Gente comum. Pequenas histórias banais. Ho - Fundação Francisco ...
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or<br />
u<br />
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Dina Soares<br />
fotografia António Pedro Ferreira<br />
<strong>Gente</strong> <strong>comum</strong>. <strong>Pequenas</strong> <strong>histórias</strong> <strong>banais</strong>. <strong>Ho</strong>mens<br />
e mulheres que nada distingue daqueles com<br />
que nos cruzamos todos os dias. Têm uma profissão.<br />
Por vezes têm também outra ocupação. Uns<br />
já tiveram filhos e netos, outros ainda têm os avós<br />
vivos. Há quem viva sozinho e quem viva com a<br />
família. Num bairro antigo, numa urbanização<br />
nova, numa moradia. São portugueses. Cada um<br />
é apenas um entre quase onze milhões. Mas não<br />
são números: são pessoas. Têm nome, idade, morada,<br />
um passado e um futuro. São rostos que não<br />
aparecem nas estatísticas, mas fazem as estatísticas.<br />
“XXI, Ter Opinião” e a <strong>Fundação</strong> <strong>Francisco</strong><br />
Manuel dos Santos iniciam com a edição<br />
destes retratos de seis portugueses um projecto<br />
mais ambicioso que será desenvolvido online.<br />
Aí ouvi-los-emos contarem as suas <strong>histórias</strong> e<br />
será possível assistir ao desfilar de episódios da<br />
sua vida quotidiana contados através de fotogalerias.<br />
Com tempo outros portugueses se lhes<br />
juntarão. Ajudando-nos a dar rostos e textura<br />
ao povo que somos.
2011–2012<br />
Portugal<br />
tem emenda?<br />
Olívia,<br />
a última<br />
lavadeira<br />
da Madragoa<br />
Olívia da Conceição Santos<br />
88 anos<br />
Natural de Lisboa<br />
Lavadeira<br />
“E vou passando<br />
assim o tempo”<br />
Olívia lava roupa. É o que faz. Lava roupa para<br />
fora. Está lá todas as manhãs, no Lavadouro<br />
das Francesinhas, na Madragoa. Se calhar<br />
nem era preciso ir assim, todos os dias. Aos 89 anos,<br />
já lava pouco. As antigas freguesas compraram<br />
máquinas. Resistem três ou quatro. A primeira vez<br />
que mandaram lavar ainda eram rapariguinhas<br />
solteiras. <strong>Ho</strong>je já têm filhos casados, e netos…<br />
Olívia começou a lavar há 65 anos. Estava grávida da<br />
filha mais velha, Maria Elisabete. Trabalhava numa<br />
oficina de alfaiate mas o marido adoeceu, ela começou<br />
a faltar e, nessa altura, os patrões não podiam esperar.<br />
Ainda lavou em casa. Fazia muito chiqueiro. Passou<br />
a ir para o Lavadouro e por lá ficou. Nessa altura, os<br />
tanques, hoje grandes demais, estavam sempre cheios<br />
de mulheres. Umas lavavam, outras esperavam vez,<br />
outras punham roupa a corar ao sol e espreitavam o<br />
Tejo que se vê tão bem dali. Já morreram quase todas.<br />
Há muita gente morta na vida de Olívia. O marido<br />
que era torneiro de metais mas também sabia de<br />
electricidade. A sua menina, a Maria Edite, que morreu<br />
com 4 anos. O filho, desaparecido há poucos anos.<br />
Olívia faz pouca distinção entre vivos e mortos. Para<br />
ela, estão todos ali. Tanto fala da Maria Elisabete, dos<br />
netos e dos bisnetos, como salta para os pais. A mãe a<br />
lavar roupa naqueles tanques enquanto ela e os irmãos<br />
se escondiam dos guardas numas casas hoje em ruínas.<br />
Olívia sempre viveu na cidade mas a Madragoa é a<br />
sua aldeia. Foi algumas vezes a Alfama, contam-se<br />
pelos dedos das mãos. O Bairro Alto conhece melhor<br />
porque trabalhou em São Pedro de Alcântara. Os<br />
outros bairros não conhece mas acha que a Madragoa<br />
é o mais sossegado. O prédio onde vive ainda não<br />
foi abaixo, nem sabe quando irá. Espera que seja só<br />
depois de ela morrer. Agora está cheio de brasileiros,<br />
gente que trabalha nas obras. Portuguesas, só mesmo<br />
Olívia e a vizinha do segundo andar.<br />
Agora dizem que vão acabar com o Lavadouro<br />
das Francesinhas. Olívia não gostava, a filha sim.<br />
Preferia que a mãe fosse viver com ela, nos arredores<br />
de Lisboa. Mas enquanto puder lavar, enquanto o<br />
Lavadouro estiver aberto, não vai. Sente-se bem na<br />
Madragoa. Gosta de ir para os tanques. Fala com<br />
um, fala com outro, vai passando o tempo. Enquanto<br />
puder, não vai.<br />
40 XXI, Ter Opinião XXI, Ter Opinião 41
2011–2012<br />
Portugal<br />
tem emenda?<br />
Alvarinho<br />
Viteleiro<br />
Álvaro Lapa<br />
70 anos<br />
Natural da Malveira<br />
Comerciante de gado<br />
“A vida não me<br />
correu bem”<br />
42 XXI, Ter Opinião<br />
Foi o senhor Mário que o lançou a sério no<br />
negócio, naquela sexta-feira em que lhe<br />
encomendou dez ovelhas. Álvaro Lapa tinha<br />
dez anos, disse que sim e arranjou onze. O senhor Mário,<br />
um senhor de Lisboa, pagou-lhe dez ao preço combinado.<br />
A outra não fazia parte da encomenda, por isso valia<br />
menos. Álvaro concordou. Percebeu como funcionam<br />
os negócios e que naquele mundo é preciso ser esperto.<br />
O seu pai era comerciante de gado. A mãe era filha de<br />
um comerciante de gado. Sempre na Malveira. Álvaro<br />
foi o único filho a seguir a tradição. Não tinha cinco<br />
tostões mas à quinta-feira, quando as pessoas chegavam<br />
à feira com as vacas para vender, as prendiam àqueles<br />
ferrinhos que ainda hoje estão no recinto, e chamavam<br />
o Alvarinho, ele comprava. E foi fazendo a vida assim.<br />
Sempre em negócio, sempre em negócio.<br />
Negociar em gado foi uma coisa que nasceu com ele.<br />
Não aprendeu com ninguém. Chegou a trabalhar uns<br />
tempos numa casa de lanifícios mas não se deu bem.<br />
Sentia falta dos animais, do sangue, da carne. Quando<br />
tinha 30 anos, o pai era o maior negociante de gado da<br />
região. Um dia, acompanhou-o a uma feira no Alentejo.<br />
O pai estava de olho nos melhores bois, mas acabou por<br />
ser ele a comprá-los. O pai ficou todo contente.<br />
A feira de gado da Malveira era a melhor feira do<br />
mundo. Não é por acaso que chamavam à terra,<br />
Malveira dos Bois. <strong>Ho</strong>je tem 100 cabeças de gado, ou<br />
se calhar nem isso, mas chegou a ter 1700 ou 1800.<br />
Sempre foi à quinta-feira, abria de madrugada. Agora<br />
só abre às sete. Quando são sete e meia começam a<br />
chegar os homens do Norte. Querem saber os preços.<br />
Ao meio-dia e meia carregam o gado e depois vai tudo<br />
almoçar ali mesmo, no restaurante improvisado da<br />
feira. Álvaro não vai. É muito barulho, faz-lhe doer a<br />
cabeça e ele não gosta nada de dores de cabeça.<br />
E deve ter tido muitas. Afinal, a vida não correu bem<br />
a Álvaro Lapa. Chegou a ter muito mas resta-lhe<br />
pouco. Diz que a culpa é de uma firma de Lisboa,<br />
a firma do tal senhor Mário, que foi à falência e lhe<br />
ficou a dever cem mil contos. Fala sempre em contos,<br />
não consegue pensar em euros. Agora só negoceia em<br />
ovelhas, cabras, chibos, gado miúdo. Antigamente, só<br />
comprava vacas e vitelas. Chamavam-lhe o Alvarinho<br />
Viteleiro e quando chegava a um mercado, já todos<br />
sabiam que, nesse dia, o mercado ia ser bom.<br />
XXI, Ter Opinião 43<br />
43
2011–2012<br />
Portugal<br />
tem emenda?<br />
Fernando,<br />
o guardião<br />
de Faro<br />
Fernando Silva Grade<br />
56 anos<br />
Natural de Faro<br />
Artista plástico<br />
“Todos defendem<br />
o seu território”<br />
44 XXI, Ter Opinião<br />
A<br />
vida profissional é feita a pintar quadros, mas<br />
é nas vestes de guardião de Faro que encontra<br />
a sua verdadeira identidade. Fernando é o<br />
fiscal do centro histórico da cidade, o vigilante de um<br />
passado que não desiste de manter vivo. Todos os dias<br />
recomeça a sua cruzada solitária. Passeia, a pé, por<br />
todo o casco velho, à procura das obras que outros<br />
teimam em fazer, sem se preocuparem em preservar<br />
a autenticidade dos monumentos, das casas, das<br />
praças. Vê o que os verdadeiros fiscais, demasiado<br />
adormecidos, deviam ver se andassem de olhos abertos.<br />
O trabalho é minucioso, persistente, sem descanso,<br />
mas tem dado resultados. Por causa desta teimosia,<br />
desta obsessão, muitas obras foram paradas. As suas<br />
guerras nunca são fáceis. Na Sé de Faro só pode entrar<br />
clandestino. Está condenado a ficar à porta, por não ter<br />
permitido o seguimento das obras de modernização do<br />
templo, projectadas pelo cabido da igreja.<br />
Fernando é implacável. A dor d’alma que o atinge<br />
sempre que passeia pelo centro histórico de Faro, o<br />
maior de todo o Algarve, e o vê, assim, desabitado e<br />
em ruínas, dói ainda mais sempre que se confronta<br />
com uma reabilitação inundada de cimento, de<br />
tinta plástica, de alumínio. Património rima com<br />
autenticidade. Tudo o resto são pastiches.<br />
Ainda se lembra dos tempos em que, na sua cidade<br />
natal, ao fundo de cada rua vislumbrava-se a ria e<br />
do cimo de cada açoteia avistava-se o mar. <strong>Ho</strong>je as<br />
vistas estão toda tapadas. Nessas alturas sente-se a<br />
viver numa cidade sem identidade cultural, como<br />
que ocupada por romanos, eles que destruíam a<br />
arquitectura das cidades que invadiam, conscientes de<br />
que um povo sem identidade arquitectónica é um povo<br />
enfraquecido.<br />
E apesar de ser único, não vê aquilo que faz como<br />
algo extraordinário. Está apenas a defender a cidade<br />
onde nasceu há 56 anos, o seu habitat. No fundo,<br />
compara-se a qualquer outro animal, ele que é biólogo<br />
de formação. Diz que se todos os bichos defendem o<br />
seu território, o homem devia fazer o mesmo. Recusa o<br />
pensamento dominante em que cada um se preocupa<br />
apenas com o seu quintal, achando que o que está lá<br />
fora não é de ninguém. Fernando sabe que o que está<br />
lá fora é de todos e por isso espanta-se. Espanta-se por<br />
estar sozinho, e continua.<br />
XXI, Ter Opinião 45
2011–2012<br />
Portugal<br />
tem emenda?<br />
Diário Musical<br />
de Ivan<br />
Ivan Veiga<br />
28 anos<br />
Natural de Angola<br />
Funcionário de supermercado<br />
“Queria ter sido<br />
marinheiro”<br />
46 XXI, Ter Opinião<br />
A<br />
música surgiu como se fosse um diário.<br />
Quando ainda vivia na sua terra, em Angola,<br />
Ivan Veiga já cantava, mas não cantava assim<br />
tanto. Depois veio para Portugal com a mãe. Primeiro<br />
para a Buraca, depois para a Amadora. Tanto num<br />
sítio como no outro, a criminalidade era o prato do<br />
dia. Foi no meio de tanta repressão, de tanta violência,<br />
que procurou a música.<br />
No princípio eram sons assim sem ideias, sem lógica,<br />
sem sentido. Com o passar dos tempos, Ivan percebeu<br />
que os sentimentos negativos que as suas músicas<br />
transportavam só serviam para semear maldade.<br />
Sentiu-se como alguém que pega numa arma e a põe<br />
na mão de uma criança. Foi então que começou a<br />
tentar fazer cada música como se fosse uma flor.<br />
Ivan está sempre a rir. Nunca pára de rir, com a boca,<br />
com os olhos, nem mesmo quando fala de coisas que<br />
não têm graça. Como aquela que se passou pouco<br />
depois de ter chegado a Portugal. A mãe mandou-o ir<br />
a casa do vizinho pedir um copo de açúcar e o vizinho<br />
chamou a polícia. Pensou que era um assalto. Em<br />
Angola, Ivan pedia coisas aos vizinhos a toda a hora<br />
e ninguém chamava a polícia.<br />
Histórias de intolerância que Ivan não leva a sério. Se<br />
assim não fosse, nunca teria ido para a Quinta da Fonte,<br />
em Loures, conhecida pelos tumultos entre africanos e<br />
ciganos, criar uma banda de africanos e ciganos. Mas<br />
foi. E criou. Com a ajuda da comissária da Esquadra da<br />
Polícia lá do bairro, que gostou logo daquele som onde<br />
se fala de paz e amor, e convida a banda para actuar em<br />
todas as festas das redondezas. A banda não tem nome<br />
mas tem angolanos, cabo-verdianos, portugueses e<br />
ciganos. Tem Hip-<strong>Ho</strong>p, R&B, Funaná, Kizomba. Ensaia<br />
no Centro Comunitário da Apelação, no mesmo estúdio<br />
onde está a gravar o primeiro disco.<br />
Sector Peixaria, num dos supermercados do Pingo<br />
Doce. É lá que Ivan trabalha. Não foi propriamente<br />
uma opção de vida mas junta duas coisas que lhe<br />
agradam muito. Conversar com as pessoas e trabalhar<br />
com peixe. Peixe lembra mar e Ivan adora o mar.<br />
Em miúdo queria ser marinheiro. Agora quer ser<br />
psicólogo. Aos 28 anos, vai voltar à escola, já se<br />
inscreveu e está a tentar entrar na Universidade.<br />
Também gostava de fazer carreira musical, de cantar.<br />
Já conseguiu tanta coisa…<br />
XXI, Ter Opinião 47
2011–2012<br />
Portugal<br />
tem emenda?<br />
Filipa,<br />
a dançarina<br />
Filipa Sá<br />
40 anos<br />
Natural de Lisboa<br />
Bancária<br />
“Vibro mais com<br />
as danças latinas”<br />
48 XXI, Ter Opinião<br />
Nessas alturas esquece tudo o que está lá fora.<br />
Enquanto dança, não tem preocupações, nem<br />
problemas, nem cansaço. Está simplesmente<br />
a dançar. Não se pode dizer que se transforme noutra<br />
pessoa. Filipa Sá continua a ser ela mesma… só que a<br />
dançar e a mostrar aos outros o prazer que a dança lhe dá.<br />
O seu dia-a-dia é de escritório, embora não esteja<br />
agarrada à secretária. Trabalha numa instituição<br />
bancária. Depois, dá apoio aos pais. Mora sozinha.<br />
Calça os sapatos de salto alto, veste um vestido rodado<br />
e vai para ali, para a Sociedade Filarmónica Alunos<br />
de Apolo. É naquele prédio um pouco degradado do<br />
bairro de Campo de Ourique, um templo das danças<br />
de salão, que passa grande parte do seu tempo livre.<br />
Gosta de deitar as culpas para cima do Carlos, o<br />
seu par, amigo de longa data. Foi com ele que fez o<br />
primeiro curso de dança, há quatro anos, foi ele que lhe<br />
ofereceu a inscrição nos Alunos de Apolo. Filipa diz<br />
que foi ele que criou o “monstro”! Carlos fica calado,<br />
sorri. Quem ouve a história nunca imaginaria que tudo<br />
começou nele. É ela que respira dança como se aquele<br />
sempre tivesse sido o grande sonho da sua vida.<br />
E, quando olha para trás, Filipa vê que sempre gostou<br />
de dançar. Sai à tia. Tinha o hábito de ouvir música,<br />
de marcar os ritmos. Dançava de vez em quando, mas<br />
o pai costumava dizer-lhe que não tinha assim muito<br />
jeito. Afinal, não teve dificuldade em aprender. Pelos<br />
vistos, já havia qualquer coisa que a indicava para a<br />
dança, ela é que não tinha percebido. Dois anos na<br />
dança social chegaram para os professores da Apolo<br />
desafiarem Filipa e o seu par a passarem à competição.<br />
Vai, pelo menos, a um campeonato por mês. Há meses<br />
em que entra em dois, três, quatro. Procura ir a todos<br />
os que pode. Porque é divertido, porque se sente bem,<br />
porque há todo um saudável convívio entre dançarinos.<br />
Concorre nas dez danças de salão, mas são as latinas<br />
que mais a fazem vibrar. Uma rumba, um samba, um<br />
chá-chá-chá, um jive… Nessa latina vertiginosa, então,<br />
se a música puxar por ela, ela dá tudo!<br />
Ganhar tem alguma importância, claro. Mas quando<br />
se está a chegar aos 40, já não é tão importante como<br />
quando se tem 16 ou 17 anos. Filipa não dançava nessa<br />
idade nem tem ilusões sobre a longevidade de uma<br />
dançarina de competição. Os campeonatos não duram<br />
toda a vida. A dança, sim. Faz-lhe bem.<br />
XXI, Ter Opinião 49
2011–2012<br />
Portugal<br />
tem emenda?<br />
O senhor Nunes<br />
da charcutaria<br />
José Nunes<br />
79 anos<br />
Natural de Ferreira do Zêzere<br />
Comerciante<br />
“Aqui é a minha<br />
vida inteira”<br />
50 XXI, Ter Opinião<br />
A<br />
entrada aqui é sempre às sete horas da manhã.<br />
Dez para as sete. Depois começam a chegar os<br />
fornecedores. O homem do leitão, os queijos<br />
frescos, os padeiros, que são três, alguns homens da<br />
fruta que vêm de longe… Ainda ontem um chegou aí às<br />
cinco e meia. Vinha do Fundão com pêssegos e figos…<br />
Os olhos do senhor Nunes brilham enquanto descreve<br />
a rotina da sua charcutaria. Perto das nove começam a<br />
chegar as pessoas e, de repente, já são oito da noite.<br />
Para o senhor Nunes, o tempo voa. Parece que foi<br />
ontem que chegou à Mercearia Corália, baptizada<br />
em homenagem à filha do antigo dono, para a<br />
transformar na Charcutaria Riviera. Mas já foi em<br />
1957. Contratou uns arquitectos, refez a frente da loja,<br />
que ainda hoje está igual, e deu ao interior da loja o<br />
mesmo aspecto que mantém, mais de cinquenta anos<br />
depois. O senhor Nunes não está muito virado para<br />
fazer uma Riviera muito moderna. Quer que todos<br />
vejam como era uma casa nos tempos em que não<br />
havia supermercados.<br />
Os dias são cheios na charcutaria. Quantas vezes o<br />
almoço acaba adiado para a hora do lanche. Há que<br />
receber mercadoria, conferir facturas, e conversar<br />
com os clientes. Há muito tema de conversa quando os<br />
pais e os avós de quem entra também já faziam ali as<br />
suas compras. Há ainda que ensinar os que não sabem<br />
apreciar devidamente o que compram. Como aquele<br />
homem que gastou um dinheirão numa lata de ovas<br />
de sardinha, a que pomposamente se chama o caviar<br />
português, convencido de que ia para casa cozê-las.<br />
São estas coisas que fazem um profissional e o senhor<br />
Nunes orgulha-se de ser um profissional do comércio<br />
alimentar. Foi neste ramo que começou a trabalhar,<br />
aos 13 anos, quando veio de Ferreira do Zêzere para<br />
Lisboa. Ainda esteve na aldeia três anos, depois de<br />
acabar a quarta classe, a dar serventia a pedreiros e a<br />
guardar cabras, mas não era vida para ele. Veio para<br />
as mercearias e apaixonou-se.<br />
A Riviera é obra sua. Dedicou-lhe a vida inteira,<br />
primeiro a sonhá-la, depois a construí-la, agora a<br />
mantê-la viva. Ou então é a charcutaria que mantém<br />
vivo o senhor Nunes. À beira dos 80 anos, planeia<br />
reformar-se… daqui a dez. De uma coisa tem a certeza:<br />
se a má sorte o obrigar a sair de trás do balcão antes<br />
disso, nem um ano dura.<br />
XXI, Ter Opinião 51