homem olha com <strong>um</strong> aspecto assustado <strong>de</strong> quem fica surpreso diante<br />

do fato <strong>de</strong> saber que o redutor compartilhava da sua forma <strong>de</strong> nomear o cachimbo e<br />

prontamente o oferece para observação. O redutor elogia a feitura e diz a ele que seria<br />

mais interessante se conseguisse colocar água <strong>de</strong>ntro do Bóris e o adverte: “a borra do<br />

cachimbo faz muito mal para o corpo. Se você colocar água, ela se dissolve, daí você <strong>não</strong><br />

f<strong>um</strong>a isso, enten<strong>de</strong>u?” (Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Campo, Campinas, 10/03/2009)<br />

A situação acima, ocorrida já no segundo dia <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong> campo, foi a primeira <strong>de</strong> muitas<br />

semelhantes presenciadas ao longo do meu trabalho <strong>de</strong> campo junto a usuári<strong>os</strong> <strong>de</strong> <strong>crack</strong> das cida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> Campinas-SP e <strong>de</strong> São Paulo3 . Era <strong>um</strong>a terça-feira, por volta <strong>de</strong> quatro horas da tar<strong>de</strong>.<br />

Sete pessoas: três usuári<strong>os</strong> <strong>de</strong> <strong>crack</strong>, três redutores <strong>de</strong> dan<strong>os</strong> e eu. Os três primeir<strong>os</strong> preparavam<br />

o <strong>crack</strong> e o f<strong>um</strong>avam, enquanto <strong>os</strong> redutores ofereciam materiais educativ<strong>os</strong> <strong>de</strong> prevenção a<strong>os</strong><br />

p<strong>os</strong>síveis dan<strong>os</strong> <strong>de</strong>correntes do uso da substância. Eu apenas observava. A feitura <strong>de</strong> <strong>um</strong> cachimbo<br />

at<strong>é</strong> então incom<strong>um</strong>, produzido a partir <strong>de</strong> <strong>um</strong>a lâmpada, chamou a atenção do redutor,<br />

que pediu para ver o Bóris Em fração <strong>de</strong> segund<strong>os</strong>, o olhar rápido d<strong>os</strong> dois, a <strong>um</strong> só tempo surpreso<br />

e cúmplice, <strong>de</strong>spertou meu interesse. O cachimbo tinha nome, <strong>um</strong> nome próprio.<br />

Como <strong>um</strong>a antropóloga avisada, já sabia – pela leitura d<strong>os</strong> text<strong>os</strong> Bour dieu e Delsaut<br />

(1975), Pina Cabral (2008), Pontes (2008) – que o nome i<strong>de</strong>ntifica, referencia, comunica e, no<br />

auge da sua consagração, produz <strong>um</strong>a “curi<strong>os</strong>a contaminação <strong>de</strong> prestígio” em tudo e tod<strong>os</strong><br />

que estão ao seu redor. Ali, naquela linha <strong>de</strong> trem e naquela situação precária, <strong>não</strong> foi diferente.<br />

Saber o nome do cachimbo e partilhar <strong>de</strong> vocabulário tão cifrado garantiu ao redutor o<br />

privil<strong>é</strong>gio <strong>não</strong> só <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r observar aquele objeto nas mã<strong>os</strong>, como tamb<strong>é</strong>m abriu portas para<br />

que suas i<strong>de</strong>ias <strong>sobre</strong> saú<strong>de</strong> f<strong>os</strong>sem transmitidas. Por <strong>um</strong> momento, partilharam <strong>um</strong> segredo e<br />

<strong>um</strong>a informação. Sete pessoas conversando <strong>sobre</strong> o cachimbo e o cachimbo pondo tod<strong>os</strong> nós<br />

em relação.<br />

O cachimbo <strong>é</strong> tamb<strong>é</strong>m o tema do texto em tela. Men<strong>os</strong> pelo que ele <strong>é</strong> e mais pelo que ele<br />

conecta4 . A relação estabelecida entre esses usuári<strong>os</strong> e <strong>os</strong> objet<strong>os</strong> mediadores do cons<strong>um</strong>o da<br />

droga e o que essa interação informa acerca das relações sociais que configuram esse universo<br />

<strong>é</strong> o principal objetivo do texto. Pois <strong>é</strong> <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> cachimb<strong>os</strong> que versam a maioria das minhas<br />

conversas com esses usuári<strong>os</strong>, <strong>é</strong> em torno <strong>de</strong>les (e <strong>de</strong> seus us<strong>os</strong> higiênic<strong>os</strong>) que boa parte da<br />

política <strong>de</strong> redução <strong>de</strong> dan<strong>os</strong> se assenta e, al<strong>é</strong>m disso, chamam atenção as apreensões policiais<br />

<strong>de</strong>sses objet<strong>os</strong>, n<strong>um</strong> processo metonímico para classificar seus portadores e justificar a<br />

ação d<strong>os</strong> órgã<strong>os</strong> <strong>de</strong> segurança pública. Como busco m<strong>os</strong>trar, <strong>um</strong>a análise mais atenta <strong>de</strong>sses<br />

materiais tamb<strong>é</strong>m permite visl<strong>um</strong>brar outr<strong>os</strong> atores (como <strong>os</strong> comerciantes locais, representantes<br />

legais e mídia) participantes do complexo social e material do qual <strong>os</strong> usuári<strong>os</strong> <strong>de</strong> <strong>crack</strong><br />

são parte e, ainda, esses objet<strong>os</strong> e seus rest<strong>os</strong> merecem atenção porque eles são inseparáveis<br />

3 Mais especificamente, <strong>os</strong> dad<strong>os</strong> apresentad<strong>os</strong> foram recolhid<strong>os</strong> entre fevereiro <strong>de</strong> 2009 e novembro <strong>de</strong> 2010, junto<br />

ao então Programa <strong>de</strong> Redução <strong>de</strong> Dan<strong>os</strong> (PRD) da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Campinas e à ONG É <strong>de</strong> Lei, que realiza semelhante<br />

trabalho em São Paulo, na região que ficou conhecida como “cracolândia”.<br />

4 Lição aprendida com Levi-Strauss que, no seu estudo <strong>sobre</strong> as máscaras, escreveu: “Fui incapaz <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r a<br />

todas estas interrogações enquanto <strong>não</strong> compreendi que, tal como <strong>os</strong> mit<strong>os</strong>, as máscaras <strong>não</strong> po<strong>de</strong>m ser interpretadas<br />

em si e por si, como objet<strong>os</strong> isolad<strong>os</strong>. [...] Nesta perspectiva, portanto, <strong>de</strong>ver-se-á constatar que as funções sociais<br />

ou religi<strong>os</strong>as atribuídas a<strong>os</strong> vári<strong>os</strong> tip<strong>os</strong> <strong>de</strong> máscaras que opom<strong>os</strong> para comparação se encontram entre si na mesma<br />

relação <strong>de</strong> transformação que a plástica, o grafismo, e o colorido das próprias máscaras, encaradas como objet<strong>os</strong><br />

materiais.” (LEVI-STRAUSS, 1979, p. 15-16).<br />

<strong>Áskesis</strong> | v. 1 | n. 1 | jan/jul - 2012 | p. 32 – 45 | 33

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!